Você está na página 1de 185
O Espaco Biografico Dilemas da Subjetividade Contemporanea Leonor Arfuch a UERJ 7 & eat s UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Reitor Ricardo Vieiralves de Castro Vice-reitora Maria Christina Paixdo Maioli ed B uer] EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Conselho Editorial Antonio Augusto Passos Videira Flora Sussekind Italo Moriconi (presidente) Ivo Barbieri Luiz Antonio de Castro Santos Pedro Colmar Gongalves da Silva Vellasco Leonor Arfuch O espago biografico: dilemas da subjetividade contemporanea Tradugao Paloma Vidal ed BD uer] Rio de Janeiro 2010 Titulo original: E/ espacio biogréfico ~ dilemas de la subjetividad contempordnea © Fondo de Cultura Econémica de Argentina S.A. / Buenos Aires, 2002. Direitos adquiridos para a lingua portuguesa pela Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. ¥ EdUERJ Editora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Rua So Francisco Xavier, $24 - Maracandi CEP 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ Tel./Fax.: (21) 2334-0720 / 2334-0721 / 2334-0782 / 2334-0783 www.eduerj.uerj.br eduerj@uerj.br Editor Executivo Italo Moriconi Geréncia/Supervisdo Editorial Carmen da Matta Coordenador de Publicagdes ‘Renato Casimiro Coordenadora de Produgao Rosania Rolins Coordenador de Reviséio Fabio Flora Revisdo Andréa Ribeiro Capa Carlota Rios Projeto e Diagramagao Emilio Biseardi Assistente de Edigao Renato Alexandre de Sousa CATALOGACAO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC A685. Arfuch, Leonor. O espago biogrifico: dilemas da subjetividade contempora- nea / Leonor Arfuch; tradugao, Paloma Vidal. — Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. 370 p. ISBN 978-85-7511-167-3 1, Andlise do discurso narrativo. 2, Narrativa (Retérica). 3. Autobiografia. 4. Sujeito (Filosofia). 5. Entrevistas. 1. Titulo, CDU 82.085 Sumario Agradecimentos.. Prefacio . Apresentagao ... Breve histéria de um comego. 2 A definigéo do tema ..20 O caminho da pesquisa a, 1.33 Os capitulos 1. O espaco biogréfico: mapa do territério . Genealogias. Em torno da autobiografia O espaco biogréfico contemporaneo 2. Entre o ptiblico e o privado: contornos da interioridade... “Trés paradigmas: Arendt/Habermas/Elias . O piiblico e o privado no horizonte contemporaneo lll 3. A vida como narragao.. Narrativa ¢ temporalidade 1S) Identidade narrativa, histéria e experiéncia.. 116 ‘A vor narrativa. i .126 O mito do cu: pluralidade e disjungao. 131 DistingGes no espaco biografico.. 4. Devires biograficos: a entrevista midiatica. 151 A vida a varias vozes . . 156 Avatares da conversa. - 170 ‘A pragmatica da narracao . .176 Biografemas. 196 5. Vidas de escritores ... +209 Vidas e obras 211 A cena da escrita... 219 Acena da leitura.. 224 Dos mistérios da criacao. 229 6. O espago biogréfico nas ciéncias sociais ... 239 A entrevista na pesquisa: hipétese sobre uma origem comum.... 241 (O que fazer com) A voz do outro. 253 Acscuta plural: uma proposta de andlise ... 266 7. Travessias da identidade: uma leitura de relatos de vida.. 277 Sobre a leitura... 277 ‘A pesquisa. 279 Os espacos simbélicos: Argentina/Itdlia... 1.291 Epilogo .. 335 Sobre o final. + 339 Referéncias... +351 Agradecimentos Entre as marcas (possiveis) de uma biografia, estao os rituais da pesquisa: as buscas, as vacilag6es, o didlogo com os livros e com os outros: encontros, discussdes, conversas, sugestGes, criticas. A esses interlocutores, que influiram decisivamente na concretizagao deste projeto, 4 sua generosidade de tempo e de palavra, quero responder aqui com meu agradecimento. A Elvira Arnoux, sob cuja orientagao este livro foi, em sua pri- meira versio, tese de doutoramento, pelo estimulo, pela orientagao lucida e valorativa. A Beatriz Sarlo, cujo julgamento preciso e sugestivo, numa longa “histéria conversacional”, mostrou-se iluminador em mais de um sentido. A Ernesto Laclau, que precoce e generosamente abriu pers- pectivas insuspeitadas para meu trabalho, cultivadas junto com a amizade. A meus colegas ¢ amigos: Teresa Carbé, a quem devo a de- cisto de retomar “sendas perdidas” para chegar ao porto; Noemi Goldman, que me alentou com sabedoria e afeto; Paola di Cori, que endireitou rumos com seus comentarios; Alicia de Alba, que mesmo A distancia soube me acompanhar com confianga e aconchego; e Emilio de Ipola, por seu olhar hicido, seu reconhecimento e o dom de seu humor. A minhas colegas e amigas do grupo de pesquisa: Leticia Sabsay, Verénica Devalle, Carolina Mera e Debra Ferrari, pelo cons- tante impulso, pela contribuigao de ideias, o afeto e a generosidade de scu tempo. 8 Cespaco biogitico A Mabel Goldemberg, por uma escuta sem a qual certamente este livro nao teria existido. A Federico Schuster, entao diretor do Instituto Gino Germa- ni, pelo apoio incondicional ao “tempo de acréscimo” que esta longa escrita exigiu. A Simon Tagtachian, por seu inestimavel apoio na area de informdtica, e a Tecla Candia, pela amabilidade no cotidiano. Prefacio Relato, identidade, razo dialdgica. Esses trés temas, intima- mente entrelagados, constituem as coordenadas que definem a tra- ma deste excelente livro. Tentemos precisar as estratégias discursivas que articulam esses tépicos na argumentagao de Arfuch. O que, em primeiro lugar, determina a centralidade do relato, da narrativa? Algo requer ser narrado na medida em que sua especi- ficidade escapa a uma determinagao tedrica direta, a um complexo institucional autorreferencial. Arfuch descreve com clareza o contex- to de proliferacao de narrativas em que seu livro se centra. Por um lado, uma experiéncia argentina: a pluralizagao de vozes e de relatos que acompanharam 0 retorno 4 democracia no inicio dos anos 1980. A corrosio dos pontos de referéncia cotidianos — piblicos e privados —, resultantes da experiéncia tragica da ditadura, implicou que a co- eréncia da moldura institucional dada tivesse de ser substitufda pela temporalidade de um relato em que o cardter constitutivo pertencia A narragao enquanto tal, uma narragao que deixara de estar funda- da em certezas ontoldgicas prévias. Aconteceu algo similar ao que [rich Auerbach descreve com relagao 4 dissolugao da ordem imperial romana: o latim deixa de ser uma linguagem fortemente hipotatica, que classifica a realidade em termos de categorias universalmente accitas, e tenta, pelo contrério, transmitir a impressao sensivel do real, aquilo que escapa aos sistemas vigentes de organizacao e sé se dcixa intuir por meio da estruturag4o temporal de um relato. No entanto, como Arfuch assinala, essa centralidade do nar- rativo depende de um contexto muito mais amplo do que o pura- mente argentino: esté inscrita na hibridizagao geral de categorias e 10 Ocspaco biogrifico distingdes que dominaram o que se chamou “modernidade” e que acompanharam a transi¢ao a uma era “pés-moderna”. Tal transi¢ao deve ser entendida, todavia, nado como dissolugao generalizada (que s6 seria concebivel como preambulo da emergéncia da categoria ti- picamente moderna do “novo”), mas, precisamente, como hibridi- za¢io — isto é, como conformagio de novas areas de indecidibilidade no conjunto social/institucional e como base para o desdobramento de jogos de linguagem mais radicais, que colocam em questao os pontos de referéncia da certeza. Esse processo é estudado por Arfuch com relagao a uma drea institucional especifica: os géneros literdrios que plasmaram — a partir de pontos de referéncia cldssicos como as confissdes de Santo Agostinho e de Rousseau — 0 campo do biogra- fico e do autobiogréfico. Arfuch analisa detidamente as diferentes formas tradicionais de relatar a prépria vida (memérias, correspon- déncias, didtios intimos etc.) € mostra a irrupcao de novas formas autobiogréficas no mundo contemporaneo, a mais importante das quais — que tem centralidade indubitavel no livro — é a entrevista. O resultado é uma andlise fascinante da qual surgem diante de nossos olhos tanto tipos ¢ estilos narrativos ligados aos meios de comunica- gao de massa quanto a renegociagao e abertura de formas incoadas de relatos que ja se insinuavam nos géneros literdrios clssicos. Ha um segundo aspecto que também € central na andlise da autora. O tema de seu estudo — 0 espago miiltiplo do autobiografico — se presta admiravelmente a exploragao da teorizagao contempora- nea do sujeito. O questionamento do sujeito auténomo, autocentra- do e transparente da metafisica moderna e a correlativa nogao de um sujeito descentrado (pés-estruturalismo) ou constitufdo em torno de um vazio (Lacan) tinham necessariamente de colocar em questo as formas canénicas do relato autobiografico. Esse é um aspecto que Arfuch explora com sua penetracio ¢ rigor caracteristicos. A subver- so dos géneros tradicionais do relato e a emergéncia de uma nova pandplia de categorias analfticas dao seu sentido & argumentacio desta obra. Assim, a nogao de espago biogrdfico tenta dar conta de um Preficio 11 terreno em que as formas discursivo-genéricas cldssicas comegam a se entrecruzar e hibridizar; a categoria de valor biogrdfico adquire um novo carter de protagonista no tracado narrativo que dé coeréncia a prépria vida; e a apelacdo a uma referencialidade est4vel como ponto de ancoragem é deslocada em relagao as diversas estratégias de au- torrepresentacao. Isso implica necessariamente colocar em questao nogdes como o “pacto autobiogréfico entre leitor e autor” (Lejeune) ¢ redefinir a significado de conceitos como “vivéncia” (Erlebnis), cuja genealogia tracada por Gadamer é retomada por Arfuch. Pode- se dizer, como observacio geral, que 0 vazio do sujeito auténomo cldssico € ocupado neste livro — em consondncia com varias correntes do pensamento atual — pelo que poderfamos denominar “estratégias discursivas”, isto é, por deslocamentos metonimicos que dao coerén- cia aos relatos — coeréncia que no repousa em nenhum centro, mas que faz dessa nao coincidéncia do sujeito consigo mesmo a fonte de toda representagio e totalizagao. Isso nos conduz a uma terceira dimensio da teorizacao de Ar- fuch, que é essencial sublinhar. O descentramento do sujeito assume em sua obra uma formulagao especial que se vincula a “razdo dialé- pica”, de raiz bakhtiniana: 0 sujeito deve ser pensado a partir de sua “outridade”, do contexto de didlogo que dé sentido a seu discurso. Ha, entdo, uma heterogeneidade constitutiva que define toda situa- gio de enunciacao. O social deve ser pensado a partir da “alienagao” radical de toda identidade. Essa alienacdo opera em varias diregdes. Devemos insistir em que nao nos estamos referindo simplesmente a uma pluralidade de papéis dentro de um contexto social definido, mas a algo muito mais fundamental: para Bakhtin, nao hd coincidéncia entre autor e perso- nagem, nem sequer na autobiografia. Isso é 0 que permite a Arfuch fazer oscilar decisivamente sua andlise de um sujeito que se expressa- ria através do discurso a outro que se constitui através dele. E ao falar de discurso estamos nos referindo, pura e simplesmente, ao social cnquanto tal. O social est4 fundado, portanto, numa falta que nao se pode crradicar, Isso poderia ser formulado por meio da distingao que Benveniste — seguido por Lacan — estabelecera entre 0 sujcito da enunciagao € o sujeito do enunciado: o primeiro se funda numa déixis (0 sujeito anterior 4 subjetivacao, em termos lacanianos) que nao é inteiramente absorvivel nem normatizdvel através dos enunciados de um discurso. A razdo dialdgica, nesse sentido, nao opera um fecha- mento, mas uma abertura. Essa série de démarches tedricas — descentramento do sujeito, inscri¢do do mesmo num espaco dialdgico (e, portanto, social), falta constitutiva inerente a esse tiltimo — nado pode senao subverter as distingSes classicas entre 0 ptiblico e o privado. Arfuch rastreia a genealogia dessa subversao através dos escritos de Arendt, Habermas ¢ Elias. O que é importante advertir a esse respeito é que esse entre- cruzamento entre as varias esferas nao é 0 resultado de uma operagio meramente analitica, mas ocorre diariamente nos espacos cm que o autobiogrdfico se constitui e se redefine. A entrevista midistica — ea oral, em geral — seria inconcebfvel sem essa complexa urdidura atra- vés da qual as dimensées publica e privada se sobredeterminam. E aqui Arfuch nao é necessariamente pessimista: nao vé nesse processo de entrecruzamento a invasao de uma esfera pela outra, mas um pro- cesso que é porencialmente enriquecedor — quer dizer, a emergéncia de uma intertextualidade que impede confinar temas ¢ reivindica- g6es a um isolamento esterilizante. Ha um ultimo aspecto que gostaria de destacar. Kant dizia que se ganha muito se uma pluralidade de temas ¢ questocs consegue ser sintetizada por uma problemdtica unificada. Para conscgui-lo, no entanto, é preciso certo arrojo, recusando-se a accitar fronteira estabelecidas. E ninguém pode negar que Arfuch o tem. A nogio de “entrevista” passa a ser em sua andlise uma categoria tedrica, ja que ela subsumiu, sob esse rétulo, dois tipos de pratica intelectual que, anteriormente, nao haviam sido considerados conjumtamente: a entrevista jornalistica com figuras destacadas ¢ a entrevista que as ciéncias sociais ¢ a histéria oral levam a cabo com pessoas da vida Preficio 13 comum, que passaram por experiéncias sociais tipicas de certos gru- pos. Desse ponto de vista, o segundo corpus de entrevistas anali- sado por Arfuch ~ realizadas no 4mbito de uma pesquisa sob sua orientagao — é de alto interesse. Os entrevistados sao familiares, de ascendéncia italiana, de pessoas que emigraram para a Itdlia no final dos anos 1980 como resultado da crise argentina. Todos os temas que assinalamos antes, relativos 4 hibridizagao e ao descentramento do sujeito, aparecem em status nascens, por assim dizer, nas respostas dos entrevistados: a impossibilidade de estabelecer uma identificagao inequivoca, seja com a Italia ou com a Argentina; a tensao entre dois mundos cujos contetidos sao dificilmente traduzidos entre si; todas as questoes afetivas inerentes a uma subjetividade desgarrada; 0 no- madismo da condigio contemporinea. O que as formas mais ela- boradas, “literdrias”, da entrevista conseguem ocultar ou ao menos matizar aparece com maior nudez nessas conversas mais humildes e marginais, mas nem por isso isentas de tragos romanescos. Des- se modo, elas lancam certa luz sobre dimensées que sao inerentes ao género “entrevista” enquanto tal. Isso aponta, de modo quase paradigmatico, para os problemas especificos que uma teoria con- tempornea dos géneros literdrios deve afrontar. Nao é mais a uni- dade do livro, ou do jornal, que serve como suporte material de um género. A proliferagao dos meios de comunicacgio de massa, com sua produgio excessiva de imagens e de espagos dialégicos novos, obriga a uma teorizagao dos géneros que depende menos de apoios materiais evidentes do que de formas relacionais de cardter virtual. Ela deve se fundar em principios inteiramente formais que vao além de distingdes como entre o falado e o escrito ou entre o formulado linguisticamente e o representado virtualmente. Como avangar a partir desse ponto? O livro de Arfuch abre diversas vias de reflexao, ligadas a movimentos caracteristicos da ex- ploragao teérica contemporanea. Gostaria de assinalar apenas trés, que convergem apontando na diregao de uma nova ontologia. A primeira é a psicandlise, cujo discurso est na base de toda reteo- 14 Cespaco biogrifico rizagéo contemporanea do sujeito. Fica claro que categorias como “projegao”, “introprojecao” e “narcisismo” pressupdem uma relacio entre objetos (uma ontologia) que é impensavel nao apenas em ter- mos de paradigmas biologistas ou fisicalistas, mas também em ter- mos daqueles que informaram e constituiram o discurso dominante das ciéncias sociais. A segunda é a desconstrugio, cuja contribuigzo basica se funda no desvelamento de novas areas indecidiveis na es- truturagao da objetividade e nas estratégias possfveis a partir dessa indecidibilidade origindria (suplementariedade, iteragao, différance etc.). A terceira é a retérica. Se o descentramento do sujeito nos conduz 4 impossibilidade de toda nominagio direta, toda referéncia a um objeto — ¢ as relagdes entre objetos — requerer4 movimentos figurais ou tropolégicos estritamente irredutiveis a qualquer literali- dade. A retérica, por conseguinte, longe de ser um mero enfeite da linguagem como o supunha a ontologia classica, passa a ser 0 campo primdrio de constitui¢ao da objetividade. Nesse sentido, o paradig- ma que poderd conduzir a uma reconstitui¢ao tedrica do pensamen- to social terd de ser um paradigma retérico. Minha leitura do livro de Arfuch me sugere que seu impulso teérico fundamental se move nessa dire¢ao. Muitas coisas dependem do sucesso dessa tarefa, entre outras, 0 modo como teremos de constituir, nas préximas décadas, nossa identidade teérica e politica. “Et tout le reste est littérature”. Ernesto Laclau Apresentagao A simples mengao do “biogrdfico” remete, em primeira ins- tincia, a um universo de géneros discursivos consagrados que ten- tam apreender a qualidade evanescente da vida opondo, a repeticao cansativa dos dias, aos desfalecimentos da memédria, o registro mi- nucioso do acontecer, o relato das vicissitudes ou a nota fulgurante da vivéncia, capaz de iluminar o instante e a totalidade. Biografias, autobiografias, confissées, memérias, didrios intimos, correspon- déncias dao conta, hd pouco mais de dois séculos, dessa obsessao por deixar impress6es, rastros, inscrigdes, dessa énfase na singularidade, «que é a0 mesmo tempo busca de transcendéncia. Mas, na trama da cultura contemporanea, outras formas apa- tecem disputando o mesmo espaco: entrevistas, conversas, perfis, retratos, anedotarios, testemunhos, histérias de vida, relatos de au- toajuda, variantes do show — talk show, reality show... No horizonte mididtico, a légica informativa do “isso aconteceu”, aplicdvel a todo repistro, fez da vida —e, consequentemente, da “prépria” experiéncia um nticleo essencial de tematizac4o. Por sua vez, as ciéncias sociais se inclinam cada vez com maior assiduidade para a voz € 0 testemunho dos sujeitos, dotando assim de corpo a figura do “ator social”. Os métodos biograficos, os rela- tos de vida, as entrevistas em profundidade delineiam um territério bem reconhecivel, uma cartografia da trajetéria individual sempre cm busca de seus acentos coletivos. Essa multiplicidade de ocorréncias, que envolve tanto as in- dtistrias culturais como a pesquisa académica, fala simultaneamente de uma recepgio multifacetéria, de uma pluralidade de publicos, 16 Oespaco biogrifico leitores, espectadores, de um interesse sustentado e renovado nos infinitos matizes da narrativa vivencial. Embora nio seja dificil expor as raz6es dessa adesdo — a ne- cessdria identificagéo com outros, os modelos sociais de realizacao pessoal, a curiosidade nao isenta de voyeurismo, a aprendizagem do viver —, a notavel expansao do biogrdfico ¢ seu deslizamento cres- cente para os Ambitos da intimidade fazem pensar num fenédme- no que excede a simples proliferagao de formas dissimilares, os usos funcionais ou a busca de estratégias de mercado, para expressar uma tonalidade particular da subjetividade contemporanea. E essa tonalidade que eu quis indagar no espaco deste livro. Esse algo a mais que est4 em jogo nao tanto na diferenga entre os géneros discursivos envolvidos, mas em sua coexisténcia. Aquilo co- mum que une as formas canonizadas e hierarquizadas a produtos estereot{picos da cultura de massas. O que transcende o “gosto” definido por parametros socioldgicos ou estéticos e produz uma res- posta compartilhada. O que leva repetidamente a recomegar o rela- to de uma vida (minucioso, fragmentdrio, caético, pouco importa seu modo) diante do préprio desdobramento especular: o relato de todos. O que constitui a ordem do relato — da vida — e sua criagao narrativa, esse “passar a limpo” a prépria histéria, que nunca se termina de contar. Privilegiei para isso a trama da intertextualidade em vez dos exemplos ilustres ou emblemdticos de bidgrafos ou autobidgrafos; a recorréncia antes da singularidade; a heterogeneidade e a hibridi- zagio em vez da “pureza” genérica; 0 deslocamento e a migrancia em vez das fronteiras estritas; em ultima instancia, a consideragao de um espaco biogrdfico como horizonte de inteligibilidade e nao como mera somatéria de géneros j4 conformados em outro lugar. E a partir desse espago, que se constituird ao longo do caminho, que proporei entao uma leitura transversal, simbélica, cultural e politica das narrativas do eu e de seus intimeros desdobramentos na cena contemporanea. ‘Apresentasio 17 Breve histéria de um comego Em meados dos anos 1980, no ambito promissor da abertura democratica, comegaram a aflorar em nosso cenério cultural os debates em torno do “fim” da modernidade, que agitavam a refle- xdo em contextos europeus € norte-americanos. Apresentavam-se ali as (mais tarde) célebres argumentag6es sobre o fracasso (total ou parcial) dos ideais da Ilustragao, das utopias do universalismo, da razdo, do saber e da igualdade, dessa espiral ininterrupta e as- cendente do progresso humano. Uma nova inscri¢ao discursiva, ¢ aparentemente superadora, a “pdés-modernidade”, vinha sintetizar o estado de coisas: a crise dos grandes relatos legitimadores, a perda de certezas e fundamentos (da ciéncia, da filosofia, da arte, da po- \{tica), 0 decisivo descentramento do sujeito e, coextensivamente, a valorizagao dos “microrrelatos”, 0 deslocamento do ponto de mira onisciente e ordenador em beneficio da pluralidade de vozes, da hibridizagdo, da mistura irreverente de cdnones, retéricas, paradig- mas ¢ estilos.' ' Remetemos aqui a alguns textos cldssicos do debate modernidade/ pés-moder- nnidade dos anos 1980: J. E. Lyotard, A condigéo pés-moderna e La posmodernidad (explicada a los nifios); M. Berman, Tudo que é sélido desmancha no ar: a aven- twra da modernidade; J. Habermas, “La modernidad, un proyecto incompleto”; P. Anderson, “Modernidad y revolucién’; G. Vattimo, O fim da modernidade, N. Casullo (org.), El debate modernidad/ posmodernidad, Com énfase no plano estético, podem ser assinalados a antologia de H. Foster, La posmodernidad; O. Calabrese, A Idade Neobarroca; F. Jameson, Ensayos sobre el posmodernismo; G. Lipovetseky, La edad del vacio; sem esquecer 0 papel pioneiro da arquitetura, 41 partir dos que foram verdadeiros marcos: R. Venturi, S. Izenur ¢ D. Scott Brown, Aprendiendo de Las Vegas; Ch. Jenks, Ellenguaje de la arguitectura posmo- derna. No Ambito da América Latina, N. Garcfa Canclini apresentou 0 debate sobre © multiculturalismo em Culturas hibridas. Em nosso meio, Beatriz Sarlo dliscutiu os paradigmas em jogo a partir de um olhar critico sobre a vida e a cultura urbanas em Cenas da vida pés-moderna e Instantdneas. Medios, ciudad y costumbres en el fin de siglo. 18 — Cespaco biogritico A nova perspectiva, que comprometia a concepgao mesma do espacgo ptiblico segundo a classica ordem burguesa, incursionava, além disso, e nao tangencialmente, no campo da subjetividade. Os “pequenos relatos” narravam nao sé identidades ¢ histérias locais, re- gionalismos, linguas verndculas, mas também 0 mundo da vida, da privacidade e da afeigao. O retorno do “sujeito” — e nao precisamente o da raz4o — aparecia exaltado, positiva e negativamente, como cor- relato da morte anunciada dos grandes sujeitos coletivos — 0 povo, a classe, o partido, a revolugéo. Enquanto isso, no espaco miditico, um salto na flexibilizagdo dos costumes, que comprometia os usos do corpo, o amor, a sexualidade, as relagGes entre as pessoas, parecia se insinuar, empurrando os limites de visibilidade do dizivel e do mostravel. Na aceleragao de um tempo jd marcado pelas novas tec- nologias da comunicagao, pela apropriagdo quase imediata do léxi- co especializado na fala comum, as manifestagdes dessas tendéncias apareciam como indiscerniveis de sua teorizacdo: um fenédmeno (um ritmo, uma “condigao pés-moderna”) era verdadeiramente descri- to — 4 maneira daquela “experiéncia vital” que significara, segundo Marshall Bermann ([1982] 1988), a modernidade — ou inventado, propondo novos decdlogos de (ir)reveréncia? Seja qual fosse a respos- ta—e o alinhamento a respeito —, 0 certo é que esse clima de época, de fortes questionamentos 4 doxa, estava marcado prioritariamen- te pelas profundas transformacoes politicas, econémicas e culturais que se tinham produzido no mapa mundial, esses “novos tempos” (Stuart Hall, 1990) do capitalismo péds-industrial e do “modelo ta- tcherista”, cujo devir sem pausa pode se adivinhar hoje, apesar de seus novos atavios, sob a metdfora da “globalizagao”. Se no plano da expectativa politica nosso contexto diferia do desencanto de outras latitudes — havia prementes valores coletivos e fundamentos a restituir, em termos de justiga e democracia —, nao parecia haver, no entanto, grande divergéncia quanto a gestao ptt blica da intimidade. Uma paulatina expansio de subjetividades ia se tornando perceptivel em diversas narrativas, das revistas de auto- Apresentasio 19 conhecimento as intimeras formas de autoajuda, da ressurreigao de velhos géneros autobiogréficos a uma audaz experimentagao visual. Certos tons da comunicagao midiatica eram particularmente elo- quentes a respeito: nao sé eram definidas ali as incumbéncias reno- vadas do “estado terapéutico”, as normativas da “vida boa” em voga, mas também amplas zonas da vida privada de funciondrios e notd- vis se transformavam cada vez mais em objeto preferido de tema- tizagdo, tornando por momentos impreciso 0 horizonte do puiblico na velha acepgao do interesse comum e da visibilidade democrati- ca. Fendmeno nao reduttvel s6 a qualidade da “polftica-espetaéculo”, «uc alcangou logo em nosso meio limites dificeis de superar, mas que vinha acompanhado de um “recolhimento” na cotidianidade, ho trabalho por conta prépria, na exaltagio dos valores e interesses privados e no credo da “salvagao” pessoal, ligado tanto 4 experiéncia traumatica da hiperinflagdo do final da década como 8 incipiente ada”, e posterior desmoronamento (privatizador), do Estado de hem-cstar, nos primeiros anos da década de 1990. No horizonte da cultura — em sua concepgao antropolégico- scmidtica —, essas tendéncias de subjetivagao e autorreferéncia, essas “tecnologias do eu” e do “si mesmo”, como diria Foucault ([1988] 1990), impregnavam tanto os hdbitos, costumes e consumos quanto 4 produgio midiatica, artfstica e literéria. Consequentemente, com a consolidagao da democracia brotava o democratismo das narrativas, essa pluralidade de vozes, identidades, sujeitos e subjetividades que pareciam confirmar as inquietudes de algumas teorias: a dissolugao do coletivo, da ideia mesma de comunidade, na mirfade narcisista do individual. sa contraposicao enviesada, frequentemente com tons Voie apocal{pticos, essa “perda” do espago puiblico classico em sua idea- lizada transparéncia diante da “invasao” da privacidade e, ao mes- io tempo, a incgavel atragdo que as novas formas despertavam em puiblicos © espectadores, que me levou a me interessar (interesse que nao deixava de ser também uma inquietude) pelo tema, a me 20 Ocespaco biogrifico colocar do lado “negativo” — e menos abordado — da antinomia, a tentar investigar nesse vértice aberto pela associacao usual, talvez nao inteiramente lfcita, entre “privado” e “privatizacdo”. E ao me propor tal empresa, que supunha me confrontar com o multifa- cetdrio, com estranhas ligas entre tradigo e inovagao, o fazia sem renunciar a transitar por caminhos jé sinalizados pelos géneros ca- nénicos — a biografia, a autobiografia, o relatério etnografico etc. -, nao de modo prioritario nem excludente, mas dando passagem ao didlogo com essas maneiras owtras de narrar. Seria possivel manter a classica linha diviséria entre puiblico ¢ privado? A expressao da subjetividade do privado (a exposicao da intimidade, as narrativas, os interesses, o “mundo privado”) era ne- cessariamente, em seu advir mididtico, outra face (indesejada) do fracasso das utopias sociais? E ainda, nesse caso, que tipo de valores entrava em jogo para concitar essa atengao? Tratava-se simplesmente de uma exaltagao voyeuristica, de uma banalizagao das histérias de vida, de um novo elo na cadeia da manipulagao ou habilitava algum outro registro convocante da experiéncia humana? Podiam ser pos- tulados, a partir de um pensamento da pluralidade e da diferenca, talvez o legado mais persistente dos enfoques “pés”, outras alterna- tivas, outros prismas para a leitura e a interpretacao? Essas interro- gagoes definiram, num primeiro momento, o territério aproximado da minha pesquisa. A definigéo do tema Apenas iniciada, a indagacao em torno das formas que o cres- cente processo de subjetivagao adotava se confrontou com uma hete- rogeneidade que evocava aquela qualidade inabarcavel da “fala” que levara Saussure a decreté-la “inanalisavel”. Onde “ler”, efetivamen- te, esse “retorno” do sujeito, essa famosa instauragao da privacidade como interesse prioritdrio da vida? Como distinguir, entre formas dissimilares, aquelas que est4o concernidas pelo: mesmo objetivo? Apresentagio 21 (Que parametros privilegiar numa ordenagao? Como compatibilizar registros e estilos? Diante de toda a presungao de um corpus, impu- nha-se a delimitacao de um universo. De tanto observar, confrontar variaveis, foram se perfilan- do alguns eixos e tendéncias prioritdrias: a subjetividade que os relatos punham em jogo vinha em geral “atestada” pela admissao do “eu”, pela insisténcia nas “vidas reais”, pela autenticidade das histérias na voz de seus protagonistas, seja na transmissao ao vivo das cameras ou na inscri¢ao da palavra gréfica, pela veraci- dade que o testemunho impunha ao terreno escorregadio da fic- yao. Aquela compulsao de realidade assinalada pelo célebre con- ccito de “simulacro” de Baudrillard ([1978] 1984) — resguardo clémero da devoragao midiatica — parecia se plasmar aqui sem descanso no nome préprio, no rosto, no corpo, na vivéncia, na ancdota oferecida & pergunta, as retéricas da intimidade. Perso- nalizagao da polftica, como havia sido observado pela sociologia, «ue substitu{a teses pragmaticas por vinhetas de cotidianidade, vel s € novas estratégias de autorrepresentacao de ilustres e fa- mosos, mas também vidas comuns oferecidas como espetdculo, no detalhe de sua infelicidade. Era a simultaneidade dessas formas, escritas ou audiovisuais, a tilidade de seus procedimentos, no ambito de géneros mais ou menos candnicos, e mesmo “fora de género” (Robin, 1996), que as ver: tornava particularmente significantes. Narrativas do eu ao mesmo tempo divergentes e complementares, cuja enumeragio tateante es- hocei no inicio desta apresentagao. Assim, evidenciou-se a pertinéncia de considerar essas for- mas nao sé em sincronia, mas em intertextualidade: mais do que tum mero repertério de ocorréncias, impunha-se uma articulagao que outorgava sentidos, um modo de olhar. Deixando de lado o terreno da ficgao, objeto, neste caso, inabordavel, e evitando co- megar por uma forma classica — a autobiografia? — como principio ordenador, a ideia de um espago autobiogrdfico se revelou altamente 22 Ocespaco biografico produtiva, enquanto horizonte analftico para dar conta da multi- plicidade, lugar de confluéncia e circulagao, de semelhangas de fa- milia, proximidades ¢ diferencas. A expressao, tomada emprestada de Philippe Lejeune (1980), vinha assim introduzir uma delimita- gio do universo. A que remetia a denominagao “espaco biografico” de Lejeu- ne? Precisamente, a “um passo além” de sua tentativa infrutifera de aprisionar a “especificidade” da autobiografia como centro de um sistema de géneros literdrios afins. Nessa reflexao a posteriori, o autor se pergunta se o estudo de um género, ao menos em termos taxoné- micos, estruturais, nao se limitaria a dar conta de alguns espécimes ilustres ou exemplares, enquanto sua produtividade excede sempre as grandes obras. E assim que, em prol da pluralidade, e tentando inclusive apreender um excedente da literatura, ele chega formula- cao de um “espaco biogréfico”, para dar lugar as diversas formas que assumiu, com o correr dos séculos, a narrago inveterada das vidas, notaveis ou “obscuras”, dentre as quais a autobiografia moderna é apenas um “caso”. Apesar de seu cardter sugestivo, nao era esse espaco, concebido como um reservatério onde cada espécime fornece um “exemplo”, que convinha aos meus objetivos. O empréstimo — na verdade, qua- se metaférico — se abria, no meu projeto, a outro desenvolvimento conceitual: uma espacializagdo, como assinalei acima, onde conflu- fam num dado momento formas dissimilares, suscetiveis de serem consideradas numa interdiscursividade sintomatica, por si sé signi- ficantes, mas sem renunciar a uma temporalizacio, a uma busca de herangas genealogias, a postular relagdes de presenga e auséncia. Ao me propor ento esse estudo em seu desdobramento contem- poraneo, com aten¢ao na inovac¢ao mididtica, mas sem renunciar as inscrig6es cldssicas, ao propor uma articulagao néo determinada por dotes “intrinsecos” nem hierarquias entre narrativas que poderiam Por sua vez integrar outros agrupamentos, esse espaco biogrdfico se transformou para mim num ponto de partida e nao de chegada, Apresentagio 23. numa dimensao de leitura de um fendmeno de época, cujo tragado, cm virtude de minhas préprias hipéteses ¢ objetivos, devia ser defi- nido no curso de minha pesquisa. Do espago biogrdfico aos géneros discursivos Se o interesse em dar conta, em termos discursivos e nar- rativos, das formas de subjetivagao que contribufam para a afir- magiio de uma nova privacidade me conduziu ao espaco biogréfi- co, minha indagagio nao se esgotaria em sua configuracao geral. Antes, na interatividade dessas formas, nos diferentes suportes € estilos que me eram dados confrontar, desenhavam-se algumas li- nhas recorrentes que valiam a pena analisar em particular. Assim, loi panhando importancia, entre os diversos registros da expressao vivencial, a entrevista, um género sem dtivida predominante na comunicagao mididtica, que condensa admiravelmente os “tons” da época: a compulsao de realidade, a autenticidade, 0 “ao vivo”, a presenga. Na busca empreendida em torno dos novos acentos do eu, desse “retorno do sujeito” que pretendia fazer ouvir sua “prépria” palavra, © que seria mais préximo da voz (do corpo, da pessoa) do que ela, instaurada pela mais antiga e emblemdtica maneira de dialogar, raciocinar, trazer 4 tona, encontrar uma verdade? Se a entrevista revelara, no transcurso de pouco mais de um século, sua qualidade de veridicidade insubstituivel, transformando o velho ‘© num género altamente ritualizado da informagao, modus socra sua correlativa encenagao da subjetividade, sua intrusdo na inte- tioridade emocional e na mintcia cotidiana das vidas (notdveis e “obscuras”), nao cra de modo algum uma aposta menor. Além do mais, cla aparecia, na dimensao sincrénica de nosso espago bio- piifice, como a forma de maior ubiquidade, capaz de apresentar sob os olhos o leque completo das posigdes de sujeito da sociedade “encarnado” cm sujeitos reais —, capaz de recorrer, em seu vai- vem dialog: as modulagoes do vivencial, da autobiografia EO, LO 24 Ocespago biogritico as memérias, do diario intimo a confissao. Tal densidade signifi- cante, escassamente abordada por estudos especificos, definiu meu interesse nessa direc4o. Mas se a entrevista midiatica oferecia um desfile inesgotavel de vidas ptiblicas, sem preconceito de se interessar também, oca- sionalmente, pelas vidas comuns, outra de suas formas se ocupava, com a mesma insisténcia, das vidas privadas, em sua dupla acep- G40, objeto improvavel de autobiografia. Delineava-se assim outra vertente positiva para 0 meu tema, dessa vez no terreno da interro- gacao cientffica: a dos relatos de vida, que inquietaram as ciéncias sociais desde os primeiros anos do século XX, na tentativa de apre- ender histérias ¢ memérias, de dar conta da espessura do social, e que continuam concitando de maneira crescente sua atenga0. De fato, os chamados “métodos biogréficos”, cujo recurso a entrevista € quase obrigatério, ocupam hoje uma posigao predominante na investigagao qualitativa, em sintonia com o interesse na voz e na experiéncia dos sujeitos e com a énfase testemunhal, essa verdadei- ra obsessio da meméria que os marcos simbdlicos do novo século e milénio nao cessaram de estimular. A curiosidade literdria, a midiatica e a cientffica e, ainda, es- ses dois polos arquetfpicos da experiéncia — as vidas “célebres”, que so por isso emblematicas ¢ se tornam objeto de identificagao, e as “comuns”, que oferecem uma imediata possibilidade de autorreco- nhecimento — conflufam dessa forma em nosso espaco, habilitando um olhar excéntrico sobre as novas maneiras como o biogrdfico se integra naturalmente no horizonte da atualidade. Assim, a insistén- cia na exposi¢ao ptiblica da privacidade, de todos os tons possfveis das historias de vida e da intimidade, nessa hibridizacao que desafia a fronteira entre os géneros consagrados e as reelaborages periddi- cas, irreverentes ou banais, longe de aparecer simplesmente como um desdobramento casual na estratégia de captacdo de espectadores, investia-se de novos sentidos e valoragées, tragando figuras contras- tantes da subjetividade contemporanea. Apresentagio 25 Nao se tratava, evidentemente, nessa trama muiltipla que nos- so espaco ia revelando e, menos ainda, no estudo da entrevista como um género nfo espectfico, embora obstinadamente biogréfico, de voltar 4 busca de singularidade, ao caso “representativo”, a “essén- cia” do género entendido como uma normativa que “desaloja” o de- sajuste, 0 excesso ou a contravengio. A prépria concepgao de género discursivo como heterogeneidade constitutiva, tomada de Bakhtin (Estética da criagdo verbal, [1979] 1982), desautorizaria semelhante pretensao. Era antes a produtividade do uso dos géneros num conjun- to amplo de ocorréncias, o didlogo intertextual suscitado por eles, sua especificidade somente relativa, seus deslocamentos metonimi- cos, 0 que me interessava analisar. Que modelos de vida se desdobram nesse leque de figuras, célebres e comuns? Que orientagées valorativas acarretam as respec- tivas narrativas? Que diferenga a entrevista introduz a respeito de outras formas biogrdficas? Que posiges (dialdgicas) de enunciacao constréi? Como se narra a vida “a varias vozes”? Como se tece 0 trabalho da identidade? Que distingdes podem ser postuladas entre “umbrais” da interioridade — {ntimo/privado/biogréfico? Como se articula o fntimo com o publico, 0 coletivo com o singular? Essas perguntas tragam em linhas gerais o caminho de minha pesquisa, caminho realmente pouco explorado, com certa semelhan- a e maior divergéncia, em relacdo 4 narraco tradicional das vidas ilustres, que privilegia os procedimentos retéricos, a exaltagao poéti- ca do eu, a hierarquizagao da escrita, a verificacao cientifica ou his- toriogrdfica dos “ditos” e apela, consequentemente, para sua leitura, a horizontes de expectativa, também canonizados. O corpus da andlise Se a nogao de espaco biografico me levara a delimitar um uni- verso, 0 que agora ia me conduzir & conformagao de um corpus era a focalizagao em narrativas mididticas e cientificas. Atenta ao “devir 26 Cespaso biogritico biogréfico” da entrevista na mfdia, e embora as ocorréncias desse tipo costumem acontecer em qualquer intercambio, considerei re- levante organizar um corpus com certa homogeneidade — tematica, pragmdtica, do tipo de suporte em questao —, tomando varias das principais antologias em livro — quer dizer, dotadas de uma “se- gunda vida” editorial — de entrevistas publicadas nos tltimos anos (com excegdes) disponiveis em nosso cendrio atual. Dessa selegao, recortei um conjunto de entrevistas com escritores, que considero duplamente emblematicas pelo mito da “vida e obra” e por se tra- tar de quem cria por sua vez relatos diversamente autobiogréficos, a que dediquei um capitulo em particular. Um corpus acessério, que avaliza algumas afirmag6es que dizem respeito ao campo cultural, est formado pelos suplementos culturais de trés grandes jornais (La Nacién, Clarin, Pdgina/12), numa periodizagao ampla, com intermi- téncias, que abarca o ultimo lustro. Finalmente, para a indagacao sobre relatos de vida, constru{ outro corpus de andlise; dessa vez, de entrevistas biogrdficas recolhi- das no curso de uma pesquisa sob minha orientacAo,? que adquiriam também desse modo uma “segunda vida”, para além dos resultados especificos que haviam langado naquele momento. Essa pesquisa abordara a questao de uma “meméria biogrdfica”, cuja marca pare- ceu operar como base da onda emigratéria que, nos tiltimos anos da década de 1980, com a hiperinflacdo, marcara 0 “retorno” de descen- dentes de italianos & terra de seus ancestrais. No presente trabalho, e sem desvio daqueles objetivos iniciais, os relatos selecionados vém responder, em alguma medida, as interrogages aqui apresentadas, vém dar conta de certos modelos coletivos, vam dar testemunho da deriva identitdria, dos mecanismos curiosos de “outorgar sentido” a uma vida por meio da narraco sob solicitagao académica. Mas nossa 2 A pesquisa Meméria biogrdfica e identidade foi desenvolvida no Instituto Gino Germano, da Faculdade de Ciéncias Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA), com 0 apoio da UBACYT, durante 0 periodo de 1991 a 1993. Apresentagio 27 releitura aponta, além disso, para outro dos objetivos de nosso traba- tho: a postulagao de uma perspectiva de andlise discursiva e narrativa original, que sugere a possibilidade — e mesmo a necessidade — de ir, numa materia sensfvel como a biogréfica, para além dos limites dos diversos enfoques conteudisticos. O caminho da pesquisa Qual a relevancia desse tema? Em que campos de questdes vem intervir e a partir de que rastros? Que objetivos, que contribui- Ges apresenta? Em primeiro lugar, sua formulagao mesma constitui uma contribuicgéo, na medida em que envolve uma combinatéria inabitual de aspectos e saberes. Efetivamente, minha perspectiva, que se apresenta como uma indagacao sobre a dimensao significante num horizonte cultural de- terminado, incorpora varidveis histéricas do campo da sociologia e da filosofia polftica, da teoria e da critica literrias, da linguistica, da semidtica, da pragmatica e da narrativa. E essa incorporagdo, em virtude de interesses e objetivos definidos, nao supe simplesmente uma “somatéria”, mas uma articulagdo, ou seja, uma busca reflexi- va de compatibilidades conceituais, em varios casos inovadora, que nao sutura evidentemente as diferengas. Essa perspectiva de andlise cultural se especializa, por assim dizer, no ultimo trecho do trabalho, como metodologia de andlise discursiva, apta a dar conta dos relatos de vida nas ciéncias sociais. Pontos de partida Na medida em que as formas que podem ser inclufdas no espa- ¢o biogréfico oferecem, segundo minha hipétese, uma possibilidade articuladora sincrénica e diacrénica, impée-se uma busca geneald- gica que — sem pretensao de “esséncia” ou de verdade — torna inte- ligivel seu devir atual. Essa busca conduz, de modo inequivoco, ao 28 Ocspaso biogrifico horizonte da modernidade. Efetivamente, é no século XVIII, com a consolidagao do capitalismo e da ordem burguesa, que comega a se afirmar a subjetividade moderna, por meio de uma constelagao de formas de escrita autégrafa, que sao as que estabelecem precisamen- te o canone (confiss6es, autobiografias, didrios {ntimos, memérias, correspondéncias), e do surgimento do romance “realista”, definido justamente como ficgao. O retorno a essas “fontes” do eu, a essas ret6ricas e valores talvez reconheciveis, nao s6 envolveu uma pers- pectiva histérica e sociolégica (Aris e Duby, [1985] 1987; Elias, [1977-1979] 1987), que recolhia também ecos de ancestrais mais re- motos (Santo Agostinho, [397] [1970] 1991; Bakhtin, [1975] 1978; Foucault, [1988] 1990), mas também abriu uma vertente dupla de andlise critica para meu trabalho: 1) as conceitualizagées filosdfico- politicas cldssicas em torno das esferas do puiblico e do privado e 2) as da critica literdria sobre as valéncias particulares desses géneros, sua distingao possfvel dos considerados “ficcionais” e a sobrevivéncia nas formas contempordneas. No primeiro caso, tratava-se de ir além da cldssica antinomia entre ptiblico e privado, em que um dos termos implica certa nega- tividade (Arendt, [1958] 1974; Habermas, [1962] 1990) para pos- tular, pelo contrdrio, um enfoque no dissociativo entre ambos os es- pagos, que permitisse considerar a crescente visibilidade do {ntimo/ privado — complexamente articulada, além disso, com a invisibilida- de dos interesses privados — nao como um excesso, uma causa desesta- bilizadora de um equilibrio “dado”, mas como consubstancial a uma dinamica dialdgica e historicamente determinada, em que ambas as esferas se interpenetram e modificam, sem cessar. Nessa dinamica, segundo minha hipstese, 0 biogréfico se define justamente como um espaco intermedidrio, 4s vezes como mediagio entre publico e privado; outras, como indecidibilidade. No segundo caso, tratava-se também de superar os limites de alguns estudos classicos sobre a especificidade da autobiografia (Sta- robinski, [1970] 1974; Lejeune, 1975), como eixo de um “sistema” Apresentagio 29 de géneros afins, pela confrontagao com outros paradigmas da teoria e da critica literérias, que nos permitissem chegar a uma definicao mais satisfatéria para nossos objetivos. J4 aludimos na secao anterior a diferenga qualitativa que supde nossa concepgio do espago autobio- grafico a respeito da de Lejeune. Completaremos agora esse tragado tedrico, no que constitui a segunda operagAo conceitual deste estudo. Articulagées conceituais No horizonte histérico do espago biogrdfico, marcado pelo gesto fundador de As confissdes de Rousseau, desenham-se tanto a si- Ihueta do grande homem, cuja vida aparece inextricavelmente ligada ao mundo e sua época (0 exemplo de Goethe, segundo Weintraub), quanto a voz autocentrada que dialoga com seus contemporaneos (leitores, pares) e/ou com a posteridade, nas autobiografias que apa- recem como “modelo” do género, mas também a errancia, 0 desdo- bramento, o desvio, a mascara, as perturbagées da identidade. E essa diversidade narrativa — e nado uma suposta homogeneidade genérica que opera como base de nosso espago — que, na medida em que pro- pomos incursionar em terrenos pouco explorados, requererd por sua vez novas “tecnologias”. Assim, nosso enfoque incorpora de maneira decisiva a teoria bakhtiniana dos géneros discursivos como agrupamentos marcados constitutivamente pela heterogeneidade e submetidos a constante hibridagao no processo da interdiscursividade social, e também a consideracao do outro como figura determinante de toda interlocu- gio. O dialogismo, como dinamica natural da linguagem, da cultura e da sociedade, que inclusive autoriza a ver dessa maneira o trabalho mesmo da raz4o, permite justamente apreender a combinatéria pe- culiar que cada uma das formas realiza. Por outro lado, a concep- ao bakhtiniana do sujeito habitado pela alteridade da linguagem, compativel com a psicandlise, habilita a ler, na dinamica funcional do biografico, em sua insisténcia e até em sua saturacéo, a marca da 30 Oespaco biogritico falta, esse vazio constitutivo do sujeito que convoca a necessidade de identificagao ¢ que encontra, segundo minha hipétese, no va- lor biogrdfico — outro dos conceitos bakhtinianos — enquanto ordem narrativa e atribuigdo de sentido a (prépria) vida, uma ancoragem sempre renovada. Essa interpretagao do paradigma bakhtiniano em virtude de meu objeto de estudo postula, além disso, a confluéncia de duas linhas do pensamento do teédrico russo que habitualmente nao sao consideradas simultaneamente: a do dialogismo e a das formas lite- rarias biogrficas,’ de corte mais filoséfico-existencial. Essa sintonia, plenamente justificada ao longo de meu trabalho, permitiu alcangar conclusées mais matizadas. Também a contribuigao de Paul de Man (1984), a respeito da ideia de um “momento” autobiografico, mais do que um “género” — como figura especular da leitura, suscetivel de aparecer em qual- quer texto —, foi objeto de reelaboracao, sobretudo para a apreensio dessa deriva de motivos e momentos, esses deslocamentos retéricos, metonimicos, que tendem ao biogrdfico sem “constitui-lo”, dinamica nitidamente perceptivel no horizonte mididtico, e que a entrevista transformou em procedimento habitual. Meu dominio de interesse integrou do mesmo modo outra vertente de grande produtividade, a da narrativa. No caminho mf- tico tragado por Barthes ([1966] 1974) € seus ecos estruturalistas e “pos”, efetuei uma leitura de Ricoeur (1983, 1984, 1985, 1991) centrada em sua analftica da temporalidade, sobretudo em sua visio do tempo narrativo e da funcdo configurativa da trama no relato (de uma vida), para confrontar seus postulados no funcionamento do espaco biogréfico, propondo da minha parte uma confluéncia com © paradigma bakhtiniano no njfvel da ética. Na mesma diregao, tra- 3 Nora Catelli (1991), por exemplo, deixa de lado explicitamente o dialogismo, utilizando em sua indagacao sobre a autobiografia apenas 0 segundo aspecto mencionado. Apresentagio 31 balhei seu conceito de identidade narrativa com relacao as diversas formas de apropriagao do eu e as posigées identitdrias construidas em meu corpus de andlise, o que supés um interessante campo de “prova” ¢ experimentagao. Foi precisamente a aposta ética da narra- tiva, levada a um grau maximo no registro biogréfico, que permitiu encontrar um nexo inteligivel para dar conta da “positividade” que assume, na reflexao contemporanea, a pluralidade das narrativas, en- quanto possibilidade de afirmagao de vozes outras, que abrem espa- Gos novos para o social, para a busca de valores compartilhados e de novos sentidos de comunidade e democracia. Definido 0 espago, interessou-me abordar o funcionamento cm particular de algum de seus registros. A escolha como objeto de estudo da entrevista mididtica enquanto devir biogrdfico, apesar de no ser considerada sob tal “especialidade”, foi inspirada por um trabalho anterior, onde analisara sua configurago enquanto género discursivo. Naquela etapa, perfilara-se a qualidade (inter)subjetiva do género, sua virtualidade biogrdfica, isto é, seu dom peculiar de induzir, mesmo direcionada para outros objetivos, a exposigao da in- terioridade, da afetividade, da experiéncia. Retomando esas linhas, aprofundei-me agora nos temas especificos apresentados aqui, cons- tituindo um novo corpus, que inclui um agrupamento particular de entrevistas a escritores. Essa ancoragem numa forma midiatica de tal relevancia quan- to ao prestigio institucional, aos puiblicos e as audiéncias me per- mitiu ao mesmo tempo deslocar certos acentos predominantes em algumas andlises sociolégicas ou mididticas sobre a expansao do pri- vado no puiblico, em termos de manipulacio ou sedugo, em direcio a. uma interpretagao mais matizada, que remete antes a um comple- xo — e contraditério — processo de reconfiguragao da subjetividade contemporanea. Assim, 0 espago biogréfico, tal como 0 concebemos, nao somente alimentard “o mito do eu” como exaltagao narcisista ou voyeurismo — tonalidades presentes em muitas de suas formas —, mas operard, prioritariamente, como ordem narrativa e orientagao ética

Você também pode gostar