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GUNTHER JAKOBS MANUEL CANCIO MELIA Direito Penal do Inimigo J25d Jakobs, Ginther Nocées e Criticas Direito Penal no inimigo: nogbes ¢ criticas / Gunther Jakobs, Manuel Cancio Melié; org. e trad. André Luis Callegari, Nereu José Giacomolli, ~ Porto Alegre: Livea- ria do Advogado Ed., 2005. Bip, 1x1 cm Organizagio ¢ Tradugso eer . André Luis Callegari 1. Direito Penal, 2, Punibilidade. 3. Politica criminal Nereu José Giacomolli 4. Criminalidade. 1. Cancio Melis, Manuel. Il. Callegari, André Luis, org. Ill. Giacomolli, Nereu José, org. IV. Titulo. cpu - 343.2 Indices pera o catdlogo sistemstice: Direito Penal Punibilidade Poiticn ein Criminalidade In (Bibliotecéria responsével: Marta Roberto, CRB-10/652) livraria DO ADYOGADO ‘editora Porto Alegre 2005 1. Introdugao: a pena como contradigao ou como seguran¢a Quando no presente texto se faz referéncia ao Direito penal do cidadao e ao Direito penal do inimigo, isso no sentido de dois tipos ideais que dificilmente aparecerao transladados a realidade de modo puro: inclusive no processamento de um fato delitivo cotidia- no que provoca um pouco mais que tédio - Direito penal do cidadao — se misturaré a0 menos uma leve defesa frente a riscos futuros - Direito penal do inimigo -, e inclusive o terrorista mais afastado da esfera cidada é tratado, ao menos formalmente, como pessoa, ao Ihe ser concedido no processo penal! os direitos de um acusado cidadao. Por conseguinte, nao se trata de contrapor duas esferas isoladas do Direito penal, mas de descrever dois polos de um sé mundo ou de mostrar duas tendéncias opostas em um sé contexto juridico-penal. Tal descrigao revela que ¢ perfeitamente possivel que estas tendéncias se sobreponham, isto é, que se ocultem aquelas que tratam 0 autor como pessoa e aquelas outras que 0 tratam como fonte de perigo ou como meio para intimi- dar aos demais. Que isto fique dito como primeira consideracao. TFundamentalmente a respeito da falta de comunicagto, ve item IV, infra, Direito Penal do Inimigo 21 Em segundo lugar deve limitar-se, previamente, que a denominagio «Direito penal do inimigo» nao pretende ser sempre pejorativa. Certamente, um Direito penal do inimigo é indicativo de uma pacificagao insufi- ciente; entretanto esta, no necessariamente, deve ser atribuida aos pacificadores, mas pode referir-se também aos rebeldes. Ademais, um Direito penal do inimigo implica, pelo menos, um comportamento desenvolvido com base em regras, ao invés de uma conduta esponta- nea e impulsiva. Feitas estas reflexdes prévias, comega- rei com a parte intermediaria dos conceitos, ou seja, com a pena, A pena 6 coacao; ¢ coagao - aqui sé sera abordada de maneira setorial - de diversas classes, mescladas em fntima combinagao. Em primeiro lugar, a coacao é porta- dora de um significado, portadora da resposta ao fato: 0 fato, como ato de uma pessoa racional, significa algo, significa uma desautorizacao da norma, um ataque a sua vigéncia, e a pena também significa algo; significa que a afirmagao do autor é irrelevante e que a norma segue vigente sem modificacdes, mantendo-se, portan- to, a configuracao da sociedade. Nesta medida, tanto 0 fato como a coacao penal s4o meios de interacio simb« lica? e 0 autor é considerado, seriamente, como pessoa; pois se fosse incapaz, nao seria necessario negar seu ato. Entretanto, a pena nao 6 significa algo, mas tam- bém produz fisicamente algo. Assim, por exemplo, 0 preso nao pode cometer delitos fora da penitenciaria: uma prevencao especial segura durante 0 lapso efetivo da pena privativa de liberdade. E possivel pensar que € improvavel que a pena privativa de liberdade se conver- tana reacao habitual frente a fatos de certa gravidade se ela nao contivesse este efeito de seguranga. Nesta medi- da, a coacao nao pretende significar nada, mas quer ser 2. respeito, vid. JAKOBS, Norm, Person, Gesellschaft, 2 edigdo, 1999, p.98 © 22 Giinther Jakobs efetiva, isto é, que nao se dirige contra a pessoa em Direito, mas contra o individuo perigoso. Isto talvez se ~perceba, com especial clareza, quando se passa do efeito Ge seguranga da pena privativa de liberdade a custodia de seguranca, enquanto medida de seguranga (§ 61 nim 3, § 66 StGB): nesse caso, a perspectiva nao 6 contempla retrospectivamente o fato passado que deve ser subme- tido a juizo, mas também se dirige - e sobretudo ~ para frente, ao futuro, no qual uma «tendéncia a [cometer] fatos delitivos de consideravel gravidade» poderia ter efeitos «perigosos» para a generalidade (§ 66, par. 1°, nim. 3 StGB). Portanto, no lugar de uma pessoa que de per si é capaz, e a que se contradiz através da pena, aparece o individuo? perigoso, contra o qual se procede te Ambito: através de uma medida de seguranca, nao mediante uma pena - de modo fisicamente efetivo: luta contra um perigo em lugar de comunicagao, Direito penal do inimigo (neste contexto, Direito penal ao me- nos em um sentido amplo: a medida de seguranga tem como pressuposto a comiss4o de um delito) ao invés do Direito penal do cidadao, e a voz «Direito» significa, em ambos 0s conceitos, algo claramente diferente, como se mostraré mais adiante. O que se pode vislumbrar na discussio cientifica da atualidade a respeito deste problema é pouco, com tendéncia ao nada. £ que nao se pode esperar nada daqueles que buscam razao em todas as partes, garantin- do-se a si mesmo que a tem diretamente e proclamando-a sempre em tom altivo, ao invés de dar-se 0 trabalho de 1 respeito dos concelts «individuoe e«pesson, vd. JAKOBS, Norm, Per ‘0, Geslschaft (nota 2), p. 9 © 88, 29 ¢ 58. 4 4 questio aparece primeito em JAKOBS, Z5IW, 97 (1985). p 75,783 e item, em: ESER el (ed), Dc Deutsche Strafecswissenselaft or der Jabra Senco. Ricktestnnang wd Ausblik, 2000, p47 © 3, BI e ssa respelto SCHULZ, 2st, 112 (2000), p. 653 e 659 ¢ ss contraiamente ESER, lo. ‘ib (Die Beusche Strafechsusensha),p. 437 ¢ 444 € soz SCHUNE- MANN, GA 2001, p.205 e 38, 210 €38. Diteito Penal do Inimigo a) i... configurar sua subjetividade, examinando aquilo que ée pode ‘ser. Entretanto, a filosofia da Idade Moderna ensina o suficiente para, pelo menos, estar em condiges de abordar o problema. re Giinther Jakobs 2. Alguns esbocos iusfilosdficos Denomina-se «Direito» o vinculo entre pessoas que sio titulares de direitos e deveres, ao passo que a relacao com um inimigo nao se determina pelo Direito, mas pela coacao. No entanto, todo Direito se encontra vinculado a autorizacio para empregar coagdo,’ e a coagio mais intensa € a do Direito penal. Em conseqiiéncia, poder-se- ia argumentar que qualquer pena, ou, inclusive, qual- quer legitima defesa se dirige contra um inimigo. Tal argumentacdo em absoluto é nova, mas conta com desta- cados precursores filoséficos. Sao especialmente aqueles autores que fundamen- tam 0 Estado de modo estrito, mediante um contrato, entendem 0 delito no sentido de que o delingiiente infringe o contrato, de maneira que jé nao participa dos beneficios deste: a partir desse momento, jé nao vive com os demais dentro de uma relagéo jurfdica. Em correspondéncia com isso, afirma Rosseau® que qual- quer «malfeitor» que ataque o «direito social» deixa de ser «membro» do Estado, posto que se encontra em guerra com este, como demonstra a pena pronunciada 5 KANT, Die metaphysike der Site. Erste Theil. Meaphysiche Anfangsgrunde er Rechislebr, erm: Kant's Werke, Akademie-AUspabe, tomo 6, 1907, p. 203 © 8, 231 inletung in die Rechslehre,§ D) © ROSSEAU, Stat und Geslscaf. «Contr socal, tradutido e comentado or WEIGEND, 1958, p. 38 (segundo liv, capital V) Direito Penal do inimigo 25 contra o malfeitor. A conseqiiéncia diz assim: «ao culpa- do se Ihe faz morrer mais como inimigo que como cidadao», De modo similar, argumenta Fichte: «quem abandona o contrato cidadao em um ponto em que no contrato se contava com sua prudéncia, seja de modo voluntétio ou por imprevisdo, em sentido estrito perde todos os seus direitos como cidadao e como ser humano, € passa a um estado de auséncia completa de direitos»? Fichte atenua tal morte civil, como regra geral mediante a construcao de um contrato de peniténcia,? mas nao no caso do «assassinato intencional e premeditado»: neste Ambito, se mantém a privacdo de direitos: «... ao conde- nado se declara que é uma coisa, uma peco de gado».!° Com férrea coeréncia, Fichte prossegue afirmando que a falta de personalidade, a execugao do criminoso «nao [é uma] pena, mas s6 instrumento de seguranca». Nao é oportuno entrar em detalhes, pois jé com este breve esboco é possivel pensar que se mostrou que o status de cidadao, nao necessariamente, é algo que nao se pode perder, Nao quero seguir a concepgio de Rosseau e de Fichte, pois na separagao radical entre o cidadao e seu Direito, por um lado, e 0 injusto do inimigo, por outro, é demasiadamente abstrata. Em principio, um ordena- mento juridico deve manter dentro do Direito também 0 criminoso, e isso por uma dupla razdo: por um lado, 0 delingiiente tem direito a voltar a ajustar-se com a sociedade, e para isso deve manter seu status de pessoa, 7 FICHTE, Gradlage des Naturrechts nach den Prinzpien der Wissenschailebrel, cent Sitiche Werke, ed. a cargo de JH, FICHTE, Zweite Abthellung. A. Zur Rechts ~ und Siteniehre, tomo primeira, ., p. 260. 8 Como na nota 7. 9 Grundlage des Naturrechts (nota 7), p. 260 e ss. Dizendo-se de passagem: win contrato com um sujeitoexpulso da sociedad civil, com alguém sem direitos? 10 Grundlage des Naturrechts (nota 7), p. 278 e ss. 1 Grundlage des Naturreckts (nota 7), p- 280. 26 Giinther Jakobs de cidadao, em todo caso: sua situagao dentro do Direi- to. Por outro, o delingiiente tem o dever de proceder a reparagio e também os deveres tem como pressuposto a existéncia de personalidade, dito de outro modo, o delingiiente ndo pode despedir-se arbitrariamente da sociedade através de seu ato. Hobbes tinha consciéncia desta situagao. Nominal- mente, é (também) um tedrico do contrato social, mas materialmente 6, preferentemente, um filésofo das insti- tuigdes. Seu contrato de submissao - junto a qual apare- ce, em igualdade de direito (!) a submissdo por meio da violéncia ~ nao se deve entender tanto como um contra- to, mas como uma metéfora de que os (futuros) cidadaos nao perturbem o Estado em seu processo de auto-orga- nizacao.! De maneira plenamente coerente com isso, HOBBES, em princfpio, mantém o delingiiente, em sua funcao de cidadao:"* o cidadao nao pode eliminar, por si mesmo, seu status. Entretanto, a situacio é distinta quando se trata de uma rebeliao, isto é, de alta traigéo: «Pois a natureza deste crime esta na resciso da submis- sio,"* 0 que significa uma recafda no estado de nature- za... E aqueles que incorrem em tal delito nao sao castigados como stibditos, mas como inimigos».”> 12 Ci. também KERSTING, Die poliische Philosophie des Geseliscafsveraes, 1984, p. 95 «0 contrato Fundamental € a forma conceitual dono da qual hi ue introduzir stuag poles empirica para se acessvel ao conetment© Gientifico; constitu o esquema de interpretaio sob o qual dever subsuir-se 0s process histrcos de fundag3o do Estado para poder ser compreendids politicamente. Ide emt iden (ed), Thomas Hobbes. Leviathan et. (Klassiker ‘Auslegen), 1996, p. 211 e 8, 213 e ss 13 HOBBES, Leviathan order Sto, Form und Gevlt eines Krliche und Br {elichen Staats, ed. a cargo de FETSCHER, traduio de FUCHNER, 1988, p 357 es. (capitulo 28) ‘Sera mas coreo dizer: na supresso ft a instituiges nfo sto susce- 25 HOBBES, Leviothan (nota 13), p. 242 (capitulo 28); idem, Vom Birger, em: GAWLICK (ed), Hobbes: Vom Metihen. Vant Birger, 1959, p- 233 (capitulo Parigrafo 22) Para Rousseau e Fichte, todo delingiiente é, de per si, um inimigo; para Hobbes, a0 menos 0 réu de alta traigao, assim 0 é. Kant, quem fez uso do modelo contratual como idéia reguladora na fundamentacao e na limitagao do poder do Estado,'* situa o problema na passagem do estado de natureza (ficticio) ao estado estatal. Na cons- trugao de Kant, toda pessoa esta autorizada a obrigar a qualquer outra pessoa a entrar em uma constituicao cidada.”” Imediatamente, coloca-se a seguinte questao: 0 que diz Kant aqueles que nao se deixam obrigar? Em seu escrito «Sobre a paz eterna», dedica uma extensa nota, ao pé de pagina, ao problema de quando se pode legitimamente proceder de modo hostil contra um ser humano, expondo o seguinte: «Entretanto, aquele ser humano ou povo que se encontra em um mero estado de natureza, priva... [da] seguranca [necessaria], e lesiona, jé por esse estado, aquele que est ao meu lado, embora nao de maneira ativa (ato), mas sim pela auséncia de legalidade de seu estado (statu iniusto), que ameaca constantemente; por isso, posso obrigar que, ou entre comigo em um estado comunitario-legal ou abandone minha vizinhanca».” Conseqiientemente, quem nao participa na vida em um «estado comunitério-legal», deve retirar-se, o que significa que é expelido (ou impe- lido & custédia de seguranca); em todo caso, nao ha que KANT, Ober den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, tut aber mich fir die Praxis, em: Werke (nota 5), 8, p. 273 e s8. 297; vid. a respelto KERSTING, Philsophi (nota 12), p. 199 e s 1 KANT, Metpysit der Site roa 8). 255 e581. Tel 1 Haupstck, P.8). 18 KANT, Zum ewigen Frieden. Ein pilosophisher. Entour, em: Werke nota 5), 8, p. Mie ss, 349 2° apartado, nota). 19 Ao afirmar fo, Cit (nota 18) que unicamente (porém, a0 menos, sim neste ‘aso) posso sproceder de modo hostil» contra quem «ji me tenha Tesionado ativamente, iso se refere a um delito no westado cidadgo-legal, de maneira aque shostil caracterza a produgo de um mal conforme 4 Le! penal, e 30 3 uma despersonalizagao. 28 Ginter fobs ser tratado como pessoa, mas pode ser «tratado», como anota expressamente Kant,” «como um inimigo».?* Como acaba de citar-se, na posicao de Kant nao se trata como pessoa quem «me ameaga...constantemente», quem nao se deixa obrigar a entrar em um estado cidadao. De maneira similar, Hobbes despersonaliza 0 réu de alta traicao: pois também este nega, por principio, constituigao existente. Por conseguinte, Hobbes e Kant conhecem um Direito penal do cidadao contra pessoas que nao delingiiem de modo persistente por princ{pio - e um Direito penal do inimigo contra quem se desvia por principio. Este exclui e aquele deixa incélume 0 status de pessoa. O Direito penal do cidadao é Direito também no que se refere ao criminoso. Este segue sendo pessoa, Mas o Direito penal do inimigo Direito em outro sentido. Certamente, o Estado tem direito a procu- rar seguranga frente a individuos que reincidem per- sistentemente na comissao de delitos. Afinal de contas, a custédia de seguranca 6 uma instituigao juridica. Ainda mais: os cidadaos tém direito de exigir do Estado que tome medidas adequadas, isto é, tém um direito a seguranca,® com base no qual Hobbes fundamenta e limita o Estado: finis oboedientiae est protectio.®® Mas neste direito nao se encontra contido, em Hobbes, 0 réu de 20 Zum ewigen Frieden (nota 18), p. 39. 21 Esta afirmacio, entretanto, contraria a posigio de KANT, no que tange 30 problema da mentira, no que KANT nag tem suficentemente em conta a Sependéncia do contexto (sil: reciprocidade) da personalidade praticada’ ‘Uber ein vermeintliches Recht aus Menschenlibe zuligen, em: Werke (nota 5), 8, p.421 es, Sobre esta questio, ft. OBERER, em: GEISMANN e OBERER (6d) kant und echt der Lige, 1986, p. 7 es; PAWLIK, Das unerlaubte Verhalten beim Betrug, 1999, p. 89 ¢ ss; ANNEN, Das Problem’ der Wahrhaftigheit in der Philosophie der deutschen Aufilirung. Ein Bettrag 2ur Ethik und zum Naturrecht es 18. abrhunderts, 1997, p. 97 e 22 Fundamental ISENSEE, Das Grundrecht auf Sicherheit, Zu den Schutzpfichten des Jriheitichen Verfessungsstaates, 1983, 2 O fim da obediencia € a protegio; HOBBES, Leviathan (nota 13), p:171 (capitulo); idem, Vor Birger (nota 15), p. 132e ss. (capitulo 6, parsgrafo 3). Direito Penal do Inimigo 29 alta traigdo; em Kant, quem permanentemente ameaca; trata-se do direito dos demais. O Direito penal do cidadao é 0 Direito de todos, 0 Direito penal do inimigo é daqueles que 0 constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é s6 coagio fisica, até chegar 2 guerra. Esta coacao pode ficar limitada ‘em um duplo sentido. Em primeiro lugar, o Estado, nao necessariamente, excluir4 o inimigo de todos os direitos, Neste sentido, o sujeito submetido a custodia de segu- ranga fica incélume em seu papel de proprietério de coisas. E, em segundo lugar, o Estado nao tem por que fazer tudo 0 que é permitido fazer, mas pode conter-se, em especial, para nao fechar a porta a um posterior acordo de paz. Mas isto em nada altera o fato de que a medida executada contra o inimigo nao significa nada, mas s6 coage. O Direito penal do cidadao mantém a vigéncia da norma, 0 Direito penal do inimigo (em sentido amplo: incluindo 0 Direito das medidas de seguranga) combate perigos; com toda certeza existem miiltiplas formas inter- mediarias. 30 Ginter Jakob 3. Personalidade real e periculosidade fatica Falta formular uma pergunta: por que Hobbes e Kant realizam a delimitagao como se tem descrito? Darei forma de teses a resposta: nenhum contexto normativo, e também 0 € 0 cidadao, a pessoa em Direito, é tal — vigora - por si mesmo. Ao contrario, também ha de determinar, em linhas gerais, a sociedade. $6 entao é real. Para explicar esta tese, comecarei com algumas consideragées acerca do que significa - sit venia verbo 0 caso normal da seqiiéncia de delito e pena. Nao existem os delitos em circunstancias caéticas, mas sé como violagao das normas de uma ordem praticada. Ninguém tem desenvolvido isto com tanta clareza como Hobbes,* que atribui a todos os seres humanos, no estado de natureza, um ius naturale a tudo, quer dizer, na termino- logia moderna, s6 um ius assim denominado, a respeito do qual precisamente nao se encontra em correspondén- cia uma obligatio, um dever do outro, mas que, ao contrério, s6 6 uma denominacio da liberdade normati- vamente ilimitada, unicamente circunscrita pela violén- cia fisica de cada individuo, de fazer e deixar de fazer 0 que se queira, contanto que se possa. Quem quer e pode, 24 Leviathan (nota 13), p. 99 e ss. (capitulo 14). Direito Penal do tnimigo 31 pode matar alguém sem causa alguma. £ este, como HOBBES constata expressamente® seu ius naturale. E isso nada tem em comum com um delito, jé que no estado de natureza, na falta de uma ordem definida, de maneira vinculante, nao podem ser violadas as normas de tal ordem. Portanto, os delitos s6 acontecem em uma comuni- dade ordenada, no Estado, do mesmo modo que o negativo s6 se pode determinar ante a ocultagao do positivo e vice-versa. E 0 delito nao aparece como princfpio do fim da comunidade ordenada, mas s6 como infragao desta, como deslize repardvel. Para esclarecer 0 que foi dito, pense no sobrinho que mata seu tio, com 0 objetivo de acelerar o recebimento da heranga, a qual tem direito. Nenhum Estado sucumbe por um caso destas caracterfsticas. Ademais, 0 ato nao se dirige contra a permanéncia do Estado, e nem sequer contra a de suas instituigoes. O malvado sobrinho pretendé am- parar-se na protecao da vida e da propriedade dispensa- das pelo Estado; isto é, se comporta, evidentemente, de maneira autocontraditéria. Dito de outro modo, opta, como qualquer um reconheceria, por um mundo insus tentavel. E isso no sé no sentido do insustentavel, desde 0 ponto de vista pratico, em uma determinada tuaco, mas jé no plano te6rico. Esse mundo é impen- savel. Por isso, o Estado moderno vé no autor de um fato = de novo, uso esta palavra pouco exata — normal, diferentemente do que ocorre nos teéricos estritos do contratualismo de Rosseau e de Fichte, nao um inimigo que h de ser destrufdo, mas um cidadao, uma pessoa que, mediante sua conduta, tem danificado a vigéncia da norma e que, por isso, ¢ chamado - de modo coativo, mas como cidadao (endo como inimigo) ~ a equilibrar 0 25 Leviathan (nota 13), p. 99. (capitulo 14) 32 Giinther Jakobs dano, na vigéncia da norma. Isto se revela com a pena, quer dizer, mediante a privacao de meios de desenvolvi- mento do autor, mantendo-se a expectativa defraudada pelo autor, tratando esta, portanto, como valida, e a maxima da conduta do autor como maxima que nao pode ser norma.* Entretanto, as coisas somente sao tao simples, in- clusive quase idflicas ~ 0 autor pronuncia sua prépria sentenga jé pela inconsisténcia de sua maxima -, quando o autor, apesar de que seu ato ofereca garantia de que se conduzir, em linhas gerais, como cidadao, quer dizer, como pessoa que atua com fidelidade ao ordenamento juridico. Do mesmo modo que a vigéncia da norma, nao pode manter-se de maneira completamente contrafatica, tampouco a personalidade. Tentarei explicar brevemen- te 0 que foi dito, abordando primeiro a vigéncia da norma. Pretendendo-se que uma norma determine a confi guragdo de uma sociedade, a conduta em conformidade com a norma, realmente, deve ser esperada em seus aspectos fundamentais. Isso significa que os cdlculos das pessoas deveriam partir de que os demais se comporta- rao de acordo com a norma, isto 6, precisamente, sem infringi-la. Ao menos nos casos das normas de certo Peso, nas quais se pode esperar a fidelidade a norma, necessita-se de certa confirmagio cognitiva para poder converter-se em real. Um exemplo extremo: quando é séria a possibilidade de ser lesionado, de ser vitima de um roubo ou talvez, inclusive, de um homicidio, em um determinado parque, a certeza de estar, em todo caso, em meu diteito, no me fard entrar nesse parque sem necessidade. Sem uma suficiente seguranca cognitiva, a vigéncia da norma se esboroa e se converte numa pro- messa vazia, na medida em que jé nao oferece uma 26 Che supra Direito Penal do Inimigo

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