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DAS LUZES AS SOLEIRAS: perspectivas criticas na literatura brasileira contemporanea Organizadores Ricardo Barberena Vinicius Carneiro ‘adoe dit data ei ag eevee Ca Baril» Promogine Cris Lamina oS pia pean rp ‘me onde predo meno oy qualqee mes som aon expres ‘iecdtore ‘Tiel: Das aes eer perspectives mu tert base ‘nuapernan Organindoron: Red Barbaro: Vnl Caria rie nie ‘Eaton: ins Marian Cartan | Ca Pri Lominara Projeto pice coordenagho: veya Bscnsin | Port (Capa vey Binsin AS Janie Has | Para Reviares Aine Cota oa stn, Diora Nal Laue Lotz, Maths Mart Marin to Sou, Rais Trail Sn Paar Bary de Revie Ortogréfc: gin Del Boao [ibitecria responsive: Paula Li 1 Dass ar rpc tig or a 085.1817 em iia) xian 1. Liters ras antares nein 2. Tera tri Baer, dy nC, inh og Catalogo na Fonte Pla Pigusde Ln GRD 107229 Canin Are ta | CEP DCO Ba ts LTINLA ao Anger Br 1 855308) 71008 Comissao Editorial da Série Limiar Anderson Luis Nunes da Mata (Universidade de Brasil) Antonio Barros de Brito Junior (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Anténio Mareos Vieira Sanseverino (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Camila Gonzatto da Silva (Pontificia Universidade Catétiea do Rio Grande do Sul| Universidade Livre de Berlim) Claire Wiliams (Universidade de Oxford) Bama Cristina de Gis (Faculdade 7 de setembro) Georg Wink (Universidade de Copenhage) ‘gor Ximenes Graciano (Universidade de Brastlia) ‘Jeromy Lehnen Universidade da Nave México) ‘ost Leonardo Tonus Patis-Sorbonne) Leila Labnen (Universidade do Novo México) Liicia Osana Zolin (Universidade Estadual de Marings) Lucie Tennina (Universidade de Buenos Aires) Lanciene Almeida de Azevedo (Universidade Federal da Bahia) ‘iss Antonio de Assis Brasil (Pontificia Universidade Catsica o Rio Grande do Sul) RODRIGUES, Sérgio Rodrigues (2010) Noticia da atual literatura Drasileira:instinto de internacionalidade, Veja om: line, Sto Paulo, 20/08/2010. Disponivel em: , Acesso: 12 ot. 2014 SARDUY, Severo (1987(1973). Suplemento. In: SARDUY, Severo: Ensayos generales eobre et Barroco. Buenos Aires Fondo de Culture Boonémica, 209-212, RON, Joca Reiners (2005). "Poliglota em terra de surdos" In: PELLIZZARI, Daniel: Dedo negro com unha. Sto Paulo: DBA, p. 167-170. TBIXEIRA, Jerdnimo (2008). A harda dos transgressores, Via on-line, Sto Paulo, 01 mar 2006, Disponivel em: , Ultimo acess 12 out, 2024 ee Elvira Vigna: a traigéio como modo de representacao Anderson da Mata Elvira Vigna nfo é uma escritora frequentada pelos (poucos) veiculos da (acanhada) midia que se faz em tor no da vida literdria no Brasil. Se no chega a ser uma escritora reclusa, sua participagio na vida literdria no éexatamente festiva. Como figura pailica, com site cons tantemente atualizado na internet, perfis ativos om re es sociais, participacdo em debates e eventos e publica iio de textos ndo-ficcionais sobre artes plisticas ou lite ratura, ha uma persona que ela elabora para o piiblico, ¢ ‘que, evidentemente, ao se fazer assinatura, pode afetar ‘© modo como o leitor que acompanha essas intervensdes acessa sua obra. Por essa razio, na tentativa de compre ender alguns aspectos relativos ao modo como Vigna pro: poe uma ideia representacio a partir, principalmente, de seus romances, 0 conjunto de seus textos publicados até aqui serd tratado como wma obra, que, evidentemente, 6 269 assinada por uma autora. Nao se trata de um esforgo de ‘comparagio que tente explicar uma obra pela outra, mas a perseguicio de uma hipétese a partir de uma pista que ficou mais clara para este leitor a partir de Nada a dizer (2010), Essa hipétese consiste em aproximar o gesto narrado da traigio, em suas diversas camadas, ao pré: prio fendmeno da representacio literéria, [Em busea de um narrador “existente na vida real, fr- ail e individualizado” (Vigna, 2011), Vigna tem escrito tuma obra mareada pela instabilidade na relagio estabe- Tecida com o tempo, com o espago e com os personagens = um narrador deacentrado, tipo frequente na literatura brasileira contempordnea, de acordo com a definigao de Jaime Ginzburg (2012, p. 201). Isso porque, ao inscre- vor seus narradores em um modo de contar as histérias marcado por pontos de vista radicalmente localizados, a autora, malgrado as intengdes declaradas ou veladas dos nnarradores, forga o texto na direcao da suspensio de cre: dulidade do leitor. O pacto estabelecido entre autor, obra, narrador e leitor é construfdo, & maneira machadiana, A margem da confiabilidade das informagdes prestadas ‘pelos narradores. Esse pacto se estabelece na modo como cle se expe. Vigna nfo parece disposta a propor jogos de ‘lusio ficeional que terminem na exposigio metaling tica da artificalidade da linguagem e do niilismo do “nko ‘hd hada 1a”, Hé alguma verdade nos seus narradores ~ seres de fiegdo, so também sujeitos possiveis, densos, ‘espessos. Essa espessura, decorrente da prépria instabi- Tidade, 60 que faz com que haja zonas de sombras inaces- siveis ao leiter, que é recompensado, por outro lado, pelos fachos de luz que Ihe permitem flagrar a fragilidade das {niimeras tentativas desses narradores em compreender, revelay, incriminar e se vingat. ‘A inatabilidade dos narradores dos romances de Vigna ‘assume formas especificas em cada romance. Em Coisas {que 08 homens nao entendem (Vigna, 2002), por exemplo, a narradora assume a roflexiio tebrica sobre a impossibi lidade de representar como o ponto a partir do qual seu Aiseurso se expande, Um tinico retrato nfo pode conter toda a histdria, apenas seus fragmentos, seus restos e, ainda assim, muito fica de fora. Essa reflexdo, devorrente da tarefa de fotografar o Brasil que Ihe 6 proposta, econ no romance por meio das idas ¢ vindas no tempo e no ‘eepago vividas pelas narradora-protagonista, incapaz de remontar com clareza ~ ou com certeza ~ 0 episédio do crime em torno do qual o romance se constrsi, Em Deizei ele 1d ¢ vim (Vigna, 2006), a instabilidade atinge a relagio da narradora com o espago ~ seus per: cursos sem endereco certo ~, sua eapacidade de acossar a ‘meméria para recapitular o crime que esta no centro da narrativa, ¢ até mesmo com o modo como ela nomeia os personagens. Esse iltimo aspecto revela-se um recurso cficiente para desestabilizar a prépria leitura do roman: ce, O poder de nomear garantido no enuncindor 6, assim, posto em xeque, bem como 0 uso do nome préprio como Ancora para a estabilidade e a coeréncia do desenho iden titério de um personagem. O que deu para fazer em matéria de historia de amor (Wigna, 2012) apresenta no préprio titulo a provacagio ‘em relagio a0 meio fracasso do narrador. Ciente da falta de Légiea do vivido enquanto experiéneia @ do papel de ‘quem conta a histéria na atribuigdo de nexo a experién- cia representada na linguagem, a narradora perde-se na tentativa de atribuir sentido aos eventos do passado, e, sem reencontrar-se, apoia-se na invengio des fatos em fangaio da busca por argumentos que provem sua tese s0- bre um suposto crime, que & medida que é explorado pela narradora, vai se tornando cada vez menos provavel, £ também om tormo da suposigio de um erime que a narradora de Por escrito (Vigna, 2014) constréi seu texto. A falsa certeza, no entanto, jé nem se faz presente. A morte tgica —e, de certa maneira, espetacular ~ de uma perso- rnagem assombra a narradora, que nilo faz senio se persgun- tar o que pode ter aoontecido, temperando a meméria do ‘evento com corto rancor. Neste tltimo romance da autora, a busca pelo narrador frigl, mas real, sustenta a instabi: lidade, principalmente, por desdenbar da possibilidade de estabelecer uma relacio afetiva nos moldes tradicionais Em Nada o dizer (Vigna, 2010), a narradora, conside- vada pela autora a época de seu langamenta como a mais 268 problematizada de sua obra, medita em torno da infide lidade do marido. A traigio é 0 tema em tomo do qual toda a narraeio se constréi, contaminando a linguaget {o texto. Mais uma vez, um crime atravessa a histéria, de forma, no entanto, perifériea; e os dados frageis que sus- tentam a hipétese do assassinato do marido da amante de seu companheiro 86 reforgam o fato de que a traigio institui um modo de narrar, empenbado em uma forma de vinganga, Os dois gestos — a traigio e a vinganca -, por suspenderem os liames entre o enunciado ¢ os seus referentes, acentuando 20 perspectivismo da narracao, instauram no texto a incerteza. Mais que isso, fazem da incerteza a prépria razio ética do texto. ‘A partir dessa hipétese de que traigio e vinganga de- ‘terminam uma epistemologia — e dat uma estética ~ nos romances de Vigna, proponho aqui uma digressio em Airegdo a trés outros personagens que atravessam a his. ‘ria da literatura e que podem ajudar a compreender 0 processo de represontagio literéria proposto nos roman: ces aqui discutidos: Medeia, Sirahzad © Bentinho. Aju- dam a compreender porque, considerada do carster limi nar do texto literdrio (Mignolo, 2003, p. 42), isto é, suas Iiiltiplas faces constituidoras de uma gnose que ultra passa a ficglo, as narrativas nas quais esses personagens| se inserem, transformadas em mito, sio, elas também, parte das ferramentas disponfveis para a compreensio dda narrativa contemporanea. 67 Na Medeia de Buripedes, o mito situa a traigio no cen- to da trama, como 0 motivador do filicfdio, Abandonada por Jasfo, Medeia assassina os préprios filhos como wm ato desesperado de vinganga ~ o diltimo e mais radical Dossivel. O crime, narrado como involuntério em outras verses, torna-se doloso em Euripedes. A heroina, dessa forma, apresenta ao mesmo tempo a justa explicagio para sua revolta, porém, valo-se de seu poder para ir além e cometer 0 gesto inaceitivel do sacrificio de dois inocentes, seus descendentes, em nome da defesa da honra. Desse ‘modo, a personagem, apesar de justifienda, passa a encar- nar a prépria injustiga — e impossibilita a construgio de alguma forma de confiabilidade em torno de si, 0 asaassi- nato de Glauce, por quem Jasio a abandona, é 0 gesto que completa a vinganga de Medeia, deixando-o sem descen- dentes e sem esposa - sem poder, em suma. A personagem de Euripedes interessa aqui porque ela instaura um segundo grau de ineonfiabilidade do heréi tuiigico: se hd uma falha que sela o destino trégico sem que o horéi necessariamente tenha consciéncia dela, aqui, Medeia assume a responsabilidade: “Nao me inte: rressa nada se me chamas! looa ou tirrena Cila:fiz/ que devia ao te atingir no intimo” (Buripedes, 2010, p. 147). Embora ela afirme que aquilo que a leva a cometer 0 crime 6 0 thymés, “a emogio que derrota raciocinios” (Bu: ripedes, 2010, p. 121), a vinganga é levada a cabo com trés procedimentos distintos, o saber mitolégico, a asticia e a 28 violéneiafisiea, que acabam por se equivaler. Seu conhe- cimento de magia serve-Ihe para envenenar o vestido de Glauce. A dissimulagio permite que ela engane Jasio Glauce ao fingir amizade e dar-Ihe o vestido de presente. or fim, também a dissimulagio a faz enganar os filhos, atraindo-os para a cena do crime e, mais relevante que ‘sso, Medeia recorve ao gesto vielenta para abater os fihos. Se a catistrofe, em Medeia, 6 mareada pelo gesto da “mio da mae’, esse gesto violento 6 colocado em paralelo ‘com os demais procedimentos: asticia, representada pela dissimulagio ¢ o feitigo, que remonta ao saber mi- tologico. Dessa forma, de um crime comotido a distancia chega-se aquele em que intengio e gesto se confundem, E por isso que a conseiéneia do que se faz é um dado fun- damental do mito de Medeia, “Saber que sofres alivia mi noha agrura” (Buripedes, 2010, p. 147), ela afirma. Desse ‘modo, a vinganga 6 um gesto absolutamente consciente ‘¢ se consolida na fala final de Medeia a Jasio, em que ‘expliea tudo o que fez e condens-o 20 sofrimento, antes de eseapar na carruagem de Apolo. A palavea suplementa 0 gosto, fechando ociclo de vinganga néo s6 como uma agio catastréfica, mas também com a interpretagio do gesto, Se o racioeinio é derrotado em algum momento, ela con: segue recupersi-lo na anilise do feito. Em Medeia, ainda no hé uma metalinguagem do papel da navrativa na execugio da vinganga, embora seja assim ‘que o ato final da tragédia se desenvolva. f por isso que 29 sgostaria de trazor também aqui a personagem Sarahuad. Como destaca Michel Foucault, « narrativa arabe, das Mil ¢ uma noites, Sarihzad “tinha, como motivagso, tema pretext, no morrer: falava-se, narrava-se até o amanhe- cer para afastar a morte, para adiar 0 prazo desse desen- lace que deveria fechar a boca do narrador”, Dessa forma, 4 narragdo ora uma forma de sobrevivéneia. Ali, 6 0 rei Sahriydr que, traido, condena todas as mulheres a morte, ‘Transformada pela recepetio ocidental moderna em mito, a histéria de Sarahzad, al6m de ropresentar 0 adiamento dda morte, torna-se uma forma de contra-vinganga. A fe- ‘0, na performance sedutora ¢ planejada da narradora, adia a sua morte ea de todas as outras. Na edigio traduzida e organizada por Mamede Jaros: che do ramo sirio das Mil e uma noites (2005), Sérahzad é apresentada como uma mulher que domina seus atos pela rrazio de modo indubitivel: “Conhecedora das coisas, inte- ligente, sabia, cultivada, tinha lido e entendido” (Anénimo, 2008, p. 49). Por isso, ela voluntaria-se para interromper o ciclo de violéncia: “Eu gostaria que voo® me easasse com rei Sihriyx. Ou me converto em um motivo para salva ‘pio das pessoas ou morro e me acabo, tornando-me igual 4 quem morreu e acabou” (Anénimo, 2005, p, 49-60). Fre- quentemente citada como a primeira feminista, Sarahzad provoca com 0 interminével adiamento da morte o fracaseo ‘do proprio Sahriyar. O que a leva a casar-se com ele no 6 alguma forma de conexio afetiva com o personagem, mas & ddetorminagao de interrompé-lo, Sua presenga fisica, dian: te de Sabriyar, aliada & narragdo oral que ela faz de cada ‘uma das histérins, tora 0 seu relato uma performance, 0 motor essencial de uma energia coletiva Zumthor, 2007, p. 63), que constitui uma presenga, restituindo, na trama, 1a materialidade de uma comunicagio que era mediada por autores, narradores ¢ copistas, {A metatinguayem estéinserta no arco narrativo mais extenso das Mile uma naites: aquele que envoive a rele: cao entre Sivhzad e Saheiyar. Ao tornar parte da nar rgio 0 préprio modo pelo qual as historias serao narra das, cnfere-se & obra uma dupla camada de narrasio Do um lado temos cada uma das tramas que comporio 0 conteio das narrativas de Sarahzad, por outro, temos & prépria Iota de Sarahzad pela sobrevivincia. A presensa da narradora da histéria 6 tornada instavel, sob cons- tante ameaga. 0 recurso & asticia ~ @ & dinsimlacio ~ que permitiré & Sarahznd sobrevivere resistin. A ma teriaidade de sua agdo nfo ¢ mais a violencia Fsea, mas sua vor, que, no entanto, nfo é wtlizada para cometer qualquer forma de violencia. O carter astucioso da per- sonagetn esta, assim, situada slém da trama ou de seu discurso, mas é 0 que organiza a propria narrative ~ sua forma e seus efeitos estéticos dependem da instabilidade gerada pela estrutura metalinguistica. ‘A unio entre a metalinguagem, que ressalta a cons: cidncia astuciosa do poder da narrativa, e a falha moral, =m ‘que instaura a divida sobre a veracidade do narrado e de- sestabiliza a autoria, rompendo 0 pacto de confianea entre leitor e narrador, pode ser pensado, na tradigio brasileira ‘moderna, por meio de Bentinho, de Dom Casmurro, No Ca pitulo XL ~ Uma égua, 0 narrador, 20 tratar relatar uma das montiras (ou meins-verdades) que conta para a mile na adolescéncia, faz a seguinte digress: ‘A:imaginacio foi a companheita de toda a minha exis téncia, viva, répida, inquicta, alguma vez timida ami sta de empacar, as mais delas eapaz de engolir camp hes e eampanhss, correndo, Creio haver lida em Té ito que ns éguas iberas concebiam pelo vento, se no foi nee, foi noutro autor antigo, que entendes guardar essa crendice nos seus livros. Neste particular, a minha Jimeginagio era uma grande 6gua ibera; a menor brisa The dava um petro, que saia logo cavalo de Alexandre; ‘mas deixemos metdforas atrevidas e impréprias dos ‘meus quinze anoa. Digamos 6 easo simplesmente (Ma- chado de Assis, 35-54, Leitor displicente © mentiroso confesso, Bentinho dé 1 suas invengoes 0 verniz. da imaginagio, que estabele ‘ce com 0 rancor maledicente a prosungiio da verdade ‘uma das polarizagdes em meio as quais o romance se es trutura dialeticamente. O citime, que Ihe guia a super- ‘nterpretagdo dos fatos, faz.com que ele tente assassinar textualmente a reputacio de Capitu e Escobar. Devido a0 ‘modo como ele se expée, como no fragmenta citado, essa vvinganca textual nunca se realiza completamente, pois mmetalinguagem suspende a qualquer presungiio de vera: cidade que pudesse ser conferida as ilagdes de Bentinho Nesse sentido, a polémica acerca da existéncia de uma ambiguidade radical na obra, que extrapola o narrador atingindo até mesmo a autoria, defendida por Abel Bap- tista, em contraponto ao posicionamento de John Gledson (2006), que argumenta a favor de uma intencionalidade clara do autor, merece atengio (ver Guimariies, 2007, p. 266). De partida, a ambiguidade radical ignora o fato de que Bentinho é um narrador pouco confidvel. Essa certe- za em tarno do caréter do narrador s6 6 possivel porque ‘hd uma clara intencionalidade de suspender sua con- finbilidade. Portanto, Gledson tem raziio ao garantir ao ‘menos essa estabilidade autoral, ou de intencionalidade, na obra, Por outro lado, se consideramos que Bentinko encena a escrita do texto, feita performance ao longo do romance, hi af outra diivida instaurada no texto. Em ou- tra passagem, Bentinho digressiona: Cate os priprios wermes do ios, para que me dissosser ‘que avia nos textos rods por eles. “Mou senor, respondeu-me ur longo verme gordo, n6s ‘io sabemos absolutamente nada dos textos que remo, ‘nem cocolhemos 9 que roemee, nm amamos ou detects sos 0 que roemes; nés roemns. ris nada, Os outros todos, como ra, repetiam a meama eantilena TTalver ease disereto silencio eobre os textos roidos, fesse ainda um modo de roero rode. Machado de Assis, p19). Aqui, a incompletude do texto jé niio depende das fa has da meméria do autor ou de suas més intengdes, mas ora dos buracos do préprio texto ~ da prépria linguagem, nal. lém disso, nfo falar sobre essas falhas é uma forma de tornar o texto ainda mais cariado — silencio sobre si léncio que vai distanciando o leitor eo autor da possibili dade de ouvir um ruide, As traigdes, em Dom Casmurro, se multiplicam ~ Ca- pitu e Escobar contra Bentinho, Bentinho contra o pr prio projeto de livro, o livro e seu autor contra o leitor. A instabilidade do romance, desse modo, é instaurada pela traigio ~ 0 modus operandi das relagies estabelecidas no texto © a partir do texto. A traigio é, entfo, a marca epistemoldgica dessa virada metalingufstica, que une a vinganga pela palavra e 0 comentario sobre esse priprio sesto em um proceso de suspenstio da verdade, da qual Dom Casmurro é um expoonte, uma referéneia e um pio- neiro no contexto da literatura brasileira, Elvira Vigna © suas narradoras instéveis perseguem, ‘entio, mediadas pela experiéncia da traigio, essa pista ‘machadiana ~e também o rastro das narradoras e intér pretes da prépria histéria: Sarahzad e Medeia. Sao mulhe- res, cuja relacdo com a ficeo é reforgada pela mentira. A ‘mentira, embora ndo possa ser tomada como sinénimo de ficgio, é um suplemento a ela. Como tra2 consigo a carga da reprovagio moral contida na ideia de um falseamento Aeliberado, a mentira encontra-se dentro e fora da fey, Bla €forgada para fora quando se pensa na flocio a partir {da verossimilhanga e da proposigio de possiveis. Por outro e lado, ela pode se instalar tanto na verossimilhangs quanto nos possiveis e, suplementando-os, corroé-los. Por escrito, seu titimo romance, traz uma narradora que assume falsear a histéria, Por isso, diferentemente do na rador machadiano, que instaura a dtivida no plano enun- iativo do narrador ao mesmo tempo que reestabelove a confiabilidade entre autor e leitor, Valderez, a narradora do romance, assume ser ela a falseadora da histéria, 0 que, se no garante a confiabilidade do fato narrado, reestabelece a confianga, por meio da confidéncia, entre narradar leitar. “TH isso que eu acho que aconteceu. Ou é 0 que pre. firo achar." (Vigna, 2014, p. 249) Assim, ela conclui comentario sobre a morte de Aleksandra, pivé de uma das traigdes de que trata 0 texto. A morte, que a narra: dora nfo consegue decidir se foi assassinato, suicidio ou mera fatalidade, impée o assombro no relate, O terror, que atrapalha a razio, é combatido com essa deliberada oppo por uma versio que apazigua os efeitos da instabi- lidade. Esse apaziguamento, entretanto, é precéiio, pois se permite que a narradora avance na narrativa, reforga a instabilidade em relaclo ao narrado para o leitor © que entra em jogo aqui é uma perspectiva do proces- ‘50 mimético e de representagiio que leva em considerapa0 a instancia de recepgo como aquela em que as relagies enire 0 texto ¢ 0 mundo efetivamente se concretizam. Luiz Costa Lima define a mimese como a8 [1 um uso especial da linguagem, fingir-se outro, ex perimentar-se como outro ou ainda usar a linguagers, ‘nfo como meio de infarmagio, mas como um expaco de transformagies, cumpridas nio om funelo de um referente a que descreveria, mas possbilitadas pela prépria ideagio verbalmente formulada, (Costa Lima, 2011, p. 308) Como um jogo de devires, o processo mimético perde © caniter imitativo, de elaboragio de um produto final, para ser pensado como uma dinamica, como algo que Sempre se encontra em curso ~a elaboragio de uma zona de indiscornibilidede entre eu eo outro Deleuze, 1997, P. 11-12). Desse modo a narrativa de Por escrito, se pen sada a partir dessa ideia de uma construgao dinamica, propde o jé mencionado jogo complexo de descrédito em relagio ao narrado e de erenga na instabilidade da nar. radora. No entanto, a escolha de um fato ineantestével, limite e incontornavel como a morte tarna o real eonere- 0, quase material dentro dos limites da materialidade {da coisa narrada, porém, a organizagio desse fato em relagio aos demais, a sintaxe da narrativa propriamen- te dita, 6 0 que suspende tudo o mais que o envolve: o8 ‘motivos, os responsiveis e, até mesmo, as consequéncias, ji que os efeitos dessa morte nos personagens, até mesma na narradora, sfo, em alguma medida, insondéveis. Falei do jogo anteriormente dentro da perspectiva de que a riarrativa eontém em sua concepgio um aspecto Kidi- 0, Noentanto, Costa Lima acrescenta que a ludicidade na 26 rmimese ¢ seu ponto de partida, logo transformado “numa seriedade que Ihe 6 resorvada: a do exigir pensar-se sobre ‘o que se joga” (Costa Lima, 2011, 805). Esse duplo movi- ‘mento da nazrativa ~informar sobre o mundo e problema- tizar o modo como se elabora essa informagao ~ alimenta justamente a instabilidade da narradora do romance ~ re tomando a metalinguagem de uma Sarzad, e indo além. Lendo Wolfgang Iser, Costa Lima defende que a repre: sentagdo mimética é, entio, alimentada pelas representa- es sociais que compéem 0 conjunto de expectativas do Ieitor em relagdo ao texto (Costa Lima, 2011, p. 305-6), que podem ou nda ser coincidentes com as do autor. O reconhe- cimento, eatogoria da postica aristotdica, 6 alpada ao pos. to de pega chave do processo mimético (Compagnon, 1999, p. 181; Ricoeur, 2012, p. 122) A reflexdo sobre o jogo, que saca do lidico parte de sua ludicidade, decorre justamente das elivagens que ocarrem nesse processo de confronto en- tre a representagiio miméticn e as representagées sociais E exatamente por isso que as relagies estabelecidas entre as narradoras dos romances de Vigna com os de- ‘mais personagene, com os fatos experimentados, com a meméria, com 0 espago ¢ com 0s leitores se apresentam ‘como td probleméticas. O descentramento de que trata Ginzburg atinge a doxa, contrariando algumas (ou mui- tas, ou todas) as expectativas do leitor, embasadas nas rrepresentagdes sociais que ele pde em relaglo com as re- presentagdes do texto, 0 fato de essas narradoras serem om mulheres é, talvez, 0 descentramento do qual decorrem os demais, reunidos sob o signo da instabilidade, que defendo aqui como a tradugio possivel da fragilidade 4a individualidade apontadas por Vigna. Uma narrado- +a que elabore o seu texto a partir de uma retérica que recorre @ ironia para gerar 0 efeito de humor é uma das rrupturas que acentuam o descentramento dessa instan- cia narrativa, A inonia denota dominio da linguagem — zeflexiio e intengio sobre o ato enunciativo ~ 0 que é za légica patriarcal, um atributo da razdo masculina, Ginzburg, nesse sentido, defende que alguns escritores tom desaflado as regras da normalidade, “priorizando elementos narratives contrérios ou alheios a tradig&o patriarcal brasileira” (Ginzburg, 2012, p. 200). Vigna ainda reforga esse elemento trazendo uma personagem que no s6 6 dotada de um domfnio sélido da linguagem — sua insergio social, em um meio masculino no qual cla se impte, também ajuda a provocar esse descentra ‘mento e a gerar certa instabilidade nas velagdes que ela cestabelece com os demais personagens ~ principalmente com seus amantes. Pode-se dizer, dessa forma, que o texto trai a tradi- fo @ leitor Iiterariamente letrado nesse contexto, Nao 6 por acaso, portanto, que a traicio ocupe um lugar de destaque no agenciamento dos fatos de Por escrito. Ali, ‘a crise estahelecida entre Aleksandra e Molly tem a ver com uma traigio ~ Aleksandra seria amante do marido 278 de Molly, nos moldes de um tradicional triangulo amoro 0. A traigdo ¢ replicada, em outro tom, por meio dos cii- smes que a narradora sente da relagio entre Aleksandra Pedro, seu irmfio. De um easamento de conveniéncia para a obtenglo de tum visto de permanéncia no pai relagio entre Pedro ¢ Aleksandra ganka outra dimensiio quando a narradora vo, na easa do irmio, a foto de sua ex-namorada. Por fim, 60 leitor o itimo traido. A narra tiva se constr6i com um narratirio claramente seleciona. do: alguém que fez parte da historia de Valderez. Nio é © caso aqui de pensar nas peculiaridades de sua relacio com esse destinatdrio do relato, mas com o fato de que o leitor nfo é ele. Por isso mesmo, 0 leitor nfo tem acesso a parte importante dessa histéria, que 6 a contraparte dia. lbgica do texto da narradora, Bsse acesso apenas parcial ainda é reforcado pelas inserpdes de reflexdes metalin- suisticas na forma de digressdes, & mancira machadiana, como ié foi apontado anteriormente, Inicisi o momento especial [Nao 6 dificil. #96 olhar ao Tonge e ver o que sempre festeve ld, ineluir rufdos que estio eondo de fato oui fos som quo se note. Reparar como de repente todas as roupas de todas as pessoas que passam seguem ums ‘mesina logic. Se alguém vem com tums eamisa Iszan- ja, cutra pessoa em algum momento préximo também staré com um tom laranja, E havers, por perto, om plementos de cores que fazom sentido, vermelhos um famarelo eseuro ‘Tente. Dé sempre certo, Vigna, 2014, p. 225). Essas digressées, deve-se reasaltar, slo feitas a par- tir de descenteamentos no préprio andamento da narra- tiva, Nao sfio mergulhos em profundidade no tépico de ‘umm capitulo ou em alguma discussiio que seja central no texto ~ até mesmo porque a escrita de Vigna rejeita a possibilidade de uma verticalizagao da leitura a partir a hierarquizngio de temas. Assim, concentrando-se em ‘uma questo perifériea, a narradora faz as consideragies ‘que podem ser lidas como chaves de leitura, Em outro texto, sobre O que dew para fazer em matéria de hist6- via le amor (2012), eu flagrava procedimento anslogo em relagio & deserigio quase jocosa que a narradora faz do ‘modo de comer uma espiga de milho cozido, que servia ali como chave para pensar 0 modo como a propria nar: partir de fileiras previsiveis, mas irregulares e que, comidas sempre alternadamente, em. baralhavam a possibilidade de aproensio da totalidade (Mata, 2012). Tratava-se ali da tentativa de estabelecer tum simile entre a estratura da narrativa © os modos de escrevé-la ou, & clato, léla, j4 que se fala de consumo, no de producto, Na postica de Vigna, a escrita 6 sempre precedida de uma leitura, também em falso, dos fatos, da -meméria, de outros textos. rativa se armava ~ AA traigio, deste modo, pode ser pensada como um ‘modo de representagio mimétiea na obra de Vigna? O romance Nada a dizer (Vigna, 2010), dentro de sua obra, 6 aquele que pode melhor responder a essa questo. Divi 230 ido em eapitulos nomeados por datas, oremance nao se sue necessariamente uma ordem cronolégica, Entre idas fe vindas na sua histéria com Paulo, seu marido, no en- tanto, a narradora segue uma eronologia dos fatos que a levaram a descobrir a traigio do marido com uma amiga do casal, também casada, ¢ nomeada no romance apenas pela inicial N. A primeira desestabilizagto esta nessa se- ‘quéncia de datas que abrigam todo o tempo histérico da ‘meméria da personagem: desde os anos 70, quando seu relacionamento comega, até apés a data indicada no tit: lo do capitulo, antecipando as consequéncias da traicio. Hé um esvaziamento da excepcionalidade do evento da traigio, pois nilo é gerada expectativa em relagio a isso. Acexpectativa, por outro lado, concentra-se no modo como 1 personagem vai lidar com essa traigdo, Ha uma série de questbes envolvidas nessas conse- quéncias, Fiearei concentrado em duas: a primeira esté ligada ao modo como 0 evento proveca a narradara a fa: zor um reesame de sua biografia — desde as conviogdes politica até as profissionais ¢ afetivas; a segunda esta ligada ao mode como a traigo, enquanto evento relacio nal, demanda uma resposta—uma vinganga ~ que trans forma a prépria linguagem da narradora, Bm Nada a dizer (Vigna, 2010), 0 primeizo efeito que 2 traigdo provoca no texto diz respeito ao impacto que ele tem nna narradora. Bla, ao flagrar a traigio de Paulo a partir de ‘uma pista deixada na sua eaixa de e-mails, v8 ruira iden- 21 tidade do mulher liberal que ela assumiu para si desde os anos 1970. A traiglo a coloca no Indo de toda wma comuni dade de mulheres vitimadas por um gesto que 6, no mais das vezes, sexista, Serializada entre essas mulheres tral das, nos termos que Iris Young (1984, p. 714-717) prope a formagiio de comunidades provisérias, a prépria nazradora conclu: “Mas eu continuava sem entender como ele podia meter o pau dole em qualquer buraea, 6 poraue podia,(..] Ele fazia porque podia. Assim simples, Assim eapitalista, Assim quanto-mais-melhor. Assim burt’. (Vigna, 2010, p 106) Sua avaliagao chama a atengio para o sexiamo, que é associado a um modo de produgao, do comportamento sex- al de Paulo, Sua posiglo é a da incompreensio. Essa, alids, ¢ uma das tOnicas do livro, A narradora tents compreender, juntar os pedagos da histéria e ma: pear exatamente onde e como 0 casamento fracassou. Ao refletir sobre o fato de o marido ir com a amante ao mes- ‘mo motel que frequentara com ela é um desses pontos de incompreensio: Porguntai e perguntei muitas verse "Vocé niio se lembrou de mim, ao entrar no Séndalo com N.? [A resposta sempre fo um no, isso eu nunca pude entender. (Vigna, 2010, p, 2) A meméria roubada é uma das rupturas de confian- ‘ca que despedacam a identidade da narradora, Sua in- compreensio também tem a ver com o fato de que uma mulher, de classe média, trabalhadora, identificada com ‘um idedrio de esquerda, de comportamento liberal, dere pente se vé perplexa ante uma traiglo, nio conseguindo ultrapassar o esteredtipo da mulher trafda, o sentimento de posse ante o marido e o deseja de vinganga, Eu afundava, mais e mais, em esteredtipos, ¢ Paulo continuava a me ajudar para que assim fosse. Agora, fevers a muther merda, banal, medioer, imbecl que tha sido traida, B era também a mulher merda, banal, ‘mediocre, imbecil qu tinha a reagdotipies de todas az ‘mulheres merdas, banais, medocres, imbecis ao serem traidas: pedir teste de HIV. (Vigna, 2010, 110-11) A narradora afasta qualquer possiblidade mais Sbvia de ‘autocomplacéneia no texto. A releitura de ei mesma pro vocada pela traigio suspende as eertezas que ela tinha de si, sobrotudo aquelas que Ihe garantiam a singularidade. A traigdo catalisa no texto, portanto, nogatividade e violencia ‘Sem o gesto radieal de uma Medeia, eapaz de impulsioné-la para uma tentativa ~ ainda que impossivel ~ de restitui ‘¢lo de sua intogridade, a nogacio da eubjetividade pode ser ‘uma das formas de se pensar a nogatividade constitutiva do sujeito, Ginzburg afirma que é “comum encontrar na nar. rativa brasileira contemporinea a constituiglo de imagens a vida humana pautadas pola nogatividade, em que as limitagGes e dificuldades de personagens prevalecem com rulagio & possibilidade de controlar a prépria existéncia & doterminar o seu sentido” (Ginzburg, 2012, p. 200). Essa negatividade coincide com o que Costa Lima, em texto que dé continuidade a sua tese sobre a mimese ja apresentada aqui, denomina sujeito fraturado, em con- traposigio ao sujeita solar (Costa Lima, 2000, p. 92-93). ‘A metdfora da fratura para pensar essa subjetividade ligada ao processo mimético que se reconstitui na re cepsio, justamente por meio de frestas deixadas pelas rachaduras, é bastante oportuna para pensar a imagem dda mulher que tenta reunir os pedacos do que restou de si apés a crise no casamento. Essa fratura 6, portanto, 1 propria traigdo, que 6 0 gesto relacional capaz de sus- ender todo tipo de certeza ~ toda a solaridade do casal, esse sentido, a traigéo 6, em Nada a dizer (Vigna, 2010), parte constitutiva do préprio processo mimético e se desdobra em outra camada do texto: menos referen cial, mais metalingufstiea. A escrita como uma forma de vinganga é parte do exereicio confessional da narradora do romance. Sua fragilidade, neste caso, esté, mais do ‘que nas reiteragBes de uma escrita deliberadamente fic- ional, mitologizada (on mentirosa, se preferirmos), ela ‘usa a linguagem, ¢ o peso de um Téxico pejorativo para descrever os personagens, como uma forma de se vingar: de Paulo, de N. e de si mesma, A vinganga contra Paulo é operada de um modo menos, claro, Ora ela dé continuidade a progressiva desconstru- ‘gio do marido, O “episédio do chato”, que retrospectiva- mente ela retoma, nos intermindveis didlogos com ele, 28 fem que tudo 6 investigado e esclarecido — para o prejuizo psicolégico de ambos -, 6 0 momento mais emblemstico desea desconstrugdo. Paulo, em uma aventura sexual com uma jover interio: ‘nana, é infestado por piolhos, que passa & mulher e ao filho de ambos, um bebé, Ele mente, Ela, ao narrar 0 episéio, de modo seco, porém carregado de rancor, situa Paulo na Iimoralidade da mentira —no espago do imperdodvel. Na se- ‘quéncia, cla volta a falar da violéncia—e das fraturas ~que ceseas descobertas sucessivas Ihe eausam: [Nessa nite, que duros dois dias, em que Paulo me con tou seu easo com Ne, de sobremess, da origem do chato rnordestine, ex desmorons, eu inteira endo s6 mines opinides, atitudes e posigées, Deemoronei, Eu no mais existia, Vigna, 2010, p. 105) Por outro lado, hé uma tentativa de compreender os motives do marido. “A vontade do novo, Bu também ti nha" (Vigna, 2030, p. 27). Bm outra passagem ela analisa ‘mais detidamente: Depots fquei com outra imagem. A do carro shugado por Patlo, Ade sua vontade, que reconhego como sendo a de ‘uma vide inteira, que também é e minha, do seir, de ir, do novo, do largar tide pars trése sentir to hatido mas Sempre maravilhoso venta na car (Vigna, 2010, . 38) A narradora tenta compreender as razdes de Paulo, ora um eanalha desprezivel, ora apenas um homem que se recusa a envelhecer e assumir a negatividade de sua ripria subjetividade ~ sem que isso apazigue o esfucela- 28 ‘mento das identidades da narradora, no hé uma pala. vra final sobre ele Em relagZo & amante, o procedimento é outro; “Gorda, espalhafatosa, tendendo ao vulgar”, assim ela descrove NN,,a tradutora com quem Paulo, também tradutor traba Ihava. Desnecessério analisar a relaglo entre tradugao e {traigio no texto, principalmente porque questio da sus. pensio de conexio com a reslidade atinge a narrativa em ‘um nivel formal menos ébvio, E na esealha do léxico e no ‘modo como, aos poucos, N. vai sendo apresentada e des. construida que a vinganga se opera. De posse do verbo, a narradora no age de modo eserupuloso, operando sua ‘vinganca até o limite: a hipétese de que N. assassinou 0 proprio marido. Por exemplo,a mengio de N. a métados de encurtar a vida de pacientes internados foi uma brinendeia, das muitas, ‘de mesa de bar. Eu falar disso agora aumenta algo aque, ‘ua hore, ninguém deu importancia. (Vigne, 2010, p. 4. Sua tiltima vinganga contra N. envolve uma suspeita de assassinato © um assassinato de reputagio, N., apre- sentada como assassina, tom sua propria reputagdo se- pultada na narrativa. Apresentada como uma oportunis ta, nfo resta para a personagem qualquer forma de re- dened. As hesitagdes que marcam 0 modo de narrar em relagdo a protagonista e a Paulo nio sleangam N. B com «la que o plano de vinganga se exeouta de modo perfeito, A maneira de Medeia, ela mina qualquer possibilidade de N. existir de forma positiva no texto ~enredando-o numa, crise ética: qual 6 limite da vinganga representacional? # nesse sentido que a traigio funciona como wma espé- ie de combustivel para a narrativa. Se a mimese depen- de da fratura do sujeito, a personagem traida lova esse procedimento para sua prépria existéncia — operando sou @escentramento. Seu método, no entanto, ¢ flagrado pelo leitor, que percebe, no quo se refere & construgao de N., a8 rmudangas de tom marcadas tanto pelas esoolhas lexicais quanto pelas brechas mais estreitas que impedem o areja ‘mento da personagem, construida de modo mais monolitico, -Bseas oscilngSes, por sua ver, so as frestas que articulam a representacio-ofeito de que trata Costa Lima na sua reela Daragio do conceito de mimese (Costa Lima, 2010, p. 398) ‘Ancorada na interminabilidade do sentido, constituido nas diversas possibilidades de atualizagio, a representa- fo-efeito permite uma interferéneia do leitor que, em uma obra Nada a dizer (e também nos demais romances de Vigna) esta indieada pelo préprio modo de montar a nar- rativa, A maneira de Bentinhos, Sarahzades ¢ Medeias, ‘essas narradoras imprimem, pela metalinguagem, uma suspensiio de sentidos sustentadas pelo recurso a mentira e vinganca—bem como ao que orienta ambas: a traigdo. Por ‘outro lado, diferentemente de Medeia e Sarahzade, cujos procedimentos miméticos adotados em sua relaclo com a experineia da traiglo propdem, mesmo que nao atinjam, tlguma forma de restauragio da subjetividade violentada, fas narradoras de Nada a dizer, acompanham a negativi- dade de um narrador machadiano. Porém, experimentam ‘essa suspensio de verdade no texto ea negatividade dela Aecorrente—a partir de um descentramenta proprio, espec fico: aquele de uma experiéncia gendrada —de uma mulher. Referéneias ANONIMO (2008), Livro das mil e uma noies, v. 1, xame sirio ‘Trad. Mamede MoustafaJerouche. Sao Paulo: Biblioteca Az ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Dom Casmurro, Dispanivel «em: . Ultimo acesso: 01 set, 2014 COMPAGNON, Antoine (1999), Odeménio da tori literatura censo comum. "Tead. Cloonie Paes Barreto Mourio e Constielo Fortes Santiago, Belo Horizonte: UFMG, COSTA LIMA, Luis (2010). 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