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CULTURA 1 i x FILME & CULTURA se propée a contribuir para o debate e 2 informacio sébre os diversos problemas do Cinema — compreendidos em sua acepeio mais ampla — inclusive como comunicacio com outros setéres da cultura. A revista, editada através de convénio entre 0 Grupo Executivo da Inddstria Cinematografica (GEICINE), do Ministério da Indis- tria e Comércio, e o Instituto Nacional de Cinema Educative (INCE), do Ministério da Educacao e Cultura, pretende inserever-se no con- texto da maior participagio federal no desenvolyimento do nosso cinema: seu primeiro nimero yem a piblico no exato momento em que o INCE diversifica e amplia a sua linha de producio de filmes, ¢ 0 GEICINE se ordena para ceder lugar ao Instituto Nacional de Cinema. Fiel ao conceito da universalidade do e:nema e integrando os problemas da producio brasileira na perspectiva dessa visio maior, FILME & CULTURA espera somar esforcos no sentido de contribuir substancialmente para o pensamento ¢ a acio brasileiros no setor. Flavio Tambellini 2 Ss 15 21 23 27 39 41 45 S52 55 61 62 FILME & CULTURA 1 A Acéo do INCI Definicao e Filmog afia de 1965-66 O Névo Cinema Brasileiro (Ely Azeredo) O Ator ¢ 0 Realismo do Cinema (Iuiz Carlos Maciel) Imagem Exterior O Mito e as Multidées (Hélio Pellegrino) O Espectador (Siegfried Kracauer) Capitais Para a Produgao A Propésito do “Cinema-Verdade” (Sérgio Augusto) Trés Conceitos Sociais do Cinema (Jacques Deheinzelin) Filmes Brasileiros Lancados em 1965 (GB) Cinema e Fotografia (B. J. Duarte) Instituto Nacional de Cinema Cronologia da Acto do GEICINE A pintura de Mério Gruber vista pelo realizador Rubem Bidfora © INCE tem por finalidade basica produzir e adquirir fil mes e diafilmes para distribui- los, em regime de empréstimo, ou fornecer cépias a prego de custo, a estabelecimentos de ensino e entidade congéneres. Mobilizar, pois, recursos e esforgos para’ ampliar rapida- mente o seu acérvo de filmes ¢ diatilmes, visando ‘@_consti- tuir uma Filmoteca rica em niimero e qualidade, é a ta- refa mais importante do INCE. Deduz-se desta diretriz que a ampliagdo da Filmoteca, através de uma politica inten- siva de produgéo de filmes se- ria algo falaz; a produgio de ‘um filme com finalidade real- mente educativa implica em complexidade de elaboracdo e em volume de aplicagio de re- cursos que limitariam o INCE ‘um ritmo insuficiente de en- riquecimento de sua Filmote- cai no maximo vinte filmes por ano: ‘A alternativa & a aquisicio de filmes em outros paises, in- cluidos 0s direitos de gravi~ Jos om portugués e de editar as ebpias que forem necessirias a0 servigo de distribuicio a es- colas e entidades congéneres. Filmes realizados com re- cursos, experiéncia € assesso- ria superiores aos que o INCE poderia dispor — porque tra- duzem um contexto de produ- dio educativa bem mais sedi mentada e ampla que a bras Teira — a sun aquisi¢ao impli- ca em_custos bastante a | siveis, fornecendo a solugdo de quantidade, qualidade, versati- lidade ¢ urgéneia necesséirias para ampliacio da Filmoteca. | Mas, ainda que o INCE puzesse de recursos de grande yulto para a produc de fil mes e diafilmes, nfo seria 1 cidamente admissivel que abi easse da absoreao da experié cia artistiea © cientifiea de outros paises. No setor da realizagio de filmes é antes, mais impor- tante que 0 INCE aborde 03 assuntos que, por sua nature- za ou oportunidade de produ- dio devam ou possam ser rea. fizados por equipes brasileiras, ¢ filmes que estimulem 0 aper- A Acao do INCE feigoamento ¢ a dilatagio de horizontes da nossa produgao de curta-metragem. Essa orientacio geral_ vem sendo seguida e deverd ser con- solidada em 1966, mas nis implica em inflexibilidade dos- mitica: a produgio de natureza diditica nao perdeu em imps taneia, como pode exempl car a série de filmes e diafilmes coloridos sob o titulo de «O Alfabeto Animado», que ab- sorverai um quarto dos recursos destinados em 1966 A producto de filmes ¢ diafilmes, isto é uma importineia equivalente ao preco de aquisigfio de quinze filmes em cOres, inch despesas de sua’ gravagio em portugués. © INCE esforea-se, neste setor de producio, para atingir objetivos varios, embora cor- rendo riscos, a fim de: oferecer no maior mimero possivel de novos elementos oportunidade de criagao; diversifiear a natu- veut dos assuntos ¢ a técnica de realizagio; aproveitar 03 valores de areas mais amplas da vida cultural brasilei Mas, além da producho, aqui- sigh © distribuicio de filmes e diafilmes, 0 INCE deseja langar-se_com maior ambicdo do trabalho 20 estudo e debate de problemas de cultura. Com @te fim, além de lancar a re- vista «Filme & Cultura», cria condigies para que a sua im- portante Biblioteca seja_efeti- vamente aberta ao ptiblico, e clabora um programa de proje- qées de filmes e debates de matéria artistiea e edueativa em seu Auditério, Em suma, éstes so os polos da agao atual do INCE: am- pliagio dos seus recursos 0} camentirios, ativacio do re- equipamento téenico © da fun- lade de suas instalacd 0 e ampliacho de sia produgio, aquisi¢ao ¢ dis- ‘tribuieao de filmes e diafilmes, estimulo © receptividade as i quietagées erindoras, no senti- do de dimensionar em novas bases a priitica do cinema como instrumento de ensino e de ex- pressiio cultural. 1965-66 Filmes Prontos ‘A Linguagem da Danca, Dire- ‘go de David Waisman. Préto- €-braneo Mirio Gruber, Direedo de Ru- bem Biéfora, Eastmancolor. Inflagio. Directo de Jorge Bastos. Deserhho animado em jastmaneolor- ‘ma Alegria Selvagem. Dire~ gio de Jurandyr Passos Noro- nha. Préto-e-braneo. A Pressa do Futuro. Diresio de José Tilio Spiewak, East- maneolor © Monumento. Direcio de Ju- randyr Passos Noronha. Préto- e-branco. Fabulas.. Direcio de Antnio Du'pin Calmon, Carlos Frede- rico de Oliveira e Rubem Riehter. Kodachrome. Rio — Uma Visio do Futuro. Diregio de Xavier de Oliveira. tmancolor Construgio ¢ Montagem do Reator Argonauta. Direcao de Manoel Ribeiro. Préto-e-branco. 0 Primeiro Salto. Direcio de Tony Rabatoni. Eastmancolor. Hipertrofia Maméria. Direcio de M, Soares Maia, Kodach- rome. Semiologia Neurolégica — Al- terages da Marcha. Diregio de B, J. Duarte, Prdto-e-branco. Baia de Guanabara, Documen- trio de montagem ‘a cargo de Gilberta Mendes, Préto-e-bran- Segunda Guerra Mundial. Doeumentiirio de montagem a cargo de Alberto Salva Contel, real zado com material de cine- jornais «Fox Movietone». Pré- to-e-branco. Em Filmagem Velhas Fazendas Mineiras. Di- reco de Humberto Mauro. Préto-e-branco. A Cabra na Regiio Semi-Ari da. Direcfio de Rucker Vieira. Préto-e-braneo. ‘A Linguagem do Teatro. Di- reco de Jofo Bethencourt. Préto-e-branco. Ble e 0 Rabiseo Flora Castafio Ferre de marionetes em lor. Em Montagem Mariké. Dir Heina Férthmann, Eastmancolor. Fala Brasilia. Diregdo de Nel- io de Padre José de Anchieta, diafilme do Instituto N: cional de Cinema Edu- ative son Pereira dos Santos. Préto- ‘ol_no Labirinto. Directo de Ferando Coni Campos. East mancolor, Em Preparo 0 Milagre do Desenvolvimento, Direcao de Alain Jaccoud. Préto-e-braneo Misiea Popular Brasileira (ti- tulo provis6rio). Ruy Guerra, Isei, Nisei, Sansei. Alfredo Sternheim A Casa (titulo provisério). Be. nedito Astolpho de Mello Araujo. Filmes e diafilmes sob o titulo © Alfabeto Animado. Doze de~ senhos animados e uma série de diafilmes, em cores, sobre o mesmo tema. Em prepara- cao Filmes Adquiridos Vida Cientifiea: Reagdo em um Animal Simples, Daxwin’s Finches Anfibios: Ras, Sapos e Sala- mandras. Asterdides, Cometas e Meteo- ritos. Descobrindo a Cor. Como Exploramos 0 Espago. Descobrindo a Perspectiva. 0 Que Hé Sob o Oceano, A Exa do Dinossauro. Nascimento e Morte de Mon- tanhas. ‘Terremotos e Vuledes. Cavernas ¢ Géiseres. Fésseis Silo Interessantes. Christmas Cracker. Climas da América do Norte. Origens do Tempo. A Flor e as Abethas © Milagre da Eletroniea. Artieo Selvagem. Vida na Mata. A Neve. Vida no Pantano. Anfibios. ‘Animais Vertebrados. Sistema Cireulatério. Aparelho Digestivo. Como as Plantas se Reprodu- Sistema Nervoso. Aparelho Reprodutor. Corpe Humano: Sistema Ner- voso Teorema de Pitigoras © Esqueleto. Vida Microse6pica. Germinagdes de Sementes. Deeadéncia do Império Roma. no. ‘Leis da Conservacio da Energia e da Matéria. Calor: Natureza da Propaga- cao Navegagdes Expanholas e Por- ‘tuguesas. © Homem Pré-Histérico. Roma Anti © Clima do Mundo em Que Vi vemos. Estr€las e Sistemas Estelares Historia da Chuva. Coragao, Pulmées Vida Aquatica. . © Corpo Humano Disseminagio das Sementes. Célula: Unidade Estrutural da Vida Vuledes Nosso Planeta em Transforma. cao. reulagao. Diafilmes Prontos: © que é 9 Pintura. Em edres. Texto de Geraldo Ferraz. Arguitetura.” Em ed res. Texto de Geraldo Ferraz. Expressionismo. Em_eéres. ‘Texto de Geraldo Ferraz. Expressionismo, Fovismo @ Cubismo. Em edres. Texto de Carlos Cavaleanti Outras Eseolag. Em c6res. Texto de Carlos Cayal- anti. Arte primitiva, Texto de Ro- herto Cardoso de Oliveira. @ a Pstcandiise. s. Texto de Car los Cavaleanti intura Moderna no Bra- sil. Em céres. ‘Texto de Carlos Cavaleanti © Trabalho Indigena. Texto de Maria Luiza Fénélon Gosia Yonne de Freitas Leite. A Pintura Impressionista — Origens. Em cores, Texto de Carlos Cavaleanti Rengio ao Impressionismo. Em ¢6tes. Texto de Car- los Cavaleanti. © Sangue. Texto de Rubem Pina Rodrigues. Padre José de Anchieta Texto do Padre José da Frota Gentil, 8. J.,¢ Vietor Zappi Capucei. Defesa do Territ6rio — In- vasées Francesas, ‘Texto de Vietor Zappi Defesa do Territério vasées Holandesas, de Victor Zappi Capac: Regido Nordeste. Texto de Arthur Bernardes Weiss. Regiao Centro-Oeste. Texto de Arthur Bernardes Weiss, Classificacdo das _Plantas. Texto de Alfredo Peres A Lopes. Protozodrios — (2) Classe Mastigophora ou Flagella- ta, (3) Suctoria e Ciliata. (4) Sporozoa. © Som na Linguagem Hi mana. Texto de Roberto Cardoso de Oliveira. Compreensio. do Cinema Texto de Mauricio Rittner ‘A Revolucio Francesa. Co- ordenagio de Fernando Amaral, Em Preparo Tnconfidéneia Mineira, Vietor Zappi Capucei. Em Estudo Rogiflo Leste. Emanoel Leon- tsinis. jo Sul. Emanoel Leont- José Bonifacio Ri Versdes em portusués editadas pelo INC! Charles Darwin, Produgio da UNESCO. © Mar. Em _cdres. Pro: ducio da UNESCO. Leonardo Vilar: A Hora e Vex de Augusto Matraga, de Roberto Santos O Névo Cinema Brasileiro Ely Azeredo Afigura-se fruto de uma visdo néo- ufanista, a afirmacao, freqiiente entre muitos cineastas brasileiros, de que o jovem cinema assegurou uma posicdo de éxito como fato cultural entre os Produtos de comunicagées de massa. Curioso notar que as obras cinemato- graficas mais afinadas em forma e es- Pirito com a cultura brasileira (Vidas Sécas, Deus e 0 Diabo na Terra do Sol) tiveram uma aceitagao de publico pe- quena — principalmente se pesarmos as pressées promocionais sébre o puibli- co ¢ a sintonia com preocupagées poli- tico-sociais dbvias do momento —, en- quanto realizaces muito sensibilizadas por influéncias estrangeiras (Os Cafa- jestes, Noite Vazia, Assalto ao Trem Pagador) gozaram de estima popular se inscreveram entre os éxitos co- merciais mais significativos do periodo. Um dos filmes que melhor configura. ram 0 didlogo espectador-espetaculo ¢ que representou 0 papel de bandeira de festival na Europa e América, O Pa- gador de Promessas, era a versio quase cem por cento fiel (o autor, Dias Go- mes, também funcionou como adapta- dor) de um texto que ja conhecia notavel popularidade nos palcos, che- gando, inclusive, a gozar de encenages no Exterior. Seria falacioso reivind car para um cinema de pretensio autoral a mise-en-scéne de Anselmo Duarte, artesanalmente viva e comuni- cativa, mas cujos escassos elementos de criagao nao podem ser defendidos como tipica manifestagéo cultural bra- sileira. Os slogans podem servir as ofensivas promocionais e publicitarias, mas nao devem turvar 0 ato de pensar o cinema brasileiro e pesar as suas reais oportu- nidades de ‘desenvolvimento cultural ¢ industrial. A comercializagao do filme brasileiro ¢ exigua no Exterior e peno- sa do mercado interno. Um dos filmes brasileiros premiados em mostras in: ternacionais foi vendido a um. pais latino-americano de bom mercado ci: nematogréfico por importancia equi valente ao custo de duas cépias. Uma das produgdes mais apreciadas por varias areas da critica brasileira, teve, em média, durante sua primeira sema- na de exibicdo em circuito, na Guana- bara, doze espectadores por sessao. Outra produgao modesta em suas am- bigdes espetaculares, mas de séria pre- tensao critica no terreno social, nao obteve de renda bruta, no Rio de Ja- neiro, quantia capaz de cobrir seus gastos de publicidade relativos ao lan- gamento. Como base de afirmagio fu- tura, conviria ao Névo Cinema Brasilei- ro encarar friamente no espélho das reacGes de massa, sua figura de Janus: a face positiva, de procura nos terrenos da linguagem e da tematica adulta; ¢ a face negativa, representada pela in- compatibilidade da maior parte de suas realizacées com os apetites e a capa- cidade de assimilacao do ptiblico no campo do espetaculo. Inegavelmente, porém, os cineastas mais empenhados de 1962-1966, embora nao tenham afixado marcos de transito livre e seguro em seu mercado-base — o mercado interno — efetuaram uma guinada histérica. A benevoléncia no uso do carimbo de “Boa Qualidade” por parte da Censura continuou a con- fundir, & sombra da legislacao prote- cionista, o melhor ¢ o pior da producao, que permanece assombrada por incur- sdes de aventureirismo e amadorismo. Mas foi definitivamente exorcizado o complexo de inferioridade do publico que, antes, deleitava-se em exibir, nas salas que projetavam filmes estrangei- ros, sua sofisticagao de consumidor de produtos importados. Escrvendo, ha poucos anos, sébre o tratamento mar- ginalizante que o cineasta brasileiro sofria por parte dos patronos ou usu: rios da cultura no Pais, Walter Hugo Khouri (1) frizava que tal desprézo nao poderia ser atribuido apenas a baixa qualidade da producdo; lembra- va a existéncia de “algo mais profundo G...) radicado no publico ¢ na elite”, porque o espectador ria de qualquer situagio um pouco falsa na producao local, mas nao reagia da mesma forma ante uma situacio andloga em filme estrangeiro. O “sucesso de certos fil- mes intiteis e de certas comédias ca navalescas” teria explicacio no fato de que, nesses casos, 0 ptiblico nao preci- sa fazer esférco para ridicularizé-lo: “tudo ja esta feito no proprio filme; ja ha a atmosfera de incoeréncia, estu: Filme & Cultura O Névo Cinema Brasileiro pidez e vulgaridade”. Em resumo, observava Khouri, “a auséncia de am- bigdes da obra nao vai contra o re- céndito complexo”. Intimeros fatores alteraram a imagem publica da entidade “cinema brasileiro” nos ultimos quatro anos: a crescente popularidade da televisdo, atraindo gratuitamente e sem solicitar o senso critico do espectador, 0 monopolio da chanchada; a mistica do “Cinema No- yo”, complexa, promocional e polémica, fascinando camadas_intelectualmente mais desenvolvidas ou agitadas do pu- blico (especialmente dos jovens) com a reivindicacéo do status de autor para © diretor de filmes, sob inspiragao da “Nouvelle Vague” e do Néo-Realismo Italiano, e com a abordagem de temas reivindicados pelo reformismo social, principalmente entre as “esquerdas”; a lenta e inexoravel elevacdo do nivel técnico dos filmes, conseqiiéncia da maturacao dos elementos que se benefi- ciaram do aprendizado junto as equipes cosmopolitas da fase Vera Cruz/Maris- tela/Multifilmes, buscaram in loco a experiéncia européia (IDHEC, Centro Sperimentale di Cinematografia de Roma, etc.) e sentiram, na produgao independente, a necessidade de conhe- cer um pouco de cada setor da produ- cio; o aperfeicoamento, ainda que Iento e problematico, do quadro de atéres, beneficiado sobretudo pela evo- lugéo do teatro brasileiro; as re- percussées de mais de trinta prémios em mostras internacionais ; os esforcos da critica e do cineclubismo na divul- gacio do melhor cinema estrangeiro, classico e moderno, especialmente atra- vés de festivais ¢ ciclos restrospectivos ; e a propriedade com que 0 GEICINE colocou na érbita das preocupacées de Govérno os problemas de cinema, ori- ginando inclusive, através do “Plano de Fomento ao Cinema no Estado da Guanabara” (2), 0 essencial da politica io de a Indastria Cinematografica, Grgio do Govérno do Estado da Gua- nabara). Se lembrarmos que o movimento francés conhecido como Nouvelle Vague nunca se explicou devidamente aos olhos do puiblico e de grande parte Filme & Cultura | © Névo Cinema Brasileiro da critica no Brasil, e que, ainda hoje, € citado a propésito de um ou outro filme de dificil rotulagem, sera mais facil avaliar a confusdo reinante nos festivais ¢ orgaos de critica internacio- nais a propésito do chamado “Cinema Névo” brasileiro. Mas ¢ inegavel a im- portancia atribuida, nos ultimos anos, via criticos e mostras, ao Novo Cinema Brasileiro, que se apresenta ao exame dos estudiosos e festivaliers em um momento de estagnagao do poder cri: dor em diversas reas de produgdo. Se excetuarmos os movimentos reno- vadores dos cinemas italiano e francés, assim como a revelagao do cinema ja. ponés ao Ocidente — acontecimentos de outra ordem de profundidade e amplitude — veremos que o impacto brasileiro junto a consideraveis porcdes da critica’ estrangeira se rivaliza com a descoberta dos cinemas da Polénia e da Tchecoeslovaquia, supera a das “novas ondas” sueca e argentina, e ainda a do Free Cinema inglés e da Escola de Nova York. (Estes dois ulti- mos mobilizaram entusiasmo critico muito limitado e cédo perderam o ale- gado teor de “novidade”). Nao muitos filmes brasileiros obtiveram no Exte- rior uma consagracio generalizada, mas € animador verificar que, mesmo quan- do recebidos com restrigées rigorosas, éles ganharam qualificacao de “ vadores”, “estimulantes”, “vigor etc. Amplia-se a convicgao de que o Névo Cinema Brasileiro tem uma gran- de abertura para o futuro. SEMENTES Da reagao as sujcicdes empresariais do “cinema de grandes estudios’, exem- plificado pela Vera Cruz, surgiu em 1955 Rio, 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, que sé teria programacao em 1956, apés longa batalha de Censura, Obra de estréia, ja no primeiro contato mostrava que o cineasta aprendera por alio a ligao néo-realista de Cesare Zavattini e hoje s6 resiste & andlise sob o prisma de nossa pequena historia do cinema. Formalmente, atendia mais a inspiracio do filmecrénica tipo Domenica d’ Agosto (Domingo de Verao, 1949) — género que permitiu efémera supervalorizacao de Luciano Emmer — do que ao “didlogo” zavattiniano com a realidade. “A caracteristica mais im- portante, ¢ a mais importante inovagao do chamado néo-réalismo” — dizia Zavattini — “é haver compreendidg que a necessidade do argumento era um modo inconsciente de disfarcar uma derrota humana, e que a espécie de imaginagio que supunha era uma sim- ples técnica de aplicar férmulas mortas a fatos sociais vivos”. (NR — Esta negacéo do “argumento” como estru- tura-essencial seria mantida, com outras ressondncias, & base de todo o cinema moderno, que propde um cine- maexpressdo contra um cinema- veiculo). Defendia também Zavattini a suficiéncia da realidade olhada “di- retamente”: “a tarefa do artista nao é emocionar ou indignar as pessoas com situagdes metaféricas, e sim fazé- las refletir (e, se quizerem, emocionar- se e indignar-se também) ante o que os outros fazem, ante o real, exatamente como é” (3). (NR — Os grifos sao nos- sos). Na década antecessora do “Cine- ma Novo", tivemos mais duas tentati- vas de aplicagao da poética zavattinia- na no cinema brasileiro: o melodra- matico_e primario Agulha no Patheiro, 1953, de Alex Viany; mais préximo do “carioquismo” da chanchada do que do carbono néo-realista; e O Grande Momento, de Roberto Santos, 1958, que permanece, guardadas as propor- se ressalvadas as deficiéncias de base, o melhor exemplar brasileiro das virtudes e limites do “didlogo” teoriza- do pelo co-autor de Umberto D. Mas Rio, 40 Graus, por seu valor de ruptura com as limitagdes do cinema encarcera- do nos esttidios (limitagao da liberdade do autor, “glamourizacio” da realida- de, roteiro rigido, impostagao do elen- co profissional estabelecido, etc) e pelo desafio superior de autenticidade can- dente alcangado em algumas cenas — choque da visao nua da realidade que © cinema italiano experimentou com Roma, Cidade Aberta (1945) ¢ Paisd (1946) — exerceu uma influéncia decisi- , sem paralelo possivel, para a eclo- sao do que, em 1962, seria rotulado “Cinema Névo”. Infelizmente, os pre- conceitos do “real exatamente como ¢' turvariam durante alguns anos o espiri- to pioneiro de Nelson Pereira dos San- tos, prendendo-o ao projeto de uma tri- logia que (sem a realizacao de Rio, Zona Sul) s6 teria realizada sua segunda eta- pa, Rio, Zona Norte (1957). Os dois primeiros filmes de Nelson Pereira dos Santos multiplicaram em um plano de incultura cinematografica (deficiéncia, entao, generalizada) os erros do “zavat tinismo” visto em seus componentes mais indesejaveis: 0 social-sentimental, o fragmentarismo, a desconfianga em relac&éo A imagem construida. A aber- tura para a critica social era nado sé corajosa como também vitalmente ne- cessaria a um cinema que vinha enclau- surando o drama em ficgoes melodra- maticas, porém, j4 em Rio, 40 Graus, a inspiracéo esquerdista se manifestava (as vézes, verbalmente, nos didlogos), através de palavras de ordem, de forma arbitraria, generalizando as virtudes dos pobres e a vilania da burguesia. Até nos melhores filmes que a orto- doxia do movimento admite como cria- Ges do “Cinema N6vo” — Vidas Sécas, Deus e 0 Diabo na Terra do Sol — a mensagem falada se intrometeria como se os realizadores considerassem nece: sArio, acima de seu talento, uma espé- cie da atestado de ideologia. Um predecessor esquecido do Névo Cinema Brasileiro é O Grande Momento (1958), crdnica de costumes em térno de um casamento no contexto popular do Bras (bairro de Sio Paulo) — pro- duzido por Nelson Pereira dos Santos, mas escrito (em colaboragao com Nor- berto Nath) e realizado pelo estreante Roberto Santos. Nenhum maniqueismo nessa tentativa zavattiniana, banhada também, em seqiiéncias de suspensio do racional (a embriagués da festa nupcial) por influéncias satiricas de René Clair e da comédia primitiva americana. A adesdo de Roberto San- tos a autenticidade de atitudes de seus protagonistas nao lhe inibiu a critica. Evidentemente, Roberto Santos assimi- lou Zavattini muito através da gcnero- sidade de De Sica: os élans du coeur falam mais do que o cdlculo, mas a pobreza nao isenta os personagens de atitudes menores. Filme & Cultura O Novo Cinema Brasileiro Zavattini enquanto — apesar do han- dicap negativo de certos preconceitos estéticos de rapido envelhecimento abria caminhos para o cinema de Michelangelo Antonioni e Marco Bel- locchio: “A camera, em verdade, tem tudo a sua frente; vé as coisas e nio 0 conceito das coisas”. Ao lado e além da influéncia-matriz zavattiniana, O Grande Momento tem instantes de forca cinematografica que credenciavam Robertos Santos &@ aven- tura do Novo Cinema Brasileiro. Por exemplo: o cérco do devedor no parque de diverses, com sua comunicabilida- de sensorial dos planos longos, da ce- nografia realista, da musica circense. Outro homem-equipe dessa fase, Walter Hugo Khouri, realizaria, também em 1958, com Estranho Encontro, a mais expressiva e inquietante premonigao de um cinema moderno por nascer em nosso Pats. Dificuldades de produgao que impediam o desenvolvimento de certas idéias do roteiro, a inadequagio de quase todo o elenco a um cinema introspective, choques de concepgao ¢ estilo por conflitos de influéncia (Berg- man, néo-expressionismo americano) deixaram Estranho Encontro em frus- tacéo parcial, mas Khouri dvangou ni- tidamente alguns passos na Area da observacao intimista-existencial hoje re- presentada com maior destaque por obras de Louis Malle (Feu Follet/Trin- ta Anos Esta Noite,/1963) e Antonio- ni (La Notte/A Noite/1961). Formal- mente, alguns excessos ornamentais ex- pressionistas vinculam sua realizacdo a um cinema superado, mas o uso de tempos mortos (4) (rf. Fellini, Berg- man), a expressiva vinculagdo’ psico- légica aos cenarios, o tratamento geral- mente depurado dos personagens (em- bora deficientes e falando péssimos didlogos), estabeleciam uma ponte para o futuro. Dizlamos a propdsito de Na Garganta do Diabo (1960): “Em Khouri, a atmosfera, os cendrios nela impregnados, e a construgao dos per- sonagens sao os elementos primordiais. A acho vem depois e a tendéncia natu- ral do cineasta é minimizéla”. Ao admitir, em A I/ha (1962), uma inflagao do elemento-histéria ¢ a diluigio dos Hime & Cultura O Novo Cinema Brasileiro personagens pelo excesso de figuras em tela, Khouri conheceria sua primei- ra grande frustragao. Voltando & con- centracao e 4 depuragio em Noite Va- zia (1964), o autor chegaria a um pice de organicidade e poder de comuni- cacao. RUPTURA Em 1960/62, imimeros fatéres se conjugavam pressionando por uma ruptura com os conformismos do pas- sado; sentia-se um clima de otimismo, um suspense criativo. Jovens egressos dos cineclubes, das polémicas que le- varam os reclamos do cinema nacional as paginas das publicagées culturais e suplementos literdrios, formados nos cursos do IDHEC (Institut des Hautes Etudes Cinématographiques, Paris) ¢ Centro Sperimentale di Cinematogra- fia (Roma), originarios da critica ou dos cineclubes, experimentados na as- sisténcia de diregao (tanto dos filmes sanais” cariocas, como da produ- cdo em série dos chamados “grandes esttidios” paulistas), forgavam de varias maneiras as portas da criagdo cinem: tografica. Os preconceitos de alguns contra a critica po- dem ser facilmente desautorizados pela consulta ao gigantesco dossier de im- prensa que’ veiculou e debateu as in- quietagdes e as reivindicacées dos jo- vens cineastas. Em nenhum outro pais (pois na Franca a Nouvelle Vague teve seu grande patrocinio nas revistas es- pecializadas e semandrios) a imprensa didria dedicou tanto espago a fase pré natal de um movimento cinematogra- fico. Outra idéia insustentavel é a que vé no éxito dos novos diretores mai penhados a liquidagdo da chanchada: (5), Também seria fruto de wishful thinking apontar um esgotamento da chanchada como género de espetculo, pois a inércia cultural das massas que ela parasitava persiste. O sub-género praticamente desapareceu porque: (a) a televisao oferecia — até pelo sedenta- rismo e informalismo possibilitados por seu tipo de recepcao — condigées ideais para veiculélo; (b) a alta nos precos dos ingressos retirou 0 ptiblico da con- dicao de absoluto descompromisso em relagao ao nivel espectacular do filme. © névo veiculo passou a apresentar, gratuitamente, o mesmo tipo de comi. cidade simpléria e de mumeros de canto e danca sem inventiva, oferecen- do inclusive maior variedade de elenco (igualmente recrutado no radio e no teatrorevista). Alias, a forga sempre crescente da televisio impée aos ci- neastas brasileiros um desafio ao qual 0 nivel de produgio de seus filmes, em geral, ainda nao respondeu licida- mente. Langado um grande mimero de se- mentes positivas, a colheita desejada nao poderia falhar — a nao ser que a hora historica nao fosse propicia, como nao o era na segunda metade da déca- da de cinquenta, quando, frustrados os sonhos “hollywoodianos” do zénite in- dustrial Vera Cruz-Maristela-Multifil- mes, cineastas possuidores de qualida- des para a realizacdo de filmes procura- ram um certo grau de independéncia em relagao as formulas do comércio cinematografico, sem perderem de vista 03 objetivos de entretenimento do ci- nema-espetaculo. Podem ser lembradas aqui personalidades muito diversas, como Oswaldo Sampaio (A Estrada/ 1956), Galilleu Garcia (Cara de Fogo/ 1958), Rubem Biafora (Ravina/1958), Walter George Durst/Cassiano Gabus Mendes (O Sobrado/1956), mais uma vez Durst (assinando sdzinho a direcao de Paixéo de Gaucho/1958), Carlos Alberto de Souza Barros/Cesar Memolo (Osso, Amor ¢ Papagaios/1958), além dos j4 citados Walter Hugo Khouri (cujo primeiro filme foi produzido, com interrupeoes, de 1951 a 1953: O Gigante de Pedra) e Roberto Santos (em aprendizado de cinema, em fungées varias, desde 1951). Um paralelo breve com o cinema francés: a Nouvelle Vague s6 eclodiu em 1957/1959, embora Alexandre Astruc tenha feito sew pri- meiro impacto em 1951 (Le Rideau Cramoisi), Jean-Pierre Melville a partir de 1945/1947 produzia “fora dos mé- todos tradicionais” (6), Agnes Varda impressionou a critica a partir de 1954/1955 (La Pointe Courte), Alain Resnais comecou a impor um estilo Filme & Cultura em 1956 (Nuit et Brouillard, Toute la Mémoire du Monde), Louis Malle ex- perimentou pela primeira vez a longa- metragem em 1955 (co-realizador de Le Monde du Silence, com Cousteau), Roger Vadim se lancou em 1956 (Et Dieu Créa la Fenune). “E inegavel que a maior parte dos cineastas que cs- trearam a partir de 1945 (NR-René Clément, Georges Rouquier, André Michel, por exemplo), viam no. cine- ma algo mais do que uma profissao: um meio de expressio de possibilida- des multiplas. Ambicionavam (...) colocar em seus filmes um universo pessoal (...)”, disse Jacques Siclier. (7), Mas no era chegado 0 momento, No Brasil, fracassadas as formulas de “grande estudio” e da meia-conces- sao, transferida a chanchada para a TV, nao havendo exigéncias sindicais de equipe minima e similares, a pressio intelectual pré-realizagio de filmes de ousadia tematica e modernidade for- mal acabaria por fascinar alguns pro- dutores estabelecidos e por langar ele- mentos nao-estabelecidos na profi : As bases de producao seriam muito modestas, quase cooperativas, como em Os Cafajestes (1962), do estreante Ruy Guerra, produzido por um ator ainda obscuro, Jece Valadio — filme que re- fletia sobretudo a influéncia francesa (além de Antonioni) s6bre o cineasta formado pelo IDHEC; ou seriam am- biciosas, como no caso de O Pagador de Promessas, produzido por Oswaldo Massaini, egresso da chanchada. Com suas virtudes e acertos, O Pagador de Promessas demonstrava o grande nu- mero de ingredientes dispares que, na “hora da soma”, produziriam o auspi- cioso e desconcertante Névo Cinema Brasileiro — ou o “Cinema Névo”, como querem, promocional e¢ tribal- mente, os que prefeririam, na “soma”, eliminar parcelas pouco sintonizadas com sua posi¢ao politica ou com seus humores estéticos. “Nao € por acaso” —lembrou Alex Viany (8) — que O Pagador de Promessas reune um diretor paulista, ex-gala da AUlantida e da Vera Cruz, com um escritor baiano, tarim- bado em radioteatro, e um ator pau- lista do TBC” (NR — Leonardo Vilar, O Novo Cinema Brasileiro decisiva para o éxito do filme, no papeltitulo, que, a rigor, su- portava toda a estrutura um pouco ar- tificial e mensageira da peca de Dias Gomes). O cardter forgosamente hete- rogeneo do Névo Cinema Brasileiro, sobreviria de produtos como o filme de Anselmo Duarte, reflexo da “expe- riéncia coletiva de muita gente, em muitos anos de erros” (9), e da audacia experimental dos recém-chegados (im- portante lembrar ao lado de Ruy Guer- ra, seu co-argumentista Miguel Torres, desaparecido em um acidente pouco depois) formados sob as mais diversas influéncias estrangeiras — o Paulo Cesar Saraceni de Pérto das Caixas/ 1963 (decepcionando apés o promissor Arraial do Cabo/1960, realizado com © fotégrafo Mario Carneiro), 0 Leon Hirszman do curto (10) A Pedreira/ 1960 (correto exercicio de inspiracdo formal cisensteiniana), 0 Joaquim Pe- dro de Andrade de Couro de Gato/ 1960 e Garrincha, Alegria do Povo/ 1962 (renéclairiano no curta-metragem, procurando em seguida aclimatar 0 ci- néma-vérité no que resultou em expres- siva e desigual cine-reportagem), o Roberto Farias de Assalto ao Trem Pa- gador/1962 (povoando de personagens ¢ situagdes muito brasileiros um filme de figurino-base americano), e, sobre- tudo, o Glauber Rocha de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), artista maior que ainda nao se anunciava no demagégico e cadtico Barravento, de 1961. A partir de Vidas Sécas (1963) obra de serena seguranga formal, cujo impacto humanista pode ser compara- do ao de The Southerner (Amor & Ter- ra/1945), de Jean Renoir, — e, princi- palmente, ao surgir com Deus ¢ 0 Diabo na Terra do Sol um cinema de simula cultural, mas também de invencao e revolugao em seus sentidos mais am- plos e liberat6rios, a producdo_ bra leira ganha um feto de dificil ultrapas- sagem pelos seus cultores. Noite Vazia, mais do que abertura de novos hori- zontes, 6 obra de consolidagao e¢ depu- racio do cinema de Walter Hugo Khouri. Levando ao maximo o dificil Filme & Cultura uw O Névo Cinema Brasileiro bindmio introspecedo-comunicabilidade ao transmitir um drama de alienagio, o cineasta reafirmava a importdncia ca legitimidade de sua visio universal dentro do panorama brasileiro. Como Khouri, outro precursor do Névo Ci- nema Brasileiro, Roberto Santos, se beneficiaria da decolagem do cinema brasileiro em meios técnicos, em tarim- ba de equipe, ¢ até em elenco, a fim de dotar de impacto formal e interiori- dade sua versao de A Hora e Vez de Augusto Matraga, de Guimaraes Rosa. Nao nos estendemos sdbre éste filme e nos limitamos a registrar as auspicio- sas estréias de Luiz Sérgio Person, com Sao Paulo Sociedade Anénima (1965) e Walter Lima Junior com Menino de Engenho (1966), por falta do distancia- mento necessario & avaliacao das po: sibilidades désses talentosos realiza- dores. LIMITACOES As principais limitagGes ao desenvol- vimento do Névo Cinema Brasileiro resultam principalmente da posigao dos que se subagrupam, com uma série de atitudes tribais, sob o rétulo arbi trario e discriminatério de “Cinema NT a) Insistem na tecla da incompatibi lidade ou penosa co-existéncia do cha- mado “cinema de autor”, independente socialmente responsavel, com os re- quisitos da estrutura industrial. (Hi mais de duas décadas, pondo em térmos limpidos uma idéia origindria do silen- cioso, disse Luigi Chiarini: “O filme € uma arte, o cinema é uma industria” (11), Agindo em consegiiéncia, conhe- ceram a plena realizacao e planetar zacio cineastas como Chaplin, Lang, Fellini, Kazan, Visconti, Kurosawa, Godard...). b) A fobia frente a colaboracio e: trangeira, atualmente, por razdes de interésse imediato, um equivoco em eclipse parcial. (Essa tendéncia chega a negar o valor da colaboragio multi- nacional no quadro europeu) ; c) O médo do cinema-entretenimento, quando a experiéncia de todos os cen- tros de producao — inclusive da URSS. € outros paises da drea de influéncia soviética — indica que nenhuma indtis- tria cinematografica sobrevive exclusi- vamente numa dieta de filmes amargos, “sociais” ou confessionais ; d) O tropismo pelo pensamento mo- nolitico, de coloragao ideoldgica inva- ridvel, que pode ser responsabilizado, por exemplo, pela insisténcia e pela colocagao monocérdia do tema do “mis- ticismo”, responsavel por alguns dos mais lamentaveis insucessos de bilhe- teria. O BLOQUEIO CULTURAL O ser ante 0 mundo e nao o ser ante a visao particular do mundo que deter- minados set6res ideoldgicos alimentam. Por colocar-se assim, em seus persona- gens e suas imagens, Walter Hugo Khouri se viu hostilizado desde o infcio de sua obra entre os muros de um guéto de vagos preconceitos, acusado de insulamento e alienag&o. Defenden- do Noite Vazia, tivemos oportunidade de lembrar Jean Leirens (12); “.., na maior parte das pessoas, a negagdo ou a afirmagao dos valéres espirituais age, em realidade, a um nivel de profundi- dade, de intimidade pessoal, que é fre- qiientemente independente das opcdes inerentes a vida social. Esta exige res- postas precisas, enquanto a dtivida e a contradigao se estendem ao mais pro- fundo de nosso ser. Podemos até dizer que a concepgao que temos do amor, da beleza, etc, nos engaja muito mais profundamente, so infinitamente mais sclarecedoras quanto verdade funda- mental de nossas opgdes do que tudo © que desagua no dominio sempre flé- cido e elastico das opinides, profissdes de fé, atitudes sociais, etc”. Também sem respostas precisas, banhado de du- vidas, extrovertendo contradigoes, mos- trouse Luiz Sérgio Person em Sao Paulo Sociedade Anénima. Entre outros pontos de encontro com Khouri, 0 es- querdista Person, comovedoramente fiel a si mesmo até nas hesitacGes e nos momentos de hermetismo de seu filme, tinha a virtude de sugerir, no pouco que informa dos personagens (como Khouri em Estranho Encontro, Noite Vazia) “uma grande massa de tumulto exi tencial, desencontros emocionais e alienagio social — a tragica indefinigao dos que ndo optam nunca” (13), No entanto, como pode verificar quem se dé ao trabalho de examinar o dossier de imprensa de Sao Paulo Sociedade Anénima, os rarissimos pontos de cri- tica social engagée déste filme foram colocados sob uma lente de aumento, a fim de que Person pudesse ser catalo- gado, ja no berco, entre os “cinemano- vistas” que minimizam o conflito tragi- co entre o ser e o mundo total. “O filme é uma arte, o cinema é uma industria”. Chiarini demonstrou que, separar nitidamente a arte ¢ a indus- tria significa defender as razdes de uma ¢ os direitos da outra. “A razao artis- tica tende a diferenciar um filme do outro, a industrial tende ao opésto, isto é, a uniformiza-los” (14), No “Ci- nema Névo”, a politica, responsavel pelo complexo anti-industria, tem, pa- radoxalmente, contribuido para unifor- mizar o espirito dos filmes, e a atuar como instrumento insidioso de aliena- sao, sobrepondo o “engajamento” do autor as razdes dos personagens © as ressonancias mais vastas dos temas. Ao fugir ao “fantasma” do cinema- industria e aos véos da “excessiva”’ liberdade autoral, o “cinemanovista” busca refiigio no receituario de certe- zas oferecido pelo marxismo através de seus intérpretes menos categoriza- dos da frente interna. Expondo aos razées do intelectual e do democrata contra “o bloqueio cultu- ral” (15), escreve Adonias Filho que, “ao inundar (...) de liberdade a no- velistica e a dramaturgia, convertendo- as em elementos de fermentagao junto a receptividade”, a imaginagao “ja demonstra que, como parte da fungio mental, nao permite a sujeicao ao to- talitarismo ideoldgico. Resiste e, resis- tindo, demonstra pela resisténcia sua vinculagao no processo revolucionario. O estado de guerra entre a inteligéncia e a ideologia, talvez encontre na imagi- nacao a arma mais poderosa — dentre os componentes psicoldgicos intelec- tuais — com que a arte acaba por derrotar a ditadura”. No mesmo capi- tulo em que enfatiza a dadiva da tecno- logia e dos processos industriais do ci- nema na luta contra os obscurantismos, acrescenta Adonias: “Alargando a in- Filme & Cultura © Novo Cinema Brasileiro telectualizacao na receptividade e, dés- se modo, ampliando os contatos entre ela ¢ o intelectual, o cinema — que se converte em novo impulso democratico precisamente porque hipertrofia o en- contro da arte com a receptividade — revaloriza a imaginacao criadora. E a revaloriza porque, uma conseqiiéncia da tecnologia e da organizacao_indus- trial, exige a imaginagao ficcional como matéria-prima indispensavel. (...) O que importa considerar-se, nas relagdes da arte com a tecnologia (...) ¢ que, pela primeira vez, uma industria de enorme penetragao coletiva depende da imaginagao criadora”. E acrescenta: “O bloqueio cultural, atingindo a ima- ginacdo que move o cinema — 0 cine- ma que visualiza a imaginagao para a receptividade —, corrompe a matéria- prima como se Agua fosse colocada no petréleo. E a imaginacao em sua liber- dade criadora como exige sua operacao psicoldgica, definitivamente acima da ideologia imposta pelo bloqueio cultu- ral, que, caracterizando o cinema como arte; assegura o encontro com a recep- tividade”, O grande esférgo do intelec- tual, do inovador, “quase um estado de guerra em busca de reconhecimento, pela receptividade”. Mas a receptivida- de — aduzimos com o dbvio — nao pode ser delimitada, planificada, pelo intelectual ou artista. Os que assim procederem, ja estao conspurcando o instrumento capital para encontré-la — a liberdade. No panorama sem fronteiras do Novo Cinema, o “cinemanovismo” — carre- gando na pritica e na apressada teo- rizagio os germes de sua propria de- terioracao — opera, em parte, como arma de um blogueio cultural. ino- vador que pretende circunscrever seus objetivos e manietar a critica de seus métodos e metas é um personagem em contradigao. Superar esta contradigao ecaminhar para a receptividade de uma cultura nacional incipiente e logicamen- te sob influxo da cultura em suas cons- tantes universais, ¢ 0 caminho para que 0 “cinemanovismo” se realize como inovagdo e corresponda a expectativa daqueles observadores estrangeiros que nao pretendem investir seu prestigio em uma efémera moda de festival. Filme & Cultura O Novo Cinema Bra Notas 1 Walter Hugo Khouri, artigo para Cinema Brasiliano, publicago paralela & retros- pectiva do cinema brasileiro realizada junto & Resenha do Cinema Latino-Americano, San- ta Margherita-Ligure; Silva Editore, Itdlia. (2) Revista do Geicine, n° 1, 1961. (3) Cesare Zavattini, Revista del Cinema Italiano, It, dezem- bro, 1952. (A) A propésito de Noite Vi zia, lembramos que 0 emprégo dos tempos mortos <é 0 cor respondente do. suspense nos filmes de angtistia existencial» © «pode ser visto como uma constante do cinema moderno, atuando eomo fator de dois efeitos s6 aparentemente con- traditérios: a sintonia com a tensio do espectador, da qual resulta ofendmeno projecio- identifieagdo que nenhum filme pode dispensar por inteiro sem riseos de inocuidade; © a dis. taneiagio, que deve conduzir & reflexiio © A oportunidade de auto-anilise>. Jornal do Brasil, 1-4-1965. (5) Note-se que tanto o pro- dutor de O Pagador de Promes- sas, Oswaldo Massaini, como 0 de Assalto ao Trem Pagador, Herbert Richers, patrocinado- res de chanchadas, ja estavam desiludidos com a rentabilidade do géncro, (6) Jacques Siclier, Nouvelle yague?, Editions du Cerf, ris, 1961. 47) Ibidem. (8) Alex Viany, reportagem Cinema Novo, Ano 1, revista Senhor, 1962. 13 (9) Tbidem. (10) Um dos filmes eurtos que integr Favela, produgao do Centro Po- pular de Cultura, 1962. (1) Lui Capi Italiane, 1941, (12) Jean Leirens, Le Ciné- ma et la Crise de Notre Temps, Editions du Cerf, Paris. Cit, Jornal do Brasil, 3-4-65. (18) Ely Azeredo, Sie Paul Sociedade Andnima, Jornal do Brasil (14) Luigi Chiarini, Cinque Capitoli Sul Film, Edizione Ita- liane, 1941. (15) Adonias Filho, 0 Blo- queio Cultural, Livraria Mar- tins Editdra, 1964, Chiarini, Cinque Film, Edizione A atriz Barbara Laage, premiada na Mostra Internacional de Veneza com A Respeitosa, de Pagliero, ¢ a principal intérprete de O Corpo Ardente, de Walter Hugo Khouri, autor e produtor de Noite Vazia O Ator e o Realismo do Cinema Luis Carlos Maciel - Desde que Pudovkin, no seu trabalho classico sébre O Ator no Cinema, exa- minou o problema da interpretacao ci- nematografica a partir de uma com- paracio com a arte que € sua anteces sora direta, a interpretagdo teatral, todas as tentativas de definigéo do ator especificamente cinematografico apoiam-se sébre suas diferencas do ator de teatro. A maior parte da conversa fiada sObre o assunto também emprega © mesmo método. As diferengas ser- vem para uma hierarquia, cujos tépo ¢ base dependem do lado da brasa do expositor, principalmente se éste for um ator. Cada um puxa a sardinha para a sua. Os de teatro, muitas vézes, desprezam os de cinema que nao: sio, segundo éles, atores a rigor, mas meros bonecos nas maos dos diretores. Os de cinema pintam seus colegas do palco como caricaturas exageradas da diva ao velho estilo, cujas principais carac- teristicas seriam as vozes demasiado altas e os gestos demasiado largos. A verdade, porém, freqiientemente ar- redia & vaidade humana, é que os ver- dadeiros atores, ao contrario désses ingénuos polemistas, honram tao bem © teatro quanto o cinema, encarando- os como dois meios de expressio nos quais sua capacidade criadora pode ser igualmente exercida, desde que observadas as necessdrias diferengas de procedimento. Um bom ator de teatro ha de ser invariavelmente um bom ator de cine- ma e vice-versa. Os talentos e qualida- des exigidos, num e noutro caso, so praticamente os mesmos. Em ambos, & necessdria a capacidade decisiva de projetar para o espectador, com a maior riqueza e complexidade possi- veis, um personagem imagindrio, usan- do-se a voz e o corpo, isto é, traduzin- do-se fisica ¢ concretamente seu com- portamento. Quem o conseguir num meio de expresso, em principio tam- bém o conseguira no outro. Os atores de teatro, quando cedem a polémica, afirmam que existem muitos truques capazes de falsificar uma interpretacéo no cinema. Mas também os ha no tea- tro ¢ as falsificagdes sé iludirao os dis- traidos. De sua parte, os atores de

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