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SOBRE DIREITO, CIENCIAS SOCIAIS E OS DESAFIOS DE NAVEGAR ENTRE ESSES MUNDOS: uma entrevista com Alvaro Pires // Alvaro Penna Pires!, Carmen Silvia Fullin, Ana Lucia Pastore Schritzmeyer’, José Roberto Franco Xavier’ Revista de Estudos Fmpiricos em Direito han Jourral of Empinieal Legal Studies vol 0.2, Jam 2015p. 226-248 Conhecido como um dos mais importantes pesqui- sadores da puni¢ao criminal contempordnea, Alvaro Pires teve 20 longo das iltimas trés décadas uma produce académica de suma relevancia para aque- les que tentam compreender a racionatidade dos sistemas penais. Titular da Catedra de Pesquisas do” Canada em Tradigées Juridicas e Racionalidade Pe nal e professor ha mais de 30 anos do Departamen- to de Criminotogia da University of Ottawa, Canada, seus trabalhos s40 um exemplo notavel de um olhar sociolégico sobre o direito que leva a sério a comple- xidade desse objeto de pesquisa. Nesta entrevista, ele fala de sua trajetéria académica entre o direito e as cigncias sociais e de como a questao da inteidisci plinaridade ¢ mais uma construgaa do pesquisador do que uma realidade ja dada sobre a qual ele se apoia, Trata também de algumas questées epistemo- \6gicas importantes, como os limites da observacio ientifica, a impossibilidade da pesquisa em mais de um quadro disciplinare as dificuidades que a dicoto- ia realismojconstrutivismo coloca para a pesquisa social. Comenta, por fim, as diffculdades tedricas da pesquisa em criminologia, ressaltando os problemas de uma critica pré-construida 226 ON LAW, SOCIAL SCIENCES AND THE CHALLENGES TO NAVIGATE THESE TWO WORLDS: an interview with Alvaro Pires // Alvaro Penna Pires, Carmen Silvia Fullin, Ana Lucia Pastore Schritzmeyer, José Roberto Franco Xavier 1n 3s one of the most important researchers of contemporary criminal punishment, his work is of the uttermost relevance for those who are interested in understanding the rationality of criminal systems. Professor Pires holds the Canada Research Chair in Legal Traditions and Penal Rationality and is 2 full professor at the Department of Criminology at the University of Ottawa. His works are a notable ex ample of a sociological look at law committed to the * complexities of this research object. In this interview, he talks about his academic trajectory between law and social sciences and how the question of interdis: Giptinarity is more of a construction on the part of the : researcher than an actual given reality. In addition, it touches upon relevant epistemological questions, such as the limits of scientific observatian, the impas- sibility of doing research in. more than one disciplin: ary framework and the difficulties that the dichotomy realism/constructivism poses for social research. Fi- nally, he comments on the theoretical difficulties of criminological research, highlighting the pitfalls of using a pre-constructed critique. Revista de Estudos Empiticos em Direito at Brazile, Journal of Erepiical Leaal Studies vo 1B, p. 22-248, José Roberto Xavi adeceros misis uina vee a gentite iste Que estemos no cintexto ae uma Revista 29 és. tudos Fmpiricosem Die esta enteavista é na pesquisa cue de nos cunceder esta entrevista, Tendo een vuinteresse ptioediat ocupa do dire Lo. 0 senhor tem formagao iniciat em diet, na antiga Universicade do Esta da Guat grtduagao em criminclogia, num departamento de ara, © tod a po ncias socials, na Universidade ce Mint pall Sua pes. quis € conhed 1 lancar mao de todo um eperato teériea da se ‘alogia, mas com grande interesse por algumes categorias do diteito penal. Digote di gustia que senkar nos coniasse un pouco sobre sua 0, 8U trajetaria académica e sobre as dilicu‘dadese virtudes de navegar entre o direito @ as ciéncias sciais, Eu sou da geragao dos anos 1960; 1968 foi meu pri- _meiro ano de universidode, na faculdade de direito Estévamos no Brasil, em um periodo absolutamente explosivo, e equele ano foi particularmente marca- do por grandes greves, manifestagdes e tudo. Na- quela époco, as faculdades de direito e medicine -e isso 6 curiaso - estavem 6 frente dos manifestagdes estudantis do Rio. Entdéo nesse contesto comecei a minha formagdo em direto. No comeco, ¢ isso & uma coisa muito estranha, es tava indo na direcdo do direito comercial e do dire {0 civil. Lembro que entrei num escritério de direito especiolizado em direito comercial. Eu até trobathei no caso do faléncia do Jornal Correia de Manha que era um jornal impartantissimo no Rio, No entanto, fui aluno informal de Roberto Lyra, que ja estovs aposentade, mas que animava na sua casa um pequeno grupo de estudantes que se interessavom pelo direito penal e pela criminologia. O Lyra me co locou em contato com o seu ftho, Roberto Lyra Filho, que ensinava fitosofia do direito na Universidade de Brasilia, Pouco @ pouro fui sequindo em dliregia ao ditelta penal Quando estova no terceiro ano de dieito, comecei 19 me formar como “estudonte livre" em sociologia nna PUC do Rio. Me juntei a movimentos de esquer da catélica liderados pelo padre Jodo Batista Libé- rio. Ele se tornou ropidamente uma espécie de guia intelectual e existencial para mint e muitos outros ‘amigos e amigas que faziam parte daquete grupo. Sobre direito, ciéncias sociais eos desafios de navegar fentre exzee mundos /Avs19 Penna Pires t a © Lyra Filho J me havia introduzido & filosofia do di relto; 0 Libanio me ntroduziv 6 filosofio e¢ teologia. Com esse grupo do Libénio, eu comecei a ter tant ‘bém uma fortissima farmagéo interdisciplinar, pois ramos jovens oriundos de varias disciplinas: cién clas saciais, direita, Hosofio, matemstice, biologia, medicina, engenharia, psicologia, servigo sociais, ciéncias das religibes e teologia, etc Gragas a0 Libs, pude também trabothar com 0 protessar Henrique Vaz, que naquela épaca exa tum expoente do conhecimento de Hegel no Arner a Latina tessa ocasido fu aluno e me eproxime também do protessor Pegro Demo, que hava feito o seu doutorado em sociologia neAlemanhe. Comele, foiintroducido 6 epistemologia dos céncias scias: aprendi um paico de ligica e o “método dioitico" fem ciéncins sociais. Ful introduzido tombém aos trabathos do fisico e filésofo francés Gaston Bache- lard, que acabou tendo um papel centrol na minho formacéo epistemoligica Quanda penso nisse tude hoje, chego a nao acre- ditar em todas as oportunidades que tive (e que soube oproveitar) para ter uma formagéo tao in: terdisciptinar justemente durante um periodo de ditatura, Porece até uma contradigao... Naque- a ép0ca, nos movimentos estudantis, emergiam também algumas leituras extrocutriculares que até poreciam leituras abrigatérias para todo mun: do, Liamos, é claro, Marcuse @ fvan ich, snas tam bem, no marxismo, Henri Lefebvre, Althusser, Pou: lamtzas, Garoudy, Erich Framm, Ernst Bloch, Rosa Luxembourg etc. No pensomenta estruturalista, liamos Levi-Strauss, que estova na snoda naqueta 6poca. Nessc fase ne Brasil, 1 tormém os primeiros trabathos le Foucault: A Arqueologia do saber, 0 Nascimento da Clinica, AVerdade © as Formas Ju- ridicas (este um texto chave paro mim que durante muita tempo sé existiu em portugues). No entanto, eu continuava dentro do direito penal nites vezes acompanhado pelo professor Rober- to Lyra Filho ~ com quem quardet, clés, urn conto- to epistolar durante muito tempo. Vim 6 conhecer tombém o professor Heleno Frogoso no Rio. Ficamos amigos e trocévamos ideios e trabalhos, algumas vezes até nos encontrando em coloquios. 228 Bom, dai houve raz6es pare salt do Brasil, Uma de- {os foi uma vazd0 politica: uma infiltragdo 0 nosso grupo de uma menina que era do BOPS, Quando ‘sso aconteceu, 0 Libanio me aconselhou a sair por- que eu era o segundo no grupo, logo depois dele. Ele me folou: “eu sou mais intocdvel, mas acho melhor vocé ir se refiigerai um pouco do laclo de fora’ Ent eu comecei a buscar botsas de estudo fora do pais. Possei num concurso na Alemanha e fui para uma formagao em seciologia do direlto por i6. Fiquei um ‘ano e acabei saindo pors 0 Canadd, onde fizo meu mestrado e doutorado na Escola de Criminologia da Universidade de Montreal, que estava inserida na Faculdade de Ciéncias Sociais (e noo na Faculdade de Direito). Eu nunca larguei completamente o estu- dodo direito, Peto contrario, intensifiquel minha for ‘magdo em teoria efilosofia de direito, emboro apes @ pés-graduagao tenha ficado claro pora mim que eu tinha me transformado em um pesquisodor de ci éncias sociais. Todo esse processo foi marcado pela contingéncia, pela sorte dos encontros com muita gente boo, ¢ muita coisa aconieceu de mgneira néo planiticada, As decisdes foram se encadeando em fungdo dos acontecimentos. Carmen Silvia Fullin: £ 2 passegern peta Alemanha? Achoquea possagem pela Alemanha teve uma influ éncia, mas nao sei descrever exatamente come, pois 86 ique um ana. claro, fu levado a aprender o le: ‘mao, €fs0 voi ter or 856 a sua imposténcia. Tinh ‘mut interesse tomibém em me encontror por com Alessandro Baratta, mas.esse encontro ccabou ndo ‘acontecendo naquele momento, Eu tinta tomade conhecimento da existéncia do Ba rota e havia me interessad em ler os seus trabalho, Pora mim, Baratia representava (e ainda represen- {0} 0 methor seflexdio maveista que jé houve no cam. po do criminologio. O New Criminology, de Tayor, Young et Walton, publicado na Inglaterra em 1973, constituia na época uma excelente critica do saber criminolégico anterior, mas no qué toca @ aplicacéo do marrisme, o livro era muito pobre. Temos que re conhecer que ndo era tampouco 9 seu tema. Mos Ba- ratta desenvolveu uma posi¢de muito mais fina com relagdo & contribuigdo dio interaciohismo simbéico eda perspectiva da etiquetagem que esses autores. Revista de Estudos Empiticos em Direito Braziien Journal of Empiniest Legal Studies vol 2.0.1 am 2035, p 226-248 For um copricho do destino (e uma sorte incrivel), virei aluno do Baratta ne Canadé, quando ele veio ser professor visitante e eu estova comecan- do 0 doutorado. Naquela época, @ Universidade de Montreal, em criminalogia, estava com uma abertura intelectual enorme, convidande muitos professores estrangeiros na vanguarda da discipli- na, Para dar uma ideia muito répida, nesses anos eu fui aluno de professores como Louk Hulsman, Christian Debuyst, um dos raros psicélogos criti- cos em criminologia nessa época, Philippe Robert, Claude Faugerén que trobalhava.com 0 Philippe ‘no CESOIP na Franco, ¢ 0 préprio Lode Van Outeive. Na Universidade de Montreal, fiz 0 meu mestrado ‘com um professor de crigem espanhola, Jose Ma- ria Rico, © 0 doutorade com Pierre Londreville que me introduziu a0 problema das prisbes, 6 questéo dos direitos dos presos (ele foi um dos percursores desse movimento no Québec) @ a grupos # asso- ciagées de ex-prisioneiros. Ful aluno em Montreal, de uma das primeiras professoras feministas em criminologia, Marie-Andrée Bertrand. Ela havia articipado do evento do fechamento da escola de criminologia em Berkeley por causa do nascimen: to da criminologia radical, era amiga do Anthony Platt, que eu conbeci mais tarde, e comecou a fa- er logo parte de uma espécie rara de teministas em matéria penal: daquelas poucas que ndo eram repressivas quando tratavam de temas como prostituigdo, violéncia contra as mulheres, etc. No €poca, Carol Smart (Inglaterra} e Dorothy Klein (Estados Unidos} faziom parte dessas excerdes eu aprendio teminismo com elas, A minha esposa, Colette Parent, também professora de eriminolo- gia na Universidade de Ottawa, passow pelo Uni versidade de Montréal naquela épaca e se tornou uma crimindloga feminista seguindo essa mesma orientacde, Bern, ai fiquei com o feminismo dentro de casa, mas numa perspectiva que ainda hoje & “peixe raro” na nosso campo, ‘Alem disso, durante todo o meu mestrade mantive trocas epistolares com 0 Roberto tyra Fitho. Eu the enviei a minha tese de mestrado que ele adorou € também outros trabothos de curso. Ele recebio, lio © mandava comentérios. Uma dessas trocos f0i até muita divertida e dev bastante “pano pra ‘manga’; no sentido de ter dado todos os elemen: 228 tes para uma viva discusséo intelectual entve més sobre a crininologia critica, sempre com esse pana do fundo de uma grande c solide amizede, mas ne plano intelectual, a troca de argumentos era fot sem concessdo. 0 ponto de partide foi justamente tum paper escrito pora 0 seminério do Bavatta fem 1978) com titulo “La criminologie 8 la recherche dée son objet: duatisme vs monisme critiques”. 0 Roberto néo se conformou com esse trabalho & chegou a publicar uma fonga carte que me escre- ve fe que quis que ficasse completamente andni ‘ma, embora eu 0 tivesse autorieado a me nomeat) Acarto saiu com o titulo “Carta aberta a um jovem crimindtogo” Esbe carta fol muito interessante e eu fiz tambem uma longa sespasta, mas como ficou decidido em favor do anonimato, nem me lembro mais 0 porqué exatamente, a resposta nunca foi publicacla, Claro, mais de 30 anos depois, ao me fembro de grande coisa. 56 me fembro que achet que ele nao havia percebido bem a minha hips tese central naguele paper. Lembro-me também que fiz uma critica 6 eriminologia marssta alems, excluindo 0 Baratta, e qué tratei da “invengdo do rime’ nos termos do Foucoult em A Verdade e as Formas Juridicas, 0 Roberto que era mais ligado a formasao dialetica hegeliana, me disse: “nao Alvo 10, estd muito cedo para trar essa conclusdo!" Me deu um esculacho histérico nessa carta, mas nada 4iss0 munca abalou nossa amizade, Dois planes a: ferentes. E eu'respondia e ele aceitava também discussio. Aprendi muito com ele. Entéo com Roberto Lyra, com Fragoso. eu conti nuei a trotar de direito penal, a ler dlireito pena Foucault talver também tenho me influenctado sobre iss0, porque ele trabsilhava sobve “sistemas, de pensamento” e sempre tomava Conhecimento da maneira de pensar do sistema sabre o qual ele estava trabathande mais especiticamente: a med: ina, @ psiquiatria (no caso da loucura}, etc. Achei entéo sempre importante conhecer as ideias do sistema social sobre o qual vocé est6 trabalhando,, © nisso @ pouca experiéncia profissional que tive em direito ojudou também, Eu fiquel, entio, nessa intersecgdo entre 0 direito pencil ¢ a sociologia. £ como se eu tivesse duas camisos. Quando eu falava com 0 pessoa! do direito, eles viam que ev conhe cia 0 direito ~ eu podia néio conhecer'uma ou outro Sobre direito, cigncias sociais e os desofies de navegat entre esses mundas (5.1500 Feni.a Pires et técnica com qualidade, mas estave perteitamente cloro que eu conhecio a maneira de pensor. Por utr lado, quondo eu estova em sociniogia, como eu tinha tido também uma formacao muito grande em sociologia - inclusive chegando a0 Conadé tui assistente de Guy Rocher, um grande sociotogo co nadanense, muito conhecido internacionalmerte e com tivtos publicados no Brasil -, eu estava com 0 conheciinento dentro da socialogia, ARK: NZa houve nenhum estranhamente nessa \ca de direito para uma faculdade de cene ‘Néo, nao tive estranhamento, tolvee por causa dessa historia todo de interdisciplinaridade. E ex jo tinha comesado no Brasil cursos de sociologie na PUC. Mas lembro-me que 0 Pedro Demo me disse quando ‘eu meus primeinos trabathos que eu ainda “escrevia como um jurista” e que tina que aprender agora a “escrever coma um socidiogo" Algo assim, mos eu entendio recade, Sobre isso, & claro, eu tive que me ‘adaptar e adquicir outra maneira ce me posicionar * e de escrever. Comecel a prestar atengéo na mane 10 pela quat os sociétogos e os filésofos escreviam e fiz até um coderno de expressées para me habituar ‘Quando terminava de escrever um texto, rea o meu caderno para encontrar autras maneiras de fosmmu- lor methor uma ideia e retocava 0 meu texto, Muito frabatho, mas eu queria me livrar do esti jurilco que consiste em escrever pora apresentar e defen der uma tese sem submetéla a uni exanie ciitico. Por outen fade, como bacharel em direito, ev tinka ‘gprendico 0 cihar os detaihes & a buscar a dar yin ‘Sentico mais preciso és frases, ¢ isso me ajudou em socioloyto. 0 fildsofo tombém faz isso, mas percebi ‘que musto sociéioga usa termios que sao importantes ora els sem se preocupar en precisaa sent, Foro esse esforco, « possagem foi felta suovemente, sem que eu percebesse muito ou tivesse clara consci- Encia do que estova se pasando. £ é claro que isso. _ndo significa que eu tivesse urn conhecimenta iguet ‘mente profurdo em cada disciptina que lia. 80 ro. ‘Mos em sociologia & nas questées do ebreito penal nos quais fui me especitlizando, o problema das pe- nas das tentavivas de reformt do dircito penal no Ocidente, asim eu tino um conhecimento cada vez 220 mois avongado, Como disse, em dlreito penat eu fiz ‘algumas éspecializacées, Por exemplo, eu abando: tei um pouco a teoria do itcito para me concentrar sobre as teorias da pena que me pareciam cada vez mais importantes para compreender @ aifculdede de evolugao do sistema de dlieito criminal, Sobre a tearia do illeito, tia de vez em quando um bom livro ‘ou tese de doutorado sobre o tema. A mesma coisa sobre processo pencl. A punicdio foi um dos tomas centrais da minha carreira académica, como voces sabem. A mina propria evolugdo intelectual na fon- ga duragdo ndo foi planejadl. Foi acontecendo. ‘Ana Lucia Pastore Schritzmeyer: Por mais cue haja varius prolissionais hoje ra intersecgao entre direito e ciéncias socials, parece ruido também por cada pesquis: turas em terrenos desconhecidos. Por mais que haja tliseptinas interdisciplinare gia do dire, sociblogia de direito, ete. ~ creio que uma boa forma: (G80 interdisciplinar continsa serdo uma construgao do intelectual, Parece-me que c serhor mais construiy 2 sua interdiscipiinardede do que se valeu do que ja estava construido, que ela é algo a ser cons for nas suas aven- centro Acredito que essas expressées néo indicom a priori interdisciplinaridade, mas sobretudo “sub-cam: pos’) “temas” ou “objetos” (para usar a linguo- gem tradicionol) de uma disciplina, As vezes até (0 maneira de abordar um tema, mas néo neces- sariamente a diseiplina. Isso & ats intrigante. Por exemplo, 0 Renato Treves, entre outros depois dele, assinalou que podemas encontrer uma sociologia do direito feita por sociologos, que ndo conhecem niuito 0 que os juristas escrovem sobre 0 direito, © 1ambém uma sociologia do direito escrita por juris: tas com conhecimentos, sociotégicos insuticientes. Isso néo significa que ¢ que cada grupo escreve io tenha interesse ou que esteja necessariamente ertado, mas simplesmente que o termo “sociologio do direito” varia e que o teimo “interdisciplinarida- de" se eplica mal nesses dois casos. Luhmann disse rambém em duas ocasides (mas com um sentido um pouco diferente} que havio duas sociologias do direito: uma sociologia do diseito com o direito {ele entrova nessa categoria) # uma sociologia do direito sem o direito. Nesse caso, 0 Luhmann esta- va se referindo a duas maneiras de tratar 0 direito Revista de Estudos Empiricos em Direito Brazilian Journal of Empincal Legal Del 2th 1, am 2035p. 226-248, dentro do sociologia, enquanto que o Treves esto: va distinguindo a “sociologia do diveito" feito pelos socidlogos doquela feita pelos juristas, ‘Uma outra coisa, Estou de acorclo com essa ideia que € 0 proprio académico que constr6i a inter disciptinaridade. a3 vocs sabe que “interdiscipli: aridade” é um medium que pode tomar varias formes. Eu vejo sopidamente wrés formas que sd0 reiteradas frequentemente. A primeira, como vocé disse hé pouro, pode desig- nar algumas “disciplins de encruzithada” nese caso vou dar 6 exemplo mais claro de criminologio. O termo se refere aqui a um circuito comunicacio nol especifico, que se formou em torno de um tema, Nesse circuito participam operadores vindo de di versas disciplinas ou horizontes, mas pressupde-se que todos conhecam ao menos 9 minimo do que 0s diversas disciplinos dizem, mesmo quando esse conhecimento chega perto de ser caricatural. Esse circuito regula as comunicagées em fungdo de cer tas regras. Por exemplo, quem se comunica nesse circuito ganha pontos quando néo é completa- mente ignorante sobre o que outras disciplinas fo- Jam sobre o mesmo tema; quando pode dizer como elas observam a que se passa nesse campo, etc. Nesse circuito, no é permitide se subtrair comple- tamente aos outros saberes ¢ ficar exclusivamente na sua disciptina, néo tanto do ponto de vista do que vocé escreve, mas do ponto de vista do que vocé conhece e que pode se prevenir ou se diferen ciar quando escreve. 0 observador que méo adere @essas regras aparece mal no circuit ou coma um outsider que pode até ter feito uma contnibuicoo fundamental, mas sobre quem vai ser dito, dentro do circuito, que “ele ou ela & 36 socidlega (s6 isso ou aquilo)’, “nda & um crimindtogo’ ete 0 segundo sentido de interdisciplinaridade se rex fere @ umo equipe de pesquisadores oriundos de diferentes disciplinas que rabolbam juntos numa mesma pesquiso ov sobre um mesmo tera, por tilhando os conhecinentos que cada um poss. Esses livros sobre a historia dos saberes sobre 0 crime e @ pena que escrevi com Christion Debuyst (psicélogo e jurista) e Francoise Digneffe (filosofiae sociotogia) € fruto de um trabatho interdisciplinar 231 (também) nesse sentido Note que alguns ou to dos 9s participantes padem ja passvir uma culture fo digo cultura prépria, estou querendo dizer que s6o divergentes do ponte de vista de cada particular Impliceide na equipe: 0 meu conhecimento do di Interdisciptinar propria @ cada um deles. Quay reito vai ser diferente do conhecimento de direito, do Christian que também estudou direito aiém da psicologio, sua disciplina de base. 0 terceiro sentido de interdisciplinaridade esse que voc’ esta buscando acentuor: ele se refere 0 interdisciplinaridade (ou nao) de cada observasor em particular. Alguns observadores passuem uma cultura interdisciplinar extroordinaria, por exe plo, Foucault ¢ Luhmana, gue vocés conhecem bem. Umberto Eco é outro exemplo. [sso néo signi fica que eles comunicam em virias disciplinas a0 mesmo tempo. Nem Luhmann nem Foucault comu: nicavom como psicélogos ou come historiadores, mos conheciam e podiom utilizar de olguma ma- zneira a psicologia e a histéria no que escreviom, Al guns podem até ter desenvolvido a copacidace de ‘mudar de papel: escrever és vezes como sociotogo ce outras como jurista, mas isso ndo é nem fécit nem frequente. 0 que eu faco és vezes é mudar 0 meu universo de referéncia. Quando estou faiando ow escrevendo sobretudo pare um pitblico de juristas (ou de sociélogos), eu adapto as minhas referén: clos literdrias, as minhas conexées de conhecimen: to, escloreso mois certas coises pora esse ou ug) le publico, etc. Mos perdi a habilidade de escrever como jurista no sentido proprio e néio sinto que te- inho maiso dirsite de me apresentar como “jurista' Se j6 tive isso, perdi, So escrevo como saciélogo. Lembro-me uma ver de umn comentario que um es tudante de direito colombiano me fee quando dei uma conferéacia numa faculdade de diretto em Bogoté. Ele me disse: “professor, é um tento estre- no, quando o-escutemos percebemos bem que o senhor conhece o direito eo nossa maneira de pew sar, mas percebemos também que o senhor nao é jurista, que 0 senhor nGo fala como nds do direito” Achei deliciosa e muite iastrutiva essa intervencaa fie, Poe, A Ps haba. 1.9 (es. Fy Sobre dircito, ciéncias sociais eos desatios de navegar fentre esses mundos /Alvara Perina Pires et al esse estudante. Levou mea tomar consciéncia do que havia aconte ALPS: Je gite se-veleu do que i estava const senor 6 is constram ainterdisciplin sridade Sim, sim, Exotamente, Hesse terceiro sentido &1ss0 que acontece. Mas fur também conticntado uma interdisciplinaridade fora de mim e até mes mo nos outtos. Por exemplo, comecel @ vatorizar 0 conhecimento indisciptinar que eu abservava emt ‘outvos autores. Também trabathel num circuito de comunicu¢do interdisciplinar: a criminologia, Era alte em equipes de pesquisa ou grupos de ester do interdiseiplinar. Ew ndo posso dor 0 peso exato de todas essas coisas. E claro que 0 que se passa dentro do nosso sisterma psiquico é sempre interno, rio tem jeito de escapar disso. Mas isso néo signi fica que ele seja tronsparente para nds mesmes. Se fosse 0 caso, a psicandlise pelo menos nunca teria existido, Além disso, hd uma forma de inter- dependéncia ede autossoctalizacdo com as nossas oxperiéncias é com o nosso ambiente Isso significa que a interdisciplinoridode que jé ests formada na comunicagdo conta muito para que eu me torne, dentro de mim, imerdisciplinert€ clara, eu posso fi car indiferente a essa interdisciplinaridaide externa ou posso assumifo a minho moneia, ALPS: 13 ai entio um lade criative importante Criotivo, sim, pois estamos sempre selecionanda 0 que nas aporece no horleonte. Captamas apenas una parte do que nos 8 dado, do que se encontra disponivel nas comunicarses das quais pesticipa mos (ao menos mo sentido de ser a leitor ou 0 ow Vinte, isto & aquele sistema psiquiea que compre endew uigo, bem ou sat, do que fol dito ou escrito Eu sempre digo aos meus estudantes, © voces jé escutorom isso varias vezes, que fer fora da disci plina © fora do compo de especializacie aumento 2 probabilidade da crictividade, da quatidade do produto que fabricamos, e também u probebilide- de de sair das “caixas ervumadin ros usuais de andiise’; para falar como Goffman, que toda prética profissionol ou acaclémies pro 105" on dos “qua: uz Iss0 ocone, entre outras coisas, aorque onde estomos & sempre um terreno muito batido ou po. 232 liciado por nos mesmas, o que fazcom que criemos hdibitos de ver e de refletr. Quondo voc’ sai e toca de ores, 6 como se estivesse fazendo uma viagem para ver outra coisa, Tem que ser essa a atitude, @ espirito. Ai, vocé pode voltar para o teu terrenocom elgo nove na méo, para continuar com essa met: fora. vocé node até ficar mais ropidamente cria tivo do que ficaria se x6 ficasse cavando do lado de dentro, Vacé volta com ideias novas que esto apa: recendo do lado de fore mas que ainda ndo esto dentro do terreno onde vocé trabatha, RK: E, ern que pese 2 interdisciplinaridade ea sua sé: lida tormagao em direito, seu ponte di da sociclogia ‘sim. Ecurioso, 6 como se eu pudesse ser, ou pudes: se ter sido, mas ndo sou (mais) jursta, Nossa “cul tura” numa disciplina é insuliciente para nos trans. formar num operador dessa dlsciplina. A maneira de comunicar ndo 6.@ mesma, nem mesmo quando ‘eu faco 0 maior dos esforgos dionte de um piblico Jurista que frequento muito e gosto muito, Na ver- dade, eu néo fago esforco para ser juristo; eu fago esforgo para ser compreendido pelos juristas, para eompreendé-los também, e para contribuir com uma reconstrugtio do direito criminal, ‘Mes, por outro lado, estou também convencido de que 56 esse jurista ou operodor do direito (premo- 10 juiz, edvogado) que talvez me escute pode real. mente-transformor 0 direito eserevendo e decidir do come jurista, Eu, de fora, 60 oss fazer isso. Eo limite da minha contribuigée, Es tenho que me encadear nele ou ele tem que se conectar de uma maneira ou de outra comigo, quero dizer, com 0 comunicagdo na qual participo. Mes 56 ele ou ela pode realmente reconstruir a direito, (sso nia se faz de fora, € 0 que nos ensina pelo menos a teoria dos sistemas de Luhmann e também Foucault. Observe isso: sou pesquisodor, operaderdo sistema ciéncia, @ sou professor, operodor em porte no sis- tema de educagtio, mas nao sou pecagoge. Quan- do estou refletindo sobre o programa universitério ‘onde trabatho, o tema central née éa ciéncia, mas 9 educagao. Entretanto, as minhas observacées como operador desse programa de educacdo ndo Revista de Estudos Empiricos em Direito jou ian Journal af Empirical Lega) Studles vo. 2,1, jan 208, p. 226-748 sdo uma reflexado como ela seria feito por um pe- dagogo. Ela é mais elementar, de base, como qual: quer operador que nao desenvolve umo reflexéo elaborada sobre o sistema onde trabalha, sobre 0 quadro de andtise onde esta inserido, E essa a diferenca que existe, num sentido inverso, entre © meu papel, de pesquisador dos quadros onde 0 diveito criminal esté inscrito, e © das jul 288, promotores e advogados que estdo operando dentra e, por assim dizer, na base desse sistema, Quando eles refletem, eles podem fazer duas coisa. Frequentemente eles vao fazer 0 que eu faco como professor: vao refletr a partir da experiéncia sobre © que estdo fazendo, a partir da experiéncia que fam Note que eujé néo posso fazer issoem relagtio 20 direito, ndo do mesmo jelto, nao com uma ex periéncia operacional semelhante. Para levor em conta isso, tenho que oprender com eles. F claro, se 0s jurstas reservarem tempo e energia ‘para isso, eles poctem tombém, em grous diversos, refletir sobre o quadro de onélise do sistema onde esto. Nesse caso, cles se aproximam de mim, tl ve2 nde fazende pesquisas, mas lendo pesquisas € teorias ¢ fazendo uma reflexto orientada na mesmo diregdo. Alguns fazem efetivamente isso, 0 que & excelente, inclusive para 0 qualidade do trabatho profssional dees. Mas note que, nesse ponte, eu estou em posicdo mais confortavel pos so refletr sobre o quadro.no qual eles operam mais focilmente do que eles, por ter mais tempo e mais recursos materiais, Emotivamente, eu também es- {ou maislivre eu menos potencialmente omeacado polo que vou pensar. Esso que queremos dizer em etodologia quando recomendamos tomer wma certa distancia do seu tema. Trata-se de fazer um esforco para néo se sentir brigade « pensé-a jé ‘numa forma condicionad, bem enquadrada e ob: ter.uma espécie de liberdade emotiva pora nao de Cidir mentalmente muito rapidamente © que esté corto ou errado 0 socidlogo olemdo Simmel falova nessa necessi dade de quardar um “elemento fro" para tratar do nosso temo. £ a comtribuigaa que posso fozer para eles, como os pedagogos fozem para mim quando eu sigo seus cursos de formagéo ou leio os seus 238

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