Você está na página 1de 196
DIFFICULDADES DA LINGUA PORTUGUEZA ESTUDOS E OBSERVAGOES Por M. SAID ALI LENTE DO GYMNASIO NACIONAL E PROFESSOR DA ESCOLA DE ESTADO MAIOR. LAEMMERT @&C. LivReiRos, RIO DE JANEIRO — S. PAULO : 1908, Pocersehe Hofbechireckre ‘Stephan Gebel Co. TREES aa CT ERTRR fe Pee) Prefacio. v fomo se vé pelo titulo, nfo é intuito deste livro offerecer aos leitores 0 esclarecimento de todas «ase difficuldades da nossa lingua, Poneas as ques- tes, mas nem por isso menos interessantes, as de que aqui me occupo, As conclusées a que chegusi, fruto de pesquisas proprias, tenho-as revelado em livro ow om revistas diversas. Pouco differindo, em substancia, dos artigos de outrora, esses estudos, rounidos agora em volume, receberam o desenvolvi- mento que a principio o genero de publicagto nfo Thes permittia, mas, por outro lado tambem, tanto quanto possivel, a clareza © preciso exigidas em uma edigao definitiva. Questdes de orthographia, assunto palpitante nestes ultimos tempos, no foram aqui contempladas. Na introducg#o ao meu Vocabulario Orthographico ereio haver dito o bastante, Sem desconhecer & conveniencia da simplificagio — reforma, a mew ver, exequivel quando feite lentamente — reduai ahi a rogras praticas 0 que 0 uso actual permittee indiquei algumas modificagbes desejaveis cuja aceitaclo se poderia esperar em um futuro mais proximo. $6 1" v © problema dos nomes propriosfgeographicos requeria mais esclarecimento: dedica-se-lhe a0 presente livro ‘um capitulo, E’ claro que eu no poderia oontar com resul- tados positivos sem a collecgo intermina de exemplos que me forneceu a leitura ¢ exame de textos. Tendo porem chegado a conclusées que explicam difficul- dades e mostram a causa das divergencias sobre certas doutrinas, seria enfadonho reproduzir agora o material superfluo. Pelo muito que supprimi ereio merecer a gratidgo do leitor. Depois da casa pronta no se quer ver andaime. Limito-me pois a men- cionar as passagens ostrictamente necessarias & con- firmagao e esclarecimento das proposigies formuladas ‘ow que possam: por em evidencis o infundado de certos reconeeitos. Ainda a proposito dessas mesmas passagens, vor-se- que sigo traga differente da orientagto que julga encontrar no argumento do ; Westen si- gnifica, conforme 0 accento musical, ora co geste ora <0 colletes. Os modernos phonetistas costumam distinguir tres formas principaes de accento musical. Emquanto se pronuncia a soante ou a syllaba, péde a von per- manecer no mesmo nivel, ou clevar-se do nivel, ou abaixar-se; de sorte que temos o accento plano —, © ascendente“e 0 descendente\. Existem tambem com Dinagdes dessas formas fundamentaes, como sejam o ascendente-descendente e o descendente-ascendente, que constituem 0 cireumflexo musical, Km uma desias uas formas tom a sua explicagto o perispomeno grego. Em certos dialectos notam-se numa mesma syllaba dois tons bem distintos, que se podem apreeiar pelos Poa seas cea 9 intervallos musicaes. Se chamarmos tom fundamen- tal ao tom mais baixo que a syllaba péde ter em uma lingua, teremos no dialecto de Far um cireum- flexo formado pela terga mais tom fundamental; no iatecto de Dalby um composto da torga roduzida mais quinta; na linguagem de Fryksdal contam- nada menos de tres: um constituido pela quinta mai tom fundamental, outro pelo tom fundamental mais terga, © 0 ultimo fnalmente pela quarta augmentada mais quinta, Em poriuguez, nfo poderiamos estudar esses curiosissimos phenomenos de dupla tonalidade numa mesma syllaba, nem mesmo estabelecer regras para modulagio simples, salvo o facto da clevagio da vox no fim da frase interrogativa, e o da maior cle- vagio ainda na frase admirativa. O accento musical no é como naquelles dialectos, inherente 4 palavra. ‘A nossa accentuago caracterisase, como j4 dissemos, pela forga, pela intensidade da corrente expiratoria, ficando reservado 4 accentuagio musical o papel de modificar 0 sentido geral da frase. * * Cingindo-nos ao estudo da aecentuagto dynamiea na proposigo portugueza, encontraremos um campo de pesquisas, a cujo desconhecimento se devem al- guns erros commettidos na inierpretaglo de interes- 10 Onde so acha a palavra com accentuagto mais forte, no principio, no meio ou fim da oragho? Pare- cord ociosa a pergunta, sabendo-se que a intensidade da pronuncia hade ser proporcional 4 importancia da idéa, e assim em qualquer lingua a palavra mais fortemente accentuada deveria achar-se indifferente- mente neste ou naquelle Ingar da orago, ‘Todavia, mas tém as suas preferencias: nuns a exactidio do principio salta logo aos olhos pela extrema mobil dade do aceento oracional; noutros accento tonde 1 fixar-se em certo ponto. Exemplifiquemos, A pro- posigho alleman er hat das Buch (elle tem o livro), admitte @ aceentuagto principal em cada um dos quatro voeabulos, fazendo-se por esse modo sobresabir 4 vontade principal idéa que se queira communica. J& em portugues, como nos outros idiomas romanicos, no podemos proceder identicamente com os exemplos lle tem o livro, il a le Tore, ote.; ahi custa-nos deixar de pronunciar com mais forga a ultima palavea, 4B’ notoria esta propensio para accentuar mais os ultimos voeabulos, nfo s6 em oragies (eu quero, Joao quer), mas ainda em outros casos (casa grande, homem velho), Nas frases formadas por substantive © ad- jectivo, cujo sentido varia conforme a posigio rela- tiva das duas palavras, collocamos sempre em ultimo Ingar a idéa principal, isto 6, 0 vocabulo mais accen- ‘tuado. Comparemos homem pobre © pobre homem, pessoa certa © cera pessoa, noticia certa e certa a noticia, Do mesmo modo, distinguimos eu the digo de digo-The eu; num caso, a idéa principal & digo (accentuagfo prinetpal), no outro é ex (salientamos 0 sujeito pela accentuagio). Do confronto entre a nossa lingua eo allemio resulta que a ordem das palavras um tanto fixa em allemio & compensada pela grande mobilidade do aecento principal; om nossa lingua, a0 contrario, relativa fixidez do principal accento oracional contra- alanga-se, até certo ponto, pela maior liberdade na collocagto das palavras. Dos exemplos citados nfio se conclua que uma frase portugueza seja incapaz de ter mais de um woeabulo de igual accentuagto forte, Basta lembrar que podem existir duas ou mais idéas igualmente preeminentes, como em homem pobre e felis; ew digo ¢ prov. Dada a ordem directa das palavras, ¢ fazendo-se abstracgio dos casos de emphase, obser- vam-s¢, entre outras, ainda as combinagies seguintes:: 1? 08 auxiliares de tempo e de modo tam o acento secundario, os verbos prineipaes 0 accento principal (tens dito, quoro ir, hei-de ir); 2.° 0 verbo ser tem acento sccundario, o predicado 0 accento principal (é rice, foi pobre}; 8° 0 complemento tem o principal, ‘40 passo que o verbo tem o secundario (lem dinkeiro, ‘vai amankan). Essas combinagées ¢ outras analogas constituem ‘grupos phoneticos que se pronuticiam geralmente 2 como se 08 vocabulos estivessem ligados; ¢ uma oragio um tanto longa é formada de varios desses ‘grupos, separados uns dos outros por ligeira pausa, como mestes casos: espero | que tu venas | sem filha | d nossa casa. indo sei | se devo ir. ai-nos | 0 pio nosss | de cada dia. Exceptuando o grupo dai-nos, 0 tom faase sentir mais forte na palavra final de eada grupo. O posses- sive, de accentuago secundaria em d nossa casa, assume outra intonaglo em 0 pio nosso pelo simples artificio de collocal-o apoz 0 substantivo. Sem pretender esgotar o assunto, menciono como voeabulos atonos: a) essencialmente prodlitieos: 0 artigo, as proposigées a, de, em, com, por, sem, sob, para © outras; as conjungies que, se, como, & OW, ‘mas ete.; b) eneliticos, usados tambem como procli- ticos: as formas pronominaes me, te Uke, 0, s¢ ete. Estes ultimos nfio admittem proposigfo; para tal easo possuimos formas accentuadas: min, ti, si, elle ete. A negagho no pode ser pronunciada de dois modos, conforme 0 eaio, v. g. om: Fens hoje? Nao; nao posso (confronte-se o france non ¢ ne). Costuma estar no fim do grupo phonetico ou da frase a palavra de accentuagho mais forte. Nem sempre se segue & risea este costume; em parte, por- ERR 13 que @ nossa liberdade de transpor vocabulos tem limites; em parte, porque a propria deslocasto pode doterminar a emphase em outro sentido, A deslo- cagio 6 anomalia, ¢ a anomalia aguga a attengto do ouvinte. Um termo fora de seu lugar habitual torna-se por isso um recurso da emphase, da linguagem eme- ional. objecto, accusativo ow dativo, no comego da frase indica que Ihe queremos dar relevo. emphatico; tem accentuagao forte. 0 ceffeito da emphase em nome ou pronome no inicio da oragio muitas vezes no se consegue apre- ciar om virtude da natural tendencia de accentuar- ‘mos com mais forge 0 verbo. Mas a lingua portu- gueza possue meios de pOr em destaque a palavra fem questo. Comparemos eu disse com fui eu que disse; ew vow com ou é que vou, E’ patente abi o effeito da lei de contrast que se observa em varias finguas © muitas veres se applica na metrificagio, Em contiguidade com palavra out locugio fraca, atona, dé-nos a impressio de forte, aocentuado, emphatico, © rocabulo originariamente semi-forte*). As duas combinagées do verbo ser com a palavra que, igual- mente correctas, salientam o sujeite, o complemento, © adverbio, 0 predicativo, collocados no comego da oragio, Na linguagem literaria, asyim como na fami- *) Tambem quando concorrem dois monosyliabos atonos, tum delles tende a fornar-se semiforte; geralmente o mais afastado do uma syllaba tonies, u liar, recorrese com frequencia a qualquer desses processos: Oh, dize-the, dizethe que néo fui ex que 0 assassinei (Here, Eutico)—Senhor, Senkor, foste tu que déste a ler & minha alma a ultima pagina do livro eterno (Hlere. ib.) — Foi entdo que 0 celebre Ruderico se aqossou da coroa (Here. ib.)—Jé que nto me é dado dbuscar-te, serds tu que virds lancar te nos braces de teu amigo (Here. ib,)— Hacos por certo ahi: cu € ‘que nBo sei conhecel-os (Here. Lendas ¢ Narr.) — Nos 8 homens costumamos diser que as mulheres sto curiosas: nds & que 0 somos (Here. ib,)—Ahi é que bate ‘0 impossivel (Here. ib.) —E? ali que tw me dards 0 prego do meu corpo (Here. ib.) — Féra elle que des- cobrira a perfidia (B. de Queiroz, Crime do P. Amaro) — Era por isso que 0 conde ia cingido de corda (Here, L. N.)—Mas eu é que no quero na minha Familia asnos (Rebello da Silva, Contos e Lendas). Ver-se-d em embaragos quem se proponha eluci- dar eabalmente pela syntaxe os elementos subsidiarios, de realee que ahi se empregam. A expresso pos- positiva é que, sempre invariavel, sempre indifferente ao numero do substantive © impassivel quer ao numero quer 4 pessoa do pronome a quem realga, furta-se inquestionavelmente ao escalpello do analysta. Resistencia menos tenaz parece ser a do caso da interposiglo, entre ser ¢ que, de uma palavra que exerga fungio de sujeito: a forma do verbo ser 15 regula-se pela do verbo que indica a predicagio roal*), Acredite-se-entdo haver concordancia com o nome ou pronome interposto, Quando porem, em lugar de um nome, esteja um adverbio, continua o verbo ser a regularse pelo verbo seguinte. Ora o verbo nfo concorda com adverbio. Compsre-se foi entio que se apossou com foi elle que s¢ apossou. Esta impossibilidade de generalisar ©, por outro fado, a manifesta argueia de pretender, por amor aos moldes da syntaxe, " desamor ao senso commum, descobrir dois pensamentos em algum dos tres termos esta igualdade logica cu é que disse = fui cu que disse — eu disse, obtiga-nos a repellir aqui a debit craveira a que n&o raro nos é impossivel aferir difficuldades**), Ha phenomenos de linguagem que esto fora do dominio da grammatica, j& 0 disse Swopt. As expresses fui... que © é que compa- ram-se ao sombreado na pintura: do relevo 4 pro- nuneia do vocabulo a que se ajuntam, Afora esta fungao de realeo, sua presenga é superflua. Inana- lysaveis como oragées, figura entre as anomalias syntacticas, 1) Pode entrotanto 0 verbo ser mantorse no presente 8e 0 outro verbo ee achar no futuro, **) Comparem-se ainda estes exemplos de Antonio Viei Nain fui ew o que me embarque, Cartas, Lis. 1855, 1—2, pag. 153, ‘ndo fui ew 0 que desobedeci ib. pag. 18; wis s0i8 0 que me ‘mandais « me apparecestes, Obs. Cmpl. 1898, 8, pag. 188, 16 Caso anslogo se Gé,eoin processo creado pela linguagem popular para dar relovo ao pronome inter- rogativo que correspondente ao latino quid. Na escripta, esse interrogativo absoluto ideatifica-se com o intor- rogativo conjunto, com o relativo, com a conjungio. Na pronuacia, differe algum tanto: que (= quid) 6 vocabulo semi-forte, embora muitas vezes haja ten- dencia de pronuneial-o como atono, Pela lei de con- traste de que acima faldmos (pag. 18), a contigui- dade de um proclitico dé a esse pronome a accen- tuagdo forte, Effestivanionto, pronuneiamos: para qué fazes isto? vais trabathar para qué? com qué se esereve? (Compare a pronuncia da conjungte para que [faga isto] ¢ do relativo na frase: [a penna] cont que [se escreve)}). Quando nao venha regido de preposig&o, reforga-se pronuncia do interrogativo com um outro procli- tico: a simples palavra o, No fim da frase, como sabemos, deve estar o accento oracional dominante. Por isso tambem empregamos o que, em lugar do interrogativo singelo, no fim das orsgbes. Dizemos: vais esorever 0 que? e nlio: vais esorever que? Via- se descer, romper, saltar ... 0 que? (Here. Lendas e Narr. Il, 39); foi aqui que? (Garrett, Viagens I, 72); ‘mas... — ellas o que? (Garrett, ib. I, 188); Sendo 0 que? (Garrett, ib. I, 122); Deveis 0 que? (Garrett, Cam. 68) Disen o que? Devo... 0.que? Dises o que? W Fazer 0 que? sio exemplos de A. F. de Castilho*). Pronuncie 0 Ieitor esses exemplos um por um, como so estivesse « palavra interrogativa que sem 0 proclities © vord a grande falta que lle faz. Obrigatoria no fim da oragio, a forma 0 que aubstitue 4 vontade 0 simples que no principio ou no meio da frase, desde que o eseriptor queira por em relevo 0 interrogativo, IE’ isto © que explica as soguintes passagens: 0 que & que en vejo?! Estes gritos, que sto!? (Cast, Metam. 154); eu, nympha, eu, menos forte, 0 ‘que podia? (Cast. ib. 264); 0 que foi isto? (Cast. Fausto, 177); logo, se nao & drama, o que 4? (Cast. Cam. prol.); agora por isto, 0 que seré feito de frei Timotheo 0 que seré feito delle? (Bere. Lendas © Narr. Il, 185); 0 que hade ser della ¢ de nés? (Garrett, Fr. L. de Sousa 41); ¢ @ vas da terra, o que é? (Here. Hlarpa do Crente); 0 que ¢ 0 direito da propriedade? 0 que € 00 livro? (Here, Opuse. I, 6465). 0 que soa naturalmente como uma palavra s6, mas di-se o seguinte: no fim da frase dizemos sempre Wwké, 20 passo que no comego a linguagem hodierna, mérmente a de Portugal, prefere muitas vezes, des- loear 0 acento, prontinciando ke ou, mesmo, wh: uk s¢ dia (= 0 que se diz?), Nesta combinagto *) Apud Horuclito Graga, Factos da Linguagom, Sala All, Dieniéades dy tinge 2 18 intima, 0 interrogativo originario como que se.vola- tilisa, A forma reforgada do pronome interrogative ¢ entre Portuguezes e Brasileiros, nfo sé na linguagem familiar, mas ainda na literaria, Os exem- plos ha pouco citados, escolhidos d’entre autores insuspeitos, dfo apenas leve idéa das innumeras veges que elle oceorre na moderna literatura, Remontando a outros periodos da lingua, nota- ‘mos entretanto que essa prodigalidade vai diminuindo pouco a pouco até faltarem, por fim, os vestigios de © que em interrogagées directas. Nao temos de ir buscar muito longe a explicagto. O pronome que, significando que cousa, teria intonagdo forte anti- gamente; nfo carecia de esteio algum. Mas nio se couservou sempre assim; a sua tonalidade enfra- quecew-se em parte, © a perda teve de ser compen- sada pela anteposigio de um elemento reforgativo, de uma palavra atona ao lado da qual se destacasse a sua pronuncia, quando assim o exigia a emphase ea clareza, Nao 6, alias, o cas unico de accen- tuagho enfraquecida: basta cotejar a particula mas com 0 antigo mais, basta lembrar que do latim para © romanico varios factos do mesmo genero se deram. Originow-se a forma em questfo nas interrogagées rectas, de onde fora que por influencia de outras oragbes secundarias, nas quaes 0 que equivalia a aguillo que. Nao sei que

Você também pode gostar