Você está na página 1de 23
aE discursos que despedagam Dublin; por um lado a palavra que repete, por outro a matriz que reproduz ¢ contamina; por um lado a série infinita dos ecos, por outro a produgio desenfreada da m4quina retérica dos media. Toda a paralisia dublinense reside nesta cocxisténcia do passado da palavra e do presente ao} impresso — ambos veiculando mera alienagio. 43 . Universidade de Paris X i Vo dhawe Ravistor: de leoue S Leyla Persrone-Moisés A intertexxtualidade critica Ao disinir s ¢ estudar 0 romance polifSnico de Dostoievski, Bakhtine azia x notar que este novo tipo de romance no repre- sentiva apenas » sma inovagio em matéria de géneros, mas corres- pondia a com ¢ sipo inteiramente novo dé pepsimento artistico», 2 ama expécie + de novo modelo artistico do mundo, no qual foram subiqnetideios a uma transformacio radical miuitos momentos essenciais da 2nctiga forma artistica'». : Esta priecctsacdo da produgZo literdria para’ a polifonia, o dislogisuno, z « polistemia, o plural do texto) nlo podia deixar de ter efeiinos sorore a critica. Perdida a unidade da obra ¢ da sua! Ieitura, 0 cxitieso vé-se forcddo a reformular a sua atitude face as obras = face = 3 sua propria actividade de escrita. Cada vez mais se deefsonts'2 com o problema das relag5¢s ‘entre os diferentes discursos ¢, sororetudo, com 2 questio da relagio entre o seu proprio diiscurmo ¢ 0 da obra. : O quze nos > interessa aqui ¢ saber em que medida este n modelo axristic? abala a critica, 9 que faz-dels, ¢ 0 que cha fax > dele. Tesateac -de responder & seguinte questio: em que medida 0 diloginena ceo difre (ou pode dif) do dslogisno pol-“ * Goo? Poss onpsas palavras: quais-serio_as_diferen Gntertexnaalidaace critica, ¢ 2° intertextualid: ica? Ou melhor: sooderst haver uma verdadeira intertextualidade_nesse > discurso zentmretextos_que € a altia?. 1 Mittehail iBakbtine, La Polligu de ‘Destsiersk, Sevil, 1970, pr 29. Em princfpio, a critica sempre foi intertextual, so detmos a este termo um sentido lato, Sempre se tratou de escrever um texto sobre outro texto, um texto que dialoga com outro, Assim, mesmo no caso mais simples (evidentemente hipotético, como todas as eformas simples), hi no discurso critico um entrecruzat de dois textos, o texto analisado_¢ 0 texto_analisante, O uso da citagio, um dos mais cléssicos processos da critica Titerdria, esboga uma certa intertextualidade, «A_cita¢lo_mals literal — observa Butor —¢ jf, em certa medida, uma parddja, O simples facto de ser retirada do seu contexto a transforma, assim como 0 novo contexto no qual a introduzo, o seu fraccio~ namento (dois criticos podem citar a mesma passagem demar- cando diversamente os seus limites), os ,cortes que opcro no interior, que podem substituir a gramitica original por outra, ¢ naturalmente © modo como a abordo, como me aposso dela no meu comentirio >, 2 Nao devengos portanto reduzir a intertextualidade a0 uso da citago ou ap aparato referencial da critica das fontes, Tra tar-se-ia, nesses casos, dumia intertextualidade rudimentar. A que nos interessa aqui no ¢ uma simples soma de textos, mas um trabalho de absorgio ¢ de transformacio de outros textos por um texto (Kristeva), trabalho que nio pode exercer-se na critica tradicional, como tentamos demonstrar. 1. As fronteiras do texto Para responder provisoriamente 4 questo posta de infcio, comegaremos por observacdes empfticas, A primeira evidéncia € que a intertextualidade critica & declarada, ou scja, submetida a uma lei, enquanto a intertextualidade podtica pode ser ticita (¢ a maior parte das vezes &0). O critico declara (confessa) » «La critique et linventions, in Répertoire 112, Minuit, 1968, p, 18, 210 ——— I — que escreve sobre uma ou virias obras; 0 nome do autor-rutor ¢ 0 da obra-assunto-Aiguram frequentemnente no- préprio titulo do livro ou do artigo crftico; seno, hio-de aparecer como refe- réncias explicitas desde 0 comeo do texto crftico, no seu dis- curso ou em notas. ‘A declaracio pressupée ¢ implica uma submissio. Enquanto a cetrutura do discurso podtico engloba a dos textos estranhos gue obriga, a estutura do discurso crtico tradicional, pelo contrério, é englobada pela do texto indutor, que a modela ¢ a situa em posigio de filiagio e de prolongsmento. Estas injung&es apresentam uma certa analogia com 2s leis de deciaragio ¢ de apropriseZo que regem a esfera econémica. ais Jeis decorrem dum contrato social que implica deveres de identificagio e direitos de propriedade. A declaragio do critico é uma espécie de declaracio de contribuinte: identidade, resi- déncia, profissfo. A partir daf € que se definem 0s direitos de apropriagio. © critico ¢ alguém que entra'em propriedade alheia, que 2 usufrui durante slgum tempo, e isso presupd: © respeito por certas regras, sendo = mais clementar-o reconheci- mento dos limites da propriedade, dos direitos do proprietério © dos deveres do nio-proprietirio. Ora o escritor passeia pelos territ6rios da literatura com uma desenvoltura que nio & permitida 20 crtico: nada declars, pode dialogar com outros escritores sem os chamar pelo nome, utiliza ‘os bens alheios como se fossem seus. Quando muito, pisca 0 lho ao leitor, que nZo exige dele o que requer do erftico: que defina muito claramente de queme do que fala, Tudo isto nos lembra que 0 contrato literdrio do escritor no & 0 mesmo que o do atitico. As relagdes entre autores sio relagées de igualdade; as relagdes entre 0 autor e 0 critico, 6 cscritor ¢ a sua sombra, implicam submissio. dialogismo pottico produz-se em termos de igualdade, JS quc os diferentes textos se situami 20 mesmo nivel; o dialogismo 211 crltico fanciona em termos de hierarquia, uma vez que os dois textos se encontram em niveis diversos. O mivels & aqui referen- Gado relativamente 4 posigio do sujeito da enunciagio, que modula todo o enunciado, Lembremos como a posigio desse sujeito depende duma espera ¢ dum reconhecimento sociais. Tradicionalmente, a posi¢io do enunciador era codificada ¢ vigiada pela institui¢io dos géneros literdrios, Mas, a partir do fim do século xxx, esbateram-se as fronteiras entre os géneros, até que, no stculo xx, se levantaram contra a propria no¢io de géneo numerosas vores (com diversa proveniéncia e dife- rentes finalidades), Se os limites dos géneros estio cada vez mais imprecisos (jf no se pretende que as obras os observem), 2 fronteira entre a obra pottica e a obra critica permanece, contudo, estdvel até aos nossos dias. A critica continua a ser uma para-literatura, dir-se-ia mesmo uma périaliterstura, ¢— ) Cextos escritozes contestam essa fronteira: Blanchot, Barthes; ‘Butor; mas, se esacontestagio poe problemas aqueles que ptetendam classificar aqiseles escritores (e problemas bem mais cencretos 20s prdprios escritores, quando se trata de impor a sua pritica), ¢ justamente porque a fronteira entre critica € poesia se mantém, comio espera social (institucional) relativa- mente 4 literatura. Blanchot justifica a ambiguidade da sua pritica pela afir- magio: «Um livro jé nfo pertence a um géaero, qualquer livro depende unicamente da literatura, como se esta detivesse ante- cipadamente, na sua generalidade, os segredos ¢ as formulas que permitem (eles ¢ sb eles) dar realidade de livro 20 que se, escreves?, Para Barthes, eescrever (20 longo dos tempos) ¢ procurar abertamente maior linguagem, a que ¢ forma de todas a8 outras 4; & portanto compreensivel que as suas obras rejeitem, * Le Livre a venir, Gallimard, 1959, p. 293. 4. Envit eritigutn, Seuil, 1964, p. 10, 212 \ qualquer etiqueta genérica. Butof, por seu lado, declara: ever ~ lando-te a crftica ¢ a invengio como dois aspectos duma mesma actividade, a sua oposigio em dois géneros diferentes desaparece, cm proveito da organizagio de formas nova» 5, © facto de se reconhecer ou no as fronteiras genéricas afecta profundamente a intertextualidade erftica. De facto, se no se considerar a fronteira entre a obra poética ¢ a obra crftica, esta estard apta a pér em prética o mesmo tipo de intertextuali- dade que a obra pottica: uma intertextualidade soberana ¢ ticita, em vez dum dislogismo declarado ¢ submisso. Toda a questio se encontra assim resumida: eHaveré Icis de criagto vilidas para 0 escritor, mas no: para 0 crftico? §, Nao temos a pretensio de responder a esta questio que Barthes deixa em suspenso, ¢ que, de resto, nio esperdnenhuma resposta. Trata-se aqui, a titulo de hipétese, de examinar uma possibilidade ¢ as suas consequéncias: a possibilidade de. se estabelecer urna pritica livre da intertexmualidade na critica, Isto ainda parece problemitico, comio se verd a seguir. Se as fronteiras estZo aindz bem demarcadas entre as obras de cada autor (2 pritica desenganada de Lautréamont é ainda revo- fuciondria, 2 um stculo de distincial), estio-no ainda mais entre a obra do autor ¢ a do arftico. O problema das frontciras & ainda geral: (Como poderia ser uma parédia que no se apresen- tasse como tal? £ 0 problema que se pde 4 escrita moderna: como forgar o muro da enuncia¢do, 0 muro da origem, 0 muro da propricdades 7? Em certos escritores (como Barthes), a fusio parece iniciada. O muro foi forsado, ¢ a téctica escolhida nio é a da demolicio tuidosa, mas a da deslocagio ¢ da descoberta do caminho: +A Gnica resposta possfvel nem é 0 defrontar nem a destruigio, # Op. tity pT * Roland Barthes, op. tits p. 24. "Id, 5/2, Seal, 1970, 213 remarry mas simplesmente o roubo: fragmentar 0 texto antigo da cultura, da literatura, ¢ disseminar as suas marcas segundo {Srmulas irreconheciveis, tal como se disfarga uma mercadoria roubads» ®, E preciso trabalhar pela aboligio de duas espécies de fron” tciras para que haja uma verdadeira intertextualidade, a qual se : situa, por agora, no dom{nio da utopia: a fronteira discursiva (ou genérica) ca fronteira textual, A primeita serve para separar 1 dois tipos de discurso no nosso caso: discurso pottico ¢ discurso : critico); a segunda diz respeito a dteas de propriedade, isto as diferentes extensdes de obras cuja integralidade & protegida pelos nomes dos autores. A fronteira discursiva ¢ abstracts, © sen percurso € tragado pelo cédigo dos géneros; a fronteira textual toca no problema bem concreto dos direito: 3 Em ambos os casoi, trata-se duma questo de propriedade: servir para, como1 atributo — frontpira discursiva ou genérica; ser propriedade de, como pertenga—fronteira textual. : ‘A primeira Rirece oftrecer menos resistincia do que a segunda, 0 que se compreende, visto tratar-se duma fronteira institucional, énquanto a segunda é uma fronteira directamente econémica. Porém, quando a primeira esti passada, esti a outra ameagada. “A verdadeira intertextualidade s6 ser possfvel quando tiverem cafdo 9s dois muros, ¢ isso implica a queda de muros muais vastos do que os da literatura. 2. Metalinguagem ¢ intertextualidade A questo da intertextualidade critica coloca-se de modo diferente conforme a maneira de considerar a crftica: sc cla for considerada como metalinguagem, a ffonteira discusiva } preservada; se for considerada cotho escrita, essa fronteira ¢ abolida, * Roland Barthes, Sade Fourier Leyols, Scull, 1971, p. 15. 214 77 sy By nn: aA snhinat fy 4 Vejamos 0 i ede 40 4¢ conuiderat a erftlea coino vita metalinguagem.' Segundo Barthes (Ensalos alilcos), 0 roinan=~ cista ¢ 0 pocta falam'do ‘mundo,"¢'0 erftica fala do discurto de outrem: No disciirso axftico, ‘transparecem entiio dols tlpos da relagio: 1) relagfo‘da metalinguagem com a linguagem- , -objecto; 2) relagio’ da’ lingtageni-objecto com o mundo, Mas, estando 0 prdptio ‘attico no iitindo, a linguagem’que usa & euma das linguagens que 2 sua época lhe propSe, f por isso que a critica representa um ‘didlogo ‘entre duas histérias ¢ duas subjectividades. Como este didlogo ¢ deportado para o presente, © que aparece no ¢ a verdade do pasado, mas ea construgio , do inteligfvel do nosso tempor sue 2 Quando se encara 4 artic’ Como uma metalinguagem, todas _: *-!r06es intertextuxis sf ‘portanto redobradas: duas Tinguagens, duas i.."4*ia8, duas subjectividades. Nido acornitecers © mesmo na- intertextanu.’: nottica? Quando Ducasse re-escreve Pascal, nfo teremos duas im. “zens, duas histérias, duas subjectividades? Pascal no se encontraré wuz ortado para © presente? A diferenca ¢ que, nse caso, a fusto € comy.."7 as juntas invisiveis. O resultado é um discurso'finico ¢ total~ mente novo, 0 discurso de Ducasse, Nele assistimos a uma apropriagfo ¢ a um englobamento. scare © aftico que faz meuliaguagem, pelo contririo, no réescreve Pascal ou outro, sobrepée 0 feu discurso, & transpa~ réncia, 20 do autor tutelar, respeitando assim a hicrarquia dis- cursiva, E o seu discurso que tem a delicadeza de perma- necer flufdo ¢ male4vel, enquanto o outro conserva a sua opacidade de objecto. Os problemas da intertextualidade encontramse assim multiplicados na linguagem critica, porque » 40 esplrito eritico & por natureza fécil, insinuante, mével ¢ compreen- ° tivo» (Sainte-Beuve). ~ : 25 ‘ nesta h& duplicag%o, ao passo que i i feaio. To que tenaremos demonsaen PS? ME wn Se compararmos o dialogismo poético, tal como foi defi- nido por Bakhtine (¢ redefinido por Kristeva), com o dialo~ gismo arftico, tal como aparece numa erftica como a que define Barthes nos Ensafos aiticos, obtemos uma miltplicagio da ambivaléncia. Segundo Kristeva, os trés clementos dialogantes (Sujeito da escrita, destinatirio, textos exteriores) dispem-se em dois eixos perpendiculares: © eixo horizontal (dislogo do sujeito da escrita com o destinatirio virtual) ¢ 0 eixo vertical (dislogo do texto com outros textos 1), No caso da metalingua- gem, a estes dois cixos sobrepor-se-iam dois outros: horizontal (didlogo, do critico com.o seu leitor wirtual) ¢ vertical (diflogo do texto erftico com, outros textos cafticos). Esta sobreposi¢i0 permitiria ent3o certos cruzamentos transverssis: o diflogo do cxftico com o autor criticado, 0 diflogo do exftico com o leitor do autor (considerando sempre esse leitor como ‘um elemento estructural do enunciado-pottico),-0 diflogo do aitico com o Ieitor actual do autor (0 que ele no podia prever, o que 2:con- tinuagio da histéria ¢ 2s mudangas da cultura Ihe deram, por Wezes a séculos de distincia), 0 dislogo do texto erftico com outros textos poéticos contemporineos, anteriores ou posteriores Aquele sobre.o qual concentra a atengio. = Jaaes Esta complexidade do dialogismo metalingufstico : nao resulta, como poderia julgar-se, num enriquecimento da inter- textualidade, Na verdade, nio se trata aqui de intertextualidade, visto que estas relacdes muiltiplas decorreriam da manutengio da fronteira discursiva ¢ da fronteira textual, isto ¢, da manu- tengo da representagio, Ora s6 hé intertextualidade, no sentido’ forte do termo, quando essas fronteiras sto abolidas pela forga conquistadora da escrita; todos os espelhos se partem, entio. ) r 40 Julia Keineva, Sémiotit#, Scuil, 1969, p. 145. Sy 216 out lingalstica) pode revelar fenb- menos de intertexwalidade, ‘Spria “actividade temio~_ légica no poderia ser intertextual. “O discurto semiclégico nip entra em diflogo com 0 texto analisado, apenas desenvolve tima palavra paralela, sobreposta. -Procura determinar as condi- sca em que o texto pode significar ¢, para tal, recobre o texto com uma linguagem transparente, aderente. $6 uma critica que fosse uma escrita permitiria o apareci- mento dum discurso verdadeiramente intertextual. Nesse caso ‘io tc tratari de revestir explicitando, mas de recobrir tomando amblguo. O novo texto teri, ele proprio, as caracteristicas de A anilise semiolégica (1 _densidade e de pluralidade sémica .que distinguem o texto | poftico. Numa aftica-cscrita havers um verdadeiro didlogo, porque a nova palavra estar em condigées'de igualdade em relagio 4 que lhe serve de pré-texto; 0 aftico nio mais se colo ~ card perante o outro texto.como um seguidor, mas sim como ) tum perseguidor de ambiguidades, quer dizer, como um excritor. 3, A obra inacabadd = 1 . A primeira condigio da intertexmalidade € que a3 obras se déem por inacabadas, isto é, que permitam e peram para ser proseguidas, Para Bakhtine, o Butor no cita Baudelaire como os criticos citam os autores. Os fragmentos de Baudelaire nfo constituem um dominio i parte no texto, nio sio simples exemplos do que nele se demons tra. Butor apropria-se desses fagmentos, dispte-os de outro modo, envolve-os no seu préprio texto, armando uma nova {obra solidamente estruturada ¢ doravante indivisivel nas suas ‘partes. oe ee é ; 2 Por ocasiio da sua defesa dé tese, este uso pouco universi- trio das citagSes nfo escapou As censuras de certos membros do jéri, Jean Duvignaud, por exemplo, apresentou a seguinte objec¢do: «Pelo uso que faz das colagens, em que oer menos 05 textos citados se distinguem do seu, o seahor nn 8 seus autores, Butor nfo o negou, mas procurou Most "7 Gallimard, 1961. 5 que, se hf dissolucio, cle préprio se dissolve tanto como os autores Gitados: «Gragas 2 eles, torno-me outro» 8, Quanto 4 auséncia de notas ¢ de referéncias, Butor explicou: «Ao suprimi-las, forgo o leitor a reler os textos de apoio». Esta explicagio, visando sossegar 0 jéri, s6 se refere a um aspecto da técnica butoriana. Na pritica, esta vai mais longe ¢ no é etranguilizante: 4 sempre na minha aftica um elemento de pastiche, mas distinciado, que se situa 20 nivel do acto ¢ nio do estilo». Pode ler-se este enfvel do acto» como nivel da escrita. O resultado ¢ um texto aritico nio-ortodoxo: «A minha critica reveste-se dum cardcter romanesco. © autor, para mim, tor- | na-se uma ficcao, invento-o ao Ilo, Esta actividade romanesca | = 3 manifesta-se em citagSes transformadas, as palavras de outrem | 7K imponho a gramitica da minha frase, acrescento episédios novos 4s obras estudadao. Esta dissolugio dos autores (inclusive cle, Butor) num novo texto, este pastiche ao nfvel do acto, este aspecto romanesco ¥ do conjunto, tudo isto tem um nome: intertextualidade. -—— A intertextualidade exercida por Butor visa, explicitamente, 4g invengio de figuras: «A figura formada pelas coisas pelas “pessoas transformase®, Se esta construgio figurada ¢ roma- nesca, o seu objective ¢ porém crftico: «Trata-se de dar a todos esses fragmentos 0 faturo que em si continham, de os esclarecer, ¢ portanto de nos deixar esclarecer por eles, a essa luz nascent». Vejamos algumas dessas figuras criadas pela intertexrualidade. O préprio titulo do livro formula a intengao de ler 0 sonho de “Baudelaire como uma hist6ria extraordiniria de Poe. As dedi- catérias, a seguir, formario outra figura. Baudelaire dedicara a i} CE, Jacqueline Piaties, «Michel Butor devant ses fuges», Ls Alon, 15 fer, 1973, p. 18. ee © Histoire extraordinaire, p. © Posficlo a L'lilustre Gendéseart, ts Maz da Upartemet, Ba d'Art Lucien Mazenod, p. 187. 224 a tradugio das Histérias extraordinsrias'% Sogra“de Poc:'’ egran- deza ¢ bondades de Maria Clemm, Butor vé, nesta dedicatéria, uma identificagio de Maria Clemm e da imie de Jeanne Duval, cujo funeral seré pago pelo poeta com o dinheiro recebido dessa tradugio. Daf vai decorrer' uma nova deslocagio no livro de Butor, dedicado a beleza insultada deJeanne».” On, diré Butor: «0 pequeno monstro é 2 crianga que 4 ser o poeta, © poeta que ainda nfo se produziu, essa exting: ‘que o adulto considera com distanciamento, de que s¢ podg enfim rir, mas as cores que ostenta sio as da sua voca¢io, ou, sé se preferir, da sua condenagio: 0 espfrito comprazse no trocadilho, ¢ na nossa carta hi uma palavra designada apenas pela inicial, consoante separada que, como um sustenido junto da ‘clave, atravessa toda 2 narra¢io para vir agarrar-se a essas designagdes de cor ¢ tra~ duzi-las: «H4 ncle muita prosa e muito verso», A consoante «p», designagio cufemistica do sexo do péeta, marca’ a sua viri- Tidade fimalmente provada pela publicagio dam livro, permite 0 trocadilho esclarecedor. Bd Bh 2 ~ = Um outro jogo de palavras levaré Butor ai certas conside- rages temiticas, Trata-te do jogo de palavras involuntirio (até que ponto?) criado pelo erro de impressfo que transformava Baudelaire en Baudelaile, numa edigio que © pocta, furioso, mandou destruir. Butor chama a atengio dos Icitores para 2, "= Histeire extroordinaire, 9. 24S. : 2 no eenien nee 28S, importincia e as resson4ncias do tema do pfssaro em Baudelaire. O Albatrds levar-nos-4 a0 Corvo de Poc, o qual, segundo Bau- delaire, praticava a arte dos boatos falsos. Todas estas conside~ rag&es sobre o tema dos pissaros (0s quais, de mais a mais, ttm uma presenga marcante no sonho em questio) tém para o critico~ -escritor um interesse mais profundo, de ordem pessoal: «Sei como uma crianga pode softer com os gracejos feitos a partir do scu nome™s, diz Butor*. _ Baudelaire escrevia: «Ninguém negari que Poe é um mara- vilhoso acrobat». Ninguém negari que Butor o é também, como Poe, como Baudelaire, como todos os poctas. O inter- texto butoriano-apresenta-se assim como um grande trabalho colectivo: «Nao hi obra individual. A obra dum individuo é uma espécie de n6 que se produz no interior dum tecido cultural, no seio do qual individuo nfo. se eacontra mergulhado, mas Gay O indiyiduo &, desde a origem, um momento desse tecido cultural. Também a obra é sempre uma obra colectiva. B, de resto, por essa raz%o que me interesso pelo problema da citagdor *, ge ‘Assim, o texto critico de Butor nao é um texto simplesmente analftico, distanciado ¢ segundo. Como escritor; ele entra no jogo dos poetas, é «tudo dirculas. «Lado circul», também (como & ébvio) em Barthes. S/Z* € uma montagem. A novela de Balzac foi decom- posta em fragmentos (as lexias: migalhas, cestilhagoss) empa- cotados em blocos (as sequéncias de lexias), estando esses blocos, por sua vez, envolvidos pelo texto barthesiano (que os pontua, thes dé uma articulagis ¢ uma modulacio). O texto integral © Histoire extraordinaire, p. 233. * N. de T.— Bator» 6 em francés, o nome duma ave, ¢ significa ainda epatetay, ctolor, 8" LAre 0,9 39, Aix-en-Provence, 1969, p. 2 ™ Obra cujo subsitulo & censzios. 226 i t f ds novela balzaquians, publicade no Sti do volume, funciona dle préprio como uma pera da montagem: jf nfo um objecto™ acabado ¢ tutelar, mist uma especie ic de miniatura aposta ao grande guadro de S/Z, und ct spelho esférico num interior fiamengo. O discurso ‘exltio ura maior, que doma a mais pequena; o texto primeira, aternal, Passa A categoria. de anexo. Estabeleceu-se’doravante uma Girculagio sem ierar- quia cate 0 texto de Balzac’ o de Barthes. : Para que isso seja possivel, é preciso submeter o texto clis- sico a um processo de disserninaco: «Omar-se-4, pois, 0 texto, afastando, como um pequeno'sismo, blocos de significago caja Icitura s6 apreende a’ superficie lisa imperceptivelmente soldada pelo candal das frases, o discurso corrido da narracio, © natural da linguagem comum. No texto de 5/Z, 3 novela balzaquiana tomna-se uma pocira Gntilente; disseminada, ‘revela-ée ‘como _inscminadora; obra classificada (objecto de cstudos literfris), agora desclassfica-se, volta A circulacdo, presentifiarse. O cxltico dinamita o seu _objecto, &-lo rebentar, mas esta desconstrugio nada tem a ver com uma destraigio. Morta, 4 obra jf 0 era antes, quando se cncontava cissificada © quise esquecids; 0 empurtio que Barthes Ihe imprime rep6c-a ‘cm ‘movimento, vivifica-a. {Ea obra s6 pode ser vivificada pelo retomar do didlogo, \ dos didlogos: os que a obra tris € 03 que o axftico “he acrescentar. Existe assim'é 's/Z um intertexto balzaquiano (as personagens que se transportam dum romance para o outzo), um intertexto cultural balzaquiano gue é mais ou menos o dum manual escolar do século xi (mma Histéria da Literatura (Byron, As Mil e uma Noites, Anne Radcliffe, Homero), uma Histéria da Arte (Miguel Angelo, Rafael, o milagre grego), um manual de Histéria (0 século de Lufs xv), um tratado da ™ siz, p. 20. 227 Medicina pritiea (a doenga, « convalercenga, « velhice), win tra- tado de Psicologia (amorom, ete,), um remma de Moral (crist omestéica — moral de versdes latinas), ana L4glea (do llogisino), uma Retérica ¢ uma recolha das mdximas 6 provérbios respel- tantes A vida, A morte, a0 sofrimento, ao amor, As mulheres, bs idades, eter), Neste tecldo do textos, ven tecerse 0 do Barthes, também catregado de outros textos; Bouvard et Pécuchet, Mallarmé, Rousseau, Stendhal, os discurtos palcanalfco, esti- Ustico, lingufstico, semlolégico, etc.. + Os textos carreados por Barthes no scu discurso exftico no tém um valor autcritirio de referencia ou de erudigto, As yozes harmonizadas por Balzac Juntam-se outras vozes, 20 canto que produzem, outros cantos que, pela propria disso rifncia, tornam. actual a sua misica. Multa gua correu entre a afirmagfo de Darthes «a erftica é uma metalinguagems ¢ a pritica dessa metalinguagem em $/Z. O que af se procura ¢ obtém, jf nfo é uma relago de tipo I6gico (cotalitério), mas uma metalinguagem que no Teche a linguagem- + objecto, que nfo detenha a ciculago da linguagem. 2 isso 36 é posstvel quando cessa a distingZo entre os discursos, quando a critica é uma outra linguagem, tto epodticar como a da obra: ? Barthes, Butor e Blanchot mostram-nos, cada qual a seu inodo, como a criticaxpode.ultrapassar 2 citacto ¢ aceder 20 intertexto: disseminagio, colagem, mistura —escrit. Sendo 0 ultrapassar dos miurog da enunciaglo a condi¢io do intertexto, 0 seu prego & talvez a perda duma expecifcidade discursiva que permitiria dar a um tipo de discurso.o nome de aitico. Mas, perante a utopia do texto, que valgr poderia ainda prender-nos as velhas CORTES ¢ as ses tipologias? ee Universidade de Sco Paulo ™ Thidy p, 18. 230 i i i 4 i 4

Você também pode gostar