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Colegdo Vanguarda Teérica Dirigida por Luiz Felipe Baéta Neves Da mesma colegao: ‘0 COMBATE DOS SOLDADOS DE CRISTO NA TERRA DOS PAPAGAIOS Colonialismo e Repressdo Cultural Lulz Felipe Baéta Neves, MICHEL DE CERTEAU Procedencia MPRA A ESCRITA DA HISTORIA Tradugdo de: Maria de Lourdes Menezes Revisdo Técnica: Arno Vogel PRESERVE SUA FONTE | DE CONHECIMENTO: | 2@ a iii Sees BIBLIOTECA CENTRAL PUL-RS: ficidade do espago que temos 0 dieito de exigir dos administradores atuais”; permitir “uma critiaa radical dos conceitos operatérios do urbanis- mo”; ¢, inversamente, com relagdo aos modelos de uma nova organizagéo Gspacial, dar conta de resisténcias sociais pela andlise de “‘estruturas pro- fundas de evolugdo lenta”””, Uma tética do desvio especificaria a interven ‘gio da historia, Por sua vez, a epistemologia das ciéncias parte de uma teo- ria presente (na biologia, por exemplo) e reencontra a hist6ria sob forma daquilo que ndo era esclarecido, ou pensado, ou articulado outrora™. O passado surgiu ali, inicialmente, como o “ausente”. O entendimento da historia estd ligedo a capacidade de organizar as diferencas ou as auséncias, ertinentes ¢ hierarquiziveis porque relativas as formalizagdes cientificas atuais. Uma observagio de Georges Canguilhem sobre a historia das cién- cis” pode ser generalizada e dar a esta posigdo de “auxiliar” todo 0 seu aleance. Efetivamente, a hist6ria parece ter um objeto flutuante cuja determinagdo se prende menos a uma decisgo aut6noma do que 0 seu in- teresse ¢ & sua importincia para as outras ciéncias. Um interesse cientifico “exterior” & hist6ria define os objetos que ela se dé e os objetos para conde se desloca sucessivamente, segundo 0s campos mais decisivos (socio- logico, econdmico, demografico, cultural, psicanalitico, etc.) e conforme as problemiticas que os organizam, Mas 0 historiador assume este interes: se, como uma tarefa propria no conjunto mais amplo da Pesquisa. Crio, assim, laboratérios de experimentagfo epistemologics®®. Na verdade, nfo pode dar uma forma objetiva a estes exames, a ndo ser combinando os modelos com outros setores da sua documentapio sobre uma sociedade, Daf o seu paradoxo: ele aciona as formalizagées cientificas que adota para experimenté-las, com os objetos ndo-cientificos com os quais pratica esta cexperiéncia, A historia nfo deixou de manter a fungdo que exerceu duran te séculos por “raz5es” bem diferentes e que convémn a cada uma das cién- cias constitufdas: a de ser uma critica. 5. Critica ehistéria, Este trabalho sobre o limite poderia ser observado alhures, © nfo apenas onde recorte 208 “fatos” historicos ou tratamento de “modelos” tebricos. Desde j4, entretanto, aceitas, estas poucas indicagdes nos orien- tam para nma definigsa da pesquisa inteira. A estratégia da pritica histé rica implica um estatuto da histéria. Ninguém se espantard com o fato de que a natureza de uma ciéncia seja o postulado a exumar dos seus proce- 90 dimentos efetivos, e que este seja o tinico meio de os tomar precisos. Na falta do que, cada disciptina seria identificével com uma esséncia, do que be presumira que ela se coloca em seus avatares técnicos sucessivos, que ela sobrevive (nfo se sabe onde) a cada um deles, e que tem com a pritica _apenas uma relagdo acidental. “XO breve exame da sua prética parece permitir uma particularizago de trés aspectos conexos da histéria:a mutagao do “sentido” ou do “real” na produglo de desvios significativos; a posigéo do particular como limite do pensivel; a composi¢ao de um lugar que instaura no presente a figura- io ambivalente do passado e do futuro. 1. © primeito aspecto supde uma mudanca completa do conheci- ‘mento histérico desde hd um século. Hé cem anos este conhecimento re: presentava uma sociedade a maneira de uma meditagfo-compilagfo ‘de todo o seu devir, E verdade que a hist6ria era fragmentada numa plurali- dade de historias (biolégicas, econdmicas, lingilfsticas, etc.)". Mas, entre ‘estas positividades despedacadas, como entre os ciclos diferenciados que 8 caracterizavam, a cada uma, 0 conhecimento histérico restabelecia 0 ‘Mesmo pela sua relago comum com uma evoluedo. Esta recosturava, pois, descontinuidades, pecorrendo-as como as figuras sucessivas ou coexisten- tes de um mesmo sentido (quer dizer, de uma orientagio) e manifestando ‘num texto mais ou menos teleol6gico a unicidade interior de uma direg0 (ou de um devir™, ‘Atualmente 0 conhecimento histérico ¢ julgado mais por sua capaci dade de medir exatamente os desvios -- no apenas quantitativos (curvas de populagio, de salérios ou de publicagoes), mas qualitativos (diferengas cestruturais) ~ com relagdo as construgdes formais presentes. Em outros termos, conclui com aquilo que era a forma do incipit nos relatos hist6- ricos antigos: “Outrora ndo ert como hoje.” Cultivada metodicamente, esta distincia (“nfo era...”) tomousse o resultado da pesquisa, em lugar de ser seu postulado e sua questo. Da mesma forma por hipdtese, o “sen- tido” ¢ eliminado dos campos cientificos ao mesmo tempo em que estes sto constitufdos. O conhecimento histérico fez surgir, no um sentido, mas as excepies que a aplicagio de modelos econdmicos, demogréficos ‘ou sociolégicos faz aparecer em diversas regi6es da documentagéo. O tra balho consiste em produzir algo de negativo, ¢ que seja ao mesmo tempo, significativo. Ele € especializado na fabricagdo das diferencas pertinentes que permitem “criat” um rigor maior nas programacOes ¢ na sua explora- ‘do sistemética, 2. Proximo deste primeiro aspecto, o segundo refere-se ao elemento a1 7 aN ‘a0 qual se fez, com razo, a especialidade da hist6ria: 6 particular (que G. R Elton distingue, com justeza, do “‘individual”), Se ¢ verdade-que o parti- ccular especifica ao mesmo tempo a atengdo e a pesquise hist6ricas,isto ‘io ocorre enquanto seja um objeto pensado, mas pelo contrério, por ‘estar no limite do pensivel. Néo & pensado senfo universal. O historiador se instala na fronteira onde a lei de uma inteligibilidade encontra seu limite como aquilo que deve incessantemente ultrapassar, deslocendo-se, e aquilo que néo deixa de encontrar sob outras formas, Se a ‘‘compreenso” his- térica nfo se fecha na tautologia da lenda ou se refugia no ideol6gico, ters ‘como caracteristica, ndo primordialmente, tornar penséveis séries de dados ttiados (ainda que isto seja a sua “base”), mas nifo renunciar nunca d rela edo que estas “regularidades” mantém com “particularidades” que lhe es- ‘capam. O detalhe biogréfico, uma toponimia aberrante, uma baixa local de salirios, etc., todas estas formas de excegdo simbolizadas pela impos- tancia do nome préprio em histéria, renovam a tensSo entre 08 sistemas explicativos e o “isto” ainda inexplicado. E designar isto como um “fato” nfo 6 sendo um modo de nomear o incompreendido; é um Menen e nao um Verstehen. Mas é também manter como necessirio aquilo que ¢ ainda impensado™. ‘Sem diivida & preciso ligara'esta experiéncia o pragmatismo que vela em cada historiador, e que o leva t20 répido a expor a teoria a0 ridiculo. ‘Mas seria ilusério acreditar que a simples mencZo “é um fato” ou que o “aconteceu” equivale a uma compreensfo. A crdnica ou aerudigdo que se contenta com adicionar particularidades apenas ignora a lei que a organiza. Este discurso, tal como 0 da hagiografia ou das “crdnicas™” nao faz senéo ‘lustrar com mil variantes as antinomias gerais proprias @ uma retérica do excepcional. Cai na sensaboris da repetigdo. Na verdade, a particulari- dade tem por atribuiggo desempenihar sobre o fundo de uma formalizago explicita; por fungio, introduzir ali uma interrogaedo; por significago remeter 40s atos, pessoas ¢ a tudo que permanece ainda exterior ao saber assim como a0 discurso. 3. O lugar que a histéria criou, combinando o modelo com os seus desvios, ou agindo na fronteira da regularidade, representa um terceiro aspecto de sua definigdo. Mais importante que a referéncia a0 passado é a sua introdugdo sob a forma uma distancia tomada. Uma falha se insinua nna coeréncia cientifica de um presente, e como poderia ela sé4o, efetiva- «Mente, seno por alguma coisa de objetivével. o passado. que tem por fun- fo significar a alteridade? Mesmo se a etnologia substitu, parcialmente, a hist6ria nesta tarefa de instaurar uma encenagdo do outro, no presente — razio pela qual estas duas disciplinas mantém relapbes to estretas —, passado é, inicialmente, o meio de representar uma diferenga. A operagio hhistérica consiste em recortar o dado segundo uma lei presente, que se distingue do seu “outro” (passado), distanciando-sé com relaggo a uma «situagZo adquirida e marcando, assim, por um discurso, a mudanga efetiva qué permitiu este distanciamento. Assim, a operagao historica tem um efeito duplo. Por um lado, histo- riciza o stual. Falendo mais propriamente, ela presentifica uma situagéo vivida. Obriga a explicitar a relagdo da razfo reinante com um lugar pré= prio que, por oposigdo a um “passado” se toma o presente. Uma relagio de reciprocidade entre a lei e seu limite engendra, simultancamente, a diferenciagdo de um presente e de um passado. Mas por outro lado, a imagem do passado mantém o seu valor pri- meiro de representar aquilo que falta, Com um material que, para ser obje- tivo, estd necessariamente ai, mas é conotativo de um passado ne medida em que, inicialmente, remete 2 uma auséncia ¢ introduz também a falta de um futuro. Um grupo, sabe-se, no pode exprimir o que tem diante de si — 0 que ainda falta — sengo por uma redistribuigdo do seu passado. Também a hist6ria é sempre ambivalente: 0 lugar que ela destina a0 pas- sado ¢ igualmente um modo de dar lugar @ um futuro. Da mesma mancira que vacila entre 0 exotismo ea critica, a titulo de uma encenaggo do ou- tro, oscila entre 0 conservadorismo e 0 utopismo, por sua fungdo de signi- ficar uma falta, Sob estas formas extremas, tome-se no primeiro caso, legendaria ou polémica; no segundo, reacionéria ou revoluciondria, Mas ‘estes excessos ndo podetiam fazer esquecer aquilo que est4 inscrto na sua Pritica mals rigorose, a de simbo..zar o limite e através dsto tomar possi- Yel uma ultrapassagem. 0 yelho slogan das “Tig6es da histéria” retoma algum significedo, desta perspectiva, se, deixando de lado uma ideologia de herdeiros, identificarmos a “morel da historia” com este intersticio ctiado na atualidade pela representaglo de diferengzas. IIL UMA ESCRITA A representagio — mise en scéne literdria — nfo € “hist6rica” senfo quando articulada com um lugar social da operaggo cientifica e quando | institucional ¢ tecnicamente ligada a uma pritica do desvio, com relacgo } aos modelos culturais ou teéricos contempordneos. Ngo existe relato histé- rico no qual nfo esteja explicitada a relago com um corpo social ¢ com 93 uma instituigdo de saber. Ainda é necessério que exista af “tepresentacdo”. © espago de uma figurago deve ser composto. Mesmo se deixarmos de edo tudo aquilo que se refere a uma andlise estrutural do discurso histé- ‘tico™, resta encarar a operagdo que faz, passar da prdtica investigadora & cescrita. 1. A inversdo escrituniria. © writing®, ou a construpio de uma escrita (no sentido amplo de ‘uma organizacéo de significantes) & uma passagem, sob muitos aspectos, estranha. Conduz da prética a0 texto. Uma transformagdo assegura 0 trén- sito, desde 0 indefinido da “pesquisa”, até aquilo que H. -I. Marrou chama a “servidao” da escrita®”. “Servidio”, com efeito, pois a fundagfo de um espaco textual provoca uma série de distorgdes com relacdo aos procedi- ‘mentos da andlise. Com o discurso parece se impor wma lei contréria as regras da pratica. A primeira imposigGo do diseurso consiste em prescrever como ini- io aquilo que na realidede é um ponto de chegada, ou mesmo um ponto de fuga da pesquisa. Enquanto esta dé os seus primeiros passos na atuali- dade do lugar social, ¢ do aparelho institucional ou conceitual, determi- nados ambos, a exposigfo segue uma ordem cronolégica. Toma o mais, anterior como ponto de partida. Tornando-se um texto, a histéria obedece a uma segunda imposicfo. ‘A prioridade que a pratica dé a uma tética de desvio, com relago a base fomecida pelos modelos, parece contradita pelo fechamento do livso ou do artigo. Enquanto a pesquisa ¢ intermindvel, 0 texto deve ter um fim, ¢ esta estrutura de parada chega até a introdugto, jé ‘organizada pelo dever de terminar. Também conjunto se apresenta como ‘uma arquitetura estavel de elementos, de regras e de conceitos histéricos ‘que constituem sistema entre si e cuja coeréncia vem de uma unidade designada pelo proprio nome do autor. Finalmente, pasa ater-se a alguns exemplos, a representacdo escrituréria é “plena”; preenche ou oblitera as Tacunas que: constituem, a0 contrétio, © proprio principio da pesquisa, sempre agucada pela falta. Dito de outra meneira, através de um conjunto de figuras de relatos e de nomes préprios, toma presente aquilo que a prética percebe como seu limite, como excegdo ou como diferenca, como passa. Por estes poucos tragos — a inversio da ordem, 0 encerramento do texto, a substituiggo de um trabalho de lacuna por uma presenga de sen- tido — pode-se medir a “servidao” que 0 discurso imp5e a pesquisa. Acescrita seria, ento, a imagem invertida da pritica? Teria, como nas 94 ‘criptografias, nos jogos de criangas ou nas imitagdes de moedas pelos falsé- tios,,0.valor da excrita em espelho", ficedo fabricadora de enganos,e de segredos, tragand. la iaversKo de uma prética nor, mativa € dé sua condicio social. Assim acontece no caso dos Miroirs de | yfHlstoire, Certamente eles excondem sua relago com priticas que nfo s0 ‘iis’ histéricas, mas politicas e comerciais, porém, servindo-se de um pasado para negar o preseitte que repetem, segregam algo estranho as relagbes sociais atuais, produzem o segredo na linguagem; seus jogos desig- nam um retiro que se pode contar em lendas, invertendo as condutas do trabalho e tomando seu lugar, ie Taz’ — dizer ‘outra’coisa pela reversfo do cédigo das priticas —; ela é ilusbria apenas na medida em que, por ndo se saber o que faz, tender-s-ia 4 identificar o seu segredo a0 que pOe na Tinguagem e ndo a0 que dela bubtrai. | 7 "~~ De fato, a escrita histérica ~ ou historiadora — pérmanece controla- da pelas priticas das quais resulta; bem mais do que isto, ela propria é uma pratica social que confere 0 seu leitor um lugar bem determinado, tedistribuindo 0 espago das referéncias simbélicas e impondo, assim, uma “igo”; ela € didética e magisterial. Mas ao mesmo tempo funciona como imagem invertida; dé lugar @ falta e a esconde; cria estes relatos do passado ‘que si0'0 equivalente'dos cemitérios nas cidades; exorcisa e reconhece ita presenga da morte no meio dos vivos. Representando nas duas cenas, 20 ‘mesmo tempo contratual e legendaria, escrita performativa™” e escrita em espelho, ela teri 0 estatuto ambivalente de “fazer a hist trou Jean-Pierre Faye™ , nfo obstante, de “‘contar hist6rias” quer dizer, de impor a violéncias de um poder e de fomecer escapatérias. Ela “ins- ‘trui” divertindo, costumava dizer-se. Tomando precisos alguns aspectos a construgio historiogrifica, as relagdes de diferenca e de continuidade, que @ escrita mantém com uma disciplina de trabalho, podem aparecer melhor, mas também sua fungdo social como pritica se evidenciard om maior clareza, Bfetivamente, destacando-se-do trabalho cotidiano, das eventuali- dades, dos conflites, das combinagbes de microdecisdes que caracterizam 4 pesquisa concreta, 0 discurso se situa fora da experiéneia que Ihe confere crédito; ele se dissocia do tempo que passa, esquece 0 escoamento dos trabalhos ¢ dos dias, para fomecer “modelos” no quadro “ficticio” do tempo passado. Mostrou-se 0 que esta construcdo tinha de-arbitréria. Pro- blema geral, Assim, 0 "Cahier rouge” de Claude Bernard (1850-1860) re- presenta uma crdnica jé distante da experiéncia efetiva em laboratério, ¢ a 95 ta em espelio & sétia por causa do | re teoria, a Introduction & V’étude de la médecine expérimentale (1865) €, por sua vez, decalada, simplificadora e redutora com relagio ao “Cahier”. ) Entre milhares de outros, este exemplo mostra 2 passagem da pritica a | geonica ¢ da. erdnica a didética/S6" uma distorgao permite a introdugiq ‘da “experiéneia” numa outra prética, igualmente social, mas simbélic cscrituréria, que substitui a autotidade de um saber pelo trabalho de uma | pesquisa. O que é que o hstoriador fabrics quando se toma escritor? Seu} | proprio disourso deve revel 2. A cronologia, ow a lei mascarada, Os resultados da pesquisa se expSem de acordo com uma ordem cro- nolbgica. Certamente, a constituigdo de séries, 0 isolamento de “conjun- turas” globais, tanto quanto as técnicas do romance ou do cinema, tomna- ram flexivel_a rigidez desta ordem, permitiram a instauragdo de quadros sincrOnicos e renovaram os meios tradicionais de fazer interagir momentos

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