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262 OS GRUPOS CERAMISTAS DA SERRA DA BARRIGA: CARACTERIZACAO DA TECNOLOGIA CERAMICA NO CONTEXTO DA TRADICAO ARATU Rodrigo Lessa Costa INTRODUGAO Na década de 1990 empreenderam-se as primeiras pesquisas arqueolégicas na Serra da Barriga. Os arquedlogos Charles Orser, Michael Rowlands e Pedro Funari buscavam compreender o funcionamento do Quitombo dos Palmares, reconhecido pela historiogra- fia como maior simbolo de resisténcia a sociedade escravista do século XVII (FREITAS, 1990). Allen (2001), entretanto, percebeu uma presenga relevante de populagées indige- nas através das semelhancas entre a ceramica encontrada no sitio e a cerdmica indigena presente por todo o Nordeste, descrita por Martin (2005). Pesquisas intensivas foram realizadas por Allen e equipe nos anos que se sucederam, reunindo um acervo de dezenas de milhares de artefatos, sobretudo, cerdmicos. O desenvolvimento dessa pesquisa visou investigar a seguinte questio: qual o perfil ceramico do sitio Serra da Barriga? Esse questionamento se deveu ao fato de as pesqui- sas na regio estarem num estigio embriondrio ¢ A necessidade de padronizar 0 método desenvolvido por Alves (1990) no Brasil, 0 que vird a facilitar comparagdes intersitios. Procurou-se também entender como os aspectas tecnolégic € morfolégico-funcionais se retacionam no perfil ceramico do sitio SB1? Desta forma o objetivo da pesquisa foi reunir as caracteristicas da ceramica desenvolvida pelos grupos que ali habitaram, ava- liando, quando possivel, as relagdes entre os dois niveis de analise: fragmento e objeto. A hipstese levantada foi que a cermica em estudo se assemelharia 4 cerimica da tradigao Aratu descrita por Calderén (1971), A metodologia classificatéria exposta por Dunne! (2006) foi utilizada na vertente da Cia: icagdo paradigmética, tendo sido eleitos como atributos definidores: “tratamento de superficie” ¢ “antiplistico”. Por meio das combi- nagdes destes atributos, possibilitou-se a criagdo de tipos tecnoldgicos que poderdo ser Utilizados como Pardmetras em estudos comparatérios posteriores na regio. ATRADICAO ARATU Os principais conceitas classificatérios utilizados na pesquisa arqueoldgica no Brasil até hoje foram estabelecidos em meados da década de 1960 pelo Programa Nacional de Arqueolégica (PRONAPA). De acordo com Chmyz (1976: 146), 0 conceito de tradigo diz respeito a um: “grupo de mentos ou téenicas com persisténcia temporal”, 0 termo remete As ideias difusionistas vigentes até a década de 1960, em que “tradigées” seriam transmitidas de geragdo em geragao entre grupos semissedentdrios ¢ que através das migragdes difundiriam as habituais técnicas de confecgao da cerimica, por exemplo. J4 0 termo fase que na hierarquia taxonémica “pronapista” figura abaixo do termo tra- dig20, discutido anteriormente, diz respeito a “qualquer complexo de cerimica, liticos, padrdes de habitagdo, etc., relacionados no tempo ou no espago, em um ou mais sitios”. Atradi ida de 1960 por Valentin Calderén (1971) no recdneavo baiano, litoral norte ¢ regitio ocidental da Bahia e por Celso Perota (1971) no io Aratu foi identificada na d Norte do Estado do Espirito Santo. Prous (1992:343-364) assinala também a presenga desta tradiga0 noutros Estados do Nordeste como em Sergipe, Rio Grande do Norte, Ceara e Alagoas ¢ até mesmo em outras regides do Brasil nos Estados de Minas Gerais, Goids, Mato Grosso e norte de Sao Paulo, Com base em comparagdes etnogrificas e nos relatérios do PRONAPA, Prous fez uma breve descrigdio dos grupos pertencentes a tradi~ go Aratu: Em alguns sitios os fundos de cabana de 10 x 15 m de didmetro em geral for- mavam alinhamentos ou circulos ao redor de uma praga central (...) embrando muito as atuais aldeias dos grupos Macro-Jés, do Brasil Central, (Kayapés, Xavamtes) e Otuké (Bororos). Ao redos ou enterradas ne sale das habitagdes, hha numerosas urnas funerarias dispostas em grupos de duas ou mais (...) As umas funerdrias so sempre piriformes (“em forma de péra”invertida), € as dimensdes médias sdo de 75 em de altura por 65 cm de bojo, com abertura da ordem de 45 cm (Prous, 1992:343). Algumas das umas so cobertas por opérculos (vasilhames menores que serviam como tampas). As fases enumeradas para a Tradigdo Aratu so: Tabela 1: Cronologias das Fases pertencentes a tradiga0 Aratu (adaptado de Simies, 1972) 263 264 Tabela 1: Cronologias das Fases pertencentes a tradicao Aratu (adaptado de Simées, 1972) TIPO DE DATACAO FASE DaTACAO (ABSOLUTA/RELATIVA) Aratu A.D 870 £90 € A.D 1360 + 40 Absoluta a Itanhém A.D 1500-1600 Relativa Gurabu A.D 800-1300 Relativa Itatinas A.D 1730475 Absoluta Jacareipe A.D 1345 + 70 Relativa Serra da Barriga A.D 1050+ 67 Absoluta | Mesmo no considerando uma fase Serra da Barriga, a inclustio da datagao obtida para 0 sitio Serra da Barriga (SB1) no quadro de cronologias da tradigao Aratu & importante para reificar a filiago do mesmo nesta tradigao. Nota-se que as fases cujos sitios esto localizados no litoral possuem uma cronologia mais recuada o que reforga a hipétese de Calderén de que os grupos portadores da tradigaio Aratu devem ter partido do litoral em diregao ao interior PESQUISAS COM CERAMICA ARQUEOLOGICA EM ALAGOAS Em Alagoas, as pesquisas arqueolégicas comegaram de forma tardia em relagZo aos outros Estados brasileiros, sobretudo, devido a sua ndo incluso no PRONAPA. A pre- senga de vestigios ¢ sitios pré-histéricos, entretando, tem sido assinalada desde o final da década de 1930 a partir das breves descrigdes de autores como Brandao (1937) ¢ Antunes (1973) ¢, posteriormente, em faudos de vinculagdo de posse agraria e por trabalhos de salvamento ¢ resgate arqueologico (LIMA, 1990; VERGNE, 1998; LIMA, 2006), exce- tuando os trabalhos sistematicos na Serra da Barriga. ASE RRA DA BARRIGA: LOCALIZACAO A Serra da Barriga € famosa por ter abrigado 0 micleo do Quilombo dos Palmares, um dos principais redutos de escravos fugitivos no séc. XVII. Curiosamente as pesquisas arqueolégicas nao tém encontrado indicios factuais da localizagao do quilombo. Essa tem sido a razo de uma forte influéncia politica presente nos direcionamentos da arqueologia empreendida desde 1992 até 2008'. Localizada a 550 metros de altura em relagao ao nivel do mar € a 9 km do municipio de Unido dos Palmares, Zona da Mata alagoana, microrre~ gid Serrana dos Quilombos (ver figura 1). No platé da Serra da Barriga, a 500 metros de altura, esta o sitio principal da Serra da Barriga que aqui sera tratado de forma homénima, por SB1 ou pela designagao do cadastro oficial do IPHAN, ALUDPSB1. Além de Unido. dos Palmares a microrregiao Serrana dos Quilombos abrange os municipios de Cha Preta, Santana do Mundati, Vigosa, Ibateguara, Sao José da Laje e Pindoba. Banhada pelo Rio Mundaut, compreende um numero de serras, a maioria menos elevada do que a Serra da Barriga. Pesquisas recentes (ALLEN, 2010) apontam para possiveis ocupag6es indigenas em grande parte dessas serras. Oceano Atlantico Hi se tt re i sta Figura 1: Microrregio Serrana dos Quilombos CONTEXTO ARQUEOLOGICO ‘Nas primeiras pesquisas na Serra da Barriga os arquedlogos Orser ¢ Funari localiza- ram um total de 14 sitios e recolheram cerca de 3000 artefatos (ALLEN, 2006:84). Estes arquedlogos stavam procura de determinados marcadores culturais e por isso realiza- ram analogias precipitadas entre a cerdimica da Serra da Barriga, particularmente as urnas funerdrias, com cerimica utilitaria afficana (ALLEN, 2000 e 2009). 1 Para um melhor entendimento ver Allen (2000, 2001 ¢ 2006) 265 266 Durante décadas realizaram-se no sitio terraplenagens anuais que criaram uma falsa estratigrafia removendo as camadas inicias (possivelmente de uma ocupagao palmarina) © acumulando-as nas regides periféricas do sitio. As raspagens realizadas, sobretudo, na Area A ¢ na estrada de aces: ao platé, além de misturar a estratigrafia, arrancaram grande parte das bordas das urnas funerdrias. O peso das maquinas também esmagou muitos vasilhames ¢ empurrou os opérculos das urnas para dentro, permitindo a entrada de sedimento dentro das mesmas, © que praticamente inviabilizoa a preservagao dos res- tos mortais inumados. A agricultura, apesar de ser também considerada como uma ago destrutiva do registro arqueoldgico, foi bem menos danosa. Assim nas areas de agricul- tura os vasilhames quebraram em menos pedagos, mantiveram-se mais proximos ao seu contexto original ¢ as bordas se conservaram. Allen (1995) levou em consideragao mudangas na topografia, registro arqueolégico ¢ itios, designados SB1, SB2, SB3, SB4, SBS. O sitio SBI, que € 0 principal sitio da Serra da Barriga, foi dividido em Areas (A, B, C, D, E, F, G). A Area G, que revelou um “piso de ocupacao” por ter sido aparentemente menos dani- estratigrafia ¢ diagnosticou 5 ficada pela atividade antrépica, foi a Area escolhida para representar todo o sitio nesta classificagao, No ano de 2006, foram reatizadas as primeiras intervengdes nesta Area: 13 quadriculas de 1 x | foram escavadas ¢ revelaram a presenga de um piso organico (VG1) relacionado uma intensa ocupagdo (ALLEN, SURYA e COSTA, 2007). A partir da escavagiio dessas quadriculas foram formadas duas trincheiras de delimitagao a norte e a oeste do sitio. Na quadricula N935 L1075 uma camada erosiva transportada das cotas mais altas do sitio se sobrepés ao VGI e na quadricula seguinte 0 vestigio encerrou-se a oeste, dando segmento a estratigrafia convencional do sitio. Em 2009 foram realizadas outras intervengdes nesta Area, o relat6rio encontra-se em fase de conclusio. 267 (oLoz ‘warty @3UeA) TAS oMJS MborD £7 BANE sey . a oo? exude Seana aay Bcf eyo, veuy om Beinn © ane on ew peony : cepa 7 Nose 600z-s00z seoiigjoanbry sagsuanzaytyy ((8S-da-Tv) Bumg ep euag ons 268 BASE METODOLOGICA Para testar a hipdtese em questo o principal passo consistiu na realizagzo de uma classificagao — perfil ceramico — que caracterizou, a partir dos artefatos analisados, as téc- nicas e materiais utilizados pelos grupos ceramistas no momento da confecgao. A defini- 40 de classificagao utilizada foi a de Dunnel (2007). De acordo com este autor tem-se por classificagio: 0 processo de criagao de unidades de significado por meio da estipulagao de redundéncias (Dunnel, 2007:98). Dunnel (2007) desenvolveu um estudo aprofundado sobre classificagdio e como esta metodologia deve ser utitizada adequadamente na arqueologia, Seguiu-se neste trabalho sua metodologia na vertente da classificagdo paradigmdtica. A classificagdo paradigmdtica é norteada pelo conceito de dimensdo. Uma dimensio & um conjunto de atributos on feigdes de um determinado individuo que por forgas da logica néo podem ocorrer ao mesmo tempo (ibdem: 100). Por exemplo, o vasilhame n de forma ovéide nao pode apresentar ao mesmo tempo forma de cone, ox seja, cada indivi- duo pode apresentar apenas uma feigao da dimensio por vez, nao existindo ambiguida- des. A classificagiie paradigmatica é em sua totalidade dimensional, ou seja, seus atributos sio excludentes ¢ nao podem co-existir em um mesmo objeto no espago e no tempo, os atributos se relacionam e as classes se formam através de intersecgao. O mimero de clas- ses sera igual ao niimero de cambinagdes possiveis entre os atributos enumerados. Os que: 0 campo X possui dois atributos definidores A e B, o atributo A apresenta as feigdes | ¢ 2; atributos ndo so hierarquizados e possuem a mesma relevancia. Assim supde- € 0 atributo B possui as feigdes “x” e “y”. Assim as classes serdio: AIBx, AlBy, A2Bx A2By. Figura 3: Combinagées dimensionais O PERFIL TECNICO Em 1990, Alves desenvolveu uma proposta de como abordar o material arqueolégico, sobretudo, cermico introduzindo o termo “perfil técnico” adaptado do registro rupestre (ALVES, 1990; OLIVEIRA, 2000:106). De acordo com essa proposta, a cultura é abor- dada em uma perspectiva sistémica, em que a reconstituigao dos elementos que compde um dado perfil e de suas relagdes internas € externas possibilitam a organizagdo de cate- gorias as quais se atribui o rétulo de grupo cultural (OLIVEIRA, 2000: 97). De acordo com esse autor, “(...) a cultura material dela [cultura] faz parte e reflete os subsistemas, permitindo que através do seu estudo possamos hipoteticamente aleangarmos maiores conhecimentos” (OLIVEIRA, 2000:97). Um sistema cultural é composto por um numero de varidveis que controlam 0 compor- tamento dos grupos, como: io ambiente, religiao e tecnologia. Mesmo com limitagdes, a variavel que esté ao aleance da arqueologia é a tecnologia, e ¢ através da reconstituigd0 desta que 0 arquedlogo pode inferir as outras. Segundo Miller (2007:7), o termo fecno- logia inclina-se a estudar as priticas humanas ¢ os processos associados com a produgao dos objetos, enquanto que para o estudo das interagdes entre as pessoas ¢ os objetos fina- lizados utiliza-se o termo cultura material. 269 270 O sistema téenico é composto pelos materiais e gestos empregados na produgao da cultura material e é um dos elementos que compéc o sistema cultural, Sua reconstituigao & feita através da descrigdo e organizagao de mais de um tipo de vestigio arqueolégico, esta ndo corresponde & delimitagdo de um grupo cultural, visto que o sistema técnico é apenas um dos elementos que 0 compde. Mas a reconstituigao deste sistema pode ajudar a enten- der sistemas simbélicos e espaciais, por exemplo. A reconstituigdio do sistema técnico de um “grupo arqueolégico” é tratada de forma similar & resoluco de uma equagao, em que algumas variaveis stio dadas e com base nessas, as outras podem ser, se no solucionadas, a0 menos inferidas. Neste sentido o vestigio ceramico pode ser considerado como um dos mais completos, pois pode refletir aspectos econdmicos e simbélicos de um dado sistema cultural. Um sistema técnico de um determinado grupo pode ser composto por varios perfis técnicos e suas inter-relagdes, baseados, sobretudo, na descrig&o dos atributos visiveis, consequentemente das técnicas e matérias-primas empregada na confecgao e realizagaio dos artefatos e registros rupestres. Os elementos que formam o sistema técnico nao devem ser isolados, mas a divisao & neces: aria para que se compreendam inicialmente as reiagées internas de cada perfil té nico. Posteriormente, devem-se compreender as inter-relagdes entre os diferentes perfis. E salutar observar, entretanto, que os grupos que faziam a ceramica eram os mesmos que utilizavam outros tipos de matéria-prima como a madeira, pedras ¢ cestaria, muitas vezes, até mesmo no processo de produgao dos utensilios cerdmicos. Ainda de acordo com Oliveira (2000), deve-se utilizar 0 termo “perfil ceramico”, quando o perfil se referir apenas a um sitio e o termo “perfil técnico ceramico” quando for feita referéncia a um conjunto de sitios e, consequentemente, a um “grupo arqueolégico” De acordo com Alves (1990), tém-se por perfil cerdmico: “ (...) uma estrutura caracteri zada por elementos técnicos e morfolégicos dos vestigios cerdimicos organizados segundo certas regras de hierarquias” (ALVES, 1990: 94), A organizagio de certos atributos dos vestigios ceramicos permite-nos avaliar a frequén- ci e variagaio das técnicas utilizadas pelos grupos ceramistas para que possamos conhecer as escolhas feitas por cada grupo de acordo com seu proprio universo de possibilidades. METODOS E PROCEDIMENTOS UTILIZADOS NA ANALISE DOS FRAGMENTOS, O método utilizado para a andlise dos fragmentos foi o método de andlise direta utilizando formulario manuscrito. Na sequéncia todos os formulédrios foram digitalizados em um banco de dados no Microsofi Access 2003 que possibilitou a correlagio dos atributos. Antes da and- lise todos os fragmentos foram ‘alogados, limpos e numerados com caneta nanquim 0.1. Alves (1990) e Luna e Nascimento (1994:13) propuseram a criagdo de wnidades de anilise, “conjunto de fragmentos com caracteristicas comuns organizados pela técnica de tratamento de superficie externa e pelo tipo de antiplastico”, no entanto, devido & pouca diversidade observada no tratamento de superficie dos fragmentos, outros atributos como queima ¢ textura foram também considerados na classificagdo. Optei por analisar individualmente os fragmentos por ter sido esta a primeira abordagem detalhada da cole- 40 € justamente pela inexisténcia de pardmetros iniciais que permitissem que unidades fossem pré-agrupadas. E importante observar que o conceite de wnidade de andlise difere do conceito de tipo teenoldgico, na medida em que o primeiro tem a finalidade de agrupar fragmentos que possam recompor objetos, enquanto o segundo tem fungdo unicamente analitica, agrupando fragmentos que compartilham caracteristicas referentes as matérias primas, técnicas empregadas e morfologia. Os atributos observados foram: tratamento de superficie externo ¢ interno, antiplés- tico, queima, técnica de manufatura, textura e dureza da superficie. RESULTADOS DA ANALISE DOS FRAGMENTOS Foram analisados um total de 1.384 fragmentos provenientes das escavagdes na area G do sitio SB1 realizadas em setembro de 2006 e fevereiro de 2009. Sendo um total de 70 bor- das, 51 bojos, 6 bases, 2 roletes, 3 fichas, ¢ 1.249 fragmentos de morfologia nao identificada, Fragmentos Analisados os — Os B05 mroletes achat Morfoiog Figura 4: Distribuigio Morfol6; a dos Fragmentos 271 As técnicas de tratamento de superficie identificadas na anélise foram o alisado, ¢ 0 grafitado numa pequena quantidade de fragmentos. O grau de alisamento foi dividido qualitativamente em 4 categorias diferentes: bem alisado, alisado, mal alisado ¢ gros- seiro. Categorias assim definidas: © Bem Alisado — Superficie completamente alisada, plana, sem aspereza, estrias, rachaduras, falhas ou buracos. Com pouco ou nenhum tempero aparente; Alisado ~ Superficie completamente alisada, pouco aspera, com poucas estrias, rachaduras, buracos ou outros defeitos, Com tempero aparente; * Mal Alisado ~ Superficie alisada, aspera, com muitas estrias, rachaduras, buracos ou outros defeitos (por exemplo, marcas de espatula). Com tempero aparente; © Grosseiro — Superficie com pouca aparéncia de alisamento, muito aspera, repleta de estrias, rachaduras, falhas, buracos ¢ outros defeitos. Com muito tempero aparente. Quanto A técnica de confecgtio, apenas 18 fragmentos demonstraram evidéncias claras 977 da técnica empregada no momento da confecyao, no caso a téenica de acordelado (nega~ tivo de rolete na fratura), Isso permite afirmar que esta técnica fosse largamente utilizada, a assim como em outras cerémicas indigenas encontradas na regio Nordeste. No entanto as informagdes obtidas nao permitiram afirmar ou negar o uso de outras téen Tabela 2: Distribuigdo do Tratamento de Superficie Externa nos Fragmentos TRATAMENTO DE SUPERFICIE _ _ EXTERNO a QUANTIDADE ; Bem Alisado 404 Alisado 322 Mal Alisado 456 Grosseiro 121 Alisado ¢ Grafitado 6 Erodido 35 Total 1.384 De acordo com o modelo de classificagtio paradigmatica de Dunnel, selecionaram-se os atributos “tratamento de superficie” e “antiplastico”. Considerando-os como atributos dimensionais as seguintes combinagdes so obtidas: Tabela 3: Tipos Tecnolégicos Organizados Tipo Tecnolégico Antiplastico + Tratamento de Superficie ~~ Fipo Tecnolégico 1 Areia Fina / Alisado 1 Tipo Teenolégico 2 Areia Fina / Alisado 2 Tipo Tecnolégico 3 Areia Média / Alisado 1 Tipo Tecnolégico 4 Areia Média / Alisado 2 Tipo Tecnolégico 5 Areia Grossa / Alisado 1 Tipo Tecnolégico 6 Areia Grossa / Alisado 2 Tipo Tecnolégico 7 Areia Fina e Mica / Alisado 1 Tipo Tecnolégico 8 Areia Grossa ¢ Frag. de Rochas ou Minerais / Alisado 1 Tipo Tecnolégico 9 Areia Grossa e Frag. de Rochas ou Minerais / Alisado 2 ipo Tecnolégico Qualquer Antiplistico / Alisado e Grafitado Grafitado Como 0 interesse maior foi o de buscar recorréncias, a intersecgao dos atributos sele- cionados, em que © nimero de fragmentos contidos representa menos de dois por cento do ntimero total de fragmentos analisados, nao foi considerado como um tipo relevante ¢ 0s fragmentos foram apenas citados. Os fragmentos grafitados, por possuirem caracteris- ticas diferenciadas, foram tratados como um tipo Unico independente do antiplistico e da quantidade de fragmentos. METODOS E PROCEDIMENTOS UTILIZADOS NA ANALISE DOS OBJETOS Aanilise dos objetos ceramicos identificados na Serra da Barriga foi realizada através das pegas inteiras ou semi-inteiras (com pelo menos 1/4 da pega original e que permitisse inferir a forma do objeto) encontrados em todo o sitio independente da Area proveniente € seus respectivos atributos tecnolégicos. As etapas da andlise foram: 1. Limpeza e conservagao dos objetos. 2. Classificagao quanto & formalfungao - sendo as categorias relacionadas: urna, para vasilhames com forma periforme e que tivessem preferencialmente associados ossos ou restos humanos; opérculo, para vasilhames associados a contextos funerarios ¢ que ocupassem posig3o superior & urna tendo a fungao de tampar e proteger o contetido & mesma; vasilhiame utilitério, para panelas, tigelas ¢ outros vasilhames associados a atividades do cotidiano dos grupos ceramistas e 273 274 nao relacionados a contextos funerérios; e vasilhame utilitario/acompanhamento funerdrio, para vasilhames que tiveram, supostamente, fungdes relacionadas a atividades do cotidiano, mas, que foram encontrados em contextos funerarios. 3. Classificagdo quanto ao tamanho ~ 0 tamanho foi estabelecido de acordo com 0 volume de cada vasilhame. Este foi medido através do aplicativo AutoCAD. Os parametros utilizados foram os mesmos de Oliveira (2000:153) Assim, vasilhames com tamanho pequeno tinham de 0, 150 L até 1 L; tamanho médio, de 1 L até 4 L; tamanho grande, de 4 L até 16 L; tamanho extra grande, de 16 L até o maior. RESULTADOS DA ANALISE DOS OBJETOS Foram analisados 10 vasilhames inteiros ou semi-inteiros distribuidos nas seguintes categorias: 4 “unas”; 5 “vasilhames utilitarios”, destes 3 faziam parte de contextos fune- rarios; 1 opérculo. Entre as urnas, 0 tamanho variou bastante. Os objetos apresentaram tamanhos médio, grande ¢ extragrande, variando de 2,6 até 186,4 litros. As umas de tamanho médio ¢ grande possivelmente estavam associadas a enterramentos secundarios. As “unas funerdria 3 e 4” estavam associadas a vestigios ésseos queimados ¢ a “urna funeraria 4” possuia uma camada de queima interior que sugeria incineragZio. A fungao das mesmas, entretanto, ¢ questionavel devido ao fato de terem sido retiradas por agri- cultores, As urnas maiores também estavam associadas a materiais dsseos, embora na maioria dos casos sua conservacao estivesse comprometida. Os tipos tecnolégicos recor- rentes foram os tipos “3” ¢ “9”, Os “vasilhames utilitarios” apresentaram tamanhos mais proximos, Predominaram os tamanhos médio ¢ grande, variando de 1,7 até 11,7 litros. O tipo tecnolégico mais comum foi o tipo “3”, mas ocorreram de forma singular também os tipos “1”, “4” e “5”. Apenas um opérculo foi identificado entre os vasilhames analisados. Este apresentou tamanho extragrande (34 litros) ¢ tipo tecnolégico “5”. A queima oxidada predominou entre todos os vasilhames, independente de tamanho ¢ fungZio. Apenas um “vasilhame utilitério” apresentou queima redutora. DISCUSSAO DOS RESULTADOS Notou-se entre as “urnas” menores uma confecgao mais refinada, referente ao “tipo 3”. Este tipo teenolégico apresenta a técnica de alisamento mais refinada na escala de alisamento ¢ entre os antiplisticos os grios de arcia de quartzo de granulometria média que implica numa selegao acurada dos graos possibilitando a retirada das particulas maio- res. Se confirmada a fungtio das umas 3 4 ¢ sua associagdo com rituais de incineragdo, sugere-se que vasilhames ceramicos nio teriam sido confeccionados exclusivamente para este tipo de enterramentos (secundérios), mas apenas reutilizados apés usos cotidianos. As “urnas” maiotes classificadas no tipo “9” apresentam uma confee¢aio estrutural mais “robusta” com antiplisticos bem maiores, necessarios para a sustentabilidade fisica do vasi- Ihame e também para que este nao rompa com peso do morte, Com relagiio ao tratamento de superficie das mesmas, existe uma ambiguidade na classificagio, embora se acredite que a presenga dessas particulas grosseiras pode ter dificultado a execugao de um alisa- mento de melhor qualidade como nos vasilhames menores e a acidez do sedimento em que estas foram retiradas pode ter resultado numa ma conservagao do tratamento de superficie, ocasionando uma aparéncia de erostio. O tinico elemento qualitativameme superior nessa, categoria é a queim: , na maioria oxidada. A espessura das paredes (sempre 1 em) e a alta queima, ja discutida, atestam para uma preocupagiio com a resisténcia destes utensilios. Os “vasilhames utilitérios”, em geral, possuem confecgdo e acabamento diferenciado das “unas funerarias” (excetuando as menores com fungdo em divida). stes estavam mais bem conservados no momento da andlise devido 4 umidade das camadas orgdnicas em que os mesmos foram encontrados. O tipo “3”, predominante nesta categoria, tem bom alisamento e antiplistico de areia média que, como dito anteriormente, remete a uma selegdio acurada dos grdos. O vasilhame proveniente da Area G (vasilhame utilitario 2) foi 0 finico relacionado ao “tipo 1” e que apresentou queima redutora, ow seja, diferenciando- -se em todos os aspectos dos demais. A relagao entre a queima redutora e 0 tipo “1” apresentada por este vasilhame pode sugerir uma relagdo desse tipo de queima ao uso de antiplisticos com gros menores ou ao interesse em retirar todas as “impurezas” da mi: tura, pois que € escassa a frequéncia de antiplasticos neste objeto. Entretanto a existéncia de apenas um vasilhame relacionado a esta categoria dificulta qualquer tipo de conjectura. Outra situagao de reutilizagao mais clara, por exemplo, é a dos vasilhames utilitérios / acompanhamento funerdrio, que exerceram duas fungées. A hipétese de novo uso seria menos provavel em enterramentos primarios devido A comum associagao da forma “peri forme” apenas com fungées funerarias, além das diferencas teenolégicas encontradas nos dois contextos analisados. Referindo-se a fase Aratu, Calderén (1969:166) afirma que 0 engobo com grafite bastante frequente. De acordo com Chmyz (1976) tem-se por engobo “tipo de tratamento 275 276 que consiste em aplicar, antes da queima, uma camada de barro, mais espessa que 0 banho, com ou sem pigmentos minerais, na superficie do vasilhame” (Chmyz, 1976:13). Entre os fragmentos analisados no sitio SB1 ocorreram, 7 fragmentos (provenien- tes de pelo menos dois vasilhames diferentes) identificados como grafitados. O proceso pelo qual se adquiriu esta aparéncia pode ter sido uma queime diferenciada ou esfuma- gamento. A pequena quantidade destes fragmentos e a existéncia de apenas um objeto encontrado na Area G (nao analisado) impossibilitou levantar questionamentos sobre si os vasilhames com este tratamento de superficie tinham formas e fungdes diferenciadas (ituais ou nao). CONSIDERAGOS FINAIS Os atributos observados na ceramica estudada foram similares aos encontrados em outras fases da tradigdo. Assim, a hipdtese de que o perfil técnico cerdmico do sitio Serra da Barriga se assemelharia & descrigao da cerimica da tradigao Aratu feita originalmente por Calderén (1971) foi confirmada. O agrupamento dos tipos ceramicos possibilitou caracterizar e sistematizar a cera- mica do sitio SBI e, assim, entender algumas escolhas dos grupos ceramistas da Serra da Barriga. O estabelecimento do perfil ceraimico da Serra da Barriga tepresenta a imple- mentagiio desta metodologia em sitios filiados a Tradigao Aratu, Em pesquisas futuras, compa ‘bes entre sitios diferentes poderao responder a questionamentos sobre a existén- cia de semethiangas culturais entre grupos distantes (difusdo) e semelhangas e diferencas entre grupos préximos com similaridades geoambientais. Um maior numero de estudos de caso envolvendo grupos ceramistas relacionados & tradi Aratu poderia ter permitido uma melhor avaliagao das regularidades e das discre- Pancias apresentadas pela certimica destes grupos. Os estudos dos sitios da regido Serrana dos Quilombos contribuirdo para o entendimento desta cultura em um nivel regionat. No entanto, para que seja possivel o entendimento da mesma nos Ambitos de difusdo ¢ (ou) evolugi 10 local, € necessério que os sitios filiados a esta tradigio sejam mais estudados, sobretudo na perspectiva ambiental, possi litando assim comparagdes entre os mesmos. Posso considerar que esse estudo seja o primeiro passo de uma pesquisa futura com pers- pectivas ecolégicas envolvendo um maior ntimero de sitios filiados & tradig&o Aratu, em contextos ecolégicos diferenciados observando como estes recursos foram aproveitados na confecgao da cerdmica, assim poderfamos avaliar o peso das tradigdes culturais frente 8 possibilidade de inovar oferecida por um ambiente com recursos diferenciados e, final- mente, obter uma caracterizagio regional-ecolégica das tecnologias ceramicas da tradi- cdo Aratu em suas diversas variagdes. AGRADECIMENTOS Este trabalho € um resumo expandido de dissertagaio de mestrado apoiado pelo CNPq ¢ apresentado ao Programa de Pés-Graduagdo em Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco sob a orientagao do Scott J. Allen, Ph.D. 277 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ALLEN, S. J. 1995. Of mosaics, syncretism, and creativity: the historical archaeology of Palen a seventeenth-century escaped-slave community. Master dissertation, Brown University. 2000. “Identidades em jogo”. In: GALINDO, M. ¢ ELIAS, J. (eds.). indios do nordeste: temas e problemas 2. Edufal. . 2001 race politics in Brazil. Ann Arbor, MI:UML. ‘umbi nunca vai morrer”: History, the practice of Archaeology and . 2006. “As Vozes do passado e do presente: arqueologia, politica cultural e 0 piblico na Serra da Barriga”. CLIO ~ Série Arqueol6gica (UFPE), Recife, v. 20, p. 81-101 278 ie Arqueologia da regio Serrana dos Quilombos. Relatério Parcial. Arquivado no NEPAJICS/UFAL ¢ 17a SR/IPHAN, Maceié ALLEN, S. 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