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ISBN 972-672-581-X

ISSN 0870-6735
CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E DE CARTOGRAFIA ANTIGA

SÉRIE SEPARATAS

2 3 2

C O L O M B O E A P O L I T I C A D E S I G I L O

N A H I S T O R I O G R A F I A P O R T U G U E S A

POR

FRANCISCO CONTENTE DOMINGUES

MINISTÉRIO DO PLANEAMENTO E DA ADMINISTRAÇÃO DO TERRITÒRIO


SECRETARIA DE ESTADO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA
INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA TROPICAL
L I S B O A — 1992
Separata da
Revista Mare Lìberum
Voi. I — Ano 1990 — págs. 105-116
l. Os descobrimentos portugueses e a política deve juntar a Colecção de notícias para a his-
de sigilo: história breve de um conceito tória e geografìa das nações ultramarinas, que
vivem nos domínios portugueses (l volumes,
O S descobrimentos dos séculos xv e xvi 1812-1856); seguia assim percurso idêntico ao
têm sido desde sempre um dos temas de outros intelectuais da época que a par dos
mais persistentemente dominantes na estudos que os consagraram em diferentes
historia da cultura portuguesa: historiadores, áreas científicas se dedicaram, ainda que epi-
literatos, filósofos ou cientistas ocuparam-se sodicamente, à história dos descobrimentos (1).
directa ou indirectamente das viagens e das Um desses homens foi Francisco Justi-
suas consequências, e disso se encontra número niano Saraiva (frei Francisco de São Luís,
significativo de testemunhos logo no decorrer 1766-1845), mais tarde cardeal, figura eminente
de Quinhentos. da vida religiosa e política de Portugal na
O impulso e renovação da historiografia transição do século xvm para o xix. Em 1841
portuguesa a que se assistiu no decorrer do publicou um índice cronológico das navegações
século xviii traduziu-se igualmente pela atenção onde procurou explicar, sendo o primeiro a
particular que mereceu então a época das tentar fazê-lo, um fenómeno que não parecia
grandes viagens. A questão tinha implica- poder compreender-se facilmente: a espantosa
ções de natureza vária explicáveis pela con- escassez de testemunhos documentais conhe-
juntura cultural e política dos finais do século, cidos à altura sobre os descobrimentos e a
entre outros factores, mas o que importa aqui expansão portuguesa.
notar é que se procedeu então pela primeira O cardeal Saraiva procurou justificar este
vez à publicação sistemática de fontes his- estado de coisas num longo passo do livro
tóricas, no que teve uma grande importância que citámos mas que vale a pena reproduzir
a acção da recém-criada Academia das Ciências porque se trata da primeira referência ao que
de Lisboa (1779), graças à iniciativa de um mais tarde e com outro desenvolvimento
dos seus sócios fundadores: o abade José
Francisco Correia da Serra, regressado de
Itália — onde fizera os seus estudos — havia
poucos anos. (*) Este artigo foi inicialmente preparado para um
número especial dedicado a Colombo do Bolletino delia
Botânico notável, com obra publicada em Società Geografica Italiana, recuperando parcialmente
várias das principais revistas europeias e textos já por mim escritos sobre temas que se reto-
americanas da especialidade, o abade Correia mam aqui.
da Serra promoveu a publicação da Colecção (1) Sobre Correia da Serra o estudo mais recente
de livros inéditos de história portuguesa (5 volu- é de BOURDON, L.: José Corrêa da Serra Ambassadeur
du Royaume-Uni de Portugal et Brésil a Washington
mes, 1790-1824), com material importante 1816-1820, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian-
relativo à empresa ultramarina, à qual se -Centro Cultural Português, 1975.
106 Francisco Contente Domínguez

ficou conhecido por política de sigilo ou de portuguesa com freqüência tratado em obras
segredo : de síntese como um grande momento que se
«Dos Roteiros, Relações e Memórias, que inicia em 1415 e vem a terminar justamente
necessariamente se haviam de escrever logo neste ano de 1825, apesar de no fundo se
naquele tempo de nossas primeiras navegações tratar de um conjunto de vários ciclos e eixos
e descobrimentos, muito pouco nos resta de orientação expansionista (que simultanea-
hoje (...). É natural que o prudente e cauteloso mente se sucedem e sobrepõem parcialmente):
segredo, em que os nossos Príncipes, ao princípio, fê-lo, por exemplo, Charles Boxer (3).
reservavam aquelas Memórias e Relações; O certo é que Portugal vive alheado desses
a perda de muitas delas nas mãos dos cronistas, recursos ultramarinos durante o decorrer de
ou nos próprios gabinetes dos Príncipes por praticamente todo o século xix — em termos
ocasião da sua morte; o descuido de recolher econômicos o Brasil deixara de contar efectiva-
estes e outros documentos ao Arquivo geral mente havia alguns anos — e até ver consignado
do reino; a dificuldade de multiplicar as cópias, pela comunidade internacional a posse e domí-
por não haver ainda a arte tipográfica, ou por nio efectivo dos territórios que grosso modo
não ter chegado a Portugal, logo nos primeiros correspondem hoje a Angola e Moçambique.
anos da sua invenção; é natural, digo, que Mas a «partilha de África» decidida à mesa das
estas ou outras semelhantes causas produ- negociações pelas potências européias (nomea-
zissem a falta, que depois se -experimentou, damente na Conferência de Berlim, em 1884-
logo que se quis escrever em corpo de história -1885) foi contrária às pretensões portuguesas
a série de nossas empresas ultramarinas» (2). de controle de uma vasta faixa territorial
Como se pode verificar, o cardeal Saraiva que se estendia da costa angolana até à costa
foi extremamente cauteloso ao enunciar a moçambicana (4), consubstanciada no chamado*
possibilidade de os relatos contemporâneos mapa côr-de-rosa (5).
das viagens terem sido sonegados temporaria- Este projecto, concebido por um ministro
mente por vontade expressa do poder político, de tendências políticas germanófilas (Henrique
e mesmo assim apenas «ao princípio». Para- de Barros Gomes), contrariava profundamente
lelamente, porém, o autor enunciou toda o sentido da expansão colonial inglesa em
uma série de circunstâncias que podiam expli- África traçado por Cecil Rhodes; e por isso
car de forma igualmente plausível o desapare- soçobrou perante a oposição britânica.
cimento de documentação relevante. O que de qualquer forma nos importa
A questão tenderia a ganhar depois uma agora é a verificação de que o discurso his-
dimensão crescente e a ver perder-se a parci- tórico foi uma das pedras basilares de suporte
mônia com que foi enunciada. da argumentação política, que reclamava por
Não é possível compreender o empola- via daquele a prioridade da presença por-
mento que a história dos descobrimentos tuguesa em África, critério naturalmente con-
conhece em Portugal no decorrer da segunda testado pelas potências europeias com pre-
metade do século xix sem atender às circuns- tensões africanistas, poder económico e militar
tâncias concretas com que o país se viu defron- para as sustentar, mas sem direito a invocar
tado, e que neste caso se transformaram numa essa prioridade histórica.
das molas reais que motivaram o discurso
historiográfico. (2) SARAIVA CARDEAL: índice Cronologico das
A partir da década de 1870 começou a Navegações. Viagens, Descobrimentos e Conquistas
tornar-se patente o fracasso do modelo de dos Portuguezes nos Paizes Ultramarinos desde o Prin-
cipio do Século XV, in Obras Completas, tomo V, Lis-
desenvolvimento socio-económico que funcio- boa, Imprensa Nacional, p. 48; sublinhado nosso.
nara com relativo sucesso desde o golpe de (3) BOXER, C.: The Portuguese Seaborn Empire
Estado de 1851 (a Regeneração), e do qual se 1415-1825, Londres, Hutchinson, 1969.
pode dizer que subalternizou a exploração (4) ALEXANDRE, V.: Origens do Colonialismo
dos recursos ultramarinos do país. Aliás, Português Moderno, Lisboa, Sá da Costa, 1979, pp. 55-64.
(5) Sobre o mapa côr-de-rosa, além da obra
desde que o Brasil declarou a independência
anterior, NOWELL, C.: The Rose-Colored Map, Lisboa,
em 1822, depois reconhecida em 1825, que se Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1982
vê fechado um ciclo da experiência colonial (Col. «Memórias», 21).
Colombo e a politica de sigilo na historiografia Portuguesa 107

Face a essas pretensões, nomeadamente gada a problemas e métodos de outras dis-


francesas e alemãs, cujo sentido ideológico ciplinas (particularmente da geografia), uma
(e historicamente infundado) se percebe bem concepção global e universalista da história que
no quadro das relações internacionais de à revelia de um conhecimento prévio o aproxi-
Oitocentos, verificou-se pela parte portuguesa maram decisivamente da escola dos Annales,
uma reacção que, se de igual forma acusava constituíram novidade de monta nos inícios da
o comprometimento com as questões do tempo, década de 1920, quando Cortesão publica
não deixou por isso de produzir frutos apre- os seus primeiros trabalhos históricos na
ciáveis. O novo impulso conhecido pela his- História da Colonização Portuguesa no Brasil (8).
tória dos descobrimentos portugueses radi- Pela mesma altura, mais exactamente em
cou em boa parte nessa necessidade de 1924, Cortesão publica também o primeiro
comprovar eruditamente a prioridade da pre- artigo em que procura teorizar a política de
sença portuguesa em África, face aos seus sigilo enquanto sistema explicativo das extensas
concorrentes europeus, e é nestas circuns- lacunas documentais então verificáveis na his-
tâncias que entre outras se tem de destacar a tória dos descobrimentos (9). O tema con-
obra do visconde de Santarém, iniciador do tinuou a ser uma das constantes dos seus
estudo histórico da cartografia, disciplina que trabalhos subsequentes, e dele se ocuparia
aliás baptizou (6). não só na História dos Descobrimentos Por-
Algumas das figuras cimeiras que se lhe tugueses que deixou inacabada (10), mas em
seguiram repisaram em boa parte idêntico livro dado à estampa no ano da sua morte e
caminho: os estudos eruditos e a multipli- onde desenvolveu esta já então muito polé-
cação de edições de fontes mal conhecidas ou mica tese até às últimas consequências (11).
até ignoradas, se por um lado concorreram
para um efectivo aprofundamento das temá-
ticas em estudo, não deixaram, noutro sentido,
(6) Manuel Francisco Mesquita de Macedo
de revelar, por vezes à evidência, o quanto o
Leitão e Carvalhosa, 2.° visconde de Santarém (l79.1-v
discurso historiografia) pendia a deixar-se -1855), viveu uma longa parte da sua vida em Paris
dominar por circunstâncias temporais que depois da derrota dos absolutistas na guerra civil por-
explicavam a necessidade de enfatizar o papel tuguesa de 1832-1834. Aí se dedicou aos estudos
dos Portugueses no processo na expansão históricos, procurando reabilitar o papel dos Portugueses
na exploração africana, posto infundadamente em causa
europeia. Exemplarmente, foi o caso de um
por alguns historiadores franceses seus contemporâneos.
Joaquim Pedro de Oliveira Martins, não Dedicou-se em particular à história da cartografia antiga,
obstante autor de uma obra tão extensa quanto disciplina de que é considerado o fundador, e no domínio
notável (7). da qual produziu uma vasta obra (estudos e atlas carto-
gráficos) que acaba de ser reeditada na totalidade em
Na verdade dos factos a tese do sigilo Lisboa.
não ganha contributos particularmente signi- (7) Das obras completas em 43 volumes, boa
ficativos, mas sem dúvida tende a gerar-se parte dos quais relativos à história ultramarina, des-
uma ambiência que favorecerá a teorização taca-se a História de Portugal (1879), de extraordinário
e desenvolvimentos mais radicais verificáveis nos recorte literário e atenta à documentação disponível,
períodos subsequentes, e em relação à qual embora em muitos passos hipotecada à visão política
que o Autor tinha dos problemas do país no momento
os seus mentores não se mostrarão alheios, em que vivia.
ainda que o não acusem directamente. (8) DIAS, C. MALHEIRO (direcção de): História da
Colonização Portuguesa no Brasil, 3 vols., Porto, Lito-
grafia Nacional, 1921-1924.
2. Jaime Cortesão e o sigilo como teoria (9) CORTESÃO J.: Do Sigilo Nacional sobre os
historiográfica Descobrimentos. Crónicas desaparecidas, mutiladas e
falseadas. Alguns doy feitos que se calaram, in «Lusi-
Jaime Cortesão foi um dos mais notáveis tânia», vol. I, 1924, pp. 45-81.
historiadores portugueses do século xx, no (10) CORTESÃO J.: História dos Descobrimentos
sentido em que contribuiu poderosamente para Portugueses, 2 vols., Lisboa, Arcádia, 1960-1962.
(11) CORTESÃO J.: A Política de Sigilo nos Des-
a renovação dos horizontes metodológicos que
cobrimentos, Lisboa, Comissão Executiva das Come-
enquadravam o modus faciendi desta dis- morações do Quinto Centenário da Morte do Infante
ciplina em Portugal. Uma perspectiva alar- D. Henrique, 1960.
Francisco Contente Domínguez

O sigilo posto em prática pelos Portugueses informação susceptível de fornecer à concorrên-


não foi uma invenção ou uma prática nova, cia estrangeira acesso aos meios privilegiados
mas antes uma medida corrente na história de que os Portugueses dispunham então.
de situações semelhantes. Como observámos O sigilo consistiria portanto, numa vigi-
em outro lugar (l2) Jaime Cortesão consi- lância estreita da produção historiográfica, da
derava-o uma prática usual de todos os grandes cartografia — segundo Cortesão existia uma
impérios marítimos apostados na defesa da cartografia oficial, para o grande público, e uma
sua supremacia. Os Portugueses não teriam cartografia secreta que essa, sim, mostrava o
portanto senão prosseguido uma estratégia avanço dos conhecimentos geográficos portu-
empregue desde a Antiguidade, e tanto mais gueses —, da construção dos navios, parti-
necessária quanto menor o poder político- cularmente da caravela, de que se teria proi-
-militar efectivo de quem a executava: Cartago bido a venda a estrangeiros, dos roteiros, dos
utilizara o sigilo, enquanto o poderio romano o instrumentos de navegar, de tudo, enfim, que
pudera dispensar. revelasse a superioridade tecnológica portu-
Atentemos porém nas palavras do próprio guesa nas matérias que à navegação diziam
Cortesão : respeito.
«Os grupos sociais, baseados no comércio Jaime Cortesão estava obviamente a um
marítimo, que iniciaram um novo sistema de passo de atribuir aos navegadores portugueses
expansão, tendem, para evitar a concorrência créditos para os quais não havia na altura
a transformá-lo em monopólio e a defendê-lo comprovação documental segura: afirmou, por
tanto mais, quanto menor seja o volume social exemplo, o descobrimento pré-cabralino do
e a continuidade do domínio económico Brasil — uma questão muito polémica desde
próprios, e menor a longevidade dos instru- sempre entre os historiadores que se ocuparam
mentos produtores, e o número e poder dos da matéria: basta constatar que os estudos do
concorrentes» (13). maior rigor de Max Guedes e Luís de Albu-
A política de sigilo a que se refere Cortesão querque levaram o primeiro a pronunciar-se
não diz pois respeito aos descobrimentos «na pela afirmativa, e o segundo pela negativa (15).
sua expressão mais simples», mas sim «ao Da mesma forma Jaime Cortesão defendeu a
descobrimento económico de novas regiões tese de que o que é aparentemente um dos maio-
produtoras ou das estradas marítimas que aí res enigmas no processo dos descobrimentos ser
levavam» (14). Em causa estava o comércio explicável pelo sigilo.
africano, nomeadamente na zona da Guiné, Referimo-nos desta feita ao facto de se
por se querer defender da concorrência estran- verificar um hiato no processo expansionista
geira o avultado provento do tráfico local. português: depois de uma longa e prolongada
Não nos é possível analisar aqui detalha- busca do caminho marítimo para a índia,
damente todas as vertentes da política de sigilo, medeia um longo espaço de quase dez anos
porquanto isso implica na prática uma levisão entre o retorno de Bartolomeu Dias a Lisboa,
de toda a história dos descobrimentos portu- em 1488, com a notícia de que efectivamente
gueses. Mas o princípio fundamental do havia ligação marítima entre o Atlântico e o
raciocínio de Jaime Cortesão é claro: se é Pacífico (16), provando agora sim e definiti-
dubidativo que já houvesse sigilo de Estado
durante o tempo em que o infante D. Henrique (12) DOMINGUES F.: A Política de Sigílo e as
foi a figura principal de entre os promotores Navegações Portuguesas no Atlântico, in «Boletim do
das viagens de exploração, o caso mudou deci- Instituto Histórico da Ilha Terceira», vol. XLV, 1987,
pp. 189-200.
didamente de figura durante o reinado de
(13) CORTESÃO J.: Teoria Geral dos Descobri-
D. João II (1481-1495) — enquanto se definiam mentos Portugueses, Lisboa, Seara Nova, 1940, p. 11.
concretamente as vias da expansão portuguesa, (14) CORTESÃO J.: A Política de Sigilo nos Des-
mormente pela procura sistemática de infor- cobrimentos, p. 9.
mações sobre o Oriente e sobre a ligação marí- (15) GUEDES M.: O Descobrimento do Brasil,
tima com a índia, o Estado, no quadro da 2° ed. revista, Lisboa, Vega, 1989. ALBUQUERQUE L.:
Os Descobrimentos Portugueses, Lisboa, Alfa, 1985.
orientação política traçada pelo Príncipe Per- (16) De entre o muito que se escreveu a propósito
feito, teria sonegado sistematicamente qualquer das comemorações do quinto centenário da viagem
Colombo e a politica de sigilo na historiografia Portuguesa 109

vãmente o desacerto das concepções ptolemaicas Todavia a navegação à bolina não podia
que marcavam os conhecimentos geográficos da deixar de ser um recurso, uma vez que era
época, e a saída em 1497 da armada que sob sempre uma manobra penosa. Conhecendo os
o comando de Vasco da Gama iria finalmente regimes de ventos era possível navegar com
estabelecer a via marítima entre a Europa e navios de pano redondo, as naus, pois estes só
a índia. se tornam eficazes com vento pela popa. Basta
É indubitável que a rota de Bartolomeu Dias, saber-se que Bartolomeu Dias comandava cara-
levando-o a descer penosamente ao longo da velas, e Vasco da Gama naus, para se tornar
costa ocidental africana, mostra que os nave- evidente que entre uma viagem e outra se
gadores não conheciam ainda o regime de completou o reconhecimento do regime de
ventos e correntes do Atlântico Sul. Pelo ventos do Atlântico Sul, pois no Atlântico
contrário, Vasco da Gama viaja com o conhe- Norte o problema estava resolvido havia muito.
cimento perfeito de que para a navegação à Toda a polémica se centrou em torno do
vela se tornava muito mais fácil atingir o como se efectuou esse reconhecimento. Jaime
extremo sul do continente africano fazendo Cortesão juntou à tese das viagens secretas a
uma longa bordada para oeste no Atlântico convicção (mais uma vez sem base documental
Sul, depois de passadas as ilhas de Cabo Verde, concreta) de que Vasco da Gama teria sido
evitando as condições físicas adversas, pois encarregue de pelo menos uma delas, pois não
tanto se contornavam os ventos alisados, como era crível, em seu entender, que o capitão-mor
as correntes marítimas contrárias à progressão da armada enviada a estabelecer contacto com
para sul junto à costa de África. o Oriente fosse um homem até então de todo
A explicação lógica, segundo Cortesão, seria alheio às coisas do mar.
a admissão de que os Portugueses empreen- Em consequência, Cortesão chegou a levar
deram viagens de exploração secretas no Atlân- estas supostas viagens até ao Índico, tendo
tico Sul, precisamente com vista ao reconhe- encontrado num texto atribuído a Ibn Magid
cimento Jos condicionalismos físicos da nave- (que. se acreditou ter sido o piloto árabe que
gação, permitindo que Vasco da Gama dis- conduziu Vasco da Gama a Calecute) referên-
pusesse à partida de instruções claras quanto à cia ao naufrágio de navios portugueses em
melhor rota para chegar à índia. Sofala nos meados da década de 1490.
Acresce um outro facto : Bartolomeu Dias Este é aliás um dos casos em que a crítica
comandava uma pequena frota de duas cara- documental veio a permitir a elaboração de
velas latinas e uma naveta (navio de abaste- hipóteses bem mais plausíveis. Em primeiro
cimentos que foi abandonado quando já não lugar sabe-se hoje que Ibn Magid deixou de
era necessário), enquanto Vasco da Gama saiu navegar em 1465, e o seu Roteiro de Sofala
à frente de uma armada de quatro naus. tem referências a acontecimentos posteriores que
A caravela latina portuguesa empregue nas não podem deixar de ser o resultado de acres-
viagens dos descobrimentos distinguiu-se das centos feitos mais tarde por mão desconhecida.
demais, como constatou, entre outros, o ita- Assim, a passagem que relata o suposto nau-
liano Ca da Mosto, por uma particular aptidão frágio de navios portugueses em 1495-1496,
para a navegação à bolina, manobra que consis- próximo de Sofala, reporta-se quase de certeza
tia numa progressão em zigue-zague contra o ao dos irmãos Brás e Vicente Sodré, naufra-
sentido dominante do vento (e porque um gados junto às ilhas de Curia Muría em 1503.
navio à vela não pode em qualquer circunstân- E Ibn Magid não pode obviamente ter sido o
cia progredir «contra o vento», como por vezes
se diz erroneamente). As investigações mais
recentes no domínio da arqueologia naval mos- de Bartolomeu Dias, pode destacar-se ALBUQUERQUE L./
tram-nos que a razão para o facto deve residir RODRIGUES V./BARBOSA J,: Bartolomeu Dias. Corpo
na articulação entre um desenho de casco dife- documental-bibliografia, Lisboa, Comissão Nacional
rente do que era então vulgar em navios deste para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
tipo e uma superfície de velame que devia atin- 1988.
(17) BARATA J.: Estudos de Arqueologia Naval,
gir o dobro da de- embarcações similares com
Lisboa, Imprensa Nacional, 1989, vol. I, pp. 223-248 e
a mesma arqueação (17). vol. II, pp. 13-110.
110 Francisco Contente Domingues

piloto árabe de Vasco da Gama, como durante pouco trouxe de novo à renovação metodo-
tanto tempo se acreditou (18). lógica dos estudos da especialidade (bem ao
Este pequeño episodio contém em si o mais contrário, repita-se, de Cortesão), Damião
forte dos argumentos contrários à política de Peres deu mostra de um arreigado apego ao
sigilo: a progressiva revelação e estudo de documento que lhe permitiu no caso vertente
novos documentos vai mostrando que o volume salientar a fraqueza argumentativa e a falta de
e circulação de informações era bem maior na consistência da tese que contraditou com base
altura do que se podia supor anteriormente, e em cinco pontos:
torna claro que o sigilo explicou aparentemente
1. Não fazia sentido ocultar o reconhe-
várias circunstâncias que vieram a ficar acla-
cimento ou a ocupação de um território, sendo
radas com as revelações documentais feitas
a questão da prioridade, como era, o primeiro
entretanto.
critério a ter em linha de conta na reivindicação
No fundo, e apesar desta breve explicação,
da respectiva soberania.
cremos ficar à vista que a teoria do sigilo não é
senão um encadear de hipóteses construída a 2. Não fazia igualmente sentido preservar
partir de premissas que estão longe de se poder o segredo das índias depois das bulas de
considerar verificadas. Por isso mesmo mereceu Nicolau V e Calisto III reconhecerem o mono-
forte conti adita, de que se encarregou primeiro pólio material e espiritual sobre todas as regiões
Duarte Leite (l 9), e depois Damião Peres (20) descobertas até às «índias» a favor dos Por-
— este último resolvendo praticamente a tugueses.
questão. 3. Estrangeiros houve que colheram em
A formulação de Cortesão tinha como base Portugal os elementos que muito bem enten-
um raciocínio ahistórico: quando não havia deram relativos às navegações, para depois os
documentos, encontrava-se a «prova» do sigilo. divulgarem na Europa, como foi o caso, por
Logo, todas as realizações imputáveis ao abrigo exemplo, de um Martin Behaim. Argumento
desta teoria não careciam de verificação este que Luís de Albuquerque reforçou em
documental — porque, por natureza, a não estudos posteriores com abundantes casos
havia. Simplificando grosseiramente, é como concretos.
se se partisse do princípio de que a falta de 4. Era o próprio espírito da época que,
documentação provava por si a realização de norteando a escrita dos cronistas ou de outros
viagens secretas de descobrimento. relatores coevos, obstava à evocação de certos
factos. Relembremos aqui a propósito e ilus-
trativamente as inúmeras passagens da Crónica
3. A crítica da política de sigilo
da Guiné de Gomes Eanes de Zurara onde a
O primeiro e mais contundente dos críticos honra e proveito dos membros da casa do
da tese de Jaime Cortesão foi, como acabámos infante D. Henrique, ou a captura de escravos,
de dizer, o ilustre matemático, político e his- sobrelevam sistematicamente o registo do
toriador Duarte Leite, cujos reparos consubs- alcance efectivo das explorações geográficas que
tanciaram muito do que se disse subsequente- concomitantemente se iam realizando. Vito-
mente em contrário da política de sigilo.
A nosso ver, e não obstante a justeza de boa
parte do que afirmou Duarte Leite, a argumen- (18) ALBUQUERQUE L.: Navegadores, Viajantes e
tação que este desenvolveu não está ela também Aventureiros Portugueses. Séculos XV e XVI, vol. I,
Lisboa, Caminho, 1987, pp. 94-96; KHOURY I.: As-
isenta de percalços que se lhe podem apon-
-Sufaliyya «The Poem of Sofala» by Ahmad Ibn Magia,
tar (21). Mais consistente se mostrou Damião Coimbra, Junta de Investigações Científicas do Ultra-
Peres. mar, 1983 (Col. «Separatas», CXLVIII).
Paradoxalmente, foram as próprias con- (19) LEITE D.: História dos Descobrimentos.
cepções historiográficas deste último (aliadas a Colectânea de Esparsos, vol. I, Lisboa, Cosmos, 1959,
pp. 411-449.
um notável bom senso, diga-se de passagem)
(20) PERES D.: Politica de sigilo, in História da
que o levaram a rejeitar as hipóteses de Cortesão. Expansão Portuguesa no Mundo, vol. II, Lisboa, Ática,
Historiador de claro pendor historicista, autor 1939, pp. 17-21.
de uma obra sólida mas que, valha a verdade, (21) DOMINGUES F.: op. cit., p. 201.
Colombo e a politica de sigilo na historiografia Portuguesa 111

rino Magalhães Godinho viria mais tarde a podia era ter havido um silenciamento sistemá-
realçar a importância deste argumento (22), que tico que no fórum da política internacional
constitui sem dúvida uma das maiores brechas seria amiúde contrário aos interesses expan-
a apontar na construção de Jaime Cortesão, sionistas da coroa lusitana.
por vezes demasiadamente propenso a querer
encontrar nas fontes o que muito dificilmente lá
4. Colombo em Portugal e a política de sigilo
poderia estar por se encontrar completamente
afastado da ordem de preocupações e da escala Um dos mais radicais dos desenvolvimentos
de valores dos testemunhos de então. da política de sigilo (que teve, de qualquer
5. E finalmente, se houve o cuidado de não forma, um longo curso na historiografia por-
divulgar textos como o regimento do astro- tuguesa) disse precisamente respeito à figura de
lábio e do quadrante, que tinha forçosamente Cristóvão Colombo. Em artigo publicado
de andar nas mãos dos pilotos e se aceita ser em 1935, Armando Cortesão defendeu a tese de
do tempo de D. João II, Damião Peres conclui que Colombo não passava, afinal, de um agente
que não existiu política de sigilo em sentido secreto ao serviço de D. João II, enviado por
lato, mas apenas a preocupação de episodica- este aos Reis Católicos (23). Com que objec-
mente resguardar a divulgação de factos con- tivo? Estando D. João seguro de que o
siderados importantes em situações conjun- caminho marítimo para a índia era mais curto
turais distintas. fazendo o contorno do continente africano,
É evidente que os factos corroboraram mais Colombo teria sido incumbido de convencer
de uma vez as observações de Damião Peres: Fernando e Isabel a seguirem a rota ocidental.
sucedeu assim aquando do descobiimento do Os conhecimentos geográficos dos Portugueses
Brasil, que D. Manuel I se apressou a comunicar garantir-lhes-iam que por esse lado o acesso à
aos Reis Católicos, em documento que aliás índia era muito mais moroso, e o rei português
desdramatiza o problema do reconhecimento ficaria com as mãos livres para prosseguir o
deste território anteriormente à viagem de seu plano.
Pedro Álvares Cabral. A carta mostra cla- A ideia não era completamente nova, e apa-
ramente que na perspectiva do monarca por- rentemente só a notoriedade de Armando
tuguês o Brasil interessava tão só e de momento Cortesão, que acabava de publicar uma obra
como ponto de apoio para a Carreira da índia, imensa que o impôs de imediato como um dos
donde que, se é um facto que são fortes (como grandes historiadores da cartografia do seu
defende Max Guedes) os indícios de que os tempo, a relançava com créditos reais (24).
navegadores ao serviço de D. Manuel tinham Pode todavia argumentar-se que seria este
já a suspeita da existência de terras naquelas um escrito de juventude, relativamente falando,
paragens, ela não era também a primeira das aliás retomado num outro artigo publicado em
preocupações da coroa. inglês dois anos depois, com um título sugestivo:
Parece-nos que de tudo isto se pode tirar «The mystery of Columbus» (25). Sucede
uma conclusão óbvia: se é certo que houve porém que A. Cortesão o incluiu na colectânea
sigilo em determinadas matérias, não é menos de Esparsos que deu à estampa em Coimbra
verdade que Damião Peres opinou acertada- em 1974(26). Quer dizer que quase quarenta
mente quando referiu o interesse conjuntural
deste silêncio; pois noutras circunstâncias (22) GODINHO V.: Dúvidas e problemas acerca
impôs-se a política contrária, a da publicitação de algumas teses da história da expansão, in Ensaios II,
dos resultados das viagens. 2.° éd., Lisboa, Sá da Costa, 1978, p. 94.
(23) CORTESÃO A.: Espionagem dos Descobri-
Ou seja, e por outras palavras, o sigilo que mentos, separata de «Vida Contemporânea», 1935.
o Estado português pôs em prática foi tão efec- (24) CORTESÃO, A.: Cartografia e Cartógrafos
tivo quanto em certas circunstâncias esta foi Portugueses dos Séculos XV e XVI, 2 vols., Lisboa,
(e continua a ser) uma atitude normal da gover- Seara Nova, 1935.
nação política. Atitude conjuntural, insisti- (25) CORTESÃO, A. : The Mystery of Columbus,
in «The Contemporary Review», vol. CLI, 1937, pp. 322-
mos, que pode ser perfeitamente adequada
-330.
quando as circunstâncias o exigem, ou um con- (26) CORTESÃO, A.: Esparsos, 3 vols., Coimbra,
tra senso em alturas diferentes. O que não Acta Universitatis Conimbrigensis, 1974-1975.
112 Francisco Contente Domínguez

anos depois, e não obstante tudo o que fora proposto por Duarte Pacheco não encontrou
entretanto dito em contrário, continuava con- eco em Portugal senão na Arte de navegar de
vencido da justeza de uma tese que pratica- Manuel Pimentel (1712) (28). Apesar de tudo
mente era então defendida apenas por seu compreendem-se as diferenças em causa em
irmão, se considerarmos somente os historia- relação aos c. de 111 kms. do grau de meridiano,
dores dos descobrimentos de maior renome. correspondentes a 18,75 léguas marítimas por-
A talhe de foice, convém acrescentar que não tuguesas.
nos interessa aqui retomar um assunto que A presença de Jaime de Maiorca em Por-
muito recentemente voltou à baila: o da nacio- tugal e o início da cartografia portuguesa c. 1445,
nalidade portuguesa (de entre as várias que de acordo com Charles Verlinden, não podiam
são reclamadas...) de Cristóvão Colombo. por outro lado deixar de fazer crer aos marean-
Surpreendentemente, a suposta cidadania por- tes portugueses que a distância de 130° a que
tuguesa de Colombo e a sua qualidade de aludimos atrás estava muito aquém dos 220°
agente secreto de D. João II têm sido por vezes que efectivamente separam a Europa e a Ásia
consideradas como uma espécie de relação de pelo ocidente. Tudo junto, portanto, só pode
causa e efeito. E surpreendentemente porque, ter uma explicação ainda de acordo com os
como é óbvio, nada tem a ver uma coisa com a defensores do sigilo: Colombo foi deliberada-
outra: não é a nacionalidade que traça o des- mente induzido em erro quanto àquilo que a
tino da fidelidade dos espiões, sejam estes ver- coroa portuguesa efectivamente pensava em
dadeiros ou falsos. Colombo poderia perfei- relação ao caminho marítimo para o Oriente
tamente ser italiano, maiorquino ou outra coisa (enunciado que é contraditório com a idéia de
qualquer, e, se fosse esse o caso, estar ao serviço que seria um espião português; nesse caso,
do Príncipe Perfeito. não faria sentido pensar-se que tivesse sido
O problema em causa tem a ver com um enganado).
aparente paradoxo: a convivência de Colombo Não ciemos que se possa aceitar que
com os meios náuticos portugueses durante Colombo pudesse ter deixado de saber o que
largos anos, e as convicções geográficas do pensavam os marinheiros portugueses a este
genovês, que indubitavelmente estavam aquém respeito. Quer porque viajou com eles para a
do que se pensava naqueles meios. costa de África, quer por via do acesso aos
Não é novidade alguma que Colombo labo- papéis de um dos homens que navegou no
rou no que é amiúde chamado o erro mais tempo do infante D. Henrique: Bartolomeu
fecundo da história. Supondo que o valor do Perestrelo, primeiro donatário da ilha de
grau de meridiano terrestre era de cerca de Porto Santo, cuja filha Filipa veio a ser
14 léguas e da mesma forma que o cartografo mulher do genovês e mãe de seu filho Diogo.
Paolo Toscanelli acertava ao propor a distância Quer ainda porque um homem interessado nas
de 130° enti e a Europa e a Ásia, o que em Por- coisas do mar teve de certeza muitas oportuni-
tugal se sabia no seguimento de uma consulta dades de reforçar esses contactos durante o
que lhe fora feita a pedido de D. Afonso V, tempo em que esteve estabelecido em Lisboa
o genovês foi por força levado a pensar que esse como cartografo, juntamente com seu irmão
era o caminho mais curto para o Oriente (erro Bartolomeu.
a que acrescentou um outro, o do valor que Seria possível apesar de tudo que Colombo
tomou para a milha marítima). Ora o certo é não se tivesse apercebido do erro em que labo-
que a marinharia portuguesa atribuía ao grau rava, ao tomar conhecimento das concepções
do meridiano valores mais próximos da reali-
dade: 16 2/3 léguas, normalmente, 17,5 léguas
nos finais do século XV, e Duarte Pacheco
(27) PEREIRA, D.: Esmeraldo de Situ Orbis, repro-
Pereira aproximou-se ainda mais com as dução da edição anotada por Augusto Epifanio da Silva
18 léguas que avança no Esmeraldo de Situ Dias (1905), Lisboa, Sociedade de Geografia de Lis-
Orbis(21), obra que redigiu entre 1505 e 1508 boa, 1975.
segundo Joaquim Barradas de Carvalho. (28) PIMENTEL, M.: Arte de Navegar, edição
comentada e anotada por Armando Cortesão, Fernanda
O valor de 17,5 léguas vulgarizou-se rapida- Aleixo e Luís de Albuquerque, Lisboa, Junta de Inves-
mente, mas convém aqui deixar claro que o tigações do Ultramar, 1969.

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Colombo e .a politica de sigilo na historiografia Portuguesa 113

geográficas então em curso nos meios náuticos tório que na realidade lhe pertencia de facto,
ligados às navegações portuguesas? Esta ques- segundo o critério de Tordesilhas alargado para
tão cruc'al é em certo sentido uma falsa questão. o Oriente. Convencido, quase seguramente, de
E isto por várias razões. que estava a fazer um bom negócio (29).
Em primeiro lugar dificilmente se pode pôr O segundo exemplo é o do padre Fernando
o problema de existirem concomitantemente Oliveira: este teórico da marinharia (que foi
concepções geográficas «certas» e «erradas». também piloto de galés, teórico de construção
É claro que essa classificação é hoje, para nós, naval e cartografo) propôs 20 léguas para o
um exercício de estilo fácil, face aos nossos grau de meridiano numa obra que redigiu na
próprios conhecimentos actuais. Mas nos finais primeira versão em 1570, e que se conserva
do século XV corriam paralelamente e com manuscrita. E fê-lo, deve acrescentar-se, com
créditos não necessariamente muito diferentes uma notável virulência contra os pilotos ou
concepções que misturavam ou separavam a matemáticos que usavam ou defendiam que se
geografia herdada da Antigüidade (ou as geo- usasse um valor inferior, quando as 20 léguas
grafias, para sermos exactos), a geografia ima- marítimas portuguesas acusavam em relação ao
ginária da Idade Média, como a expendida nos valor real exactamente a mesma margem de
Livros de maravilhas, ou a geografia (ainda de erro que as 17,5 léguas então em curso, só que
resultados muito parcelares) emergente do con- desta vez por excesso (30).
tacto dos Portugueses com os territórios com Quer dizer: nenhuma destas questões era
que iam tomando conhecimento, na costa afri- propriamente um dado que se pudesse dar por
cana ou nas ilhas atlânticas. adquirido urbi et orbi. A opção de Colombo
O facto de Colombo dar crédito ao italiano estava bem aquém daquilo que lhe seria possível
Toscanelli — que por seu turno creditava a pensar se acreditasse na prática de navegação
Marco Polo, como o fazia também o genovês — dos pilotos portugueses (que aliás estava longe
nada tinha de extraordinário, e constituía uma de ser unânime: muitos continuaram a empre-
opção pacífica, no sentido em que era. perfei- gar o módulo de 16 2/3 léguas enquanto outros
tamente legítima, no quadro do saber geográ- se serviam do de 17,5). Simplesmente não o
fico da época. A construção da visão do fez. Preferiu insistir no resultado que lhe apa-
mundo que tornaria evidente o erro de Colombo recia em conseqüência dos estudos profundos
era ainda uma tarefa que ensaiava os primei- a que se dedicou, mas não cremos, de modo
ros passos. algum, que pudesse estar completamente alheado
E esses passos tão pouco foram imediatos. do que se passava a bordo dos navios de
Vejamos apenas dois exemplos, tirados da náu- D. João II. Mesmo que disso tivesse um
tica portuguesa, que ilustram os embaraços e conhecimento imperfeito, é duvidoso que aban-
dificuldades bem próprios desta matéria. donasse as conclusões que foi construindo com
O primeiro caso que podemos invocar é o o correr dos anos, para mais alimentadas
da questão das Molucas. Afirmada a necessi- como eram por um carácter marcado por uma
dade de prolongar o semi-meridiano de Tor- notável pertinácia; como é inquestionável, e o
desilhas para lesolver o problema da soberania demonstra todo o processo negociai que cul-
deste rico centro produtor de cravo, que tanto minou com as capitulações assinadas em
interessava a qualquer das coroas ibéricas, os Espanha.
diplomatas de D. João III conduziram as nego- A permanência de Colombo em Portugal é
ciações com extremo tacto, porquanto era con- concomitante com o desenvolvimento dos preli-
vicção dominante entre os peritos ao serviço do
rei português que as Molucas pertenciam de
facto a Carlos V. Como não havia processo (29) Sobre esta questão, A Viagem de Fernão
de determinai a longitude no mar com o .igor de Magalhães e a Questão das Molucas, Actas do II Colo-
necessário para resolver a pendência sem mar- quio Luso-Espanhol de História Ultramarina, Lisboa,
gem para dúvidas (o método adequado só viria Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1975
a ser testado com sucesso na segunda metade (Col. «Memórias», 16).
(30) DOMINGUES, F.: A obra técnica do padre
do século xviii), D. João III acabou por pagar
Fernando Oliveira (alguns aspectos), in «Arquivo His-
uma soma fabulosa pela soberania de um terri- tórico Dominicano Português», vol. IV/2, 1989, p. 217.

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114 Francisco Contente Domínguez

minares do projecto de alcançar a índia que Rui de Pina ocupou-se do episódio no


D. João II perseguia com uma tenacidade não capítulo LXVI da Crónica de D. João 77(33).
menos notável. E desde o retorno de Barto- Estamos em crer que as parcas linhas que dedi-
lomeu Dias, em finais de 1488, a única questão cou ao assunto são muito mais eloquentes do
que se punha ao monarca português era a que parecem a uma primeira leitura.
reunião das condições necessárias para garantir Tanto quanto Colombo estava convencido
o sucesso do seu plano. Reside aqui, de resto, que chegara ao Cataio, estava D. João ciente
a explicação para o hiato que referimos atrás: de que o navegador nem chegara lá perto. Isso
seria um contra senso enviar uma armada para parece-nos evidente, sobretudo porque é de cal-
a índia logo depois da viagem de Dias, sem cular que as recentes novidades de Pêro da
estarem devidamente precatadas essas condi- Covilhã comprovassem a crença do monarca
ções técnicas (o tipo de navios empregues, como português na justeza de que o caminho que
vimos, foi diferente, e as naus de Vasco da procurava era aquele pelo qual mandava os
Gama foram construídas expressamente para a seus navegadores. Não obstante, segundo Rui
viagem, como no-lo diz o cronista da índia de Pina, o rei teria lamentado não ter dado
Gaspar Correia (31)), políticas e diplomáticas. ouvidos a Colombo quando ele se propusera,
Por outro lado a viagem de Bartolomeu Dias havia anos, fazer esta mesma viagem ao seu
não era em si suficiente. Enquanto planeava serviço. O que é muito pouco provável.
as viagens marítimas D. João II enviava emis- Efectivamente o cronista dá-nos uma ideia
sários por terra a saber notícias do Oriente. do que pode ter sido a audiência que o rei con-
Os dois primeiros, frei António de Lisboa e cedeu ao involuntário descobridor da América.
e Pêro de Montarroio, fracassaram na missão Seguro do seu êxito «o dito Almirante, por ser
que lhes fora confiada por não dominarem a de sua condição um pouco alevantado, e no
língua árabe. Esse estranho erro não foi recontamento de suas coisas, excedia sempre
cometido com Afonso de Paiva e Pêro da os termos da verdade, fez esta coisa, em ouro,
Covilhã, que saíram de Lisboa em 1487, por prata, e riquezas muito maior do que era» (34).
terra, portanto no mesmo ano em que Dias Se em relação às miríficas riquezas que
zarpava em busca do extremo sul do continente Colombo esperava encontrar no seu Cataio a
africano. viagem fora de facto um fracasso completo, o
Foi só em 1492, ou talvez no ano seguinte, almirante não podia deixar de afirmar o con-
que D. João II recebeu pela mão de mestre trário, que sem dúvida esperava confirmar pos-
José, um seu enviado que encontrara Pêro da teriormente. Certo da razão que afirmara con-
Covilhã no Cairo (Afonso de Paiva faleceu tra todos com espantosa pertinácia, terá usado
entretanto), o circunstanciado relato que aquele mesmo de alguma insolência para com o rei de
enviou ao rei, segundo se supõe com boas razões, Portugal (numa atitude que tinha o seu quê
dando conta das viagens que fizera entretanto de político, sem dúvida, pois não lhe era per-
pelo Oriente (32). mitida, nas circunstâncias em que se encon-
Só nessa altura o Príncipe Perfeito tinha trava, a mínima hesitação); e este foi instado
então as notícias de que carecia para poder por alguns dos seus cortesãos a pura e simples-
enviar uma armada à índia. É porém sabido mente eliminar o genovês (35).
que o rumo dos acontecimentos impediu, por D. João II, que dirigiu os negócios internos
vários motivos diferentes, que esse desiderato
fosse cumprido desde logo. Um deles preci-
pitou-se quase de imediato. (31) CORREIA, G.: Lendas da índia, introdução
e revisão de M. Lopes de Almeida, vol. I, Porto, Lello
A 4 de Março de 1493 a frota de Cristóvão & Irmão, 1975, p. 8.
Colombo, vinda da viagem de descobrimento da (32) ALBUQUERQUE, L.: Navegadores, Viajantes e
América, entrava no rio Tejo. D. João II Aventureiros Portugueses. Séculos XV e XVI, vol. I,
encontrava-se perto de Santarém, onde o man- Lisboa, Caminho, 1987, p. 79 e seguintes.
dou ir ter, para afirmar ao genovês que as terras (33) PINA, R.: Croniqua Delrey Dom Joham II,
edição de Álvaro Martins de Carvalho, Coimbra,
por si descobertas se encontravam no senhorio da
Atlântida, 1950.
Guiné ; pertença do rei de Portugal pela letra (34) PINA, R.: op. cit., p. 184.
do tratado das Alcáçovas firmado em 1479. (35) PINA, R.: op. cit., p. 184.
Colombo e a politica de sigilo na historiografia Portuguesa 115

e externos do país com mão de ferro, não teria negócio caso a viagem do flamengo resultasse
evidentemente qualquer pejo em o fazer se isso em algo de concreto.
fosse a medida mais aconselhável. Pelo con- Confrontavam-se portanto duas concepções
trário, não só não deu ouvidos aos seus con- geográficas bem distintas: a do navegador
Iheiios como deixou Colombo ir em paz. genovês ao serviço da Espanha e a do monarca
Nunca o faria se visse posto em causa o plano português, baseado este nos conhecimentos
que arquitectava madura e longamente, para acumulados pelos anos de experiência das nave-
mais numa altura em que estava à beira do gações efectuadas e das informações que ia
sucesso. recolhendo (e que permitiram aos seus conse-
Voltemos um pouco atrás no curso dos lheiros Diogo Ortiz, mestre José e mestre
acontecimentos, e não nos esqueçamos que Rodrigo concluir pela não viabilidade do plano
Colombo estava em Lisboa quando Bartolomeu colombino quando o ouviram pela boca do
Dias voltou em 1488 da viagem em que dobrou próprio e sobre ele se pronunciaram a pedido
o cabo da Boa Esperança. Nesse mesmo ano do rei), e aquele numa reflexão profunda sobre
voltara a insistir com D. João II para que este as autoridades que creditou. No quadro dos
apoiasse o empreendimento que planeava. conhecimentos geográficos do século xv, como
O rei garantiu-lhe nessa ocasião, como lhe fora dissemos atrás, nada mais natural que a verifi-
pedido, que podia voltar a Lisboa sem ser moles- cação de duas concepções tão opostas, que um
tado (Colombo temia ser preso caso entrasse e outro perseguiram com idêntica convicção.
na capital portuguesa, por razões que des- E a cada um couberam os méritos devidos por
conhecemos), negando-lhe porém e novamente isso mesmo.
o seu apoio. A primeira viagem de Colombo teve pelo
Dois factos são indesmentíveis. Por um menos o efeito de obrigar a uma redifinição
lado a D. João II não moveu qualquer animosi- , de zonas de influência, desactualizada que estava
dade contra o genovês, nem antes nem depois doravante o tratado das Alcáçovas em face da
da primeira viagem deste. Por outro, também descoberta da América. Em 1494, ao assina-
não se desinteressou das viagens a ocidente, rem o tratado de Tordesilhas, tanto D. João II
que estavam longe de lhe ser propostas pela com Fernando e Isabel obtinham exactamente
primeira vez. O monarca não teve qualquer aquilo que queriam: o primeiro a soberania
pejo em avalizar o pedido feito nesse sentido sobre os mares que haviam de levar as naus
pelo flamengo Fernão de Ulmo (nome porque portuguesas à índia, como já sabia de ciência
ficou conhecido em Portugal), que se associou segura; os segundos, a soberania de um novo
depois a João Afonso do Estreito, simplesmente continente cujas potencialidades se iriam revelar
porque neste caso não estava envolvido o mais tarde (36).
financiamento da expedição pela coroa — bem É indubitável que D. João II soube anular
ao contrário de Colombo, cujas exigências eram a interferência da arbitragem parcial de Ale-
tidas por exorbitantes. xandre VI (e foi o próprio Jerónimo Zurita, o
Tudo isto reflecte o interesse, ou, mais pre- insupeito cronista de Fernando o Católico, que
cisamente, o desinteresse de D. João II pelo a classificou assim no tomo V dos Anales de
caminho marítimo do ocidente. No fundo, e la Corona de Aragon (37) ), ao propor que a
numa só palavra, Colombo era inofensivo para linha divisória de Tordesilhas passasse 370 léguas
os seus propósitos. Por isso lhe garantiu o a ocidente do arquipélago de Cabo Verde, e
acesso a Lisboa em 1488, por isso não obsta- não a 100, como queria o Papa. Esta vitória
culizou a sua saída em 1493. diplomática encontrou eco do outro lado: a
Não há neste processo sombra de sigilo
de Estado: repare-se, facto que por vezes é (36) Sobre o tratado de Tordesilhas e suas conse-
convenientemente esquecido, que o rei não teve quências, El Tratado de Tordesillas y su proyección,
problemas em autorizar um estrangeiro a nave- Actas do I Colóquio Luso-Espanhol de História Ultra-
gar para ocidente (em relação ao qual ninguém marina, 2 vols., Valladolid, Universidade de Valladolid,
1973.
se lembrou até agora de dizer que fosse um
(37) ZURITA, J.: Anales de la Corona de Aragón,
espião). Porque já que não havia lugar a tomo V: Historia del Rey Don Hernando El Cattolico,
qualquer investimento só podia ganhar com o Saragoça, Lorenço de Robles, 1610.

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116 Francisco Contente Domínguez

Fernando e Isabel interessava por igual que o que o vergou antes de ver cumprida a viagem
diferendo se resolvesse, e daí que concordassem cuja realização perseguiu tão tenazmente e que
com a ultrapassagem de uma intervenção papal preparou quase até ao último momento.
que lhes era favorável, e uma vez que as Onze anos depois, em 1506, na miséria e
370 léguas pedidas por seu primo não afectavam desacreditado, morria dolorosamente, tal como
a soberania das novas conquistas. D. João, um homem tão visionário como ele
Foi porém menos afortunado em relação ao — e foram talvez únicos no seu tempo. Sem
termo do grande objectivo que norteou o seu nunca ter alcançado as riquezas do Cataio,
reinado e teria depois consequências tão pro- afirmando até ao último momento que no fundo
fundas para a história da Europa, a partir de estava certo (porventura menos convencido que
então voltada definitivamente em direcção a obrigado a manter-se coerente consigo próprio,
um Oriente longínquo e ignorado : tolhido pelas contra toda a evidência), Colombo abriu as
inúmeras dificuldades que a política interna do portas do Ocidente mas não viu também cum-
reino lhe foi levantando, como a oposição da prido o sonho que foi a mola vital de toda uma
grande nobreza ou o falhanço da união ibérica, vida.
desvanecida em fumo com a morte do herdeiro Numa daquelas ironias em que é tão fértil,
da coroa D. Afonso, vitimado por um acidente o destino não permitiu que qualquer dos dois
ocorrido pouco depois do casamento com lograsse o sucesso que perseguiram obstina-
D. Isabel, filha dos Reis Católicos, a par dos damente. Mas deixou que, cada um à sua
problemas que a gestão do nascente império lhe maneira, o príncipe de Portugal e o almirante
iam levantando, esperando ainda pelas notícias de Génova forjassem uma realidade que dora-
dos seus viajantes e vendo-se logo depois obri- vante era em tudo diferente daquilo que a
gado a batalhar pelas vantagens diplomáticas Europa podia suspeitar quando anos antes
sem as quais pouco tinha de seguro, D. João dois jovens de vontade férrea se lançaram à
nunca viu partir as naus da índia. Morreu conquista de um mundo que transformaram
em 1495, minado por uma doença implacável completamente.

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