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|. Palavra e imagem! Cada palavra foi permeada, como cada imagem foi transformada, pela intensidade da imaginacio de um ato criativo instigate, “Pense bem’, diz Abt Vogler sobre o milagre andlogo do misico Pense bem: cada tom de nossa escala em si é nada; Estd em toda parte do mundo — alto, suave, e tudo estd dito Dé-me, para usé-lo! eu 0 misturo com mais dois em meu ‘pensamento; Eis ai! Vocés viram e ouviram: pensem e curvem a cabegat Dé a Coleridge uma palavra vivida de alguma antiga narrativa; deixe-o misturé-la a outras duas em seu pen- samento; ¢ entdo (traduzindo termos musicais para termos literdrios), “a partir de trés sons ele formard ndo ‘um quarto som, mas uma estrela.” , JOHN LIVINGSTONE LowES? Houve um perfodo do cinema soviético em que se proclamava que a montagem era “tudo”. Agora estamos no final de um periodo no qual a montagem foi considerada como “nada”, Considerando a montagem nem como nada, nem como tudo, acho oportuno neste momento lembrar que a montagem é um componente tao indis- pensdvel da produgio cinematogréfica quanto qualquer outro elemento eficaz do cinema. Depois da tempestade “a favor da montagem” ¢ da batalha “contra a montagem’, devemos voltar a abordar esse problema com a maior simplicidade. Isto € ainda mais necessdtio quando se considera que, no periodo de “negagio” da montagem, seu aspecto mais inquestiondvel, o tinico clemento realmente imune ao, desafio, também foi repudiado. A questio € que os criadores de numerosos filmes, nos tiltimos anos, “descartaram” a montagem a tal ponto que esqueceram até de seu objetivo e fungio fundamentais: o papel que toda obra de arte se impSe, a necesti- dade da exposigio coerente e organica do tema, do material, da trama, da asao, do movimento interno da seqiténcia cinematogrfica ¢ de sua ago dramética como B 14 O sentido do filme um todo. Sem falar no aspecto emaocional da histéria, ou mesmo de sua Idgica € continuidade, o simples ato de narrar uma histéria coesa foi freqiientemente omi- tido nas obras de alguns proeminentes mestres do cinema, que realizam virios géneros de filme. O que precisamos, claro, é nao tanto da critica individual desses mestres, mas basicamente de um esforgo organizado para recuperar 0 exercicio da montagem, que tantos abandonaram. Isto é ainda mais necessdrio a partir do momento em que nossos filmes enfrentam a missio de apresentar nao apenas uma narrativa logicamente coesa, mas uma narrativa que contenha 0 mdximo de emogio e de vigor estimulante. ‘A montagem é uma poderosa ajuda na solugao desta tarefa. Afinal, por que usamos a montagem? Mesmo o mais fandtico inimigo da montagem concordard que néo a usamos apenas porque o rolo de filme & nossa disposigao ndo tem um comprimento infinito ¢, conseqiientemente, condenados a trabalhar com pedagos de comprimento restrito, temos de colocé-los ocasional- mente, Os “esquerdistas” da montagem estdo no extremo oposto. Ao brincar com pedacos de filme, descobriram uma propriedade do brinquedo que os deixou aténitos por muitos anos. Esta propriedade consiste no fato de que dois pedagos de filme de qualquer tipo, colocados juntos, inevitavelmente criam um novo conceito, uma nova qualidade, que surge da justaposicéo, Esta nao é, de modo algum, uma caracte- ristica peculiar do cinema, mas um fendmeno encontrado sempre que lidamos com a justaposicao de dois fatos, dois fendmenos, dois objetos. Estamos acostumados a fazer, quase que automaticamente, uma sintese dedutiva definida e dbvia quando quaisquer objetos isolados s40 colocados & nossa frente lado a lado. Por exemplo, tomemos um ttimulo, justaposto a uma mulher de luto chorando ao lado, e dificilmente alguém deixard de concluir: wma vitiva. E exatamente neste aspecto da nossa percepcio que a seguinte minianedota de Ambrose Bierce bascia seu efeito. ‘Trata-se de: “A vitiva inconsolavel”, uma de suas Fébulas fantdsticas: Uma mulher de luto chorava sobre um tiimulo. “Acalme-se, minha senhora”, disse um estranho compassivo. “A misericérdia divina é infinita. Em algum lugar h4 um outro homem, além de seu marido, com quem ainda poderd ser feliz.” “Havia’, ela solugou — “havia, mas este ¢ 0 seu timulo.”> Todo o efeito da histéria é constru(do tendo por base o fato de que o timulo ea mulher enlutada a seu lado levam a inferéncia, devido 4 convengio estabelecida, de que ela ¢ uma vitiva que chora o marido, quando na realidade 0 homem por quem chora é seu amante. ‘A mesma circunstancia € freqiientemente encontrada em charadas — por exemplo, esta do folclore internacional: “O corvo voou enquanto um cachorro sentou-se em seu rabo, Como isso € poss{vel2” Automaticamente combinamos os Palavra e imagem 15 elementos justapostos ¢ os reduzimos a uma unidade. Como resultado, entende- mos a pergunta como se 0 cachorro estivesse sentado no rabo do corvo, quando na realidade a charada contém duas aces ndo-relacionadas: 0 corvo voa, enquanto 0 cachorro senta-se em seu proprio rabo. Esta tendéncia a juntar numa unidade dois ou mais objetos ou quali independentes ¢ muito forte, mesmo no caso de palavras isoladas que caracterizam diferentes aspectos de um tinico fendmeno. Um exemplo extremo disso pode set encontrado no inventor da “palavra portmanteax”, Lewis Carroll. A despretensiosa descricéo que fez de sua invengio, de “dois significados colocados em uma palavra, como se a palavra fosse uma mala portmanteau” * conclui a introdugio de seu A capa ao Snark (The Hunting of the Snark). lades Por exemplo, pegue duas palavras, “terrivel” ¢ “horrivel”. Decida que dira as duas palavras, mas nao decida qual dird primeiro. Agora abra a boca ¢ fale. Se seus pensamentos se inclinam mesmo sé um pouco em direcio a “terrivel”, vocé dird “terrivel-horrivel”; se eles se voltam, até devido a um golpe de ar, em diresao a “hortivel”, vocé diré “horrivel-terrivel”; mas se vocé tem 0 mais raro dos dons, uma mente perfeitamente equilibrada, dird “torrivel”.> E claro que neste caso nZo ganhamos um novo conceito, ou uma nova qualidade. O encanto deste efeito “portmanteau” & constru{do com base na sensa- go de dualidade que existe na palavra formada arbitrariamente. Todo idioma tem seu profissional de “portmanteau” — o norte-americano tem seu Walter Winchell. Obviamente, a manipulagio maxima da palavra portmanteau & encontrada em Finnegans Wake. Por isso, o método de Carroll é essencialmente uma parédia de um fendmeno natural, uma parte de nossa percepgao habitual — a formagao de unidades qualita- tivamente novas; em conseqiiéncia, é um método bisico para se obterem efeitos cémicos. Este efeito cémico é conseguido através da percepgio tanto do novo resultado quanto de suas duas partes independentes — ao mesmo tempo. Os exemplos deste tipo de engenho sao inumerdveis. Citarei aqui apenas trés exemplos que se podem encontrar em Freud: Durante a guerra entre a Turquia ¢ os Estados balcinicos, em 1912, Punch retratou 0 papel desempenhado pela Roménia (Roumania) representando-a como um ladrao de estrada assaltando membros da Alianga Balcdnica. A caricatura foi intitulada: Klepto- roumania. ‘A malicia européia rebatizou um ex-potentado, Leopold, de Cleopold, por causa de sua relagio com uma dama chamada Cle: 16 O sentido do filme Num cant um dos personagens, um “brincalhao”, fala da época do Natal como alcoholidays (férias alcodlicas). Por redugio, pode-se perceber facilmente que te- mos aqui uma palavra composta, uma combinagio de alcohol (élcool) © holidays (férias)...6 Acho evidente que o fenémeno que estamos discutindo esté mais do que difundido — ¢ literalmente universal. Por isso, nao ha nada de surpreendente no fato de uma platéia cinematogrfi- ca também fazer uma inferéncia precisa a partir da justaposicao de dois pedagos de filme colados. Certamente nao estamos criticando estes fatos, nem seu valor, nem sua uni- versalidade, mas apenas as falsas dedugdes ¢ conclusées a que deram origem. Com base nisso, serd possivel fazer as corregdes necessarias. De que omissio fomos culpados quando destacamos pela primeira vez a indubité- vel importancia do fenémeno acima citado para a compreensio e dominio da montagem? O que estava certo, ou errado, nas nossas entusidsticas declaracdes da época? O faro fundamental estava certo, ¢ permanece certo: a justaposicao de dois planos isolados através de sua unio nao parece a simples soma de um plano mais outro plano — mas o produto. Parece um produto — em vez de uma soma das partes — porque em toda justaposigao deste tipo o resultado é qualitativamente diferente de cada elemento considerado isoladamente. A esta altura, ninguém realmente ignora que quantidade ¢ qualidade nao sao duas propriedades de um fendmeno, mas apenas aspectos diferentes do mesmo fendmeno. Esta lei da fisica é verdadeira em outros campos da ciéncia e da arte. Entre os muitos campos em que pode ser aplicada, 0 uso feito pelo professor Koffka na esfera da psicologia comportamental tem relagdo com nossa discussao: iferentes Ji foi dito: 0 todo é mais do que a soma de suas partes. E mais correto dizer que 0 todo éalgo da soma de suas partes, porque a soma é um proceso insignificante, enquanto arelacéo todo-parte é significativa.” A muther, voltando ao nosso primeiro exemplo, € uma representacio, o luto que ela veste é uma representacio — isto é, ambos estiio plasticamente representados. Mas “uma visiva”, que surge da justaposigao de duas representagées, nao é plastica- mente uma representacéo — mas uma nova idéia, um novo conceito, uma nova imagem. Qual foi a “distorga0” de nossa posigéo, na época, com relagio a este fendme- no indiscutivel? Palavra e imagem Ww O erro residiu no fato de ressaltarmos mais as possibilidades da justaposicéo, enquanto parecfamos dar menor aten¢ao ao problema da andlise do material justa- posto. Os que me criticaram apressaram-se em apresentar isso como uma falta de interesse pelo conterido dos fragmentos de montagem, confundindo o interesse de experimentador pela andlise de certo aspecto do problema com a atitude do préprio experimentador diante da realidade representada. Deixo-os com suas proprias consciéncias. O problema surgiu devido a minha atragio, antes de tudo, por aquele aspecto entio recém-descoberto na jungio de dois fragmentos de montagem de um filme, pelo faro de que — nao importa se eles nao sio relacionados entre si, ¢ até freqiientemente a coisa se dé por causa disso mesmo — quando justapostos de acordo com a vontade do montador engendrarem “uma terceira coisa” € se torna- rem correlatos. Por isso, eu estava preocupado com uma potencialidade atipica da construgao ¢ composicao cinematogréficas normais. Trabalhando desde o inicio com este material ¢ esses fatos, era natural especu- lar principalmente sobre as potencialidades da justaposigao. Foi dada menor aten- Gao & andlise da natureza real dos fragmentos justapostos. Tal atengao nao teria sido suficiente por si mesma. A histéria provou que este tipo de atengao, dirigida apenas ao contetido de planos isolados, na pratica levou o declinio da montagem ao nivel de “efeitos especiais”, “seqiiéncias de montagem’, etc., com todas as suas conse- qiiéncias. Qual deveria ter sido a énfase correta, 0 que deveria ter recebido maior atengao, a fim de que nenhum elemento fosse indevidamente exagerado? Tetia sido necessétio voltar a base fundamental que determina igualmente tanto 0 contetido dos planos isolados quanto a justaposigao compositiva dos con- tetidos independentes entre si, isto ¢, voltar ao contetido do todo, das necessidades gerais e unificadoras. Um extremo consistiu na falta de atengio quanto ao problema da técnica da unificagdo (os métodos de montagem), 0 outro — na desatengao aos elementos unificados (0 contetido do plano). Deverfamos ter-nos preocupado mais em examinar a natureza do préprio principio unificador. Precisamente 0 princfpio que deveria determinar tanto 0 contetido do plano quanto o contetido revelado por uma determinada justaposigado esses planos. Mas, com isso em mente, seria necessdrio que o interesse do pesquisador se voltasse basicamente nao em diregio aos casos paradoxais, nos quais o resultado global, geral ¢ final néo & previsto, mas emerge inesperadamente. Deveriamos ter-nos voltado para os casos nos quais os planos nio sé esto relacionados entre si, mas nos quais este resultado final, geral, global nao é apenas previsto, mas predeter- 18 O sentido do filme mina tanto os elementos individuais quanto as circunstancias de sua justaposicao. Casos como esses s40 normais, comumente aceitos e ocorrem com freqiiéncia. Nestes casos, 0 todo emerge normalmente como “uma terceira coisa”. A imagem total do filme, determinada tanto pelo plano quanto pela montagem, também emerge, dando vida e diferenciando tanto o contetido do plano quanto o contetido da montagem. Casos assim é que sao tipicos da cinematografia. Com este critério de montagem, os planos isolados e sua justaposicao atingem uma correta relacio miitua. Além disso, a prépria natureza da montagem nao apenas deixa de se distanciar dos principios do estilo cinematogréfico realista, mas funciona como um dos recursos mais coerentes e praticos para a narracéo naturalis- ta do contetido de um filme. © que esta compreensio da montagem implica essencialmente? Neste caso, cada fragmento de montagem jd no existe mais como algo nao-relacionado, mas como uma dada representagio particular do tema geral, que penetra igualmente todos os fotogramas. A justaposicao desses detalhes parciais em uma dada estrutura de montagem cria faz surgir aquela qualidade geral em que cada detalhe teve participagio e que retine todos os detalhes num todo, isto é, naquela imagem gencralizada, mediante a qual 0 autor, seguido pelo espectador, apreende o tema. Se agora observamos dois fragmentos de filme reunidos, vemos sua justaposi- gio sob uma luz bastante diferente. Ou se Fragmento A (derivado dos elementos do tema em desenvolvimento) e frag- mento B (derivado da mesma fonte), em justaposigao, fazem surgir a imagem na qual o contetido do tema € corporificado da forma mais clara. No imperativo, com o objetivo de estabelecer uma férmula de trabalho mais exata, esta proposicao soaria assim: A representagito A ¢ a representagdo B devem ser selecionadas entre todos os aspectos possiveis do tema em desenvolvimento, devem ser procuradas de tal modo que sua justaposi¢aéo — isto é, a justaposigao desses préprios elementos ¢ nao de outros, alternativos — suscite na percepgao € nos sentimentos do espectador a mais com- pleta imagem do préprio tema. Em nossa discussio sobre a montagem entraram dois novos termos: “repre- sentagio” ¢ “imagem”. Quero definir a demarcacdo entre eles antes de prosseguir- mos. Usaremos um exemplo para demonstragio. Tomemos um disco branco de tamanho médio e superficie lisa, dividido em 60 partes iguais. A cada cinco partes é colocado um mimero na ordem consecutiva de 1 a 12, No centro do disco sio fixadas duas varas de metal, que se movimentam livremente sobre sua extremidade fixa, pontu- Palavra e imagem 19 das nas extremidades livres, uma do tamanho do raio do disco, a outra um pouco mais curta, Deixemos a extremidade livre da vara pontuda mais longa marcar 0 ntimero 12, ¢ a da mais curta, consecutivamente, apontar para os ntimeros I, 2, 3€ assim por diante, até 0 ntimero 12. Isto implicard uma série de representagées geométricas de relagdes consecutivas das duas varas de metal, expressadas nas dimen- s6es 30, 60, 90 graus, ¢ assim por diante, até 360 graus. Porém, se o disco dispuser de um mecanismo que movimenta uniformemente as varas metilicas, a figura geométrica formada em sua superficie adquire um significado especial. Agora nao é simplesmente uma representagiio, é uma imagem do tempo. Neste caso, a representagdo ¢ a imagem que ela suscita em nossa percepgio estao tdo completamente fundidas que apenas sob condig6es especiais distinguimos a figura geométrica, formada pelos ponteiros do relégio, do conceito de tempo. Isto pode acontecer com qualquer um de nés, evidentemente que em circunstancias incomuns. Aconteceu com Vronsky depois que Ana Karenina lhe contou que estava gravida: Quando Vronsky olhou para seu relégio, na varanda dos Karenin, estava tio preocu- pado, que olhou para os ponteiros no mostrador do relégio e nao viu as horas.® Neste caso, a imagem do tempo criada pelo relégio nao surgiu. Ele viu apenas a representagio geométrica formada no mostrador pelos ponteiros do reldgio. Como podemos ver, mesmo num exemplo tao simples, que diz respeito apenas ao tempo astrondmico, & hora, a representagio formada no mostrador do reldgio insuficiente em si mesma. Néo ¢ suficiente apenas ver — algo tem de acontecer com a representagio, algo mais tem de ser feito com ela, antes que deixe de ser percebida como apenas uma simples figura geométrica ¢ se torne perceptivel como a imagem de uma “hora” particular na qual o acontecimento est ocorrendo. Tolstoi nos mostra o que acontece quando esse processo nao ocorre. O que € esse processo exatamente? Uma determinada ordem de ponteiros no mostrador de um relégio suscita um grupo de representagdes associadas ao tempo, que corresponde & hora determinada, Suponhamos, por exemplo, que 0 mimero seja cinco. Nossa imaginagao est treinada para responder a este ntimero recordan- do cenas de todos os tipos de acontecimentos que ocorrem nesta hora. Talvez 0 ché, 0 fim de uma jornada de trabalho, 0 comego da hora do rush no metr6, talvez lojas fechando as portas, ou a peculiar luminosidade do final da tarde... Em qualquer dos casos, automaticamente nos lembraremos de uma série de cenas (representagées) do que acontece as cinco horas. ‘A imagem das cinco horas € composta de todas essas representacées parti- culares. 20 O sentido do filme Esta é a seqiiéncia completa do processo, que ocorre deste modo na etapa de assimilagao das representagdes formadas pelos ntimeros que suscitam as imagens das horas do dia e da noite. Em seguida, as leis de economia da energia psiquica entram em funcionamen- to. Ocorre uma “condensagao” no interior do processo acima descrito: a cadeia de vinculos intermedidrios desaparece ¢ se estabelece uma conexio instantanea entre 0 ntimero e nossa percepgéo do tempo ao qual corresponde. O exemplo de Vronsky nos mostra que uma forte perturbagdo mental pode destruir esta conexio, ¢ a representagao ¢ a imagem se separam. Estamos discutindo aqui a apresentagio plena do processo que ocorre quando uma imagem é formada a partir de uma representagio, como descrito acima. Esta “mecanica” da formagio de uma imagem nos interessa porque os meca- nismos de sua formagio na realidade servem como protétipo do método de criagio de imagens pela arte. Recapitulando: entre a representagéo de uma hora no mostrador de um relégio e nossa percep¢io da imagem dessa hora, hé uma longa cadeia de repre- sentag6es vinculadas aos aspectos caracteristicos distintos dessa hora. E repetimos: o hébito psicoldgico tende a reduzir esta cadeia intermediaria a um minimo, a fim de que apenas o inicio e o fim do proceso sejam percebidos. Mas assim que precisamos, por qualquer razio, estabelecer as conexGes entre uma representagio € a imagem a ser suscitada por ela na consciéncia € nos sent mentos, somos inevitavelmente impelidos a recorrer novamente a uma cadeia de representagdes intermediarias que, juntas, formam a imagem. Consideremos primeiro um exemplo bem préximo daquele outro exemplo da vida cotidiana. Em Nova York, a maioria das ruas ndo tem nome — Quinta Avenida, rua 42, ¢ assim por diante. Os estrangeiros acham este método de designagéo de ruas extremamente dificil nos primeiros momentos. Estamos acostumados a ruas com nomes, o que é muito ficil para nés, porque cada nome imediatamente suscita uma imagem da rua determinada, isto é, quando vocé ouve o nome da rua, aparece um conjunto particular de sensagées ¢, com ele, a imagem. Achei muito dificil lembrar das imagens das ruas de Nova York e, conseqiien- temente, reconhecer as ruas. Suas designagées, ntimeros neutros como “42” ou “45”, no produziam em minha mente imagens que concentrariam minha percep- do nos aspectos gerais de uma ou outa rua. Para produzir estas imagens, tive de colocar na meméria um conjunto de objetos caracterfsticos de uma ou outra rua, um conjunto de objetos surgidos em minha consciéncia em resposta ao sinal “42” ¢ bastante diferentes dos surgidos em resposta ao sinal “45”. Minha memét reuniu 0s teatros, lojas e edificios caracterfsticos de cada uma das ruas que tinha de recordar. Este processo passou por estégios definidos. Dois desses estdgios devem set ressaltados: no primeiro, & designagio verbal “rua 42”, minha meméria com Palavra e imagem a grande dificuldade respondeu enumerando toda a cadeia de elementos caracterfsti- cos, mas eu ainda nao tinha a verdadeira percepsio da rua, porque os varios elementos ainda néo haviam se consolidado numa imagem Unica. Apenas no segundo estagio todos os elementos comegam a se fundir numa tinica imagem: & mengio do “ntimero” da rua, ainda surgia todo este grupo de elementos independentes, ‘mas agora no como uma cadeia, mas como algo tinico — como uma caracterizagao total da rua, como sua imagem total. Apenas depois deste estégio se pode dizer que realmente se memorizou a rua ‘A imagem da rua comega a emergir e a viver na consciéncia ¢ na percepgio exatamente como, durante a criagio de uma obra de arte, sua imagem total, tinica, reconhectvel, é gradualmente formada por seus elementos. Em ambos os casos — seja uma questio de memorizagio, ou o processo de percepgio da obra de arte —, 0 método de entrada na consciéncia ¢ nos sentimen- tos, através do todo, ¢ no todo, através da imagem, permanece fiel a esta lei. Além disso, apesar de a imagem entrar na consciéncia e na percepgao, através da agregagio, cada detalhe é preservado nas sensagées e na meméria como parte do todo, Isto ocorre seja ela uma imagem sonora — uma seqiiéncia rftmica e melédica de sons — ou plastica, visual, que engloba, na forma pictérica, uma série lembrada de elementos isolados. De um modo ou de outro, a série de idéias € montada, na percepgio e na consciéncia, como uma imagem total, que acumula os elementos isolados. Vimos que no proceso de lembranga existem dois estagios fundamentai primeiro € a reunido da imagem, enquanto o segundo consiste no resultado desta reuniao ¢ seu significado na meméria. Neste tiltimo estagio, é importante que a memiéria preste a menor atengio posstvel ao primeiro estagio, e chegue ao resultado depois de passar pelo estdgio de reuniao o mais répido possivel. Esta é a prética na vida, em contraste com a pratica na arte. Porque, quando entramos na esfera da arte, descobrimos um acentuado deslocamento da énfase. Na verdade, para conse- guir seu resultado, uma obra de arte dirige toda a sutileza de seus métodos para 0 processo. Uma obra de arte, entendida dinamicamente, ¢ apenas este processo de organizar imagens no sentimento e na mente do espectador.’ E isto que constitu a peculiaridade de uma obra de arte realmente vital e a distingue da inanimada, na qual o espectador recebe o resultado consumado de um determinado proceso de criagao, em vez de ser absorvido no proceso a medida que este se verifica. Esta condigio surge sempre ¢ em qualquer parte, ndo importa qual a forma artistica em discussio. Por exemplo, a interpretacao realista de um ator € constitui- da nao por sua representagao da cépia dos resultados de sentimentos, mas por sua capacidade de fazer estes sentimentos surgirem, se desenvolverem, se transformarem em outros sentimentos — viverem diante do espectador. ° 22 O sentido do filme Deste modo, a imagem de uma cena, de uma seqiiéncia, de uma criagdo completa, existe ndo como algo fixo e jé pronto. Precisa surgir, revelar-se diante dos sentidos do espectador. Do mesmo modo, um personagem (tanto num texto quanto na interpretagio de um papel), para produzir uma impresséo verdadeiramente viva, deve ser cons- truido diante do espectador, durante o curso da aco, e nao apresentado como uma figura mecanica com caracteristicas determinadas a priori. No drama, é particularmente importante que, no curso da ago, seja nao apenas construida uma idéia do personagem, mas também que seja construido, seja “formado mentalmente”, o préprio personagem. Conseqiientemente, no método real de criagéo de imagens, uma obra de arte deve reproduzir o processo pelo qual, na prépria vida, novas imagens sio formadas na consciéncia ¢ nos sentimentos humanos. ‘Acabamos de mostrar a natureza disto em nosso exemplo das ruas numeradas. E seria correto se esperar de um artista, diante da tarefa de expressar uma determi- nada imagem através da representagio factual, 0 recurso a um método idéntico a essa “assimilagao” das ruas de Nova York. Também usamos o exemplo da representagio formada pelo mostrador de um reldgio, ¢ revelamos o processo pelo qual a imagem da hora surge em conseqiiéncia desta representagio. Para criar uma imagem, a obra de arte deve se basear num método idéntico, a construgio de uma cadeia de representagoes. Examinemos mais amplamente este exemplo da hora. Com Vronsky, acima, a figura geométrica nao surgiu como uma imagem da hora. Mas existem casos em que 0 importante nao é ver que meia-noite cronome- tricamente, mas sentir a meia-noite com todas as associagées ¢ sensagbes que o autor quer suscitar de acordo com seu enredo. Pode ser a meia-noite da ansiosa espera de um compromisso, a meia-noite da morte, a meia-noite de uma fuga fatal; em outras palavras, pode muito bem estar longe de ser uma simples representagio da meia-noite cronométrica. Neste caso, de uma representagito das doze badaladas deve emergit a imagem da meia-noite como uma espécie de “hora do destino”, repleta de significado. Isto também pode ser ilustrado por um exemplo — desta vez de Bel Ami, de Maupassant. O exemplo tem uma importincia adicional por ser sonoro. E ainda mais uma porque, sendo em sua natureza pura montagem, através do método corretamente escolhido para sua solugio ele é apresentado na histéria como uma narrativa de acontecimentos reais. Ea cena em que George Duroy (que agora assina Du Roy) esta esperando no fiacre por Suzanne, que concordou em fugir com ele & meia-noite. Aqui, doze horas da noite s6 ¢ a hora cronométrica num grau minimo, ¢ é, num grau mdximo, a hora na qual tudo (ou, de qualquer modo, muito) esté em jogo (“Acabou-se. Deu tudo errado. Ela nao vird.”). Palavra e imagem 23 Este € 0 modo como Maupassant dirige & consciéncia e aos sentimentos do Ieitor a imagem desta hora ¢ seu significado, diferente de uma mera descrigo da hora particular da noite: Tornou a sair 4s onze horas, errou durante algum tempo, tomou um fiacre e mandou parar na Place de la Concorde, junto &s arcadas do Ministério da Marinha. De vez em quando acendia um fésforo, para olhar a hora no relégio. Quando viu aproximar-se a meia-noite, sua impaciéncia tornou-se febril. A todo instante punha a cabeca na portinhola para olhar. Um reldgio distante deu doze badaladas, depois um outro mais perto, depois dois juntos, depois um ultimo, muito longe. Quando este acabou de tocar, pensou: “Acabou-se. Deu tudo errado. Ela nao vird.” Estava entretanto resolvido a ficar, até de manha. Nestes casos ¢ preciso ser paciente. Escutou ainda tocar um quarto, depois meia hora, depois trés quartos; ¢ todos os ° relégios repetiram a “uma’, tal como tinham anunciado a meia-noit« Neste exemplo, vemos que, quando Maupassant quis gravar na consciéncia e nas sensacées do leitor a qualidade emocional da meia-noite, nao se limitou a mencionar que primeiro bateu a meia-noite e depois uma hora. Ele nos obrigou a experimentar a sensagao da meia-noite, fazendo com que as doze horas batessem em varios lugares e em varios relégios. Combinados em nossa percepgio, estes grupos individuais de doze badaladas se transformam numa sensagao geral da meia-noite. As representagées separadas se transformaram em uma imagem. sto foi inteiramente feito por meio de montagem. exemplo de Maupassant pode servir de modelo para 0 mais requintado estilo de roteiro de montagem, onde o som das “doze horas” é denotado por meio de uma série completa de planos “de diferentes angulos de camera”: “distante”, “mais perto”, “muito longe”. Este badalar dos relégios, registrado a varias distin cias, € como a filmagem de um objeto a partir de diferentes posigoes da cimera ¢ repetida numa série de trés diferentes enquadramentos: “plano geral”, “plano mé- dio”, “plano de conjunto”. Porém, a badalada real ou, mais corretamente, a batida variada dos relégios de modo algum é escolhida por sua virtude como um detalhe naturalista de Paris 4 noite. O efeito primario destas batidas conflitantes de relégios em Maupassant é a énfase insistente na imagem emocional da “meia-noite” fatal, nao a mera informagao: “zero hora”. Se seu objetivo fosse apenas informar que era zero hora, Maupassant dificil mente teria recorrido a uma composigao tao requintada. Do mesmo modo, sem a escolha cuidadosa de uma solugio criativa de montagem, ele nunca teria obtido, através de um meio tdo simples, um efeito emocional tao palpavel. Enquanto falévamos de relégios ¢ horas, lembrei-me de um exemplo de minha prépria experiéncia. Durante a filmagem de Outubro, nos deparamos, no 24 O sentido do filme Palécio de Inverno, com um curioso espécime de relégio: além de mostrador principal, também tinha uma coroa de pequenos mostradores em redor do maior. Em cada um desses mostradores estava o nome de uma cidade: Paris, Londres, Nova York, Xangai, ¢ assim por diante. Cada um mostrava a hora destas cidades, em contraste com a hora de Petrogrado, no mostrador principal. O aparecimento deste reldgio ficou gravado em nossa meméria. E quando, em nosso filme, precisamos apresentar de modo especialmente enérgico 0 momento histérico da vitéria ¢ instauragio do poder soviético, este relégio sugeriu uma solugio especifica de montagem: repetimos a hora da queda do Governo Provisdrio, marcada no mostra- dor principal pela hora de Petrogrado, em toda a série de mostradores secundétios que marcavam a hora em Londres, Paris, Nova York, Xangai. Assim, esta hora, nica na histéria ¢ no destino dos povos, emergiu através de uma variedade enorme de horas locais, como que unindo e fundindo todos os povos na percepgio do momento da vitéria. O mesmo conceito foi também anunciado por um movimen- to rotativo da prépria coroa de mostradores, um movimento que, ao aumentar € acelerar-se, também fundiu plasticamente todos os indicadores de tempo diferentes ¢ independentes na sensagao da hora histérica tinica...!! Neste ponto, ougo a pergunta de meus adversdrios invisiveis: mas o que tem a dizer sobre um longo pedago de filme, sem cortes, com a interpretagao de um ator — o que isto tem a ver com a montagem? A sua interpre- taco, por si mesma, nao impressiona? A interpretagdo de um papel por Tcherka- sov!2ou Okhlopkov,!? Tchirkov'4ou Sverdlin'® também nao impressionam?” E fuitil supor que esta pergunta significa um golpe mortal na concepgio de montagem. O principio da montagem € muito mais amplo do que uma pergunta como esta supe. E totalmente errado supor que se um ator atua num tinico ¢ longo pedaco de filme, nao cortado pelo diretor € cinegrafista em diferentes angulos de cimera, esta construgao é intocada pela montagem! De modo algum! Neste caso, tudo 0 que temos a fazer ¢ procurar pela montagem em outro lugar, na realidade, na interpretagao do ator. Mais tarde discutiremos a questao do grau em que o principio da técnica “interior” da interpretagio est relacionado com a montagem. No momento seré suficiente deixar um grande artista do palco ¢ da tela, George Arliss, dar sua contribuigao: “Estd tudo bem, Sempre acreditei que, no cinema, a interpretagio devia ser exagerada, mas vi imedia- tamente que a discrigao era a coisa principal a ser aprendida, por um ator, para transferir sua arte do palco para a tela... A arte da discrigao € da sugestio no cinema pode ser estudada a qualquer hora observando-se a interpretagdo do inimitivel Charlie Chaplin. '6 A representagio enfética (exagero), Arliss contrapse discrigao. Ele vé o grau desta discriggo na redugio da realidade 4 sugestdo. Ele rejeita nao apenas a repre- Palavra e imagem 25 sentagio exagerada da realidade, mas até a representagao da realidade na integra! Em vez disso, aconselha “sugestao”. Mas o que é “sugestio” sendo um elemento, um detalhe, um “primeiro plano” da realidade que, justaposto a outros detalhes, fun- ciona como uma resolugio do fragmento inteiro da realidade? Assim, de acordo com Arliss, 0 eficaz trecho de interpretagao amalgamado é nada mais do que uma justaposigao de primeiros planos deste tipo, os quais, combinados, criam a imagem do contetido da interpretasao. E, para ir mais além, a interpretacio do ator pode ter © cardter de uma representagio insipida, ou de uma imagem genutna, de acordo com 0 método que empregue para construf-la. Mesmo se sua interpretacao for toda tomada de um tinico angulo (ou mesmo de uma tnica poltrona da platéia de um teatro), apesar disso — num caso bem sucedido — a interpretagio terd a qualidade de “montagem” E preciso que se diga que o segundo exemplo de montagem citado acima (de Outubro) nao € um exemplo de montagem comum, ¢ que 0 primeiro exemplo (de Maupassant) ilustra apenas um caso onde um objeto é filmado de varios pontos com varios angulos de camera. Outro exemplo que citarei ¢ bastante tipico da cinematografia, no mais relacionado a um objeto individual, mas, em vez disso, a uma imagem de todo um fendmeno — formada, porém, exatamente do mesmo modo. E um exemplo notével de “roteiro de filmagem”, Nele, através de uma acumu- lacao crescente de detalhes ¢ cenas, uma imagem palpével surge diante de nés. Nao foi esctito como uma obra literdria acabada, mas apenas como uma nota de um grande mestre que tentou colocar no papel, para si mesmo, sua visualizagio do Diluvio. “roteiro de filmagem” a que me refiro sio as notas de Leonardo da Vinci para uma representacao do Dihivio pela pintura. Escolhi este exemplo em particu- lar porque nele a cena audiovisual do Dilivio € apresentada com uma clareza incomum. Uma realizagio como esta de coordenagio sonora e visual notavel vinda de qualquer pintor, mesmo sendo Leonardo. Que se veja o ar escuro, nebuloso, agoitado pelo impeto de ventos contratios entrela- sados com a chuva incessante ¢ 0 granizo, carregando para ld e para cé uma vasta rede de galhos de atvores quebrados, misturados com um ntimero infinito de folhas. Que se vejam, em torno, drvores antigas desenraizadas e feitas em pedagos pela fuiria dos ventos. Deve-se mostrar como fragmentos de montanhas, arrancados pelas torrentes impetuosas, precipitam-se nessas mesmas torrentes ¢ obstruem os vales, até que os rigs bloqueados transbordam e cobrem as vastas planicies e seus habitantes. Novamente devem ser vistos, amontoados nos topos de muitas das montanhas, muitas espécies diferentes de animais em tropel, aterrorizados e reduzidos, finalmen- te, aum estado de docilidade, em companhia de homens e mulheres que fugiram para Id com seus filhos. 26 O sentido do filme E, nos campos inundados, a superficie da 4gua estava quase que totalmente coalhada de mesas, camas, barcos e varios outros tipos de balsas improvisadas devido A necessidade e ao medo da morte; nos quais havia homens e mulheres com seus filhos, amontoados, gritando ¢ chorando, apavorados com a furia dos ventos, que encrespavam as ondas, fazendo-as girar como um poderoso furacio, carregando com elas os corpos dos afogados; € no havia objeto flutuando que nao estivesse coberto de vérios ¢ diferentes animais, que haviam feito uma trégua e se amontoavam aterrorizados, entre eles lobos, raposas, cobras ¢ criaturas de todo tipo, fugitivos da morte. E todas as ondas que golpeavam sem cessar, com os corpos dos afogados, os golpes matando aqueles nos quais ainda havia vida. Serio vistos alguns grupos de homens, com armas nas maos, defendendo os mintisculos pedagos de terra que thes restaram dos ledes, lobos e bestas predadoras que neles procuravam a seguranga, © tumult aterrador se ouve ressoando pelo ar sombrio, rasgado pela fiiria do trovio ¢ dos raios que ele cospe que o atravessam céleres, levando destruigéo, derrubando tudo 0 que se atravessa em seu caminho! ©, quantas pessoas podem ser vistas tampando os ouvidos com as mios para calar © rugido feroz langado através do ar obscuro pela firia dos ventos misturados com a chuva, pelo estrépito dos céus e pelo chispar dos relimpagos! Outras no se contentavam em fechar os olhos, mas, tapando-os com as mios, uma em cima da outra, os cobriam, ainda mais apertados, para nao ver 0 massacre impiedoso da raga humana pela ira de Deus. ‘Aide mim! quantos lamentos! Quantos em seu terror se jogavam das rochas! Podem-se ver galhos enormes dos gigantescos carvalhos, repletos de homens, sendo carregados pelos ares com a firia dos ventos impetuosos. Quantos barcos emborcados, alguns inteiros, outros em pedacos, em cima de homens que lutam para escapar com atos e gestos de desespero que pressagiam uma terrivel morte, Outros, com atos frenéticos, tiravam as préprias vidas, no desespero de nao conseguirem suportar tamanha angtistia alguns se atiravam das altas rochas; outros se estrangulavam com as préprias maos; alguns agarravam os préprios filhos, e com grande violéncia os matavam de um s6 golpes alguns viravam suas armas contra si mesmos, para ferir-se e morrer; outros, caindo de joethos, entregavam-se a Deus. ‘Ail quantas mies choravam os filhos afogados, segurando-os sobre os joelhos, erguendo os bragos abertos para 0 céu e, com diversos gritos e guinchos, clamando contra a ira dos deuses? Outras, com as maos fechadas ¢ os dedos entrelagados, mordem-nas até sangrar e as devoram, curvando-se a ponto de os peitos tocarem os joelhos, em sua intensa ¢ insuporcavel agonia. Palavra e imagem 7 Manadas de animais, como cavalos, bois, cabras, ovelhas, devem ser vistos ja cercados pela Agua, isolados sobre os altos picos das montanhas, apertados contra os outros, € 08 que estio no meio subindo até o topo ¢ pulando em cima dos outros, € lutando encarnigadamente, ¢ muitos morrendo de fome. E os pdssaros j4 comegavam a pousar nos homens e nos animais, por néo mais encontrarem nenhum pedaco de terra 4 flor d’égua que j4 nao estivesse coberto de setes vivos. A fome, o instrumento da morte, jé privara de vida a maior parte dos animais, quando os cadéveres, j4 mais leves, comegaram a surgit do fundo das 4guas profun- das, emergindo para a superficie no torvelinho das ondas; ¢ Ié ficaram batendo uns nos outros ¢ feito bexigas cheias de vento, que ricocheteiam de volta ao lugar de onde foram langadas, caem e se espalham uns sobre os outros. E, acima desses horrores, a atmosfera se via coberta de nuvens ltigubres rasgadas pela chispa serpenteante dos terriveis raios do céu, que refulgiam, ora aqui, ora ali, em meio & densa escuri Esta desctigao nao foi concebida por seu autor como um poema ou ensaio literdrio. Péladan, 0 organizador da edigéo francesa do Trattato della pirtura, de Leonardo, a considera o projeto de um quadro nunca realizado, que teria sido uma insuperdvel “chefd'ceuvre da paisagem e da representaco das forcas da natureza’.'® Apesar disso, a descrigio nao é um caos, mas foi executada com elementos caracte- risticos das artes “temporais”, em vez de “espaciais”. Sem analisar em detalhe a estrutura desse extraordinétio “roteiro de filma- gem”, devemos salientar porém 0 fato de que a descrigéo segue um movimento bastante definido. Além disso, o curso deste movimento de modo algum ¢ fortuito. O movimento segue uma ordem definida, e depois, na correspondente ordem inversa, volta aos fendmenos do infcio. Comegando com uma descrigéo dos céus, 0 quadro termina com uma descrigao semelhante, mas consideravelmente intensificada. No centro esté o grupo de seres humanos ¢ suas experiéncias; a cena se desenvolve dos céus para os homens, e dos homens para os céus, pasando pelos animais. Os detalhes maiores (os primeiros planos) sio encontrados no centro, no climax da descrigio (“.. maos fechadas com os dedos entrelagados... mordem-nas até san- grar...”). Com absoluta nitidez emergem os elementos tipicos de uma composigio de montagem. O contetido de cada quadro das cenas independentes ¢ reforcado pela crescen- te intensidade da acio. Vejamos o que chamaremos de “tema animal”: animais tentando fugir; ani- mais arrastados pela torrente; animais se afogando; animais lutando com seres humanos; animais lutando uns com os outros; as carcacas de animais afogados flucuando na superficie, Ou 0 progressivo desaparecimento da terra firme sob os pés das pessoas, animais ¢ pdssaros, que atinge 0 auge no ponto em que os passaros 28 O sentido do filme so forgados a pousar nos homens ¢ animais, sem encontrar nenhum pedago de terra ainda ndo-submerso, ou desocupado, Esta passagem nos lembra obrigatoria- mente que a distribuigéo de detalhes em um quadro de um sé plano também presume movimento — um movimento dos olhos, de um fendmeno para outro, de acordo com a composicao. Aqui, € claro, 0 movimento é expressado com nao menos nitidez do que no cinema, onde o olho ndo pode discernir a sucessio da seqiiéncia de detalhes numa ordem diferente da estabelecida por quem determina a ordem da montagem. Inquestionavelmente, porém, a descri¢do extraordinariamente seqiiencial de Leonardo cumpre nao apenas a tarefa de enumerar os detalhes, mas a de tragar a trajet6ria do futuro movimento sobre a superficie da tela. Aqui vemos um exemplo brilhante de como, na aparentemente estdtica “coexisténcia” simultanea de deta- Ihes, num quadro imével, ainda foi aplicada exatamente a mesma selegio de montagem, existe exatamente a mesma sucessao ordenada na justaposigao de deta- Ihes, como nas artes que incluem o fator tempo. ‘A montagem tem um significado realista quando os fragmentos isolados produzem, em justaposicao, o quadro geral, a sintese do tema. Isto é, a imagem que incorpora 0 tema. Passando desta definigio para o processo criativo, veremos que este ocorre do seguinte modo. Diante da visio interna, diante da percepgao do autor, paira uma determinada imagem, que personifica emocionalmente o tema do autor. A tarefa com a qual ele se defronta ¢ transformar esta imagem em algumas representagdes parciais bisicas que, em sua combinagio ¢ justaposigao, evocardo na consciéncia € nos sentimentos do espectador, leitor ou ouvinte a mesma imagem geral inicial que originalmente pairou diante do artista criador. Isto se aplica tanto a imagem da obra de arte como um todo, quanto & imagem de cada cena ou parte independente. No mesmo sentido, isto explica a criagio de uma imagem pelo ator. O ator tem diante de si exatamente a mesma tarefa: expressar, com dois, trés, ‘ou quatro aspectos do cardter ou modo de conduta, os elementos basicos que, em justaposigao, criam a imagem integral concebida pelo autor, pelo diretor ¢ pelo proprio ator. O que é mais digno de nota num método como este? Primeiro e antes de tudo, seu dinamismo. Que reside basicamente no fato de que a imagem desejada nao é _fixa ou jd pronta, mas surge — nasce. A imagem concebida por autor, diretor ¢ ator é concretizada por eles através dos elementos de representagio independentes, ¢ é reunida — de novo ¢ finalmente — na percepgio do espectador. Este é, na realida- de, o objetivo final do esforgo criativo de todo artista. Gorki colocou isto com elogiiéncia numa carta a Konstantin Fedin: Palavra e imagem 29 Vocé diz: Esta atormentado com a questio “como escrever?”. Ha 25 anos observo como esta questio preocupa as pessoas... Sim, € uma questo séria; preocupei-me, preocupo-me, continuarei me preocupando com ela até o fim de meus dias. Mas para mim a pergunta se formula assim: como devo escrever, a fim de que o homem, nao importa quem seja, emerja das péginas da histéria a seu respeito com a forca da palpabilidade fisica de sua existéncia, com a irrefutabilidade de sua realidade semi- imagindria, com a qual 0 vejo ¢ 0 sinto? Este € 0 ponto como o entendo, este € 0 segredo da questio...'? A montagem ajuda na solugio desta tarefa. A forsa da montagem reside nisto, no fato de incluir no proceso criativo a razio ¢ o sentimento do espectador. O espectador é compelido a passar pela mesma estrada criativa trilhada pelo autor para criar a imagem. O espectador nao apenas vé os elementos representados na obra terminada, mas também experimenta 0 processo dinamico do surgimento ¢ reunizo da imagem, exatamente como foi experimentado pelo autor. E este & obviamente, 0 maior grau possivel de aproximasio do objetivo de transmitir visual- mente as percepsées ¢ intengGes do autor em toda a sua plenitude, de transmiti-las com “a forga da tangibilidade fisica”, com a qual elas surgiram diante do autor em sua obra ¢ em sua visio criativas. Relevante nesta parte da discussio ¢ a definisio de Marx do caminho da verdadeira investigasio: Zur Wahrheit gehért nicht nur das Resultat, sondern auch der Weg. Die Untersu- chung der Wahrheit muss selbst wahr sein, die wahre Untersuchung ist die entfaltece Wahrheit, deren auseinander, gestreute Glieder sich im Resultat zusammenfassen.?” A forca do método reside também no fato de que o espectador é arrastado para © ato criativo no qual sua individualidade nao esta subordinada 3 individualidade do autor, mas se manifesta através do processo de fusio com a intengio do autor, exatamente como a individualidade de um grande ator se funde com a individuali- dade de um grande dramaturgo na criagéo de uma imagem cénica clissica. Na tealidade, todo espectador, de acordo com sua individualidade, a seu préprio modo, ea partir de sua prépria experiéncia — a partir das entranhas de sua fantasia, a partir da urdidura ¢ trama de suas associagbes, todas condicionadas pelas premis- sas de seu cardter, hébitos € condigio social —, cria uma imagem de acordo com a orientagao pldstica sugerida pelo autor, levando-o a entender e sentir o tema do autor. E a mesma imagem concebida e criada pelo autor, mas esta imagem, ao mesmo tempo, também é criada pelo préprio espectador. + Em alemao no original: A verdade pertence nfo apenas 0 resultado, mas também 0 caminho. A investigagio da verdade deve em si ser verdadeira, a verdadcira investigagio & a revelagio da verdade, cujos membros separados se unem no resultado. 30 O sentido do filme Seria possivel achar que nada poderia ser mais definido ¢ claro do que a listagem quase cientifica dos detalhes do Diltivio, que passam diante de nés no “roteiro de filmagem” de Leonardo. Porém, quao pessoais ¢ individuais sao as imagens resultantes que surgem na mente de cada leitor, que derivam de uma especificagéo ¢ justaposigio de detalhes partilhadas por todos os leitores de um documento como este. Cada imagem é exatamente tao semelhante ¢ diferente quanto o seria o papel de Hamlet, ou Lear, interpretado por atores diferentes de diferentes paises, épocas ou teatros. Maupassant oferece a cada leitor a mesma estrutura de montagem para a batida dos reldgios. Ele sabe que esta estrutura particular evocard na percepgao mais do que mera informagio sobre a hora. Uma experiéncia do significado da meia-noi- te seré lembrada. Cada leitor ouve o bater das horas de modo idéntido. Mas em cada leitor surge uma imagem prépria, sua propria representagao da meia-noite, ¢ seu significado. Cada representacao é, no que diz respeito & imagem, individual, diferente ¢, no entanto, idéntica tematicamente. E cada uma dessas imagens da meia-noite, ao mesmo tempo em que é para todo leitor também a do autor, também do mesmo modo a sua prépria — viva, préxima, intima. ‘A imagem concebida pelo autor tornou-se carne ¢ osso da imagem do espec- tador... Dentro de mim, espectador, esta imagem nasceu e cresceu. Nao apenas 0 autor criou, mas eu também — o espectador que cria — participei. No infcio deste capftulo falei de uma histéria emocionalmente excitante € comovente, diferente de uma exposicao ldgica dos fatos — tio diferente quanto uma experiéncia é diferente de um testemunho. Uma exposigdo-testemunho setia a correspondente estrutura de ndo-montagem de cada um dos exemplos citados. No caso das notas de Leonardo da Vinci para O Dihivio, uma exposi¢ao-testemunho nao teria levado em consideragio, como ele 0 fez, as varias escalas e perspectivas a serem distribufdas sobre a superficie do quadro terminado, de acordo com seus calculos da trajetéria do olho do espectador. Teria sido suficiente a mera apresentacgao do mostrador do relégio que mostra a hora exata da queda do Governo Provisério. Se Maupassant tivesse usado um método como este na passagem sobre 0 encontro de Duroy, teria dado a breve informagio de que a meia-noite soara. Em outras palavras, uma abordagem como esta transmi- te apenas informagio documental, nao transformada pela arte em uma forga esti- mulante e um efeito emocional criados. Como exposigdes-testemunho, todos esses exemplos seriam, na linguagem cinematogréfica, representagées filmadas de um nico angulo. Mas, moldados pelos artistas, estes exemplos constituem imagens, criadas através da estrutura da montagem. E agora podemos dizer que é precisamente o principio da montagem, diferente do da representagdo, que obriga os préprios espectadores a criar, ¢ 0 principio da montagem, através disso, adquire o grande poder do estimulo criativo interior do espectador, que distingue uma obra emocionalmente empolgante de uma outra Palavra ¢ imagem 31 que nao vai além da apresentacao da informagao ou do registro do acontecimento.”" Examinando esta diferenga, descobrimos que o princfpio da montagem no cinema & apenas um caso particular de aplicagao do principio da montagem em geral, um princ{pio que, se entendido plenamente, ultrapassa em muito os limites da colagem de fragmentos de filme. Como afirmamos acima, os métodos de montagem comparados, de criasio pelo espectador e criagdo pelo ator, podem levar a conclusées fascinantes. Nesta compara- G40, ocorre um encontro entre o método de montagem ¢ a esfera da técnica interior do autor; isto é, a forma do processo interno através do qual o ator cria um sentimen- to palpitante, exibido em seguida na autenticidade de sua atuagio no palco ou na tela. Foram criados varios sistemas e doutrinas sobre os problemas da interpretagio do ator. Para ser preciso, h4 na verdade dois ou trés sistemas, com varias ramifica- ges. As ramificagées se distinguem umas das outras nao apenas por diferengas de terminologia, mas principalmente por suas diferentes concepgGes quanto ao prin- cipal papel desempenhado pelos diferentes pontos basicos da técnica da interpreta- gio. Algumas vezes uma escola esquece quase completamente todo um elo do proceso psicoldgico da criagio da imagem. Algumas vezes um elo ndo-bdsico é elevado & posigio principal. Mesmo num método tao monolitico quanto o do Teatro de Arte de Moscou, com todo o seu corpo de postulados bisicos, hé tendéncias independentes na interpretacio desses postulados. Nao tenho a intengio de entrar nas sutilezas das diferengas, essenciais ou terminoldgicas, dos métodos de treinamento ou de criagdo do ator. Meu objetivo é analisar os aspectos da técnica do trabalho do ator que o capacitam a obter resulta- dos — que conquistem a imaginagéo do espectador. Qualquer ator ou diretor é, na realidade, capaz de deduzir estes aspectos a partir de sua experiéncia “interior”, se cle consegue deter 0 proceso para examiné-lo. As técnicas do ator e do diretor sio, com relacao a este ponto, indistingutveis, a partir do momento em que o diretor, este proceso, € também, numa certa medida, um ator. A partir da observagio deste “lado ator” em minha propria experiéncia como diretor, tentarei esboar esta técnica interna que estamos analisando através de um exemplo concreto. Ao fazé- lo, ndo tenho a menor intengio de dizer algo novo com relagao a esta questéo em particular. Suponhamos que estou diante do problema de interpretar a “manha seguinte” de um homem que, na noite anterior, perdeu dinheiro dos coftes puiblicos num jogo de cartas. Suponhamos que a cena est cheia de todo tipo de peripécias, inclusive, digamos, uma conversa com a mulher que nao suspeita de nada, uma cena com a filha que fixa atentamente pai, cujo comportamento the parece 32 O sentido do filme estranho, uma cena do autor do desfalque esperando nervoso que o telefone toque responsabilizando-o, e assim por diante. Suponhamos que uma série destas cenas leve o autor do desfalque a uma tentativa de suicidio com um tiro. A tarefa diante do ator é a de interpretar o tiltimo fragmento do climax, no qual ele chega 4 conclusio de que sé hd uma solugio — o suicidio — e suas mios comegam a tatear, na gaveta de sua escrivaninha, & procura do revélver... Acredito que seria quase impossivel encontrar um ator experiente que, nesta cena, comegassc tentando “interpretar o sentimento” de um homem A beira do suicidio, Cada um de nés, em vez de suar e se esforgar para imaginar como um homem se comportaria sob tal circunstancia, abordaria a questéo de um modo bastante diferente. Farfamos com que o estado de animo apropriado ¢ o sentimento apropriado se apoderassem de nés. E 0 estado, a sensagao, a experiéncia autentica- mente sentida, em conseqiiéncia direta, se “manifestaria” em movimentos, ages, comportamento geral emocionalmente corretos. Este € 0 caminho em diregio 4 descoberta dos elementos iniciais de um comportamento correto, correto no sentido de que é apropriado a um estado ou sentimento verdadeiramente vivenciado. O préximo estdgio do trabalho de um ator consiste na escolha da composi¢io. desses elementos, depurando-se de qualquer acréscimo fortuito ¢ refinando-os para dar-lhes 0 grau maximo de expressividade. Mas este € 0 estdgio seguinte, Nossa preocupagio aqui é com o estdgio anterior. Estamos interessados na parte do processo na qual 0 ator possuido pelo sentimento. Como isto € conseguido? Jé dissemos que nao pode ser feito com o método do “esforgo € suor”. Em vez disso, tomamos 0 caminho que deveria ser usado em todas as situagGes como esta. O que na realidade fazemos € obrigar nossa imaginacao a descrever para nds varias situagdes e quadros concretos apropriados ao nosso tema. A agtegacio dos quadros imaginados suscita em nds a emogio requerida, o sentimento, a compreen- sio ¢ a experiéncia real que estamos procurando. Naturalmente, o material desses quadros imaginados vai variar, dependendo das caracterfsticas peculiares do cardter da imagem do personagem que o ator esté interpretando no momento. Suponhamos que um traco caracteristico de nosso autor do desfalque seja 0 medo da opiniao publica. O que o aterrorizard mais nio serd tanto o remorso, a consciéncia de sua culpa ou o softimento com sua futura prisio, mas “o que as pessoas vao dizer?” Nosso homem, ao se ver nessa posigo, imaginard em primeiro lugar todas as terriveis conseqiiéncias de seu ato nesses termos. Serao essas conseqiiéncias imaginadas, ¢ suas combinagGes, que reduzirio o homem a um tal grau de desespero que ele procurard uma saida inesperada. E assim, exatamente deste modo, que ocorre na vida. O terror resultante da consciéncia da responsabilidade comega a revelar 0 quadro febril das conseqiién- Palavra e imagem 33 cias. E este conjunto de quadros imaginados, agindo sobre os sentimentos, aumen- t2.0 terror, reduzindo o autor do desfalque ao auge do horror desespero. O processo ¢ idéntico aquele com que 0 ator provoca um estado semelhante no teatro. Existe apenas uma diferenga: 0 seu uso da vontade para forgar a imagina- fo a pintar o mesmo quadro de conseqiiéncias, que na vida real a imaginagao do homem suscitaria espontaneamente. Os métodos pelos quais a imaginagio ¢ levada a isto, com base nas circunstén- cias presumidas ¢ imagindrias, nao sio no momento pertinentes. Estamos tratando do processo no momento em que a imaginagao jé estd descrevendo 0 que é necessé- tio para a situagio. Nao ¢ necessdrio ao ator obrigar-se a sentir ¢ vivenciar as conseqiiéncias previstas. Sentimento e experiéncia, como as agdes que fluem deles, surgem por si mesmos, criados pelos quadros que sua imaginagio pinta. O senti mento vivo serd suscitado pelos préprios quadros, por sua agregagio ¢ justaposi¢ao. ‘Ao procurar modos de despertar 0 sentimento exigido, pode-se descrever para si mesmo uma inumeravel quantidade de situagdes e quadros relevantes nos quais emergird o tema sob varios aspectos. Como exemplo, elegerei as duas situagées que me vieram & mente entre a multiplicidade de quadros imaginados. Sem refletir sobre eles cuidadosamente, tentarei me lembrar deles como me ocorreram. “Sou um criminoso aos olhos de meus ex-amigos e conhecidos. As pessoas me evitam. Sou colocado no ostracismo por elas”, ¢ assim por diante. Para sentir isto com todos os meus sentidos, sigo 0 processo esbogado acima, descrevendo para mim mesmo situagGes concretas, qua- dros reais do destino que me espera. A primeira situaggo na qual me imagino 0 tribunal, onde meu caso esté sendo julgado. A segunda situacdo seré minha volta 4 vida normal depois de cumprir minha pena. Estas notas tentario reproduzir as qualidades plisticas grdficas que varias situagdes fragmentadas como estas possuem naturalmente, quando nossa imaginagéo esté funcionando a pleno vapor. © modo como essas situagGes surgem difere de ator a ator. Isto € apenas o que veio & minha mente quando estabeleci para mim mesmo a tarefa: O tribunal. Meu caso esté sendo julgado. Estou no banco dos réus. A sala esté repleta de pessoas que me conhecem — algumas casualmente, outras muito bem, Capto © olhar de meu vizinho fixado em mim. Somos viinhos hé 30 anos. Ele percebe que 0 violhando para mim. Seus olhos resvalam sobre mim com afetada abstragao. Ele olha fixamente para a janela, fingindo fastio... Outro espectador na sala do tribunal — a mulher que vive no apartamento acima do meu. Encontrando meu olhar, ela baixa os olhos aterrorizada, enquanto olha para mim com o rabo do olho... Com um movimento claro, meus companheiros de bilhar viram as costas para mim... Ha 0 gordo, dono do salao de bilhar, e sua mulher — encarando-me com 34 sentido do filme insoléncia... Tento me encolher olhando para os pés. Nao vejo nada, mas & minha volta ougo os sussurros de censura eo murmuirio de vores. Como um golpe atras do outro, caem as palavras da simula do promotor Imagino a outra cena com a mesma nitidez — minha volta da prisio: A batida dos portoes atrés de mim, quando sou libertado... O olhar espantado da empregada, que para de limpar as janelas do vizinho quando me vé encrando em me velho prédio... Ha um nome novo na caixa do correio... O chio do vestibulo foi recentemente encerado ¢ hi um novo tapete em frente & minha porta... A porta do apartamento ao lado se abre... Pessoas que cu nunca vira antes me olham com suspeita e inquisitivamente. Os filhos se agarram nelas; instintivamente se escondem sea De baixo, com 0s éculos tortos no nariz, o velho portciro, que se lembra de mim, olha para cima através do vio da escada.. Trés ou quatro cartas amareladas enviadas para meu enderego antes que minha desgraga fosse do dominio piblico... Duas ou t1és moedas soam em meu bolso... E entio — a porta ¢ fechada em minha cara pelos ex-conhecidos que agora ocupam meu apartamento... Minhas pernas carregam-me, relutantemente, para cima, em direcio a0 apartamento da muther que eu costumava visitar € entio, quando sé faltam mais dois passos, volto. A gola rapidamente levantada de um transeunte que me reconhece. E assim por diante. Acima estd o resultado apenas de anotagées sobre tudo 0 ntimentos quando, tanto como director, q como ator, tento me apossar emocionalmente da situagdo proposta. Depois de me colocar mentalmente na primeira situagio, e depois de passar uagées relevantes nto que passa pela minha mente ¢ s mentalmente pela segunda, fazendo 0 mesmo com dutas ou trés de intensidade variada, gradwalmente atinjo a percepgio auténtica do que me desesperanga ¢ da do imagi- espera no futuro ¢, em conseqiincia, a experiéncia real d tragédia de minha posigio. A justaposigio de detalhes da primeira situa nada produz um matiz desta sensagio. A justaposigio de detalhes da segunda situagio — outro. O matiz de um sentimento é acrescentado ao outro, ¢ de todos eles comega a surgit a imagem da desesperanga, inseparavelmente ligada a intensa experiéncia emocional de sentir de fato tal desesperanga. Deste modo, sem esforgo para representa o proprio sentimento, é possivel suscité-lo pela reunio ¢ justaposigio de detalhes ¢ situagdes deliberadamente selecionadas entre todas as que primeiro se acumularam na imaginagao. E irrelevante se a descrigéo deste processo, como esbocei acima, coincida ou nJo em seus detalhes mecinicos com qualquer escola de técnica de representacio. O que importa é que um estégio semethante ao descrito acima existe em qualquer caminho rumo a formagdo ¢ intensificagao da emogio, seja na vida real ou na técnica Palavra e imagem 35 do processo criativo. Podemos nos convencer disto com um minimo de auto-obser- vacio, seja das condigées da criagio, seja das circunstancias da vida real. Outra questo importante ¢ 0 fato de que a técnica da criagdo recria um processo da vida, condicionado apenas pelas circunstancias especiais exigidas pela arte. Deve-se levar em conta, ¢ claro, que nao analisamos todo o corpo da técnica de interpretagao, mas apenas um tinico elo de seu sistema. Por exemplo, nao abordamos absolutamente a natureza da prépria imagina- a0, particularmente a técnica de seu “aquecimento” até 0 ponto em que ela seja capaz de pintar os quadros que desejamos, aqueles exigidos pelo tema particular. A falta de espago nao permite um exame desses clos, apesar de que sua anilise confirmaria as afirmagSes aqui feitas. No momento, nos limitamos ao ponto jé discutido, mas tendo em mente que o elo que analisamos no ocupa um espaco maior na técnica do ator do que a montagem entre os recursos expressivos do cinema. Nem tampouco podemos presumir que a montagem ocupa um lugar menos importante. Pois bem, de que modo essa introdugio ao campo da técnica interior do ator difere, na pratica ou em principio, do que esbogamos previamente como a esséncia da montagem cinematogréfica? A diferenga esté no campo da aplicagao, e nao no da esséncia do método. Nossa tiltima pergunta foi como fazer para que os sentimentos vivos ¢ as experiéncias emerjam do interior do ator. A pergunta anterior foi como evocar nos sentimentos do espectador uma imagem sentida emocionalmente. Em ambas as perguntas, 0s elementos estiticos, os fatores dados e os imagina- dos, todos em justaposicéo, criam uma emogio que emerge dinamicamente, uma imagem que emerge dinamicamente. Nio consideramos isto, de modo algum, diferente, em princ{pio, do proceso de montagem no cinema: aqui hé a mesma concretizasio intensa do tema tornan- do-se perceptivel através de detalhes determinantes, sendo o efeito resultante da justaposigao desses deralhes a evocacéo do préprio sentimento. Quanto a verdadcira natureza dessas “vis6es” que aparecem diante do “olho interior” do ator, seus aspectos plisticos (ou auditivos) so completamente homo- géneos com as caracteristicas tipicas do plano cinematogréfico. Os termos “frag- mentos” ¢ “detalhes”, conforme aplicados, acima, a essas visdes, nao foram escolhi- dos a0 acaso, jé que a imaginasao nao evoca quadros completes, e sim propriedades decisivas e determinantes desses quadros. Porque, se examinamos as muitas “visoes” anotadas quase que automaticamente acima, que eu honestamente tentei registrar 36 O sentido do filme com a precisio fotografica de um documento psicolégico, veremos que estas “vi- s6es” tém uma ordem positivamente cinematogréfica — com angulos de camera, tomadas de varias distancias ¢ rico material de montagem. Um plano, por exemplo, era principalmente o de um homem virando as costas, obviamente uma composiao que mostra as costas, em vez de toda a figura. Dois rostos com um olhar vitreo ¢ obstinado contrastam com os cilios abaixados, sob os quais a mulher do apartamento de cima me olhava de soslaio — obviamente exigindo diferentes distancias de camera. Ha varios primeiros planos ébvios — do tapete novo diante da porta, dos trés envelopes. Ou, usando outro sentido, que € igualmente parte de nossa midia — o plano geral sonoro do puiblico que murmura na corte de justica, contrastando com as poucas moedas tilintando em meu bolso etc. As lentes mentais trabalham deste modo com variagées — ampliam a escala ou adiminuem, ajustando-se tao fielmente quanto uma cimera de filmagem aos varios quadros exigidos —, avangando ou afastando o microfone. $6 0 que falta para transformar esses fragmentos imaginados num tfpico roteiro de filmagem é a colocagio de mimeros antes de cada fragmento! Este exemplo revela o segredo da realizagio do roteiro de filmagem, com emogo genufna ¢ movimento, em vez de uma mera alternancia tediosa de primei- ros planos, planos médios ¢ planos gerais! Aeesséncia bdsica do método vale para ambas as esferas. A primeira tarefa é a divisio criativa do tema em representagdes determinantes, e depois combinagio dessas representagdes com o objetivo de dar vida & imagem inicial do tema. Eo proceso pelo qual esta imagem é percebida é idéntico a experiéncia original do tema, do contetido da imagem. Também tao insepardvel desta experiéncia intensa genuina é 0 trabalho do diretor ao escrever o roteiro de filmagem. $é ele pode lhe ivas através das quais a imagem completa do tema sugerir as representagGes de pode irromper na forma de vida criativa. Nisto reside 0 segredo daquela qualidade de exposigéo emocionalmente insti- gante (diferente da exposicao-testemunho da mera informagao), da qual falamos antes, e que € uma condigio tanto da interpretacao viva de um ator, quanto da viva realizagio de filmes. Veremos que um conjunto semelhante de quadros, cuidadosamente selecio- nados e reduzidos ao extremo laconismo de dois ou trés detalhes, serd encontrado nos melhores exemplos da literatura. Vejamos 0 poema narrativo de Puchkin, Poltava — a cena da execugio de Kochubei. Nesta cena, o tema do “final de Kochubei” ¢ expressado com brilho incomum pela imagem do “final da execugdo de Kochubei”. A imagem real deste final da execugao emerge e cresce da justaposi¢ao de trés representagées seleciona- das quase “documentalmente” de trés detalhes do episédio: Palavra e imagem 37 de demais”, disse alguém O dedo apontando para o campo. © cadafalso fatal era desmontado Um padre de sotaina preta rezava E sobre uma carroga era colocado Por dois cossacos um caixio de carvalho.”* Seria dificil encontrar uma selegio mais eficaz de detalhes para descrever a sensagio da imagem da morte em todo o seu horror, do que esta da conclusio da cena de execusio. Avalidade da escolha de um metodo realista para criar ¢ obter uma qualidade 5, por emocional pode ser confirmada por virios exemplos muito curiosos. E exemplo, outra cena de Poltava, de Puchkin, na qual 0 poeta faz com que a imagem de uma fuga noturna surja magicamente diante do leitor com todas as suas possibi- lidades pictéricas ¢ emocionais. Mas ninguém sabia como ou quando Ela sumira. Um pescador solitario Ouviu naquela noite 0 galope de cavalos, Vozes de cossacos ¢ o sussurro de uma mulher...2* Tiés planos: 1, Galope de cavalos 2. Vores de cossacos O sussurro de uma mulher Novamente trés representagées objetivamente expressadas (sonoras!) se jun- tam numa imagem unificadora expressada emocionalmente, diferente da percep- gio de fendmenos isolados percebidos desvinculados de sua associagio um com 0 outro, O método € usado apenas com 0 objetivo de suscitar a necesséria experiéncia emocional no leitor. Apenas a experigncia emocional, porque a informagio de que Marya desaparecera fora dada no verso anterior (“Ela sumira. Um pescador solitd- rio”). Tendo contado ao leitor que ela desaparecera, 0 autor quis dar-the a sensaga também. Para consegui-lo, usa a montagem. Com trés detathes selecionados entre todos os elementos da fuga, sua imagem de fuga noturna surge na forma de montagem, comunicando a experiéncia da acao aos sentidos. Aos trés quadros sonoros ele acrescenta um quarto quadro, que tem 0 efeito de um ponto final, Para obter este efeito, ele escolhe seu quarto quadro em outro sentido. Este tiltimo “primeiro plano” nao é sonoro, mas visual: E oito ferraduras de cavalos deixam suas pegadas Sobre 0 orvalho da manh’ no prado... 38 O sentido do filme Assim, Puchkin usa a montagem para criar as imagens de uma obra de arte Mas também usa a montagem com igual habilidade quando cria a imagem de um personagem, ou de todo um dramatis personae. Com uma combinagio superlativa de varios aspectos (isto é, “ingulos de camera”) e de diferentes elementos (isto é, a montagem de coisas representadas pictoricamente, destacadas pelo enquadramento do plano), Puchkin obtém espantoso realismo em suas descricdes. E na verdade 0 homem, completo em seus sentimentos, que emerge das paginas dos poemas de Puchkin, Quando Puchkin trabalha com uma grande quantidade de trechos de monta- gem, seu uso desse recurso se torna mais complicado. O ritmo, construido com sucessivas frases longas ¢ frases téo curtas que constam de uma tnica palavra, introduz uma caracteristica dinamica na imagem da estrutura da montagem. Este ritmo serve para estabelecer o verdadeiro temperamento do personagem descrito, dando-nos uma caracterizagio dinamica de seu comportamento. Pode-se aprender também com Puchkin como fazer para que uma sucesso ordenada da apresentagio ¢ revelagio das caracteristicas e da personalidade de um homem aumente o valor total da imagem. Um exemplo excelente desta conexio € sua descrigio de Pedro, o Grande, em Poltava: 1... Eentéo, com a maior veeméncia, I. ... Soou, vibrante, a voz de Pedr I. “As armas, Deus esteja conosco!” Da tenda, IV. Por intimeros favoritos rodeado, V. Pedro surge. Seus olhos VL. Fafscam. Seu olhar é terrivel. VIL. Seus movimentos dgeis. Magnifico, VIL. ‘Todo o seu aspecto, fiiria divina. IX. Avanga. Seu corcel Ihe é entregue X. Fogoso e décil, fiel cavalo de batalha. XI. Pressentindo o ogo fatal, Xi. Treme. Enviesa os olhos. Xill. E se langa na poeira da luta. XIV. Orgulhoso de seu poderoso cavaleiro. 4 A numeragio acima é a dos versos do poema: agora descreveremos novamente esta passagem como se fosse o roteiro de um filme numerando os “planos” tal como montados por Puchkin 1. E entio, com a maior veeméncia, soou, vibrante, a vor de Pedro: “As armas, Deus esteja conosco!” 2. Da tenda, por intimeros favoritos rodeado. 3. Pedro surge. Palavra e imagem 39 4, Seus olhos faiscam. 5. Seu olhar é terrivel. 6, Scus movimentos Ageis 7. Magnifico. 8. Todo o seu aspecto, fiiria divina. 9. Avanga. 10. Seu corcel Ihe é entregue. 11. Fogoso e décil, fiel cavalo de batalha. 12. Pressentindo o fogo fatal, treme. 13. Enviesa os olhos. 14, Ese langa na poeira da luca, orgulhoso de seu poderoso cavaleiro. O niimero de versos ¢ 0 ntimero de planos se mostram idénticos, 14 em cada caso, mas quase nao h4 coincidéncia entre o esquema dos versos ¢ 0 esquema dos planos; tal coincidéncia ocorre apenas duas vezes nos 14 versos: VIII = 8 eX = 11 ‘Além disso, 0 contetido de um plano varia de dois versos completos (1, 14) a uma tinica palavra (9). Isto é muito instrutivo para profissionais de cinema, particularmente os espe- cialistas em som. Examinemos como Pedro é “montado”: Os planos 1, 2 ¢ 3 contém um excelente exemplo de apresentagio significante de uma figura em aio. Aqui trés niveis, trés estagios de seu aparecimento, sio absolutamente distintos: (1) Pedro ainda nao é mostrado, mas ¢ apresentado pelo som — sua voz. (2) Pedro sai da tenda, mas ainda nao ¢ visfvel. Tudo o que podemos ver € 0 grupo de favoritos rodeando-o. (3) Finalmente, apenas num terceiro estdgio, Pedro ¢ realmente visto ao se afastar da tenda. Isto é seguido pelos olhos faiscantes, o detalhe mais importante de sua aparén- cia geral (4). Em seguida, todo o rosto (5). Sé entao sua figura inteira é apresentada (apesar de cortada nos joclhos pelo enquadramento de um plano em traveling), para mostrar seus movimentos, sua agilidade ¢ energia. O ritmo do movimento ¢ 0 personagem que ele ilumina sio expressados “impetuosamente” pelo choque de frases curtas. A apresentagio total de toda a figura sé ocorre no Plano 7, ¢ agora de um modo que supera a descrigio informativa — vividamente, como uma imagem. “Magnifico.” No plano seguinte, esta descrigdo é reforgada e ampliada: “Todo o seu aspecto, fiiria divina.” Apenas no oitavo plano Puchkin revela Pedro com 0 poder total de uma representagio plastica. Este oitavo plano, obviamente, enquadra Pedro em todo o seu tamanho, salientado por todos os recursos da composigio do plano, com uma coroa de nuvens acima dele, com tendas ¢ pessoas rodeando-o a seus pés Depois deste plano amplo, o poeta nos reconduz imediatamente para o ambito do movimento e da agéo, com a tinica palavra “avanga”. Seria dificil capturar de modo mais intenso a segunda caracteristica decisiva de Pedro: o andar de Pedro — a mais 40 O sentido do filme impressionante desde os “olhos faiscantes”. O lacénico “avanga” transmite comple- tamente a sensagdo do enorme, primitivo, impetuoso andar de Pedro, que sempre tornou dificil a seu séquito segui-lo. De um modo igualmente genial Valentin Serov capturou ¢ registrou este “andar de Pedro” com seu famoso quadro de Pedro na construgao de Sao Petersburgo.?> Acredito que a apresentagao acima seja uma leitura cinematogréfica correta dessa passagem. Em primeiro lugar, uma “introdugio” como esta de um persona- gem de Puchkin € geralmente tipica de seu estilo. Basta ver, por exemplo, outra brilhante passagem de um tipo exatamente igual de “apresentagio”, o da bailarina Istomina em Eugene Oneguin.®*Uma segunda prova da corregio da leitura acima é a determinagio da ordem das palavras que, com absoluta exatidao, por sua vez, ordena o aparecimento sucessivo de cada elemento, os quais finalmente se fundem na imagem do personagem, “tevelando-o” plasticamente. Os planos 2 e 3 seriam construfdos de modo bastante diferente se, em vez de .. Da tenda Por intimeros favoritos rodeado, Pedro surge.. 0 texto dissesse su Pedro surge, Por intimeros favoritos rodeado, Da tenda... Se 0 aparecimento tivesse comesado com Pedro, em vez de conduzir a Pedro, a impressio seria bastante diferente. Como Puchkin escreveu, € um modelo de expressividade, conseguido através de um puro método de montagem e com meios de pura montagem. Para cada caso hd dispontvel uma estrutura expressiva diferen- te, Masa estrutura expressiva escolhida para cada caso prescreve c traga previamente “a unica organizagao correta das tinicas palavras adequadas”, sobre a qual Tolstoi escreveu no ensaio O que é a arte? O som da vor de Pedro ¢ suas palavras sio ordenados com a mesma qualidade de sucessio légica que permeia as imagens pict6ricas (ver Plano 1). Porque Puchkin nao escreveu: ."As armas, Deus esteja conosco!’ Soou a vor de Pedro, vibrante, ¢ com a maior veeméncia Palavra e imagem 4a . E entéo, com a maior veeméncia, Soou, vibrante, a voz de Pedro: “As armas, Deus esteja conosco!” Se nds, como cineastas, tivermos que enfrentar a tarefa de construir a expres- sividade de uma tal exclamagio, cambém devemos transmiti-la de modo que haja uma sucessio ordenada, revelando primeiro sua veeméncia, depois sua qualidade vibrante, seguida pelo nosso reconhecimento da voz como a de Pedro, ¢ finalmente, distinguindo as palavras que esta vor exaltada, poderosa, de Pedro emite: “As armas, Deus esteja conosco!” Parece evidente que, a0 “encenar” tal passagem, a questio deveria ser resolvida simplesmente ouvindo-se primeiro uma frase de exclamacio saindo da tenda, na qual as palavras néo podcriam ser distinguidas, mas que jé transmiririam as qualidades de veeméncia e vibragao que mais tarde se reconheceria como caracteristicas da voz de Pedro. Como vemos, isto ¢ de grande importincia com relagio ao problema do ema, entiquecimento dos recursos expressivos do O exemplo é um modelo do tipo mais complexo de composicio som-imagem ou dudio-visual. Parece incrivel que ainda exista entre nds quem considere desne- cessdrio buscar esse tipo de ajuda para nosso meio de expressio, ¢ considere que € possivel acumular experiéncia suficiente através do estudo da coordenagio da miisica com a ago apenas na 6pera ou no balé! Puchkin nos ensina até como trabalhar de modo a evitar uma coincidéncia meeanica entre os planos ¢ o ritmo da trilha musical. Consideremos apenas 0 caso mais simples — a nao coincidéncia dos compas- sos (neste caso, os versos) com os finais, inicios duragdes dos quadros plisticos isolados. Num diagrama simples seria mais ou menos assim: Misia | 1 [ [Mm [ IV] Vv [vil vi{vil] x | X | Xi [XN xm[xv] Imagem 1 2 [3] 4 [se] s fpf ny 2 [sf a) Alina superior € ocupada pelos 14 versos da passagem. A linha inferior, pelas 14 imagens feitas a partir dos versos. O diagrama indica sua distribuigao correspondente em relagao a passagem. Este diagrama torna evidente 0 primoroso estilo de contraponto de elementos sonoros-visuais que Puchkin usa para obter 0s magnificos resultados desta pass gem polifénica do poema. Como jé vimos, com a excegao de VIII = 8 e X = 11, nao verificamos nem mais um unico caso de correspondéncia idéntica de verso e plano. Além disso, plano e verso coincidem em relagao & ordem apenas uma vez: VII 8. Isto ndo pode ser acidental. Esta tinica correspondéncia exata entre as articula- oes da musica e as articulagées dos planos marca o trecho de montagem mais significativo de toda composigao. E unico: neste oitavo plano, as caracteristicas de 42 O sentido do filme Pedro sao plenamente desenvolvidas e plenamente reveladas e, além disto, é 0 tinico verso que usa uma comparagio pictérica: “Todo o seu aspecto, fiiria divina.” Vemos que este recurso de coincidir a énfase da miisica com a énfase da representagio ¢ usado por Puchkin no caso de maior impacto da passagem. Isto é exatamente 0 que faria no cinema um montador experiente — como um compositor de harmonias audiovisuais. Na poesia, o encadeamento de uma frase descritiva, de um verso para outro, & chamado de “enjambement”. Em sua Introdusito & métrica, Zhitmunsky escreve: Quando a articulagio métrica nao coincide com a sintética, surge 0 chamado enca- deamento (enjambement)... O sinal mais caracteristico de um encadeamento ¢ a ignificativa do que a do inicio presenga, em um verso, de uma pausa sintdtica mais, ou fim do verso...2” Ou conforme se pode ler no Webster's Dictionary: ENJAMBEMENT... Continuag’o do sentido em uma frase, depois do final de um verso ou distico, prolongamento de uma frase de um verso para outro, de forma que rentes...7 palavras intimamente relacionadas cacm em versos Um bom exemplo de enjambement pode ser visto no Endymion, de Keats: ... Assim terminou ele, e ambos Sentaram-se silenciosos: porque a jovem relutava muito Em responder; percebendo bem que aquelas palavras sussurradas Se perderiam, sem serem ouvidas, e vis como espadas Contra crocodiles empalhados, ou pulos De gafanhotos contra o sol. Ela chora, E imagina; esforga-se para divisar alguma culpa Para colocar no olhar a expressio, Vergonha Por esta pequena fraqueza! mas apesar de todo 0 esforgo, Seria mais ficil para ela tirar a vida De uma pomba doente. Finalmente, para quebrar 0 silencio, Ela disse, com trémula expectativa: “E esse o motivo?” Zhirmunsky também fala de uma interpretagio particular deste tipo de cons- truco que também nos interessa, de certo modo, com relagao 3s nossas harmonias audiovisuais no cinema, onde 0 quadro desempenha o papel da frase sintdtica ea estrutura musical o papel da articulagao rftmica: Qualquer ndo-coincidéncia da articulagio sintética com a métrica € uma dissonancia artisticamente deliberada, que se resolve no ponto em que, depois de uma série de Palavra e imagem 43 nio-coincidéncias, a pausa sintética finalmente coincide com os limites da série riemica.?? Isto pode ser ilustrado por um exemplo, desta vez de Shelley, de julian ¢ Maddalo: inow-se um pouco, |] Ele parou ¢, | perturbado, re Entio levantando-se, com um sorriso melancélico Foi para um sof’, || ¢ deitou-se, || e dormiu Um sono pesado, || e em seus sonhos ele chorou E murmurou um nome familiar, |] e nés Choramos, sem nos envergonharmos, em sua companhia... Na poesia russa, 0 “enjambement” assume formas particularmente ricas na obra de Puchkin. Na poesia francesa, 0 uso mais consistente desta técnica se encontra na obra de Victor Hugo ¢ André Chénier, apesar de o exemplo mais claro que jamais encontrei na poesia francesa estar num poema de Alfred de Musset Lantilope aux yeux bles, | st plus tendre peut-étre Que le roi des foréts; | mais le lion répond Quiil n'est pas antilope, | et qu'il a nom || lion’. O “enjambement” entiquece a obra de Shakespeare ¢ Milton, reaparecendo em James Thomson, Keats e Shelley. Mas é claro que o poeta mais interessante a este respeito é Milton, que teve grande influéncia sobre Keats e Shelley em seu uso desta técni Ele declarou seu entusiasmo pelo “enjambement” na introducio de Prato perdido: verdadeiro deleite musical... consiste apenas em Niimeros apropriados, quantida- de adequada de Silabas, ¢ o sentido prolongado, de formas variadas, de um Verso para outro... O préprio Paraiso perdido é uma escola de primeiro nfvel no ensino de montagem e relagdes audiovisuais. Citarei varias passagens de diferentes partes da + Em francés no original: O antilope de olhos azuis | é calver mais terno Que o Rei da Floresta |] Mas o ledo responde Que nio é antilope | ¢ que seu nome é || eo 44 O sentido do filme obra — em primeiro lugar, porque Puchkin, traduzido, nunca consegue dar a0 leitor estrangeiro o deleite direto das peculiaridades de sua composicao, conseguido pelo leitor russo em passagens como as analisadas acima. Isto 0 leitor pode conse- guir obter mais sucesso em Milton. E, em segundo lugar, porque duvido muito que meus colegas britinicos ou norte-americanos tenham o hébito de folhear com freqiiéncia o Paratso perdido, apesar de ele conter coisas muito instrutivas para 0 cineasta. Milton é particularmente bom em cenas de batalha. Aqui sua experiéncia pessoal e observagGes de testemunha ocular freqiientemente tomam corpo. Hilaire Belloc escreveu com justiga sobre ele: Tudo 0 que é marcial, que combina som ¢ multidio, atraiu Milton desde as Guetras Sua imaginagio capturava especialmente o apelo da musica ¢ 0 esplendor das E, conseqiientemente, ele descreveu as batalhas divinas com detalhes tio intensamente terrenos que freqiientemente foi alvo de sérios ataques ¢ reprovagées. Escudando as paginas de seu poema e, em cada caso individual, analisando as qualidades determinantes ¢ efeitos expressivos de cada exemplo, enriquecemos extraordinariamente nossa experiéncia com relagao 3 distribuicdo audiovisual das imagens em sua montagem sonora. Mas cis as imagens: (A aproximagao da “Hoste de Sata") .-finalmente ‘Ao longe, no Horizonte, descobriu-se De um lado a0 outro, Regio ignea, disposta Sob a forma de exército, que, aproximando-se Mostrava poderes ligados a Satands, Cobertos com os raios inumerdveis -se uma afluéncia de Capacetes De sélidas e inflexiveis Langas; vi e de varios Escudos Guarnecidos com Pinturas insolentes Esses Poderes se apressavam Com furiosa rapidez...2 Notem a instrugéo cinematogréfica, no terceiro verso completo, para mudar 0 lugar da camera: “aproximando-se"! (O movimento correspondente das "Hostes Celestiais”) essa alta honra é reclamada, como direito, Por Azazel, grande Querubin, i Palavra e imagem 4s Que, imediatamente, desfralda da Haste brilhante A Insignia Imperial que, elevada ¢ plenamente avangada, Brilha como um Meteoro, flutuando a0 Vento, Como as Pérolas e a rica cintilagao do Ouro, A brasonarem as Armas ¢ os Troféus seréficos, Durante tudo este tempo O bronze sonoro enchia o ar, com sons Marciais, Eo exército universal expediu Um griro, que rasgou a Cavidade do Inferno, e, mais longe ainda, Assustou 0 Reino do Caos e da velha Noite. Num instante, no meio das Trevas, foram vistas, Dez mil Bandeiras levantadas no Ar, Ondulando as Cores Orientais: com estas bandeiras, ergueu-se Enorme Floresta de Langas, Capacetes aglomerados Apareceram e os Escudos curvaram-se em densa linha De extensao incomensurdvel! Dentro em pouco, os guerreiros movem-se Em perfeita Falange, & maneira dos Dérios: Flautas ¢ suaves Oboés; uma tal meneira elevou. A altura da mais nobre calma heréis antigos ‘Aarmarem-se para a Batalhay...39 | | | | E aqui estd uma parte da prépria batalha. Eu a transcreverei com os mesmos dois tipos de transcrigio como o fiz. na passagem de Poltava de Puchkin, Primeiro, | como dividida em versos por Milton, ¢ depois arrumados de acordo com os virios quadros de composigao, como um rotciro de filmagem, onde cada mimero indica ! um novo fragmento de montagem, ou plano. Primeira transcriga« em forga, cada mio armada valia 1. Uma Legido. Conduzido ao combate, cada Soldado parecia um Chefe, I Cada Chefe um Soldado; destro: II, Sabiam quando deviam avangar ou deter-se, quando deviam mudar a diregao IV. Da Batalha, abrir ou fechar V. Os sulcos da horrivel Guerra. Nenhum pensamento de fuga VI. Nem de retirada, nenhuma agio indecorosa VIL. Que provasse 0 medo; cada um confiava em si mesmo VIII. Como se o momento da vitéria dependesse IX. Somente do seu brago. Inumerdveis feitos de fama imorredoura X. _ Foram efetuados, pois vasta ¢ variada se estendia XI. A Guerra; ora 0 combate mantido em terra firme XI. Ora elevando-se sobre poderosa asa, XIIL, Atormentava todo o Ar, ¢ entdo todo o Eter parecia XIV. Fogo Militante. A Batalha por muito 34 XV. Foi suspensa em igual balanga..: 46 O sentido do filme Segunda transcricéo: um chefe, cada chefe um soldado; 1. Conduzido a0 combate, cada soldado pareci 2. destros, sabiam quando deviam avangar . ou deter-se - quando deviam mudar a direcao da batalha abrir . ou fechar os sulcos da horrivel guerra . Nenhum pensamento de fuga, nem de retirada, nenhuma agio indecorosa, que provasse 0 medo; yanayvaw . cada um confiava em si mesmo, como se o momento da vit6ria dependesse de seu brago 10. Inumeriveis feitos de fama imorredoura foram efetuados 11. pois vasta e variada se estendia a guerra; 12. ora o combate mantido se estendia em terra firme 13. ora levando-se sobre poderosa asa, atormentava todo 0 ar, 14, e entio todo o éter parecia fogo militante 15. A batalha por muito foi suspensa em igual balanga... Como na citacao de Puchkin, aqui também ha um ntimero idéntico de versos ¢ planos. Também como em Puchkin, € construfdo aqui um esquema de contra- ponto nao-coincidente entre os limites das representacdes ¢ os limites das articula- ges ritmicas. E-se levado a exclamar, nas proprias palavras de Milton em outra parte do poem: -alabirintos intrincados, Excéntricos, envolvidos uns nos outros porém regulares Ao maximo, quanto mais irregulares parecem...? Mais uma passagem do Livro Vi, quando os anjos rebelados sio jogados no Inferno: No entanto, o Filho de Deus nao tinha ainda usado a metade de sua forca, e refreou Seu Trovao no meio da Descarga, pois Ele nao visava los, mas desarraigd-los do Céu; Destrui 1. Levantou os que estavam caidos e, como a um Fato I. De Cabras ou a um rebanho timido, reunido em tropel, Il. Expulsa-os & sua frence. Fulminados, perseguidos IV, Pelos terrores e pelas filrias até os limites, V. Atéa Muralha de Cristal do Céu, que, abrindo-se amplamente, VI. Rola no seu Amago e descobre, por espagos Brecha. Vil. O Abismo devastado; esta vista monstruosa Palavra e imagem 47 VIII, Os fere de horror, mas ao longe, horror ainda pior IX. Os faz recuar; cabega para baixo, eles préprios se precipitam xX. Da borda do Céu, a cdlera eterna XI. Arde atrés deles até o abismo insondével. Nove dias cairam...7° E como se fosse um roteiro de filmagem: Levantou os que estavam caidos, e como a um fato de cabras ou a um rebanho timido, reunido em tropel expulsa-os & sta frente, fulminados, perseguidos pelos terrores e pelas fi céu que, abrindo-se amplamente, rola no seu amago e descobre, por espagosa brecha o abismo devastados esta vista monstruosa os fere de horror 9. mais ao longe, horror ainda pior os faz recuar 10. cabeca para baixo, eles préprios se precipitam da borda do céu; 11. a cdlera eterna arde atrés deles até 0 abismo insondével. pepe ias até os limites, até a muralha de cristal do PN Aw E possivel achar em Milton tantos exemplos de coordenagio, instrutivos como estes, quanto se desejar. © esquema formal de um poema, em geral, observa a forma de estrofes distribuidas inrernamente de acordo com a articulagio métrica — em versos. Mas a poesia também nos proporciona outro esquema, que tem um poderoso defensor em Maiakovski. Em seu “verso cortado”, a articulacio ¢ feita nao de acordo com os limites do verso, mas de acordo com os limites do “plano”. Maiakovski nao trabalha com versos: Vacuo. Voa nas alturas, Nas estrelas esculpindo seu caminho.>” Ele trabalha com planos: Vicuo. Voa nas alturas. Nas estrelas esculpindo seu caminho. Aqui Maiakovski corta seu verso exatamente como um experiente montador o faria ao construir uma seqiiéncia t{pica de “impacto” (as estrelas — ¢ Yesenin. Primeiro — um. Depois — 0 outro. Seguido pelo impacto de um contra o outro. 48 O sentido do filme 1. Vacuo (se fossemos filmar este “plano”, enquadrarfamos as estrelas para enfatizar 0 vazio, mas a0 mesmo tempo fazendo com que sua presenga seja sentida) 2. Voa nas alturas 3. E apenas no serceiro plano retratamos claramente os contetidos do primeiro € segundo planos nas circunstincias de impacto. Como podemos ver, e como poderia ser multiplicado com outros exemplos, a ctiagdo de Maiakovski ¢ impressionantemente grifica nesta quest4o da montagem. 'm geral, porém, neste caso é mais excitante voltar aos classicos, porque cles pertencem a um perfodo em que nem se sonhava com a “montagem” neste sentido. Maiakovski, afinal de contas, pertence ao perfodo no qual as reflexdes sobre a montagem ¢ os princfpios de montagem se tornaram amplamente correntes em todas as artes préximas da literatura: no teatro, no cinema, na montagem fotogréfi- ca, assim por diante. Em conseqiiéncia, exemplos de estilo realista de montagem tirados do tesouro de nossa heranga classica, onde interagdes desta natureza com campos préximos (por exemplo, com o cinema) eram poucas, ou totalmente (o os mais intensos e mais interessantes ¢, talvez, mais instrutivos. inexistentes, s: Porém, nao importa se na imagem, no som ou em combinagGes imagem — som, se na criagéo de uma imagem, de uma situagdo, ou na “magica” encarnagio diante de nossos olhos das imagens dos dramatis personae — scja em Milton ou em Maiakovski —, em toda parte encontramos igualmente presente este mesmo méto- do de montagem. Que conclusio podemos tirar sobre o que foi dito até agora? A conclusio € que nao ha nenhuma incompatibilidade entre 0 método pelo qual o poeta escreve, o método pelo qual 0 ator forma sua criagio dentro de si mesmo, 0 método pelo qual o mesmo ator interpreta seu papel dentro do enquadra- mento de um tinico plano, ¢ 0 mécodo pelo qual suas ages ¢ toda a interpretagao, assim como as ages que 0 cercam, formando seu meio ambiente (ou todo o material de um filme), fulguram nas mios do diretor através da mediagéo da exposigfo e da construgéo em montagem, do filme inteiro. Na base de todos estes métodos residem, em igual medida, as mesmas qualidades humanas vitais e fatores determinantes inerentes a todo ser humano e a toda arte vital, Nio importa quao opostos sejam os pélos nos quais cada uma dessas esferas possa parecer se mover, elas se encontram na afinidade unidade final de um mérodo como 0 que agora percebemos nelas. Essas premissas colocam diante de nés, com nova forca, a questo de que os profissionais da arte cinematografica devem nao apenas estudar 0 estilo dramatic a mestria do ator, mas devem dar igual arenso a0 dominio de todas as sutilezas da criaggo da montagem em todas as suas aplicagies. Palavra e imagem 49 Notas 1. Montazh 1938, Esctivo em 1937, retrabalhado entre matgo ¢ maio do ano seguinte ¢ publicado apenas em parte na edigio de janeiro de 1939 de Iskusstvo Kino (Arte do cinema). Uma outra ver retrabalhado para publicagio como primeiro capitulo de O sentido do filme em 1941: Eisenstein mudou o titulo (de Montagem 1938 para Palavra e imagem) ¢ ajustot o texto para o leitor de lingua inglesa 2. NS.Ex John Livingston Lowes, The Road to Xanadu, 1930. 3. NS.Es Ambrose Bierce, The Monk and the Hangmans Daughter: Fantastic Fables, 1925, 4,.R: Chamavam-se malas portmanteau (literalmente: “porta-casaco”) as grandes valises muito n carregar varias roupas, penduradas ‘em voga na época durea das viagens de trem e navio, que podi em cabides, 20 mesmo tempo. Palavras portmanteau sao as que carregam dois ou mais significados a0 mesmo tempo. 5. NSE: The Complete Works of Lewis Carroll, 1937 [O texto original citado por Eisenstein usa as palaveas fiuming c fcrious, e como montagem final fiarsions.| 6.NS.E. Sigmund Freud, Der Witz und seine Beziehung zum Unbewussten (O chiste e sua relagdo com o inconsciente). Viena, 1905. 7.NS.E: Kurt Koffka, Principles of Gestale Psychology, 1935. 8.NSE: Leon Tolstoy, Anna Karenina. 9, NS.E.z Mais tarde veremos que este mesmo princ{pio dinimico esté na base de todas as imagens realmente vitais, mesmo num meio aparentemente estitico ¢ imdvel como, por exemplo, a pincura. 10. NS.E.: Guy de Maupassant, Bel ami, (Tradugio brasileira de Clovis Ramalhete. Sao Paulo, Livraria Martins, 1953.] 11. Eisenstein se refere aqui a seqiiéncia final de Outubro, onde 14 planos deste religio com varios mostradores indicando a hora em diversas cidades aparecem montados ao lado de planos de ios que aplaudem e rostos que sorriem. 12. Nikolai Tcherkasov (1903-1976), intérprete de Poet i Czar (O poeta ¢ 0 tear, 1927) de Vladimir Gardine (1877-1965), seu primeiro trabalho no cinema; Deputat Balti (O deputado do Baltico, 1937) de Alexandet Zarkhi (*1908) e lossif Kheifits (°1905); e de dois filmes de Eisenstein, Alexander Nevsky (Cavaleiros de ferro, 1938) e Ivan Grozny (lua, 0 Terrivel, 1944-1946) entre outros. 13. Nikolai Okhlopkov, intérprete, entre outros, de Lenin v Oktiabr (Lenin em outubro, 1937) ¢ Lenin v 1918 (Lenin em 1918) de Mikhail Romm (1901-1971); ¢ de Alexander Nevsky (Cavaleiras de ferro, 1938) de Eisenstein. 14. Boris Tchirkov, intérprete, entre outros, de Utchitel (O professor, 1939) de Sergei Guerassi- mov (1906-1985) da Trilagia de Maximo: lunost Maxima (A juventude de Maximo, 1934), Vozvnas- tchenie Maxima (A volta de Maximo, 1937) e Vyborgskaia storona (O bairro de Vyborg, 1938) filmes de Grigori Kozintzev (1905-1973) ¢ Leonid Trauberg (*1902). 15. Lev Sverdlin, intérprete de, entre outros, Volochayevskyi diti (A defésa de Volochaievski, 1938) de Sergei (1900-1955) ¢ Georgi (1899-1946) Vassiliev; ¢ Vsadniki (Cavalciros, 1939) de Igor Savtchenko (1906-1950). 16, NSE: George Arliss, Up the Years from Bloomsbury, 1927. 17. NS.E.2 Leonardo da Vinci, Trattato della pittura, citado em Leonardo da Vinci de A. Volinski, Moscou, 1923. 18. NSE: Leonardo da Vinci, Tutité de la peinture, Paris, 1921. Nota de pé de pagina de Joséphin Peladan. 50 sentido do filme 19. NS.E. Publicado em Literaturnaya Gazeta, Moscou, 26 de margo de 1938. 20. N'S.E Karl Marx, Bemerkungen ueber de neweste prissische Zensurinstruktion in Werke und Schriften, Briefe und Dhumenten, Berlim, Marx-Engels Gesamtausgabe, vol. 21. NSE: E dbvio que o tema como tal é capaz de excitar emocionalmente, independente da forma em que é apresentado. Uma curta noticia de jornal sobre a vitéria dos republicanos espanhéis em Guadalajara é mais emocionante que uma obra de Beethoven. Mas aqui estamos discutindo como, através da arte, podemos elevar um determinado tema ou assunto, que pode ser excitante “em imo de cficicia. E claro que a montagem, como tal, de modo algum é um. meio exaustivo neste campo, apesar de ser um meio tremendamente poderoso. 22. NS.B: Alexander Sergeievitch Puchkin, Polnaye Sobraniye Sochinenil, Leningrado, 1936. 23. NS.E- Ibid. 24, NS. Ibid. 25. NS.E Pedro 1, guache de Valentin Serov, parte da colegio da Galeria Tretiakov, de Moscou [Valentin Alexandrovich Serov (1865-1911) pintor famoso por seus retratos, professor de pintura em Moscou entre 1909 ¢ 1911, No sétimo capitulo de Cinematisme (Editions Complexe, Bruxelas, 1980) Eisenstein analisa longamente um quadro de Serov, 0 retrato da atriz Maria Nicolaieva Ermolova (1853-1928) pintado em 1908. No quarto capitulo de A natureza ndo indiferente (La non-indifférente nature, dois volumes, Union Générale d'Editions, Paris, 1978) Eisenstein analisa um outro quadro de Seroy, o retrato de Gorki feito em 1904] 26, NSE: O teatro esté cheio, os camarotes resplandecem, As poltronas estio agitadas, a platéia ruge, A galeria bate palmas e sapateia excitada; Acortina sussurra ao ser levantada; ‘Uma luz fantéstica em redor de sua danga, A migica da saudagio obedecendo, ‘Uma multidao de ninfas em volta dela — vejat Istomina na ponta dos pés... (Puchkin, obra citada), 27.N.B:: Viktor Maximoviteh Zhirmunsky, Vedeni v Metriku, eoria stikba, Leningrado, 1925. 28, NR: Eisenstein cita diretamente o verbete do diciondrio Webster’ na versio preparada para si mesmo”, a um grau n a.edigio de lingua inglesa. 29. NS.E: Viktor M. Zhiemunsky, obra citada 30. NSE: The Works of John Milton, vol.tl, Paradise Lost, The Verse. Columbia University Press, 1931 31. NS.E: Hilaire Belloc, Mitton. Lippincott, 1935. 32. NS.E: John Milton, Paradise Lost (Paraiso perdido, tadugio de Conceigio G. de Sotto Maior, Edigées de Ouro, livro V1, p.189.] 33. NS.Ez Ibid, Livro! 34. NS.Ex Ibid., Livro VI 39. NS.Es Ibid., Livro V 36. NSE: Ibid., Livro VL 37. NS.E. A Sergei Yesenin {Este poema de Vladimir Maiakovski (1893-1930) foi publicado na revista LEF pouco depois da morte do poeta Sergei Yesenin (1895-1925), que se suicidou num hotel de Leningrado deixando uma tiltima poesia escrita com o sangue dos pulsos cortados, Até logo, até logo, companheiro).

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