Você está na página 1de 4
Feminismo e revolu¢do Théroigne de Méricourt. Uma mulher melancélica durante a revolugao. ROUDINESCO, Elisabeth Rio de Janeiro: Rocco, 1997, Cole¢ao Género Plural. A Revolugao Francesa tem sido um dos temas mais freqiientados pela literatura produ- zidana Franga. Quando, em 1989, comemorou- se obicentendrio darevolugdo que deu origem anossa histéria contemporanea, segundo uma periodizagdo | consagrada mas nem por isso menos discutivel, um conjunto expressive de trabalhos foi produzido, muitos dos quais tradu- zidos quase simultaneamente no Brasil. Preocu- pado com a predomindncia de estudes que chamou de revisionistas e reaciondrios, Eric Hobsbawm fezuma andlise critica dessa produ- gGode 1989¢ terminouseu Ecos da Marselhesa’ resgatando o valor simbélico da Revolugao que inaugurou a luta, que ainda hoje estaria inccabada, pela liverdade @ pela igualdade entre os homens e as nagdes. Dentre os trabalhos que retomaram, mes- mo que de forma indireta, a revolugao emblematica de 1789 esta o de Elisabeth Roudinesco, Théroigne de Méricourt. Uma mu- thermelancélica durante aRevolugao, também publicade em 1989, masque sé agora chegaao Brasil. © objeto de investigagéo da autora é a histéria de uma mulher também emblemética que participou dos primeiros momentos daque- la que foi considerada a “mae” de todas as ' Eric Hobsbawm. Ecos da Marselhesa. Dois séculos revéem a Revolugdo Francesa, $40 Paulo: Cia, das Letras, 1996. A 1° edigdo é de 1990. ESTUDOS FEMINISTAS D7] 5 N. 1/98 revolugdes sociais e acabou identificada as origens do feminismo e luta pela igualdade entre os sexos. Mas 6 preciso cuidado com essa primeira @ rapida impressdo. Pois apesar do inegavel engajamento politico de Théraigne, @ do peso que Roudinesco confere a ele, esse livro no se filia de forma direta & corrente defendida por Hobsbawm, embora ndo se afaste completa- mente dela. Nao seinsere tampoucono conjun- to de estudos psicanaliticos que individualzam seus personagens e os fazem presas de suas histdrias particulares. A busca do equilforio entre ess08 duas abordagens é a primeira qualidade a ser apontada no trabalho e talvez se explique pelahistéria da propria autora, que de integran- te do Partido Comunista passou a estudar litera- tura e psicandiise. Roudinesco consegue entre- lagar trojetéria pessoal ¢ conjuntura politica de forma consistente e articulada, nos revelando uma histérla no s6 das conquistas da Revolugaio Francesa, mas também de suas dores e custos Théroigne de Méricourt nasceu Anne- Joséphe Terwagne, em Marcourt, regiaode fron- teira entre a Franga e a Bélgica, em agosto de 1762, Filna de uma famtia de antigos campone- ses proprietarios que paulatinamente empobre- ceram e se desfizeram de seus bens, marcando um dos processos maisimportantes e estudados da Revolu¢do Francesa’, Anne-Joséphe per- deu amée quando tinha apenas cinco anos de idade. Enviada para a casa de uma tia, em Liége, foi em seguida internada em um conven- to. Novamente recolhida pela tia, tornou-se sua criada e acabou voltande para Marcourt, para juntar-se ao pai e aos itmdos. Na aldeia de ‘origem encontrou © pai casade com aquela que fol uma verdadeira madrasta de contos infantis, situagdo que, associada as crescentes dificuldades financeiras por que passava a fami- lia, a fez abandonar a casa paterna. Aos treze ‘anos Anne-Josépphe deuinicio a uma vida erran- te pela casa de parentes e trabalhou como vaqueira, governanta de criangas e dama de companhia. Foi a partir dessa tiltima ocupagao que a vida de Anne-Joséphe comegou a mudar, Sua. patroa se afeicoou pela futura Théroigne, a ensinou aler, a fez estudar canto e miisica, a fez sonhar com a riqueza ¢ a fama, Aos vinte anos, ? Um trabalho cldssico sobre as limites da Revolu- G0 Francesano campo em face daadestocam- Ponesa ao principio da propriedade indivicual € Les Paysans du Nord Pendant fa Revolution Francaise, de George Lefebvre, 1924, ANO6 D1 6 1°SEMESTRE 98 jGtentando darinicioa uma carreira de cantora para a qual ndo tinha 0 menor talento, conhe- ‘ceu um oficial da infantaria inglesa que Ihe prometeuoluxo eo sucesso em Paris, Apaixona- da, fornou-se sua amante e comegou a aban- donar definitivamente sua vida camponesa ¢ miserdvel para se desiumbrar e se desiludir com ‘os homens @ com a fama. Foram dez anos de ‘ascensGo ¢ queda em Paris, onde entrou pela Porta dos fundos. Freqtientou a boemialiterdria, que para alguns autores foi o verdadero celeiro, das idéias dos filésofos enciclopedistas*, conhe- ceu outroshomens ese estabeleceucomo uma, “mulher galante, orgulhosa e misteriosa”, sus- tentada pela renda que, generosamente, Ihe deixara 0 oficial inglés. Essa rapide biografia de Anne-Joséphe nosrevelaumasociedadejé permedvel a mobi- lidade social, possivel através do enriquecimen- toedaconsitugaodeuma aparéncia derespei- tabilidade comprada pelo dinheiro e pela edu- cagGo, A incorporagao de modos, trejeitos, gostos e comportamentos eliminava, paulatina- mente, a necessidade dia linhagem e torava Possivel 0 sonho de pertencer & sociedade de corte do Antigo Regime. Anne-Joséphe esteve em Londres, conviveu com a alta sociedade de algumas cidades italianas e conauistou, em Paris, 0 direito de freqiientar os lugares pUblicos @ espetcculos prestigiades pela nobreza. Mas nada disso a livrou das maledicéncias provocadas por sua vida intensa e por ndo ter conseguide um casamento que Ihe desse um nome respeitavel, j que néo o tinha de nasci- mento, Talvez por isso tenha se apresentado de diferentes maneiras antes de se tornar Théroigne deMéricourt. Foi Madame do Campinado, nome desuafamtiamatemacustriaca, Anna Gioseppa Le Compte, nome que assinou no contrato que fez com um castrato! para a administragdo de seus bens ¢ por quem foi, novamente, engana- da, e “vitiva de um coronel inglés” Théroigne de Méricourt, nome que fariade *Ver a respeito DARNTON, Robert. Boemia Literaria @ Revolugo. O submunde das letras no Antigo Regime. So Paulo: Cia. das Letras, 1987, * Cantores que eram castrados ainda meninos, pois se ocreditava que, assim, poderiam manter um timbre de voz extremamente valorizado nas cortes européias. Esses personagens criados pelo Antigo Regime foram objeto de Intmeros estudos, livros e filmes, sempre realcando seus aspectos bizarros e grotescos. Para uma andlise, ver BARBIER, Patrick. Hisi6ria dos Castrati. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, ; Anne-Joséphe uma personagem da Revolucdo Francesa, foi cunhado por seus detratores e decorre de um galicismo que juntou Terwagne, nome de sua familia patema, com a corrutela de seu lugar de nascimento, Marcourt. Nasceu, portanto, de forma desrespeltosa e s6 depois que Anne-Joséphe adentrou o mundo da polit- ca -e este € 0 aspecto talvez mais discutivel da abordagem de Roudinesco. NGo é possivel compreender exatamente como Anne-Joséphe se tornou Théroigne de Méricourt. O proceso que transformou aquela mulher que convivia com a sociedade de corte ‘em defensora da liberdade e do que a autora chama de feminismo original sé pode ser enten- dido porum voluntarismo instintivo qué priorizao individual e fragiliza a articulagdo entre o perso- nagem e seu tempo. O engajamento esponté- neo de Théroigne na luta pela igualdade entre homens e mulheres é tomado como reflexo quase evidente de uma vida de dificuidades, humilhagées, doengas e softimentos, fazendo da antiga camponesa uma verdadeira precur- sora daluta feminista que teria comegado junto com a revolugdo. Segundo Roudinesco, Théroigne “néo era uma teérica ativa nem refletia o primelro feminism. Mas o encarnou espontaneamente, na medida em que se conscientizou de suc situagdo de mulher e ao mesmo tempo relvindicou sua liberdade, asso- ciando-c ao projeto igualitario da Revolugéo"* Apesar de advertir que a palavra feminismo s6 seria inventada em 1837, a autora nao deixa de usarotermoparafazerumaverdadeiratipologia do feminismo revolucionério: de original teria passado a teérico, até se tornar guerreiro e, finaimente, radical. A periodizagaio ¢ os principais projetos de cada uma dessas fases acompanharam o de- senrolar da propria revolugdo entre 1789 € 1793. A trajetéria de Théroigne, depois de seu engajamento politico, também. Passados os primeiros momentos de empoigacao, sua vida seguiria 0 curso das antigas e conhecidas desi- lusdes. Detratada de todas as maneiras pelos monarquistas, hostilizadamuitas vezes pelos prd- prios revolucionérios, acabou optande por um exiio voluntario @ voltou a Marcourt em 1791 Marcada pelo envolvimento com a revolugéo, foi presa e acusada de conspiragdo contra o imperador Leopold. Sem provas suficientes, Théroigne foi posta em liberdade e acabou voltando a Paris em 1792. Segundo Roudinesco, foi na prisdio que SCE. p. 69. Théroigne demonstrou seus primeiros sinais de *perturbagdo moral”. Esse estado $6 fez piorar depois de sua volta Paris. Vestida de amazona, chegou a freqtientar 0 Clube dos Jacobinos: defendeu 0 armamento de mulheres e foi para Qs ruas recrutando cidadas para formar milicias. 1792 fol o auge de sua ascensao politica. 1793 marcaria seu declinio definitive. Denunciada como agitadora e desordelra pelos préprios re- volucionGrios que nao toleravam seus métodos @ projetos, Théroigne foi acusada de usar o nome de Robespierre sem autorizagao eagoita- da em praga publica. Théroigne jamais se recuperaria dessa hu- milhagGo. Um ano depois, bastante perturbada emocionalmente, teve sua tutela reivindicada pelo itmao e em 1795 foiinternada pela primeira vez. Depois de varias transferéncias foi para a Casa das Loucas da Salpétrére, fundada por Phillppe Pinel, onde morreu em 1817. A explica- go para a loucura de Théroigne opés, teorica- mente, Pinel a um de seus maiores discipulos, Esquirol. Roudinesco analisa as teses dos dois Glienistos @ partir das diferentes vivéncias que cada um dos dois teve em relagao 4 revolugéo. Pinel fora da Ultima geragdo dos flésofos das Luzes, entusiasta de 1789 @ contrério G execu- do da rei em janeiro de 1793. Esquirol tinha 21 anos quando 0 terror jacobino tomou a cena politica, vinha de uma familia de adeptos dos monarquistas e poiiticamente aderiuaomodelo de monarquia constitucional quenovamente se avizinhava. Estas duas|eituras da forma de orga- nizo¢ao da politica e do mundo tiveram papel importante nas diferentes elaboragées tedricas que fizeram da deenga mental Pinel, que elaborou sua teoria da aliena- ¢Go entre 1790 e 1800, foi o primeiro cientista a incoporar a loucura ao saber madico, mas era ainda um tedrico da alma e das paixdes. A visio ambigua da revolugde - lilbertadora e criativa, de um lado, nefasta e perigosa quando radical, de outro - apareceu em sua percepgao sobre a loucura, que chamou “restos de razGo", fruto de excessos @ descontroles causados antes por defeitosmorais que fisicos. Mosse ndo ha divida que Pinel fez da loucura uma doenga espectf- C3, $6 tratavel por melos também especificos, Esquirol foi o responsdvel pelo aprofundamento dessa especialidade. Cientista do século XIX, deuinicio 4 catalogagao das doencas de acor- do como clima, aidade, 0 sexo, 0 tipe fisico eo temperamento. O aspecto moral perdi, assim, qualquer sentido. Ganhava forga 0 conhect- mento e a classificagéo detalhada de cada parte do corpo do doente, da anatomopa- ESTUDOS FEMINISTAS 17 N. 1/98 tologia até a autépsia. A necessidade de sepa- ragGo das partes do corpo se fez acompanhar da separagdo do corpo doente da sociedade em espacos asilares, em tempo de reorganiza- 0 politica da Franga, fase da restauragao mondérquica: um rei, umpovo, umareligiao, uma 86 ordem. Os relatos mais detalhados que temos da doenga de Théroigne nos foram deixados por Esquirol. Suas observa¢ées, redigidas em 1820 e publicadas em 1838, espelharam bem nao s6 a interpretagdo do discfpulo de Pinel sobre arevo- lugdo, como o estagio da medicina no estudo das doengas mentais. A relagao de Théroigne com a revolugae foi vista como sinal de um duplo desvio: a adesdo a um projeto que desvir- tuava os valores da civiizagdo fora agravada pelautllizagde do erro em proveitopréprio, Ado- tando a interpretagdo monarquista mais reaci- ondria e conservadora, Esquirol fez de Théroigne uma cortesd jacobina, libertina, que “faleceu, aos cinquenta e sete anos, sem que tenha dado mostras, em nenhum instante, de ter recobrado a razdo”*. A famosa amazona revolucionaria, como acabeu chamada por seus admiradores, ou a delirante libertina, como fizeram dela seus crit cos, esto, ambas, bem definidas no trabalho de Elisabeth Roudinesco. Mais que simplesmen- te contar a historia dessa mulher extraordinaria, a autora nos revela com sensibilidade e através de vasta documentagao e discusséo bibliogra- fica 0 tortuoso processo de construgao de cada um desses diferentes retratos de Théroigne de Méricourt. Ao buscar relacionar personagem e °CE. p. 193. histéria, Roudinesco traga um rico painel da Franga revolucionaria, nos deixando ver como, de diferentes maneiras, esse evento paradigmatico marcou de forma defiritiva a histéria politica, a histéria da cultura e até mes- mo ahistéria da ciéncia do mundo contempo- 1aneo. Por tudo isso, 0 trabalho de Roudinesco est longe daqueles que Hobsbawm chamou de revisionistas. Aprofundando o estudo da vida de umapersonagem, a autoranos fornece mais uma chave importante para o conhecimento desse evento fundador e simbélico de luta pela liperdade. Ao vasculharas entranhas da vida de Anne-Joséphe e de sua softida transformagao em Théroigne de Méricourt, a autora nos conta um pouco dos percalgos desse grande projeto politico originariamente revolucionario & consumadamente liberal, desvendando os ca- minhos percorridos pelas mulheres nessa longa marcha em busca da igualdade. Acossada por monarquistas e revolucionétios, Théroigne segu- ramente pagou um pre¢o alto por ser mulher revoluciondria, Se é possivel discutirsuas convic- ¢6es revolucionarias e a clareza de seus principi- ‘Os, NGo resta duvida de que, por razSes que talvez nunca conhegamos completamente, a amazona de Marcourt expés sua vide em nome de uma causa. Por tudo isso, Théroigne de Méricourt, Uma mulher melancdlica durante a Revolucdo 6, aomesmo tempo, uma histéria da revolugdo e uma histéria das mulheres; ahistoria de uma luta e de suas dificuldades; a histéria de um emblema e de algurnas de suas faces. JACQUELINE HERMANN

Você também pode gostar