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CULTURA COM ASPAS Manuela Carneiro da Cunha © COSAC NAIFY, 200 Coordenagao editorial FLORENCIA FERRAR! Preparagao NINA BASILIO @ ALEXANDRE MORALES Revisso PEDRO PAULO DA SILVA e RAUL DREWNICK Projeto grafico da colegio RAUL LOUREIRO Copa MARIA CAROLINA SAMPAIO. Composigo JUSSARA FINO ltustragso da capa TATIANA BLASS: Lurex dourado #3 (2008) sien sobre lure, 70x 100m ata Coleg Vana Rabin Foto: dio Calle Foto do autor KIKO FERRITE ‘Nesta adigso, respeitou-se 0 nova Acorde Ontegrifico da Lingua Portuguese ‘Dados Internacionais de Catalogagéo na Pubicagao (CIP) (Cémara Brasileira do Livro. SP Brasi) Cunha, Manuela Cameiro da ‘Cultura com aspas e outros enssios/Manuela Carneiro da Cunha So Paulo: Cosac Naify, 2008 440 pp. Bibliografia ISBN 078:86-7503.861-1 4, Aniropologia cultural 2. Antropologia social 3. Cosmologia 4. Cultura 5. Ensaios 6 Etnicidade 7. Etnologis 8. Mito 9, Povos indigenas - Brasil - Historia |. Titulo. 09.1080 cb0-306.080961 indices pore eatélogo sistematico 1. Brasil: Indigenismo; Antropologia culturel: Sociologia 906.08861 2. Brasi: Sociedades indigenas: Antropologia cultura: Sociologia 906.0697 COSAC NAIFY ua General Jardim, 770, 2? andar (01223.010 Sao Paulo SP “el (55 19) 3218 1444 www.cosacnaity.com.br Atendimento ao professor (56 11] 3218 1473 COLEGAO ENSAIOS Eduardo Vi Davi Arrigueci Jr. Coragao partido: uma anélise da poesia reflexiva de Drummond Maurice Merleau-Ponty A prosa do mundo siros de Castro A inconstdncia da alma selvagem Marcel Mauss Sociologia e antropologia Pierre Clastres A sociedade contra o Estado Ismail Xavier O odhare a cena Pierre Clastres Aryueologia da violéncia Maurice Merleau-Ponty 0 otho ¢ 0 espinito Franklin de Mattos A cadeia secreta: Diderot ¢ 0 romance filoséfico Antonio Arnoni Prado Trinckeira, palco e letras Eunice Ribeiro Durham A dindmica da cultura: ensaios de antropologia Otilia Beatriz. Fiori Arantes Médrio Pedrosa: itinerdrio eritico Eduardo Escorel Adivinkadores de dgua Ronaldo Brito Experiéncia critica Fernando A. Novais Aproximagées: estudos de hist ae hiscoriografia Jean-Paul Sartre Strwagées I: critica literdria Alcides Villaga Passos de Drummond Gérard Lebrun A filosofa e sua historia Liicia Nagib A utopia no cinema brasileiro: matrizes, nostalgia, distopias Alfonso Berardinelli Da poesia d prosa Ismail Xavier Sertdo Mar: Glauber Rocha ¢ estética da fome Marthe Robert Romance das origens, origens do romance Leopoldo Waizbort A passagem do trés ao um: critica literiria, sociologia, filologia Michael Hamburger 4 verdade da poesia Bento Prado Jr. A retérica de Rousseau ¢ outros ensaios Claude Lévi-Strauss, Anropologia estrutural As outras duas condig6es sao relativamente mais ficeis de ser i plementadas, desde que se abandone o arraigado paternalismo do co nialismo interno e a arrogancia da ciéncia ocidental. E preciso tambéi encarar as dificuldades de implementagao, como a de se estabelecer legalidade (sem falar da legitimidade) de contratos com populagdes dicionais. Um dos problemas que se colocam de saida, com efeito, & auséncia nos sistemas costumeiros, de representantes com autoridade sobre toda a populagdo. Nas sociedades indigenas no Brasil, a regra antes que cada chefe de aldeia tenha alguma autoridade sobre sua deia e que, em havendo dissensies, as aldeias se cindam. Criam-se p: atender ao problema da legalidade de contratos Associagdes Civis legitimidade pode ser frequentemente contestada. Nessas condig6es, entende-se que poucas inddstrias queiram se Por aos riscos para sua imagem publica de se ver confrontadas com sages de biopirataria e que poucos cientistas queiram ter de ne} acesso ¢ reparticio de beneficios com populagdes que, além do mais, tornaram extremamente desconfiadas entre outras coisas pela sua gimentacao na luta contra a biopirataria. Por sua parte, as socie tradicionais, bombardeadas que foram por campanhas que as acaut vam contra qualquer pesquisador, suspeito a priori de biopirataria, fi ram levadas a alimentar expectativas muitas vezes excessivas em relag ao potencial econdmico de seus conhecimentos tradicionais, ex vas que s6 podem provocar desapontamentos, Ha, em suma, muitos obstéculos a transpor, mas se no souber Construir novas instituigdes e relagSes equitativas com as populagdes dicionais e seus saberes, estaremos desprezando uma oportunidade & 319 CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” 19. “Cultura” e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais' Cantes de ida y vuelta Cantes de ida y vuelta, como guajiras, colombianas ¢ milongas, sto um nero tradicional do flamenco andaluz desde pelo menos o século x1x, quando se iniciou a era pés-colonial do império espanhol. A Espanha saia do colonialismo quando a maioria dos outros paises ocidentais in- gressava nele: ela sempre esteve adiante de seu tempo. Os cantes de ida y vuelta eram produtos coloniais introduzidos na Espanha, frutos da \. Este ensaio tem uma longa histéria. Comegou com uma comunicagio em Barcelona em 3002 € se expandiu em 2004 quando foi apresentado como a Conferéncia Mare Bloch da cole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Sua forma final, muito aumentada, se inse~ riu na colegio de pantletos dirigida por Marshall Sahlins, a Prickly Paradigm. Esta dltima incarnaglo, traduzida do inglés por Beatriz Perrone-Moisés, explica a forma inusitada do texto, A ordem editorial era suprimir referencias bibliograficas e notas de rodapé. A falta de referéncias bibliogrificas me atrapalhou um pouco para dar 0 seu ao seu dono e 0 jeito foi mencionar por extenso pelo menos os autores mais relevantes. A falta de notas de rodapé, 20 contrdrio, veio a calhar, De certa maneira, 0 que em outros géneros académicos seriam nnotas acabou inserido no proprio texto, que vem portanto eivado de digressoes, Relendo recentemente um artigo de Terence Turner de 1991, surpreendi-me em vé-lo todo anotado, ¢ descobrir convergéncias flagrantes com minha reflexio, que me levaram a pensar no papel que ele teria desempenhado na gestagio do meu préprio texto. Nao se trata da adogdo das aspas entre as quais se grafou e apertou “cultura”. Esse recurso tipografico jé foi abundantemente usado para significar clisio,distanciamento ou deslizamento de sentido. De minha parte, pensei seriamente em usar caltura ou calture ou até kaltura ou kalture em vex de “cultura” ou “culture”. A alusio seria a kastom, a corruptela da palavra inglesa custom adotada na Melanésia e que, segundo consta, est’ em todas as bocas por Id eatesta a extensa0 do recurso & “cultura” e sua reificago. Se finalmente optei pelo menos exdtico “cultura”, foi por uma razio especifica: esse recurso tipogrifico era mais consistente com 0 uso da logicae se adaptava mais a conotagao de sistema metacultural que eu queria lhe imprimir. “Cultura” ¢ cultura 304 aproptiagio e da transformagao de géneros musicais flamencos prati cados nas coldnias ~ as atuais Cuba, Colombia e Argentina, Dai serem conhecidos como cantos de ida e volta. A situagao pés-colonial nao caracteriza apenas as ex-coldnias. também um trago importante das ex-metropoles, quando mais nao fo porque estas agora tentam conter a onda de imigragao de seus antiga stiditos. As categorias analiticas — e evito aqui de propésito o altiss nante “conceito” — fabricadas no centro e exportadas para o resto d mundo também retornam hoje para assombrar aqueles que as prod ram: assim como 0s cantes flamencos, sao coisas que vao e voltam, di tadas e devolvidas ao remetente. Categorias de iday vuelta. Uma dessas categorias é “cultura”. Nogdes como “raga”, e mi tarde “cultura”, a par de outras como “trabalho”, “dinheiro” e “ giene”, so todas elas bens (ou males) exportados. Os povos da p feria foram levados a adota-las, do mesmo modo que foram levado: comprar mercadorias manufaturadas. Algumas foram difundidas missionarios do século x1x, como bem mostraram Jean e John Com roff, mas num perfodo mais recente foram os antropélogos os princip. provedores da ideia de “cultura”, levando-a na bagagem e garant sua viagem de ida. Desde entio, a “cultura” passou a ser adotada e vada na periferia. E tornou-se um argumento central — como obse! pela primeira vez Terry Turner — no s6 nas reivindicagdes de te como em todas as demais. Ha ainda paralelos com itinerdrios imprevistos de outras cat rias. O cristianismo, por exemplo, também foi exportado do Ocident como produto colonial e imposto a grande parte da Africa, Um paradoxalmente, porém, o cristianismo africano veio a desempenh um papel proeminente na resisténcia contra as poténcias coloniais. D mesmo modo, a “cultura”, uma vez introduzida no mundo todo, a miu um novo papel como argumento politico e serviu de “arma do fracos”, o que ficara particularmente claro nos debates em torno dos reitos intelectuais sobre os conhecimentos dos povos tradicionais. I hao porque o “conhecimento” figurasse com destaque na lista que t dos patriarcas da antropologia, Edward Tylor, elaborou para defini “cultura”, e sim porque as questdes de direitos intelectuais relang os debates sobre “cultura” com novo vigor. Ha no entanto diferengas significativas na comparagao entre en tianismo e “cultura”. No século xvi, por mais que se debatesse se 312. CONHECIMENTOS, CULTURA £ “CULTURA” povos do Novo Mundo eram as tribos perdidas de Israel ou se Sao Tomé teria pregado a Boa Nova nas Américas, pressupunha-se que 0s povos periféricos no haviam conhecido a verdadeira religitio ou a ha- viam perdido até que ela Ihes fosse trazida pelas poténcias coloniais ¢ pela Igreja. Com a “cultura” o caso é mais complicado, porque supos- tamente trata-se de algo que esses povos ja previamente teriam e con- servariam, Na linguagem marxista, é como se eles ja tivessem “cultura em si” ainda que talvez no tivessem “cultura para si”. De todo modo, no resta divida de que a maioria deles adquiriu essa tltima espécie de “cultura”, a “cultura para si”, e pode agora exibi-la diante do mundo. Entretanto, como varios antropélogos apontaram desde o final dos anos 1960 (e outros redescobrem com estrépito de tempos em tempos), essa é uma faca de dois gumes, j4 que obriga seus possuidores a demonstrar performaticamente a “sua cultura”. Acredito firmemente na existéncia de esquemas interiorizados que organizam a percepgao e a agao das pessoas e que garantem um certo grau de comunicacao em grupos sociais, ou seja, algo no género do que se costuma chamar de cultura. Mas acredito igualmente que esta tiltima nao coincide com “cultura”, e que existem disparidades significativas entre as duas. Isso nao quer dizer que'seus contetidos necessariamente difiram, mas sim que no pertencem ao mesmo universo de discurso, © que tem consequéncias considerdveis. Em suma, tratarei de mostrar aqui que esse é um caso especialmente enganador de “falsos amigos”: uma vez que nem sempre percebemos ou observamos o uso das aspas, cultura ¢ “cultura” se confundem. Era desse tipo de ida e volta que eu falava. Enquanto a antropolo- gia contemporanea, como Marshall Sahlins apontou, vem procurando se desfazer da nogio de cultura, por politicamente incorreta (e deixd-la aos cuidados dos estudos culturais), varios povos esto mais do que nunca celebrando sua “cultura” e utilizando-a com sucesso para obter reparacées por danos politicos. A politica académica ¢ a politica étnica caminham em diregdes contrarias. Mas a academia nao pode ignorar que a “cultura” esté ressurgindo para assombrar a teoria ocidental. ‘As aventuras da “cultura”, contudo, nao param por ai. As idas e vol- tas continuam. E ja que cultura e “cultura” se desencontraram, surge um interessante problema para a pesquisa emogrifica: quais so 0s proces- sos, as questdes e as transformacdes implicadas no ajuste e na tradugio da categoria importada de “cultura” por povos periféricos? Formulada “Cultura” e culeura 313 com 0 recurso a uma expresso ¢ uma fértil ideia de Marshall Sablins, a questo passa a ser esta: como se da a indigenizac3o da “cultura”? Uma primeira histéria O velho levantou-se, imponente. Olhou para 0 auditério e disse con indignagao, em portugués: “Alguém aqui acha que honé é cultura? Eu digo que nao. Nao é! Honi nao é cultura!”. Estéyamos ali, em junho de 2095, discutindo os direitos intele tuais indigenas sobre itens culturais, mais especificamemte os direito: sobre o uso de uma secregao de ri de que falaremos mais adiante. dos 05 presentes compreenderam imediatamente a mengio do vell chefe yawanawa a honi, que a primeira vista é coisa totalmente diferent Domo essa é uma longa histéria, por ora direi apenas que Aoni éa p lavra yawanawa (¢ de varias outras linguas do tronco pano) para um bebida alucinégena com base na combinagio de um cipé e das folhs de um arbusto, conhecida no mundo indigena da Amaz6nia ocidenta sob diversos nomes—tais como ayahuasca, nishi pae, yagé, kaapi —en Acre, de um modo genérico, como “cip6”. Desde a década de 1930, p menos, a ayahuasca foi incorporada como parte essencial de diversi religides populares nao indigenas atuantes em localidades urbanas d Acre e de Rondénia. A partir do final dos anos 1970, essas religid conheceram retumbante sucesso nas grandes cidades do pais, atrai intelectuais com preocupagdes ecolégicas, atores de TV, jovens new aj e até, o que é bastante interessante, ex-guerrilheiros. Algumas des religides acabariam sendo exportadas a partir dos anos 1990 para os tados Unidos ¢ para a Europa. De volta a cena. Era 0 segundo dia de um complexo encontro 1 Rio Branco, capital do Acre, reunindo representantes de varios grup étnicos que vinham de um encontro mais amplo em que haviam ful dado uma organizagio indigena abrangendo 0 Acre e parte do Amay nas. O primeiro dia havia sido tomado por longas explicagdes de advogada do Ministério do Meio Ambiente acerca dos aspectos k da reivindicagao de direitos intelectuais sobre conhecimentos t cionais. No segundo dia teria inicio um debate sobre a repartigao eventuais beneficios. O encontro tinha a ver com um assunto $I dois anos antes, relacionado aos direitos intelectuais sobre o uso de 314 CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” secregio de perereca (ou seja, uma ra arboricola) conhecida localmente como “vacina de sapo” ¢ que se popularizou no pais com um de seus homes pano, kampé (voltaremos a essa historia com pormenores). Po- deriam reivindicar 0 conhecimento tradicional do uso da secregio todos 0s grupos indigenas com sufixo -nawa ou -bo em seus etndnimos (mais precisamente, todos os falantes de linguas pano do interflivio Ucayali- Jurué tanto no Brasil como no Peru, além de alguns de seus vizinhos setentrionais), mas somente os Yawanawa, os Kaxinawa e os Katukina estavam ali representados. Alguns Apurina, que nao reivindicavam aquele conhecimento especifico, tinham ficado para assistir ao debate ¢ pareciam bastante intrigados com a discussao, que provavelmente lhes abria novos horizontes. Francisco Piyako, entao secretario do Estado do Acre para os Povos Indigenas, também estava presente. Sua atitude ponderada e sua influéncia, e também o fato de que desde 0 inicio des cartara qualquer reivindicago naquele sentido por parte dos Ashaninka, conferiam-lhe grande autoridade moral. Segundo Piyako, embora os Ashaninka, falantes de lingua aruaque, utilizassem a secregao da ra, ha- viam aprendido a fazé-lo com seus vizinhos de lingua pano. ‘A questo crucial do encontro era chegar a um consenso quanto as formas legais de encaminhar as negociagdes em torno do conhecimento ligado ao uso do kampé. Os Katukina estavam na origem de toda a mo- bilizagio, e tinham angariado o apoio do Ministétio do Meio Ambiente. Porém, os trés katukina presentes viram-se numa posicio desconforté- vel, acusados pelos Yawanawa, e em menor medida pelos Kaxinawa, de pretenderem monopolizar um conhecimento que era comum a todos 8 grupos de lingua pano ali presentes. Os Yawanawa ¢ os Katukina compartilham uma terra indigena a beira do rio Gregério, uma situagao sui generis ¢ com grande potencial de conflitos. Essas diferengas resulta- ram, entre outras coisas, em aliancas com diferentes atores externos. Os jonarios protestantes e estreitado Yawanawa haviam expulsado os lagos com a comunidade empresarial ambientalista norte-americana, sobretudo a Aveda, e se distinguiam por sua experiéneia em assuntos urbanos e em conexes internacionais. Os Katukina, mais observantes entio de seus “costumes tradicionais”, constitufam de certo modo uma reserva cultural para os Yawanawa. Na assembleia, estes predominavam sobre a delegagao katukina numérica ¢ retoricamente. Mas a situagdo era um tanto irénica, uma vez que os Katukina é que haviam tomado a iniciativa da mobilizagao em torno da secregio do kampé. “Cultura” e cultura 315 Para se entender 0 que estava acontecendo no evento é preciso ampliar a contextualizagao, incluindo diferentes campos e escalas: i trumentos legais internacionais, grupos de interesse transnacionais, p liticas nacionais, subnacionais ¢ locais, politica indigena e politica ciel tifica. Isso provavelmente é muito mais do que o leitor quer saber, é preciso elucidar cada um desses dominios para que se possa entend plenamente 0 contexto. Passemos entao a uma historia de detetive: historia da ra, com seu elenco completo de personagens. Qual o int resse dela? Bem, no minimo é uma etnografia de eventos relativament Tecentes — que surgiram com essa configuragao em meados dos anos 1990 — e que tém equivalentes em muitas partes do mundo. Mas esto interessada na histéria especialmente pelos seguintes motives. Em primeiro lugar, acho que nos ressentimos de falta de cronist Os historiadores contemporaneos que estudam o século x1x, por plo, apoiam-se em boa medida nos relatos produzidos por viajantes a longo daquele século. Esses relatos constitufam um género em si mes Eram crdnicas de acontecimentos e atmosferas que nao mereciam gistro por parecerem triviais, modestos demais para serem noticia. Og didrios pessoais eram reservados aos sentimentos e eventos notavei Somente os viajantes achayam que havia interesse em escrever sobt costumes ou epis6dios que sem eles passariam em branco, e que em nad se destacavam na percepcao de quem os vivia. certo que os viajantes tinham um olhar enviesado e ouvidos mal sintonizados, mas nestes tem pos de reflexividade representacional e de ansiedade intelectual quero fazer 0 elogio desses viajantes e etndgrafos ingénuos. Quem, hoje dia, faria tal crénica detalhada de eventos mitidos em lugares remoto Seja como for, achei que devia assumir a tarefa de escrever a cronies dessa historia especifica, que ilustra os processos pelos quais a questo. dos direitos intelectuais vem sendo apropriada por grupos locais. Creio ainda que essa hist6ria nos leva de volta a tio debatida que: to da cultura, Mas n&o tanto como uma categoria analitica da antropo logia, e sim como uma categoria vernécula. O que me interessa aqui é sobretudo 0 uso local que se faz dessa categoria de cultura. Uma abor dagem pragmatica, se quiserem. Interessa-me, por exemplo, entender Por que o velho chefe yawanawa declarava que honi nao era cultura, Além disso, estou interessada na relagdo entre uma categoria e out isto é, entre o que os antropélogos costumavam chamar de cultura eo que | Os povos indigenas esto chamando de “cultura”. Nao estou interessada 316 CONHECIMENTOS, CULTURA & “CULTURA” apenas na relag&o légica entre as duas categorias, embora isso me interesse muito, Mais importante, porém, é procurar entender os efeitos de sua co- Jresenga, A coexisténcia de cultura produz efeitos ¢ consequéncias? Como surgem negociagées em torno de conhecimentos tradicionais Hoje, 0 acesso a conhecimentos tradicionais sobre recursos genéticos ¢ a sua utilizago exigem negociacdes com consentimento formal e re- partigdo de eventuais beneficios com populagées tradicionais, tudo isso intermediado ou ratificado pelo Estado. Essas exigéncias decorrem de lum construto legal e institucional firmado em ambito internacional em 1992: a Convengio sobre Diversidade Biolégica, das Nagdes Unidas. Esse construto legal, por sua vez, encerra varios pressupostos quanto ao status, & natureza, a produgio e a circulagdo de conhecimentos, sojam eles “tradicionais” ou “‘cientificos”. Contém ainda pressupostos relativos aos tipos de direitos daf resultantes. Procura-se, por exemplo, *projetar”, no sentido da geometria projetiva (que é também o sentido psicanalitico), os atributos do conhecimento tradicional sobre os do co- nhecimento cientifico, reduzindo-se a complexidade do conhecimento fecham-se deliberadamente os tradicional a do conhecimento cientifice olhos para os aspectos que os diferenciam, na esperanga de uma univer- salidade que os transcenda. Mas os pontos frageis desses pressupostos silo pragmaticamente desconsiderados no afi de se chegar a algum en- tendimento, mesmo que (sabidamente) 0 acordo sobre os termos nao necessariamente traduza um entendimento compartilhado pelas partes. A primeira e mais importante consequéncia do novo construto le- yal é a definigao ou redefinigao da relagiio entre pessoas conhecimento. Como veremos adiante, a convengao fala em “detentores” ¢ ndo em "proprietarios” de conhecimentos tradicionais. Também fala em “so- herania” e nao em “dominio” ou “propriedade” de Estados nacionais sobre recursos genéticos. Apesar dessas precaugées, porém, as efetivas transagdes sobre conhecimentos tradicionais — quer se trate de consen- timento informado para a pesquisa ou de contratos para a repartigao de beneficios — acabam produzindo uma relagio de propriedade, ou muito proxima dela, entre os detentores ¢ 0 “seu” conhecimento. O pronome possessivo ja diz tudo. Mueatis mutanda, poderia-se subscrever 0 que Mark Rose escreveu com tanta eloquéncia a respeito do direito autoral “Cultura” e cultura 317 no século xv11, matriz. dos conceitos gémeos de autoria ¢ de relagao propriedade entre um autor e seu trabalho: A principal encarnasio institucional da relasdo entre autor e obra é copyright, que [...], dotando-a de realidade legal, produz e afi a propria identidade do autor {...). Observa-se at [...] a emerge simultdnea, no discurso da lei, do autor proprietério ¢ da obra literd Os dois conceitos estéo atrelados um ao outro. Note-se que Foucault também disse mais ou menos isso ao discutir “fungao-autor”. Recorrendo-se ao caso do encontro de junho de 2005 em Branco, pode-se perceber como 0 conceito de propriedade sobre nhecimento foi apropriado por povos indigenas em sua interface e a sociedade ocidental e levado a novos desdobramentos. Alguém auditério, por exemplo, levantou a questo dos direitos intelectuais bre linguas indigenas: “Por que é que esses missionarios e antropélo; querem aprender a nossa lingua? Estamos ensinando nossa lingua ae até hoje. Mas como € que eles estiio usando isso?”. Nota bene: por surreal que possa parecer hoje, essa reivindicagao pode ter algo a com 0 uso da lingua navajo pelos Estados Unidos para codificar mé gens durante a Segunda Guerra Mundial. Discursos das Nagoes Unidas sobre conhecimento tradicional: o Relatério Brundtland e a Capula da Terra O discurso internacional sobre conhecimento tradicional do meio. biente foi oficializado pela primeira vez, em 1987, no relatorio da missao Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da onu, titulado “Nosso futuro comum”, também conhecido como “Relaté1 Brundiland”. Encomendado pela oNu em 1983 e coordenado por Harlem Brundtland, entio Primeira-ministra da Noruega, o Relat foi apresentado & Assembleia Geral das Nagdes Unidas em 1989. Of ragrafo 46 da sua Introdugio afirma: Povos indigenas ¢ tribais precisarao de atengao especial diante ameagas trazidas pelas forgas de desenvolvimento econdmico a 318 CONHECIMENTOS, CULTURA F “CULTURA” modos de vida — modos de vida estes que podem oferecer ds sociedades modernas muitas ligGes de manejo de recursos em complexos ecos- sistemas de floresta, montanha e zonas dridas. Alguns destes povos estéo ameagados de virtual extingao por um desenvolvimento insensivel 2 sobre 0 qual nao possuem controle. Seus direitos tradicionais devem ser reconhecidos ¢ deve ser-lhes dada voz deciséria na formulagio de politicas de desenvolvimento dos recursos em suas dreas [grifo meu]. Um dos resultados institucionais do Relatério Brundtland e de sua dis cussio na Assembleia Geral das Nagdes Unidas foi a convocagao da Conferéncia das Nagdes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvi- mento (UNCED), a chamada “Capula da Terra” realizada no Rio de Ja- neiro em 1992, que adotou explicitamente como diretriz 0 conceito de “desenvolvimento sustentavel”. A Declaracio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento do Rio, langada na Cuipula, afirma em seu principio 22 que “os povos indigenas [...] possuem um papel fundamental no ma- nejo e desenvolvimento do meio ambiente, devido a seu conhecimento vital e a suas prdticas tradicionais”.. O relatério oficial da Cfipula, a chamada “Agenda 21”, expde em detalhes um programa de desenvolvimento sustentavel para 0 século xxi, Um capitulo inteiro, o de numero 26, intitulado “Reconhecimento ¢ fortalecimento do papel de povos indigenas e de suas comunidades”, trata dessa questo. Note-se que a expressiio “conhecimento cientifico tradicional” (sobre recursos naturais, terra e meio ambiente) aparece nesse capitulo ao lado de formulagées mais habituais, tais como “prati- cas tradicionais de manejo de recursos”. O qualificativo “cientifico” é ainda mais digno de nota na medida em que esta ausente de outros do- cumentos. Assim, ao detalhar as bases para o reconhecimento e inclusao de povos indigenas e tradicionais a Agenda 21 declara: Durante muitas geragies [as populagées indigenas e suas comunidades] de- senyolyeram um conhecimento cientifico tradicional ¢ holistico de suas terras, dos recursos naturais e do meio ambiente. {.u.] Tendo em vista a in- tercrelagao entre o meio natural e seu desenvolvimento sustentivel e 0 bem- estar cultural, social, econdmico e fisico dos povos indigenas, os esforcos nacionais e internacionais de implementago de wm desenvolvimento am- bientalmente saudével e sustentdvel devem reconhecer, acomodar, promover « fortalecer o papel dos povos indégenas e de suas comunidades [grifo meu} “Cultura” e cultura 319 A Agenda 21 abrange miltiplos aspectos da questo e traz recomendag® sobre as condigdes legais necessérias, em Ambito global e nacional, garantir 20s povos indigenas o controle sobre terras e sobre proce decis6rios, bem como seus direitos intelectuais e culturais, Nao abord porém ~a diferenga da Convengiio sobre Diversidade Biologica, tada a seguir —a repartigo de beneficios com os povos indigenas. Objetivos 26.3. Em cooperagio plena com as populagées indigenas e suas cot dades, 03 Governos e, quando apropriado, as organizagGes intergo mentais, devem se propor a cumprir os seguintes objetivos: (@) Estabelecer um processo para investir de autoridade as popula indigenas e suas comunidades, por meio de medidas que incluam: (i) A adogao ou fortalecimento de politicas ¢/ou instramentos ju adequados em nivel nacional; (ii) O reconhecimento de que as terras das populagdes indigenas e comunidades devem ser protegidas contra atividades que sejam talmente insalubres ou que as populagées indigenas em questo co rem inadequadas social ¢ culturalmente; iii) O reconhecimento de seus valores, seus conhecimentos tradici © suas praticas de manejo de recursos, tendo em vista promover senvolvimento ambientalmente saudével e sustentavel; (iv) O reconhecimento de que a dependéncia tradicional e direta dos cursos renovaveis e ecossistemas, inclusive a coleta sustentivel, conti a ser essencial para o bem-estar cultural, econdmico e fisico das ‘goes indigenas e suas comunidades; (¥) O desenvolvimento e 0 fortalecimento de mecanismos nacionais solugio das questées relacionadas com o manejo da terra e dos (vi) O apoio a meios de produgo ambientalmente saudaveis alt vos para assegurar opgdes variadas de como melhorar sua qua vida, de forma que possam participar efetivamente do desenvol sustentavel; (vid) A intensificagao do fortalecimento institucional e técnico p munidades indigenas, bascada na adaptac3o e no intercambio de riéncias, conhecimentos e praticas de manejo de recursos tradi para assegurar seu desenvolvimento sustentavel; (b) Estabelecer, quando apropriado, mecanismos para intensificar 320 CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” ticipagio ativa das populagdes indigenas e suas comunidades na formula gio de politicas, leis e programas relacionados com 0 manejo dos recur- sos no plano nacional ¢ em outros processos que possam afetd-las, bem como as suas iniciativas de propostas para tais politicas e programas; (©) Participagao das populagées indigenas e suas comunidades, nos pla- nos nacional e local, nas estratégias de manejo ¢ conservagao dos recur- 505 ¢ em outros programas pertinentes estabelecidos para apoiar ¢ exami- nar as estratégias de desenvolvimento sustentivel, tais como as sugeridas em outras areas de programas da Agenda 21. A Convengao sobre Diversidade légica A Convencdo sobre Diversidade Biolégica (cps) também resultou da Ctipula da Terra, ¢ foi aberta a assinaturas ja em 1992. Desde entao, foi ratificada por quase duzentos paises, com a notavel excegao dos Estados Unidos, que a assinou mas nunca a ratificou. O principal propésito por tras da Convengio era regular 0 acesso aos recursos genéticos e garantir a reparticio de beneficios que deles se originassem. Até entdo, os recursos genéticos eram considerados patri- ménio comum da humanidade, e havia plena liberdade de acesso a eles. No entanto, os direitos de propriedade intelectual sobre as invengdes derivadas desses recursos eram totalmente privatizados. Ademais, 0s recursos genéticos e as patentes se concentravam em areas geografica- mente distintas e complementares. De um modo geral, enquanto 0s pai- ses ticos em recursos genéticos eram carentes em tecnologia de ponta, aqueles tecnologicamente mais avangados careciam de riqueza em re- cursos genéticos. Visto que as patentes estavam fortemente concentra- das no hemisfério norte, essa disjungio logo viria a ser espacializada como um “conflito Norte /Sul”, que opunha os sete paises mais ricos do mundo, 0 G7, as demais nagdes. Um Sul alias sué generis, jé que incluia a China mas nao a Australia. Como a riqueza em recursos genéticos e a riqueza industrial eram inversamente proporcionais, ndo surpreende que o Sul, ou pelo menos alguns de seus representantes, tenha visto na cbs um instrumento de justica redistributiva. A cpp estabelece a soberania de cada pais sobre seus recursos genéticos. Ela é pensada essencialmente como uma so- |ugio de compromisso por meio da qual os paises permitem 0 acesso “Cultura” e cultura 321 regulamentado a seus recursos genéticos em troca de transferéncia di tecnologia e reparticao de beneficios de um modo geral. Na década de 1990 a categoria “Sul” j4 operava politicamente en diferentes arenas, podendo representar diferentes agregados de pais € regides. Em sua versio “recursos genéticos”, representava um blog de paises “megadiversos” cada vez mais articulados, uma coalizao q inclufa quase todos os pafses tropicais da América Latina e do Sud; Asiatico, além da China e de varios paises africanos. Esse bloco po tico consolidou-se e ganhou 0 nome de “Paises megadiversos alinhad (Like-Minded Mega Diverse Countries). Dele faziam parte a Bolivia, Brasil, a China, a Colémbia, a Costa Rica, a Republica Democratica Congo, o Equador, a india, a Indonésia, o Quénia, Madagascar, Mal México, Peru, as Filipinas, a Africa do Sul e a Venezuela. Essa coali opunha-se regularmente ao bloco dos representantes dos paises i trializados, detentores da vasta maioria dos direitos de propriedade in lectual —a saber, os Estados Unidos, a Unitio Europeia e 0 Japio. Com os Estados Unidos nunca ratificaram a cpp, embora a tivessem asin: desde a primeira hora, nao participavam oficialmente dos féruns d Convengao, mas seus interesses eram representados pelos governos Canada, da Australia e da Nova Zelandia. Cabe ressaltar que os direitos indigenas nunca estiveram no tro dos interesses dos paises megadiversos: eram os interesses em recursos genéticos que os levavam aos direitos indigenas. A india Brasil assumiram a lideranga do bloco dos paises megadiversos di 0 inicio. Os dois paises também estiveram a frente de alguns dos ci mais not6rios de licenciamento compulsério, invocando a satide piibli € outros argumentos para justificar a quebra de patentes (o licen mento compulsério é previsto pela Organizagao Mundial do Comés em casos excepcionais, mas dai a coloca-lo em pratica vai uma lon, tancia). O primeiro caso de licenciamento compulsério (que equi poder fabricar produtos genéricos ignorando a vontade dos det das patentes) foi o da produgdo de medicamentos de baixo custo a Aids estabelecida pelo Ministério da Satide durante 0 governo nando Henrique Cardoso (1994-2002). Desde 2003, ja na gestiio 0 governo brasileiro manifestou uma crescente tendéncia a contest da rigidez dos direitos autorais em todas as areas. O ex-Mini: Cultura Gilberto Gil apoiou o movimento pela flexibilizagao dos ¢ tos autorais e endossou 0 sistema de licenciamento Creative Con 322 CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” o sistema de direitos autorais d /a carte no qual este panfleto foi publicado em sua versio original. No que se refere aos povos indigenas no Brasil, a questo € mais complexa, como veremos depois de discutirmos a histéria dos dispositi- vos legais relativos ao conhecimento tradicional. A contribuigao da cps as questées do conhecimento tradicional e da repartigao de beneficios aparece no Preambulo (parégrafo 12) e em pelo menos dois outros trechos do documento, mas é marcante no para- grafo j do artigo 8°: Cada Parte Contratante deve, na medida do possivel e conforme 0 caso: [..J] j) Em conformidade com sua legislagao nacional, respeitar, preservar e ‘manter o conhecimento, inovagies e praticas das comunidades locais ¢ populasées indigenas com estilo de vida tradicionais relevantes & con- servagio e @ utilizasao sustentével da diversidade biolégica e incentivar sua mais ampla aplicagao com a aprovagao e a participagao dos deten- cores desse conhecimento, inovagies e praticas; e encorajar a reparticéo equitativa dos beneficios oriundos da utilizagao desse conhecimento, inovasbes e préticas. Repare-se que onde a Agenda 21 fala de direitos intelectuais e culturais, fonte indiscutivel de direitos materiais e morais, a cpp fala, em termos mais especificos, de “repartigao equitativa dos beneficios”. Além disso, © artigo 8j refere-se de modo abrangente a comunidades indigenas e locais, ao passo que a Agenda 21, no capitulo 26, se refere unicamente a povos indigenas. Note-se ainda que a cps trata do conhecimento tradi- cional tanto no tocante a recursos genéticos enquanto tais como no que diz. respeito 20 “manejo” sustentavel de sistemas ecoldgicos, o chamado “conhecimento ecoldgico tradicional”. Gragas a uma rede de organizagdes indigenas ¢ a oNGs de apoio, essas breves mengdes ao conhecimento tradicional na cpp deflagraram uma discussao muito mais ampla. No ambito das atividades das partes integrantes da Convengao cabe destacar os seguintes desdobramentos. Desde 1996, o tema do conhecimento tradicional figura na agenda da conferéncia bianual em que as partes discutem as implicagdes da cps. Em 1997, foi realizado em Madri um workshop sobre o tema. Em 1998, foi criado um grupo de trabalho ad hoe para investigar 0 conhecimento “Culara” e cultura 523 tradicional, de modo que o secretariado da cbs conta com um grupo. permanente de peritos encarregados de examinar 0 artigo 8), que s refine a cada dois anos. Em 2000, criou-se um grupo permanente d dicado a repartigao de beneficios, pensada a principio entre paises. O movimentos indigenas logo interligaram os dois temas, reivindil sua participaco tanto na discussio do artigo 8] como naquela da repat ticdo de beneficios. Afirmavam assim que a repartigo de beneficios era apenas um problema entre Estados nacionais, mas também um pi blema interno dos Estados com relagao s suas populagdes tradicion Em compasso com a cb, varias outras instituigdes da onu assumi ativamente a discussao sobre conhecimentos tradicionais e produziram intensa atividade em torno do tema, da qual daremos alguns exemplos. ‘A Organizagio Mundial da Propriedade Intelectual (opr) ea O} ganizagiio para a Educagio, a Ciéncia e a Cultura (Unesco) ja havi elaborado em 1982 uma primeira proposta de instrumento interna nal que de certo modo tratava da questo do conhecimento trad nal: “Modelos de regras para leis nacionais de protegio a expressdes d folclore contra a exploragio ilicita”. Em 1998-99, a omP! enviow s6es de levantamento de informagdes a0 mundo todo e convocou di mesas-redondas sobre propriedade intelectual e conhecimento tradi¢} nal, Em 2000, criou um orgio especifico para o exame desses tem Comité Intergovernamental sobre Propriedade Intelectual e Rec Genéticos, Conhecimento Tradicional e Folclore. ‘A Organizacao para a Alimentagao e a Agricultura (Fao) revil seu “Compromisso sobre recursos fitogenéticos para a alimenta agricultura” de modo a harmonizé-lo com a cps, e em 2001 propos t “Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Ali go e Agricultura”, em cujo predmbulo (pardgrafo 7°) se afirma: As Partes Contratantes reconhecem a enorme contribuigdo que munidades locais e indigenas ¢ os agricultores de todas as regid ‘mundo, particularmente aguelas nos centros de origem e diversida cultigenos, tém dado e continuardo dando ao desenvolvimento de sas genéticos vegetais que constituem a base da produto de al da agricultura no mundo todo. A Conferéncia sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) con! em 2000 um encontro de especialistas para discutir “sistemas 324 CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” éneias nacionais para a protecdo de conhecimento, inovagdes e priticas tradicionais”, enquanto a Organizagao Mundial de Satide (oms) come- cava a examinar o tema da repartigao de beneficios em casos de uso comercial da medicina tradicional. Fora da esfera da onu, os bancos multilaterais comegaram a re- conhecer pelo menos nominalmente o conhecimento tradicional. No Banco Mundial, por exemplo, em 2001 havia o cargo de “diretor de conhecimentos da Africa”. Em certa ocasiaio, Nicolas Gorjestani, seu titular, citou James D. Wolfensohn, entao presidente do Banco: “O co- nhecimento indigena é parte integrante da cultura e da histéria de uma comunidade local. Precisamos aprender com as comunidades locais a enriquecer 0 processo de desenvolvimento”. A propria omc, que havia tentado permanecer alheia questo, esta tendo de enfrenta-la. Por tras disso ha contflitos significativos tanto de jurisdigo como de autoridade, j4 que a cpa é um instrumento da onv. Os Estados Unidos, como j4 assinalado, jamais ratificaram a Conven- co e portanto nao participam desse tratado, mas por outro lado sdo um membro ativo e proeminente da omc, que, ao contrario da oNu, tem o poder de impor pesadas sangdes aos membros que deixem de cumprir suas determinagées. A omc esta particularmente preocupada com di- reitos de propriedade intelectual, tanto assim que exige dos paises inte- ressados em nela ingressar que se comprometam a respeitar 0 Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (rrips — Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights), firmado em seu ambito em 1994. Como as determinagdes da OMC néo sao necessariamente compativeis com as da cpp, a questo da precedéncia continua em discussio. Embora a OMc afirme nao ter ne- nhuma obrigagdo para com a cps e tenha procurado manter-se alheia aos debates sobre os conhecimentos locais ¢ indigenas, acabou por ser envolvida no assunto. Desde o final de 1998, segundo documento ofi- cial da entidade, “a questio da protegio de recursos genéticos, conhe- cimento tradicional e folclore, incluindo os de povos indigenas, tem es- tado em discuss%o no Conselho do Trips”. Até a década de 1990, alguns érgios da onu, em especial a Fao, de- fendiam basicamente o dominio pablico. Contudo, aquela foi a década da Rodada Uruguai ¢ do Acordo Trips. Como acabamos de ver, para se tornar membros da omc os paises tinham de adequar suas legislagoes 20 TRIPS — ou seja, tinham de adotar medidas rigorosas de protesio dos “Culeura”™ ¢ cultura 325 direitos de propriedade intelectual internacional, tendo como modelo 0 sistema norte-americano. Nesse embate entre a ONU e a OMC em varias frentes, nao ha dtivida de que a “propriedade” levou a melhor sobre 0 “dominio publico”. Tanto assim que a expressiio “direitos de proprie= dade intelectual” tornou-se corriqueira — como se nao pudesse hayer direitos intelectuais sem haver a propriedade. Declaragoes internacionai: Nos anos 1970, acompanhei a constituigao de uma organizagao indigen: brasileira num pais que conta com mais de 220 grupos étnicos Ihados por um imenso territério. Posso, portanto, atestar as enormi dificuldades enfrentadas por organizagées desse tipo, particularment no que se refere a representacio, a legitimidade e a operacionalida e é de se esperar que tais dificuldades aumentem exponencialmente ambito internacional. Com raras excegdes, 0s movimentos indigenal no contam com apoio dos governos de seus paises, e isso explica qu tenham se valido das Nagdes Unidas para apoiar suas reivindicag Foi a onv que langou a Década dos Povos Indigenas em 1994, renovi dez anos depois; foi também a onu que criou 0 Grupo de Trabalho bre Populagdes Indigenas, seguido do Foro Permanente de Povos genas, rgio assessor do Conselho Econémico e Social da onu que retine anualmente desde 2002. Isso sem falar da sua adogao, em 2007, Declaragao dos Direitos dos Povos Indigenas. Foi portanto no quadro das Nacdes Unidas que as organi e coalizées indigenas internacionais emergiram como atores politi¢ de peso. Assim como ocorteu no Brasil, porém, em pouco tempo p saram a se apresentar por conta prOpria e se tornaram interlocut independentes. ‘As organizagdes indigenas regionais e internacionais fizeram rias resolugdes, recomendagées e declaragdes sobre direitos cul intelectuais. Até o final dos anos 1980, essas manifestagdes incluiam reitos culturais sobre artefatos, padres grificos, objetos arqueolOg a cultura material de modo geral — num momento em que 6 ONU como a Unesco € a OMPI se ocupavam apenas com a protegi folclore. Esses direitos culturais poderiam ter suscitado a questo geral dos direitos intelectuais, ja que inclufam algo semelhante a di 326 CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” autorais sobre padrdes gréficos tradicionais, mas foi com a questao do conhecimento tradicional levantada pela cB que emergiu com vigor a reivindicagao de direitos intelectuais sobre conhecimentos tradicionais. Ocorreu ainda uma interessante virada que reflete nitidamente a passagem da posigio universalista do pés-guerra, que enfatizava a nao discriminagao e a participagao politica, e da qual a Declaragio dos Di- reitos Humanos de 1948 pode ser considerada um marco, para a énfase nos direitos das minorias que se verificou no final do século xx. Sinal dessa mudanga: em 1984 0 Conselho Mundial de Povos Indigenas ra~ tificou uma declaragao de prineipios que afirmava que “a cultura dos povos indigenas é parte do patriménio cultural da humanidade”, ao passo que, em 1992, a Carta dos Povos Indigenas e Tribais das Flores- tas Tropicais, lancada em Penang, na Malésia, afirmava 0s direitos de propriedade intelectual sobre tecnologias tradicionais, enquanto num evento pan-indigena paralelo 4 Eco-92, no Rio de Janeiro, foi aprovada uma Carta da Terra dos Povos Indigenas na qual os direitos culturais apareciam ao lado dos direitos de propriedade intelectual. Ou seja, em menos de dez anos passou-se da cultura dos povos indigenas como pa- trim6nio da humanidade 4 cultura como patriménio sous court, e mais especificamente ainda a “cultura” como propriedade particular de cada povo indigena. Regimes de conhecimento tradicional como fruto de diferentes imaginacées Percebe-se em todos esses documentos a marca da influéncia ¢ da ima~ ginagio das ideias metropolitanas dominantes. A influéncia opera em dois sentidos aparentemente contradit6rios. De um lado, 03 movimen- tos indigenas formulam reivindicacées nos termos de uma linguagem de direitos dominante, passivel de ser reconhecida e portanto de ser bem-sucedida. Em seu texto sobre o julgamento do caso Mashpee [dis- trito de Cape Cod, estado de Massachusetts], James Clifford mostrou que um relato histérico convence um jiiri muito melhor do que uma discussdo de conceitos antropolégicos sobre identidade étnica. Nao se verice uma causa questionando o senso comum. Foi provavelmente isso © que Marilyn Strathern quis dizer quando afirmou, a propésito do fe- minismo, que as politicas radicais so conceitualmente conservadoras. As declaracées indigenas também. “Cultura” ¢ cultura 327 No entanto, essas declaragées introduzem questes nas quais se afirmam a especificidade ¢ a diferenga do conhecimento tradicional. E esse é 0 segundo sentido em que os conceitos metropolitans exercem sua dominagio. Esses conceitos supdem, ao falar em “conhecimento tradicional” no singular, que um tinico regime possa representar uma mirfade de diferentes regimes histéricos e sociais de conhecimento tt dicional. Eles unificam 0 conhecimento tradicional & imagem da uni cago operada historicamente no conhecimento cientifico. Ainda mais. especificamente, pode-se ver a imaginagéo metropolitana em ago no modo como 08 povos tradicionais sao levados a representar seu coi cimento ¢ 0s direitos que lhe podem ser associados. Uma vez mais rilyn Strathern oferece a melhor formulagao: “Uma cultura dominada pelas ideias de propriedade s6 pode imaginar a auséncia dessas idei sob determinadas formas”. Nao é muito dificil detectar como diversos setores imaginam 0 e0 nhecimento indigena. Numa formulagao simples: 0 conhecimento, gena é conceitualizado como 0 avesso das ideias dominantes. Assim, 0} povos indigenas parecem estar inextricavelmente condenados a nar o reverso dos dogmas individualistas e de posse do capitalismo. obrigados a carregar o fardo da imaginacio do Ocidente se quise ser ouvidos. Mas ao passarem a viver num mundo de propriedade i telectual eles tém poucas chances de libertar dele a sua prdpria in nagdo. Os conceitos nao chegam a mudar propriamente, de modo qu a imaginagdo indigena fica restrita a reversaio de escolhas ou a inven de agentes. Num artigo de longa data (cap. 1, supra), mostrei que movimento messianico entre os Ramkokamekra-Canela do Maran invertia estraturalmente no seu desenrolar 0 mito de origem do hoi branco e de seu poder. Uma reversao de destinos era o resultado rado da inversio do mito, com os indios vivendo em cidades e og brasileiros vivendo na floresta e cagando com arco e flecha. O permanecia 0 mesmo, mas invertido. Nao havia conceitos novos, ap) novas escolhas e novos protagonistas. Ao lidar com conceitos ¢ regimes de conhecimento tradicion\ imaginagio ocidental nao se afasta muito do terreno conhecido. A. ceitualizagao dominante do conhecimento tradicional raciocina eo se a negagio do individual fosse sempre o coletivo (na qualidade d individuo corporativo). O raciocinio é 0 seguinte: em contraste nossa autoria individual, a cultura e 0 conhecimento deles certy 328 CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” devem ter autoria coletiva! Ao contrario da invengao que emana do génio individual, as invengoes culturais deles devem ser fruto de um genio coletivo, mas nao menos endégeno. E isso o que se pode conside- rar como a versao dominante nas sociedades industrializadas acerca do conhecimento tradicional: que povos inteiros, como veremos, possam pensar suas culturas como exégenas, obtidas de outrem — isso no cabe na sua restrita imaginacdo. Ha também uma conceitualizagao radical que se apoia no papel ideolégico de criticos da propriedade ¢ da acumulagio de capital atri- buido aos povos indigenas do Novo Mundo pela filosofia politica desde 0 século xv1. Nesse avatar, 0s povos indigenas nao teriam nenhuma no- ao de propriedade intelectual, apenas conhecimentos e informagées que circulam livremente, e assim foram erigidos em exemplo para o resto do mundo e exibidos como ant{doto contra a cobiga. De acordo com essa visio, 0s indios deveriam ser paladinos dos movimentos contra a omc; de- veriam lutar contra a exorbitante ampliacdo dos direitos de propriedade e aliar-se a Robert Crumb no protesto contra a extensdo quase perpétua dos direitos autorais sobre Mickey Mouse; ¢ deveriam sobretudo estar & frente dos movimentos contra os direitos de propriedade intelectual. Segundo tais construtos (no muito) imaginativos, os povos in- digenas sé tém duas opgées: ou direitos de propriedade intelectual co- letiva ou um regime de dominio publico. Ambas as opgdes obrigam os regimes indigenas a se encaixar em leitos de Procusto. Diante dessas alternativas limitadas, nao é de espantar que os povos indigenas tenham pragmaticamente preferido a opcao dominante, reivindicando direitos intelectuais de propriedade coletiva e com isso frustrando as esperangas daqueles que os defendiam, os setores progressistas que se opdem aos direitos absolutos de propriedade intelectual. E se houvesse, no entanto, outras formas possiveis de direitos so- bre coisas entre pessoas (a definicao de propriedade de Macpherson) além daquelas configuradas ao longo dos tiltimos trés séculos? E se este io for um caso de légica booliana? E se houver mais do que a alter- nativa entre “sim ou nao"? Tais caracterizagdes bindrias nao apenas impdem uma camisa de forga aos povos indigenas quanto ao modo de formular suas reivindicagées, mas também apagam as diferengas entre regimes. Ha muito mais regimes de conhecimento e de cultura do que supde nossa va imaginag&o metropolitana. Na verdade, bastaria levar a cinografia a sério para reunir todo um catélogo de modos alternativos. “Cultura” cultura 329 pa xa atingir seus objetivos, porém, os povos indigenas precisam se con- formar as expectativas dominantes em vez de contesti-las. Precisam operat com os conhecimentos e com a cultura tais como sio entendidos poF outros povos, ¢ enfrentar as contradicBes que isso possa gerar. Legislagées nacionais, conhecimento tradicional e nacionalismo Em contraste com a rapida proliferagio de instrumentos e estudos inter- nacionais acerca da protecao ao conhecimento tradicional e da reparti- gao de beneficios no contexto do acesso aos recursos genéticos, demo= faram a surgir leis nacionais especificas sobre essas questes. Os paises ricos em biodiversidade ainda esto avaliando cuidadosamente os efel= tos das leis promulgadas por alguns paises mais ousados, como Filipinas, Costa Rica e Peru. As onGs que se dedicam a esses temas, tanto nacio= nais como internacionais, nao tém uma posigio consensual sobre eles, E no Brasil, nao obstante uma proposta de legislagio pioneira langada em 1994 ¢ uma medida provis6ria baixada em 2001, ainda hd por parte do governo federal muita hesitaco quanto a forma que deveria a unsa regulamentagio (pelo menos até meados de 2009, no momento emt que reviso este texto). Nos Ambitos regional e nacional, as ages tém sido no mais vezes “defensivas”: protesta-se contra a apropriagao e a privatizagao itens considerados de dominio publico ou relevantes para a identid territorial. Assim, a india conseguiu invalidar uma patente norte~ cana sobre 0 uso do neem; a Coordenadoria das Organizagbes In da Bacia Amazénica (corca) contestou o registro norte-americano uma das plantas com que se produz a ayahwasca; e 0 governo bras contestou com éxito uma marca registrada japonesa de “cupuagu”. Tal estado de coisas, evidentemente, tem toda sorte de efeitos. deles, bastante significativo, é o de realinhar as sociedades ind com 08 nacionalismos de paises latino-americanos. Quaisquer qué nham sido as politicas reais desses Estados nacionais para com os indigenas, estes nunca deixaram de ocupar posig&o de destaque na ginaga0 nacionalista. F notével como realidade e ideologia trill tranquilamente caminhos totalmente independentes e em geral gentes: © papel ideoligico que os povos indigenas sio chamados. sempenhiar na autoimagem brasileira varia bastante segundo 0 330 CONHECIMENTOS, CULTURA F “CULTURA” historico € conforme os indios em questo estejam vivos ou extintos, sendo estes claramente preferidos aqueles. Desde a Independéncia do Brasil, os indios extintos foram repe- tidamente promovidos a elementos fundadores da identidade nacional. Suas antigas aliangas, ou pelo menos suas ligaces comerciais, com por- tugueses, holandeses e outras poténcias coloniais foram invocadas nas disputas de fronteira com a Venezuela e a Guiana no inicio do século xx, num movimento que os arregimentou como parte interessada e como agentes de reivindicagdes brasileiras de soberania territorial. J4 com relagdo aos povos indigenas da atualidade a hist6ria é outra. Indios es- tabelecidos em seus tertitérios tradicionais foram concebidos desde os tempos coloniais como antagénicos ao progresso, ao desenvolvimento, a civilizac&o ou seja li qual for o termo empregado para justificar a ex- propriacdo de suas terras ou sua escravizagio. Desde meados dos anos 1970, quando foram localizadas ricas jazidas minerais em toda a regio amazOnica, povos indigenas estabelecidos sobre o solo desses recursos foram alvo de sucessivas campanhas na midia no sentido de questionar sua lealdade ao Estado nacional. Até os dias de hoje a cobiga por terras tenta jogar a opiniao piblica na mesma diregio, haja vista a dificuldade verificada em 2008 na terra indigena Raposa Serra do Sol, em Roraima, para a remogio de arrozeiros — invasores que se alardeavam em porta- dores de progresso. As questies interligadas da biodiversidade e do conhecimento tr dicional introduziram uma tendéncia oposta, em que os indigenas so in- corporados a uma nova onda nacionalista. Assim é que em anos recentes foi implantado na Amazénia, com apoio do governo federal, um projeto desenvolvido por uma onc local sob a denominagio “aldeias vigilantes”, mediante 0 qual grupos indigenas sio recrutados como aliados nas fren- tes de combate a biopirataria. Uma outra questao, particularmente sensi- vel, provocou indignagao piblica nacional: a das amostras de sangue de indigenas brasileiros mantidas em instituigdes estrangeiras, que podem ser utilizadas ou compradas por pesquisadores. Enquanto os Yanomami protestam contra o fato de © sangue de seus parentes ser estocado em vez de destruido por ocasido da morte, como seria devido, a indignagao nacional transforma a reivindicago culturalmente especifica dos Yano- mami num protesto contra a permanéncia de sangue ¢ DNA de nativos em instalagées cientificas fora do Brasil. Em suma, 0 conhecimento ¢ 0 sangue indigenas foram incorporados ao patriménio nacional brasileiro. “Cultura” ¢ cultura 331 Fazer parte de um patriménio nacional, claro estd, é uma faca de dois gumes: se por um lado yaloriza o status simbdlico indigena, por outro transforma os povos indigenas em “nossos indios”, uma formula que condensa a ambiguidade inerente a condigao de indigena. Desconfiancas extremas e a ascensao do conhecimento esotérico Se o indigena recuperou um pouco de seu valor ideolégico no cenario nacional gragas a repercusstio das quest6es relativas a biodiversidade ¢ aos conhecimentos tradicionais, isso no necessariamente se traduziu em beneficios concretos. Vale lembrar que entre as grandes inovagdes da cop. estava o reconhecimento da soberania de cada pais sobre seus recursos genéticos. Para os Estados nacionais, nada mais facil que traduzir sober nia como propriedade — tradugio que entretanto nada tem de dbyio e sus= citou intensa controvérsia, uma vez que povos e organizagdes indigenas argumentaram que recursos genéticos e biodiversidade, se ainda existiam em terras indigenas, era porque eles agiam como seus guardides. Decorre desse argumento que 0s povos indigenas, bem como os povos tra nais de modo geral, nao podem ser expropriados de algo que s6 subsistin gracas a cles, ¢ que a biodiversidade em terras indigenas nao pode ser dissociada do chamado “conhecimento ecolégico tradicional”. Uma evidéncia desse conhecimento tradicional € 0 notavel traste das baixas taxas de desmatamento nos territ6rios indigenas as dreas alramente desmatadas a sua volta. Outra evidéncia é aquilo se pode chamar de “cultivo florestal indigena”, particularmente documentado pelo etnobidlogo William Balée, que estudou as pratical ecolégicas de varios grupos indigenas. Segundo Balée, boa parte quilo que parece mata priméria é floresta hd muito tempo manejada_ indigenas. A tese da produgao indigena de diversidade biolégica € e cialmente convincente quando aplicada a agrobiodiversidade, isto diversidade biolgica em variedades de plantas domesticadas. & que a hiper selegdo de variedades é uma opgao arriscada, jé que variedade tinica pode ser dizimada de um sé golpe por uma praga, historia da Grande Fome na Irlanda entre 1845 € 1849, uma cata que causou a morte de um milhao de pessoas por inanigdo e a didi de um outro milhao de irlandeses, é um exemplo paradigmético: as | tatas, que constituiam a dieta basica da populagao pobre, pertenei: 332. CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” uma tinica variedade que foi totalmente destruida por uma praga. Os bancos de germoplasma conservam hoje em dia um estoque de varieda- des, mas fora de sua area de origem esses cultivares no sio capazes de gerar variedades resistentes a novas doengas. E af que se torna crucial a chamada conservagio in situ ou on farm [“no local de proveniéncia” ou “na roga” }, em que as plantas coevoluem com seu meio ambiente. Essa atividade tem sido realizada hd séculos pelos pequenos agricultores, em sua maioria indigenas que se orgulham da diversidade de seus rogados. Os povos tradicionais conservaram ¢ aumentaram a diversidade agri- cola nas regides de origem dos principais cultigenos: centenas de varie- dades de batata no Peru, de mandioca no Alto Rio Negro e de arroz na india, por exemplo, foram conservadas por esses agricultores. A cp nao apenas atribui a soberania sobre recursos genéticos aos Estados nacionais. Como vimos, também reconhece direitos de indige- nas e comunidades locais ao controle dos seus conhecimentos ¢ a parti- cipagdo nos beneficios. Com essas normas, paises megadiversos como o Brasil sio apa~ nhados em fogo cruzado. Por um lado, esses paises lutam nos foruns internacionais por mecanismos de implementagio da repartigao de be- neficios, enfrentando uma forte resistéicia dos paises industrializados e dos seus aliados. Por outro, esses mesmos paises tém de lidar interna- mente com as reivindicagdes dos povos tradicionais sobre seus conheci- mentos e recursos genéticos — reivindicagdes que apresentam uma des- concertante semelhanca com as dos proprios Estados nacionais diante de outros Estados. Além disso, a cbs é um instrumento da oNU, € os povos indigenas se utilizam cada vez mais dos foruns dessa organizagio internacional para encaminhar suas preocupagées e reivindicagdes inde- pendentemente da representagio dos governos de seus paises, criando assim situagdes de constrangimento para eles. Um exemplo paradigmé: tico & a regra da obrigatoriedade de se revelar a origem dos recursos genéticos em pedidos de patente, um dispositivo que propicia verificar a legalidade de acesso aos recursos genéticos e pode assim facilitar a repartigaio de beneficios. A implementagao internacional da revelag3o obrigatoria é uma importante reivindicagio dos paises megadiversos e portanto do Brasil, tanto no contexto da cps como no ambito da omc; internamente, porém, embora a declaragio de origem tenha se tornado obrigatéria no pais, o Instituto de Propriedade Intelectual brasileiro se mostra visivelmente moroso na implementagio da regra. “Cultura” e cultura 333 Dada a longa hist6ria de politicas colonialistas internas em rela- ga0 aos povos indigenas, reconhecer-lhes direitos sobre recursos ger ticos e conhecimentos tradicionais nao é um passo facil para a maioria dos paises megadiversos, Quem ¢ em que condigdes deveria conceder acesso a recursos genéticos nas terras de povos tradicionais? No Brasil, enquanto 0 Ministério do Meio Ambiente tem apoiado as reivindicagdes de povos tradicionais, outros ministérios opdem-se a elas. Os bidlogos brasileiros, apoiados pelo Ministério da Cincia e Tecnologia, lutam pelo acesso livre ou pelo menos simplificado aos recursos genéticos cionais. Diante da bioparanoia generalizada em relaco a pesquisadore eles se ressentem de ser tratados pelos povos indigenas com a mesma suspeita langada contra scus colegas estrangeiros. Com efeito, 0 aliciamento de povos indigenas para uma milfcia vigilante contra a biopirataria estrangeira gerou extrema desconfianga para com qualquer pesquisador, estrangeiro ou no. Conhecimentos tr dicionais virtualmente se transformaram em segredos de Estado. Nesse_ contexto, foram também alimentadas expectativas de ucros quase e catolégicas, com frustragdes proporcionais. Por fim, como observar: Alcida Ramos e Beth Conklin, tornaram-se esotéricos conhecimentos. € praticas que antes eram perfeitamente corriqueiros (discutiremos exemplo revelador dessa tendéncia mais adiante, na histéria da p reca). Atualmente, quase todos os tipos de conhecimento sao atribui aos “nossos xamis”, ou melhor, aos “nossos pajés”, expresso que cuto mais adiante no contexto do caso krah6. Os encontros indigent sobre conhecimentos tradicionais so apresentados como encontros X: manicos, € impde-se extremo sigilo a seus participantes. Pode ndo mera coincidéncia o fato de que as vocagGes xamanicas, apesar das d culdades e do alto custo pessoal da carreira, estejam aumentando enth jovens lideres politicos na Amazénia. A suspeita é regra em todos os campos, nao apenas entre 08, digenas. A indtistria farmacéutica multinacional tenta distancia} tanto quanto possivel de qualquer conflito potencial, seja alegai que os atuais testes de atividade bioldgica de moléculas so to cazes que tornam irrelevantes quaisquer informagdes que o conhee mento tradicional venha a oferecer sobre moléculas achadas na tureza, seja, de forma ainda mais radical, defendendo a opgao pi moléculas exclusivamente sintéticas criadas ao acaso, tornando levante a propria natureza. 334. CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” A intensa mobilizago internacional e nacional em torno dos co- nhecimentos tradicionais tem muitos outros efeitos, alguns dos quais examinarei a seguir. Contratos, associagées, projetos ‘Tomemos a questio da representago, por exemplo. O acesso ao conhe- cimento tradicional depende crucialmente da chamada “anuéncia prévia informada”: para que se realize qualquer pesquisa acerca de conheci- mentos tradicionais, seus detentores devem ser adequadamente infor- mados sobre o que se trata e dar seu consentimento ao modo como esses conhecimentos sero utilizados, e no caso de bioprospecgao (pesquisa para fins comerciais) também a forma como thes caberd receber parte dos eventuais lucros ¢ beneficios. Sem entrarmos aqui nos interessan- tissimos aspectos do processo de obtengao da “anuéncia prévia infor- mada”, um problema se coloca de imediato: quem tem autoridade para consentir? Isso nos leva a duas outras questdes centrais. Que sistema de representagio est sendo introduzido pelo processo? Qual construcio de representagio legitima esti em jogo e como ela se relaciona com ou- tras estruturas de autoridade? Comecemos pela tiltima questa. Contratos e acordos na verdade produzem aquilo que implicita- mente pressupdem, ou seja, criam suas proprias condigdes de possibili- dade. Jé abordei a redefinigaio das relagdes entre pessoas e conhecimento que é produzida por eles. Agora considerarei a questao dos represen- tantes legais para assinar contratos e dar “anuéncia ou consentimento informado”. Participei de uma comissio instituida por uma universi- dade norte-americana para certificar-se de que os consentimentos da- dos aos seus pesquisadores haviam sido obtidos conforme a legislago dos Estados Unidos, e em meu trabalho de campo no Médio Rio Negro tive a experiéneia de seguir 0 procedimento exigido para a obtengao da “anuéncia prévia”. Tenho assim uma razoavel percep¢ao das miiltiplas tradugées e ficgdes legais necessirias a esse tipo de empreitada. Contratos, enquanto formas de troca (legal), criam sujeitos (legais), segundo a légica descrita por Mauss e mais tarde por Lévi-Strauss. No Brasil, embora as formas de representaco indigenas sejam legalmente reconhecidas como sujeitos de direito conforme a Constituigdo de 1988 (art, 232), de um modo geral encoraja-se a constituigao de associagoes “Cultura” e culeura 335 da sociedade civil com estatutos aprovados e explicitos como a forma, mais conveniente (para todos os envolvidos) de lidar com “projetos”, contratos, bancos, governos e oNGs. Dai que povos indigenas venham adotando novas formas associativas ¢ surjam por toda parte associagdes indigenas locais com um formato legal que lhes permite alegar repre~ sentatividade, incluindo presidentes e diretores eleitos. O problema, evidentemente, é como ajustar a legalidade a legitimidade. Por vezes essas associagdes se destinam a representar apenas um determinado- segmento, como o dos professores indigenas, cuja influéncia sobre a politica indigena é alias crescente. Quando se trata de associagdes que pretendem representar a etnia como um todo, rapidamente facgdes ou familias indigenas influentes se investem dos cargos de presidente e di retores, de preferéncia na pessoa de um homem alfabetizado ¢ ligado a elas genealogicamente ou politicamente. Nesses casos ha uma cont niente convergéncia entre chefes de aldeia e presidentes de associacdes, No entanto, as associagdes tendem a representar mais de uma ald © problema com a maior parte das sociedades indigenas das “Terras_ Baixas” (como os etndlogos costumam chamar a América do Sul ni andina) @ que cada aldeia é uma unidade politica autonoma, de modo que as disputas politicas entre facgdes no interior de uma aldeia faci mente se traduzem na criagio de uma nova aldeia, Mas as associag® em principio, nao seguem a mesma logica de fissio, ¢ logo pode sm uma forte contradicio entre autoridades tidas como legitimas e os 1 presentantes legais nas associagdes. Como a norma é a autonomia de cada aldeia, a emergéncia d algo como uma “representacio étnica” na forma de Ifderes de at goes é inevitavelmente acompanhada de conflitos, j4 que nada é m; dificil do que atribuir legitimidade a representantes legais. Os elos tre as instituiges politicas que enfatizam a autonomia das aldeias € instituigSes associativas que visam representar o grupo étnico um todo (¢ que sio uma fonte de poder econdmico e politico) nao ‘uma coisa dada. $6 podem ser construidos e validados a custa de m esforco. E podem ser facilmente desfeitos, dando origem a associag® rivais e A troca de acusagées. Foi o que ocorreu, por exemplo, no do contrato entre os Aguaruna, a industria farmacéutica Searle e 0 J) dim Botanico de Missouri, no Peru, ¢ também com a equipe che por Brent e Elois Berlin para conduzir uma pesquisa sobre a etnome cina maia na Guatemala. 336 CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” Um exemplo particularmente revelador é 0 caso da disputa que en- volveu, no estado do Tocantins, os Krahé e a Escola Paulista de Medicina (cpm). A disputa se deu nos anos iniciais da década de 2000 e teve origem num projeto de bioprospecgio: uma doutoranda da xem havia realizado uma pesquisa sobre plantas usadas ritualmente pelos Krahd que atuam sobre o sistema nervoso central, a partir da qual a PM desenvolveu um projeto para realizar um estudo mais amplo sobre as plantas terapéuticas krahd. Para tanto, a instituigio firmou um acordo com uma associagéio que abrangia algumas das aldeias krah6. Como era de se esperar, porém, uma outra associag’o krahé contestou a representatividade da primeira. Apos uma longa controvérsia, em marco de 2003 chegou-se a um acordo provisério com a rpm mediante um documento assinado pelos presiden- tes de quatro associagdes krahé e também pelos chefes de dezoito aldeias krah6. Representantes do Ministério Ptiblico assinaram como testemu- nhas e representantes da Funai assinaram com os indios. Chamo a aten- go para a aparente redundancia nas assinaturas krah6: a legitimidade dos presidentes das quatro associagées tinha de ser apoiada pelos chefes de al- deia que coassinaram 0 documento, como se a representagao por meio de associagdes precisasse da garantia e do mandato explicito das autoridades politicas “costumeiras”. Como veremos a seguir, a historia se complicava ainda mais na medida em que os Krahé afirmam que sfio a justaposigio de dois grupos jé que mantém entre si uma certa separagao geogrifica. ‘Até agora lidamos com a minha segunda questo: 0 que pode ser construido como forma de representagao legal ¢ legitima? Insisto na pa- lavra “construido”, pois pode ser que a propria ideia de representagio estivesse totalmente ausente entre 0s Krahd. Mas o que significa, afinal, “costumeiro” no contexto em pauta? Escrevi hd algum tempo [ver cap. 8 deste volume] que hé uma faldcia no conceito de direito costumeiro, no sentido de que ele é talhado para espelhar o direito positivo em todos 08 seus atributos. A nogio de “costumeiro” apresenta varios problemas em sua utilizagdo pragmatica. Ela supde que “costume” (outra palavra para cultura) seja algo dado que precisaria apenas ser explicitado ou co- dificado. Além disso, supde que unidades étnicas como “os Krahd”, “os Katukina’”, “os Kaxinawa” ou tantas outras sejam entidades nao proble- méti¢as do mesmo tipo que um pais, por exemplo. Isso é relativamente simples de entender. Mas 0 que acontece se todo o nosso construto de coisas como sociedade, representagio e autoridade no tiver (ou nao tiver tido) nenhum equivalente entre esses povos? “Cultura” e cultura 337 Os dois movimentos aparentemente opostos de subjugar nagdes. indigenas e de hes conferir poder se fundam na ideia da existéncia de coisas como nagdes ¢ autoridades locais, isto é, de papéis sociais espe- cificos com atributos tanto de autoridade quanto de representagio le- gitima. Assim, j4 no inicio do século xvi Francisco de Vitéria falava de “principes” indigenas ¢ de seu “dominio” sobre territérios, como se a existéncia destes fosse dada. Todo o procedimento do reguerimiento, que exortava as “nagées indigenas” a aceitar a pregagio do cristianismo, supde a existéncia de autoridades indigenas locais com atributos com pardveis aos dos reis espanhéis. Em 1755, o marqués de Pombal ord nou o reconhecimento de “principais” indigenas, numa prefiguracio. do indirect rule britanico que demonstra um interessante exercicio de imaginagao politica. Chefes amaz6nicos receberam insignias e supo tos territdrios sujeitos a sua autoridade, quer tal autoridade tivesse 0 nao existido anteriormente, ainda que essas “autoridades indigenas”, na pratica, tivessem um papel pouco mais que decorativo. ‘A atual énfase arqueolégica na existéncia de cacicados ao longo do rio Amazonas, isto é, de estruturas centralizadas de poder, parece invalidar meu argumento. Afirma-se que as populacdes indigen interfluviais acéfalas seriam sobreviventes de unidades politicas tralizadas ao longo das margens dos grandes rios. £ certo que chef poderosos foram encontrados deseritos por viajantes, e que alg deles foram recrutados pela politica colonial e tomaram parte ati nela. No entanto, notou-se a auséncia de alguns dos atributos definem a autoridade, j4 que todos os testemunhos quinhentistas formavam ou repetiam que os indios brasileiros nao tinham “nem fe nem lei, nem rei”. Pierre Clastres explorou esse sdpos em sua célebre tese sobre “sociedades indigenas (constituidas) contra 0 Estado”, e ndo apt sociedades sem Estado. Embora eu no subscreva o argumento int ramente, ¢ ainda que 0 conceito de “sociedade” merega hoje mais crutinio, o fato é que Clastres tocou em algo importante. A saber, € possivel que esses povos tivessem instituigdes diferentes das numa escala muito mais ampla do que conseguimos perceber por e mos confinados numa ontologia politica gerada no século xvi. Qual so as consequéncias desse abismo entre as instituigdes deles ¢ as sas? Pode parecer que essa discussao leve a afirmar diferencas i cilidveis. Nao é 0 caso. A imaginagao politica sempre foi perfeitam 338. CONHECIMENTOS, CULTURA & “CULTURA” capaz de fazer essas pontes. Os termos, é claro, so dados pelos poderes institufdos — por quem segura a pena, como diria Isaac Bashevis Singer. Onde autoridades e chefes nao (pre)existem, inventam-se. Nao obs- tante, como afirma Mauro Almeida de acordo com Newton da Costa, € bem possivel haver um entendimento pragmatico acerca de diferengas ontolégicas aparentemente irreconciliaveis. De fato, a autoridade para representar um grupo indigena é pro- duzida no proprio processo de realizar atos juridicos em seu nome. Isso significa que essa representacio seria ilegitima ou “inauténtica” (um conceito aliés que s6 trouxe problemas para o nosso mundo)? Conforme Bruno Latour em sua interpretacio de Gabriel Tarde, fazer emergir coletividades em contexto em vez de encontré-las “ready made” é algo propriamente universal. Sao o discurso politico e outros atos politicos, eu acrescentaria, que constituem sociedades, grupos, coletividades. ‘Voltemos ento ao caso krah6. Como minha tese de doutorado sobre os Krahé data do final da era jurdssica, utilizarei aqui basicamente dados ex- traidos da perceptiva pesquisa contida na tese de Thiago Avila, de 2004. Um territério de 3.200 km? foi reconhecido como terra krahé em 1944, quatro anos apés um ataque de fazendeiros a duas aldeias que cau- sou a morte de mais de vinte indios. Os Krahé provavelmente resul- tam da fusio historica de dois grupos jé e de alguns remanescentes de outros grupos timbira orientais desaparecidos. Individuos provenien- tes de grupos indigenas linguisticamente aparentados (principalmente Apinayé) e também brasileiros de pequenas cidades da regio foram se juntando a eles, geralmente casando-se com mulheres krahd. Ja que os Krahd, como todos os demais grupos jé, so uxorilocais, os homens de fora casados com mulheres locais podem reivindicar direitos de residén- cia com relativa facilidade. Além de uma aldeia que se destaca das de- mais por ser particularmente misturada, ha uma clara distingo politica entre dois subgrupos localizados respectivamente ao sul ¢ ao noroeste (com uma extensio setentrional) do territério, que estabeleceram lacos, respectivamente, com uma ONG e com um funcionario publico. Seria dificil afirmar com seguranga se as diferentes origens afirmadas pelas duas facgdes & a causa ou 0 efeito dessa divisdio politica. Mas nao resta diivida de que afirmagdes de diferenca de origem so reforgadas em determinadas conjunturas politicas, se é que nao surgem delas. “Cultura” e cultura 339 Por mais que as aldeias krahé se dividam ou (mais raramente) - juntem segundo linhs de fissi0 ou fusio estruturais, um outro princi- pio de organizagio foi introduzido pela politica dos “projetos”. Como mostrou Bruce Albert, os “projetos” de instituigdes privadas ou gover= namentais se tornaram um elemento central da politica indigena con-_ temporanea, o que poderia ser estendido aos movimentos sociais em: geral. A “caga aos projetos” é uma atividade constante para a qual 08 antropélogos sio rectutados. No vernaculo dos movimentos sociais amazOnicos, a expresso “fazer um projeto” adquiriu um significado muito proximo de solicitar uma doagio, um presente, um financiamento (certa vez, por exemplo, um seringueiro pediu a Mauro Almeida e a mim que “fizéssemos um projeto” a fim de que ele pudesse adquirir um apa- relho de karaoké — que seria entesourado junto com outras geringongas, ja que nao ha eletricidade na mata). Embora a linguagem local enfa- tize a natureza econdmica da atividade, sugiro que se deva entender por projeto” qualquer combinagao de empreendimentos culturais, politicos e econdmicos que dependam de agentes externos tanto quanto da Jaco ind{fgena. A demarcagio de terras, a recuperagio de pegas d tadas em museus, a participagio em uma organizagao politica indigena nacional, bem como atividades econdmicos subsidiadas, sao exemy de “projetos”, que sempre sto simultaneamente politicos, culturais ¢ econémicos. O que importa notar aqui é que “projetos” bem-sucedi geram uma modalidade associativa que por definigo deve transe a politica local dos conflitos de aldeias ¢ de facgdes que constituem vida cotidiana. Nao surpreende, portanto, que associacdes floresgam declinem com 0 inicio e 0 fim de “projetos”. ‘As associacdes krahé nao foram excegao. A primeira a surgir, 1986, foi a Makrare, formada por ocasiio de uma iniciativa regional defesa das terras indigenas com apoio de uma onc, que cul minou demarcacao da terra krahé em 1990. Em 1993, foi criada uma s associagio, a Kapey, diretamente ligada a uma pesquisa sobre cult e sementes tradicionais em parceria com a Embrapa. Em 1994, Vyti-Cati, que atuou num empreendimento voltado para a produgio polpa de fruta em catorze aldeias de cinco grupos jé. Essa associagao interétnica, além de nao incluir todas as aldeias krahé. 4 A nogio de que a Makrare representaria todos os Krah6 niio | questionada desde a sua criago em 1986 até 0 inicio dos anos 1990.1 1993, contudo, a fundacao da Kapey deu inicio a erosao de sua 340 CONHECIMENTOS, CULTURA & “CULTURA” dade pan-kraho. Instituida como uma ramificagdio da Makrare, a Vyti- Cati tinha a mesma base politica de sua predecessora. Havia a percepcao de que a Vyti~Cati e a Kapey representariam espacos geograficos e po- liticos diferentes, e foi nesse contexto que foram reacesas as afirmacdes de origens éxnicas distintas. A Vyti-Cati foi a associac3o que assinou 0 primeiro acordo com a BPM permitindo a pesquisa sobre plantas medi- cinais tradicionais, em 1999. O caso que estamos discutindo decorreu desse fatidico acordo. Posteriormente surgiu um novo grupo social em nossa histéria. No primeiro dia do encontro organizado para resolver a mencionada disputa com a EM, em 24 de marco de 2003, 08 pajés krahé se reu- niram sentando-se em circulo. Em torno deles havia um outro circulo, formado por chefes de aldeia, ancitios e representantes da associacao, Como todos os grupos jé utilizam uma linguagem sociolégica espaciali- zada, essa disposigio espacial era um indicio seguro de que se distinguia uma coletividade em um contexto especifico, Nesse caso, a linguagem espacial operava em dois niveis. Em primeiro lugar, 0 encontro aconte- cia numa “aldeia” suc generis, uma espécie de “Nagdes (Krahd) Unidas”: era um conjunto circular de casas em torno de um patio central, muito parecido com todas as aldeias krahé e seguindo alids 0 modelo ideal de aldeia dos povos de lingua j&, mas as casas nao eram unidades uxo- rilocais tais como nas aldeias reais, e sim algo como “embaixadas” das diferentes aldeias. O padrao cirenlar era eloquente e compreendido por todos. A segunda encenagao espacial — o circulo de pajés circunscrito pelo anel de anciaios e chefes de aldeia— era igualmente facil de compre- ender, pois assim os Krahé traduziam e representavam visualmente em termos explicitamente krahé a novidade do regime representativo no qual estavam sendo introduzidos. Cabe aqui uma nota acerca da nomenclatura. A palavra krahé Para o que se costuma chamar de “xama” no jargao antropolégico seria wayakd. No entanto, como sabemos, existe ainda um termo pan- brasileiro para xama que deriva do tupi falado pelos grupos indigenas da costa atlantica entre os quais a institui¢ao foi descrita pela primeira vez, no século xvt: “pajé”. Do mesmo modo que “xama” se tornou um termo corrente na lingua franca antropolégica, “pajé” se tornou um termo corrente tanto em portugues como na lingua franca dos movie mentos sociais indigenas. Assim, é “pajé” que se usa como um termo geral para indicar os especialistas em conhecimentos médicos ou “Cultura” ¢exltura 341 esotéricos. Evidentemente, a categoria genérica “pajé” apaga uma sé- rie de distingSes significativas que sao importantes em quase todas as, sociedades indigenas. E comum nao haver em linguas indigenas uma palavra tinica que abranja os varios especialistas agrupados pelo termo “pajé”. Stephen Hugh-Jones faz uma reveladora discussdo sobre tais dis- tingdes entre os Barasana, na Colombia. Independentemente de distingdes entre categorias, ¢ se nos ativer- mos ao termo krahé wayakd, antes desses acontecimentos nio existia nada que se pudesse chamar de uma coletividade de wayakds. Segundo as etnografias dos Krahé de Harald Schultz e de Julio Cezar Melatti a partir de trabalhos de campo nos anos 1959 € 60, respectivamente, em geral nao havia mais de um ou dois wayakds por aldeia e eles praticavam. seu oficio independentemente uns dos outros. A carreira desses pajés” parece nao ter sido das mais promissoras: como eram responsabilizados tanto pelas curas quanto pelas mortes, ¢ como costumavam cobrar caro. por seus servigos, o que nao os tornava muito populares, geralmente: acabavam sendo acusados de feitigaria. E quando as coisas chegavam a esse ponto, fugiam ou eram expulsos da aldeia ou entdo eram mortos. De todo modo, nao havia nada de semelhante a um colegiado de pajés, € a instauracdo de um coletivo desse tipo foi uma verdadeira inovagaio. Como os wayakds acompanham seus procedimentos de com grandes quantidades de tabaco, receberam uma denomin: coletiva (talver. com alguma ironia) que poderia ser traduzida “gente da fumaga de tabaco”. Pediram a um wayakd que também: chefe de aldeia, tido como o “representante” da coletividade de paj que convencesse seus colegas a colaborar com as associacées krah6. recém-instituido colegiado de pajés passou 4 discussio de temas a hierarquia de especialistas, 0 encaminhamento de pacientes ¢ out questdes de procedimento. Entre os temas discutidos, 0 principal a reivindicagao de que o Estado apoiasse, ¢ na pratica financi: exercicio da medicina tradicional. O raciocinio era transparente: 0 conhecimento médico krahé era considerado importante por faculdade de medicina, entao devia ser tratado do mesmo modo a assisténcia médica ocidental (publica). Devia haver instalagdes ag quadas ¢ os pajés e seus auxiliares deviam ser pagos pelo Estat mera sugestiio dessa proposta horrorizou a EpM e deixou constr: a representante do Ministério da Satide. A EPM estava disposta a necer assisténcia médica ocidental aos Krah6, como vinha f: 342 CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” Parque Nacional do Xingu havia décadas, mas estava longe de tolerar a medicina indigena e mais ainda de se dispor a patrociné-la. Esse episédio aponta para os efeitos de espelhamento que fazem parte de qualquer negociagio, mas particularmente de transagdes de or- dem juridica ou politica que envolvem povos indigenas e a sociedade mais ampla. Seno vejamos. Ainda que os wayakds krah6 estivessem bem descritos pela literatura etnografica e pudessem ser facilmente entendidos como tradicionais, um colegiado de wayakés com procedi- mentos acordados era uma novidade institucional decorrente de uma situagdo ou negociacdo especifica: a reivindicagio de uma “medicina tradicional” apoiada pelo Estado, espelhando explicitamente a estrutura da biomedicina e ao mesmo tempo exigindo reconhecimento por parte dela. © colegiado seria por isso menos auténtico? Mas ento o que fazer com a forma espacial sob a qual havia se apresentado? O colegiado pro- priamente dito foi encenado por meio de dispositivos espaciais ¢ linguis- ticos estritamente tradicionais entre os Krahd, mostrando que recursos culturais krahd haviam sido mobilizados na empreitada. A questao “tra digdo versus inovagao” se torna extraordinariamente intrincada. Em que bases ha de se julgar a autenticidade do procedimento como um todo? Na forma de reivindicar (que pode ser entendida como “tradicional”), no objeto da reivindicagdo (que parece inovar), na coletividade (que também inova mediante linguagem tradicional)? A moral da historia, ao contrario do que se possa pensar, nio diz respeito a decidir sobre a “autenticidade” do procedimento. A moral é que @ “autenticidade” é uma questao indecidivel. Ahistéria do kampé J est mais do que na hora de contar a histéria da perereca, A agita- ¢4o comegou em abril de 2003, quando uma carta assinada por indios katukina do Acre chegou ao Ministério do Meio Ambiente. A carta afirmava que 0 uso da secregao de certa ra arboricola (como a zoolo- gia chama uma perereca), difundido em varias cidades do pais havia alguns anos, derivava do conhecimento tradicional katukina, e que este estava sendo indevidamente apropriado. A entio ministra Marina Silva, que como se sabe é acriana e filha de seringueiros, se comprome- teua fazer desse caso um exemplo positivo de defesa de direitos sobre “Culeura” e cultura 343 conhecimentos tradicionais — um desafio consideravel, mas também uma oportuna mudanga num contexto de atitudes puramente defensi= vas, marcado pela desconfianga métua entre indigenas e pesquisadores. Fuientao chamada pelo Ministério a participar de um grupo de trabalho para examinar o caso, mas logo fiz notar que ele envolvia questdes com= plexas e portanto nao era particularmente promissor para estabelecer o desejado paradigma positivo. Lembrei que 0 conhecimento e 0 uso da secrecao da perereca eram compartilhados por muitos povos indi= genas amazénicos no Brasil e no Peru, bem como que se encontravam descritos nas literaturas etnografica e bioquimica jé havia algum tempo. Desse modo, seria dificil conseguir que os varios grupos indigenas che= gassem a um acordo quanto a repartigao dos eventuais beneficios, sem: contar que 0 Peru e o Brasil tinham leis diferentes sobre esse assun Entretanto, como 0 Ministério insistisse em assumir esse caso especifico, pus-me a trabalhar com herpetélogos, bidlogos moleculares e médicos além dos povos indigenas ¢ dos agentes piblicos envolvidos, evid temente. Também integrei ao grupo a antropéloga Edilene Cofacei de Lima, que trabalhara entre os Katukina e atualmente é professora da Universidade Federal do Parana. Nao ha espago aqui para entrar nos detalhes desse trabalho, modo que irei direto a alguns resultados. A perereca em questio 6 Phyllomedusa bicolor, embora outras pertencentes ao mesmo génet zoolégico também possam ser usadas. Foi descrita j4 em 1772 ¢ é contrada em toda a Bacia Amazénica, mas tudo indica que apenas gumas sociedades indigenas no oeste ¢ no sudoeste da Amazonia — como os Katukina, 05 Marubo, 0s Mayoruna (conhecidos no Peru com Matsés), os Yawanawa e os Kaxinawa — utilizam sua poderosa secre¢! em seres humanos (e também em cies, como veremos a seguir). Fon escritas atestam 0 uso (ou antigo uso) dessa secregio entre os poya indigenas de lingua pano, com excego dos que vivem perto de grai rios, como os Conibo e os Shipibo das margens do Ucayali. O tern usado para designar tanto a perereca como a secrecdio em diversas guas pano varia entre kampd, kambd, kampu etc. Adotarei a prim dessas variantes. Para extrair a secregao da ra, os indios prendem o animal ¢ p cam uma irritago em sua pele, aquecendo-lhe a barriga sobre o fogo cutucando-lhe as costas, por exemplo. Depois disso a perereca é A secrecio pode ser utilizada imediatamente ou posta a secar em U 344. CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” bastio para uso posterior. A substincia é ministrada mediante esftega- dura sobre pequenas queimaduras feitas na pele, de modo que atinge a circulagao sanguinea, Seguem-se efeitos desagradaveis como enjoo, inchago, taquicardia e diarreia, que podem ser mitigados com um sim- ples banho de rio. Na maioria dos grupos, a terapéutica tem por fina- lidade mais comum curar cagadores empanemados, ou seja, azarados na caca (¢ seus ces, que muitas vezes passam pelo mesmo tratamento). ‘Também curaria aquilo que os indios por vezes chamam em portugués de “preguica”, o que compreende manifestagdes como o desinimo para atividades sociais ou tarefas cotidianas. O tratamento com kampé teria ainda como resultado 0 sucesso com as mulheres, mas pode-se especular se esse nao seria um efeito colateral do sucesso como cagador. De todo modo, parece que 0 sucesso erético foi em grande parte responsavel pela popularidade regional do kampé: visitar os Katukina das proximi- dades para tomar “vacina de sapo” ou “injec de sapo” é uma pratica de longa data, ainda que ocasional, entre seringueiros e moradores de Cruzeiro do Sul. Mas como essa pratica teria se difundido nas grandes cidades brasileiras? Segundo a pesquisa de Edilene Lima, teria sido dis- seminada junto com as religides baseadas na ayahuasca. Como j4 mencionado, a ayahwasca € uma bebida alucinégena pre- parada basicamente a partir de um cip6 das folhas de um arbusto. A concocgiio é bem conhecida pelos grupos indigenas de toda a Amaz6nia ocidental, que acrescentam diferentes ingredientes a essa receita basica. Os grupos indigenas de lingua pano do Acre consomem-na regular- mente, em geral sob a orientagio de um pajé. Os pajés, por sua vez, usam-na para suas viagens incorpéreas. O uso da ayahuasca se difundiu entre seringueiros do vale do Ju- rud, que passaram a consumi-la sob a diregio de “pajés de cipé” de um modo semiclandestino, jé que se tratava de um habito indigena conside- rado “selyagem” e reprimido pelos patroes. O status da bebida mudou drasticamente quando ela passou a fazer parte de religides urbanas. A primeira religido a usar 0 “cha de cip6” foi o Santo Daime, fundada no inicio dos anos 1930, nos arredores de Rio Branco, por Mestre Irineu, um ex-seringueiro maranhense. Dentre as varias cisdes e variantes que surgitam mais tarde figura a Unido do Vegetal, que, como apontam Bia Labate e Sandra Goulart, nasceu em 1961 entre ex-seringueiros, mas a0 migrar dos arredores de Porto Velho e instalar-se nas cidades grandes parece ter atraido praticantes provenientes sobretudo da classe média, “Cultura” ¢ cultura 345 tornando-se cada vez mais hierarquizada. & conhecida hoje por usar uma linguagem cientificista, sob a influéncia da crescente presenga de médicos, psiquiatras e psicélogos em suas fileiras. Coube ao Santo Daime, menos hierarquizado, a ampla difusio dessas religiées nas grandes capitais do pafs a partir do final da década de 1970, que explicaria entio a respectiva difusio do kampé no final dos anos 1990. Além disso, um ex-seringueiro que viveu entre os Katukina comegou a ministrar o kampd aos habitantes da cidade acreiana de Cru- zeiro do Sul nos anos 1990, ¢ a partir de entdo os préprios Katukina’ comegaram a ser procurados. Como mostraram Edilene Lima e Bia Labate, alguns katukina foram recrutados por terapeutas new age para atestar a origem espiritual indigena da terapia. Num caso que testemtc nhei em Sao Paulo, o kampé foi apresentado como uma espécie de exocet terapéutico capaz de descobrir por si s6 0 drgao afetado no corpo do ciente para entio curé-lo. No final de 2007, 0 kampé j4 era amplamente conhecido no Brasil. Apareceu um condominio “verde” com esse nome: no Rio de Janeiro, ¢ um filme infantil langado no Natal desse ano, por exemplo, girava em torno de jovens herdis em busca do maior tesouro da Amazénia, 0 kampé. 4 A histéria do biog: Vittorio Erspamer (1909-99) foi um proeminente médico e farm: italiano que desde cedo se interessou pelas aminas produzidas por nismos animais. Depois de identificar a enteramina junto com seu fessor de histologia em Pavia, em 1937, passou a procurar aminas duzidas na natureza, inclusive a enteramina, substancia que mais foi isolada independentemente e denominada serotonina. Pouco d da Segunda Guerra, jf como professor da Universidade de Bari, mer comesou a trabalhat com moluscos e ras, conseguindo enco enteramina nas glandulas salivares dos polvos Octopus vulgaris e moschata, em dois outros moluscos e também na pele da ra Dis pictus, comum no sul da Europa. Essa descoberta foi publicada vista Nature em 1951. Animado com esses resultados, Erspamer grou sua pesquisa ao estudo dos composts ativos existentes na anfibios e nos tecidos de moluscos. Continuou interessado nessa. de pesquisa depois de transferir-se para o Instituto de Farmacol 346. CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” Parma, em 1956, e para o Instituto de Farmacologia Médica da Univer sidade de Roma, em 1967. Ao todo, Erspamer e sua equipe estudaram quinhentos anfibios e cem moluscos de espécies diferentes desde 1948. Ao longo dessa persistente pesquisa, chamaram a atengao de Erspa- mer, em pelo menos duas ocasides, 0s efeitos de certos peptideos encon- trados nas glandulas salivares do polvo Eledone moschata em 1949 € pos- teriormente, j4 em 1962, na pele da ra Physalaemus biligonigerus, especie que ocorte em regides meridionais da América do Sul. “Nesse ponto de nossa pesquisa sobre peptideos”, relatou ele, “deixamos de lado os felizes acasos e comegamos a fazer uma coleta sistematica de anfibios no mundo todo, com 0 propésito especifico de investigar a ocorréncia de peptideos e outras moléculas ativas em suas peles”. Essa coleta resultou em cerca de quinhentas espécies de anfibios provenientes de diversas partes do mundo. O maior contribuinte para a colegao foi o Dr. José M. Cei, professor de biologia na Universidade de Mendoza, Argentina, que coletou ras da Patagénia ao México e enviou duzentas espécies de anfibios para a colegio de Erspamer. Outras cem espécies da Australia e de Papua Nova Guiné foram enviadas pelo Dr. Robert Endean, da Uni- versidade de Queensland, Brisbane, Australia. As duzentas espécies res- tantes vieram de colaboradores de varios paises, como a Africa do Sul, as Filipinas e a Malsia, e também da Holanda, onde foram adquiridos alguns anfibios mais comuns. O proprio Erspamer realizou expedigdes de coleta na Grande Barreira de Corais, na Australia, nas Filipinas e na Africa do Sul. Esse grande interesse foi particularmente motivado por uma cons- tatagdo singular. Por volta de 1962, evidenciou-se que alguns peptideos encontrados em secregdes de pele de ris também esto presentes (ou possuiem andlogos) em tecidos de mamfferos, especialmente no sistema gastrointestinal e no eérebro, o que levou aquilo que Erspamer chama- ria, em 1981, de “triangulo cérebro-intestino-pele”. A partir de entao generalizou-se o interesse em localizar peptideos de ra, analisar suas propriedades farmacoldgicas ¢ buscar moléculas analogs em intestinos e cérebros de mamiferos. Em virtude dessa propriedade notavel, por volta de 1983, ja haviam sido publicados mais de dois mil artigos sobre peptitleos de pele de ras. Erspamer certamente foi um ator pioneiro e fundamental nesse campo cientifico. Estava mais interessado em explorar a espantosa va- tiedade de moléculas contidas nas secregdes de ra do que em investigar “Cultura” e cultura 347 as moléculas mais promissoras do ponto de vista farmacolégico — du rante cerca de quarenta anos a equipe de Erspamer em Roma trabalhou em cooperacio com pesquisadores do laboratério farmacéutico milanés Farmitalia Carlo Erba, que foram responsaveis pela maior parte dos tudos de estrutura e sintese das moléculas (Ada Anastasi e Pier Carlo Montecucchi eram os principais especialistas em peptideos na Farmita= lia). Erspamer isolou cerca de cinquenta peptideos de dez familias dife rentes, descrevendo sua estrutura e suas atividades funcionais. Publicou centenas de artigos cientificos, foi indicado mais de uma vez ao Prémio Nobel e nunca patenteou nada. Foi na segunda metade dos anos 1960 que comegou seu interes sistematico pelas ras Phyllomedusa, género pertencente a subfamil Phyllomedusinae (da familia Hylidae) que ocorre nas Américas Cet tral e do Sul e hoje compreende cerca de cinquenta espécies conhed das. Anastasi, Erspamer e sua equipe haviam identificado a cerulina, peptideo da secrecdo da ra australiana Hyla caerulea. A cerulina tem amplo espectro de efeitos farmacoldgicos em mamiferos, entre os quais o de abaixar a pressio sanguinea e o de induzir a defecagio med aumento das secregées e contragdes gastrointestinais, propriedade mi qual é similar a um horménio duodenal de mamiferos que intensifi a motilidade e as secregdes intestinais. A cerulina e moléculas ani gas foram ainda encontradas na pele de varias outras ras da Africa Sul e da América do Sul, além da Australia. Tiveram inicio entao estudos sobre as Phyllomedusinae, que acabaram por encontrar em { pécies Phyllomedusa um peptideo semelhante & cerulina (e ainda mais potente, batizado de filocerulina), além de outros mais. Por volta 1980, Monteceuchi e Erspamer publicaram a estrutura da sauvagina, peptideo da secregio de pele da Phyllomedusa sauvagei (ra da A tina e do Cone Sul) com efeitos antidiuréticos e redutores da pres sanguinea em mamiferos. Nessa altura, Erspamer ja havia identifie seis familias de peptideos em dez espécies de Phyllomedusa. Entre € peptideos estava a dermorfina, que tem propriedades analgésicas n tas vezes mais potentes que as da morfina. Durante a década de 1980, Erspamer e sua equipe publicaram nas de artigos sobre as Phyl/omedusa. Em um deles, de 1985, exaltavs © interesse excepcional da pele dessas ras: “Seu tecido cutaneo ser uma mina inesgotavel dessas moléculas [peptideos]”; “ne outra pele de anfibio pode competir com a das Phyllomedusa, 348 CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” forneceram 23 peptideos pertencentes a pelo menos sete familias dife- rentes”. O artigo, que viria a ser amplamente citado, trazia 0 sugestivo titulo “A pele das Phyllomedusa: uma enorme fabrica e armazém de uma variedade de peptideos ativos”. Nele eram comparadas as quantidades de quatro peptideos ativos na pele de onze ras Phyllomedusinae, oito das quais do género Phyllomedusa. Embora os quatro peptideos estivessem presentes em todas as espécies comparadas, suas quantidades variavam de modo notavel, sendo a Phyllomedusa bicolor a espécie que possufa, de longe, a mais alta concentragao desses peptideos. As histérias dos etnégrafos O primeiro registro inequivoco do uso de kampé por grupos indigenas data de meados dos anos 1920 e provém de Constant Tastevin (1880- 1962), missiondrio francés da Congregagao do Espirito Santo na regio do Jurua entre 1905 € 1926 (naquele momento de boom da borracha, a area da missao era altamente promissora para a coleta comercial, embora muito pouco rentavel na coleta de almas). Inicialmente um missionario comum, Tastevin escrevia relatos edificantes para publicagdes catélicas, além de relatérios bem mais francos a sua congregacio. Em meados da década de 1910, porém, Paul Rivet — que em 1925 fundaria o Instituto de Etnologia de Paris junto com Marcel Mauss e Lucien Lévy-Bruhl — interessou-se pelo seu conhecimento sobre a Amaz6nia e sugeriu-lhe que escrevessem juntos artigos para revistas de linguistica e antropolo- gia. Foi quando ele se reinventou como etndgrafo e gedgrafo, passando a escrever uma série de importantes artigos sobre a entaio mal conhecida regio do Alto Jurua. Durante a Segunda Guerra, quando a borracha voltou a ser matéria-prima estratégica para os Estados Unidos, todos os artigos geogrificos de Tastevin foram traduzidos (mas nao publicados) para o inglés para uso dos servigos de informag&o norte-americanos. Num artigo publicado na revista Za Géographie em 1925, Tastevin descreve 0 rio Muru, na bacia do Alto Jurua, e relata 0 uso de kampé entre os Kaxinawa, Kulina e Kanamari. Afirma ter presenciado 0 uso dovtampé entre 03 Kulina e descreve os procedimentos de extragao ¢ de aplicagao da substancia, bem como 0s efeitos por ela causados. Segundo ele, 0s Kaxinawa atribuem a origem do kampé, bem como de muitas outras coisas preciosas, tangiveis e intangiveis, como os machados, a “Cultura” cultura 449 ayahuasca (hont), 0 parica e mesmo a noite, aos Jaminawa. Mais do que propriamente um etnénimo, jaminawa (literalmente “gente do ma- chado”) denotaria, como propde Barbara Kieffenheim, uma posicio genérica, a de fornecedor de bens: cada grupo indigena pano tem seus Proprios jaminawas. Isso constitui uma caracteristica que discutiremos com mais vagar adiante: a tendéncia indigena de atribuir bens cultu- rais e saberes fundamentais a outros grupos, como se a cultura de cada grupo resultasse de apropriagao, de “predagao cultural”, A segunda mengao inequivoca ao uso indigena do kampé foi feita em 1955, com referéncia aos Tikuna, grupo linguisticamente isolado no Alto Solimbes, no Amazonas, Naquele ano, 0 zo6logo José Candido de Melo Carvalho publicou as anotages de sua expedigio de 1950 ¢ relatou um uso similar da mesma r& pelos Tikuna, que a chamam de bacururu. Carvalho foi o primeiro a identificar a ra como Phyllomedusa bicolor. A primeira mengdo em lingua inglesa ao uso da secrec3o da pere- reca parece ocorrer em um artigo de 1962 do antropdlogo Robert Car- neiro, do Museu Americano de Historia Natural. Em texto posterior, de 1970, 0 autor descreve a pratica como magia de caga entre os Amahuaca de lingua pano do Peru. A descri¢ao da posologia e dos efeitos coincide em todos os detalhes com as anteriores. Carneiro nao conseguiu iden= tificar a ra, mas os Amahuaca chamavam-na de kambé, nome bem pré- ximo do nosso kampd. Apesar desse indicio, é possivel que nio se trate da mesma espécie, j4 que Carneiro a descreve como uma ra pequena, enquanto a Phyllomedusa bicolor tem tamanho respeitvel, Em 1973, 0 antropélogo britanico Stephen Hugh-Jones registrowo uso da secrego entre os Barasana, mas trata-se de um uso um tanto ex- cepeional, j4 que estes utilizavam-na para obter penas amarelas em pas- saros domesticados, processo conhecido no Brasil como tapiragem. Se« guiram-se varias outras mengGes a prética e & perereca, particularmente entre grupos pano do interflavio em territério brasileiro, como os Matis (Erikson 1956), os Matses (Romanoff 1984) ¢ os Marubo (Montagner 1985, Melatti 1985). E quando entram em cena dois norte-ameticanos: Peter Gorman, viajante e jornalista freelance, ¢ Katherine Milton, antropéloga fisica da Universidade da California em Berkeley. Peter Gorman escreven relatos de sua experiéncia com “sap (termo do espanhol local designando a secregao de ra, que lhe foi adi nistrado por indios Matses do rio Lobo, no Peru, em 1986. 350 CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” [uJ] Deixei Pablo queimar meu braco pela segunda ver {..]- Ele removeu a pele queimada e entéo esfregou um pouco de sapo sobre as dreas expos- tas. Instantaneamente meu corpo comegou a esquentar, Em segundos eu estava queimando por dentro e arrependido de ter deizxado que ele me apli- casse um medicamento sobre o qual ew nada sabia. Comecei a suar. Meu sangue acelerou. Meu coragéo disparou. Adguiri uma percep¢ao aguda de cada veia e cada artéria de meu corpo, podia senti-las se abrindo para dar vazdo ao incrivel impulso do mew sangue. Mew estémago se contraiu e vomitei violentamente. Perdi o controle de minhas fungdes corporats co- mecei a urinar e defécar. Cai no chéio. Entéo, de repente me vi rosnando ¢ andando de quatro. Tive a sensagéio de que animais passavam por dentro de mim, tentando se expressar através do meu corpo. Foi uma sensagao _fantdstica mas passou depressa, ¢ eu s6 conseguia pensar na disparada do meu sangue, uma sensagao tao intensa que achet que 0 meu coragao ia ex- plodir, O ritmo foi se acelerando. Fiquei agoniado. Eu estava sem folego. os poucos os batimentos foram ficando estdveis e regulares, ¢ por fim se aguietaram totalmente. Fui tomado de exaustdo e cai no sono ali mesmo. Quando acordei, algumas horas depois, ouvé vozes. Mas quando recuperei meus sentidos, percebi que estava sozinho. Othei ao redor e vi que eu havia sido lavado e colocado em minha rede, Levantei-me e andei até a beira do errago da cabana sem paredes, e me dei conta de que a conversa que eu es- tava ouvindo era entre duas das esposas de Pablo, que estavam a uns vinte metros de distancia. |...] Andei até 0 outro lado do terrago e olhei para a floresta: seus ruidos também estavam mais nitidos do que de costume. E néio fai sé minha audigio que ficou mais apurada. Também minha visio, meu olfato; tudo & minha volta parecia ampliado e meu corpo parecia imensamente fortalecido. Em um de seus retornos a aldeia, cerca de trés anos mais tarde, Gorman obteve um bastio com uma amostra seca da substancia e passou parte dela a Charles Myers, curador de herpetologia do Museu Americano de Historia Natural, que a repassou por sua vez a John Daly, bioquimico que trabalhava na época no Instituto Nacional de Satide dos Estados Unidos. John Daly era um conhecedor da bioquimica de anfibios, ja que havia estudado anfibios tropicais do género Dendrobates, cujo veneno era tradicionalmente usado para envenenar pontas de flecha. Em 1990, Gorman descreveu suas reagdes fisioldgicas e neurolégi- cas a substincia. No mesmo ano, obteve dos Matses mais secre¢do seca e “Cultura” e cultura 351 dois espécimes vivos. Um dos espécimes morreu logo depois de chegar aos Estados Unidos, e foi enviado para Daly. O outro foi enviado junto com uma amostra da secregao para Erspamer, na Itdlia, que o identi cou como Phyllomedusa bicolor. Exspamer ficou evidentemente muito interessado pela descricao dos efeitos da secrecao. Eis sua resposta de 1991, tal como relatada por Gorman: Com base nas concensragbes e fungbes dos peptideos encontrados ¢ extr dos da amosira de ré que enviei, Erspamer conseguix explicar todos 08 sintomas fisicos que descrevi como intoxicagao de sapo. Sobre os efeitos colaterais, Erspamer escreven que “a cerulina ¢ a filocerulina equiativa apresentam uma agao potente sobre a musculatura lisa do intestino d gado e as secregées gdstricas e pancredticas [...). Os efeitos colaterais 0 servados [em pacientes voluntérios com atonia intestinal pés-operatéria] foram ndusea, vomitos, rubor facial, taguicardia leve{...}, mudangas na ‘pressio sanguinea, suor, desconforto abdominal e necessidade de defecar”, A filomedusina, um novo peptideo da familia das tachiquininas, atu intensamente sobre as glandulas salivares, os dutos lacrimais ¢ os int nos, e contribuiu para 0 violento efeito purgativo que senti. A sauva ‘provoca uma duradoura queda na pressito sanguinea, acompanhada p (forte taquicardia e estimula do cértex suprarrenal, 0 que contribuia pa 0 agugamento da percepgao sensorial e o revigoramento que descr A filoquinina, um novo peptideo da famtlia das bradiquininas, é um tense vasodilatador, e explicava a aceleragao do meu fluxo sanguin durante a fase inicial da intoxicagéo por sapo. E posstvel razoavel coneluir, escreveu Erspamer, “que os intensos sintomas cardiovascl e gastrointestinais periféricos observados na fase inicial de intoxi por sapo podem ser inteiramente atribuidos aos peptideos bioativos nnhecidos que ocorrem em grandes quantidades no material da rl”. Quanto aos efeitos centrais do sapo, escreveu ele, “o aumento do Vb gor fisico, a maior resistencia & fome ed sede e, de um modo mais gera aumento da capacidade de enfrentar sitwagbes de estresse podem ser ex} cados pela presenga de cerulina e sauvagina na droga”. A cerulina prodii em humanos “um efeito analgésico [gue pode ser] associado a liberagao betaendorfinas |...] em pacientes que softem de célica renal, de dores repouso decorrentes de insuficiéncia vascular periférica [circulagao li tada] e até de dores de céncer”. Além disso, “provocou em voluncérios WM manos uma significativa diminuigiio da fome e da ingestdo de alime 352 CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” A sawvagina extraida do sapo foi administrada a ratos por via subcutiinea e provocou uma “liberagao de corticotropina {um hormdnio que desenca- deia a liberagéo de substancias da glindula suprarrenal) da pituitéria com consequente ativagao do eixo pituitério-suprarrenal”. Esse vivo é 0 elo de comunicagéo quimica entre as glindulas pituitéria e suprarrenal, que controla nosso mecanismo de defesa. Os efeitos no eixo pituitdrio~ suprarrenal causados pelas doses infimas adminisiradas aos roedores de laboratério duraram varias horas. Erspamer notou que 0 volume de sau- vagina encontrado nas grandes quantidades de ra que os Matses usam, como eu tinha descrito, teria potencialmente um efeito bem mais dura- douro em humanos, ¢ explicaria por que as minkas sensagoes de vigor & de agusamento da percepséio sensorial apds 0 uso duraram vérios dias. Quanto aos efeitos “magices” que descrevi{...], porém, Erspamer diz que “alucinagoes, visies ou efeitos mégicos ndo sito produidos pelos componen- tes peptideas do sapo conhecidos”. Acrescentou que “ficava por resolver a questo” de saber se aqueles efeitos especificas, a sensagio de que animais estavam pasando por dentro de mim [..), se deviam “ aspiragio de ou- tras drogas com efeitos alucindgenos, particularmente o mi-n.”. © fato de Exspamer nao poder explicar as alucinagdes atesta a seriedade de sua andlise, j4 que nao ha outro registro etnografico corroborando a ocorréncia de alucinagdes devidas a secresao de perereca (o que confere um carater idiossincratico ao relato de Gorman). Enquanto isso, Katherine Milton, uma antrop6loga fisica interessada em ecologia e dieta indigena na AmazOnia, ja havia passado algum tempo entre os Mayoruna, no Brasil. Milton, que afirmou nao ter experimen- tado a substincia, documentou todo o preparo da sectegio de re levou uma amostra seca para John Daly, nos Estados Unidos. Embora Gor- man e Milton tivessem estado respectivamente no Peru e no Brasil, a distincia entre os locais de seus trabalhos de campo era de apenas cerca de 60 km ¢ eles pesquisaram a mesma sociedade indigena, j4 que Mayo- runa é simplesmente 0 nome brasileiro para os indigenas que no Peru sio chamados de Matses. Como 0 uso da secreeao de perereca entre os Matses fora registrado na tese de doutorado de Romanoff, de 1984, é provavel que Katherine Milton conhecesse a referéncia. Em 199a, John Daly e colaboradores — entre os quais Charles Myers e Katherine Milton — publicaram 0 primeiro artigo de bioquimica “Cultura” e cultura ¥§5 em que se faz referéncia ao uso tradicional indigena da Phyllomedusa bicolor e a literatura etnografica sobre grupos pano. O artigo tratava da identificagao de um peptideo chamado adenorregulina. No ano seguinte, Erspamer e colaboradores publicaram um artigo em que associavam as moléculas identificadas na amostra da secregao aos efeitos experimentados por Peter Gorman. titulo rezava: “Estudos far- macol6gicos do sapo da pele da perereca Phyllomedusa bicolor: uma droga tusada pelos indios peruanos Matses em praticas de caga xamanicas”. Na copiosa produgao cientifica de Erspamer sobre as Phydlome= dusa, esta é a primeira vez em que ele menciona e registra cuidadosa- mente varias fontes etnograficas. Assim, os artigos de Daly, de 1992, e de Erspamer, de 1993, fornecem as duas primeiras provas irrefutaveis do reconhecimento cientifico acerca. da existéncia de um conhecimento tradicional indigena sobre a Phyllome= dusa bicolor. Qualquer que fosse 0 estado de coisas até entio, nao resta diivida de que em 1992 —ano em que a cps declarou que os recursos ge= néticos eram submetidos a soberania dos Estados nacionais e que conheci~ mentos tradicionais tinham direito a uma justa parcela dos beneficios ~ os biélogos jé estavam plenamente informados dos dados etnograficos. Nao detalharei aqui a enxurrada de atividades e patentes relaci das amoléculas derivadas da Phyllomedusa que se seguiram nos anos 1 ¢ pelo século xx1 adentro. As patentes em geral foram se tornando cada vez mais comuns nesse perfodo, com as universidades pressionando pesquisadores a patentear suas invengdes antes de publica-las e o Ac ‘TRIPS-oMC garantindo que cada vez mais paises as respeitassem. “Cultura” versus cultura Falei aqui da imaginago limitada que esta na base dos disposi nacionais ¢ internacionais sobre o conhecimento indigena. Em ti andlise, essa imaginagiio remete a uma nogio de “cultura” da conhecimento é apenas uma das manifestagdes. Em outras palav modo de conceber os direitos intelectuais indigenas depende de é entendida a “cultura”. Como se sabe, 0 termo “cultura”, em seu antropolégico, surgi na Alemanha setecentista e de inicio estava re cionado a nogao de alguma qualidade original, um espirito ou que aglutinaria as pessoas em nagées e separaria as nagdes umas 354 CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” outras. Relacionava-se também a ideia de que essa originalidade nasce- ria das distintas visdes de mundo de diferentes povos. Concebia-se que 08 povos seriam os “autores” dessas visdes de mundo. Esse sentido de autoria coletiva e endégena permanece até hoje. Saber até que ponto esse e outros pressupostos e conotagdes sio universalmente aplicaveis é algo que requer uma cuidadosa investiga~ 40 emogrifica. Antropdlogos como James Leach, Marilyn Strathern, Deborah Gewertz, Simon Harrison e varios outros demonstraram de modo convincente 0 quanto as nossas nogées de cultura e de proprie~ dade intelectual sao inadequadas para a Melanésia. Discutirei adiante al- guns exemplos elucidativos da Melanésia e também da Amaz6nia, Neste ponto quero introduzir o seguinte conjunto de questdes. Como € que povos indigenas reconciliam prética e intelectualmente sua prOpria ima- ginagdo com a imaginacdo limitada que se espera que cles ponham em cena? Como é que esses povos ajustam contas com 0s conceitos metro- politanos, em particular com as percepgdes metropolitanas de conheci- mento ¢ de cultura? Com isso chamo a tengo tanto para os usos prag- maticos de “cultura” e “conhecimento” por parte de povos indigenas como para a coeréncia légica que é capaz de superar contradigdes entre as imaginacées metropolitana e indigena, Como é que indigenas usam a performance cultural ¢ a propria categoria de “cultura”? Como é pos- sivel ter simultaneamente expectativas diferentes, quando nao opostas, sem sentir que ha contradigio? Questdes como essas nos levam de volta a antropologia classica. Elas estayam na base do magnifico livro de Evans-Pritchard sobre Feitigaria, ordeulos e magia entre os Azande, de 1936. Evans-Pritchard mostrou 0 alcance da etnografia ao demonstrar que as contradigdes nao eram percebidas pelos Azande porque as regras sociais praticas e as crengas por elas implicadas mantinham uma separagio tao estrita en tre contextos que nenhuma contradigao flagrante podia aflorar. Pode ser esse 0 caso também na situagao com que estamos lidando, com as devidas diferengas. Postular que direitos costumeiros devam reger a alocagdo e a distribuigdo de beneficios no ambito interno, como o faz a maioria das legislagdes nacionais, é uma maneira de tentar separar 0 contexto interno do externo. Em “Culture in Politics: tellectual rights of indigenous and local people” (2002), texto apresentado em um simpésio e disponivel on-line, afirmei a necessidade de distinguir contextos. Mas isso nao para evitar “Cultura” e cultura 355 pragmaticamente a manifestacao de contradigdes, como no caso zande, € sim por uma questdo de lgica. Sugeri que era preciso distinguir a estrutura interna dos contextos endémicos da estrutura interétnica que prevalece em outras situagdes. Cabe uma adverténcia: a Iégica interét- nica néio equivale a submissao a logica externa nem a légica do mais forte. E antes um modo de organizar a relagdo com estas outras ldgicas. E como tenho dito repetidas vezes desde 1979, as situagGes interétnicas nao sao desprovidas de estrutura. Ao contrario, elas se auto-organizam cognitiva e funcionalmente. Esse tipo de proceso — a organizagao ¢ a énfase de diferengas culturais — tem recebido maior atengao nos estudos coloniais e pos- coloniais, mas a légica interétnica nao é especifica da situagao colonial, _ nem de um desequilibrio de foreas de modo geral. Como notou Sahlins, a cismogénese de Bateson, bem como Raga e histéria, “A gesta de As- diwal” ¢ os quatro volumes das Mitolégicas de Lévi-Strauss, jé tratavam. do contraste entre diferentes grupos de pessoas independentemente de sua relagao de forgas. A ideia de articulagao interétnica é uma continuagao natural da teoria lévi-straussiana do totemismo e da organizacao de diferengas. Em con= traste com o que ocorre em um contexto endémico, em que a légica tote mica opera sobre unidades ou elementos que so parte de um todo social, numa situago interétnica so as proprias sociedades como um todo que constituem as unidades da estrutura interétnica, constituindo-se assim em — grupos étnicos, Estes so elementos constitutivos daquela e dela derivam seu sentido. Segue-se que tracos cujo significado derivava de sua posigao num esquema cultural interno passam a ganhar novo significado como elementos de contrastes interétnicos. Integram dois sistemas ao mesmo tempo, e isso tem consequéncias. Para tornar mais precisa a definigao de “cultura” a que apenas aludi no inicio deste texto, sugiro que usemos aspas_ ~— “cultura” — para as unidades num sistema interétnico. “Cultura” tem a propriedade de uma metalinguagem: é uma n reflexiva que de certo modo fala de si mesma. Pois bem, a questo que quero comentar é a seguinte: como é possivel operar simultaneam sob a égide da “cultura” e da cultura ¢ quais sao as consequéncias d situagio problemética? O que acontece quando a “cultura” cont e é contaminada por aquilo de que fala, isto é, a cultura? O que quando est por assim dizer presente na mente ao lado daquilo que tamente descreve? Quando os praticantes da cultura, os que a pi 356 CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” a0 reproduzi-la, pensam a si mesmos sob ambas as categorias, sendo uma concebida em teoria (ainda que nao na pratica) como a totalidade da ou- tra? Em suma, quais sio os efeitos da reflexividade sobre esses topicos? ‘Antes de passarmos a isso, permitam-me formular uma definigao simples e prética de cultura sem aspas. J4 se derrubaram arvores demais para alimentar as intermindveis polémicas sobre 0 tema, e nao vou desper- digar outras tentando resumi-las. Nao sé isso: para me manter a distancia das controvérsias de minha disciplina, adotarei a definigao de um critico literdrio que me parece resumir 0 que 0 consenso contemporaneo assimi- lou da antropologia. Eis o que Lionel Trilling escreveu em Sincerity and Authenticity (Sinceridade e autenticidade) ao definir a “ideia de cultura”: um complexo unitdrio de pressupostos, mods de pensamento, hdbi- tos ¢ estilos que interagem entre si, conectados por caminhos secretos ¢ explicivos com os arranjos préticos de uma sociedade, ¢ que, por ndo aflorarem & consciéncia, nao encontram resisténcia d sua influéncia so- Bre as mentes dos homens. O comentario sobre a (in)consciéncia é discutivel, mas deixemo-lo pas- sar, j& que nao é essencial para o assunto que nos interessa aqui. No mencionado texto de 2002 0 meu ponto de partida era 0 se- guinte dilema. Varias organizagdes com as quais me alinho de modo geral como cidada defendem que o conhecimento tradicional seja colocado em dominio piblico, ou mais precisamente “domaine public payant” (sempre em francés, por razdes histéricas). Isso significa que 0 conhecimento tradicional fica acessivel a todos, mas a sociedade que 0 originou ou deteve mantém o direito a receber pagamento caso algum produto de valor comercial seja derivado dele. Contudo, como veremos a seguir, em muitas sociedades tradicionais existe a nogao de direitos privados sobre conhecimentos. Cheguei mesmo a sugerir uma correla 40 um tanto paradoxal: quanto menos uma sociedade concebe direitos privados sobre a terra, mais desenyolve direitos sobre “bens imateriais”, exemplificados em particular pelo conhecimento. Como entio apoiar um projeto que tem como consequéncia 0 domaine public payant para conhecimentos tradicionais quando sabemos que isso muitas vezes & contrario ao direito costumeiro? Minha conclusao era a de que a con- tradi¢ao podia ser resolvida observando-se que quando consideramos direitos costumeiros estamos nos movendo no campo das culturas (sem "Culeura’” ¢ culeura 357 aspas), ao passo que quando consideramos as propostas legais alternati- vas e bem-intencionadas estamos no campo das “culturas”. Decorre dai que dois argumentos podem ser simultaneamente ver- dadeiros: i) existem direitos intelectuais em muitas sociedades tradicio-’ nais: isso diz respeito A cultura; ii) existe um projeto politico que consi dera a possibilidade de colocar o conhecimento tradicional em dominio pablico (payanz): isso diz respeito a “cultura”. O que pode parecer um_ jogo de palavras e uma contradigao é na verdade uma consequéncia da reflexividade que mencionei. A reflexividade e seus efeitos (com agradecimentos a Mauro Almeida) Sabemos, desde Bertrand Russell, que a reflexividade é a mae de todos” 08 paradoxos do tipo “o mentiroso”. O cretense que diz. sobre si me “Minto”, esta ao mesmo tempo mentindo e dizendo a verdade. Pois se esti ver mentindo estara dizendo a verdade, ¢ se estiver dizendo a verdade es taré mentindo. O paradoxo, como Russell foi o primeiro a notar, decorre da perigosa capacidade do cretense de falar sobre sua prépria fala. linguagem que possa falar sobre si mesma ¢ dotada da capacidade de f zer certas afirmagdes que so simultaneamente falsas e verdadeiras. Iss0 acontece ndo sé com a linguagem comum, mas também, como mostro Alfred Tarski na década de 1930, com muitas outras sublinguagens, i sive as formais. © que todas essas linguagens tém em comum é 0 fato permitirem a citago. O uso de aspas é um exemplo desse recurso. Qualquer linguagem que seja suficientemente expressiva para pod: fazer citagdes, e que portanto seja dotada de autorreferéncia, leva a p radoxos, Pode-se escolher entre resignar-se a nio poder dizer tudo — linguagem sera incompleta — ou poder dizer tudo, mas nesse caso seria- teorema de Gédel — entre completude e coeréncia. Russell, é claro, opt pela coeréncia. Mas s6 lgicos ¢ advogados exigem coeréncia. A esc do senso comum privilegia a completude, ¢ € por isso que nés, ant logos, que lidamos com 0 senso comum, estamos mais interessados ef linguagens completas. Assim como quase todo mundo, incluindo-s os indios no Brasil. De modo que é em plena consciéncia, e em co dancia com uma convengao classica, que opto por colocar “cultura” aspas quando me refiro aquilo que é dito acerca da cultura. 358 CONHECIMENTOS, CULTURA F “CULTURA” tex Com mais frequéneia do que costumamos admitir, pessoas tém cons~ ciéncia da propria “cultura” ou de algo que se Ihe assemelha, além de viver na cultura. Os exemplos so intimeros, ¢ logo adiante evocarei alguns. Lévi-Strauss admite essa copresenga de “cultura” e cultura em sua famosa “Introdugao a obra de Marcel Mauss”, na medida em que evoca uma exegese nativa que é ao mesmo tempo parte e comentario do discurso. A “tomada de consciéncia” da cultura de que fala Franz Boas certamente nao é nenhuma novidade, nem tampouco um mero fend- meno contempordneo ou colonial: a autoconsciéncia de kerekere como um costume fijiano, como mostrou Sahlins, precedeu 0 dominio brit nico, nao decorreu dele. As pessoas, portanto, tendem a viver ao mesmo tempo na “cultura” e na cultura. Analiticamente, porém, essas duas esferas sio distintas, ja que se baseiam em diferentes principios de inteligibilidade. A ldgica interna da cultura nao coincide com a légica interétnica das “culturas”. Uma das fontes do meu interesse nesse assunto — afora minha formac%o em mate- matica — é uma profunda observacao de Louis Dumont em sua Jncrodusito a duas teorias de antropologia social que ¢ muito elucidativa para a presente discussio, embora seu autor a considere simplesmente como “idiossincra- tica”. Dumont afirma que 0 que as coisas sao depende do conjunto de coi- sas de que fazem parte. Contrariamente a nossa percepgao, as coisas nio podem ser definidas em si mesmas, mas apenas como elementos deste ou daquele conjunto. A questo, entio, é saber como é que as pessoas fazem para viver ao mesmo tempo na “cultura” e na cultura. A objetivagdo da cultura, contrariamente ao que afirmaram mui- tos antropdlogos, nio comegou com 0 colonialismo, como acabamos de afirmar. O antropdlogo britinico Simon Harrison, por exemplo, rese~ nhou a enorme literatura antropolégica acerca dos miiltiplos e antigos testemunhos dessa reificagao em toda a Melanésia, inclusive no periodo pré-colonial. 'Termos metaculturais, ou palavras que falam sobre a cul- tura, so onipresentes na regiao. Tragos culturais constituem-se em objetos ou quase objetos passiveis de todo tipo de transagao: direitos sobre rituais, cantos, saberes e fGrmulas magicas podem ser ofertados ou vendidos. Segundo a descricao dos Arapesh feita por Margaret Mead em 1938, populagdes montanhesas compravam rituais de populagdes costeiras para posteriormente vendé-los a terceiros a fim de comprar “Cultura” ¢ cultura 359 outros. Havia até sociedades especializadas na produgio cultural para exportagao, para usar a feliz formulagao de Harrison. Os Mewun de Vanuatu eram produtores de kas‘om, a palavra neomelanésia ou pidgin geralmente traduzida por “tradiga0”: forneciam a seus vizinhos — e por tanto (j4 que se trata da Melanésia) aos vizinhos de seus vizinhos — bens imateriais como dangas, cantos e rituais. Desse modo, bens culturais eram concebidos como propriedade (compreendida aqui como um conjunto cultural de direitos) e cuidado- samente guardados. Mas nao eram inalienaveis. Os direitos sobre bens culturais eam objeto de transagdes que podiam assumir as mais varia~ das formas. Podia haver, por exemplo, o que chamariamos de venda de direitos exclusivos sobre padrdes ornamentais, mediante a qual alguém cedia todo e qualquer direito ao uso dos padrdes empregados para de- corar sua casa, O mais comum era uma espécie de “franquia”: podia-se, por exemplo, ceder o direito de executar uma danga e manter outros’ direitos de propriedade sobre ela. Ao que tudo indica, contava menos — a exclusividade cultural da execugao do que o direito exclusivo de au- torizar empréstimos ou aquisigdes culturais. As religides cristas foram” inseridas no sistema, e a tal ponto que em 1878, segundo Neumann, missionarios metodistas foram mortos porque se aventuraram a tentar converter novas aldeias antes de serem concluidas as indispensaveis ne= gociagdes em torno dos direitos sobre o cristianismo detidos pelas al deias previamente convertidas. Direitos a adotar tragos culturais alheio faziam parte da extensa gama de bens em circulagio nas redes de que acompanhavam casamentos ou parcerias comerciais. A distin entre itens tangiveis e intangiveis, isto é, 0 status dos itens em si, secundaria em relagdo & conhecida primazia das relagdes de troca. Como em varios outros dominios, as sociedades amazénicas € lanésias compartilham algumas dessas caracteristicas. Em quase a Amazénia, costumes, cantos, cerimOnias, saberes e técnicas tém pot definicao uma origem alheia: 0 fogo foi roubado da onca ou do adornos e cantos so recebidos de espiritos ou conquistados de inimig Como se houvesse uma espécie de fetichismo cultural generalizado, bas as sociedades parecem nao reconhecer aquilo que consideram criagdes suas. Esse nao reconhecimento pode estar ligado ao presti sociado a bens exéticos, mas esse proprio prestigio requer explica pode se expressar sob varias modalidades. Na Amaz6nia, por ele se fundamenta num conceito de cultura como empréstimo — na 360 CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” tura para 0 Outro que Lévi-Strauss ressaltou em Historia de Lince. Em vez de manter distancia de forasteiros, os amazOnicos demonstram um extraordindrio apetite pelo Outro e por suas bugigangas, chegando nisso a extremos canibais. Isso contrasta de modo flagrante com a conhecida pratica dos imperadores chineses, que, como ressaltou Sahlins, deposi- tavam 0s presentes europeus — telesc6pios, carruagens e outros objetos com 0s quais se pretendia impressiona-los — numa espécie de museu de curiosidades: infiteis em termos de identidade, esses objetos nao eram as- similados pelo Império, mas depositados nos palacios de verao. A Franga do século xvi também tinha seus “cabinets de curiosi- zés”. E possivel que a duradoura yoga do exotismo na Franga tenha se originado naquele século, pois se encontram no Louvre coités brasi- leiros montados em suportes de ouro durante 0 reinado de Henrique 11, De todo modo, 0 valor atribuido ao exético na Franga requer que ele mantenha a qualidade de estrangeiro, que continue fazendo parte de um sistema diferente. Ele certamente pode constituir uma marca de distingao de classe, mas sempre como um objeto de um mundo dife- rente. Absoryé-lo, assimilé-lo, destruiria seu valor. E possivel que essa distancia social seja justamente o que possibilitou a comparagao socio- ldgica praticada por Jean de Léry e sobretudo por Montaigne, feita de espelhamentos e oposiges entre os costumes da Europa e os do Bra- sil. Na Amazénia, ao contrdrio, o estrangeiro nao é mantido a distan- cia, mas — como sugeriu Eduardo Viveiros de Castro —incorporado (e € aqui que a metéfora canibal, justamente, nao é metafora). A mesma voracidade se manifesta, como acabamos de ver, em relagio aos tragos culturais. Num tal universo, como bem diz o mesmo Viveiros de Castro, cultura é por definigio aculturagio. Um conhecido regime de bens intangiveis desse tipo é aquele que rege os nomes pessoais e os privilégios a eles associados nas socieda- des jé do Brasil Central. Usarei como exemplo 0 caso dos Mebengokre- Kayap6, descrito em detalhes por Vanessa Lea. Entre eles, um conjunto de nomes bonitos é um bem limitado e que como tal nao deve ser dila~ pidado. Os nomes bonitos trazem consigo uma série de riquezas imate- riais chamadas nekrér, que consistem em direitos complexos sobre can- t0,'papéis rituais e ornamentos, além do direito a determinadas partes da carne de caca (para os homens) e do direito a domesticar determi- nados animais (para as mulheres). Os primeiros nomes bonitos foram adquiridos de peixes, mas os xamias propiciam um fluxo constante de “Cultura” e cultura 361 novos nomes que obtém em suas viagens noturnas. Esses nomes ¢ as prerrogativas a eles associadas constituem propriedade, ¢ os detentores desse tipo de propriedade so pessoas de casas organizadas por descen- déncia matrilinear. Se no houver ninguém disponivel na casa em uma dada geraco, os nomes podem ser cedidos em usufruto vitalicio a pes- soas de outras casas, que irdo porti-los vicariamente, com a condicao de passarem-nos adiante para membros da casa de origem. A ideia é que todos os nomes devem estar presentes em cada geragéo. Mas as figuras juridicas que se aplicam a nomes ndo se restringem a propricdade e usu- fruto: nomes podem ser emprestados, custodiados, roubados ¢, prova- velmente, predados ou conquistados. Uma observagao de Lea me permitira voltar 4 questio inicial de~ pois de todos esses exemplos. Ela afirma que os Kayap6 nio esto preo- cupados em preservar nomes em gera/, mas apenas aqueles pertencentes- a cada casa materna. Deverfamos concluir que a cultura tem sua propria “mio invisivel” ¢ nao é sendo o resultado geral do apego de cada um as suas proprias prerrogativas? Talvez seja mais relevante perceber que, dado 0 cardter fracionado desse apego a riqueza imaterial de cada casa, a nogio de um patriménio cultural coletivo e compartilhado pode nao ser pertinente na chave tradicional Kayapé. Como observou Harrison, ha uma marcada diferenga entre a cultur entendida desse modo, passivel de acumulago, empréstimos e transagé e aquela que chamei de “cultura” e que opera num regime de etnici Nesta ultima, entre outras coisas, a cultura é homogeneizada, estend do-se democraticamente a todos algo que é, de um outro ponto de uma vasta rede de direitos heterogéneos. Num regime de etnicidade, agora, como veremos, coexiste com 0 outro, cada kayapé tinha apet determinados direitos sobre determinados elementos de sua cultura. Os Kayapé de hoje participam tanto de uma ordem interna naq cada um é diferente quanto de outras ordens, uma das quais os subsun como um grupo étnico distinto dos demais grupos étnicos, E em um vel ainda acima eles sao incluidos em todas as outras sociedades i nas nativas como “indios”, “indios genéricos”, para usar a expresso d Darcy Ribeiro com uma nova inflexio. Cada uma das trés ordens o distingdes especificas, Mas a questo que quetemos considerar é con essas ordens embutidas uma na outra se afetam mutuamente a poi nao poderem ser pensadas em separado. 362. CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” Duas observagées talvez triviais confirmam que isso de fato ocorre. A primeira é que todas essas “ordens” coalescem nos mesmos seres humanos cuja atuacao ¢ implicada e mobilizada em sua realizagao € em seu futuro. Embora se possa ver cada esfera como organizada por uma l6gica sui generis, as mesmas pessoas vivem simultaneamente nes- sas miiltiplas esferas. O que implica lidar com as exigncias simultZineas decorrentes da légica de cada uma dessas esferas. Tan Hacking chamou de “efeito de /ooping” o fato de que 08 “tipos humanos” (uman kinds, como ele os chama por oposigio aos tipos ani- mais) compreendem entes que tém consciéncia de como sao classifica- dos e de que essa consciéncia tem efeitos proprios. A teoria da rotulagao (labelling theory) afirma que pessoas que sio rotuladas institucional- mente passam a se comportar de modo estereotipado, como se espera que o facam. Mas isso, argumenta Hacking, é uma simplificagaio. No processo, a consciéncia produz nos individuos mudangas comportamen- tais que na pratica podem ser muito diferentes daquilo que se espera do tipo humano em questo. Assim, o proprio tipo se torna diferente e entao “ha um novo conhecimento a ser obtido sobre o tipo. Mas esse novo conhecimento, por sua vez, torna-se parte do que se deve saber acerca dos membros do tipo, que muda novamente”. Isso é 0 que chamo de ‘efeito de fooping’ para os tipos humanos”. Note-se o paralelo entre a autorreflexdo implicita na discussio de Hacking e o movimento refle- xivo implicado na “cultura” como metadiscurso sobre a cultura. O que estou sugerindo aqui é que a reflexividade tem efeitos dindmicos tanto sobre aquilo que ela reflete — cultura, no caso — como sobre as prdprias metacategorias, como “cultura”. A manifestacaio do velho chefe yawa que mencionei no inicio do texto pode ser compreendida a luz dessa coexisténcia de cultura e “cul- tura”. Vimos que ele afirmava que honi nao era cultura. A “cultura” é por definicao compartilhada. Quando retraduzida em termos vernacu- lares, supde um regime coletivo que é sobreposto aquilo que anterior- mente era uma rede de direitos diferenciais. Assim, 0 uso de “cultura” tem um efeito coletivizador: todos a possuem e por definigio todos a compartilham. Era contra isso, a meu ver, que 0 chefe yawanawa se insurgia. Embora hon esteja ao alcance de qualquer yawanawa adulto, alguns tém direitos especificos sobre a bebida, como o de prepari-la ou administra-la. Se honi fosse “cultura”, raciocinava ele, qualquer yawa- nawa poderia reivindicar tais direitos. “Cubeura! ¢ cultura 363 Regimes de conhecimento Em que consiste o conhecimento? O que se insere nessa categoria? Quais so suas subdivisdes, seus ramos, suas especialidades? De que ca- tegoria mais abrangente faz parte? Como é produzido? A quem é atri- buido? Como é validado? Como circula e é transmitido? Quais direitos © quais deveres gera? As respostas a essas ¢ a muitas outras questOes conexas variam muito, e cada conjunto de respostas corresponde a um regime de conhecimento sui generis. Nosso regime atual foi arduamente construido e deliberadamente unificado, desde o século xvi, mediante acordos sobre autoria, proce- dimentos de ratificago e assim por diante. Os instrumentos interna- cionais, quase por definigao e com a melhor das intengdes, caem em algumas armadilhas. Comegam por desconsiderar variagdes entre regi- mes especificos de conhecimentos ¢ fundem-nos em uma nogao homo= génea. Tratam o conhecimento tradicional sumariamente no singular, como uma categoria definida meramente por oposigio ao conheci- mento cientifico, sem contemplar a miriade de espécies inclufdas sob 0 mesmo rétulo, Uma vez que o conhecimento cientifico foi tornado uno € universalizado, especula-se (e incluo aqui o sentido etimoldgico da palavra, que vem do espelhamento) a unidade do conhecimento tradi- cional. Como se 0 tinico s6 pudesse se defrontar com um outro tinico e nao com a multiplicidade. Os instrumentos internacionais presumem também que o conhe= cimento tradicional seja coletivo e “holistico”, termo cuja indefinigio. petmite variadas interpretagdes. Tratam ainda o conhecimento tradi nal, muito embora esta acepedo esteja sendo cada vez mais contest: como um rhesaurus, isto 6, um conjunto completo e fechado de len¢ e sabedorias transmitidas desde tempos imemoriais ¢ detidas por tas populagdes humanas, um conjunto de saberes preservados (mas enriquecidos) pelas geragdes atuais. Note-se que uma concepgao esta enviesa as politicas publicas na diregio do “salvamento”. O passa a importar nao € a conservagao dos modos de producdo dos nhecimentos tradicionais, e sim o resgate ¢ a preservacdo desses th que se compararam a outras tantas “Bibliotecas de Alexandria”, Tem se firmado na literatura juridica e nas declaragdes de vimentos indigenas internacionais a nogdo de que os conhecim tradicionais nao so simplesmente um corpus estabilizado de o 364 CONHECIMENTOS, CULTURA r “cuLTURA” imemorial, e sim conjuntos duradouros de formas particulares de gerar conhecimentos. © conhecimento tradicional, segundo essa visio, nao 6 necessariamente antigo. Tradicionais sdo seus procedimentos — suas formas, ¢ nao seus referentes. Esses procedimentos sao altamente versos, Os critérios de verdade e os protocolos de pesquisa em regimes de conhecimento tradicional nao se baseiam sé no experimento e na observagao empirica perseguidos com paixiio. Como mostrou Lévi- Strauss em O pensamento selvagem (e Kuhn mostrou aplicar-se também aos paradigmas da ciéncia ocidental), busca-se também o que se poderia chamar de consisténcia ldgica. Algumas coisas se encaixam nos siste- mas preexistentes mas outras simplesmente nao sao compativeis com eles, isso é algo que os dados empiicos per se simplesmente nao tém o poder de desmontar. Mare Bloch deu um brilhante exemplo de como a propria categoria de dado experimental depende de certas premissas. O “milagre régio”, que atribuia aos reis taumaturgos franceses e ingleses 0 poder de curar escréfulas, era entendido como um fato da experiéncia. Quando surgiram diividas sobre o milagre régio na Itélia renascentista, no se questionaram os fatos em si; 0 que interessava era dar-lhes outra explicagao e contestar a ideia de que tal privilégio seria exclusive dos reis da Franga e da Inglaterra. Fontes ¢ fundamentos de autoridade também sao bastante diversos. Sem esgotar todas as suas formas possiveis, desde jé distinguem-se duas. Pode-se conferir autoridade experiéncia direta e também a propria fonte, cada fonte derivando seu valor de verdade da sucessio de elos de autoridade na cadeia de transmissio de conhecimento, O contraste entre essas duas formas de autoridade é destacado numa citago que tomo emprestada de Marshall Sahlins, que a atribui a Sir Joseph Banks, integrante da primeira expedigao do capitao Cook, que por sua vez a adotou de um humorista do século xvitt (note-se a cadeia de autoridade que estou invocando): “Ja que me afirmas que assim é, tenho de acre- ditar. Mas confesso que se 0 tivesse visto com meus préprios olhos teria grandes diividas”. Na Melanésia, como informa Lindstrom, o conhecimento esté fun- dado na autoridade da fonte. J4 na AmazOnia, segundo varios autores, é a experiéncia direta que prevalece. O conhecimento se fundamenta no peso das experiéncias visuais, auditivas e perceptivas. A sabedoria atribuida a certos ancides e pajés se deve as muitas coisas que teriam visto, ouvido ¢ percebido. O cagador empanemado é aquele que vai “Culeura” cultura 365 para a floresta e nao tem a percepgiio sensorial dos seres que ali estao. Sua caréncia nao reside em suas habilidades de cagador: ele nao erra 0 alvo, simplesmente nao 0 vé nem o ouve. O cagador precisa se antecipar A caca, vé-la antes de ser visto, ouvi-la antes de ser ouvido. A intimi- dade com a floresta e seus habitantes, o interesse que se tem por eles, relacionam-se 4 percepgio. E pela experiéncia direta que se aprende, e isso vale para cacadores, para pajés ou quem quer que seja. Nesse sen- tido, as histérias de cagadas que contam os Runa, sociedade amazénica do Equador e que Eduardo Kohn relata e analisa de modo notavel, sio muito instrutivas. Equivalem a memorandos perceptuais: nao se trata apenas de recriar para o ouvinte uma série de episédios, mas de fazer uma transcrigao visual ¢ auditiva da experiéncia. Segundo David Kopenawa Yanomami, cujas memorias foram re- gistradas e transcritas por Bruce Albert, para que uma pessoa se torne um xami é preciso que os espiritos xapiripés a vejam; reciprocamente, & preciso que aprenda a vé-los. Kopenawa telaciona explicitamente a caga A percepgao visual e auditiv: Comecei a ver os xapiripés pouco a pouco, porque cresci brincando na floresta. Eu sempre estava procurando a casa. E de noite, quando so nhava, comecei a ver a imagem dos animais ancestrais que se apro~ ximayam de mim. Os enfeites e as pinturas no corpo deles brilhavam cada vez mais no escuro. Eu conseguia ouvi-los falar, ouvi-los grivar. Mas a percepgiio nao é unfvoca. Alucindgenos propiciam experienciar retamente como se pode perceber 0 mundo de modos diferentes — ou que diferentes mundos podem coexistir perceptualmente, numa formulagdo mais amaz6nica. Nas ontologias das sociedadles amazénicas, como sugerit Eduardo Viveiros de Castro, nem todos percebem as mesmas coisas € as coisas nao sao percebidas do mesmo modo por diferentes seres sensiveis. O que vemos como um cadaver em putrefagao é, do ponto de vista dos. urubus, um convidativo caxiri. E 0 que vemos como um ser humano é, para o jaguar que o devora, um apetitoso porco-do-mato. Toda percepgao- do real é fruto de um ponto de vista singular, sem que exista qualquer po= sigio privilegiada. © que ¢ universal nao é um conjunto de coisas objetivas, ¢ sim um modo de organiza-las. Assim, nao se concehe uma natureza partilhada e dada a qual culturas idiossincrdticas imporiam uma ordem cultura € 0 universal; a natureza é que é idiossineratica. Os animais e 366 CONHECIMENTOS, CULTURA E “CULTURA” humanos, organizamos 0 mundo do mesmo modo, mas nossos referentes so diferentes dos deles. Os referentes da percepgio sio relativos 4 espécie, mas a sua organizagio —a cultura —é universal. Paradoxalmente, portanto, a percepgio é equiveca quanto aquilo a que se refere e ao mesmo tempo é uma determinante fonte de co- nhecimento. Como diria Merleau-Ponty, ainda que haja uma primazia da percepgiio nao ha concordancia universal quanto aos seus referentes. Talvez seja por isso que os sonhos individuais, feitos de percepgdes sem referentes, sejam fontes de conhecimento perfeitamente legitimas na maioria das sociedades amazénicas. Ative-me aqui a discussio de alguns procedimentos de validagio do conhecimento a titulo de exemplo de como se deveria examinar os diferentes regimes de conhecimento. Nosso proprio regime de conhecimento Do mesmo modo que nao conseguimos reconhecer os miltiplos regimes de conhecimento tradicional, permanecem nao explicitados os pressupos- tos que esto na base do sistema ocidental de propriedade intelectual. A construcao contempordnea dos direitos de propriedade intelectual tem em sua base a nog&o romantica do autor criativo que constr6i uma obra origi- nal aé nihilo. Ao longo das iiltimas décadas essa construgao foi objeto de criticas pertinentes por parte de autores como Woodmansee, Jaszi, Rose, Boyle, Coombe, Lessig, Adrian Johns e muitos outros. Jd nos anos 1940, antropélogos como Leslie White e Kroeber questionavam essa concepgaio do génio criativo; e nos anos 1950, varios expoentes das ciéncias exatas, tais como 0 quimico Michael Polanyi e o matematico Norbert Wiener se juntaram a essas criticas. A mesma falacia se aplica a criago artistica e & invengio cientifica. A concepgao demitirgica de uma autoria que parece baixar por inspiragdo divina omite as contribuigdes intelectuais coletivas ¢ individuais em que se fundam a invengio ea criago. Nesse quadro de pensamento, algo parece paradoxal: as prerrogativas dos agentes que financiam as pesquisas. Hoje em dia as patentes normalmente nao sao propriedade do pesquisador individual, mas da instituigao ou empresa que financia sua pesquisa. Como observou Thorstein Veblen ha tempos, isso é uma extensio paradoxal do raciocinio que esta por tras dos direitos de propriedade intelectual. © paradoxal aqui no é que universidades ou “Cultura” ¢ cultura 367 empresas queiram recuperar investimentos em pesquisa por meio de di- reitos de propriedade intelectual, mas que se possa considerar compatfvel que esses direitos estejam baseados na ficg’o do génio criador e que se atribua a propriedade deles ao financiador. Na verdade, desde seu surgimento na Gra-Bretanha no inicio do sé- culo xvIt, 0s direitos autorais — os primeiros direitos de propriedade in- telectual surgidos no Ocidente — nao foram instituidos para proteger os autores, e sim o monopolio de editores londrinos, ameacado por edigdes piratas feitas por escoceses. Ao contrario do que se poderia supor, por tanto, foram os editores e nao os autores que suscitaram os debates em torno da instituig&o de direitos autorais sobre a obra literaria. Tratava-se de atribuir a propriedade literdria aos autores simplesmente para que es- tes pudessem vendé-la aos editores, proporcionando-Ihes um monopélio se nao eterno, como se pensou inicialmente, pelo menos pro tempore. AS~ sim, a propriedade literdria significava, na pratica, dar ao autor a liber dade de vender seus direitos criativos, e com exclusividade, a um editor. Em vez de se buscar estabelecer os direitos morais eternos dos criadores, como ocorreu em paises como a Alemanha, visou-se justamente a alie= nabilidade da obra. Em vez de direitos morais, direitos de propriedade. A fim de atingir esses resultados empreenderam-se consideraveis esfor- gos retricos para definir o trabalho literdrio, ora conforme o modelo da paternidade biol6gica, ora conforme o do trabalho agricola, paradigma, segundo Locke, da figura da propriedade. Conversa de “cultura”, conversa de kastom — como criar um caso em torno de termos de empréstimo Quanto aos préprios povos indigenas amazOnicos, agora usam a torto ea direito 0 termo “cultura”. Terence Turner chamou a atengao para: © fato em 1991, mostrando como “cu/tura” se tornara um importante recurso politico para os Kayap6. Um processo semelhante foi & mente descrito na Melanésia, onde a palavra kastom, termo neomes lanésio derivado do inglés “custom”, adquiriu vida propria. Embora Kayapé por vezes utilizem um termo mais ou menos equivalente em. lingua, parecem preferir usar a palavra em portugues, cultura, E esse o detalhe aparentemente trivial que eu gostaria de expl a partir do material krahé: qual a razdo para o frequente uso da pal: 368 CONHECINENTOS, CULTURA F “CULTURA” cultura quando varios outros itens de origem externa ¢ de uso igual- mente amplo (como 0 dinheiro, por exemplo) so designados por um termo krah6? Na verdade, a frequéncia com que cultura permanece sem tradugdo nesses contextos é um fato digno de nota. Como obseryou Jakobson, nenhum elemento de um vocabulario é de fato intraduzivel de ‘uma lingua para outra, Na falta de outra coisa, sempre é possivel recor- rer a neologismos ow a circunléquios na lingua verndcula. Segue-se que usar palavras estrangeiras em sua forma original constitui uma ogo deliberada. Resta entio entender o significado dessa op¢io. Usar ter- mos de empréstimo é 0 mesmo que declarar sua intradutibilidade, um passo que, como vimos, nao é ditado por limitagées linguisticas, mas empreendido por opgio. Esse ponto, que a primeira vista parece tauto- logico, é altamente significativo. Pois os termos de empréstimo contém informag&io metassemantica: sinalizam que houve a escolha de manter termos explicitamente ligados a um determinado contexto, embora houvesse outros meios disponiveis para a comunicagao semantica. Os termos de empréstimo devem ser entendidos segundo uma certa chave. Em suma, eles indicam o registro de sua prépria interpretagao. Numa notavel tese de doutorado apresentada em 2004 na Univer- sidade de Chicago (e hoje j4 publicada sob o titulo “Pastoral Quechua”), ‘Alan Durston fornece uma ilustragao hist6rica de minhas afirmagdes. A tese trata das politicas que regiam a tradugao para o quechua de cate- cismos e outros textos litirgicos no Peru colonial. © quechua religioso variou muito de 1530 a 1640, mas uma mudanga decisiva foi introduzida na década de 1570 pelo Terceiro Concilio de Lima. Durante as primei- ras décadas de evangelizacao aceitayam-se termos quechuas para tradu- zir nogoes cristis. O Terceiro Concilio de Lima reverteu essa tendéncia. O motivo disso foi perceber-se claramente que com termos quechuas ficava muito dificil saber quem estava ditando 0 sentido, se a Igreja ou 0 povo. “Cristianizar” rituais, cosmologias e termos quechuas equivalia a dar aos povos dominados instrumentos com os quais eles podiam inse- rir o cristianismo na cosmologia inca. Para evitar esse risco 0 Concilio decidiu abolir 0 uso de palayras e raizes quechuas ¢ impor emprego exclusivo de termos de empréstimo para os principais conceitos cristaos. Palavras como santo, confesidn, alma e sobretudo Dios e Espirim Santo nao podiam mais ser traduzidas para o quechua. Note-se que 0s termos de empréstimo nesse caso nao eram empregados para manter a autori- dade do termo original, que nesse caso seriam palavras em aramaico, ou “Cultura” e cultura 369

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