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F A€lcJÍl'no DA RAÇA

Paul Gilroy

NOTA SOBRE A TRADUÇÃO TRADUÇÃO


CELIA MARIA MARINHO DE AZEVEDO
SEMPRE QUE se julgou uma palavra ou expressão muito específica de uma ANDRÉ CÓRTES DE OLIVEIRA

dada cultura, ela aparece na língua original seguida de uma breve explicação entre CARLOS MARINHO DA SILVA

colchetes. Os colchetes também foram utilizados para incluir a tradução de títulos PATRICIA DE SANTANA PINHO
RENILSON ROSA RIBEIRO
de livros ou artigos que aparecem no texto e que não constam nas notas de rodapé.
SILVANA SANTIAGO
Do mesmo modo estão entre colchetes os títulos de filmes ou musicas nos casos
em que a análise que se segue faz referência ao seu conteúdo. Palavras estrangeiras
aparecem em negrito de modo que não se confundam com o recurso ao itálico
empregado pelo próprio autor para dar ênfase a determinados termos. Coordenação da Equipe de Tradução e Revisão Técnica
Agradeço a Josué Pereira da Silva pelo auxílio na revisão técnica, o que CELIA MARIA MARINHO DE AZEVEDO
incluiu sugestões importantes.

C. M. M. A..

São Paulo, 2007


· . Centro de Documentação e Informação
Polis Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais
G392 Gilroy, Paul
AGRADECIMENTOS
.Entre ~ampos: nações, cultura e o fascínio da raça. f Paul Gilroy. 1'radur,:ão de CeJia
Mana Mannho de Azevedo et al.- São Paulo: Annablume 2007
416p.;16x23cm ' .

Tradução de "Between camps: natio/ls, cuttures and lhe alíure 01 race" London and
NewYork: Routledge, 2004 '

ISBN 978-85-7419_736_4

1. Relações Raciais. 2. Raça. 3. Racismo. 4.Identidade Negra. 5. Cultura Política.


M,-,',
6. Fascismo. 7. Identidade Cultural. 8. DIreitos Humanos. l.Tttulo. II. Azevedo, Célia
Marinho. '
ESTE PROJETO foi concluído graças ao benefício de uma bolsa de estudo
[SOC/253 (279)] que me foi facultada pela Nuffield Social Science Foundation.
CDU 323.12 Gostaria de agradecer a este organismo pelo apoio que me permitiu ficar por um
COD 301.451
ano sem lecionar.
ENTRE CAMPOS
NAÇÓES, CULTURAS E O FASCíNIO DA RAÇA Inúmeras pessoas nos mais diversos lugares abriram mão de seu precioso
tempo para me auxiliar em diferentes aspectos deste trabalho. Elas sabem quem
Coordenação editorial são e foi uma honra contar com sua generosidade e amizade. Seus nomes estão
Joaquim Antonio Pereira indicados de um modo arbitrário abaixo, mas todas elas deveriam constar de mais
Diagramação de uma categoria. Nenhuma delas é responsável por meus erros e falhas.
Rai Lopes É preciso que eu agradeça em especial pela amizade, pelos diálogos
Capa estimulantes e pelas críticas profundas a este projeto a Hedda Ekerwald, Vikki
Carlos Clémcn Bell, Angela McRobbie, Les Back, Horni Bhabha, Stuart Hall, Greta Slobin, Mark
Slobin, Flemming Rogilds, S. M. Islam, Gloria Watkinse VronWare.Foi importante
CONSELHO EDITORIAL receber o,incentivo e apoio de Chris Connery, Jim Clifford, bell hooks, Mandy
Eduardo Penuda Caâizal
Norval Baitello Júnior Rose, Brenda Kelly, Jon Savage, Michael Denning, Patrick Wright, Hazel Carby,
Maria Odila Leite da Silva Dias Isaac Julien, Beryl Gilroy, Arme-Marie Fortier e lain Chambers.
Celia Maria Marinho de Azevedo
Gustavo Bernardo Krause David Okuefuna, Everlyn Nicodemus, Kristian Romare, Dr. Tricia Bohn,
Maria de Lourdes Sekeff Monique Guillory, Mandy Rose outra vez, Joe Sim, Patrick Hagopian, Graham
Cecilia de Almeida Salles
Pedro Jacobi Lock/Taylor, Ben Karpf Juergen Heinrichs, Stephanie Sears e Robert A. Hill
Lucrécia D' Alessio Ferrara
ajudaram-me com itens específicos de informação, livros, fitas, vídeos, artigos,
etc. Preciso também agradecer a Roman Horak pelo seu auxílio em encontrar o
J' edição: agosto de 2007
túmulo de Jean Améry em Viena; Jaqueline Nassy Brown pelo material referente
© Paul Gilroy a Josef Nassy; Nina Rosenblum e Bill Miles pela informação sobre o destino
lamentável de seu importante filme Liberators; Benita Ludmer pelos recortes da
ANNABLUME editora. comunicação imprensa francesa sobre o pogrom de outubro de 1961 e o julgamento de Papon:
Rua Padre Carvalho, 275 . Pinheiros
05427-100. São Paulo. SP. Brasil
e Larry Grossberg pelo envio de material sobre os campos POW para soldados
1'e1. e Fax. (Oll) 3812-6764 - Televendas 3031-9727 alemães na Carolina do Norte. Val Wilmer, Laura Yow, Jayna Brown, Amanda
www.annablume.com.br
Sebesteyen e Nikolas Rose por terem todos eles me passado materiais de suas
I ENTRE CAMPOS" Nações, Culturas e o Fascínio da Raça I

próprias coleções e projetas de pesquisa. Este livro ficou melhor devido à sua
bondade.
Marcus Gilroy Ware e Cora Gilroy Ware foram eficientes conselheiros
culturais e auxiliares de pesquisa, em especial quanto a assuntos do setor televisivo
de infoentretenimento. Eles me ajudaram bem mais do que perceberam e quero
agradecer a eles por sua paciência, sua percepção angular, sua sensibilidade sensata
e sua impaciência com a raciologia, bem como a sabedoria precoce repartida por
eles.
Deveria também expressar minha gratidão às pessoas que compareceram
às minhas palestras e me envolveram em debates em várias universidades e outros
institutos onde apresentei inicialmente estes argumentos. As mais importantes destas
sessões aconteceram em De Balie, em Amsterdam; no Departamento de Inglês
da Universidade da Pensilvânia; no Centro de Estudos Culturais da Universidade
da Califórnia em Santa Cruz; na Universidade de New Hampshire; Universidade
de VIena; Universidade de Stanford; Volksbuhne em Berlim; no congresso Estudos
Étnicos e Raciais da LSE; e na sessão estimulante organizada por Diggante em
Estocolmo.
Quero agradecer meus colegas e alunos em Goldsmiths e em Yale. Minhas
idéias foram testadas e refinadas em conversas com Anita Pilgrim, Eamon
Wright, Yoshitaka Mori, Hiroki Ogasawara, Lez Henry, Giovanni Porfido e
Colin King. Agradecimentos especialmente calorosos pelo auxílio prático de
Mary Clemmey,
Os sons que ampararam este projeto vieram basicamente do modernismo
crioulo de Gonzalo Rubalcaba. Ele é nitidamente o maior pianista com capacidade
improvisadora da história do que se chama "jazz" e a sua criatividade oblíqua é
Para Vron Ware
uma fonte dupla de admiração e incentivo para se alcançar algo fora do comum.
e em memória de meu amigo Nick Robin,
Ouço uma mistura semelhante de espírito insurgente e disciplina incansável no
ambos companheiros cosmopolitas ruidoso:
trabalho igualmente inspirador de Edgar Meyer, Victor Wooten, e de seu irmão
Future Man, Marcus Miller e, é claro, Anthony Jackson. Ainda que com o risco de
parecer sentimental, gostaria de pensar que os fantasmas de Eric Gale, Richard
'Iee e Dennis Bmmanuel Brown tenham deixado traços identificáveis em algum
lugar aqui.

I 6 I
SUMÁRIO

Prefácio à Nova Edição de 2004 11

Introdução 19

I
OBSERVÂNCIA RACIAL, NACIONALISMO E HUMANISMO

1 A Crise da "Raça" e da Raciologia 29


2 Modernidade c Infra-humanidade 77
3 Identidade, Pertencimento e a Crítica da Similitude Pura 123

II
FASCISMO, CORPORIFICAÇÂO E
CONSERVADORISMO REVOLUCIONÁRIO

4 Hitler Vestia Cáqui: Ícones, Propaganda e Política Estética 165


5 "Depois que o Amor se foi": Biopolítica e o Declínio da
Esfera Pública Negra 211
6 As Tiranias do Unanimismo 249

III
O NEGRO PARA O FUTURO

7 "Tudo sobre os Benjamins": Negritude Multicultural- Empresarial,


Comercial e Oposicionista 287
8 "Raça", Cosmopolitismo e Catástrofe 329
9 "A Terceira Pedra do Sol": Humanismo Planetário e Universalismo
Estratégico 383
PREFÁCIO À
NOVA EDIÇÃO DE 2004

A OPORTUNIDADE de apresentar a nova edição de Entre Campos me vem


em boa hora para explicitar meus propósitos ao escrevê-lo, bem como sublinhar
alguns de seus argumentos centrais à luz de desenvolvimentos posteriores à sua
primeira publicação. Entre Campos sugere que podemos discernir três processos
interligados mas contrastantes, os quais podem ser separados para esclarecer a
novidade com que atualmente as divisões raciais são tanto invocadas como
vivenciadas de formas distintas em vários lugares. Em primeiro lugar, precisamos
considerar a extensão e o caráter da cultura de consumo em suas várias conexões
pouco examinadas com a revolução cultural do fascismo. Em segundo lugar,
devemos examinar o impacto do genoma e da biotecnologia, e por fim, levar em
consideração o golfo sempre crescente entre partes do nosso planeta, algumas
superdesenvolvidas e outras nem sempre em desenvolvimento. Estas dinâmicas
moldam uma conjuntura histórica que muda os termos do discurso racial e transforma
o que está em jogo em política racial.
Espero que tenha ficado claro que o enfoque central formou-se a partir de
uma preocupação com a política do racismo, tomando-se com isso mais fácil reunir
estas questões divergentes e examinar sua inter-relação. Afirmar a existência de
um problema de fundação como aquele continua a despertar controvérsias. Muitos
irão contestar a idéia de que o racismo pode gerar uma forma particular de política,
ou mesmo que ele pode de fato transformar os processos políticos oficiais em algo
mais grosseiro, mais vicioso, hierárquico e predisposto à brutalidade. É muito mais
provável que as ortodoxias escolásticas considerem que o racismo deva ser
abordado como um fenômeno pré ou pós-político, preferindo dirigir sua atenção às
profundezas da psicologia individual em lugar de quaisquer padrões sociais, culturais
e históricos. Assim, qualquer aspiração a uma compreensão mais abrangente de
como funciona o racismo pode ser direcionada para preocupações mais estreitas
representadas pela necessidade de regular o comportamento racial. Isso, por seu
turno, toma-se uma questão controversa, mas basicamente correta para a política
social bem intencionada.
I ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça J I PAUL GILROY I

Diante de tais dificuldades, minha intenção original era me opor aos hábitos roporcionados pela raça parecem especialmente atraentes após os choques da
interpretativos de manter raça e política bem apartadas. Trabalhando de um ângulo injustiça e da vitinúzação. É muito tentador imaginar que o fascismo é um perigo
que eu esperava fosse incomum, mundial, minha expectativa era investigar o formato que pode afligir apenas os europeus e seus descendentes coloniais ou pretender
político e o carãter da política negra no século vinte e forçar o reconhecimento do que se tornar enamorado do poder seja uma armadilha apenas para os poderosos
racismo como uma questão de política. Fiz isso ao identificar elementos de uma e privilegiados. Contudo, a busca daquela inocência perene que envolve a renúncia
genealogia da políticaracializada, a qual poderia ligar ahistôria dos impérios europeus tanto da política como da ética também pode colher numa armadilha, confundir e
e colónias aos processos políticos representados nas metrópoles. Essa estória distrair os fracos e marginais. A própria experiência da opressão pode seduzi-los a
contribui para uma contra-história maior da modernidade, a qual a compreende em acreditar que sejam imunes aos perigos e que precisam de fato dos atalhos da
suas formas prontamente racializadas e também abarca os modos com que várias solidariedade proporcionada pelos absolutos raciais e étnicos. Aqueles que sabem
gerações de intelectuais atlânticos negros - particularmente Prantz Fanon - melhor, podem mesmo se confundir em termos de concepções fascistas do corpo,
adaptaram a economia moral do anti-fascismo de meados do século à agenda do eu e do mesmo sem compreender a sua origem. Estas são algumas das graves
diferencial que se esboçou sob as diretrizes de "emancipação", "ascensão", e possibilidades que procurei identificar, e talvez corrigir. Os perigos representados
então, "libertação nacional". Esta história de contestação acarreta pesadas demandas pela grande fraternidade dos que buscam a pureza são compreendidos aqui como
conceituais para quaisquer leitores relutantes em ver o racismo, o nacionalismo e o aspectos rotineiros de uma experiência moderna que não podem ser confinados
fascismo como parte de uma única e complexa estrutura de solidariedade, sentimento pela raça, etnicidade ou cor.
e pertencimento modernos. Vejo aquela formação profundamente problemática Espero que a minha ênfase fora de moda sobre o fascismo seja mais
como associada à ecologia institucional distintiva dos Estados nacionais. Liga-se compreensível agora que as culturas do spin [manipulação de informações],
às variedades de hierarquia reproduzidas por eles, assim como às formas de governo branding [marcas de produtos], psy-ops [operações psicológicas] e info-war
amistosas em relação à raça que eles praticaram tanto em casa como no [guerra tecnológica] estão mais entrincheiradas e mcontornãveis do que antes. Os
estrangeiro. A atenção em relação a isso culmina com a idéia de que os processos fundamentalismos competidores, representados de um lado pelo Neo-Liberalismo
excepcionais que associamos à história do fascismo representam algo como um com sua saturada cultura de consumo e de outro pelo niilismo militarizado e ascético
perigo universal e estão sempre muito mais próximos do estado normal das coisas dos Islamitas, estão encerrados naquilo que parece ser um conflito perpétuo operando
do que gostaríamos de imaginar. em proporções globais sem precedentes. Compreender esta escolha enfraquecedora,
Entre Campos explora a proposição de que esta proximidade apresenta que se dá em termos efetivos entre imperialismo de consumo e protofascismo
perigos especiais para as comunidades políticas do mundo atlântico negro, as quais fundamentalista, requer atenção à longa revolução política do século XX, a qual foi
têm as suas próprias histórias específicas em matéria de conservadorismo perpetrada pelos fascistas ao interromperem a política precisamente por meio da
revolucionário, liderança carismática, ultranacionalismo e vida social militarizada. sua ênfase em relação à raça, à nação e ao povo. Sejam lá quais forem os perigos
Esta ênfase trouxe perplexidade para alguns leitores da primeira edição. Minha especiais que esta mudança de época agora apresenta para as minorias racializadas
posição básica era simples: o fato de as pessoas serem vítimas do terror racial não e étnicas, há ainda um segundo legado destrutivo, visível em toda parte nos cultos
necessariamente as afasta da idéia corrosiva da identidade racial ou as inibe em da juventude e do corpo, nos refinamentos tecnológicos do ínto-war, e sobretudo,
sua busca de pureza. As certezas proporcionadas pela raça podem ser abraçadas na nacionalização e racialização gerais da cultura, política e história que compõem
como uma resposta à instabilidade e à ansiedade que as minorias experimentam na o centro da vida social nos países superdesenvolvidos.
condição de sujeitos modernos e como objetos do poderracializado, do conhecimento Há uma abordagem liberal, antiga e sem atrativos, sobre a topografia da
e da regulamentação governamental. Assim como a força advinda da fantasia ideologia política moderna que aponta para um lugar onde os extremos da esquerda
confortante da hiper-similaridade e dos atrativos da inocência incorrigível, a qual e da direita convergem no sentido da abolição totalitária da democracia. Oponho-
confere benefícios morais reais nestes dias, os atalhos da solidariedade

I 12 I 131
I ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascinio da Raça I I PAUL GILROY I

me a essa visão por ser simplista, mas minha leitura sombria da política de raça e É claro, as pessoas nos Estados Unidos estão muito mais propensas do que os
nação do século XX me faz tender a aceitar que ela aponte para algo importante a britânicos a aceitar a "raça" como parte do funcionamento de sua cultura política.
se beneficiar possivelmente de futuros trabalhos de pesquisa. Há certamente Posso mesmo concordar que os britânicos assim como outros europeus têm muito a
questões importantes levantadas pela dissolução de noções fixas ou ultraintegradas aprender com aquela aceitação da "raça", desde, é claro, que isto signifique um
de Esquerda e de Direita, pelo quase domínio de táticas populistas e pelo retorno reconhecimento dos danos causados pelo racismo e não se tome uma resignação
de concepções mecânicas de solidariedade nas quais os seguidores de um projeto cega em relação aos efeitos da hierarquia racial. Em essência, minha opinião é que
político comum se tornam tão semelhantes que se parecem com unidades o fato de se aceitar a proeminência dos processos sociais e políticos, que os Estados
inteiramente intercambiáveis programadas para preencher suas missões raciais, Unidos conhecem e tomam como um fenômeno natural chamado "raça", não contribui
nacionais e étnicas. Diante da perda de orientação gerada por esta confusão da em nada para se lidar com as múltiplas mistificações moldadas pelo racismo na
similitude com solidariedade, sugiro que se levarmos o racismo mais a sério do que cultura política daquele país ou de qualquer outro. Deixe-me ser claro. Minha discussão
comumente, poderemos contribuir para iluminar os modos como são engendradas sobre a cultura popular negra nos Estados Unidos não deve ser lida como se eu
as interseções aparentes de esquerda e direita, de democracia e fascismo, e também estivesse condenando os afro-americanos como "essencialistas''. Isto não fazia parte
a maneira de evitar a sua repetição. Ofereço um conjunto maior de lealdades em do meu argumento e embora eu resida nos Estados Unidos, o seu apego à identidade
relação à humanidade e à idéia de um mundo destituído de hierarquia racial. Estas racial é um assunto interno deles, como eles próprios não deixaram às vezes de me
esperanças proporcionam um meio alternativo de galvanizar a oposição para a lembrar. Estou preparado, porém, para considerar o que está em jogo agora nesse
ação. Um outro mundo é possível e ele não é compatível com noções de diferença seu processo de ser e tomar-se americanos. Gostaria de desejar o melhor das sortes
racial advindas do século XVIII. a quem quer que aspire àquele modo de pertencimento patriótico, ou que queira
É preciso repetir que o significado de todas as adesões à raça tem sido assegurar um lugar seu no seio nutriente da comunidade nacional dos Estados Unidos
alterado decisivamente por uma série de outros desenvolvimentos. Eles incluem o pós-H-O. A sua decisão histórica terá efeitos importantes para além do seu território.
impacto das mudanças científicas e tecnológicas em vários campos e uma mudança Arrisca-se com isso a reduzir o debate sobre a política racial a uma briga de farrulia
para novos tipos de cultura visual, as quais reencarnam as diferenças raciais, e a um romance de famflia. O resultado dessas deliberações é ainda mais urgente
tornando-as significativas de um modo sem precedente numa nova escala global. agora do que na época em que Entre Campos foi escrito.
Nessas condições, as especificações derivadas dos Estados Unidos quanto ao que Pode bem ser que a guerra ao terror e a resultante "colisão de civilizações"
acarreta o conflito racial estão sendo projetadas pelo mundo afora como resultados acabe exigindo um comprometimento apaixonado e total por parte das minorias
não-específicos. Aquelas contingências norte-americanas tornam-se largamente raciais daquela nação em relação a um modo de dominação imperial e consciente
compreendidas como intrínsecas às operações gerais da divisão racial. Aqui pelos Estados Unidos. Contudo, a tradição do pensamento dissidente com a qual
encontramo-nos Com outro problema substancial pendente do argumento que se construí os argumentos que se seguem exige algo mais dos afro-americanos do
segue. Os Estados Unidos devem agora ser vistos como o centro global de política que continuidade de seus esforços sequiosos de enxergar o mundo dividido por
racial, uma fonte singular de códigos e significados que dão vida à raça em outros entre as fendas de seu Estado nacional recém-fortifieado. Pode mesmo ser que se
lugares, ou devem ser considerados tão somente como mais uma locação pós- peça a eles para compreender diferentemente a "raça" e suas lógicas políticas
colonial onde o saber tradicional em torno da raça , o absolutismo étnico, e a distintas como resultado das demandas de uma perspectiva planetária re-configurada
segregação governam <\1' operações de uma economia fraturada e de uma política pela vontade de segurança ou mesmo invulnerabilidade, assim como pela
pública falida? Como deveremos avaliar as histórias de raça dos Estados Unidos unipolaridade e poder militar abrangente. Os negros dos Estados Unidos certamente
em relação aos exemplos tirados de outros lugares onde o racismo e a hierarquia terão de responder à re-divisão política do mundo dada pelo seu presidente, enquanto
racial operam diferentemente? Será que aquela versão de uma política racializada devem estar cientes de que quaisquer reticências serão interpretadas pela imprensa,
representa de algum modo o futuro de todas as pessoas na terra? governo e personagens patrióticos como uma forma de traição.

I 14 I I 15 I
I ENTRE CAMPOS :: Nações, CuLturas e o Fascinio da Raça I I PAUL 6ILROY I

Neste contexto, considero bem-vinda a chance de enfatizar que nunca foi investimentos no poder do corpo, os quais esmo numa proporção inversa à sua
minha intenção ignorar os inegáveis sofrimentos dos negros dos Estados Unidos relevância. Ao chamar atenção para isso, minha intenção não era trazer o impacto
nas mãos da supremacia branca, mas sim dizer claramente a eles e à formação da revolução biotecnológica em apoio de alguma assertiva ingênua e deslocada
emergente de europeus negros, que não deveríamos nos esquecer que é nossa sobre o progresso social e científico em direção a uma condição de inexistência de
responsabilidade histórica agirmos em solidariedade com os movimentos pós- raça. Ao contrário, embora a condição de inexistência de raça me atraia, temo que
coloniais por justiça e direitos humanos, os quais estão florescendo a partir do "sul" o impacto da biotecnologia sobre o caráter dos processos sociais e econômicos
global e compondo uma nova rede planetária em busca de uma democracia mais possa ser bem mais extenso do que isso, e Como já observei, acredito que novas
completa do que aquela apresentada anteriormente em formas codificadas de cor. hierarquias e conflitos acabem sendo criados, fazendo com que o mero ordenamento
Gostaria de pensar que ao invés de fazer proclamações fáceis em tomo da racial do mundo pareça insípido em comparação.
simples totalidade da cultura afro-americana, que, aliás, tanto deu ao mundo, eu Afora estes problemas históricos e conceituais, Entre Campos procurou
me empenhei em articular essa grande tradição às formas problemáticas com que devolver um sentimento utópico às discussões de raça e política. Defende-se aqui
ela tem sido mercadorizada e exportada para o resto do mundo, ou seja, como um um retorno à própria entonação de meados do século XX referente àquilo que
efeito e vetar de um novo império que permanece profundamente ligado a noções designamos de momento dos direitos humanos ou da UNESCO. Sejam quais forem
racializadas de poder, ordem, justiça, e atribuições de direito. Antes de concluir os problemas que possam ser percebidos na cumplicidade daquele argumento anti-
este tópico, quero sublinhar que o conceito de "raça" que circula atualmente nos racista com o poder excludente da Guerra Fria, o pensamento liberal tinha a
compêndios políticos afro-americanos contemporâneos não se refere à mesma virtude conspícua de tirar a luta contra a raça do futuro e trazê-la para o presente.
experiência de injúria e de dissimulação descrita, há mais de um século, por DuBois Aquele é o gesto arriscado que Entre Campos vem convidá-los a repetir.
sob o signo da "raça". Algumas reflexões sobre o lugar da raça nas relações de
classe pós-industrial podem ser usadas produtivamente para afiar este argumento.
Entre Campos afirma que as comunidades negras do mundo superdesenvolvido
tomam-se mais internamente divididas e apartadas por uma crescente desigualdade,
e seus membros mais privilegiados (que é muito mais provável que estejam a
competir economicamente com os brancos) desenvolvem interesses econômicos
e políticos distintos daqueles do negro pobre de quem, porém, eles dependem para
encontrar o seu sentido definidor do grupo racial como um todo. Tendem, portanto,
mais do que os pobres, a investir numa solidariedade racial barata e em causas
nacionalistas vazias no exato momento em que o mundo pode ser percebido como
já distanciado do alcance daqueles pronunciamentos ocos.
Outras questões podem ser ligadas a este problema histórico. A primeira é
o vocabulário surrado e controvertido através do qual os problemas de raça se
tornam aparentes para nós. Entre Campos oferece, em termos provisórios, uma
constelação alternativa de conceitos: raciologia, nanopolítica, infra-humanidade,
humanismo planetário que, conforme minhas esperanças, contribuiria para por a
discussão num outro patamar e para acelerar a desnaturalização da "raça", o que
ainda acredito ser uma tarefa de urgência. Minha opinião é que esta mudança de
orientação é necessária porque a política de raça parece realizar crescentes

I 16 I I 17 I
INTRODUÇÃO

À primeira vista pode parecer estranho que a visão do antí-sernita deva estar
relacionada à do negrofóbico. Foi meu professor de filosofia, nascido nas Antilhas,
quem um dia me lembrou disso: "Sempre que ouvir alguém agredir o judeu, preste
atenção, porque ele está falando a seu respeito". E descobri que ele estava
universalmente certo - com isso quis dizer que eu era atingido em meu corpo e meu
coração por aquilo que se fazia ao meu irmão. Mais tarde percebi que ele queria dizer
de um modo bem simples que um antí-semíta inevitavelmente um anti-negro.
é

Frantz Fanon

Os tempos modernos que W. E. B. Du Bois uma vez identificou como o


século da linha de cor já se foi. A hierarquia racial ainda está C01105CO. Com esse
enigma em perspectiva, este livro trata de algumas das contínuas tensões associadas
com a constituição de comunidades políticas numa fonna racializada. Os padrões
de conflito ligados à consolidação das linhas de cultura em lugar de linhas de cor
são também considerados, com uma preocupação específica em relação às
operações de poder que, graças às idéias de "raça", tornaram-se entrelaçados
com aquelas tentativas vãs e erróneas de delinear e subdividir a humanidade.
Entre Campos deveria ser lido como uma contribuição cautelosa em relação
a uma outra tarefa que muitas vezes parece impossível e equivocada. Isto envolve
o trabalho lento de tornar as mentalidades negras européias preparadas para os
riscos do século XXI. Essa obrigação grandiloqüente mas, enfim, provinciana,
complementa-se com uma certa invocação do anseio transitório daquilo que
provavelmente deveríamos denominar de "humanismo planetário". Os elementos
daquele estado da mente indefinível, aliados às histórias transnegras, não-raciais,
são imaginados aqui de um ponto de vista afirmativamente cosmopolita que desafia
a versão desses temas tal como têm sido apresentados no presente por ocultistas,
místicos e teóricos da conspiração. A paz perpétua está fora de cogitação sob as
ENTRE CAMPOS •• Nações, CuLturas e o Fascinio da Raça I I PAUL GILROY I

atuais circunstâncias; contudo, a diferença racial oferece um teste novo e oportuno em si mesmo não complicavam essa percepção. Eu não ousava perguntar muito a
para o caráter democrático de toda a imaginação cosmopolita nos tempos de hoje. esses reais veteranos sobre o que as suas guerras haviam acarretado. Quase não
Vejo-me obrigado a reconhecer uma motivação pessoal nesta atenção à se conversava com crianças sobre aqueles tempos.
relação entre "raça" e fascismo. Nasci em 1956, o ano da insensatez britânica em Li pilhas de literatura acumuladas por meus pais sobre a guerra, as suas
Suez e do levante húngaro contra a tirania soviética. Minhas primeiras e reais causas, o seu desenvolvimento e suas conseqüências. Fiz isso, não para brincar
apreensões geopolíticas aconteceram numa manhã fatídica em 1962 quando comecei melhor de guerra, mas por sentir uma obrigação de saber. O conhecimento sobre
a chorar sobre o meu prato de cereais por pensar que o mundo iria se acabar numa aquela guerra e seus horrores era central em relação a um acordo impronunciado
bola de fogo nuclear antes que eu pudesse voltar da escola para casa. Naquele que fizéramos com o mundo adulto. A memória do conflito era um dos primeiros
momento eu era, como então pensei, exatamente da mesma idade da Guerra Fria. lugares onde as margens da infância podiam ser detectadas. Após esses estudos,
O severo racionamento de alimentos havia terminado na Grã-Bretanha naquela em geral realizados em segredo, tive confiança, com aquele jeito impetuoso de
época, mas perduravam as sombras lançadas pela guerra e pela promessa não alguém aos dez anos de idade, de que havia compreendido o que acontecera.
cumprida de um Estado de bem-estar abrangente que se seguiu a ela. Lembro-me de ter ficado especialmente perplexo quando num final de semana,
Na infância podíamos ainda ver onde as bombas haviam caído. Minha própria durante uma caminhada de historiador através das áreas desoladas e destruídas
memória me diz que eu era uma criança militarista, mas isto deve ter sido uma pelos bombardeios às margens do rio, meu pai e cu encontramos a insígnia da
aflição de toda uma geração. Passei certamente a maior parte da minha infância União Britânica dos Fascistas - um jacto de luz dentro dum círculo - pintada
revivendo as glórias de II Guerra Mundial. Os arborizados limites ao norte de cuidadosamente num muro, lado a lado com a então tradicional injunção de Mantenha
Londres propiciavam os campos de batalha pelos quais eu fazia minhas tropas a Bretanha Branca. Perguntei a ele: os fascistas não eram o mesmo que os nazistas?
marchar e, em minha imaginação, alçava vôo com as aeronaves de combate da O que eles estavam fazendo aqui? Eles ainda estavam por perto? Como eles
Grã-Bretanha. Preferíamos esses jogos a outros passatempos alternativos como o podiam ser ingleses? Como pessoas inglesas podiam ser fascistas? Será que o
de caubóis e índios porque nos deliciávamos com o fato de que o certo estava seu estimulante jacto de luz era da mesma espécie da odiosa, mas fascinante
sempre do nosso lado. Os nossos inimigos sem rosto e imperdoáveis eram os suástica?
nazistas de Hitler e, inspirados pelo que líamos em gibis como Eagle e Swift, assim O empenho de meu pai em me tranqüilizar sobre tudo isso não me convenceu.
como pelo material mais forte que se encontrava em lugares como a barbearia, Naquela época eu me sentia meio em desvantagem quando outras crianças
nós os pilhávamos e trucidávamos onde quer que fosse possível localizá-los: em recontavam com orgulho as peripécias de seus pais nos tempo da guerra. Quando
parques, jardins e terrenos baldios, ou nos abrigos anti-aéreos abandonados que a guerra foi declarada, meu pai então um estudante de vinte anos de idade decidiu
eram desenterrados à nossa volta. Talvez isso possa parecer uma atividadc excêntrica por à prova um outro caminho. Após afirmar que nenhum governo poderia compeli-
para um menino negro, mas era algo no todo visto como sem problemas. Jamais lo a matar um outro ser humano, tornou-se um opositor consciente, assumindo
um amiguinho branco nessas brincadeiras questionou o nosso direito - nós, ainda vários tipos de trabalho de guerra sem nenhum brilho e que o tornaram vulnerável
não tomados pós-coloniais - de brincar daquele jogo. ao ódio e ressentimento de muitos. Sua postura baseada em princípios foi
Sabia desde a mais tenra idade que funcionários das Índias Ocidentais e de interpretada como covardia, tendo ele sido informalmente punido por isso. Por fim,
outras colônias haviam participado bravamente da guerra contra o nazismo. Eu ele e eu vislumbramos numa caixa empoeirada de vidro no andar superior do Museu
admirava e observava os retratos de meu tio e minha tia em seus uniformes dos de Guerra Imperial, um distintivo de identidade funcional tal como aquele que ele
tempos de guerra que pendiam como uma relíquia num canto de sua sala de visitas. havia usado enquanto vistoriava prédios atingidos por bombas cm busca de
Sabia que ele havia tripulado um avião de bombardeio, mas era mais provável que evidências de ataque químico. Naquele momento eu me confundi ao sentir que
minha percepção do potencial romântico a envolver aquela história heróica fosse esse distintivo se comparava pobremente com os capacetes, punhais e balas alemãs,
melhor preenchida pelo Capitão W. E. Johns e sua pena. Os detalhes do conflito que eram os troféus de maior prestígio na economia simbólica da recordação.

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I ENTRE CAMPOS .. Nações, CuLturas e o Fascinio da Raça I I PAUL GIlROY I

Minha mãe, em todo caso mais jovem, também não me satisfazia como uma fonte nacionalismo beligerante, mas foi apenas mais tarde na década de 1970 que as
de saberes sobre a guerra. É certo que o conflito havia sido registrado naquilo que condições mudaram e um novo canto skinhead - o "Sieg heil" - tornou as suas
era então a Guiana Britânica. Embora ali houvesse circulado a idéia de que a esperanças unanimistas explícitas quando não claras por inteiro. Naquela época a
vitória alemã significaria o restabelecimento da escravidão, ao mesmo tempo em paisagem cosmopolita da minha infância londrina havia se expandido para incluir
que o cine-jomal transmitia a propaganda imperial, a guerra não havia sido central um número substancial de refugiados e exilados sul-africanos, cujas estórias de
na vida dela antes da emigração. ativismo anti-racista causaram novas reviravoltas em minha desconcertante
O mundo da minha infância incluía o mistério incompreensível do genocídio compreensão da raciologia. Em que sentido, pensávamos, Hendrik Verwoerd era
nazista. Eu me voltava para isso compulsivamente como se fosse um dente mole um fascista? Enquanto aquela pergunta permaneceu sem resposta em minha mente
dolorido. Isso parecia ser o fulcro da guerra, e seus sobreviventes estavam todos à de adolescente, a energia nacional externa do poder negro e o momentum da
nossa volta. Suas tatuagens me intrigavam. Seus filhos eram nossos amigos de contra-cultura de finais dos anos 1960 desferiam uma vez mais de um modo ruidoso
escola e de folguedos. Foram eles que aconselharam nossa famflia sem carro a e plausível a acusação de fascismo, dessa vez contra o imperialismo americano e
não incorrer nos prazeres do transporte em volkswagens e que nos introduziram a sua política interna.
no fino deleite de um bolo de sementes de papoula. Também ficava claro que As batalhas políticas sobre o significado dos neofascistas locais e sua
algumas famílias judias haviam aberto suas casas aos estudantes das Índias ideologia ultranacionalista irromperam de novo no movimento anti-racista de massa
Ocidentais que devido à barreira de cor haviam sido impedidos de firmar contratos dos anos 1970. Parece algo extraordinário agora, mas a oposição a eles dividia-se
de imóveis de aluguel comercialmente rentáveis. Lutei com a percepção de que o profundamente devido aos desacordos sobre o lugar da "raça" em seu pensamento.
seu sofrimento estava de algum modo conectado com as idéias de "raça" que Para tornar as coisas ainda piores, o populismo daquilo que afinal de contas era
constrangiam meu próprio mundo com a ameaça de violência. Michael Franks, uma liga anti-nazista parecia negligenciar o racismo rotineiro do Estado britânico e
meu amigo de escola que vestia um xale de oração sob as roupas, apesar do seus organismos institucionais: polícia, moradia e educação. Essa intervenção
ridículo que caía sobre ele quando nos trocávamos para a aula de educação física, imaginativa rompeu com o laço potencial entre os jovens da Europa e o movimento
era especialmente crítico em seus diagnósticos do anti-semitismo fortuito de alguns racista de massa. Os neofascistas foram relegados para as margens, mas agora
dos nossos professores ~ todos eles, é claro, haviam se distinguido nos negócios eles estão em marcha de novo pela Europa. Fora de suas fortificações, o
viris e reais da guerra contra os alemães do mal. irracionalismo autoritário, o militarismo e o genocídio tornaram-se parte do modo
Sei agora que essas contradições constituíram os primeiros quebra-cabeças como as pessoas em desespero respondem ao impacto destrutivo da globalização
dos quais derivou este projeto. Foram complementados e refinados quando, em suas vidas.
enquanto parte da nova base de representação da mídia global em favor das lutas Enquanto a memória viva se extingue, a idéia de uma guerra justa anti-
pelos direitos civis da América negra, vimos a suástica familiar tremulando nazista tem sido recobrada, comemorada e disputada, mas precisamos fazer
novamente: desta vez ao lado das bandeiras dos confederados e das cruzes perguntas duras e desconfortáveis sobre as formas que esta comemoração assume.
incendiadas do segregacionismo afirmativo, não obstante o seu declínio. Este Será que é a presença de não-brancos - caribenhos, afro-americanos e outros
também foi um desafio interpretativo. Que "teoria" da diferença racial, do combatentes coloniais - que está sendo apagada das narrativas heróicas que são
preconceito racial, poderia explicar esses padrões transculturais de identificação? produzidas nesta época, a era das apologias e reparações retroativas? Antes que
Os delinqüentes juvenis que me aterrorizavam na infância e seus sucessores, os essa memória morra, precisamos inquirir sobre o impacto que a guerra contra o
skinheads, que me perseguiam durante minha adolescência, não invocavam o fascismo e o pensamento de raça nazista teve sobre o modo como os intelectuais
nome ou a causa de Hitler. Fazer então algo assim teria significado uma traição negros compreenderam a si mesmo, sua condição e o destino da cultura e da
impensável às compactas identidades inglesas, celebradas e defendidas por eles civilização ocidental. Que papel as suas estórias deveriam ter se pudéssemos
contra as invasões estrangeiras. Eles falavam e agiam em nome de um outro escrever uma história diferente desse período, uma história em que a eles se

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I ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça I I PAUL GILROV I

permitisse constar na mesma moldura do heroísmo anti-nazista oficial? Este livro esclltor martinicano Edouard Glissant. O uso criativo deste termo por ele suscita
não é ainda essa história, mas espero que seja uma palie da sua pré-condição. uma preocupação com o que se argumentou acima juntamente com o interesse
Mais importante ainda, que lugar a história e a memória dos conflitos passados crítico em abordagens comparativas e interconectadas da história e da cultura e
com o fascismo deveria ter no engendramento de princípios éticos mínimos que também a atenção naquilo que tem sido relacionado em ambos os sentidos da palavra:
poderiam constituir as bases para um multiculturalismo significativo? A resposta a parentesco e narrativa. A abordagem da questão da relação dentro deste espírito
essa questão nos conduz a um confronto inicial com a idéia de "raça" e as teorias requer uma drástica ruptura com todas as obrigações atualmente em moda em sua
raciológicas que emergiram a partir dela. celebração da incomensurabilidade e da torcida pela identidade absoluta. O lugar
Portanto, é de uma maneira indireta que este ensaio procura lidar com as preeminente das culturas negras nas festividades brilhantes que se tem preparado
pressões e demandas da vida política e social multicultural onde, conforme afirmo, para acompanhar as fases recentes da globalização do capital e da consolidação do
a velha e moderna idéia de "raça" não pode ter nenhum lugar eticamente defensável. consumismo não é para mim uma surpresa ou uma fonte de alegria genuína. Minha
Se essa linha de pensamento soa familiar em demasia, é preciso notar que ela opinião é que este triunfo aparente claramente exibe padrões originérios do fascismo
conclui, embora não possa completar, a consideração crítica do nacionalismo e europeu, permanecendo manchado pelas mesmas ambigüidades, em especial quando
seus modos de pertencirnento realizada em alguns de meus trabalhos anteriores. se invoca a "raça". Sugiro não apenas que essas formações precisam ser
Desta vez a intenção é esclarecer e dar curso à discussão das histórias interculturais reconhecidas como tendo sido marcadas pelas suas origens assustadoras na
feita anteriormente de uma forma provisória. Os interesses já de longa data tiveram estetização e espetacularização que substituiu a política com fantasias mais fãceis e
de se combinar com prioridades mais urgentes. Sua transformação se deu em unanimistas, mas também que elas retém o poder de destruição de qualquer
especial devido às minhas apreensões sobre a crescente ausência das considerações possibilidade de mutualidade humana e democracia cosmopolita.
éticas naquilo que costumava ser denominado de ação e pensamento anti-racista. Este interesse nos legados latentes, e raramente reconhecidos da grande
A revitalização das sensibilidades éticas nesta área exige que nos afastemos do revolução cultural do fascismo constitui um tema maior no que se segue. É apenas
vocabulário embaciado do anti-racismo, retendo ao mesmo tempo muitas das suas um exemplo de como o argumento abaixo se dirige para diversos problemas políticos
esperanças. de ordem mais geral, não associados comumente com as teorias críticas de "raça".
Este entrelaçamento de preocupações é parte da resposta que se tenta Oponho-me à relutância em voga de fazer face às diferenças fundamentais
oferecer adiante aos sentimentos e estilos autoritários e anti-democráticos que se demarcadas na cultura e história ocidental pela emergência e entrincheiramento
sucederam no ultranacionalismo do século XX. Estou preparado para aceitar que do poder biopolítico enquanto meio e técnica de administração da vida de populações,
eles tenham figurado mesmo em culturas políticas negras constituídas no momento Estados e sociedades. Sugiro que esta recusa perniciosa tem estado associada de
em que as pessoas vitimizadas põem-se em marcha em busca de reparação, perto com uma resistência igualmente problemática a qualquer insinuação de que
cidadania e autonomia. Foi com muita freqüência nesse século que essas pessoas deve haver ligações entre aqueles desenvolvimentos modernos característicos e a
encontraram apenas o mais raso conforto e uma distração passageira no mesmo prioridade fundamental investida na idéia de "raça" ao longo do mesmo período.
repertório de poder que produziu os seus sofrimentos em primeiro lugar. Meu Ao desafiar as respostas negativas que desconsiderariam a força completa e
desagrado permanente em relação aos absolutismos étnicos que ofereceram rápidas constitutiva das divisões raciais, meu intento foi conferir um valor maior às histórias
fixações étnicas e pseudo-solidariedades baratas COmo um bálsamo inadequado cosmopolitas e às experiências transculturais de modo que as aspirações iluministas
para a dor real, significa que eu não considero o contato com a diferença cultural pudessem acabar se transformando no sentido de uma maior penetração e, portanto,
somente como uma forma de perda. As suas interações inevitáveis não são de uma autoridade maior. Meu ponto de vista fundamental é que a promessa do
abordadas aqui nos termos do risco elementar em que cada identidade discreta e seu acabamento em alegres formas não eurocêntricas apenas pode ser vislumbrada
lacrada é supostamente colocada pelas exigências destrutivas da relação após percorrermos as histórias de extremidade associadas com os raciocínios brutais
"transétnica" ilegítima. Torno de empréstimo esse termo crítico do trabalho do da raciologia.

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I ENTRE CAMPOS" Nações, Culturas e o Fascínio da Raça I

Este ensaio divide-se em três seções sobrepostas. A primeira parte lida com
as absrrações-chave, "raça", pcrtencimento e identidade, que organizam o
argumento como um todo. O tom aqui é utópico, mas isto não deveria encobrir os
seus propósitos práticos. Parte-se da idéia de que o determinismo genético e as
lutas nanopolíticas da era biotech transformaram o significado da diferença racial.
Esta nova situação exige uma crítica renovada do pensamento de raça. Também
requer recursos éticos que possam ser tirados de histórias de sofrimento,
especialmente da memória da guerra de 39-45, reconceitualizadas numa escala
distinta. Os modos de pertencimento articulados através de apelos ao poder do I
território soberano, e aos laços das culturas exclusivas de raiz, são contrastados OBSERVÂNCIARACIAL,
com as diferentes solidariedades translocais que têm sido constituídas pela dispersão NACIONALISMO E HUMANISMO
e pelo estranhamento da diáspora.
Na Parte II, a atenção se volta para os aspectos culturais da revolução Como a raça não é uma mera palavra, mas uma
fascista. Para começar, pede-se ao leitor que considere alguns dos seus traços coisa orgânica viva, segue-se como um fato lógico que
perturbadores no presente, e em segundo lugar, que veja onde e como eles ela nunca permanece estacionária; ela se enobrece ou
penetraram nas culturas atlânticas negras em seu movimento rumo à globalização. degenera, desen vai ve-se nesta ou naquela direção e
Esta ordem comercial e política é cada vez menos sensível aos códigos raciais de permite o declínio desta ou daquela qualidade. Isto é uma
tempos passados, tendo inesperadamente investido o corpo negro de um novo lei de toda vida individual. Mas a firme união nacional é
prestígio. As culturas atlânticas negras não estão sendo especificadas em termos o meio mais seguro de proteção contra o descaminho:
de uma avaliação ríspida e negativa; de fato, as suas formas vernaculares têm significa a memória comum, a esperança comum, o
proporcionado uma oposição alegre, jocosa e plebéia que o fascismo não pode sustento intelectual comum; fixa com firmeza o laço de
subordinar. Meu ponto de vista é outro: se o ultranacionalismo, o fraternalismo e o sangue existente e nos incita a torná-lo sempre mais
militarismo podem se incrustar de um modo não identificável entre os descendentes próximo.
de escravos, eles podem peneirar em qualquer lugar. A vitirnizaçâo passada não
garante nenhuma proteção contra a atração da uniformidade automática pré-política. HOUSTON STEWART CHAMBERLAIN
A Parte III investiga os componentes de uma resposta cosmopolita aos
contínuos riscos do pensamento de raça. Argumenta-se aqui que as teorias ocultas,
militaristas e essencialistas da diferença racial que são tão populares na atualidade
deveriam ser vistas como sintomas de uma perda da certeza sobre a "raça". O seu
poderoso apelo pode ser repudiado tão somente se quebrarmos o pulso restritivo
da história nacionalista e de seu passado congelado sobre as nossas imaginações
políticas. Apenas assim poderemos nos reorientar para o futuro.

I 26 I
1
A CRISE DA "RAÇA" E DA RACIOLOGIA

Na verdade, este é o caso em que a organização social e política humana é um reflexo


do nosso ser biológico, pois, afinal de contas, nós somos objetos materiais biológicos
que se desenvolvem sob a influência da interação de nossos genes com o mundo
externo. Não é decerto o caso da nossa biologia ser irrelevante para a organização
social. A questão é: que parte da nossa biologia é relevante?

RICHARD LEWONT1N

Uma revolução genuína de valores significa afinal que as nossas lealdades devem
torna-se ecumênicas em vez de seccionais. Toda nação deve agora desenvolver
uma lealdade sobrepujante em relação à humanidade como um todo para preservar
o melhor de suas sociedades individuais.

MARTIN Lun-IER KING, JR.

É IMPossíVEL negar que estamos vivendo uma profunda transformação na


maneira pela qual a idéia de "raça" é entendida e praticada.. Subjacente a isso, há
outro problema, possivelmente mais profundo, que surge da mudança nos
mecanismos que governam como as diferenças raciais são vistas, como elas
aparecem para nós e incitam identidades específicas. Em conjunto, estas condições
históricas abriram rachaduras na prática de "raça", criando uma crise para a
raciologia, o saber que conduz as realidades virtuais de "raça" a uma vida funesta
e destrutiva.
Quaisquer oportunidades para uma mudança positiva que surja desta crise
acabam circunscritas pelos efeitos duradouros de catástrofes passadas. A raciologia
saturou os discursos nos quais circula. Não pode ser prontamente resigniflcada ou
dessignificada, e imaginar que seus sentidos perigosos possam ser rearticulados
com facilidade em formas benignas e democráticas seria exagerar o poder de
ENTRE CAMPOS :: Nações, Cutturas e o Fascínio da Raça I 1 PAUL GILROY I

interesses de teor crftico e oposicionista. Em contraste, os atas criativos envolvidos Historiadores, sociólogos e teóricos da política nem sempre perceberam o
na destruição da ~ciologia e na transcendência da "raça" são mais do que significado dessas contra-culturas modernas, por vezes escondidas, formadas em
garantidos pela meta da democracia autêntica, conforme eles apontam. A vontade experiências longas e brutais de subordinação racializada através da escravidão e
política de liberar a humanidade do pensamento racial deve ser complementada do colonialismo. As tradições menores e dissidentes que têm se constituído contra
por razões históricas precisas de por que essas tentativas valem a pena. A primeira as disparidades em meio ao sofrimento e às espoliações são subestimadas pelos
tarefa é sugerir que a morte da "raça" não é algo que deva ser temido. Este pode ignorantes e indiferentes, assim como por aqueles que lhes são ativa~ente hostis.
ser mesmo um argumento difícil de se impor. Por um lado, os beneficiários-da Alguns principiantes, que decerto deveriam conhecer um pouco mais, até mesmo
hierarquia racial não querem abrir mão de seus privilégios. De outro lado, as pessoas rejeitaram e desprezaram essas formações como pouco respeitáveis, nobres ou
que têm sido subordinadas pelo pensamento racial e suas estruturas sociais distintivas puras. De qualquer maneira, as culturas vernaculares e os movimentos sociais
(nem todas são claramente codificadas pela cor) vêm empregando há séculos os obstinados, construídos com base em suas forças e tãticas, contribuíram enquanto
conceitos e as categorias de seus dominantes, proprietários e perseguidores para -- importantes fontes morais e políticas para as batalhas modernas em busca de
resistir ao destino que a "raça" lhes reservou e dissentir do valor ínfimo conferido 'liberdade, democracia e justiça.' A influência poderosa dessas culturas e
às suas vidas. Sob as mais difíceis condições e com base em materiais imperfeitos, movimentos imprimiu sua marca numa cultura popular crescentemente globalizada.
que eles com toda certeza não escolheriam caso tivessem tido a possibilidade de Originalmente ajustadas pela situação aflitiva da escravidão racial, essas culturas
escolher, esses grupos oprimidos construíram tradições complexas de política, ética, dissidentes mantiveram-se fortes e flexíveis até muito tempo depois das formalidades
identidade e cultura. A consagração da "raça" colocou essas tradições à margem "da emancipação, mas como agora estão em declínio, suas perspectivas não podem
das histórias oficiais da modernidade, relegando-as aos espaços atrasados do primitivo ser boas. Elas têm sido transformadas a ponto de já se tornarem irreconhecíveis
e do pré-político. Elas envolveram construções elaboradas e improvisadas, cuja pelos efeitos desiguais da globalização e do comércio planetário da negritudq.
função primária é a de amortecer as injúrias e desviar-se delas. Porém, elas foram Quanto se reconhece o perigo representado por este declínio histórico, a
bem além da simples garantia de proteção, invertendo as polaridades do insulto, defesa de interesses comuns tem muitas vezes mobilizado a fantasia de uma cultura
brutalidade e desprezo no sentido da sua transformação inesperada em importantes _EQ:gê?!~daj de u11) desenvolvimento cultural estagnado. A particularidade pode ser
fontes de solidariedade, alegria e forçacoletiva. Quando as idéias de particularidade mantida e interesses comuns protegidos se forem fixados em sua postura mais
racial são invertidas nesses moldes defensivos, constituindo-se em fontes de orgulho autêntica e gloriosa de resistência. Essa resposta compreensível, mas inadequada
em vez de vergonha e humilhação, toma-se difícil renunciar a elas. Para muitas à perspectiva de perda da identidade, reduz as tradições culturais aosimples
populações racializadas, a "raça" e as identidades de oposição duramente batalhadas, proce~s-º de repetição invariável. Com isso, contribui-se para assegurar noções
que nela se apóiam, não devem ser abandonadas fácil ou prematuramente. profundamente conservadoras que proporcionam um verdadeiro conforto em
Esses grupos terão de ser persuadidos com muito cuidado de que há algo tempos funestos, mas que não fazem justiça à firmeza e às habilidades improvisadas
valioso a ser ganho com a renúncia deliberada da "raça" como base para um dos escravos e de seus descendentes combativos, ou à complexidade da vida cultural
sentimento de pertencimento mútuo e para a ação em comum. É preciso que contemporânea.
sejam reassegurados de que os gestos dramáticos decorrentes de uma oposição à Precisamos entender º_ª~lo _9Jl icléi~_d~_tr<lçlJ.ç}!º neste contexto. Quando
prática racial podem ser realizados sem violar as preciosas formas de solidariedade por isto se entende um pouco mais do que uma lista fechada de regras rígidas que
e comunidade que têm sido criadas em razão de sua prolongada subordinação de podem ser aplicadas conscientemente sem interpretação ou atenção para condições
acordo com as linhas raciais. A idéia de que a ação contra as hierarquias raciais históricas específicas, temos um álibi disponível para o autoritarismo em vez de um
pode prosseguir mais efetivamente quando expurgada de qualquer respeito
duradouro à idéia da "raça" é uma das cartadas mais persuasivas nesta questão 1. C. Peter Ripley et al., orgs., The Black Abolitionist Papers (Uruversity of North Caroline Press,
política e ética. 1985),4 vols.

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ENTRE CAMPOS .. Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

sinal de viabilidade cultural ou confiança ética. De fato, a defesa da tradição nestas produzidas nos séculos XVTII e XIX, indica que o próprio significado da diferença
bases pode, como veremos, abrir uma porta para formas ultraconservadoras de racial tem mudado, enquanto a relação entre os seres humanos e a natureza é
cultura política e regulação social. reconstruída pelo impacto da revolução do DNA e dos desenvolvimentos
Após identificar estes problemas e deixá-los para trás, tentarei mostrar que tecnológicos que a impulsionaram.' Este livro parte da premissa de que devemos
a zona de conforto criada na aura opaca dessas magníficas culturas de dissidência tentar tomar posse desta profunda transformação e de algum modo conseguir que
já está se reduzindo e que as próprias culturas não são t<10 fortes, complexas ou ela trabalhe contra a lógica enodoada que a produziu. Em outras palavras, o
efetivas como antes. De fato, elas às vezes ainda vibram numa vida espetacular, argumento aqui se desdobra a partir da idéia básica de que a crise da "raça" e da
instigando pessoas desesperadas a se levantarem por seus direitos, além de lhes representação, da política e da ética, abre em boa hora uma porta para que nos
prover uma potente linguagem política e moral, necessária à sua ação. Todavia, libertemos dos laços da raciologia por inteiro num projeto abolicionista novo e
não há razão para supor que elas sejam capazes de suportar todos os efeitos ambicioso.
destrutivos da globalização e localização, isso para não mencionar o poder corrosivo A busca da liberação da "raça" é um problema de especial urgência para
de desacordos políticos substanciais relativos à natureza da particularidade negra aqueles que, tal como os negros modernos no período posterior à escravidão
e sua significância com respeito a outras afirmações identitãrias em disputa: religião, transatlântica, foram designados para ocupar uma posição inferior nas hierarquias
sexualidade, geração, gênero e assim por diante. duradouras criadas pela raciologia. Entretanto, essa oportunidade não é apenas
As tradições dissidentes inauguradas com a luta contra a escravidão, uma deles. Há razões excelentes para que outras pessoas devessem abraçá-la
luta pelo reconhecimento do ser humano em vez de mercadoria, sujeito e pessoa entusiasticamente, pois sua antipatia pelo pensamento racial pode ser definida, não
em vez de objeto, já foi transformada por forças translocais, tanto política quanto tanto pela maneira com que ele as subordina, mas porque ao dotar-lhes com a
econôrnica, que pesam sobremaneira no uso generalizado e simbólico da "raça". mágica alquímica do domínio racial, ele distorceu e delimitou suas experiências e
Esta situação é mais um aspecto fundamental da crise da raciología. Ela leva a consciências por outros meios. Elas podem não ter sido animalizadas, reificadas,
induções mais profundas para se reconhecer que o presente rompimento do ou exterminadas, mas também sofreram em parte ao serem privadas de sua
pensamento racial apresenta uma oportunidade importante. Há aqui uma chance individualidade, sua humanidade e, portanto, alienadas da vida da espécie. Negros
para se romper com os padrões perigosos e destrutivos estabelecidos quando se e brancos estão presos conjuntamente pelos mecanismos de "raça" que alienam
elevou o absurdo racional da "raça" a um conceito essencial e dotado de poder uns aos outras e amputam sua humanidade comum. Frantz Fanon, psiquiatra
único para determinar tanto a história quanto seu desdobramento seletivo. martinicano e atívista anti-colonial, cujo trabalho abarca estas preocupações,
Caso a nossa tentação celebrativa seja muito grande ao avaliannos as observou esse ciclo funesto através de seus efeitos na vida dos homens: "o Negro
possibilidades positivas criadas por estas mudanças no pensamento racial e pela escravizado por sua inferioridade, assim como o homem branco escravizado por
resultante confusão que engolfou a raciologia, precisamos somente nos lembrar sua superioridade, comportam-se de acordo com uma orientação neurótica"." Dr.
que os efeitos dos discursos raciais tomaram-se mais imprevisíveis à medida que o Martin Luther King, Jr., outro influente patologista da "raça", cujo trabalho faz
teor de suas exigências em relação ao mundo ficou mais desesperado. Esta é uma
situação delicada e a "raça" continua a ser um elemento fissurével.
2. "O fato de o desenvolvimento da tecnologia do computador, com suas demandas sobre a teoria da
informação, ter OC01Tido contemporaneamente ao crescimento da biologia molecular não tem
UMA CRISE DA RACIOLOGIA apenas provido a tecnologia física com um instrumental e o poder da computação, sem os quais
os dramáticos avanços das décadas desde 1960 não seriam possíveis. Forneceu também as metáforas
organizativas com as quais as informações foram analisadas e as teorias criadas". Steven Rose,
Qualquer inventário dos elementos que constituem esta crise da raciologia Lifelines (Penguin, 1997), p.120.
deve fazer menção especial ao surgimento de construções orientadas pelo gene, 3. Frantz Fanon, Black Skin, White Masks, tradução de Charles Latu (Mnrkman, Plnro Press, 1986
ou genômicas de "raça". Seu distanciamento de versões antigas, que foram [J952]), p.óO.

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

contraponto ao de Fanon, gostava de dizer que o pensamento racial tem a esses organismos promoveram em termos parciais mas significativos uma
capacidade de tomar inumanos aqueles que são seus beneficiários no momento desmasculinização das tropas. Enquanto Demi Moore encarnava a soldado Jane,
mesmo em que priva suas vítimas de sua humanidade." os organismos militares ocidentais conduziam diversos estudos técnicos para saber
É possível que uma versão pós-racial e pós-antropológica um pouco diferente com exatidão como o corpo feminino poderia ser modificado através de exercícios
sobre o que significa ser humano comece a tomar forma aqui em esboços que se e treinamentos de modo a otimizar seu potencial físico para atividades militares.
baseiam de um modo implícito nos legados combinados de King e de seu antigo Cientistas da Agência de Pesquisa do Ministério da Defesa da Grã Bretanha criaram,
interlocutor, Fanon. Caso se pretender que este humanismo, radicalmente não- por exemplo, uma forma de treinamento básico, conhecida de um modo enigmático
racial, seja colocado em fundações mais estáveis do que aquelas providas pelo como "padrões de seleção do pessoa]", para suas novas recrutas. Conforme o
cristianismo aberto e consistente de King, ou pelos interesses fenomenológicos exército britânico enfatizou, esse treinamento não pode eliminar diferenças físicas
existenciais e psicanalíticos de Fanon, é preciso diferenciá-lo de tentativas anteriores intrínsecas como tamanho do quadril e proporções variáveis de gordura e músculo;
e menos satisfatórias de repensar a humanidade. Sua pretensão de alcançar uma porém, os "resultados iniciais do novo regime de treinamento, acrescentaram em
ruptura abrangente com essas tradições de reflexão é marcada fundamentalmente média 907 gramas a mais de músculo, ao passo que tiraram dois quilos e 721
por uma recusa de se deixar articular exclusivamente no gênero masculino. Desta gramas de gordura". Como disse um oficial britânico: "a força bruta não constitui
perspectiva, os processos preciosos e pacientes que culminam em comunidade e uma parte considerável da vida militar nos anos de 1990".5 Estratégias comparáveis
democracia não existem apenas nos padrões fraternos que se mostraram tão têm sido também reveladas em terras de escassez, ou seja, em partes
duradouros e atraentes para inúmeras pessoas. O ideal de fraternidade não precisa subdesenvolvidas do planeta. A contribuição ativa e entusiástica de mulheres no
mais comprometer ou constranger os nobres sonhos de liberdade e igualdade. Este genocídio dos tútsis e na matança de oponentes políticos hútus, ocorrida em Ruanda
humanismo obstinado e sem gênero definido não se reduz a demandas pela igualdade em 1994, serve como precaução contra um eventual desejo de celebrar estas
entre homens e mulheres, ou mesmo pela reciprocidade entre os sexos. Essas mudanças como inerentemente progressistas."
idéias revolucionárias já estão vivas e difundidas pelo mundo. Podem ser É possível que, dependendo da obliteração final do militarismo governamental,
complementadas por uma mudança na escala conceituaI com que se costuma o ideal do militar sem distinção de gênero possa melhorar o nosso entendimento da
calcular os atributos humanos essenciais. atuação moral e cívica. Na condição de signo de transição, ele nos indica uma
Esta mudança, por sua vez, implica a abolição do que é convencionalmente universalidade que pode existir em formas menos beligerantes. Não deve haver
pensado como divisão sexual. As diferenças menores tornam-se essencialmente nenhuma concessão para a fuga da encarnação que tem sido associada com a
irrelevantes. As formas de narcisismo apoiadas por elas não precisam manter sua consolidação da individualidade abstrata moderna," Aqui as limitações da existência
pressão sobre o mundo. Se esta meta parece ser excessivamente utópica ou de corporal (estar no mundo) são admitidas e mesmo bem recebidas, apesar de haver
aspiração radical, faríamos bem em relembrar o importante exemplo prático desses uma forte indução no sentido de vê-las e valorizá-las diferentemente como fontes
princípios que são hoje seguidos pelos organismos militares do mundo de identificação e empatia. A recorrência da dor, doença, humilhação e perda de
superdesenvolvido. Pressionados por um declínio no recrutamento, bem como outras dignidade, do pesar e cuidado com os entes amados, pode contribuir como um todo
mudanças demográficas, a aceitar a possibilidade de que as mulheres são tão
fisicamente capazes de arcar na frente de batalha quanto seus correlatas masculinos,
5. "Testes recentes no Instituto de Pesquisa de Medicina Ambiental do Exército dos Estados Unidos
em Massachussets mostraram que 78% das mulheres que participaram de treinamento similar
qualificaram-se para trabalhos militares 'muito pcsados'". Hugh McManners, "Army Sets Out
to Build a Bctter Breed ofWoman", Sunday Times, 17 de março de 1996.
4. Martin Luther King, Jr., Where Do We Gufrom Here: Chaos ur Community? (Harper and Row, 6. African Rights, Rwanda Not So Innocent: When Womell Become Killers (]995).
1967), p.53. 7. Carole Pateman, The Disorder ofWumen (Stanford University Press, 1989). em especial capítulo 2.

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I ENTRE CAMPOS .. Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça I I PAUL GILROY I

para um sentido abstrato de similaridade humana, forte o bastante para fazer a estudos da inumanidade inspirada pela idéia de "raça" e associada a ela não se
solidariedade baseada na particularidade cultural parecer inesperadamente trivial." confinam, sem dúvida, à escravidão, ou às formas brutais de segregação que a
Alguns outros aspectos deste humanismo planetário e pragmático podem sucederam. Eles surgem de inúmeros episódios na história colonial e das operações
ser provisoriamente enumerados. Apesar da maioria dos filósofos políticos que genocidas que provaram ser o momento maior e triunfante da raciologia. São
consideram estas questões terem ignorado esta possibilidade, ou deixado de especialmente valiosos, não porque o sofrimento das vítimas de uma extrema
reconhecer sua verdadeira força subversiva, gostaria de sugerir que uma certa maldade ofereça lições fáceis para a redenção dos mais afortunados; sem dúvida,
diferenciação pode também ser vista como emergindo através da renúncia deliberada não podemos saber que reflexões éticas perspicazes as vítimas do pensamento
e consciente da "raça" enquanto meio de categorizar e dividir a humanidade. Este racial podem ter levado consigo na morte. As vítimas desses eventos de terror
humanismo, radicalmente não-racial, mostra uma preocupação básica com as formas foram de todo emudecidas e, caso haja sobreviventes, serão acossados pela culpa,
de dignidade humana extirpadas pelo pensamento racial. Sua orientação vergonha e memórias incertas e dolorosas ao extremo. Não serão os melhores
antiantropológica e, por vezes, misantrópica articula-se com mais força quando guias para as lições morais e políticas envolvidas em histórias de sofrimento absurdo,
acompanhada por um retorno tardio à consideração da tragédia crônica, mas podem ainda ser capazes de produzir reflexões importantes para os dilemas
vulnerabilidade e fragilidade que definiram nossa espécie na arte melancólica de morais do presente. Devemos, portanto, prestar atenção às dúvidas que os
diversas figuras poéticas que vão de Leopardi e Nietzsche a Esthcr Phillips e sobreviventes mais eloqüentes e perceptivos de uma inumanidade sistemática
Donny Hathaway, A marca deste humanismo é provida por uma determinação introduziram no valor de seus próprios testemunhos. É preciso ficar alerta para as
severa de fazer com que aquela situação difícil de existência corpórea suas convenções e gêneros impronunciados, uma vez que há regras tácitas
fundamentalmente frágil se torne a chave para uma versão de humanismo que governando as expectativas do público de leitores formado em torno dessas palavras
contradiz os tons triunfantes dos discursos antropológicos que apoiaram com e textos de dor e comoção.
entusiasmo o pensamento racial numa época imperial prévia. Contudo, numa situação sem precedentes em que reina a ambivalência e as
Este não é o humanismo de existencialistas e fenomenólogos, de protestantes regras gerais de conduta ética são difíceis de enquadrar, este legado dos testemunhos
1IÚ0pes ou cientistas complacentes. De fato, atento às associações raciológicas de vítimas não deve ser desprezado como uma distração das tarefas laboriosas de
entre humanismos passados e a idéia de progresso, este humanismo é tão refratário documentação e de reconstrução histórica. É bem melhor fazer desta evidência
à idéia de "raça" quanto é ambivalente cm relação às exigências de constatar o duvidosa o nosso compasso e buscar nosso ponto de apoio nas palavras das
progresso sem levar em conta os efeitos dcscivilizadores de contínuas divisões testemunhas do que tentar nos orientar em vão a partir dos mapas incertos fornecidos
raciais. Quero mostrar que reflexões importantes podem ser alcançadas através por um humanismo liberal com seu código racial velado, ou mesmo por um
do retomo sistemático à história dos conflitos sobre os limites da humanidade na humanismo socialista, os quais se não nos conduziram para esta posição perdida,
qual a idéia de "raça" tem sido especialmente proeminente. Este humanismo é quase não ofereceram idéias de como podemos nos livrar disso e encontrar a nós
concebido explicitamente como uma resposta para os sofrimentos forjados pela mesmos novamente sem o auxílio de categorias raciais, ou da tradição racial.
raciologia. Os recursos mais valiosos para a sua elaboração derivam de uma
abordagem baseada em princípios e com enfoque nos cruzamentos culturais da GENES E CORPOS NA CULTURA DE CONSUMO
história e da literatura sobre situações extremas em que os limites do que significa
ser humano foram negociados e testados a cada minuto e a cada segundo. Estes o foco contemporâneo no potencial em grande parte escondido dos genes
promove uma mudança de escala fundamental na percepção e compreensão do
corpo humano. Esta mudança não é um produto automático somente dos mais
8. Richard Rony, "Cruelry and Solidarity", in Contíngency; Irony and Solidarity (Cambridge University recentes desenvolvimentos científicos, sendo preciso ligá-la a um entendimento da
Press, 1989). tecnociência, em especial a biotecnologia, por um período mais longo de tempo.

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ENTRE CAMPOS .. Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

Seu impacto sobre o status das velhas tipologias raciais, que são sobretudo do do corpo, tomaram-se absolutamente centrais nas controvérsias sobre o limite e o
séculoXVIIJ, tem sido negligenciado de modo inadmissível pela maioria dos autores caráter da vida da espécie.
de estudos sobre a "raça". Sob o risco de parecer antropocêntrico em demasia, gostaria de sugerir que
A história trágica de Henrieua Lacks, uma afro-americana de Baltimore, o cultivo de células fora do corpo para objetivos comerciais entre outros, assinala
mãe de cinco filhos, que morreu de câncer cervical aos trinta e um anos de idade uma mudança de época que requer um repensar abrangente sobre os meios através
em outubro de 1951, pode contribuir com uma perspectiva importante à medida dos quais entendemos e analisamos nossa vulnerável humanidade. Assim como a
que nos distanciamos da biopolttica de "raça" e nos dirigimos à sua nanopolítica. manipulação especulativa de material genético entre várias espécies que se seguiu
Células retiradas sem consentimento do corpo de Lacks pelo Dr. George Gey, um a isto com resultados imprevisíveis e possivelmente perigosos para todos os seres
biólogo celular do hospital Johns Hopkins, foram cultivadas em cultura de tecido e humanos, esta mudança sugere todo um conjunto novo de fronteiras em cujo interior
têm sido usadas desde então em inúmeros experimentos científicos em todo o a humanidade se formará. A "engenharia" de animais e plantas transgénicas, tendo
mundo. A linha celular extraída de seu câncer, agora conhecida como HeLa, foi a alguns deles se beneficiado, como se supõe, da inserção de genes humanos em seu
primeira linha celular de tumor humano a ser cultivada. Ela teve diversas DNA, é um fenômeno correlato que tem sido também motivo de intenso debate
propriedades inesperadas. As células virulentas sem precedentes cresceram sobre suas conseqüências potencialmente catastróficas. O comércio internacional
rapidamente e proliferaram, invadindo culturas adjacentes e combinando de forma e, portanto, necessariamente "transracial'' de órgãos internos e outras partes do
inesperada com outros organismos nos laboratórios onde estavam em uso." Foram corpo para transplante, algumas vezes obtidos de maneira duvidosa, é outro
logo comercializadas como um "organismo de pesquisa", demonstrando ser uma desenvolvimento pertinente. Os desafios que emergiram da manipulação e do
ferramenta indispensável na indústria biotécnica em expansão comércio em todos os aspectos da fertilidade humana, incluindo a questão
O caso Lacks levanta questões importantes sobre quando um material desse vividamente contenciosa sobre se as mães de uma "raça" podem por um capricho
tipo, extraído dc um corpo, pode ser considerado tecido humano e o ponto em que perverso escolher conceber bebês de outra "raça", representam ainda outra
deve ser identificado alternativamente como uma forma de propriedade pertencente mudança-chave, ao passo que diversas tentativas recentes de patentear organismos,
não à pessoa em cujo corpo ele teve origem, mas aos interesses comerciais ocupados células e outros elementos da própria vida, ou assegurar direitos autorais sobre
em vendê-lo com fins lucrativos. A estória das células HeLa é também instrutiva eles, seriam o sinal derradeiro de que devemos ajustar nossas concepções de vida,
devido à confusão criada quando se revelaram enzimas que sugeriram a "pretura" assim como nossa natureza humana mutante. 10
da Sra. Lacks, confundindo e deixando perplexos os pesquisadores que assumiram Todas essas mudanças causam impacto sobre como se compreende a "raça".
sua "brancura" ou, o que é ainda mais importante, omitiram-se quanto a pensar em A percepção da unidade indissolúvel de toda a vida em termos dos materiais
termos raciológicos sobre o legado dela, ou sobre as suas próprias pesquisas. Este genéticos conduz a um sentido mais forte sobre a particularidade da nossa espécie
episódio pode ser usado para demarcar o ponto onde se cruzou um importante como um todo, assim como a novas apreensões com relação ao fato de que O seu
limiar sobre pensar a "raça". A mensagem expressa pelo comércio das células caráter está sendo fundamental e irrevogavelmente alterado. Com estes
Hel,a excede até mesmo o velho conto familiar em que os pacientes negros são desenvolvimentos sintomáticos em mente, é difícil resistir à conclusão de que essa
por vezes abusados e manipulados por médicos brancos empregados para tratá- revolução biotecnológica exige uma mudança em nosso entendimento de "raça",
los. Ao que parece, as células desafiantes da "raça", os componentes vitais menores espécie, corporificação e especificidade humana. Em outras palavras, ela requer
que rcconceitualizemos nossa relação conosco, com nossa espécie, nossa natureza

9. Beverley Mcrz, "Whose CellsAre Thcy, Anyway?" American Medical Ncws (23-30 de março de [o. Jeremy Rifkin, The Bio-Tcch Century: Hamessíng the Gene and Re-Making the World (Tarchcr
1990), pp.7-8; "Modem Times: The Way of Ali F1esh", BBC 2 'Ielevision, 19 de março de 1997. Putnarn, 1998).

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GIL ROY

e com a idéia de vida. Precisamos perguntar, por exemplo, se deveria haver qualquer brancos, mas à medida que perdem aquela uniformidade, somos pressionados a
espaço neste novo paradigma de vida para a idéia de diferenças especificamente considerar e a observar em detalhe o que eles se tomaram, onde cabem na velha
raciais. hierarquia que vem sendo apagada e que combinação ilícita desses conhecidos
O retrato bem conhecido e surpreendentemente popular dos seres humanos tipos raciais se ajustou para produzir esse visual específico, esse estilo exótico ou
como um meio transitório essencialmente irrelevante para a ação dinâmica de essa postura transgressora. O padrão estimulante desta hiper-visibilidade é a marca
seus genes supostamente egoístas, não é a única conseqüência censurável em de um multicuturalismo empresarial em que um certo grau de diferença visível
termos morais e políticos da ortodoxia genômica emergente. Há também implicações com relação a uma norma branca implícita pode ser altamente valorizado como
fundamentais para a coerência da idéia de "raça" e sua relação com os padrões um sinal de oportunidade, vitalidade, inclusão e alcance global.
cada vez mais complexos de variação natural que serão sem dúvida revelados Toda uma nova safra de modelos negros, estilistas, fotógrafos e, agora, graças
numa espécie distribuída geograficamente e nos indivíduos que a compõe que são aos bons préstimos de Spike Lee, com sua agência de propaganda negra;
fundamentalmente similares, embora variem ao infinito. A especificação de contribuíram para esta mudança de clima no significado de sinais, símbolos e corpos
diferenças significativas pode ser calculada somente em escalas específicas, o racializados. O estrelato de figuras ícones proeminentes como Tyson Beckford,
que o físico Ilya Prigogine chama de "domínios de validade"." Infelizmente, por Tyra Banks e, é claro, o próprio Lee, complementa as personalidades super-
maior que seja o senso comum e a compreensão popular de "raça" que ficou para humanas e os atributos físicos conspícuos da mais recente onda heróica de atletas
trás ao longo destes desenvolvimentos, isto não significa que as idéias de "raça" negros que construíram conexões com o mercado planetário emergente em produ.tos
com base na aparência imediata tornaram-se redundantes, adquirindo um status de Jazer, boa forma e esportes. Nesse domínio, a negritude provou ser um anvo
residual que contrastaria com nitidez com o poder conspícuo desfrutado por elas substancial. "O ciclo biológico"," de acordo com os termos de Fanon ao refletir
em tempos passados de impérios coloniais, migração em massa e extermínio em sobre o estrelato icônico de Joe Louis e Jesse Owens, teve início com a figura
massa. mítica de O Negro: incrivelmente ágil e atlético ou por constituição física tendente
À medida que uma cultura de consumo ativarnente despolitizada se difundia, a ser letárgico e preguiçoso. Este ciclo moderno pode também ser pensado como
o mundo das aparências racializadas era investido de uma outra mágica. Isto se dá tendo terminado no espaço da metafisicalidade negra. Como Zygmunt Bauman
devido a desenvolvimentos como a proliferação de cirurgias cosméticas cada vez explicou, a cena de abertura da vida social pós-modema no mundo superdesenvolvi~o
mais baratas e o constante realçamento e modificação computadorizada de imagens tem sido encenada numa relação privada distintiva de uma pessoa com a própna
visuais. Estas mudanças, consnufdas a partir de uma longa história de procedimentos corporalidade através de uma custódia disciplinar que pode ser definida como a
técnicos para produzir e acentuar diferenças raciais em filmes." mais do que idéia do corpo "como tarefa"." Isto tem conseqüências inesperadas, quando o
solapam a integridade da representação raciologica. Elas interagem com outros ideal de destreza física a que os negros fizeram jus especial em troca de se verem
processos que adicionaram uma recompensa conspícua ao tráfico planetário atual desassociados da atividade mental assume um significado destacado.
em matéria de imagens da negritude. Inúmeras camadas de exotismo facilmente
comercializado culminaram num glamour racializado e contribuíram com um
prestígio extra para algum nível de diferença somática não específica. Os rostos L3. Fanon. Black Skin, White Masks, p.161.
14. "A boa forma corporal como meta suprema, pretendendo ser buscada, porém, nunca alcançada
perfeitos nos quadros de avisos, telas c revistas não são mais exclusivamente por meio de auto-coerção, destina-se a ser para sempre disparada através da ansiedade?e bus~a
por urna saída, gerando contudo uma demanda crescente por saídas sempr: n~vas e ainda n~o
testadas. Proponho que este produto da 'privatização' do corpo e das agencias de produç,ao
social do corpo é a 'cena primordial' da ambivalênc.ia pós-moderna. Ela empr~sta à cu~tura p~s­
II. I1ya Prigogine, The End of Certainty: Time, Chaos and the New Laws of Nature (Frce Press, modema ~L1a energia desconhecida, uma compulsão interna para estar em movllnento: E lambem
1997), p.29. uma causa crucial, talvez a principal de sua tendência internamente construída para o
12. Richard Dyer, White (Routledge, 1997), capítulo 3. amadurecimento instantâneo." Zigmunt Bauman, Life in Fragments (Políty Prcss, 1995), p.119,

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É preciso ficar bem claro que a ubiquidade e a proeminência atual conferida morte bem mais insidiosa nas maneiras bizarras de legiões de modelos, atletas e
a corpos excepcionalmente bonitos e glamorosos, porém, racializados, não faz nada artistas, cuja beleza e força contribuíram para a tradução pós-moderna da negritude
para mudar as formas cotidianas de hierarquia racial. As associações históricas de de uma marca de insulto para um significante de prestígio cada vez mais poderoso,
negritude com a infra-humanidade, brutalidade, crime, preguiça, fertilidade excessiva porém ainda muito limitado. As atividades em curso desse grupo nos mundos da
e ameaçadora, e assim por diante, continuam imperturbãveis. Mas a aparição de televisão, música, esportes, moda, divertimento e, acima de tudo, propaganda, são
uma rica cultura visual que permite à negritude ser bela, também alimenta uma mais uma prova de que no tocante à "raça", o que você vê não é necessariamente
falta fundamental de confiança no poder do corpo de manter no lugar as fronteiras o que você consegue.
da diferença racial. Por meio dela, cria-se uma ansiedade em relação às hierarquias Todos estes desenvolvimentos originam-se das mesmas incertezas sobre a
raciais mais antigas que fizeram com que essa idéia revolucionária de beleza negra "raça", assim como contribuem com elas. Ajudam a colocar em questão a autoridade
fosse oxímora, assim como requer que nos esqueçamos do movimento político que auto-evidente e óbvia de conhecidas manifestações racializadas, bem como de
tornou seu reconhecimento imperativo. É como se essas imagens de beleza, graça tipologias raciais de senso-comum. Os corpos podem ainda ser os mais significativos
e estilo não-brancas de alguma forma tornassem a questão da "raça" secundária, determinantes para fixar a ótica social da "raça"," porém, corpos negros são
em especial quando são iluminadas, filtradas, texturizadas c harmonizadas de modo vistos agora - simbolizados e imaginados - diferentemente. Graças ao Adobe
a desafiar a percepção do observador, cada vez mais perplexo, sobre o possível Phoroshop" e tecnologias de processamento de imagem similares, os tons de pele
lugar das fronteiras raciais. Neste cenário inquieto, criam-se novos ódios não pela podem ser manipulados com mais facilidade do que os músculos marcados de
imposição cruel de categorias raciais estáveis, mas por uma inabilidade perturbadora forma indelével que vendem produtos para transpiração de grifes como as de
em mantê-las. Ao se ajustar entusiasticamente a padrões sociais mais amplos, a Tommy Hilfiger, Calvin Klein, 'I'imberland e Guess nas páginas reluzentes de
superfície dos corpos negros precisa agora ser tatuada, trespassada com enfeites publicações de larga difusão, como Vibe e The Source, internamente voltadas
metálicos e etiquetada, caso queira revelar as verdades mais profundas e mais para aspectos da cultura negra, mas não dirigidas em especial para um público
irresistíveis da sua ontologia privatizada interior. As famosas palavras "Vida de leitor negro. Esta crise assegurou que os corpos racializados representados como
Matador", inscritas no torso eloqüente do falecido Tupac Shakur, assim como os objetos - objetos entre outros objetos - nunca serão suficientes para garantir que as
hexagramas, personagens orientais, desenhos animados e outros artifícios ostentados diferenças raciais continuem o que foram anteriormente, quando qualquer um, em
por um grupo de estrelas - Treach, Foxy Brown e Dennis Rodman, para nomear ambos os lados da linha entre gente branca e de cor, sabia o que a "raça"
apenas três - agem de acordo com esta tendência e têm o significado adicional de deveria ser.
mostrar para o mundo como esses corpos negros musculosos estão realmente Essas ocorrências do nosso tempo deveriam ser situadas no contexto das
distanciados da cor preta. forças niveladoras do desenvolvimento sem local definido e da planetarização
Deveria ficar claro que as artimanhas de mudança de forma e de fenótipo comercial. O sentido e status das categorias raciais têm se tornado ainda mais
que abundam no mundo da cultura popular negra não culminaram no estranho incertos agora que diferenças Iingüísticas e culturais substanciais são niveladas
caso de Michael Jackson." A transformação física dele próprio antecipou esta pelas pressões do mercado global. Quando se reconhece haver continuidade ou
nova fase de possibilidades criativas. A mut(il)ação jocosa de Jackson não sobreposição cultural entre diferentes grupos racializados, as menores nuanças
contradisse sua afirmação de uma herança afro-americana, ou o seu famoso culturais oferecem uma maneira básica de diferenciação. Uma vez que o curso da
desapreço pela própria África. Padrões similares desfrutam de uma vida após a corrente principal desvia-se para um território cultural marginal e pouco explorado,

15. ~on~a. Haraway, Modes,-Wifness@Secolld~Milfellnium.FemaleMallã_MeetsOncosâouseii: 16. "A~ olhadelas rápidas do outro me fixaram lá tal como uma solução química é fixada por uma
Feminismand Technoscience (Routledge, 1997) p.262. tintura." Pancn, Black Skin, White Masks, p.109.

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uma ênfase na cultura pode deslocar prontamente a atenção dada antes às certezas sejam desiguais, a idéia sedutora de características corporais comuns, indicativas
enfraquecidas da "raça"~ Nestas condições, a relação entre diferenças culturais e de pertencimento racial, oferece um atalho co~veniente para as formas preferidas
a particularidade racial toma-se complexa e fecunda. A cultura, assim como as de solidariedade e de conexão, mesmo nos casos em que são de fato negadas
valiosas células da Sra. Lacks, torna-se semelhante a uma forma de propriedade pelos padrões divergentes nos acasos da vida e na experiência cotidiana.
ligada à história e às tradições de um grupo específico, sendo regulada por qualquer Outros sintomas ainda mais perniciosos da crise da raciologia encontram-se
um que ouse falar em nome dela. Isto pode produzir alguns estranhos conflitos em nosso redor. Na Europa eles são mais marcantes agora que as ciências raciais
sobre a designação de fragmentos que resistem a todos os poderes disciplinares. não estão mais caladas pelas memórias de sua cumplicidade ariva no genocídio
Um pequeno exemplo vem à mente ao se considerar as operações do sistema dos judeus europeus. O clima moral e político específico que emergiu como resultado
político britânico. Algumas músicas de Bob Marley foram utilizadas na abertura de do nacional socialismo e das mortes de milhões de pessoas foi um fenômeno
um encontro de uma ala do Movimento Europeu da Grã-Bretauha durante a transitório. Ele definhou juntamente com a memória viva daqueles eventos
Conferência do Partido Conservador em 1996, para grande desgosto de Bernie assustadores. O período nazista constitui a ruptura moral e temporal mais profunda
Grant e Paul Boateng, membros negros do Partido Trabalhista no Parlamento, que na história do século XX e nas pretensões de sua civilização modema. Por mais de
queriam colocá-las em outras tradições políticas. A pessoa responsável por essa cinquenta anos, tem sido essencial para as políticas da "raça" trazer isso na
grave afronta a? socialismo inerente de Marley foi Sir Teddy Taylor, um amante do memória, mas além disso uma transição cultural e ética representada pelos
reggae, excêntrico e eurocéüco, mas de direita, que conforme explicou à mfdia, julgamentos de crimes de guerra, reparações financeiras e um grande número de
"pensou que a música [vl'hree Little Birds"/Três Passarinhos] sintetizava a política pedidos de desculpas nacionais foi desencadeada de uma forma irreversível. Seu
Tory [conservadora] na Europa"." objetivo é assegurar um lugar para essa catástrofe raciológica num passado
A ênfase na cultura como uma forma de propriedade a ser possuída em vez irrecuperável, o que Jean Améry chamou de "o congelamento da história", projetada
de vivida caracteriza as ansiedades do momento. Ela confunde mais do que resolve para ser mais citada, ou repassada para outros destinos mais felizes, do que para
os problemas surgidos da associação da "raça" com variações corporalizadas ou ser deliberadamente convocada, penetrada ou lamentada de maneira inacabada.
somáticas. De fato, precisamos ficar alerta para as circunstâncias em que o corpo A reparação oficial promove um senso de encerramento e pode ser bem recebida
é reinvestido do poder de arbítrio na atribuição de culturas às pessoas. Os corpos como um sinal de que a justiça foi tardia, mas foi feita; todavia, pode também
dos praticantes de uma cultura podem ser convocados para fornecer a prova sobre solapar a capacidade ativa de relembrar e de fazer com que os poderes profiláticos
o lugar daquela cultura na hierarquia inevitável de valores. O corpo também pode da memória ajam contra males futuros. Os efeitos do trauma podem ser modificados,
prover as bases preeminentes onde essa cultura deve ser designada em termos se não moderados, pela passagem do tempo. São também vulneráveis às
étnicos. O corpo circula pouco à vontade através de discussões contemporâneas a providências para várias formas de compensação: substantivas e vazias, formais e
respeito de como se sabe o grupo a que se pertence e o que é preciso para alguém informais, materiais e simbólicas.
ser reconhecido como pertencente a uma dada coletividade. Diferenças dentro de Não se trata aqui de um conflito direto entre uma obrigação pública
grupos específicos proliferam ao longo dos eixos manifestos de divisão: gênero, culturalmente sancionada no sentido de relembrar e um desejo privado de esquecer
idade, sexualidade, região, classe, riqueza e saúde. Elas desafiam a unanimidade o inesquecível. A maneira, o estilo e o ânimo de recordação coletiva são questões
de co1etividades racializadas. Exatamente o que, em termos culturais, é necessário absolutamente críticas e a memória da escravidão racial no Novo Mundo não é a
para pertencer, e melhor ainda, o que é necessário para ser reconhecido como Única história de sofrimento que tem sido minimizada pelos poderes de uma
pertencente, começa a parecer muito incerto. Por mais que os corpos individuais comemoração corrosiva ou trivial. Um pequeno exemplo é o bastante aqui. No
; filme Amistad, um drama de tribunal, dirigido por Steven Spielberg, os escravos
são levados a leilão em Cuba logo após passarem pelos horrores da travessia do
17. The vbiçe, edição 724 (15 de outubro de 1996). Atlântico. Estão nus: aparentemente em forma, esbanjando saúde e robustez. Eles

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gozam de uma musculatura trabalhada e malhada que só pode ser adquirida através ênfase ao fato de que muitos dos arquitetos dos assassinatos em massa em Ruanda
dos alegres rigores de uma rotina pós-moderna de ginástica. Contra a corrente da e Bósnia foram educados dentro dos mais altos padrões da filosofia ocidental não
indiferença e da rejeição °da supremacia branca, a travessia do Atlântico pelos repercutiram com tanta intensidade." Quando alguns deles são levados a
escravos traficados da África tem sido recuperada de forma deliberada e julgamento por crimes de guerra, ou por atividades genocidas decorrentes de seus
provocativa, mas é apresentada de uma maneira impossível e profundamente crimes contra a humanidade, temos o surgimento de questões mais difíceis sobre a
contenciosa, oferecendo apenas o consolo das lágrimas em vez de conexões mais especificidade e a singularidade de assassinatos em massa anteriores e o lugar
desafiadoras e imaginativas. Pode ser que aqueles músculos abdominais cobiçados central do "pensamento racial" que tem se destacado repetidamente como uma
sejam agora vistos como uma pré-condição essencial para se identificar com as maneira de justificar episódios mais recentes."
figuras de heróis super-humanos como o Joseph Cinqué de Spielberg." É interessante notar que o importante trabalho da Comissão pela Verdade
Nunca houve consenso espontâneo sobre como recordar e comemorar da África do Sul pôs em marcha uma versão da história de Apartheid, que acentua
histórias de sofrimento. Discrepâncias significativas são visíveis, por exemplo, entre suas afinidades políticas, assim como suas conexões históricas concretas com o
a maneira com que os afro-americanos e ganenses lidaram com a conservação de governo criminoso do período nazista." Uma vez sublinhadas essas conexões, as
sítios fortificados de atividades ligadas ao tráfico de escravos, que em tempos teorias elaboradas de Apartheid sobre as diferenças culturais e tribais podem ser
recentes se tornaram lugares de peregrinação e turismo cultural para algumas das reduzidas com rapidez aos puros ossos da raciologia que lhes conferia autoridade
filhas e filhos mais prósperos da dlâspora atlântica." No exato momento em que de início, além de despachar agentes da Brcederbond [Sociedade de Irmãos] para
essas divisões aguçadas apareceram dentro daquilo que no passado fomos instados
a ver como um único grupo "racial", uma torrente de imagens de mortes fortuitas
e conflitos é transmitida instantaneamente de todo o continente africano. Para mas os atiradores estilo de fato muito mais interessados em saquear bens luxuosos do que em
alguns, essas reportagens sombrias suscitam uma nostalgia pelo velho mundo matar uns aos outros. As lojas que vendem ténis foram 'IS primeiras a serem pilhadas. mas eles
ordenado de impérios coloniais, ameaçando tornar a selvageria algo que ocorre também gosram de roubar lojas de roupas. A FPNL veste coletes salva-vidas coloridos de
marinheiros. ou camisetas saqueadas do Save The Childrcn Fund [Fundo para Salvar Crianças].
exclusivamente além das fronteiras fortificadas da nova Europa. Através do Seu visual básico é o do músico de rap de gueto. Você sempre pode localizá-los porque todos
genocídio em Ruanda e massacres no Congo e Burundi, guerra civil na Libéria, usam boinas azuis, roubadas dos armazéns do Exército e da Marinha, mas os krahn são mais
Serra Leoa e Nigéria, corrupção e violência no Quênia, Uganda, Sudão e extravagantes. Um guerreiro krahn usa botas de borracha de cano alto e lenço de mulher na cab:ça
e se intitula Tenente-Coronel Problema Duplo. Eles lutam de verdade nos campos. Quando vem
Moçambique, o governo pelo terror tem sido associado novamente à negritude a Monrõvia, não é paralutar realmente. Vêm para fazer compras," Eastem. Express, 24 de abril
infra-humana, reconstituída nos padrões "metade demônio, metade criança" que de 1996.
fazem a preferência das velhas mentalidades coloniais." As tentativas de dar 21. Michael Chege, diretor de Estudos Africanos, na Universidade da Florida, chamou a atenção
repetidamente para o papcl dos acadêmicos de elite na formulação das ~out,l:inas geno~idas
implementadas em Ruanda. Ver Tim ~ornwe!1, "Rwanda~ ~ch()lars ~onsplred., TjmesHI~her
18. Howard Jorres, Mutiny on lhe Aminad (Oxford University Press, 1987). Eduçation Supplement (28 de fevereiro de 1997). O SU1CldlO de Nikola Koljevic, es~u~lOs0
19. Stephcn Buckley, "Herítage Bmtle Rages at SlaVC'TY'S Sacrcd Sites", Guardian (i de agosto de prolífico d,Shakcspeare, ideólogo da "limpeza étnica" e principal arquireto ~a destmlçao d.e
1995) S,u'ajevo, levanta questões similares em um cenário diferente. Ver o artigo de Janine di Giovanni,
20. "O problema com a FPNL é que durante a batalha eles podem conseguir ocupar uma esquina, mas ''Th~ Cleanser", in Goardian Weekend (I de março de 1997).
então vão tomar uma cerveja e, ao voltarem, ficam surpresos em descobrir que a perderam 22. Enquanto escreve, apenas dois homens, Jean-Paul Akayesu e Jean Kambanda. foram declarados
novamente", disse Lemuel Potty aos repórteres em Mcnróvin. "Eles são um refugo. mas pelo culpados por seus papéis no assassinato cm massa. . .
menos são melhores do que seus rivais, os krahn. Eles vão para a luta usando perucas de 23. Kader Asma! et al., RenJ/lciliation through tnuh: A Reckrming wirn Apartheid' s Criminal
mulheres, colares e sobretudos de borracha". Potty, um simpatizante da Frente Patriótica Nacional Govemance (James CUlTey.1997), Ver também Patrick J. Furlong,BetweCll Crown.and Swastiska:
da Libéria (FPNL) que possuía uma boate no distrito Mamba Point, assim descreveu a guerra The Impact of the Radicol Right 011 lhe Afrikaner Nalionalist Movement ín the Fase.1S! E.ra
civil que assolava seu país e que matou até agora cerca de 150.000 pessoas. "Não digo que a (Wesleyan, New England. J 991); e Carlos Santiago Nino, Radical Evil on Trial (Yale University
guerra não esteja pesada. Há um número considerável de pessoas mortas espalhadas pelas ruas, Press, 1996).

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a Europa ao longo dos anos dc 1930 em busca de material étnico apropriado para uma mulher livre e aceito minha diferença"," como se as denúncias democráticas
a cultura branca ideal, cuja invenção se fazia então arivamente." do racismo de seu então líder Jean-Marie Le Pen exigissem dela uma negação a
Uma mistura uniforme dos termos de "etnicidade" e "cultura", termos estes esse respeito. Em outras partes, os loquazes veteranos dos esquadrões da morte
enganosamente suaves, emergiu como elemento central no discurso de diferenciação do Apattheid asseveraram longamente que, falando em termos pessoais, eles
que luta para suplantar apelos sem disfarce à "raça" por meio da afirmação do próprios não eram dados a um racismo anti-negro. O locutor de rádio belga, nascido
poder das filiações tribais. Estas noções convenientes circulam em linguagens mais na Itália, Georges Ruggiu, está agora a enfrentar um julgamento por crimes contra
especializadas, mas é um engano pensar que elas imprimam uma maior precisão a humanidade após ter sido preso e acusado de cumplicidade no genocídio dos
na tarefa da divisão social. A abordagem culturalista ainda corre o risco de naturalizar tütsis, ocorrido em 1994. Seus programas provocadores na Rádio Mille Collines
e normalizar o ódio e a brutalidade ao apresentá-los como conseqüências inevitáveis ficaram famosos por compararem a investida hútu à Revolução Francesa. Assim,
de tentativas ilegítimas de misturar e combinar grupos incompatíveis em termos em sua confrontação genocida com os testas-de-ferro africanos da ambição
primordiais, os quais um governo mais autenticamente colonial, mais sapiente e geopolítica "anglo-saxã", os assassinos francófonos pareciam se imaginar como
mais conhecedor do mundo, teria mantido separados ou deixado com que se uma extensão da nação francesa a que eram ligados no passado. Gérard Prunier
encontrassem somente em dias de mercado. O desdobramento da história pós- descreveu isso como "a síndrome Fashoda"."
colonial recente acena com uma mensagem menos nostálgica e mais desafiadora: Os defensores destas variedades instáveis de políticas racializadas foram
se o status da "raça" pode ser transformado até mesmo na África do Sul, o lugar forçados a se tornar fluentes na linguagem técnica e antropológica da etnicidade e
preciso deste mundo onde sua saliência em termos de política e governo não poderia cultura. É provável que suas opiniões sejam também impregnadas de um
ser negada, onde as identidades raciais patrocinadas pelo Estado foram conduzidas determinismo mecanicista e um hiper-patriotisrno neurótico. De qualquer modo,
de maneira aberta e positiva para o âmago das relações culturais e sociais de teor não se deveria permitir que esses laços óbvios com as raciologias passadas
cívico-moderno, então ele pode decerto ser mudado em qualquer outra parte da obscurecessem o fato de que a linguagem produzida por esta crise do pensamento
terra Se a "raça" é passível de mudanças a esse ponto, em que então consiste a racial difere de suas antecessoras. Ao enfrentar estes novos fenômenos, aquilo
identidade racial? que podíamos chamar de uma oposição anti-racista deve envolver mais do que o
A aparência difundida de formas de pensamento racial ultranacionalista que mero estabelecimento da linhagem secreta que associa estes grupos
não são classificadas facilmente em termos biológicos ou culturais, mas que parecem contemporâneos com seus antecedentes autenticamente fascistas e malignos ao
carregar a marca significativa de fascismo passado, é outra dimensão da crise da extremo. A "a diáspora nazista silenciosa", referida por Primo Levi nestes termos
raciologia. Na Grã-Breranha, os neofascistas patrióticos do presente continuam precisos, continua a empreender seu trabalho estratégico, mas logo já não será
perdidos devido à memória da guerra de 1939-1945, divididos pelos apelos suficiente mobilizar as memórias fragmentadas do hitlerismo para criar obstáculos
contraditórios que dirigem às figuras de Churchill de um lado e de Hitler do outro. aos seus ativistas, quanto mais para derrotá-los. O nazismo e outras versões
A Frente Nacional Francesa aceitou em suas fileiras toda uma leva de contestadores correlatas do ultranacionalismo populista encontraram novos partidários, e o que é
do Holocausto e apologistas da brutalidade colonial, mas também conseguiu apoiar ainda mais preocupante, novos bandos de imitadores em locais os mais diversos e
candidatos negros e judeus nas eleições de maio de 1997. Hugette Fatna, a candidata inesperados. O glamour desse estilo político específico e sua carga utópica será
que mais se sobressaiu entre eles e secretária da organização para os territórios tratado mais adiante. Eles também se expandiram à medida que aumentou a
franceses de além-mar, declarou orgulhosa, "Sou negra e me orgulho disso... Sou

25. Jonarhan Sreele, "National Effrontery", Guardian (24 de maio de 1997).


24. June Goodwin e Bem Scbiff Heart ofwhueness. Afríkaners Face Black RuIe ín. the New Souüi 26. Gérard Prunier, The Rwanda Crísis: History oiGerocíae (Columbia University Press, 1995),
Africa (Scribner, 1995), p.l77. pp. I03- j 06.

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fasdnio da Raça PAUL GILROY I

distância emocional, psicológica e histórica em relação aos eventos do Terceiro Há um perigo de que este argumento seja lido como nada além do que um
kcich. apelo um tanto antiquado para que nos desfaçamos das ilusões destrutivas do
Todos esses fatores contribuem para uma situação em que diminuem as racismo. Injunções deste tipo têm permeado em geral alguns pronunciamentos
inibições morais ou políticas quanto a se invocar uma vez mais a "raça" como um liberais, religiosos, socialistas e feministas sobre estas questões desde que se forjou
meio principal de classificação das pessoas em hierarquias e de construção de o termo "raça" pela primeira vez. Embora eu valorize essa linhagem política, quero
abismos intransponíveis em tomo de suas identidades discretas e coletivas. Por tentar ser claro sobre o ponto exato onde esta linha de pensamento afasta-se de
que, então, descrever esta situação corno uma crise da raciologia em vez de seus nobres precursores naquelas tradições que contribufram tanto para as idéias
considerá-la como uma glória ascendente? É uma crise porque a idéia de "raça" e práticas do anti-racismo. Todos os argumentos anteriores obedecem à mesma
perdeu muito de sua credibilidade de senso comum, porque o elaborado trabalho arquitetura básica. Eles posicionam o particular, o singular e o específico contra o
cultural e ideológico voltado para a sua produção e reprodução é mais visível do geral, o universal e o transcendente altamente valorizado por eles. Em contraste, a
que nunca, porque ela tem sido despida de sua integridade moral e intelectual, e abordagem que conta com o meu apoio procura romper com estes pares infelizes.
porque há uma chance de impedir sua reabilitação. Impelida pelo impacto do genorna, Ela tem menos a dizer sobre a força irrespondível das reivindicações por
a "raça", tal como foi definida no passado, também se tornou vulnerável às singularidade e particularidade que estimularam o absolutismo étnico. Ao contrário,
reivindicações de urna biologia muito mais elaborada e menos determinista. É por nesta perspectiva a atenção se volta para o outro lado destas equações simultâneas.
isso que é ainda mais decepcionante que trabalhos recentes muito influentes nesta Como ela sugere, deveríamos nos preocupar uma vez mais com a noção de humano
área percam seu vigor na reta final, preferindo permanecer ambíguos sobre se a em que uma especificidade relutante tem sido repetidamente convidada a se
idéia de "raça" pode sobreviver a uma revisão crítica da relação entre seres humanos dissolver. Em minha opinião, estes convites seriam mais plausíveis e atraentes
e sua natureza social em constante mutação." apenas se pudéssemos nos confrontar com, em vez de evitar, a maneira abrangente
O termo "raça" conjura uma variedade peculiarmente resistente de diferença em que se talharam encarnações prévias de uma humanidadeexcludente em códigos
natural, esteja ele articulado nas mais especializadas línguas da ciência biológica e racializantes e habilitados pelas operações do poder colonial e imperial. Em outras
da pseudociência, ou no idioma vernacular da cultura e do senso comum. Ele se palavras, a versão alternativa de humanismo que, com cautela, se propõe aqui,
situa do lado de fora e em oposição à maioria das tentativas de tomá-lo secundário simplesmente não pode ser alcançada por meio de uma recaída nos hábitos altivos
à irresistível similaridade que sobredetermina as relações sociais entre as pessoas e concepções intocadas do pensamento liberal, em especial aqueles relativos aos
e está sempre a revelar a condição trágica que as une na vida de urna espécie direitos jurídicos e concessões soberanas. Isto porque estes expedientes mesmos
comum. O poder subvalorizado desta similaridade humana tão óbvia e quase banal, têm sido manchados por uma história em que não foram capazes de resistir ao
tão próxima e basicamente invariável que passa em geral despercebida, confirma poder biopolítico do pensamento racial que comprometeu suas melhores e mais
também que a crise do raciocínio raciológico acena com uma oportunidade audaciosas ambições. Os seus resultantes fracassos, silêncios, lapsos e suas evasivas
importante, apontando para a possibilidade de deixar a "raça" para trás, de colocar devem se tomar o centro da atenção. Podem ser reinterpretados como sintomas
de lado seu uso mutilador à medida que saímos do tempo em que se podia esperar de uma luta pelas fronteiras da humanidade, contribuindo assim para uma contra-
que ela fizesse sentido. história que leva à porta de entrada mal esboçada pela qual toda concepção
alternativa de humano deve passar. Isto só pode ser alcançado após um ajuste de
contas geral com a idéia de "raça" e com a história das pretensões destrutivas da
raciologia em relação às melhores esperanças e recursos da modernidade. Uma
27. Marek Kahn, The Race Gallery: The Return of Racial Scíence (Cape, 1995) e John Hoberman,
Darwin's Athletes: How Sporr Has Domaged Black America and Preserved the Myth of Race restauração da cultura política é o objetivo evasivo destas operações.
(Hovghton Miftlin, 1997) são dois livros importantes que contra grande parte da força de seus Outro efeito curioso e desconcertante da crise da raciologia é uma situação
propnos argumentos continuam determinados a manter a idéia de ciência racial. em que alguns interesses políticos bastante divergentes são capazes de colaborar

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

para reter o conceito e revesti-lo com poder explicativo. Estranhas alianças e constituiu tão logo o pensamento racial, confuso e assistemãtico, aspirou a se tomar
conexões oportunistas são construídas em nome da pureza étnica e da demanda algo mais coerente, racional e autoritário. Este limiar é importante por definir o
correlata para que diferenças culturais intransponíveis sejam identificadas e ponto de ligação da "raça" com a racionalidade e a nacionalidade. É o início de um
respeitadas. Esse desejo de se apegar à "raça", e de continuar de maneira obstinada período em que a deferência pela ciência, pelos cientistas e pelo discurso científico
e sem imaginação a ver o mundo de acordo com as escalas distintivas estabelecidas em torno da "raça" começou a criar novas possibilidades e orquestrar novas
por ele, engendra associações políticas estranhas, assim como conexões menos variedades de conhecimento e de poder centrados no corpo, o que Foucault
formais entre pensadores raciológicos de diversos matizes. No combate a todos denomina de "anatomia política".
eles, assim como ao seu desejo comum de reter e reinflar o conceito de modo que É bem conhecida a estória de corno essa mudança foi influenciada pelos
ele se tome mais urna vez um ponto central de referência política e histórica, imperativos do comércio e governo coloniais, moldando-se por uma crescente
devemos ser bem claros sobre as dimensões deste momento e as discrepâncias consciência imperial, como foi endossada e depois desafiada pelo desenvolvimento
significativas existentes entre cenários locais distintos. Seria preciso reconhecer da ciência da antropologia, desacreditada pelas conseqüências catastróficas da
que a "raça" tem sido pronunciada de diversos modos. Problemas de compatibilidade ciência racial, silenciada pelos efeitos subsequentes do genocídio nazista, apenas
e de tradução têm se multiplicado com a globalização da cultura em que os códigos para ganhar mais uma vez voz ativa no momento em que surgem os casos de
locais podem ter de lutar contra as investidas do rnulticulturalismo empresarial se Watson c de Crick. Mas as fases mais recentes deste processo - que como já
quiserem reter sua autoridade histórica e seu poder explicativo. Por exemplo, os vimos não é simples e não se reduz diretamente ao ressurgimento de explicações
padrões distintivos de consciência de cor vigentes nos Estados Unidos podem não biológicas - não foram entendidas de um modo adequado.
ser nada mais do que um grilhão para o desenvolvimento do mercado planetário de
produtos de saúde, boa forma, lazer e esporte mencionados acima. Certos traços PARA ALÉM DO Novo RACISMO
comuns, como o estranho prestígio ligado ao valor metafísico da brancura ainda
são recorrentes e continuam a circular bem, mas serão igualmente vulneráveis aos Alguns anos atrás, um grupo desconexo de estudiosos, no qual o filósofo
efeitos de longo prazo desta crise. Alguns padrões locais distintivos decerto inglês Martin Barker era especialmente influente, após reconhecer a mudança nos
persistem, porém o problema se dá com sua longevidade anacrônica. Quando a padrões com que se empregava o discurso da diferença racial na política, começou
comunicação se torna instantânea, a crise do significado racial é ainda mais a falar sobre o surgimento daquilo que denominou um Novo Racismo. Este racismo
aprofundada devido ao modo desigual como as adesões à idéia de "raça" se era definido por suas inclinações fortemente culturalistas e nacionalistas. Se no
desenvolvem, continuando basicamente associadas ao contexto do passado a raciologia fora arrogante em sua certeza imperial de que a biologia era
superdesenvoivimento. destino e hierarquia, esta nova corrente de persuasão deixava claro que não se
Não podemos deixar de nos lembrar sempre que o conceito de "raça", tal sentia à vontade com a idéia de que a "raça" pudesse ter bases hiolõgicas. Em vez
como é empregado na linguagem cotidiana de senso comum para significar disso, a consciência de "raça" era vista como intimamente ligada à idéia de
características conexas e comuns em relação ao tipo e à ascendência, é uma nacionalidade. As nações históricas autênticas tinham conteúdos culturais discretos.
invenção relativamente recente c absolutamente moderna. Embora seja uma Sua preciosa homogeneidade as dotava de grande força e prestígio. Todos os tipos
insensatez sugerir que o mal, a brutalidade e o terror têm início com a chegada do de perigos se manifestavam onde quer que grandes fatias "indigestas" de
racismo cientifico no final do século XVlll, também seria um erro minimizar a assentamentos estrangeiros tivessem lugar. O conflito era visível sobretudo ao
importância daquele momento como ponto de ruptura no desenvolvimento do longo das linhas culturais. É claro, esses estrangeiros Lamentavelmente
pensamento moderno sobre a humanidade e sua natureza. Mesmo as versões pré- transplantados não eram definidos como inferiores, menos valiosos ou menos
científicas da lógica de "raça" multiplicaram as oportunidades de seus partidários admiráveis do que seus "anfitriões". Talvez não fossem infra-humanos, porém,
para fazer o mal livremente e justificá-lo perante si e os outros. O problema se estavam certamente fora de lugar. Os problemas sociais, económicos e políticos

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que se seguiram à sua importação equivocada poderiam ser resolvidos tão somente pode ser estabelecido aqui." A ficção perniciosa das identidades separadas, mas
com o restabelecimento da simetria e da estabilidade que decorreria assim que iguais, baseadas em pátrias distintas, foi um importante sinal de mudança em que a
eles fossem devolvidos aos lugares a que pertenciam. A natureza, a história e a idéia de tradições nacionais e étnicas opostas foi empregada para legitimar e
geopolítica determinavam que as pessoas deveriam apegar-se àquelas de sua espécie, racionalizar a passagem das hierarquias naturais para as hierarquias culturais. Esta
acomodando-se melhor nos arnbientes que combinavam com seus modos culturais mudança não foi, é claro, absoluta. Natureza e cultura podem ter funcionado como
distintivos, e portanto, modos nacionais de estar no mundo. Inventaram-se versões pólos nitidamente exclusivos nos modelos do pensamento moderno em seus inícios,
míticas de ecologia cultural para racionalizar as vidas dessas discretas identidades mas tal como as implicações orgânicas da palavra "cultura" revelam, os limites
nacionais e raciais. Os alemães tomaram-se um povo de suas florestas, enquanto entre elas têm sido sempre porosos. O Novo Racismo endossou a anexação da
que os britânicos eram uma nação cuja atividade de navegação forrnou seu caráter idéia de diferença natural devido às pretensões de culturas nacionais mutuamente
interior em essência. Em todos os casos, fragmentos de verdade auto-evidentes exclusivas que se colocavam agora em posições opostas. Na geometria política
nutriam as fantasias de sangue e pertencimento" que, por seu turno, demandaram dos Estados-nação, a cultura foi equiparada não pela natureza, mas por outras
uma elaborada cartografia geopolítica da nacionalidade." culturas. O que parece novo sobre o Novo Racismo, vinte anos após este
Os argumentos culturalistas do Novo Racismo desfrutam de um apelo residual pensamento ter sido empregado pela primeira vez, não é tanto a ênfase reveladora
prolongado. Padrões similares apareceram em diversos outros cenários. Eles eram na cultura que foi a sua marca intelectual registrada, mas a maneira pela qual seus
evidentes na Grã-Bretanha, onde a diferença cultural em vez da hierarquia biológica ideólogos refinaram as velhas oposições - natureza e cultura, biologia e história -
emergiu como a substância central dos problemas raciais pós-coloniais da nação. numa nova síntese: urn bioculturalismo que, como Barker apontou, extraiu sua
Eram audíveis nos Estados Unidos, onde cinco grandes aglomerações racial-culturais energia determinista dos recursos intelectuais permitidos pela sociobiologia."
(asiáticos, negros, hispânicos, brancos e americanos nativos) apareceram e Quando se faz esta afirmação, é preciso sempre enfatizar que há muitas
assumiram muitas daquelas características fatalmente associadas com grupos gradações subjacentes entre o biológico e o cultural e que as versões culturalistas
raciais do século XVllI; e também eram evidentes em partes da Europa, onde os do discurso racial- ainda que superficialmente mais benignas do que a força mais
conflitos entre trabalhadores migrantes e seus anfitriões ressentidos foram re- crua da teoria biológica de "raça" - não são menos malévolas ou brutais para
articulados nos moldes de uma grandiosa oposição cultural e religiosa entre o aqueles que estão no elo final das crueldades e terrores promovidos por elas. Com
universalismo cristão e o fundamentalismo islâmico ressurgente. estes importantes reparos em mente, é melhor dizer que o ponto de partida deste
O papel histórico destas noções culturalistas na consolidação e livro é afirmar que a era daquele Novo Racismo está de fato terminada. Isto não
desenvolvimento do Apartheid na África do Sul já está claro. As passagens mais deveria ser interpretado como uma sugestão de que estamos portanto a retornar
amplas da biologia para a cultura, da espécie para c etno, da hierarquia rígida e para alguma versão mais velha e familiar de determinismo biológico. É verdade
previsível para os diferentes riscos representados pela alteridade cultural, o que que uma reelaboração genômica da biologia reemergiu para fornecer os temas
era tão fascinante quanto contaminador, estavam todas prefiguradas até certo ponto pessimistas dominantes em conversas sobre a "raça", mas a mera presença do
na constituição do sistema de Apartheid. Se essas fOTIDas de poder e de autoridade que é mais bem entendido como uma perspectiva pós-biológica não confirma meu
eram, ou não, largamente representativas do governo colonial em geral, isto não diagnóstico. Há diferentes novas versões do determinismo em outros países. Eles
situam e usam o corpo humano de numerosas maneiras contrastantes. A maneira
impaciente com que outros tipos menos mecanicistas de explicação social e histórica
28. Martin Thom, Republics, Natíons and Tribes (Verso, 1995).
29. Gunrram Hcnrik Herb, Under lhe Map ofGermany: Ncuionaíísm. and Propaganda, 1918-1945
(R\'mtledge, 1(97); lerem)' Black, Maps and Hístory (Yate University Press, \997), em e~pecia\
30. Mahmood Marndani, Citizen and Subject (Princeton University Prcss. 1997).
capítulo 4.
31. Martin Barker, The New Racism (Junction Books, 1980).

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ENTRE eAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

são silenciados pelo genoma revela a transfiguração da biológica em algo imprevisto: compêndios de raciologia clássica do século XVIII eram repletos de imagens.
um micro-mecanismo incompleto no qual os organismos devem ser projetados, Suas explicações iam rapidamente de ilustração a ilustração. O poder duradouro
esmiuçados com ferramentas e emendados e a vida humana assume qualidades dos mais conhecidos documentos visuais - pinturas de cabeças caucasianas e
associadas com o mundo morto, ameaçador, mas complacente das máquinas. nórdicas, ou dos vários crânios a serem medidos, desenhados e classificados - era
Esta mudança de perspectiva demonstra que a raciologia de hoje não está mais do que um contraponto icônico ao registro de uma respeitável ciência raciaL
mais confinada aos hábitos cognitivos e perceptivos da anatomia política. Ela foi Com isso temos uma possibilidade interessante de que a cognição de "raça" nunca
levada por mudanças tecnológicas e conceituais em direção a escalas cada vez tenha sido um processo exclusivamente lingüístico, envolvendo desde o seu princípio
menores. Deste modo, o que parece ser o renascimento do biologismo não é de um distintivo imaginário óptico e visuaL A plenitude total dos ícones e imagens
fato o ressurgimento de antigos códigos coloniais e imperiais que acentuavam a racializadas transmite algo profundo sobre as formas de diferença engendradas
hierarquia em vez da simples diferença, mas parte de uma transformação por esses discursos. As diferenças raciais foram descobertas e confirmadas em
contemporânea maior nos modos com que as pessoas conceituam a relação entre amostras fragmentadas de características físicas. A combinação de fenótipos
natureza, cultura e sociedade, e a relação entre a liberdade das pessoas e a sua escolhidos para identificar uma "raça" gerou com tamanha intensidade as categorias
ação humana. O status da "raça" transforma-se inevitavelmente com isso. Sim, raciais escolhidas que o pensamento anti-raciológíco logo se apercebeu que os
estamos uma vez mais num período em que as diferenças sociais e culturais têm critérios específicos variavam no interior dos grupos selecionados, assim como
sido codificadas de acordo com as regras de um discurso biológico, mas nunca é entre eles. Minha preocupação aqui não é com a história bem conhecida daquelas
demais lembrar que este regime raciulógico mais recente difere de seus tentativas fadadas ao fracasso de se produzir categorias raciais coerentes por
predecessores. Não devemos encará-lo como se representasse um retorno às meio da escolha de combinações representativas de certos fenótipos: lábios,
ambições culturalistas do velho, isto é, do Novo Racismo. É um fenômeno distinto mandíbulas, textura dos cabelos, cor dos olhos, e assim por diante. É bem mais
que precisa ser apreendido e contraposto enquanto tal. A "Raça" não pode ser interessante perceber que essa atividade de produção da "raça" exigiu uma síntese
mais ossificada e, como é possível prever, é a centralidade do gene, característico do logos com o ícone, da racionalidade científica formal com algo mais - algo
deste discurso, que define a sua abordagem determinista da ação humana em visual e estético em ambos os sentidos desta palavra escorregadia. Eles resultaram
geral e da formação de grupos raciais em particular." conjuntamente numa relação específica com O corpo e num modo de observação
A história da escrita científica sobre as "raças" se faz através de uma do corpo." Eles se fixaram num certo tipo de percepção que favoreceu escalas
seqüência longa e sinuosa de discursos sobre morfologia física. Ossos, crânios, específicas de representação, podendo apenas prosseguir com base no isolamento,
cabelo, lábios, narizes, olhos, pés, genitália e outras marcas somáticas de "raça" quantificação e homogeneização da visão. Foucault é o pesquisador mais famoso
têm um lugar especial nos regimes discursivas que produzem a verdade de "raça", das conseqüências epistemológicas que acompanharam a institucionalização desse
tendo-a descoberto, repetidas vezes, alojada no corpo e nele inscrita. A historiadora olhar antropológico e sua "autonomização da visão"."
da ciência Londa Schiebinger demonstrou como o estudo de componentes e zonas
corporais ajudou de início a focalizar o olhar racializante, a investi-lo com autoridade
científica verdadeira e a constituir a "raça" em formas fortemente marcadas por
características de gênero, produzindo ao mesmo tempo uma compreensão de gênero
34. Martin Kemp, "Ternples of lhe Body and Temples of lhe Cosmos: Vision and Visualization in
e sexo que saturou os discursos entrelaçados de "raça", nação e espécie.:" Os
lhe Vesalian and Copcrnícan Rcvolutions'', ín Bnan S. Haigrie, org., Picturing Knowledgc:
Histoticol and Philosophical Problcrns Conccmíng rhe Use of Ar! in Science (University of
Toronto Press. 1996), ppAO-85.
32. Steven Rose, Lifelines: Biology, Freedom, Determinism (Penguin Books, 1997).
35. Jcnathan Crary, Techniques ofthe Observa: 011 vísion and Moderniry iII lhe Nínereenth Cemury
33. Lenda Schiebinger, Nature's Body: Gender in the Makin[? o/Modem Scíance (Bcacon Press,
1993). (MIl' Press, 1992).

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ENTRE CAMPOS" Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

A idéia moderna de raça favoreceu uma escala específica de representação numa paisagem estranhamente vazia. Quase dois séculos depois, um encontro
e funcionou dentro dos mais estritos limites percepcionais, quer as marcas, os diferente com os limites da humanidade negra tomou-se possível mediante os
órgãos e as feições distintivas tenham sido descobertas na superfície externa do prazeres dúbios do filme de animação Space Iam, A intra-humanidade terrena de
corpo, quer tenha se pensado que eles residissem em algum lugar em seu interior, Baartman é então substituída pela presença grandiosa de um Michael Jordan
onde se imaginava que as propriedades escondidas do sangue, dos ossos e dos divino, que colabora num radiante pas de deux extraterritorial com Perna Longa
nervos, diferenciados racialmente, regulassem as manifestações sociais e culturais. - o que é uma reductio ad absurdum das lororas trapaceiras africanas. Quando
Podemos chamar esse ratio distintivo de escala da anatomia comparativa. A idéia Jordan ganha asas para nos persuadir de que homens negros podem voar, seria
de "raça" vazou um tanto rapidamente dos confins sublimes, onde essa escala foi possível concordar que os regimes percepcionais do século XVIII, que nos deram
primeiramente codificada e calibrada, mas ela sempre funcionou melhor em conjunto anteriormente a "raça", tenham sido suplantados juntamente com muitas de suas
com aquelas maneiras de olhar, enumerar, dissecar e avaliar. Abstrata e metafísica, pretensões epistemológicas e metafísicas? Agora que o microscópico cedeu lugar
a "raça" definiu e consolidou suas tipologias acidentais. Ao se dirigir para o empírico de modo tão abrangente ao molecular, quero perguntar se essas convenções
e o concreto,ela (re-jproduzíu um conjunto de métodos.regulou uma certa estética," obsoletas de representação e de observação foram deixadas para trás. Isto
e delimitou discretamente o campo de atuação da ética pautada pelos códigos de significaria que grande parte do discurso contemporâneo que anima as "raças" e
cor. As verdades mais irresistíveis da anatomia política foram produzidas produz a consciência racializada é um fenômeno anacrônico e mesmo reduzido a
"teatralmente", tiradas do chapéu fornecido pela ciência raciológica, assim como vestígios. São as telas em vez das lentes que agora mediam a busca de verdades
tantos coelhos assustados exibidos diante de uma multidão ávida e barulhenta. Foi corpóreas. Este é um sinal potente de que a "raça" deveria ser abordada como
nessas condições que a idéia de "raça" desfrutou de seu poder máximo em relacionar uma pós-imagem - um efeito prolongado de se olhar apenas muito casualmente
a metafísica com a tecnologia cientifica. Reforçada pela crença em culturas para o brilho prejudicial que emana de conflitos coloniais no país e no exterior.
nacionais separadas e opostas, ela inspiraria mais tarde as antropologias coloniais Desconsiderando por um momento o perigo óbvio representado por ambições
que se sucederam às versões mais antigas da raciologia científica. Nossa situação eugénicas contemporâneas que não empregam a palavra "eugénico" e nem
é evidentemente diferente. A convocação do ser racial tem sido enfraquecida por coincidem com divisões derivadas de velhas categorias raciais, quero afirmar que
uma outra revolução tecnológica e comunicativa, pela idéia de que o corpo é nada é possível que os hábitos de percepção e de observação que têm sido associados
mais do que um momento acidental na transmissão de código e informação, por com a consolidação da nanociência da atualidade possam também facilitar o
sua abertura para novas tecnologias de imagem, e pela perda da mortalidade como desenvolvimento de um humanismo enfaticamente pós-racial. A genômica pode
um horizonte diante do qual a vida deve ser vivida. transmitir o sinal para reificar a "raça" enquanto código e informação, mas há um
A negritude pode agora significar um prestígio vital ao invés de abjeção num sentido em que ela também aponta de forma não intencional para a superação da
setortelevisivo global de infoenrretenimento em que os resíduos vivos de sociedades "raça". Esta superação não pode ser um ato único e audacioso de criatividade,
escravistas e os traços provincianos do conflito racial americano precisam dar uma negação triunfante e para todo o sempre. Deve ser mais como um definhamento
lugar a diferentes imperativos derivados da planetarização do lucro e do cultivo de gradual surgindo de uma crescente irrelevãncia. Em escalas menores do que as
novos mercados distanciados das memórias do cativeiro. Em 1815, Cuvier microscópicas que submetem atualmente o corpo ao escrutínio, a "raça" toma-se
encomendou retratos melancólicos de Saartjie Baartman - mais tarde ela seria menos significativa, atraente ou saliente em termos das tarefas básicas voltadas
dissecada por ele - os quais foram pintados por Leon de Wailly de diversos ângulos para a nossa cura e nossa proteção. Portanto, temos uma chance de reconhecer a
condição anacrônica da idéia de "raça" como uma base segundo a qual os seres
humanos são distinguidos e classificados. Podemos tirar uma medida extra de
36. Alex Potrs, Flesh and lhe Ideal: Winckelmann and the Origins ofAr' Hístorv (Yale University coragem do fato de que os proponentes da idéia de "raças" estão mais longe do
Press, 1994), em especial seções IV e V
que nunca de serem capazes de responder à questão básica que os confunde

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desde o alvorecer da raciologia: se a "raça" é uma maneira útil de classificar dissidentes e de um mundo público alternativo. As ligações produzidas sob essas
pessoas, então quantas "raças" existem? É raro, hoje em dia, encontrar quem fale condições eram inerentemente inseguras. Sua instabilidade se somava à capacidade
sobre uma "raça mongolóide", de atração das soluções autoritárias que ofereciam atalhos para a solidariedade,
Já tivemos que observar que é possível que corresponda à vontade política em especial quando a consciência cotidiana da diferença racial não alcançava os
de algumas pessoas no interior da comunidade imaginada de um grupo racializado modelos de nacionalidade que haviam sido emprestados largamente da história
prosseguir com base na unanimidade dada ou automática, considerando a sua própria eurocêntrica do grupo dominante. Como veremos, quando a química política da
"raça" como uma magnitude única e indiferenciada aglutinada não pelas nação, raça e cultura se juntou para produzir estes resultados alarmantes, o
superficialidades da história ou da linguagem, religião ou conquista, mas pela renascimento do pensamento fascista e o reaparecimento de movimentos políticos
similaridade essencial e subjacente codificada em seus corpos. Aqui, é claro, a uniformes e austeros já não estavam distantes. Estes desenvolvimentos nem sempre
ciência e o mundo cotidiano da fala racial, preferiria dizer racializante, separam- têm sido assinalados pelos emblemas convenientes desavergonhadamente ostentados
se enquanto o misticismo e o ocultismo assumem o controle. A linguagem política pelos fascismos no passado.
usada para descrever e justificar esses modelos de pertencimento também tem
sido atualizada em parte. As noções sobre a unidade essencial de "raças" específicas ECOLOGIA, ÉTICA E ÜBSERV ÂNCIA RACIAL
têm prosseguido igualmente com o tempo, por vezes adquirindo a aparência externa
da Nova Era e uma correspondente linguagem terapêutica. Veremos que essas A palavra "ecologia" foi cunhada em 1886 por Ernst Haeckl, o discípulo
perspectivas "essencialistas" e "primordialistas" tornaram-se ainda mais viciosas alemão de Darwin e Lamarck que se tornaria conhecido por sua zoologia e sua
devido às feridas que ganharam à medida que a idéia de uma identidade fundamental crítica ultranacionalista dos efeitos disgênicos da civilização Ocidental." A
compartilhada e é desafiada pela emergência de graves conflitos intra-raciais. elaboração do termo durante o desenvolvimento da ciência racial, antes e ao longo
No mundo superdesenvolvido, a desindustrialização e a brutal diferenciação do governo nazista, deveria ser reconhecida antes de ser aqui analisada. Ela pode
econômica complicaram ainda mais esta situação. Em todo lugar, as lutas que se ser conectada em profundidade às noções de Lebensraum (espaço vital) que não
desenvolvem a partir da família, do gênero e da sexualidade também têm sido foram criadas pelas políticas populacionais racistas e pelo planejamento agrícola e
claramente visíveis no interior dos mesmos grupos que costumavam ser identificados científico do período nazista, mas faziam parte deles." Aquilo que só se pode
como comunidades raciais unitárias. O impacto desses fatores de divisão tem se chamar de "sensibilidades ecológicas" tem um papel elaborado nas teorias
intensificado com as mudanças que ocorreram na relação entre a "raça" e o princípio geoorgânicas, biopolíticas e governamentais dos geógrafos alemães Friedrich Ratzel
de nacionalidade. Este último perdeu parte de seu apelo e muito de sua complexidade e Karl Haushofere do geopolítico sueco do começo do século XX, Rudolf Kjellén."
porque tem sido assimilado demasiadamente rápido tanto à idéia de culturas Estes escritores proporcionaram importantes recursos conceituais à ciência racial
raciaJizadas fechadas e exclusivas, como aos determinismos biológicos que reduzem nazista, ajudando-a a conceitualizar o Estado como um organismo e a especificar
o comportamento, a socialídade e os interesses comuns à informação inscrita nas
células ou nas combinações das moléculas.
37. Howard Kaye observa que o wenratsct de Haeckl, um tratado sobre o "nacional socialismo em
Em matéria de culturas políticas negras no período pós-emancipação, as
defesa da comunidade racial," vendeu mais de 300.000 volumes entre 1900 e 1914. Howard
abordagens essencialistas voltadas para a construção de solidariedade e mobilização Kaye, The Social Meaning 01Modem Biology (Yale Llniversity Prcss, (986), p. 38.
comunal sincronizada apoiaram-se com freqüência nos efeitos da hierarquia racial 38. Mechnld Rõssler, '''Area Research' and 'Spatial Planning' from lhe Wciwar Republic to lhe
Germam Federal Republic: Creating a Society with a Spanal Order uuder National Socialism", in
para suprir o agente aglutinador que poderia por seu turno precipitar a consciência
Monika Renneberg e Mark Walker, orgs., Science, Tecimologyand Naiionai Socialism (Cambridge
nacional. Experiências rotineiras de opressão, repressão e abuso - por mais University Prcss, 1994), pp. 126-138.
abrangentes que fossem - não puderam ser transferidas para a arena política da 39. Sven Holdar, "The Ideal State and rhe Power ofGeography: The Life-Work of Rudolf Kjellén",
qual os negros eram barrados. Ao contrário, elas se tomaram as bases das culturas Politicai Geography 11 (1992), pp. 307-323; Herb, Unja lhe Map ofGennany.

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ENTRE CAMPOS •• Nações, CuLturas e o Fascinio da Raça PAUL GILROV

as conexões necessárias entre a nação e sua área de habitação. Lidaremos de um à intcrsubjctividade pode ser suplementada ainda por outra idéia. Ela se esboça a
modo distinto com esta abordagem por termos de encarar suas associações partir do estudo fenomenológico de Frantz Fanon a respeito da corporificação
históricas com aquela raciologia, assim como com o hitlerismo e com diversas "epidermizada'', tendo sido diretamente inspirado por sua amarga descoberta
outras tentativas para deduzir a forma ideal de governo de analogias orgânicas." hegeliana de que a desgraça da dominação racial não é a condição de ser negro,
Atualmente, tendo como ponto de partida uma reflexão própria sobre as tentativas mas de ser negro em relação ao branco." As complexidades ontológicas da
do botânico Sir Alfred George Tanslcy para teorizar o ecossistema mediante a condição sofrida do negro que Fanon descortinou nas operações do poder colonial
interação padronizada entre os organismos e os habitats no sentido mais amplo não estão mais, se que o estiveram alguma vez, exclusivamente.confinadas àqueles
é

possível, os críticos mais perspicazes do determinismo genético têm instigado uma locais contestados. De fato, as mudanças políticas e culturais descritas por mim,
percepção ainda mais complexa da interatividade que governa as relações entre como parte da crise da "raça", trouxeram para o âmago das preocupações
os seres humanos e seus meio-ambientes. Uma perspectiva ecológica refinada contemporâneas as mesmas ansiedades relativas às bases sobre as quais as raças
complementa essas criticas com um organicismo complexo, caótico e resolutamente existem. Minha sugestão é que a única resposta apropriada para esta incerteza é
não-redutivo. Com isso, confunde-se as noções mecânicas de causa e efeito e faz- exigir a liberação não só em termos da supremacia branca, por mais que isto seja
se uma oposição sonora à redução da particularidade humana individual aos "mapas" necessário com urgência, mas em termos de qualquer pensamento racializante e
de suas seqüências deDNA. Richard Lewontin posicionou-se a partir da perspectiva I;
raciólogico, de um olhar racializado, de um pensar racializado e de um pensar
crítica descrita por ele como uma "posição lamarckiana reversa" ao enfatizar que racializado sobre o pensar. Há apenas uma outra questão dominante associada
com estas aspirações utópicas. Por mais relutantes que estejamos em dar O passo
É necessário mais do que o DNA para fazer um organismo vivo... o organismo não no sentido de renunciar à "raça" como parte de uma tentativa de trazer a cultura
se calcula a partir de seu DNA. Um organismo Vivo em qualquer momento de sua política de volta à vida, este trajeto deve ser considerado porque parece representar
vida é a conseqüência única de uma história de desenvolvimento que resulta da a única resposta ética aos erros conspícuos que a raciologia continua a instigar e
interação de forças internas e externas, bem como da sua determinação por elas. As
sancionar,
forças externas,que comumenrepensamoscomo "meio-ambiente",são elas mesmas
em parte uma conseqüência das atividades do próprio organismo à medida que ele Fazer esta observação ética tem ainda uma significância adicional. Os
produz e consome as condições de sua própria existência. Os organismos não estudiosos da "raça" não têm estado sempre atentos o suficiente às dimensões
encontram os mundos nos quais se desenvolvem. Eles o fazem. Em termos éticas de nossas próprias práticas, particularmente quando analisam a associação
recíprocos, as forças internas não são aurônomas, mas agem em respostaao externo. recorrente entre a raciología e o mal. Esta reforma mais do que necessária de
Parte do maquinãrio químico interno de uma célula s6 é manufarurada quando
nosso pensamento tornou-se imperativa no momento em que a memória do genocídio
condições externas o requerem... Nem é o "interno" idêntico ao "genético"."
nazista deixou de formar a constelação sob a qual trabalhamos. A renúncia
deliberada e extensiva da "raça", tal como proposta aqui, visualiza mesmo o
Uma sensibilidade similar para a complexidade desses processos interativos
aparecimento de um humanismo metafísico alternativo, tendo como premissa uma
pode ser útil quando passamos do enfoque nos meio-ambientes imediatos, onde os
relação face a face entre diferentes atores - seres de igual valor -como algo
organismos individuais existem, para nos voltarmos em vez disso para as condições
preferível aos problemas de inumanidade criados pela raciología. Se no final das
ecológicas em que as relações entre sujeitos/atares são encenadas. Esta atenção
contas esta metafísica ganhar um molde religioso, como nos casos muito diferentes
apresentados, por um lado, pelai> escritos mais filosóficos de Martin Luther King,

40. Anua Bramwell, The HistoryofEeology inthe Twenticth. Century (Yale University Press, 1989),
p.50.
41. Richard Lewontin, The Doctrme ofDNA: Biology as Ideology (Penguin Books. 1991), pp. 63-
64. 42. Fanon, Black Skin, White Masks, p. 110.

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça I PAUL GILROY I

Jr., e, por outro, pelo trabalho do filósofo Emrnanuel Levinas, ela poderá ser resgatada Esta fase do argumento funda-se no desejo de ligar o estudo histórico e
dos piores excessos de idealismo apenas se for reconhecida como tendo incorporado crítico das raciologias e das metafisicas "raciais" às novas histórias da visualidade
uma tentativa provocativa de reativar sensibilidades políticas de modo que elas e percepção que têm sido produzidas. Procura-se conectá-los com algumas críticas
fluam para fora elos padrões definidos para elas num mundo de Estados-nação oportunas da identidade étnica absoluta ou integral e com as genealogias da
fortificados e grupos étnicos antagônicos. Os espaços em que as "raças" ganham subjetividade às quais este argumento tem se associado. Acima de tudo, quero
vida constituem um campo de onde a interação política tem sido banida. Ela é em ligar o estudo crítico da "raça" com um entendimento igualmente crítico dos meios
geral substituída pelo entusiasmo pelas pseudo-solidariedades mais baratas; formas técnico-científicos que fomentaram e mediaram as relações particulares com nossas
de conexão que são imaginadas como tendo surgido facilmente de fenótipos, culturas personalidades racializadas no passado moderno. O absurdo fundante da "raça"
e bionacionalidades compartilhadas. Este é um período em que a fácil invocação como um princípio de poder, diferenciação, e classificação deve continuar agora
da "raça" permite uma confirmação regular do recuo da atividade política, definida persistente e obstinadamente no nosso campo de visão. Esse movimento inicial
aqui não como uma ciência de governar, mas como o exercício de poder numa está evidentemente fora de moda, como não preciso lembrá-los. O pragmatismo
cultura pública racional capaz de promover simultaneamente o desenvolvimento entrincheirado na "Raça" tem se aliado com as versões simplistas da fenomenologia
tanto individual como social. Se escolhermos testar a rota, que tem o meu apoio, racial atribuída erroneamente a Fanon por críticos que procuram uma ontologia
rumo à meta evasiva da democracia multicultural, a reabilitação da política requer infalível no seu trabalho. Estes desenvolvimentos têm sido complementados pelo
gestos audaciosos e expansivos. A demanda pela liberação em relação à "raça" apelo de nacionalismos articulados, porém de percursos frágeis, enraizados
toma-se ainda mais eloqüente no contexto especial proporcionado por este projeto firmemente em circunstâncias afro-americanas, assim como pelo cinismo e
ético e político. Torna-se um pré-requisito essencial se quisermos dar respostas oportunismo. Essas tendências interligadas concordam que o fato frio e corpóreo
efetivas aos problemas patológicos representados pelo racismo genômico, o glamour da "raça" não pode e não deveria ser teorizado fora do campo de visão de acordo
da similaridade e os projetes eugênicos nutridos na atualidade pela sua confluência. exatamente com o que eu proponho.
Você ainda tem dúvidas. Talvez ajude observar que aspectos da "raça", tal
OBSERVANDO A "RA('A" como tem sido entendida no passado, já estão sendo exorcizados por novas
tecnologias da personalidade e da constituição da espécie, e que o uso dessas
Uma vez que as dimensões da crise da raciologia já foram bastante tecnologias, particularmente no campo médico desencadearam conseqüências
examinadas, podemos nos voltar agora para o outro objetivo principal deste capítulo políticas significativas. As velhas economias representacionais modernas que
inicial: questionar e explorar algumas das tensões surgidas de uma consideração reproduziram a "raça" em termos subdérmicos e epidérmicos estão sendo hoje
crítica de como "raça" é vista. A intenção aqui é contribuir para um balanço de transformadas, de um lado, pelas mudanças científicas e tecnológicas que se
como os signos e símbolos da diferença racial tomaram-se aparentes. Como se seguiram à revolução na biologia molecular e, de outro lado, por uma transformação
pode prever, a postura "pós-racial" que tenho tentado desenvolver não admite a igualmente profunda nas maneiras como os corpos são postos em imagens. Ambas
integridade de nenhum esquema perceptual reconhecidamente natural. Não se têm implicações ontológicas extensivas. No momento atual, os corpos tornam-se
concede aqui a possibilidade de que a "raça" possa ser vista espontaneamente, em geral acessíveis a novas formas de escrutínio possibilitadas pelas imagens
sem a mediação de processos técnicos e sociais. Haverá uma variação individual, médicas multidimensionais que usam ultra-som e radiação eletromagnética, assim
mas isto não é a "raça". Não existe uma percepção em estado natural, sem treino, como luz natural e artificial. Alguma vez você, seu corpo, ou o corpo de sua criança,
residindo no corpo. O sensorium humano precisou ser educado para a observação já foi escaneado? Você reconhece a densidade desta mudança õtica? Em caso
das diferenças raciais. Quando se trata da visualização de grupos raciais distintos, afirmativo, talvez você pudesse considerar esse desenvolvimento como outro sinal
~ preciso uma grande dose de sintonização. forçoso de que nós começamos a deixar de lado as velhas marcas visuais da
"raça". Após nos despedirmos delas, poderíamos agir melhor no sentido de nos

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascinio da Raça PAUL GILROY

ntrapor às injustiças geradas por elas se fizéssemos um esforço mais consistente quanto frustrante em matéria das mudanças recentes no olhar, na observação e no
co . .
para desnaturalizar e desontologizar a "raça", desagreg.ando com isso as ~ac!()~oglas. conhecimento do corpo racializado. Apesar de toda a sua grande compreensão
Esta não é uma opção fácil. Ela tem necessidade da reconsunnçao das histórica do problema do observador individual como um Iocus de conhecimento,
esperanças antí-racistas. No futuro, elas terão de transitar facilmente atr~vés das da formação de epistemologias com investimentos inéditos em matéria de
fronteiras erigidas entre texto e discurso, espetáculo e performance. Tento de se observação, e da mudança "assinalada pela passagem da ótica geométrica dos
mover para fora dos ângulos de visão, das estratégias de busca da verdade e das séculos XVII e XVIII para a ótica fisiológica, que dominou ambas as discussões
escolhas morais e políticas que ainda oferecem garantias em demasia às pretensões filosófica e científica da visão no século XIX",43 ele parece não ter captado
normativas da raciologia. Esta linha de ataque à observância racial necessita de inteiramente o significado das disputas prolongadas com relação à desunidade
uma reflexão franca sobre o interesse de se reificar a "raça" que tem surgido raciológica da humanidade que assistiram à emergência da biopolítica. O humano
repetidas vezes em análises acadêmicas _. algo que não era possível quando a e o infra-hurnano emergiram juntos, e a raça era a linha entre eles.
ligação entre as políticas anti-racistas e a pesquisa acadêmica intervencionista era Ê de se lamentar que Foucault não estivesse realmente interessado no
mais forte e mais próxima do que hoje em dia. Trilhar este caminho significa o significado das diferenças raciais ou nos testes providos por elas para a "nomeação
retomo ao duro trabalho envolvido na identificação e exploração das tecnologias do visível" no século XVIII, bem como outras tentativas correlatas de "colocar a
políticas que governam nossas relações com nós mesmos, com a nossa humanidade linguagem o mais perto possível do olhar que observa"." Apesar de sua análise,
e com a nossa espécie. Conforme se sugeriu, estas tarefas nos levam para além que testemunhou o nascimento do biopoder, parecer pronta para um confronto
dos discursos e da semiótica .de "raça" rumo a um confronto com as teorias e decisivo com a idéia de "raça", isto nunca aconteceu. Em termos simples, ele
histórias do espectador e da observação, dos aparatos visuais e da ótica. Elas nos identificava a figura do homem tanto como pivô quanto como produto de uma nova
pedem para repensar o desenvolvimento de um imaginário racial de maneiras mais relação entre as palavras e as coisas, mas a partir daí passava rápido demais para
distanciadas da autoridade racionalizada do logos e estreitamente afinadas com o um sentido de humanidade moderna unificada devido à sua passagem lastimosa da
poder diferente das tecnologias visuais e de visualização. A política de "raça" sangüinidade para a sexualidade. Por exemplo, ele deixou de considerar como a
contou com ambos e também os coordenou. idéia segundo a qual os Asiaticus lurídus, Americanus rubeecus e Afer niger
Já me referi às transformações profundas nas maneiras com que o corpo é seriam menos do que humanos pode ter afetado esta transformação e seus
entendido, experimentado e observado que se seguiram à emergência da biologia correlatas epistêmicos. Talvez ele não fosse perseguido, como acredito que ainda
molecular. O uso de computadores como modelação e as tecnologias de imagem deveríamos ser perseguidos, pela famosa imagem de um orangotango levando
estendendo a visão de um modo protético até as nanoescalas podem ser ligados ao uma garota negra inscrita no frontispício do Sistema Genuíno e Universal de
impacto do processamento digital e outras abordagens afins do corpo que permitem História Natural de autoria de Linnaeus. O problema central e inescapãvel desta
vê-lo e entendê-lo de novas maneiras, principalmente como código e informação. famosa imagem é o parentesco sugerido entre essas espécies sub e infra-humanas,
Devemos ficar especialmente atentos para as maneiras com que o corpo tem sido mais do que o fato de que sua inter-relação conflitante é engendrada e figurada
posto em imagens em estudos sobre a saúde e a doença, cuja importância é muito através do tropo do estupro. O cenário histórico da imagem e o enigma interpretativo
grande nos delineamentos da cultura contemporânea. Estas novas maneiras de que se apresenta aqui apontam para a questão não resolvida de como "raça" se
nos olhar, entender e relacionar com nós mesmos, apontam mais uma vez para a inter-relaciona com sexo, gênero e sexualidade - algo que está mais longe do que
possibilidade de que o tempo da "raça" possa estar se aproximando do final no
momento mesmo em que os racismos parecem proliferar.
Os primeiros trabalhos de Michel Foucault examinaram os precedentes 43. Jonathan Crary, Teckniques oflhe Observer: 011 Vision and Modemity ín the Nincteenth. Century
históricos significativos dessa emergência contemporânea de novos campos de (Mrr Press, 1992), p. 16.
visibilidade que operam em nanoescalas. Entretanto, ele é um guia tão inspirador 44. Michel Foucault, The Order oí Things (Tavistock, 1970), p. 132.

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ENTRE CAMPOS :: Nações, CuLturas e o Fascinio da Raça PAUL GILROY

nunca de ser resolvido e que define uma nova e urgente necessidade de trabalho A noção crítica de "epidermização", um legado de Frantz Fanon ao nosso tempo, é
futuro. A relação da imagem com esse texto fundante da raciologia levanta outras valiosa neste ponto. Esta noção nasceu das ambições fenomenológicas de um
questões delicadas: as características da nova semiótica pós-vesaliana do corpo e filósofo-psicólogo e do modo distinto como elas enxergaram e entenderam a
a relação entre texto e imagem na constituição performãtica das "raças", que não importância da visão. Ela se refere a um sistema histórico específico para dotar os
era uma relação em que as palavras fossem simples ou consistentemente capazes corpos de sentido, conferindo-lhes qualidades de "cor". Sugere ainda um regime
de dominar as imagens - ícones - que iam bem além de qualquer função meramente perceptual no qual o corpo racializado é confinado e protegido pela pele que o
ilustrativa. envolve. O olhar fixo do observador não penetra essa membrana, mas repousa
O extenso debate a respeito de se O negro deveria ser reconhecido como sobre ela e, ao fazê-lo, recebe as verdades da diferença racial vindas do outro
um membro na família da humanidade (um grupo cuja particularidade foi inaugurada, corpo. Independentemente do que a frenologia ou a fisiognomia possam ter
provada, produzida e celebrada através da relação transformada entre as palavras significado para Hegel - um leitor entusiasta de Lavater - o crânio sob a pele é
e as coisas que se cristalizou no final do século X VIII) pode ter sido mais central agora irrelevante. Esta não é a escala da anatontia comparativa que despontou na
para a formação e a reprodução do pensamento cientifico moderno do que Foucault passagem da história natural para a ciência da biologia. A pele não tem vida
percebeu. Não levanto esta questão para depreciá-lo e nem para reabrir a discussão independente. Não é um pedaço ou um componente do corpo, mas seu invólucro
de como aquele processo tem sido reconstruído pelos historiadores da ciência, mas fatídico. A dermopolítica sucedeu a biopolítica. Ambas precederam a nanopolftica."
sim porque o estudo dele a respeito daquela mudança fatal nos desenvolvimentos O tenno "epidemúzação" de Fanon merece uma aplicação mais ampla do
da ciência e na produção da verdade é um recurso importante em termos de nossa que as suas finnes origens coloniais poderiam sugerir. Emmanuel Chukwudi Eze e
própria situação quando se pode observar mudanças comparáveis nas tecnologias Christian M. Neugebauer lembraram-nos recentemente que a Geografia Física
do corpo. de Immanuel Kant disse mais do que os seus celebrantes contemporâneos gostam
Hoje já ninguém mais enche velhos crânios com balas de chumbo quente. É de admitir sobre os atributos distintivos da resistente pele negra e os problemas
preciso enfatizar que as verdades da diferença racial têm sido buscadas de outras práticos que ela apresenta para a economia doméstica escravista quando a dor
maneiras e produzidas por tecnologias que operam em outras escalas menos tinha de ser infligida no tronco com uma vara de bambu rachada". Tal como as
imediatas. A semiose da Antropologia tem se transformado por diversas vezes opiniões bem conhecidas de Hegel sobre as deficiências estéticas e as limitações
desde o auge das atividades de enchimento de crânios. Precisamos reconhecer intelectuais do Negro, pode-se tomar esses sentimentos como um pensamento
aqui o impacto dos códigos de observação vemacular que têm uma relação tangencial epidérmico exemplar em suas formas emergentes. Numa era em que o poder
ou ambivalentc com a ciência racial propriamente dita. Há regras definidoras de colonial tinha feito da epidermização um princípio dominante de poder político,
"uma gota de sangue" com suas disjunções insensíveis entre os de dentro e os de Fanon recorreu a essa idéia para indicar o estranhamento do corpo e do estar no
fora, "testes do lápis" e outras tecnologias sombrias da alteridade que pretendem mundo em relação ao ser humano autêntico que as relações sociais coloniais haviam
descobrir os sintomas de degeneração nos tons especiais de rosa e vermelho que forjado. Para ele, o poder epidennizado violava o corpo humano na sua humanidade
se pode encontrar na base das unhas da mão. Contudo, contando com a história e simétrica, intersubjetiva e social, em sua existência como espécie: em sua frágil
filosofia da ciência de Kuhn em nossas estantes, compreendemos as contingências
da busca da verdade, as pressões de ordem institucional, o poder ativo da linguagem
para moldar a pesquisa e o status provisório de todo:'> 05 empreendimentos 45. A discussão de Hegel sobre frenologia e fisiognomonla permite-nos visualizar um pouco a
coexistência problemática desses diferentes regimes de percepção e observação.
científicos.
46. "Alie Bcwohner der heibestcn Zonen sind uusnehmeud trfêge. Bey einigen wird diese Paulheit
Deixe-me propor que as ordens sombrias de poder e de diferenciação - noch etwas durch dic Regierung und Zwang gemfcbigt". Kant, Physische Geographie, 1802,
defendidas por sua intenção persistente de fazer o corpo mudo revelar e conformar- citado por Christian M. Neugebauer, "The RaciSITI of Kant and Hegel", in H. Odcra Oruka, org.,
Sage Philosophy: lndigenous Thinkers and Modem Debate 011 Afncan Hulosophy (Brill, 1990).
se com as verdades de sua identidade racial- podem ser toscamente periodizadas.

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ENTRE
, CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GIL ROY

relação como outros corpos frágeis e em sua conexão com o potencial redentor particularidade absoluta celebrada nos dias atuais sob o sinal evanescente da "raça"?
dormente em sua corporalidade saudável, ou talvez sofredora. O que ele vislumbrou Será que isto pode responder às seduções da identidade e do tipo projetadas na
como uma "díalética real entre (o) corpo e o mundo" poderia ser reartículado num superfície do corpo, mas repudiada obstinadamente em seu interior pela proliferação
modo menos triunfal como a nossa existência voltada para a morte." de diferenças invisíveis que produzem conseqüências catastróficas onde as pessoas
A noção de Fanon oferece uma contribuição interessante para toda a história não são aquilo que parecem ser? Na instabilidade de escala que caracteriza o
das ciências raciais e das noções exclusivas de humanidade codificada em cores nosso tempo, como a identidade racializada e racializante tem sido imaginada?
tal como definidas por elas. Quantas cores de pele existem? Até que ponto em Haverá ainda lugar para a "raça" na nova escala com que se contempla a vida
termos científicos, a tonalidade da pele deve corresponder à diversidade de "raças"? humana e a diferença humana? Podemos resumir esta longa estória, levantando a
Você deve se lembrar que Buffon chegou a contar trinta raças de cachorros. questão central com mais precisão. Qual o significado desse longevo tropa de
Linnaeus, o leitor ideal de Kant, pensava que o Homo sapiens incluía quatro "raça" na era da biologia molecular?
variedades, enquanto que as outras espécies que constituíam o gênero Homo tinham Vimos que ao distanciarem-se em sua jornada das catástrofes inaugurais da
as suas próprias e numerosas subespécies, incluindo o Homo troglodytes. Kant modernidade, os modos raciológícos de organizar e de classificar o mundo
identificou quatro raças de homem: o branco, o negro, o huno, e o hindustani. conservaram uma bagagem especial em matéria de inclinações perspectivais, hábitos
Todos estes raciologistas lidavam de maneira diferente com a questão de se as perceptuais e suposições escalares. Suas antropologias dependiam e ainda
variações notadas dentro das raças seriam tão significativas quanto as diferenças dependem de observações que não podem ser completamente desassociadas dos
que poderiam existir entre elas. recursos tecnológicos que as fomentaram assim como as mediaram. É aqui que a
Desde então, essas raciologias distintivamente modernas com seus fortes escala anatômica rompeu-se de início. Há muito tempo os microscópios
aromas científicos andaram de mãos dadas com a percepção de senso comum, transformaram o que podia ser visto, mas as tecnologias mais recentes de observação
tomando a superfície externa do corpo o foco de seus olhares inquiridores. Quando em escalas cada vez menores mudaram o limite da visibilidade, contribuindo para
o corpo torna-se penetrável de todo e é refigurado como o epifenômeno transitório um sentido mais apurado do poder do não visto e do que não pode ser visto. Os
da informação codificada e invisível, aquela estética, aquele olhar fixo e aquele delírios eugénicos de Francis Crick, co-descobridor do DNA e ganhador do prêmio
regime de poder estão terminados de um modo irrecuperável. A idéia da Nobel, demonstram exatamente como a mudança de escala, a~arretada pela
epidermização aponta para um estágio intermediário numa teoria crítica de escalas fundação da biologia molecular e pela redefinição da vida em termos de informação,
do corpo na confecção da "raça". Hoje a pele não é mais privilegiada como o mensagens e códigos, foi reconhecida em suas conseqüências morais e políticas
limiar da identidade ou da particularidade. Há boas razões para supor que a linha cataclísmicas." A biopolttica implantou os fundamentos para a "nanopolítica",
entre o interno e o externo passe em outro lugar. As fronteiras da "raça" ultrapassam tendo sido suplantada por ela.
o limiar da pele. Elas são celulares e moleculares, e não dermais. Se a "raça" Pele, ossos e, até mesmo, o sangue não são mais as referências primárias
puder resistir, ela assumirá uma nova forma, alienada das escalas respectivamente do discurso racial. Se a epistemc moderna foi constituída através de processos que
associadas com a anatomia política e epidermização. renunciaram à integridade do corpo por inteiro e se deslocaram para baixo da pele
Tornamo-nos mais céticos do que nunca sobre o status de diferenças para enumerar órgãos e descrever suas relações funcionais com uma totalidade
facilmente visíveis e somos agora obrigados a perguntar em que escala a similaridade orgânica, a situação hoje é muito diferente. A mesma direção para o interior tem
e a diversidade humana devem ser calibradas. Será que um diferente sentido de sido mantida e momentum aumentado. Esqueçamos a totalidade: a aspiração de
escala e de escalonamento pode constituir um contrapeso em relação ao apelo da perceber e explicar através do recurso ao poder do minúsculo, do microscópico e,

47. Fanon, Black Skin, White Masks, p. 111. 48. G. Wolstenbome, org. Man and His Future (Little, Brown, 1963), pp. 275-276, 294-295.

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ENTRE CAMPOS" Nações, Culturas e o Fascínio da Raça I I PAUL GILROY I

agora, do molecular tem-se consolidado. Num espaço para além da anatomia desenvolveram dentro e fora das instituições formais de governo, publicidade e
comparativa e de todas as preocupações dermopolíticas, o corpo e seus componentes legislação. As ações tãtícas tinham a intenção de projetar a ira, ampliar o sofrimento,
funcionais óbvios não mais delimitam a escala sobre as quais as avaliações relativas ganhar apoio, mudar a consciência e angariar fundos para despesas legais. As
à unidade e variação da espécie devem ser feitas. O olho nu foi há muito tempo iniciativas políticas incluíram uma demanda por justiça que havia sido efetivamente
reconhecido como sendo insuficiente para as tarefas de avaliação e descrição negada quando a polícia, os tribunais e os promotores públicos recusaram-se a agir
demandadas pela condição constrangedora da vida cotidiana e pelas respostas com rapidez e diligência contra os agressores. Elas também envolviam uma exigência
eugênicas populares aos seus problemas diversos. São mais do que mudanças de simpatia pela condição difícil das famílias imersas na tristeza de suas perdas, o
tecnológicas que fazem o que era até agora invisível não apenas visível, mas também que imprimiu uma marca substancial na vida de nossa nação. Essas ações
decisivo. articularam ainda outra série de reivindicações suplementares: pelo reconhecimento
Espectroscopia de ressonância magnética nuclear (NMR), tomografia por da seriedade do ataque, assim como pela admissão da humanidade das vítimas e
emissão de pósitrons (PET) e tomografia computadorizada (CT) são algumas das também da natureza ruinosa distintiva dos ataques brutais que abandonaram as
inovações tecnológicas na produção de imagens médicas que transformaram a vítimas a esvair-se em sangue, morrendo na calçada. Um inquérito judicial
relação entre o visto e o não visto. Mesmo que o logotipo da IBM seja soletrado promovido pelo governo sobre o assassinato de Lawrence e sobre a atuação da
em átomos de xenônio, ou então seja um sonho menos específico de ganhar o polícia e do sistema de justiça criminal em relação a esse crime apontou para a
controle desse mundo grande "ocupando-se com as entidades em nanoescala que questão incômoda de que "o racismo institucional" havia condicionado as operações
o compõem", o movimento é sempre numa direção: para baixo e para dentro. das agências governamentais britânicas.
Nossa questão fundamental deveria ser esta: em que ponto estas mudanças Embora a maioria dos aspectos complexos e repulsivos do caso Stephen
abandonam a idéia de diferença racial, em especial quando ela não pode ser Lawrence não possa ser explorada aqui, isto não significa que eles tenham sido
prontamente correlacionada com variações genéticas complexas? A sabedoria esquecidos. Há também sólidas razões morais e políticas para que aquele episódio
corrente parece sugerir que até seis pares de genes estão implicados no resultado doloroso e os eventos que se seguiram não devam ser usados como material
da "cor" da pele. Eles não constituem um desvio isolado. e
ilustrativo no sentido de se construir um argumento mais geral inevitavelmente
Há alguns anos umjovem negro chamado Stephen Lawrence foi brutalmente especulativo sobre a natureza das categorias raciais e os limites da explanação
assassinado por alguns jovens brancos num ponto de ônibus na região sudeste de racializada. Todavia, é isto que eu pretendo fazer.
Londres. Sua morte trágica foi apenas uma ocorrência fatal em uma série de O Partido Nacional Britânico - um grupo abertamente neofacista - fora
ataques raciais que haviam sido perpetrados na mesma área. Dois outros, Rolan muito ativo na área onde Stephen Lawrence foi assassinado. Sua sede nacional
Adams e Rohit Duggal, haviam sido mortos em circunstâncias semelhantes, mas ficava perto do lugar onde ele morreu e não é de se surpreender que a presença do
foi o assassinato de Lawrence que se tornou um marco na política de "raça" na grupo na vizinhança e seu possível papel em legitimar o tenor da supremacia
Grâ-Bretanha." branca naquele local tenha se tornado foco de uma atividade política dirigida à
A história completa da ação política em tomo dessas e outras mortes similares polícia e aos órgãos públicos locais. Em nome do anti-fascismo e do anti-racismo,
não pode ser recapitulada aqui. Para estes propósitos limitados basta dizer que um os ativistas reivindicaram que a sede bem fortificada do partido fosse fechada.
movimento pequeno, porém dinâmico, cresceu em torno dessas terríveis tragédias Havia divisões táticas no interior da campanha quanto ao modo de alcançar este
e que as ações das famílias desoladas e seus vários grupos de simpatizantes se objetivo. Um grupo defendia a ação direra localizada, outro preferia adotar padrões
mais conhecidos de protesto. Em vez de marchar contra a casamata, eles decidiram
fazer suas reivindicações públicas no centro da cidade, onde se localizam os prédios
49. Sir William Macpherson of Clnny, "A Report into the Dcarh of Stephen Lawrence" (Her Majesty's públicos e onde a mfdia compareceria. Outra demonstração local foi feita fora do
Stationery Office, 1999). prédio fortificado. Essa ação foi incentivada pela idéia de que se as autoridades

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça I I PAUL GILRUY I

eram incapazes de deslanchar uma ação contra o grupo e seu quartel-general (os Estou contando esta história aqui com o objetivo de tomar visíveis alguns
quais haviam Se tomado símbolos poderosos das forças malévolas do racismo e dos problemas substanciais alojados na maneira com que as pessoas conceituam e
fascismo), os ativistas anti-racistas iriam fazê-lo. Essa demonstração realizada atuam em relação à diferença racial. Se ativistas anti-racistas e anti-fascistas
num sábado, dia 16 de outubro de 1993, contrapôs um grande número de ativistas dedicados permanecerem apegados às mais básicas mitologias e morfologias de
a uma numerosa tropa policial anti-tumulro, que havia sido despachada para proteger diferença racial, que chances teríamos nós outros de escapar do fascínio exercido
os neo-fascistas da fúria dos anti-racistas. por elas? Se a simplicidade brutal da tipologia racial permanecer viva mesmo nos
Os detalhes da violência que se seguiu são interessantes, mas não essenciais gestos anti-fascistas mais deliberados e assertivos, então é possível que os intelectuais
para os pontos examinados aqui. Em conseqüência do confronto físico entre esses críticos declaradamente "anti-essencialistas" estejam pedindo demais quando
grupos, quarenta e um ati vistas foram feridos. Dezenove policiais receberam indagamos sobre a renúncia da "raça", ou quando aspiramos a utopias
tratamento médico e quatro deles passaram a noite no hospital. Após o evento policromáticas e multiérnicas nas quais a cor da pele não faça mais diferença do
deu-se um conflito sobre o comportamento dos manifestantes. Com isso foi-se que a cor dos olhos ou do cabelo. Seria provavelmente inapropriado assumir que
mais longe do que o ciclo rotineiro de denúncias mútuas. Em particular, a polícia haja Um amplo solo comum entre este público leitor e aqueles manifestantes anti-
alegou que os manifestantes anti-racistas haviam escolhido policiais negros, fazendo nazistas. Mas, não é ilegítimo inquirir sobre o ponto em que interesses profissionais
deles alvos especiais em matéria de hostilidade e ataque. O guarda Leslie Turner e acadêmicos possam ressoar nesta narrativa. Será que nós também nos tomamos
foi um desses policiais, destacado por seus superiores para a defesa dos direitos de cúmplices da reificação da diferença racial? O que aconteceu com as suposições
uma organização que não o reconhece como uma pessoa pertencente à comunidade anti-racistas que governavam nossas atividades acadêmicas em tempos anteriores?
nacional ou defendida por suas leis. Turner declarou ter sido atacado por ser negro. Teriam sido elas denotadas pelos sucessos do determinismo pós-biológico, o qual
Ele disse aos jornais: "Eram manifestantes brancos. Não havia pessoas negras lá está a exigir que as ciências sociais devolvam-lhe o direito de explicar o
que eu pudesse ver. Eles me escolheram como sendo um traidor." Sejam lá quais comportamento humano? Este argumento não deve ser mal compreendído. Procura-
forem suas opiniões em contrário, é possível que a situação difícil do policial Turner se com ele iniciar um período de reflexão e de esclarecimento sobre nossos projetos
pudesse ter sido pior caso houvesse um número maior de manifestantes negros intelectuais, éticos e políticos em matéria de estudos críticos de "raças" e raciologias.
naquele dia. Na escala do sofrimento humano que termina em assassinato brutal, Estou atento para todas as ironias de minha posição. Entendo que assumir
as experiências dele são desprezíveis e até mesmo triviais. Sua estória de virimização uma antipatia em relação à "raça" para além do equilíbrio instável representado
pode até ter sido fabricada para conquistar uma nova legitimidade para uma pelo meu uso liberal de aspas pode ser percebido como uma traição àqueles grupos
operação policial duvidosa. Mas, deixando quase de lado o que realmente aconteceu, cujas reivindicações oposicionfsticas, legais e até mesmo democráticas acabaram
quero continuar minha análise como se houvesse uma certa medida de verdade por se basear em identidades e solidariedades forjadas a duras penas a partir das
sobre o que ele disse a respeito daquela manifestação. E se ele foi atacado como categorias que lhes foram fornecidas por seus opressores. Mas, renunciar à "raça"
traidor? Que tipo de traidor ele teria sido? E se elejai atacado por pessoas furiosas com propósitos analíticos não é julgar todos os apelos dirigidos a ela no mundo
com base no fato de que por ser um policial negro ele teria de algum modo violado profano das culturas políticas como formalmente equivalentes. De um modo menos
a posição política que eles imaginavam corresponder ao seu corpo negro defensivo, penso que a nossa situação difícil e arriscada em meio a um mar de
uniformizado? Qual é a aceitação do que se chama por vezes de ontologias "coco", mudanças políticas e tecnológicas que de alguma maneira fortalecem o absolutismo
"choc-ice" [sorvete de baunilha coberto com chocolate] ou "czec cookie'' [bolacha e o primordialismo étnicos, está a exigir uma resposta radical e dramática. Isto
de chocolate com recheio branco] com suas divisões estritas e perniciosas entre significa que é preciso se afastar do ritual piedoso com o qual sempre concordamos
"os de dentro" e "os de fora''? E se a multidão não estivesse atenta para a ironia que a "raça" é inventada, para sermos então instados a nos submeter à sua
de ele ter sido empregado na defesa dos neonazistas locais? E se eles também penetração no mundo e a aceitar que a demanda por justiça exige todavia que
sucumbissem à lógica viciosa do pensamento de raça? entremos inocentemente nas arenas políticas que ela ajuda a demarcar.

I 74 1 I 75 I
ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

o simples fato de se levantar estas questões pode significar a violação de


um acordo tácito de teor acadêmico. A ligação entre prática anti-racista e trabalho
2
intelectual nesta área é decerto não o que era há vinte anos, havendo ainda algumas
reflexões preciosas sobre as mudanças assinaladas ao longo da estrada que leva
MODERNIDADE E
ao anti-racismo municipal e para além dele a um terreno infrutífero onde o trabalho INFRA - HUMANIDADE
sobre a "raça" é obscurecido pelo muiticulturalismo privatizado, empresarial e
culturas de simulação, nas quais a alteridade racial conquistou um importante valor
comercial. Este bem pode ser um momento apropriado para se romper com a
oscilação fundamental entre a biologia e a cultura e para abrir o circuito fechado No século atual, as pessoas negras são vistas como totalmente diferentes das
em que se encerraram as análises daquilo que costumávamos chamar de Novo brancas em termos raciais e de origem, porém, totalmente iguais a elas com respeito
aos direitos humanos. No século XVI, quando se pensava que os negros vinham
Racismo. Será mais frutífero no futuro traçar a história da metafísica racial - ou
das mesmas raízes e eram da mesma família dos brancos, defendia-se, sobretudo
melhor da raciologia metafísica - como uma precondição subjacente "das várias entre os teólogos espanhóis,que em matériade direitos os negros eram, por natureza
versões de determinismo: biológico, nacionalista, cultural e agora, genômico. e Vontade Divina, muito inferiores a nós. Em ambos os séculos, os negros têm sido
Já se tornou lugar comum observar que, por mais nobre que seja, a idéia de comprados e vendidos, e postos ao trabalho em correntes e sob chicote. Tal é a
anti-racismo não transmite nenhuma mensagem positiva ou afirmativa. O que afinal ética; e tal é a extensão com que as crenças morais têm qualquer coisa a ver com as
ações.
defendem os anti-racisras? Qual é o nosso compromisso e como ele se liga à fase
necessária de negatividade que define nossas esperanças políticas? Há dificuldades GtACOMO LEOPARDJ
em delimitar estes objetivos, utópicos e diferentes. Encaro-as como outro pequeno
sintoma da condição crônica mais abrangente envolvida na crise da "raça" e nas
tentativas de escapar a ela através da refiguração do humanismo. A história do As possessõescoloniaisafricanas tornaram-seo maisfértil solo para o florescimento
daquilo que se tornou a elite Nazista. Aqui (eles) haviam visto com os seus próprios
racismo é uma narrativa em que a congruência do micro e do macrocosmo tem
olhos como as pessoas podiam ser convertidas em raças ecomo... pode-se empurrar
sido rompida no ponto de sua intersecção analógica: o corpo humano. A ordem da o próprio povo para a posição de raça suprema.
diferenciação ativa que tem sido chamada de "raça" pode ser a marca mais
perniciosa da modernidade. Ela articula razão e desrazão. Ela entrelaça a ciência HANNAH ARENDT
e a superstição. As suas ontologias ilusórias podem ser tudo menos espontâneas e
naturais. Elas não deveriam ganhar imunidade de julgamento em meio aos devaneios
da reflexividade e às formas confortáveis de inércia induzidas pela capitulação aos o CONCEITO de modernidade nos traz à mente a interpenetração do
essencialismos preguiçosos dos quais, segundo nos informam os sábios pós- capitalismo, industrialização e democracia. Nossa atenção é dirigida para a
modernos, não podemos escapar. emergência do governo moderno, a aparição de Estados-nação e numerosas outras
mudanças sociais e culturais. O lugar da terra no cosmos e a relação entre a
Europa e o resto do planeta foram transformadas, assim como o foi a aceitação
inquestionável do relato das origens humanas fornecido pela Bíblia. Outras
mudanças, no registro do tempo, na experiência do modo de vida urbano, na
configuração das esferas públicas e privadas, e na qualidade distintiva tanto da
individualidade moderna como da vida ética moderna, inspiraram grandes volumes
de tratados filosóficos, sociológicos e históricos. O desenvolvimento da soberania

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ENTRE CAMPOS .. Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROV

territorial e dos aparatos culturais e comunicativos correspondentes são perceptíveis próximas do ápice das reflexões modernas sobre a individualidade, subjetividade, e
em meio a esse fluxo. Também eles foram ligados à luta para consolidar o trabalho ontologia, tempo, verdade e beleza."
transparente dos Estados-nação e dos poderes governamentais ao qual o termo A emergência da "raça" como um meio maior de diferenciação e de divisão
modernidade se refere.' Aquela combinação promoveu uma nova definição da é um importante lembrete de que dotar a política de estética não foi uma estratégia
relação entre lugar, comunidade, e aquilo que hoje podemos chamar de "identidade". governamental originada no fascismo do século XX. 7 O historiador George Mosse
,A modernidade definiu um novo papel para os seus soldados-cidadãos, fez mais do que qualquer outro para chamar a atenção para o critério estético
merecendo ser reconhecida como algo que quero chamar de "uma ecologia distinta empregado nas versões iniciais da raciologia que reconciliaram arte e ciência numa
de pertencimento''." Uma fórmula especial para a relação entre território, conceitualização graduada e incisiva da espécie humana." A mesma hierarquia
individualidade, propriedade, guerra e sociedade foi dramatizada nesta fase histórica. racializada moldou os padrões onde o poder e as ações de Estado e de governo
Emergiu, por exemplo, no mito fundante de Robinson Crusoe, que conservou e podiam ser comparados, avaliados e apreciados. A visão antropológica de Hegel a
criou cultura, o eu, e a riqueza, mesclando seu trabalho e gênio às oportunidades respeito dos ashanti c de seus rituais reais sugere que os cenários coloniais
proporcionadas por Deus e pela natureza àquele que é industrioso e racional em proporcionavam inúmeras oportunidades para exercitar as ambições comparativas
seu reino insular tropical.' Os limites éticos daquela modernidade colonial foram e confiantes dessa imaginação política moderna. Os africanos eram, de acordo
memoravelmente assinalados pelo fato de que Crusoe sentia-se livre para tomar com o juízo dele, não apenas pré-históricos como também pré-políticos."
as vidas dos nativos, "cujos costumes bárbaros eram seu próprio desastre", não
obstante a sanção divina que ordenou as suas vidas de selvageria." Seu exemplo Ao voltarmos nossa atenção em seguida para a categoria de constituição política,
contribui para demonstrar como () alcance do mundo europeu e as suas fontes veremos que a natureza toda desta raça é tal que impede a existência de qualquer
arranjo nesse sentido. O estágio da humanidade neste grau é mera vontade sensual
distintas de violência emergem nessa consideração da modernidade como uma
com energia para o desejo; uma vez que as leis espirituais universais (por exemplo,
questão maior, não apenas para a história do comércio capitalista, mas também aquela da moralidade da Família) não podem ser reconhecidas aquí."
para a compreensão histórica do governo nacional e da projeção geopolítica dos
Estados como culturas discretas arranjadas em unidades nacionais antagônicas.' Estas observações emergem na apresentação elaborada de Hegel sobre o
Desta perspectiva, a modernidade pode também servir para introduzir os problemas modo como a geografia condiciona a história. Ele apresenta a modernidade mediada
colocados pela relação do capitalismo, da industrialização e da democracia com a pela "raça" tanto em termos de período como de região. Atualmente a história da
emergência e consolidação do pensamento sistemático de raça. O conceito emoldura colonização e da conquista, que a modernidade contém, levanta uma série importante
estas indagações sobre a conexão entre a racionalidade e a irracionalidade ao de questões críticas. Qual foi a escala geopolítica com a qual a modernidade
dirigir a atenção para os laços entre as tipologias raciais e a herança do Iluminismo.
Faz com que aquele acordo decisivo seja fundamental para a tarefa de perceber
6. Ian Watt, Mwhs ofModem lndividuallty: Faun, Don Quixote. Don Juan and Robinson Crusoe
como o conhecimento e o poder produziram as verdades da "raça" e da nação (Cambridge University Press, 1996).
7. JosefChytry, The Aesthetic Stale: A Quesr ln Modem German Thought (University nf Califórnia
Press, 1989): Eatl W. Couut. This is Race: AnAnthology Se!ectedfrom the tntemoüonal Literature
1. Janice E. Thomson, Mercenaries, Pirares, and Sovcreígns: Sratc Building and Extra-Territorial onlhe Roces ofMan (Schuman, 1950); Christian Neugebauer. 'lhe Racism otKant And Hegel",
Violence in Early Modem Europe (Princeton University Press, 1994). in Sage Philosophy: Indigenous Thinkers and Modem Dehate on African Phítosophy, org. H.
2. William E. Connolly, "Democracy and Territoriality", in Marjorie Ringrose e AdamJ. Lerner, Odera Orukn (BriU. 1990.
orgs., Reimagining the Natioll (Open University Press, 19(3). 8. George Mosse, Toward lhe Final Solution: A Hístory of European Racism (Wisconsin University
3. Peter Hulme, Colonial Encouruers (Methuen, 1986)_ Press, 1985), em especial capítulo 2.
4. Daniel Defoe, Robinson Crusoe (Pcnguin, 1986), p. 232 9. Robert Bernasconí, "Hegel at lhe Court of lhe Ashanti", in Stuart Barnett, org., Hegel after
5. Anthony Pagden, Lords Df Allrhe World: Ideoiogies of Emplre in Spain, Hritain and France Derrido (Routledge, 1998).
cI500-cl800 (Vale University Press, 1995). 10. G. W. F. Hegel, The Philosophy ofHístory. tradução de 1. Sibrec (Dover Books, 1956). p. 96.

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ENTRE CAMPOS" Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

centrada na Europa era traçada, inscrita e projetada? Onde, se isso se deu em diferenciação permanente, inevitável e extra-histórico, não há nada automático _
algum lugar, as suas convenções representacionais começaram a se romper? lembram-nos eles - sobre a "raça" e a diferença feita por ela. A consciência de
Precisamos ponderar como a nossa compreensão da modernidade dentro e "raça" é mais construtivamente apreendida como um produto social específico, o
para além da Europa poderia se beneficiar de uma mudança na ressonância dos resultado de processos históricos que podem ser mapeados em detalhe. Bric
termos-chave "história" e "cultura". Sua transformação pode também ser Voegelin, que tem uma abordagem bem refletida das genealogias de "raça", adverte
compreendida como uma contribuição para a reorientação decisiva defendida por os historiadores críticos que se aventuram neste terreno sobre os problemas
mim no capítulo anterior. Ela tem importantes conseqüências para nossa conceituais específicos a serem provavelmente encontrados por eles:
-compreensão da relação entre o universal e o particular codificados na constelação
ética e política na qual dissecamos não a "raça", mas sim a raciologia. Dito de Uma idéia simbólica como a idéia de raça não é uma teoria \]0 sentido estrito da
outra forma, em que sentido a modernidade pertence a uma entidade fechada, um palavra. E é irrelevante criticar um símbolo, ou um conjunto de dogmas, por não
serem empiricamente verificáveis. Emboratal críticasejacorretanãotemsignificado,
"geocorpo''!' chamado Europa? Que formas de consciência, solidariedade, e
porque não é a função de uma idéia descrevera realidadesocial, mas sim assistir a
subjetividade localizada são solicitadas, ou produzidas porela? O que a modernidade sua constituição. Uma idéia é sempre"CITada" 110 sentidoepistemológico, mas esta
poderia incluir se o laço não-dito com a consciência planetária européia" fosse relação com a realidade é o seu próprioprincípio. I,
rompido, alargado, ou mesmo testado? A última questão sugere que as operações
da consciência histórica tornam-se mais do que um mero fenômeno nacional. Elas O argumento é bem feito. Ele conduz a uma visão de "raça" como uma
foram racializadas mais efetiva e completamente onde o historicalismo tornou-se o idéia ou princípio ativo, dinâmico que assiste a constituição da realidade social. É
atributo exclusivo de determinadas populações favorecidas e selecionadas. Grupos um rrajeto curto entre observar os modos como certas "raças" têm sido
racialmente diferenciados não mais compartilhavam do mesmo presente. Os grupos historicamente inventadas e socialmente imaginadas e ver como a modernidade
dominantes podiam engajar o momento irresistível da história para o seu lado e catalisou o regime distinto de verdades. o mundo do discurso denominado por mim
tratar os seus subordinados aparentemente anacrõnicos como se eles pertencessem de "raciologia". Em outras palavras, as ciências humanas modernas, particularmente
ao passado e não tivessem futuro. Para aqueles de nós que estão envolvidos em a antropologia, geografia e filosofia, empreenderam um elaborado trabalho de modo
estudar o desenvolvimento histórico do pensamento raciológico, esta ruptura na a tornar a idéia de "raça" episternologicamente correta. Isto demandou modos
apreensão do tempo foi especialmente significativa. inéditos de compreensão da altendade incorporada, da hierarquia e da temporalidade.
Embora o pensamento de "raça" certamente tenha existido em períodos Com isso os corpos humanos passaram a comunicar as verdades de um Outro
anteriores, I., a modernidade transformou o modo como a "raça" era compreendida irrevogável, as quais eram então confirmadas por uma nova ciência e uma nova
e praticada. Vejo com bons olhos o relato que emerge do trabalho precioso de semiótica no momento mesmo em que a luta contra a escravidão racial Atlântica
historiadores recentes da idéia de "raça". A partir de diversas posturas políticas, estava sendo ganha.
muitos deles afirmaram que a "raça" tal como a entendemos agora simplesmente Embora não seja reconhecida tanto quanto deveria, a conexão próxima entre
não existia até o século XIX. 14 Embora ela seja apresentada como um princípio de "raça" e modernidade pode ser vista com especial clareza se permitirmos com que
nossa compreensão da modernidade viaje, movendo-se com as operações dos
grandes sistemas imperiais que aquela conexão lutou para controlar. Apesar de
11. Este termo estáem Thongchai Wlnichakul, Siam Mapped: A Hístory ofthc Geo-Body ofa Nation centrados na Europa, esses sistemas, tanto em seu sentido de exploração como de
(Universiry of Hawaii Press, 1994). comunicação, estenderam-se muito além do corpo geográfico europeu. Em geral,
12. Mary Louisc Pratt, Imperial Eyes: Travei Wrifing and Transculturaúon (Routledgc, 1992).
13. Winthrop Jordan, White OVei" Black (Norton, 1977); Ivan Hannaford, Race: The History ofan
Idea in the West (Johns Hopkins, 1996).
14. Tenho em mente aqui os trabalhos deEric Voegelin. Martin Berual e Ivan Hannaford, 15. Eric Voegelin, "The Growth of the Race Idea", Review ()f Politics (julho de 1940), p. 284.

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascinio da Raça PAUL GILROY I

compreende-se a antropologia e a geografia como os pontos terminais dos aspectos argumento que, como veremos, repousa estranhamente ao lado dos aspectos
cognitivos da revolução cultural e social da modernidade colonial, mas os seus irresistíveis de seu cosmopolitismo. Suas idéias foram desenvolvidas em diversos
efeitos não se confinavam à consolidação dessas novas perspectivas disciplinares. textos do mesmo período, sobretudo naquele de 1798, A Antropologia de um
A mesma mudança fundamental em matéria de "raça" alcançou seriedade filosófica Ponto de Vista Pragmático e em seu ensaio de 1775 "Sobre as Diferentes Raças
através da noção de que o carãter e o talento podiam ser distinguidos irregularmente de Homem". São pouco lidos nos tempos de hoje, talvez porque os julguem como
e haviam sido distribuídos pela natureza ao longo de linhas nacionais e raciais. A embaraçosos ou mesmo comprometedores das valiosas aspirações democráticas
famosa discussão de Kant sobre as características nacionais e raciais na seção com as quais o Kant crítico também contribuiu com uma expressão duradoura.
quatro das "Observações sobre o Sentimento da Beleza e do Sublime" é Apelando para respostas mais complexas do que o mal-estar evidente na má vontade
brilhantemente analisada pelo filósofo Ronald Judy. Sua análise permite aqui um contemporânea em relação às discussões ilustradas sobre a "raça", estes escritos
valioso ponto de partida." A figura de "O Negro" aparece no texto de Kant numa incômodos comunicam os modos como a consolidação da raciologia modema
famosa referência a David Hume: demandou o entrelaçamento da ilustração e do mito. De fato, eles revelam teorias
de cultura, "raça", e nação fornecendo a lógica e o mecanismo das suas perigosas
Os negros da África não têm por natureza nenhum sentimento acima do trivial. O Sr. interconexões. Esta confluência importa para o argumento aqui desenvolvido porque
Hume desafiaqualquerum a citar um únicoexemploem que um negrotenhamostrado apresenta laços igualmente adversos entre a raciologia e a administração de Estado,
talentos, e afirma que entre centenas de milhares de negros que são transportados
mostrando como a teoria política modema estava sendo anexada pelos imperativos
de seus países para outros lugares, embora muitos tenham sido colocados em
liberdade, ainda assim nenhum jamais foi encontrado que apresentasse qualquer do poder colonial mesmo em sua fase emergente. É conveniente repetir que os
coisa de grande cm arte ou ciência ou qualquer outra qualidade digna de elogio, avisos de Kant contra os perigos da mistura racial exprimiam a urgência dos projetas
apesar de que entre os brancos alguns sempre se elevam bem acima das massas imperiais europeus, engajando o potencial da lei natural no importante trabalho
mais íntimas,e por meio de dotes superioresganhamo respeitono mundo.A diferença cósmico-político de manutenção da separação entre grupos raciais:
entre estas duas raças de homem é tão fundamental quanto parece ser grande li
diferença em matéria de capacidades mentais e de cor.I}
Assim, podemos julgar com probabilidade que a mistura de raças (causada por
conquistas em larga escala), o que extingue gradualmente as suas características,
Os movimentos de Kant do corpo para a mente, da cor para a capacidade não parece benéfica para a raça humana - apesar de todas as pretensões da
mental podem agora ser reconhecidos como sintomas de uma consciência de "raça" filantropia...Ao contrário da assimilação, que se pretendia com a mistura de várias
que esteve no âmago do seu pensamento sobre agência e subjetividade, democracia raças, a Natureza fez aqui uma lei de justamente o oposto. Numa nação da mesma
e mutualidade. Ele não declarou que os negros haviam sido destituídos de toda raça (por exemplo, da raça branca), ao invés de permitir que os caracteres se
desenvolvam constante e progressivamente no sentido de se parecer uns aos outros,
humanidade. Ele lhes conferiu uma relutante filiação à família humana, colocando-
com o que, por fim, apenas um e o mesmo retrato resultaria tal como em impressões
os nas posições mais ínfimas dentro de uma espécie única e nominalmente inclusiva, tomadas da mesma chapa de cobre, a Natureza preferiu diversificar infinitamente os
estratificada pelas operações da lei natural contra a assimilação racial. As suas caracteres do mesmo tronco."
idéias raciológicas misturam o ffsicc e o metafísico num poderoso e elaborado
Por mais que se pareçam belas aos seus beneficiários, as esperanças
democráticas e os sonhos de Kant simplesmente não podiam abarcar a humanidade
16. Ronald A. T. Judy, (Dis)fomling lhe Amerícan Canon: African-Arabic Slave Narratives and the
Vemacular (University of Minnesota Press, 1993), capítulo 4, seção 3, "Kant and lhe Critique
of Pure Negro''.
17. I. Kant, Observations on me Feeíing of the Beautiful and the Sublime, tradução de John T. 18. l. Kant, Anthropologyjrom a Pragmatic Point ofView, tradução de Victor Lyle Dowdell (Sou!hem
Goldthwait (Universiry of Califomia Press, 1960). IIIinoi~ Univcrsity Press, 1978).

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascinio da Raça PAUL GIL ROY

negra. O Negro permaneceu trancado do lado de fora do círculo das relações demonstra como os limites nacionais podiam ser prontamente aplicados aos
intersubjetivas. Outra de suas memoráveis observações incidentais sobre a mecanismos formais universalizantes que regulam a conduta dos agentes morais
administração das questões domésticas dos escravos proporciona aos seus ansiosos no sistema de Kant. Esses preciosos mecanismos baseiam-se no reconhecimento.
leitores a informação de que "os negros são...tão falantes que eles têm de ser Se as pessoas não fossem reconhecidas como sendo dotadas de atributos
apartados uns dos outros por meio de surras". 19 Esta passagem é interessante particulares corporais ou culturais que assinalavam a sua posse de um ser universal
para mostrar quão prontamente a aplicação racional da violência aos escravizados para uma comunidade de iguais, é bem possível que as regras da conduta moral e
e colonizados seguia-se a essas tentativas de por a "raça" deles em foco como um cívica não se aplicassem a elas. Em termos ainda mais crus, se a sua "raça",
objeto propriamente filosófico e não como uma mera questão de tipologia. O cenário religião, cor, ou nacionalidade impedisse o acesso àquele precioso ser humano
implícito para essas operações cientificas comprometidas era a grande fazenda universal, elas ficariam claramente à mercê de um grave perigo."
escravista que parece apontar aqui para a instituição de outro locus moderno de O valor de um argumento como o de Lang foi sublinhado pelo próprio Kant
poder: o campo de concentração. Ambos constituíram espaços excepcionais onde em algumas observações expressivas sobre os defeitos que a sua antropologia
as regras e procedimentos jurídicos normais foram deliberadamente deixados de pragmática havia pressentido no caréter nacional do inglês. Kant reconhece a
lado. Em ambos, o motivo do lucro e suas racionalidades económicas foram possibilidade de que as fronteiras nacionais e a diferença cultural interfiram na
praticamente habilitadas pelos imperativos geopolíticos de uma hierarquia conduta moral e política, embora no caso do inglês, a questão de cor, tão importante
racializada. É fácil ignorar como as sociedades coloniais e seus conflitos para ele em outro lugar, não rompa com a sua crítica do duplo padrão resultante. A
proporcionaram o contexto em que os campos de concentração emergiram como força insignificante da diferença nacional aparece em nítido contraste com as
uma forma nova e recente de administração política, controle da população, divisões absolutas assinaladas pela "raça":
planejamento de guerra e trabalho coercitivo."
Antes de continuar, deveríamos reconhecer as dificuldades envolvidas em Para os seus próprios conterrâneos o inglês estabelece grandes instituições
tornar Kant o porta-voz do Iluminismo como um todo. Deve-se também enfatizar benevolentes, desconhecidas entre todos os outros povos. Mas o estrangeiro que
foi levadopelo destino para as costas da Inglaterra,e caiu numa terrível necessidade,
que ele próprio não concebeu o genocídio ou endossou sua prática contra negros,
será abandonado para morrer num monte de esterco porque ele não é um inglês, ou
judeus, ou quaisquer outros grupos populacionais. Após fazer exatamente estas seja, não é um ser humano."
ressalvas, Berel Lang abriu uma vereda crítica promissora nesses aspectos difíceis
da obra de Kant. Como parte de uma tentativa de reconstruir a pré-história filosófica A partir de pontos de vista extremamente contrastantes, os escritos pós-
do genocídio nazista, ele fez uma avaliação judiciosa das teorias de comunidade, 1945 de Aimé Césaíre e Hannah Arendt podem também ser usados para apoiar o
ética e mutualismo de Kant. Este estudo é integrante daquilo que Lang identifica veredicto negativo com relação às pretensões modernas mais grandiosas que tem
cama "afiliação" (um modo de conectar idéias, que é "mais forte do que analogia se atribuído a Kant. Arendt, por exemplo, notavelmente levanta uma questão
ou semelhança, embora mais oblíquo do que o da casualidade física direta'')." Ele perturbadora relativa à alegação de AdolfEichmann na sala do tribunal de que ele
havia sido guiado por preceitos kantianos enquanto prestava serviços a Hitler. Ao
19. Kant, Observauons; p. II 1. identificar o exemplo de Eíchmann como uma óbvia distorção do próprio pensamento
20. Emily Hobhouse, Repon on a Visit to the Camps (Lnndon. 190 I); Report of Dame Millicenl de Kant, ela diverge agudamente da linha de pensamento mais nuançada de Lang.
Fawcett' s Committee of Ladies (Crnnd. Cd 893); Louis Perez, Jr., Cuba Between lhe Empires,
1878-1902 (University of Pittsburgh Prcss, 19R3), e Lords of lhe Mountain: Social Banditry and
Protest in Cuba, 1878-1918 (University of Pittsburgh Press, 1989). Sou grato a Pcrcr Fraser
pelo material cubano.
21. Berel Lang, Act and Idea in the Nazi Genocide (Chicago University Press, 1990), capítulo 7, p. 22. Ibid., p. 179.
189. 23. I. Kant, Anthropolo!?yfrom a Pragmatic Poínt ofView, p. 230.

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ENTRE CAMPOS" Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY I

Contudo, sua argumentação cáustica aponta para a questão de se outras onde a cultura autêntica e verdadeira poderia plantar raízes sob o olhar duro de um
ambigüidades nas formulações influentes de Kant poderiam ter impulsionado a sua governo eugénico e sem compaixão.
redução àquilo que gicbmann descreveu como uma versão de Kant para "o uso Muitas dessas noções peculiares haviam sido racionalizadas por uma teoria
doméstico do pequeno homem" .24 Embora Césaire não compartilhe a fé de Arendt das nações, bem antes que elas se tornassem questões de ciência racial e política.
nos modelos antigos de atividade política, suas preocupações se ligam às dela. Ele Essa teoria foi fundada, segundo apontou Claude Lefort, sobre o princípio da
apresenta Hitler e o hitlerismo como a culminação de padrões modernos de unanimidade articulado através da idéia de "o povo como um só". Portanto, ela
humanismo formal e renúncia filosófica. Ele condena aquilo que recusa como negou "que a divisão é constitutiva da sociedade" e acentuou o intercambiamento
"pseudo-humanismo" porque "por tempo demais ele reduziu os direitos dO.homem...o e controle dos membros da nação - a sua população." Em tempo, descobriu-se
seu conceito daqueles direitos tem sido - e ainda é - estreito e fragmentar, incompleto também que aquelas noções existiam nos estritos padrões orgânicos da hierarquia
e eivado de preconceito e, tudo mais considerado, sordidamente racista"?" natural que continuou e estendeu as tipologias pré-modernas do pensamento de
Estes dois pensadores combativos têm coisas importantes para dizer sobre raça na direção de uma ciência biossocial totalizadora. A nação podia então ser
os processos complexos e delicados que culminaram na ordem governamental da vista como um corpo político no qual componentes diversos, mas funcionalmente
nação moderna que era também um Estado imperial. Estão atentos ao fato de que inter-relacionados, eram submetidos a uma lógica superior resultante da sua
este novo padrão de poder reescreveu as regras da conduta política e ética de combinação. Apesar de moldada pelos resíduos de ambos, esta não era a unidade
acordo com princípios novos recentes que se opunham às noções antigas e modernas contratual da riqueza geral ou a unidade espiritual da igreja, mas uma entidade
de racionalidade política, posse de si mesmo, democracia e cidadania. orgânica violenta de um novo tipo que se manifestava sobretudo nas operações do
Seguindo os passos de Arendt e de Voegelin, Ivan Hannaford apontou o Estado, o qual podia demandar o sacrifício da vida individual a serviço dos objetivos
modo como as noções modernas de "raça" eram articuladas em algumas traduções coleüvos. Em aguçado contraste com conceitualizações mecanizadas de governo
um tanto soltas e controversas de textos-chave de Aristóteles e outros escritores moderno, a raciologia requeria que o Estado fosse um organismo, enraizado e
da antiguidade no início do século XIX. Em uma argumentação importante mas atuante sobre o Volk. Houston Stewart Chamberlain, cuja obra tem um forte viés
pouco confortante, ele sugere que onde quer que a idéia moderna de "raça" tenha kantiano, sintetizou estas idéias de forma teórica em seu influente estudo em dois
se implantado, o resultado foi uma perversão característica dos princípios da política volumes Os Fundamentos do Século X/X. Assim, a liberdade seria situada num
democrática. Estes argumentos não significam que as fontes políticas e éticas mundo interior, privado, em vez de se situar em quaisquer oportunidades criadas
proporcionadas por essas tradições modernas possam ser deixadas de lado sem por instituições políticas e sociais modernas. Essa liberdade interior requeria uma
maior reflexão. Ao contrário, o ponto de partida deste capítulo é ainda a noção submissão voluntária à autoridade política externa que, por seu turno, poderia ser
herética de que os noVOS códigos políticos da modernidade devem ser reconhecidos justificada como uma questão de necessidade biológica." O compromisso com
como tendo sido comprometidos pelos impulsos raciológicos que em parte os um ordenamento orgânico da espécie humana era importante também por endossar
formaram, tecendo uma força mortífera e exclusivista em suas brilhantes promessas as exigências da ciência racial no sentido de observar, organizar e regular o corpo
universais. Espero que não seja óbvio em demasia, frisar e repelir o ponto central social. Chamberlain, um arianista e legítima inspiração para as fantasias raciológicas
de Césaire. O ideal de humanidade, definido em termos por demais restritivos,
emergiu disso tudo a conta-gotas. Não era apenas algo a ser monopolizado pela
Europa; podia tão-somente existir nas unidades territoriais habilmente confinadas, 26. Claude Lcfort, The Politicai Forrns ofModem Society (Polily, 1986).
27. Houston Srcwarr Chamberlain, The Foundaticms O/lhe Nineteenth Ceruury. tradução de John
Lees (John Lane, 1912). Ver também Martin Woodroffe, "Racial Theorics of History and
Politics: The Example of BouStOH Stewart Chamberlaln", ln Paul Kennedy e Anthony Nicholls,
24. Hanneh Arcndr, Eichmaml in Jerusalem (Penguln, 1965), p. 136. orgs., Nauonahst and Racíalist Movernents in Britoin and German» before 1914 (Macmillan,
25. Aimé Césaire, Díscourse on Colonialism (Monthly Review Press, 1972), p. 15. 1981); e Hannaford, Race, pp. 348-356.

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROV

dos nacionais-socialistas, também responde pela fácil racialização do ideal europeu tornando-se pré-históricas assim cama extraculturais. Sua exclusão por meio de
e nos lembra que ao lado do helenismo e do hebraísmo deveríamos reconhecer a uma racionalidade racializada teve as mais claras implicações para a aventura
teimosa presença do nordícismo e do arianismo. cosmopolita de imaginar os seres humanos como uma coletividade essencialmente
Se observarmos a força constitutiva da raciologia no pensamento dos indiferenciada.
nacionalistas, poderemos interpretar a obra de Chamberlain tal como ele queria O conceito de historicalidade esteve fortemente associado com essas
que fosse compreendida: com uma forte ponte entre Kant e Hitler sobre a qual tentativas de diferenciar o status de povos, suas culturas, sortes, destinos e espíritos
aquele nobre herói, o Platão teutõnico, poderia dirigir a sua histórica carruagem de raciais e nacionais distintos. A idéia circula através do discurso moderno sobre as
batalha através do caos de um estado sem raça. O anti-sermtismc de Chamberlain vidas e características das nações, sobre a sua transição rumo aos Estados-nação,
.~ e sobre Os padrões culturais que lhe foram auxiliares. Historicalidade é uma noção
aponta para a nossa própria época quando ele desmente o ódio aos judeus em ,
favor do objetivo aparentemente mais elevado do amor ariano a si mesmo. Permitiu, I moderna na medida em que pressupõe uma política do tempo: o fazer das conexões
assim, o elogio aos judeus orientais autênticos, enquanto articulava um desprezo
especial em relação àqueles que se vestiam de um modo que não era próprio deles
I entre ontologia, nacionalidade, e teorias de diferença racial. Associa-se não apenas
à idéia de autenticidade e ao princípio nacional, mas também à elevação da "raça"
e que nunca seria deles. De acordo com ele, os laços políticos orgânicos apropriados I para uma posição deterrninante em teorias da história, especialmente aquelas que
entre "raça" e nação somente poderiam ser construídos por meio de um Estado se pronunciam sobre a guerra e o conflito, naturalizando-os na idéia conveniente
que mantivesse e fortalecesse os traços raciais arianos em operações etnológicas do conflito imperial especificamente fundado na raça. Assim, a historicalidade
cuidadosamente planejadas, análogas ao trabalho científico daquele pastor do ser conduz a racionalização raciolõgicada história. Hegel compreendeu as implicações
racializado, o reprodutor de animais: desse ponto quando, ao apresentar o lugar da África e dos africanos em sua teoria
geográfica da história, escreveu estas palavras: "O caráter peculiarmente africano
Os cavalos, e especialmente os cachorros, nos dão todas as chances de observar é difícil de compreender pela mesma razão que, em referência a isso, devemos
que os dons intelectuais acompanham os do físico; isto é especialmente verdadeiro renunciar ao princípio que acompanha naturalmente todas nossas idéias - a
em matéria de qualidades morais: um vira-lata é frequentemente muito esperto, mas
categoria de universalidade"." A afirmação transmite sua percepção de como
nunca confiável; moralmente, ele é sempre uma erva daninha. A promiscuidade
contínua entre duas raças preeminentes de animais leva, sem exceção. à destruição exatamente a raciologia restringiu o alcance do imaginário político moderno.
de ambas. Por que a raça humana seria uma exceçãoç> Traduzido, portanto, em termos da ontologia primitiva e ética, a "raça" tomar-se-
ia tão potente em matéria de moldar as relações humanas que, em comparação, o
A "Raça" estava manchada, mas aquela falta de clareza na sua relação mundo necessariamente artificial da política formal poderia apenas parecer trivial
com a nacionalidade era um ativo positivo. A idéia foi logo assegurada como um e sem substância.
conceito central filosófico, económico e histórico. Em algumas tradições nacionais, Os historiadores das idéias, particularmente aqueles influenciados pelo relato
ela poderia sumarizar uma ontologia política tão fundamentalüsta) a ponto de da constituição das ciências humanas, que se encontra no trabalho inicial de Michel
fornecer uma lógica impiedosa ao desdobramento da própria história." Lugar, Poucault, trouxeram mais argumentos à sua tese sobre a história da figura do
território e locação foram ontologizadas e historicamente reconceitualizadas em "Homem" e do seu aparecimento no ponto focal do conhecimento modema. Já
elaborados esquemas geográficos e geopolíticos. Outras raças, inferiores e já não sugeri que os argumentos anti-humanistas de Poucault têm sido depreciados devido
mais meramente diferentes, foram completamente excluídas da sua circunferência, à sua omissão em ligá-los a uma consideração explícita da história da escravidão
racial e outras aventuras coloniais em que o carãter brutal e exclusivista do

28. Chamberlain, The Foundations ofthe Nineteenth Century, p. 26 l .


29. Paul Connerton, The Tragedy (1linlightenmens (Cambridge Univcrsity Press, 1983), p. 110. 30. Hegel, The Phílosoptvy of Hístory. p. 93.

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I ENTRE CAMPOS :: Nações, CuLturas e o Fascinio da Raça I I PAUL GILROY I

humanismo ocidental era evidente. Contudo, é possível desenvolver as idéias de provocativa no ponto em que estamos, fica-nos uma forte sugestão no sentido de
poucault no momento cm que a filosofia tornou-se antropologia com outras direções que nossa compreensão sobre a relação entre o processo civilizador e o catálogo
que contribuem para as controvérsias contemporâneas sobre "raça". Trabalho de barbaridades, guardada no segredo das páginas de sua heróica narrativa, deva
importante afinado com a abordagem foucaultiana, se não O for sempre com a ser repensada de modo a incluir a dinâmica modema do mundo colonial com maior
própria política de Foucault, tem sido feito por Edward Said, Bernard McGrane, abrangência."
Anthony Pagden, e muitos outras. Esse trabalho foi além de sugerir que a Já afirmei que a racialização do Estado-nação e as conseqüentes
plausibilidade do Iluminismo como um projeto moderno deveria ser avaliado no transformações da comunidade nacional envolvem um repúdio e negação
contexto de suas escolhas políticas contingentes, por exemplo, o envolvimento prático abrangentes da política tal como praticada no passado. Colhida entre a diplomacia
de John Locke na colonização do Novo Mundo. Ao contrário, este crescente corpo de um lado e a propaganda imperialista de outro, a política não mais envolve o ideal
de trabalho permite considerar se a modernidade ilustrada esteve comprometida, de administrar a inescapãvel pluralidade e multiplicidade numa dimensão pública
se não perdida, pela sua tolerância e conluio com o irracionalismo racional das claramente demarcada, cujos participantes assumem uma responsabilidade comum
ciências raciais emergentes. Esta é uma outra maneira de dizer que as pretensões por ela. Devemos também considerar a possibilidade de que a idéia de cidadania
do Iluminismo com relação à universalidade foram puncionadas no momento mesmo tenha sido transformada, uma vez que as massas em sua unanimidade podiam ser
da sua concepção no ventre do espaço colonial. Seus próprios fundamentos foram orquestradas de cima pelas engrenagens governamentais. O crescimento da
desestabilizados por sua configuração exclusivista inicial: pelo endosso consistente propaganda, juntamente com o conseqüente rebaixamento da esfera pública, foi
da "raça" como um conceito político e histórico central e pela grave violência apenas uma de muitas inovações técnicas e comunicativas que fizeram a extensão
infligida à imagem central do homem devido às exigências do poder colonial, abrindo- de mudanças profundas, coincidindo com o ápice do poder imperial europeu.
se caminho para a prisão do status exótico como a única rota de escape do terror. É claro, os efeitos desses desenvolvimentos não se confinavam às vítimas
O anu-semitísmo e outras raciologias que condicionaram esta mudança da da raciologia, as quais de qualquer modo haviam sido impedidas de cultivar ou de
consciência modema emergem disso tudo como questões inevitáveis da história do exercitar-se em qualquer espaço político. Quero enfatizar uma vez mais que esta
conhecimento ocidentaL Paul Lawrence Rose, Martin Bemal e Mosse, todos eles mudança também teve conseqüências importantes para os supostos beneficiários

I1
sugeriram que estas manifestações ferem até à medula o discurso filosófico da das novas hierarquias raciais." A sua consciência de si próprios, como Fanon
modernidade. O trabalho contestador e estimulante destes escritores não deveria poderia dizer, era amputada no momento em que as seduções da raciologia emergiam
ser visto com ligeireza. A lucidez e a força de seus argumentos sobre a capacidade em formas geopolíticas e populares. Em muitos casos, era-lhes oferecida uma
destrutiva do nacionalismo, a significância formadora do anti-semitismo, e o impacto ideologia de superioridade, por exemplo, o glamour da brancura, ou da arianidade,
da fantasia helenomaníaca sobre a escrita da história e a conduta da cultura política como uma forma de compensação prática pela perda daquela humanidade universal.
européia no século XIX, merecem respostas mais pacientes e refletidas do que as
recebidas até agora. Estes desafios à ortodoxia tornam-se ainda mais importantes
I O exame daquele desenvolvimento hoje permite um bom ângulo de visão sobre a
transformação do Estado-nação num novo tipo de corpo coletivo, integrado
quando se ligam aos resultados do trabalho desenvolvido no espaço da "raça" e da metafísica e culturalmente, assim como politicamente, e também sobre o papel do
escravidão, no mesmo período, por estudiosos que escrevem sobre as Américas, discurso racial para que se alcançasse aquele resultado.
assim como ao material produzido sobre a relação entre a Europa e suas posses
imperiais na África e Ásia. Sabemos, não apenas através dos valorosos esforços
de Arendt e Césaire, que este conjunto de trabalhos pode ser usado
31. Mark Cocker, Rívers of Blood, Rívers of Gold: Europe' s Conflíct witn Tribal Peoples (Cape,
especulativamente para exibir, naquilo que chamamos "fascismo", uma linhagem 1998); Gerhard Poo1, Samuel Maharero (GamsbergIMacmillan, 1991).
intelectual muito distinta da genealogia que tem sido associada em termos mais 32. Catrine Clay e Michael Lcapman, Master Race: rhe Lebensborn Experiment ln Nazi Germany
(Corgi,1995).
convencionais com aquela palavra. Ainda que não se possa assegurar aquela revisão

I 90 I I 91 I
ENTRE CAMPOS" Nações, CuLturas e o fascínio da Raça PAUL GILROY I

Michel Foucault confrontou-se exatamente com esta questão naquelas não se beneficiavam da proteção de um corpo político equivalente. Em atendimento
atormentadas páginas ao final do primeiro volume de sua História da Sexualidade, ao imperativo orgânico, a integridade das nações imperiais foi ativamente re-
onde ele apresenta a modernidade como uma progressão da política-anatôrnica do imaginada, deduzindo-a da particularidade primordial das tribos pré-mcdemas.>'
corpo humano para a biopolítica da população. Pressionado pelo escopo desta Quero chamar as resultantes formações nacionais e governamentais de "campos".
importante incumbência a refletir sobre o legado e o poder do fascismo, ele escreve: Este termo enfatiza as suas qualidades territoriais, hierárquicas e militaristas em
vez das características orgânicas que têm sido mais largamente identificadas como
Iniciando-se na segunda metade do século XIX, a temática do sangue foi por vezes o ingrediente-chave do antídoto que elas fomeciam à modernidade mecanizada e
chamada a emprestar o seu inteiro peso histórico para revitalizar o tipo de poder seus efeitos desumanizadores.>
político que se exercitava através dos dispositivos da sexualidade. O racismo tomou
forma neste ponto (racismo na sua forma estadista, "biologizante'', moderna): foi
então que toda uma política de assentamento (povoamento), família, casamento, MODERN[DADE, DIFERENÇA E CORREÇÃO POLÍTICA
educação, hierarquização social, e propriedade, acompanhada por uma longa série
de intervenções permanentes ao nível do corpo, conduta, saúde e vida cotidiana, Universalidade, razão e progresso, modernidade e ilustração: estas idéias
recebeu a sua coloração e a sua justificação da preocupação mítica com a proteção
gloriosas foram uma vez as firmes pedras fundamentais de toda a mentalidade
da pureza do sangue e com a garantia do triunfo da raça. O nazismo foi sem dúvida
a mais ousadae ingénua (e a primeirapor causa da segunda) combinaçãodefantasias conquistadora ocidental. Em tempos recentes, elas registraram o choque da crítica
de sangue e dos paroxismos de um poder disciplínar.> pós-moderna do conhecimento, verdade e ciência. Em meio às ruínas, atividades
mais modestas, tanto acadêmicas como políticas, transformaram nossa
Precisamos estender esta linha de pensamento ainda mais longe, inicialmente compreensão do papel dos intelectuais e ajudaram a especificar o caréter dos
enumerando os princípios científicos a partir dos quais as populações deviam ser nossos tempos. Eu sugeriria que a força crítica desses argumentos deliberadamente
divididas e classificadas em termos de "raça". Contudo, na tentativa de compreender pós-modernos é mais forte, não quando eles apontam para uma sociologia da pós-
a sacralização que este processo envolveu e seus notáveis aspectos espirituais, modemidade necessitada com urgência, mas sim quando eles se reportam à história
não deveríamos deixar de enfatizar os contrapontos místicos e irracionais à raciologia da relação do conhecimento com o poder e a dominação e convergem para os
científica. Em especial quando entrelaçado firmemente com as operações das problemas da legitimidade surgidos no momento em que o parcial e o particular
nações imperiais, o conceito de "raça" pode ser apreciado como um sucessor optaram por representar a si mesmos como o totalizante e o transcendente. Eles
daquilo que Voegelin denomina "idéias de corpo" prévias - o corpo político articularam uma acusação irresistível dessas formas de busca da verdade que se
representado pela pólis grega, e a idéia do corpo místico da igreja cristã. Bem no imaginaram como válidas para todo tempo e lugar. Estas orientações críticas em
ápice do poder imperial, o impacto combinado de antropologia, raciologia, e relação aos processos, reconstituídos por elas como a política de verdade, assumem
nacionalismo reduziram ainda mais o funcionamento cívico já truncado do Estado- muitas formas conflitantes. É de se lastimar que numa boa parte do tempo elas não
nação. A nação foi então investida com características associadas à consangüinidade sejam mais abertas à crítica do pensamento de raça do que o são seus antagonistas
biocultural em que novas formas de dever e obrigação mútua apareceram para modernos. Contudo não há nada a se ganhar com a negação seja da sua seriedade,
regular as relações entre os membros da coletividade, enquanto aqueles que ficaram seja do seu valor em pressionar uma modernidade evangélica ou abertamente
além dos limites da comunidade oficial foram desprezados, ultrajados e submetidos
a procedimentos políticos e jurídicos inteiramente distintos, especialmente se eles
34. Hugh A. MacDougall, Racial Myth in English History: Trojans, Teuians, and Anglo-Saxons
(lJnivcrsity Press ar New England, 1982).
35. Wilfried van der Will, "The Body and lhe Body Politic as Symptum and Metaphor ln thc
33. Michel Foucault, History ofSexuality, tradução de Robert Hurley, vol. 1(Random House, 1978), Transitioll of German Culrure to National Socialism", in Brandon Taylor e Wilfried van der Will,
p. 149. orgs., The Nazification 01Art (Winchester Press, 1990).

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GIlROY

inocente no sentido de uma maior clareza sobre os seu" próprios desejos e maior em raça eram inconsistentes, sendo que qualquer desgosto em relação aos
consistência no preenchimento das promessas assumidas através da sua própria benefícios do progresso que lhes era vedado era temperado pelo sonho irreprimível
retórica gloriosa. de reconciliação humana para além da cortina de cor e de violência com suas
Algumas das versões mais poderosas desses argumentos encontram-se nos dobras atormentadoras e diáfanas mantidas à risca. Suas viagens e perambulações,
trabalhos de críticas feministas de epistemologia que reconheceram o significado voluntárias assim como coercitivas, induziu-os a trabalhar com diferentes noções
da "raça" como um fator de divisão social. Penso em particular nos trabalhos de de cultura, a qual era reconhecida como um fenômeno fluído e mutante.
Donna Haraway e Sandra Harding. Assim como muitas de suas colegas, elas têm As palavras de um membro deste grupo frouxamente organizado, mas mesmo
se somado a uma longa tradição de dissidência em relação aos conceitos objetivistas assim, consciente de si mesmo, o historiador, sociólogo e ativista afro-americano
das versões mais triunfalistas tanto das ciências humanas como das ciências W. E. B. Du Bois, sugerem que o grupo havia desenvolvido suas próprias conversas
naturais. Suas sociologias pós-khunianas de ciência refletem sobre a história das translocais e cosmopolitas sobre o valor da modernidade e do progresso antes que
atividades de busca de verdade com um olhar menos inocente, mais preocupado padrões equivalentes de desafeto fossem consolidados na Europa em meio às
com a contingência e mais agudamente ligado ao poder da linguagem, que já não é conseqüências da guerra de 1914-19 J8, num processo que contou com contribuições
mais vista como um meio transparente. Outro coro de vozes, erguido em busca de notáveis de escritores e artistas judeus:"
uma relação sustentável com os recursos finitos naturais de nosso planeta e de
uma atitude mais cautelosa e respeitosa em relação à biosfera da qual todos Tão deploravelmentedesorganizado é o conhecimentosociológicoque o significado
dependemos, estendeu a crítica desses modos de encontrar e produzir a verdade do progresso, o significado da rapidez e da lentidão no fazer humano e os limites da
perfectibilidade humana, estão mascarados, esfinges não respondidas nas terras da
em outra direção, sublinhando o seu caráter destrutivo. Este importante trabalho ciência.
reconceitualizou a relação entre natureza e cultura fora do padrão binário do século
XIX que ainda domina nesta área. Como essa relação tem sido historicamente No período que se segue à abolição da escravidão racial, este grupo itinerante
associada com a linguagem da tipologia racial e com a produção de raças enquanto gerou uma série importante de diálogos com outras tradições dissidentes de
atores históricos por meio do discurso antropológico e geográfico é algo que deveria pensamento e ação - religiosa, socialista, nacionalista, feminista, e psicanalítica ~
ser da maior preocupação para os povos cuja posição na escala da evolução é dentro do grande quadro filosófico do pensamento pós-iluminista sobre socialidade
projetada como mais próxima do chão do que das estrelas. e história, democracia ejustiça. Frantz Fanon falou por aquela formação dissidente,
Com estas conexões em mente, quero ainda acrescentar outro registro aos de uma posição interna e contra as maiores estruturas culturais e intelectuais que
comentários críticos sobre a história das mentalidades científicas. Esta crítica haviam moldado a sua consciência. Em sua condição de beneficiário e de vítima
enfatiza a ligação delas com a irracionalidade racional da "raça" e com os relatos do progresso europeu com sua ordem imperial sangrenta, ele reivindicou a liberação
redutores da interaçâo entre diferença cultural e natural. Ela pode ser encontrada nacional para os povos coloniais, ligando, porém, aquele projeto de reconstrução
em diversos lugares, mas é talvez mais fortemente audível nas vozes dissidentes revolucionária à produção deliberada de uma nova concepção de humanidade:
de muitos intelectuais negros do hemisfério ocidental. Estes foram, e continuam a
ser, pessoas que têm sido moldadas, nutridas e treinadas pelo Oeste. Contudo o É uma questão do Terceiro Mundo começar uma nova história do Homem, uma
seu sentido desta promessa foi formado por um profundo desencanto. Em resposta história que levará em conta as teses por vezes prodigiosas desenvolvidas pela
aos seus encontros com a fatídica ligação entre conhecimento racializado, poder e Europa, mas que não se esquecerá também dos crimes da Europa, entre os quais o
as ideologias de desumanidade decorrentes, estas pessoas cultivaram uma variedade mais horrível foi cometido no coração do homem, consistindo no despedaçamento
distinta de consciência dissidente. A posição característica de estar na, mas não
ser completamente da, modernidade ocidental imprimiu um sabor amargo ao trabalho
delas. Isto é discernível mesmo quando as suas críticas da civilização codificada 36. Michael Lowy, Redemption anil Utopia, tradução de Hope Hcaney (Athlone Press, 1992).

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PAUL GIlROV
ENTRE CAMPOS :: Nações, CuLturas e o Fascinio da Raça

patológico de suas funções e no esmigalhar de sua unidade:.. Para a Eur~)p~: pa~a recorrência do terror e da barbárie expressa mais do que um lapso em relação aos
, 'IDOS e para a humanidade, camaradas, devemos virar uma nova pagmd, padrões mais exaltados de conduta racional. Precisamos considerar as
~~ . _ 11
devemos forjar novos conceitos, e tentar colocar em açao um novo homem. circunstâncias em que a aplicação do terror pode emergir como uma opção racional,
legal ou aceitável. Que variedades de racionalidade sancionam a brutalidade
Há muito mais na exortação de Fanon do que a tentativa de rranscodificar o raciológica? Como a categoria de humano, que, como acabamos de ver, Panon nos
. , inário jacobino para o idioma do conflito colonial. A sua acusação à Europa pediria para purgar e redimir, circulava naqueles elevados esforços de diferenciar
~ . . d·tN-
levanta um problema ao qual retornaremos repetidamente mal~ a ian e. ~~ se epistemologia e moralidade, estética e ética? A retórica racial e étnica, a metafisica
trata meramente do fato de que os poderes imperiais europeus destltuíram?s SUJ~ItOS nacionalista e as fantasias imperiais tomaram-se intrínsecas às modernidades
coloniais de sua humanidade, mas sim que a Europa perpetrou um cnme ainda coloniais no país e fora dele. Como a história dos conflitos coloniais sugere, as
nior ao espoliar a humanidade de sua unidade elementar como espécie. O apelo aspirações universais do Iluminismo europeu foram minadas quando elas têm sido
mal . J '
de panou para a instituição de um universalismo anticolonial e não-raCla e um reinterpretadas como ligadas a preocupações locais e paroquiais ou lidas étnico-
esto significativo a revelar os seus laços com as tradições políticas modernas do historicamente de modo que as suas promessas portentosas e eternas pareçam
~undo ocidental, mesmo quando ele gesticula mais fortemente em desaprov<t?Üo. amarradas a um contexto e sejam associadas com os desejos de populações
O que é da maior importância neste caso é a insistência del~ de que este precioso específicas em predicamentos específicos.
universalismo pode apenas ser comprado ao preço de um ajuste de contas com a Uma vez que o caráter exclusivista das altamente apregoadas aspirações
modernidade colonial. Isto começa a surgir somente no processo de confrontar as democráticas da modernidade tiver sido expelido da cobertura proporcionada pela
antinomias da modernidade reveladas na ordem social da colônia, que em termos retórica inclusiva e humanística, a imagem da humanidade surgida no intervalo
empáticos não era aquela da metrópole até que o genocídio nazista a trouxe de dessas mensagens contraditórias pode ser então denunciada como uma fraude. É
volta para casa. Suas palavras articulam um aviso de que ent~e os acam~amentos claro que às vezes esta duplicidade tem sido perpetrada de modo inconsciente.
fortificados dos colonizadores e os alojamentos dos colonizados havia outras Pode mesmo ser que ela tenha sido transmitida por muitos que não têm sido inimigos
locações. Estas locações intermediárias representam, não a inabilidade ou inércia, da liberdade. Não obstante, continua a ser uma fraude e pode ser demonstrada
mas oportunidades para uma percepção maior dos mundos opostos que os enquanto fraude se avaliações sobre isso forem conduzidas de uma posição em
envolviam. Lá, a dupla consciência requerida pelo trabalho cotidiano de tradução que a "raça" apareça no centro ao invés de nas margens da reflexão. Proponho
oferecia um protótipo para o papel eticamente atribuído do intérprete, o que pe.rmitiu esta denúncia, não para endossar o poder da "raça" como uma categoria para se
que os nossos intelectuais mais imaginativos respondessem aos desafios da sociedade compreender o desenvolvimento histórico e social humano. De fato, reinflar o
pós-modema. ,. conceito de modo que ele permaneça significativo e poderoso seria replicar o próprio
Não quero chegar a sugerir que a posição preeminente daquela cultura política fracasso que estou tentando demonstrar. Reconhecer o poder da raciologia, que é
ocidental seja irrecuperável porque a confiança e a autoridade das pretensões empregado aqui como um termo abreviado para uma variedade de modos de pensar
epistemológicas e morais firmadas nesta tradição nunca serão r.estauradas., ~o essencializantes e reducionistas que são tanto de tipo biológico como cultural, é
contrário, eu diria inicialmente que uma restauração ou reforma parcial e pragmauca uma parte essencial para se confrontar o poder contínuo da "raça" em orquestrar
pode se realizar somente se as dificuldades desta tradição em matéria de "raça" nossas experiências sociais, econômicas, culturais e históricas.
for inteiramente examinada em sua profundidade, e em segundo lugar, que um Temos de agradecer o trabalho pioneiro de Max Weinreich, Robert Proctor
firme compromisso em lidar com estes problemas teria de reconhecer que a e Benno MueiJer Hill por delinear o entusiasmo pelo Nacional Socialismo evidente
entre os acadêmicos alemães durante os anos 1930. Suas revelações não exaurem
37. Frantz Fanon, Wretched o/lhe Earth, tradução de Constancc Pamngton (Grave press, 1963), pp.
a questão do impacto da raciologia sobre o conhecimento moderno e outros
254-255 (ênfase minha). problemas éticos associados a esta manifestação significativa de "correção política".

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ENTRE CAMPOS :: Nações, CuLturas e o Fascinio da Raça PAUL GIL ROY

A imagem de Bertrand Russell e de outros socialistas refletida em sua vontade de elitistas, ou indiferentes ao sofrimento. A escolha não é, ou melhor não deveria ser,
implementar esquemas eugénicos, assim como o anti-semitismo eloqüente de entre deixar de lado este trabalho devido à sua nódoa, ou aceitá-lo com base no
infindáveis figuras na melhor das tradições das humanidades européias aumentam fato de que o seu caráter raciológico é um arranhão menor ou uma distração em
as dimensões deste problema. Este se constitui de posturas indignas e por vezes relação às suas outras qualidades, ou ainda seguir a impudente sinalização de Young
absurdas assumidas por acadêmicos e comentadores recentes ao tentar defender no sentido de uma negação absurda de que ele tenha qualquer coisa a ver com
o indefensável. Seus exemplos trivializaram freqüentemente as questões envolvidas "raça" .
ao se levar a sério o poder da "raça". Heidegger é um distúrbio latente porque o racismo, o anti-semitismo, o
A apresentação extraordinária de Martin Heidegger por Julian Young, apesar absolutismo étnico e o ultranacionaiismo que se evidenciam na história das ciências
de admiravelmente clara e rigorosa de acordo com alguns requisitos académicos, humanas não são apenas questões pessoais que podem ser adequadamente
pode ser apontada aqui como um tipo ideal desta espécie de indiferença moral pelo esclarecidas de acordo com as dimensões restritas oferecidas por qualquer vida
poder do pensamento de raça. Entre os numerosos apologistas de Heidegger, Young individual. A maquinação da personalização e individualização desses
é inusitado por reconhecer que uma defesa abrangente da sua inspiração acadêmica comprometimentos políticos e sua apresentação como desvios ardilosos ou
não pode escapar de um confronto filosófico com a idéia de "raça". Contudo, o excêntricos são sem dúvida errados devido à onipresença e frequência destes
seu zelo em desvencilhar Heidegger destes espinhos, mostrando, por exemplo, que problemas. São também errados por razões mais fundamentais. Essas reações
ele foi um crítico inesperado e articulado do racismo em vez de um praticante de põem em risco a crítica de princípio que se torna então tão dispersa que, como
suas variedades mais metafísicas, conduz a desejada defesa de seu herói a águas afirmaram Primo Levi e Richard Rorty em contextos distintos, o nobre desejo de
mais profundas. O preço final da reabilitação de Heidegger é a sua negativa rasa compreensão do inaceitável, do mal e do erróneo, pode começar a prejudicar os
de que o nazismo poderia ter tido uma coerência doutrinal. Mais importante ainda diferentes imperativos de justiça." Nessa arriscada posição podemos facilmente
para estes propósitos, Young introduz uma definição de racismo com um carater perder nosso senso do que é direito ou certo em um reboliço de detalhes dispersos
restritivo e estritamente biológico a ponto de forçar uma grande cunha entre - os finos grãos de uma vida individual inevitavelmente produzem uma complexidade
folclorismo, nacionalismo e os erros científicos, os quais ele considera como próprios tão grande que podem não nos ajudar. É conveniente mostrar que algo nesse sentido
do racismo. Em vez de investigar as formas culturais e metafísicas de pensamento decerto aconteceu nos casos notórios de Leni Reifenstahl e Heidegger, cujas
de raça relativas à modernidade, Young ignora a extensa literatura que mina a sua histórias de vida foram emendadas por meio de seus próprios esforços em projetar
credibilidade e prudentemente pronuncia: "o racismo biológico é o único tipo que narrativas autobiográficas saneadas. Eles penaram para demonstrar que as suas
existe"." versões particulares e ideais do Nacional Socialismo eram, em primeiro lugar,
,
Ter como foco a figura patética e combatida de Heidegger, mesmo quando 'i' inteiramente apolíticas, e em segundo lugar, não podiam ter sido associadas com
surpreendido em uma de suas visitas costumeiras ao seu antigo companheiro Eugen um mero racismo biológico, embora as evidências necessárias para avaliar esta
Fischer, possivelmente o cientista racial dirigente da Alemanha, é um risco, pois questão não estejam obviamente à disposição. Nem sempre precisamos respeitar
pode dispersar a atenção em relação aos argumentos maiores perseguidos por a autoridade das biografias e os efeitos de veracidade daquelas formas particulares
mim. Não se trata afinal de uma questão de condenar uma tradição inteira de de narrativa da verdade.
pesquisa porque aqueles que lhe deram direçãc, vigor e pensamento crítico eram,
por alguma definição contemporânea inapropriada, racistas, misóginos, homofóbicos,

39. Primo Levi, The Drowned and the Saved; tradução de Raymond Roscnthal (Summir Books,
1988), capítulo 2; Richard Rorty, Objectivity, Relativísm and Trutn (Cambridge University
38. Julian Young, Heidegger, Phi/usuphy, Narism (Cambridge l.lniversity Prcss, 1997), p. 36. Press, 1991), pp. 205-206.

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Defesas mais simpáticas das modernas tradições filosóficas e da sua necessidade. Suponha também que não há bons motivos para considerar a "razão"
capacidade de abrir o mundo têm sido encenadas p~r m~itas vozes_bem da perspectiva do status inicial de um amigo porque o encontro com ela tem se
intencionadas. As melhores delas nos têm pedido para nao cair na tentaçao de dado sempre sob o signo do poder enquanto produto da força coerciva. Por mais
'0 ar fora a razão, mas sim criticar a sua instrumentalização; para não nos tornar que queiramos defender o potencial da razão e reconhecer as suas formais plurais,
Jcéticos
g d 1" ' d d
do ideal de esclarecimento, mas para reconhecer o seu ec 1010 na SOCle a e históricas, muitos de nós não gostaríamos de admitir que deveríamos privilegiar os
contemporânea; para não nos retirar do espaço de uma cultura pública, mas para códigos singulares, locais através dos quais o ideal se torna poderoso. Em termos
entrar naquele espaço, exigindo que seus guardiões cumpram com as promessas mais elementares, aqueles códigos perderam parte da sua credibilidade graças às
feitas de acordo com a retórica luminosa que contribuiu para constituí-lo. Em resumo, histórias de sofrimento com as quais eles têm sido associados.
muitas da mais eminentes e disciplinadas mentes do nOSSO tempo nos têm dito que Não é somente a ausência de razão, barbarismo, antiguidade e primitivismo
não são essas idéias que devem ser vistas como faltos as, mas a sua inadequada que promoveram destruição, maldade e violência. De fato, Zygmunr Bauman
implementação e instrumentalização. Precisamos mais delas e não, como os críticos afirmou que deveríamos, levando em consideração os limites da teodicéia em nosso
pós-modernos poderiam dizer, menos das suas imodestas aspiraçõe~. ~m ter~os tempo moderno mais recente, reconhecer que os princípios sobre os quais nossos
contra-factuais, o seu contínuo poder tem sido reassegurado e tornado indispensável complexos sistemas sociais e políticos operam permitem oportunidades sem
para a democracia contemporânea. Se quisermos defender os sist~mas pol.í~ico e precedentes para que as pessoas façam o que é errado. Eles multiplicam as
econômico menos ruins contra as usurpações do irracionalismo organizado, militante possibilidades nas quais a maldade pode ser perpetrada, e é perpetrada mais
e por vezes terrorista, precisamos de uma democracia ressurgente, a qual pode facilmente por pessoas que não são em si mesmas más, brutais, ou cegamente
funcionar somente se esses conceitos fundamentais forem desenvolvidos. Deve- levadas pelo ódio. O caminho de volta para a idéia de padrões universais de
se fazer isso com real convicção de modo que cosmopolitas e democratas possam moralidade, verdade, e justiça deve necessariamente ser mais complexo do que a
articular esperanças substanciais em vez de se empenhar em fazer empréstimos direção apontada pelo argumento provocativo de Rose. Quero mostrar que a
cínicos ou "estratégicos" do arsenal bem provido do liberalismo ressurgente. capacidade de manter a questão de "raça" no primeiro plano do nosso pensamento
A batalha contra fascismos revitalizados, nacionalismo, regionalismo, é essencial, caso os argumentos contra a posição principista, reflexiva, mas
fundamentalismo e particularismo pode ser travada tão somente se formos capazes fundamentalmente eirada, adotada por pensadores como Rose, devam ser mantidos.
de empregar com convicção o melhor dessas idéias e dos sistemas morais seculares O consolo e a confiança proporcionados pelas respostas dela têm sido comprados
da modernidade nos quais aqueles têm se pronunciado com tanta proeminência. O a um alto preço. O seu preço é a exclusão da "raça". Mesmo se escolhêssemos,
Estado-nação continua a ser o meio mais promissor para se alcançar este resultado. como Rose, não reconhecer como a "raça" alcançou um valor epistemológico, a
Mesmo se os melhores princípios da modernidade foram manchados no passado história da idéia e da sua estranha trajetória, entre o racional e o irracional, o
pela sua relação com os irracionalismos racionais do racismo e do anti-semitismo, cientifico e o religioso, o físico e o metafísico, o popular e o elitista, levantam uma
isto não significa que eles não possam ser retrabalhados no futuro, quando as variedade específica de problemas políticos e morais.
condições serão necessariamente distintas. Num ensaio apaixonado e reflexivo
que constrói exatamente este tipo de argumento, a filósofa Gillian Rose apresentou MODERNIDADE ALTERNADA, MODERNIDADE EM OUTRO LUGAR
uma analogia simples, tirada da intimidade interpessoal, como uma chave para a
compreensão do que está em jogo nesses conflitos. Se você fosse traído por um Como tenho sugerido, Arendt, Césaire, e muitos outros escritores de coragem
amigo com quem você se preocupava, isto anularia a própria idéia de amizade? A já enfrentaram estas questões antes. Suas pesquisas foram incentivadas pela
analogia interessante desta autora não é aplicável em todos os casos. Suponha, ao obrigação moral de considerar as conexões possivelmente existentes entre os
contrário, que a intimidade inicial, em relação à qual qualquer ruptura subsequente terrores genocidas perpetrados no interior da Europa e os padrões de carnificina
deve ser medida, não era longa, nem profunda, mas nascida de uma dolorosa colonial e imperial que os precederam sob as cores da Europa, mas fora de suas

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fronteiras continentais, o seu geocorpo." Essa questão deve continuar em mente, Enquanto os racismos continuam, uma compreensão distinta de identidade
mas não pode ser respondida aqui com ligeireza. Ao contrário, tendo observado tem ,d~ fato emergido a partir de uma séria consideração sobre as densas, híbridas
que a lógica política da "raça" funciona dentro de um distinto quadro t~mporal e e mültíptas formações da cultura pós-colonial, cuja tradução é simultaneamente de
espacial que fez do império uma força vital tanto dentro como fora, aqUl. como lá, uma rotina vulgar e permeada de uma significância ética essencial. Em sua forma
quero enveredar por uma outra linha de questionamento. Esta linha se orienta pela mais simples, esta compreensão da solidariedade, de si mesmo, da subjetividade
idéia de que os negros testemunharam os fracassos da Europa não apenas como pode .ser congruente com um problema que o grande humanista Jean Améry
povos colonizados, em distantes terras conquistadas e exploradas, ma" com~ pes~oas recapItulou ao falar há muito tempo da condição descrita por ele como a simultânea
no outro elo final da corrente imperial, dentro da Europa, como cidadãos, "nec~ssidade e impossibilidade de ser um judeu". Um estado comparável de ser e
espectadores e habitantes temporários." Este testemunho tem por ve:~s. sido de nao pertencer já foi nomeado por pensadores negros tão bem versados como
assumido em nome da modernidade e da cultura. Além disso, há ainda a possibilidade Améry nos termos das estimadas tradições do pensamento especulativo das quais
de que a história desta aruação possa ser importante hoje. É possível que possa ser eles foram por vezes excluídos devido à tipologia racial. Eles chamavam essa
trazida à tona para utilmente complicar a história da raciologia. Empregada condição de dupla consciência.
explicitamente, pode contribuir para ligar a presença dos povos coloniais na Europa Os trabalhos de escritores como Senghor, Fanon e Césaire sobre a
com a história dos judeus da Europa e outras minorias vulneráveis, em ~ermos de problemática da Negritude oferecem um dos muitos pontos de entrada possível
uma conceitualízação, trama e projeção em escala não-nacional distinta. E possível neste campo. Esses trabalhos são importantes não por terem transcodificado as
que anuncie e confira valor a algumas das experiências alternadas e desvalori:~das especulações hegelianas de afro-americanos como Du Bois em um momento
da modernidade que foram organizadas através da "raça" e às culturas democráticas diferente, uma perspectiva diferente, mas sim porque, como Sandra Adell mostrou
dissidentes com as quais as lutas contra o pensamento de raça contribuíram tão com tanto brilho, as identidades negras com as quais eles discutiram e a respeito
amplamente. Partindo destas premissas, pergunto-me que esquemas conceituais das quais eles discutiram foram parcialmente criadas como uma estranha
sobre a idéia de modernidade - em boa hora despojada de sua falsa inocência e do combinação de instrumentos conceituais fornecidos por figuras improváveis como
solipsismo eurocentrado - poderiam impulsionar o reconhecimento desta Leo Frobenius e mesmo Heidegger." Como muitos negros circum-atlânticos este
convergência histórica. grupo refletia sobre os pronunciamentos fragmentários de Hitler em Mein K~mpf
Responder a este duro desafio requer uma crítica renovada da própria idéia sobre o Negro e os perigos da intermistura. Durante os anos 1930, eles
de "raça" - espera-se a sua morte como um princípio de cálculo moral e político- acompanharam com atenção a posição sitiada dos judeus europeus e ponderaram
mas não se pode terminar apenas neste ponto. É preciso haver ainda mais a relação entre os padrões familiares do terror pré-genocida e a discriminação
enfrentamentos, de um lado com o corpo humano representado como o repositório contra os judeus alemães, e a situação distinta, mas certamente comparável, a ser
fundamental da ordem da verdade racial, e de outro, com a própria idéia de cultura. enc.ontr<:.da tanto nos estados sulistas sob o Jtm Crow [sistema de segregação
Esta última nos pede para, mais uma vez, identificar as distintivas racionalidades, racial] quanto em suas aproximações nortistas menos formais. Após saborear as
lógicas, metafísicas, patologias e possibilidades de uma ecologia cultural mais vitórias de Jesse Owen nas Olimpíadas de 1936, eles Se retraíram ao vê-lo declarar
complexa: uma ecologia que considere a vida das espécies como o resultado da a gran~eza de Hitler durante um encontro do Partido Republicano. Eles aplaudiram
interação entre os sistemas comunicativos e os meio-ambientes que elas incorporam, com vigor quando a masculinidade negra, heróica e nobre, na forma de Joe Louis
mas também modificam e transgridem. derrotou Max Schmeling naquela histórica segunda luta.

40. Jon Bridgrnan, The Revolt of the Hereros (University of Calitomia Press, 1981). _
41. May Optiz cr aI., orgs., Showing Our Colors: Afro-Getman Womcn Speak Out, traduçao de 42. Sandra Adcll, Double Conscíousness, Doubte Bínd (UniversilY of Illinois Press 1973)
pp. 29-55. ' ,
Anne V. Adams (University of Massachusetts Press, 1992), pp. 1-56.

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Estes exemplos importantes foram apontados inicialmente por Fanon. Eles se padrões de ação nunca vistos antes. Torna-se possível buscar respostas para
nos levam para além do seu tempo em direção a uma transformação do significado perguntas que deviam ter sido óbvias. Qual, por exemplo, foi o impacto da visão
do status do corpo masculino negro e a alguns padrões sem precedente de fundamentalista de "raça" de Disraeli sobre os intelectuais afro-americanos do
e d '
século XIX que adaptavam as teorias dele às suas própria necessidades e
identitícação e de desejo que se tomaram rotineiros nessa época celebra a ate a
exaustão do estrelato planetário de Michael Jordan. Mais do que qualquer outra circunstâncias? Quantos dos homens e mulheres comuns que se tornaram
figura, Fanon conduziu as ansiedades e percepções de seus companheiros at1~nticos funcionários e apoiadores da causa do Nacional Socialismo haviam servido
negros até as gerações políticas subseqttentes. Esquece-se com jreqüência que previamente nas forças coloniais alemãs ou tinham passado por outras experiências
ele se declarou um patriota antifascista e, após uma longa jornada de volta à terra nas aventuras imperiais sangrentas da Alemanha na África do Sudoeste, Tanganyka,
pátria contra as jnjunções do governo Vichy, ele guerreou contra os nazistas em Nova Guiné, ou China?" O que Léopold Sedar Senghor quis dizer quando ele se
solo francês, tendo sido condecorado com a Croix de Gnerre por sua brava conduta referiu ao nazismo COmo o tendo trazido de volta à razão? Como pode Norbert
no vale de Doubs perto de Besançon. É óbvio que há um risco de que estas Elias, a mente sociológica mais sutil e perceptiva de todas, ser de todo incapaz de
conexões sugestivas possam parecer como nada mais do que uma série de casos reconhecer em mais do que uma sentença isolada que a Alemanha fora dona de
discrepantes. Contudo, mesmo numa condição não teorizada, elas podem ser um império, algo que era óbvio mesmo numa leitura mais superficial de Mein
capazes de produzir alguma coisa moral e politicamente significante tantO para o Kampf? O livro de Hitler carrega a marca profunda da ciência racial popular.
nosso presente como para o futuro cosmopolita da Europa. Para que ísso ~ssa Sabe-se que ele leu o celebrado compêndio sobre aquela matéria publicado por
ser avaliado, necessita-se de mais uma rodada de especulações. Por que connnua Eugen Fischer e seus associados Erwin Baur e Fritz Lenz, durante a sua prisão em
a ser tão difícil para tantas pessoas aceitar a intersecção amarrada de histórias Landsberg. Lenz, que apreciava como Hitler havia tomado a higiene de raça um
produzidas por essa fusão de horizontes? Antes que se possa começar a responder elemento importante da política de Estado, fez uma resenha de Mein Kampfpara
a esta questão, gostaria de sugerir que estes fios da história moderna tomaram-se o periódico Der Rassenhygiene. Foi com orgulho que ele observou que o Führer
entrelaçados, não importando se a sua associação é vista como um resultado havia tomado de empréstimo muitas de suas idéias, declarando ainda que o meio
conveniente, popular ou atraente para aqueles que só podem conceber história em direto de transmissão fora proporcionado por Julius Friedrich Lehmann, o editor do
termos étnicos, nacionais ou raciais. Esta sonora abordagem pós-antropológica compêndio, que havia pessoalmente presenteado Hitler com um volume de sua
das culturas complexas e profanas não pode esperar o aplauso de nacionalistas ou segunda edição. Wilhelm, o filho de Lenz, outro cientista racial, a serviço nessa
apóstolos da pureza sejam quais forem as suas formações étnicas. É improvável época da Universidade de Posen, trabalhou para a administração civil de Alfred
que um vínculo oblíquo garantido pelos críticos da raciologia seja avaliado como Rosenberg em Riga, tendo aplicado energcticamente a teoria de raça de seu pai no
um fenômeno conveniente ou simples. É possível que não se encaixe direito nos trabalho de investigação da composição racial da população leto com a perspectiva
padrões estabelecidos e ortodoxos que regulam a crítica cultural e a historiografia de seu re- volking ao final. 44
De fato, as conexões que podemos ser capazes de estabelecer entre as contra-
culturas da modernidade e os contra-poderes profanos incentivados por elas não
são em geral vistos com uma suspeita saudável, mas sim com um aberto desconforto
e com aquilo que, graças a Zygmunt Bauman, agora sabemos ser um mal-estar
"proteufóbico". Isto se deve à ameaça que se imagina que elas façam à integridade 43. Woodruff D. Smith, The German Colonial Empire (Utuversity uf North Carolina Press, 1978);
Hermano 1. Hiery and John M. Mackenzie, orgs., Eumpeun lmpact and Pacifía tnjluence:
dos grupos aos quais a escrita da história de perspectivas étnico-nacionais e raciais
British and German. Colonial Pulicy iII lhe Paciflc lslands mui the lndigellOwi Response (I. B.
pretende prestar solidariedade. 'Tauris, 1997); W. O Henderson, The German Colo/lial Empire, 1884-1919 (Cass, 1993).
Estas narrativas contra-históricas agitam os sedimentos sobre os quais fluíram 44. Max Weinreich, Hiüer's Professors: The ParI ofScholarship in Germany's Crimes agaínst lhe
Iewish.People (Yiddish Scientific lnstitute, 1946), em especial p. 39 c p. 177.
as correntes da modernidade. O que era transparente se toma obscuro. Revelam-

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Inspirados por documentos como este, muitos observadores reconheceram impacto da imagem de um "antifascista", um nacional autêntico, a despeito de ser
que os judeus europeus e os povos coloniais têm estado ligados pelas operações integralmente uma voz colonial em favor da própria Europa. Os companheiros
rransnacionais da raciologia e da higiene de raça governamental. Contra a lógica martinicanos de Fanon não estavam tão imersos nos valores dos seus colonizadores
míope que pode compreender os sofrimentos desses grupos tão somente em termos a ponto de serem incapazes de distinguir a cultura autêntica da metrópole deles da
particulares, eles têm sido associados de muitos modos através da sua encarnação sua perversão política transitória pelo nacional socialismo dos colaboradores de
na metafísica racial e dos seus serviços seriais como os "outros" no delírio Vichy. Precisamos perguntar como a reação deles contra o nazismo se produziu a
"maniqueísta" que distinguia a ordem colonial. O ponto essencial é que se pode partir das condições da sua subordinação colonial. Como as suas reivindicações
agora fazer essas ligações para chamar a atenção para uma compreensão totalmente posteriores de liberação nacional seriam infonnadas por essa exposição aos fascistas
diferente e descentrada da história européia. Além disso, elas antecipam um conjunto ,~s e seus apoiadores coloniais? Fanon não estava sozinho entre os negros da diáspora
de obrigações éticas cosmopolitas que em vez de tentar transcender a nacionalidade, l ao tentar deslindar os significados dessas identificações imprevistas, refletindo sobre
tentam de uma maneira consciente e deliberada deixar de lado as suas demandas .~ a sua significância para a crença religiosa, o humanismo secular, a civilização
em favor de objetivos mais honestos e valiosos. Aspiram, por exemplo, a
reconceitualização da história de modo que a força modernizadora da raciologia I ocidental e o prospecto da sua reabilitação não-racial. A modernidade colonial
questionou as fronteiras em torno das culturas nacionais da Europa. Mas o retrato
possa ser reconhecida como tendo sido intrínseca às operações do poder e do oficial da nação como uma unidade integrada sujeita a distinções hierárquicas sob

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governo. É possível que esta abordagem seja menos respeitosa do que a moda um regime político fundado na idéia de um território contíguo permaneceu incólume
corrente em relação às tecnologias da territorialidade que criaram a unidade mesmo sendo remotas as suas partes coloniais, como a Martinica de Fanon e o
imaginária da Europa. Pelo contrário, talvez se possa ver a Europa como uma Senegal de Senghor. O território nacional ligava-se às suas colônias por uma
configuração fictícia, menos integral e mais extensiva. As possibilidades criativas autoridade mais do que governamental. Cultura e língua, biologia e "raça" eram
que decorrem dessa mudança podem ser sublinhadas através deste proveitoso todas elas elementos da constituição imperial. Este modelo de pertencimento a um
exemplo tirado do cenário imperial francês: corpo político criou problemas profundos para os seus membros coloniais a quem
a "raça" e cor impediam de assumir seus lugares próprios no romance familiar da
De Gaulle, em Londres, falou de traição, de soldados que depuseram suas espadas comunidade imaginada.
antes mesmo que as tivessem empunhado.Tudo isso contribuiu para convencer os
indianosocidentaisque a França, a sua França, não havia perdido a guerra, mas que
NAÇÕES, ENCAMPAÇÕES E FASCISMO
os traidores a tinham liquidado...Testemunhou-sc então uma visão extraordinária:
os indianos ocidentais recusando-se a tirar seus chapéus ao som da Marselhesa.
Que indiano ocidental pode esquecer aquelas noites de quinta-feira quando na Como o exemplo da Martinica deixa claro, o fratemalismo e o militarismo
Esplanade de la Savanc, patrulhas de soldados armados pediam silêncio e atenção do fascismo mudaram o caráter das suas comunidades nacionais. Contudo, a
°
enquanto se tocava hino nacional? O que havia acontecido?" transformação dos Estados-nação europeus em campos marciais nem sempre
coincidiu com a ascensão do fascismo como uma tecnologia política e cultural
Temos nos tornado tão acostumados a ler este tipo de estória como uma distinta. Esse processo de consolidação e reintegração autoritária não deveria ser
manifestação de uma crise de identidade a afligir os colonizados que podemos identificado exclusivamente com os padrões excepcionais exibidos quando do triunfo
perder o significado do evento para os colonizadores e prontamente subestimar o dos fascistas. Como a dominação colonial sugere, este processo contou com uma
história mais longa e um significado mais geral. A nacionalização, a racionalização
e a militarização do governo comunicavam não apenas o ingresso da "raça" nas
45. Frantz Panon, Toward the Afrícan. Revolution: Politicai Essays, tradução de Haakon Chevalier operações da cultura política modema, mas também a confluência da "raça" e da
(Grave Press, 1967), p. 23. nação a serviço de fins autoritários.

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É preciso ficar claro que os Estados-nação têm por vezes constituído campos classe dos proletários sem pátria era também uma questão de pensamento de
num sentido descritivo direto. O trabalho organizado de disciplina c treinamento campo - um modo de solidariedade tão poderoso que rompeu com a fidelidade
dos cidadãos precisou coexistir com complexos de engajamento menos formais histórica da sua classe universal, os trabalhadores industriais, às suas respectivas
nos quais a idéia fantástica de transmutar a heterogeneidade em homogeneidade burguesias nacionais. Eles consideravam as forças sociais antagônicas como mais
poderia ser implementada e ampliada tanto para fora como para dentro. Onde a profundas do que as da nação, constituídas nesse arranjo distinto. Seria tolo negar
"raça" e a nação tornaram-se fortemente articuladas, com cada ordem de discurso que a organização interna da consciência de classe e da luta de classe pudesse
a conferir uma importante legitimação mútua, o princípio nacional pode ser também incentivar aquilo que Alexander Kluge e Oscar Negt, em sua discussão
reconhecido tendo formado um elo importante entre nacionalismos, diferentes e da história da esfera pública proletária, denominam "mentalidade de campo". Eles
mesmo opostos. As variedades dominantes amarraram-se às subordinadas através contrastam os ânimos oposicionistas, mas, não obstante, antidemocráticos,
das suas noções compartilhadas sobre o que a nacionalidade envolve. As formas fomentados no espaço selado do campo baseado em classe com a abertura que
de nacionalismo que invocam este modo de pertencimento exemplificam o uma cultura pública viva pode acumular mesmo em circunstâncias mais retraídas.
pensamento de campo. Elas têm regras e códigos distintos, e por mais severos que Embora as preocupações de Kluge e Negt sejam diferentes das minhas na medida
sejam os conflitos entre os seus vários praticantes, fica evidente uma abordagem em que elas se direcionam para histórias de classe e de partido como fontes do
comum ao problema da solidariedade coletiva através dos padrões compartilhados pensamento de campo, já deve ter ficado claro que a solidariedade de campo pode
de pensamento sobre o eu e o outro, o amigo e o estranho; sobre a cultura e a ser constituída e fortificada em outras dimensões de divisão além da de classe.
natureza como agentes vinculados e sobre a instituição tecnológica das coletividades As mentalidades de campo, constituídas pelos apelos de "raça", nação e
políticas às quais se pode ser obrigado a pertencer. diferença étnica, pelos saberes de sangue, de corpos e pelas fantasias de identidade
A recorrência de conexões inesperadas entre inimigos abertamente cultural absoluta, têm diversas propriedades adicionais. Elas agem por meio de
declarados define um eixo central da política de "raça" no século XX. Aquilo que apelos ao valor da pureza étnica e nacional. De imediato, a sua potência biopolítica
se pode mais propriamente denominar (anti)-política de "raça" encontra-se levanta questões de profilaxia e higiene, "como se o corpo (social) tivesse de se
profundamente implicado na instituição desses campos nacionais e na emergência assegurar de sua própria identidade expelindo detritos"." Elas incitam a
de uma administração estatal nacionalizada como uma alternativa às concepções regulamentação da fertilidade mais prontamente do que comandam a força de
tradicionais de atividade política. A política é reconceitualizada e reconstituída como trabalho de seus afiliados. Onde a nação é um grupo parental supostamente
um contlito dualístico entre amigos e inimigos. Na pior das hipóteses, a cidadania composto de grupos familiares uniformes e intercambiáveis, os corpos das mulheres
degenera em soldadesca e a imaginação política torna-se inteiramente militarizada. proporcionam as bases prediletas para se testar os princípios da obrigação, da
A exaltação da guerra e da espontaneidade, os cultos da fraternidade, juventude e deferência e do dever exigidos pelo campo/nação. Os debates sobre imigração e
violência, a sacralização antimodema explícita da esfera política, e sua colonização nacionalidade que irrompem continuamente na política européia contemporânea
por uma religião civil envolvendo uniformes, bandeiras e espetáculos de massa, têm apresentado com regularidade a entrada de negros, mulçumanos e outros
são todos indicativos de que esses campos são um fenômeno fundamentalmente intrusos como uma invasão. Eles podem ser usados para ilustrar cada um desses
marcial-São espaços armados e protegidos que no máximo oferecem um intervalo aspectos de mau gosto.
temporário numa ação irreconciliável rumo à próxima fase com sua demanda de Embora a mentalidade de campo dos nacionalistas possa produzir resultados
vívidos conflitos. espetaculares, ela é traída por suas cruentas teorias de cultura, podendo mesmo
Marx e Engels apropriaram-se desta idéia de solidariedade política em ser definida pela veneração da homogeneidade, pureza e unanimidade, fomentadas
oposição ao poder dos Estados-nação no início do Manifesto Comunista ao
descreverem o mundo visto por eles como progressivamente dividido "entre dois 46. Claude Lefort, ThePoliticaiFormsofModem Society: Bureaucracy, Democracy; Totalitarianism,
org., John B. Thompson (Polity Press, [986), p. 298.
grandes campos hostis...um oposto ao outro". Assim, a identificação baseada em

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por ela. Dentro das fortificações da nação, exige-se que a cultura assuma uma direita, racista e anti-racista. Precisamos de análises que respondam à fluidez e
textura artificial e uma consistência ainda mais impossível. O campo nacional acaba contingência de uma situação que parece não ter precedentes. Se estivermos
com qualquer sentido de desenvolvimento cultural. A cultura como processo é dispostos a atuar nessas novas circunstâncias, seria útil abordarmos o problema da
interrompida. Petrificada e estéril, ela é empobrecida pela obrigação nacional de encampação de um outro ângulo, não como um meio de compreender a inter-
não mudar, mas sim de estar sempre a reciclar o passado numa forma mítica relação geopolítica do espaço, identidade e poder com a raciología moderna, mas
essencialmente inalterada. A tradição é reduzida a simples repetição. como aspectos sociológicos e históricos emblemáticos de um período volátil.
No século XIX, Ernst Renan, em sua nefasta investigação raciológica sobre Já me referi a esses campos nacionais como locações nas quais versões
o significado da nacionalidade, defendeu a célebre tese de que havia uma contradição específicas de solidariedade, pertencimento, parentesco e identidade têm sido
ativa entre as demandas da construção da nação e aquelas do autêntico estudo discernidas, praticadas, e administradas. Agora pretendo me afastar do campo
histórico. Para ele, a nação e sua nova ordem temporal envolviam formas como uma metáfora para as patologias de "raça" e nação e me aproximar de uma
socializadas de esquecimento e erro histórico. Estas podem ser identificadas como reflexão sobre os campos vigentes e as lógicas políticas e culturais que os produziram.
sintomas adicionais da mentalidade de campo. Uma amnésia orquestrada e forçada Esses campos foram e são uma tecnologia política - instituições concretas de uma
oferece o melhor clima no qual os princípios de pertencimento e solidariedade do maldade radical, de sofrimento inútil e da indigência moderna - em vez de expressões
campo nacional tornam-se atraentes e poderosos. No próximo capítulo, veremos odiosas, mesmo que um pouco rotineiras, dos maus hábitos do poder. É possível
que o campo nacional exige a negação da diãspora não apenas por esta dar ênfase que o fato de se identificar uma ligação entre esses tipos muito diferentes de
ao trabalho comemorativo. A diáspora opõe-se ao campo quando ela encontra o campo - com efeito, entre níveis de racismo e nacionalismo vistos como normais e
conforto dos lugares intermédios que o pensamento de campo destitui de qualquer o estado excepcional representado por fascismos genocidas - seja descartado
significância. como simplista ou mesmo grandioso demais. Na história britânica recente, o
Para os membros do campo étnico, nacional ou racial, o conflito crônico, a nacionalismo tem às vezes se constituído na melhor das respostas populistas dirigidas
guerra nos bastidores, a hostilidade latente assim como manifesta, podem legitimar aos neofascismos ameaçantes, os quais têm sido denunciados como estrangeiros
os padrões severos de disciplina, autoridade e deferência. O campo sempre opera e impatrióticos. Muitos escritores, inclusive Hannah Arendt, também contrapuseram
sob regras marciais. Mesmo se os seus ideólogos falam a linguagem da totalidade as instituições jurídicas estáveis do Estado-nação à anarquia e violência das colónias
orgânica, ele persiste como um lugar de periodicidade e solidariedade mecânica. À onde a raciologia foi inicialmente codificada e institucionalizada como um princípio
medida que o campo se dirige para a condição totalitária da emergência permanente, de governo. Contudo, quero trazer aqui um caso diferente para demonstrar a
ele vai se moldando pelo sentido aterrorizante de que qualquer coisa é possível. importância daquela ligação. Esta orientação conta hoje com o apoio de um
A adoção deliberada de uma posição entre campos deste tipo não é um sinal desconcertante entrelaçamento de história pós-colonial e pós-imperial recentes."
de indecisão ou de equívoco. É uma escolha oportuna. Como espero que o exemplo É também uma perspectiva que, como Aimé Césaire deixou claro há muito tempo,
da diáspora no próximo capítulo deixe claro, esta escolha pode ser uma orientação atinge o fundo da relação entre civilização e barbárie. Sua mensagem geral
positiva contra os padrões de autoridade, governo e conflito que caracterizam a confirmou-se decerto, por exemplo, na história recente de Ruanda, onde numa
geometria do poder da modernidade. Pode também promover uma rica compreensão conjunção com as modernas tecnologias culturais, a missão civilizadora do poder
teórica da cultura como um fenômeno mutante e viajante. É claro, ocupar um colonial endureceu os conflitos pré-coloniais num absolutismo étnico plenamente
espaço entre campos significa também que há o perigo de encontrar hostilidade de desenvolvido, estimulado do mesmo modo pelos imperativos da raciologia e da
ambos os lados, de ser agarrado pelos tenazes do pensamento de campo. Responder
a esta arriscada situação envolve repensar a prática da política que sempre se
rebaixa quando o Estado-nação opera sob regras de campo. Precisamos sair or
47. Cheran Bhatt, l.lberation and Purity: Roce, New Religious Movemcnts and the Ethics Post-
Modernity (Ijniversiry College London Press, 1997). .
imediatamente das frustrantes categorias binárias herdadas por nós: esquerda e

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascinio da Raça PAUL GILROY

francofonia. Nesse lugar também, a emergência do pensamento de campo, terrorista. Sua perspectiva é bem mais sutil. Se quisermos viver uma vida boa e
nacionalidade militarista em estilo de campo e etnicidade de campo - os aspectos- gozar de relações justas com nossos companheiros, nossa conduta deve se guiar
chave do primeiro tipo de campo - estiveram implicadas na instituição de uma em termos estritos não apenas por essa história terrfvel, mas também pela percepção
segunda espécie de campo: de início, espaços de morte por genocídio nos quais se de que essas terríveis possibilidades estão sempre muito mais próximas do que
reuniam as vítimas e depois, surpreendentemente, campos de refugiados nos quais gostaríamos de imaginar. Para nos prevenirmos contra o seu reaparecimento,
os assassinos de ontem tornaram-se as vítimas, clamando por ajuda e compaixão. precisamos discorrer longamente a seu respeito e acompanhá-las, uma vez que
Compreender esta situação envolve mais do que simplesmente considerar elas se tomaram uma fonte moral essencial: uma bússola sensível ao exigente e
os campos como epifanias da modernidade catastrófica e ter como foco os vastos individualizante campo anti-ético da pós-modernidade. A reflexão incisiva de Levi
precedentes coloniais da matança genocida na Europa. É necessário reconhecer a constitui-se do fato de que não há mais desculpas aceitáveis para a falta de não se
nossa própria condição pós-modema: fomos colhidos não apenas entre campos estar totalmente familiarizado com a vida institucional dos campos. Não precisamos
nacionais, mas em meio às incertezas e ansiedades que a condição de emergência nos tornar internos para perceber que o seu testemunho clama por nós e que
permanente associada com o segundo tipo de campo tanto alimenta como cria. precisamos responder a ele. Isto significa estar vivo, agora, para os campos lá fora
Partindo de suas próprias memórias de sofrimento para encaminhar suas eloquentes e para os campos aqui bem perto, os campos que estão sendo preparados.
demandas por justiça, Primo Levi recomendou sábia e precisamente esta Tendo em mente uma outra sábia versão sobre a estratégica universalidade
reorientação. Ele a apresentou com maior clareza na conclusão de suas reflexões pós-moderna, Zygmunt Bauman afirmou que os nossos tempos instáveis poderiam
sobre o papel dos colaboradores e outras vítimas da violência nazista cujos ser lembrados como "A Era dos Campos". Para ele, os campos são a confirmação
perseguidores os fizeram cúmplices da sua própria destruição e da destruição de do fato de que a crueldade tem sido modernizada, separada da moralidade moderna.
seus próximos e de suas comunidades. Diante dessas abominações recorrentes, Bauman, para quem um humanismo reconfigurado não é explicitamente pós-
Levi sugere que esta postura deveria agora ser parte daquilo que significa adotar antropológico e nem pós-colonial, não faz segredo de sua postura centrada na
uma atitude propriamente ética, saudável e vigilante, em meio a circunstâncias de Europa. Em vez dos eventos em Windhoek, Kigali, Dili, e Katanga, Auschwitz e os
crónica corrupção: gulags estão em sua mente. Para ele os feitos assassinos do Estado de bem-estar
não se estendem às atividadcs genocidas de Theodor Leutwein e Lothar Von Trotha
A febre de nossa civilização ocidental que "desce aos infernos com trombetas e entre o povo hereró da África alemã do Sudoeste." Embora o caso de Bauman
tambores" e os seus miseráveis adornos são a imagem distorcida de nossos símbolos fique enfraquecido por esta falta de visão, há porém algo valioso e eminentemente
de prestígio social...nós...estamos tão deslumbrados pelo poder e pelo prestígio
traduzível nas suas polémicas observações, em especial se elas não estimularem
que nos esquecemos de nossa fragilidade essencial: querendo ou não, chegamos a
um acordo com o poder, esquecendo que estamos todos no gueto, que o gueto está especulações simplistas sobre alguma essência facilmente acessível da
murado, que do lado de fora do gueto reinam os senhores da morte e que bem perto modernidade.
o trem está à espera." Meus objetivos são mais modestos, mas é preciso reconhecer os graves
perigos envolvidos ao se instrumentalizar os extremos. Contudo, deixarei aqueles
o argumento de Levi não deveria ser um convite aberto à paranóia. Ele não pontos importantes de inibição de lado ao buscar o modo como os campos do
perde nada de sua força quando percebemos que os trens não estão necessariamente
sendo carregados neste preciso momento em nossas próprias vizinhanças. O 49. John Swan, "TheFinaI Solution in South WestAfrica",MHQ: The QuanertyJoumat ofMilitary
fascismo não está permanentemente na iminência de assumir o poder governamental History 3(4), pp. 36-55; A. F. Calvert, South West Africa during lhe German Uccupatíon (T.
wemer Laurie, 1915): I. Goldblatt, Hístory ofSouth Africa (Juta and Co., 1971): L,. H. Gann e P.
Dnignan, The Rulers ofGerman Africa, 1887-/914 (Stanford University press, 1977); Everlyn
Nicodemus, "Carrying the Sun on Our Backs", in Andrea Robbins and Max Becher, org. M.
48. Levi, The Drowned und thc Soved; p. 51. Catherine de Zegher (The Kanaal Art Foundation, 1994).

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ENTRE CA.MPOS .. Nações, Culturas e o Fascinio da Raça PAUL GILROY I
{;.

século XX provocaram uma ruptura tão abrangente na época moderna que o ato o genocídio já não está a caminho, a raciologia que energiza o pensamento de
de lembrá-los impõe-nos um "antes" e um "depois". Eles proporcionam pontos campo o aproxima, promovendo-o como uma solução. Deixe-me ser absolutamente
sianificativos de entrada num novo clima ético e cultural associado com o repúdio claro: a fábrica de morte não é em si mesma um campo - é provável que seus
e
das promessas mais extravagantes, mas de qualquer modo codificadas em cor, da internos não vivam o bastante para que se faça uso das regras de campo. Mas os
modernidade. A percepção arguta de Adorno sobre as obrigações infelizes que campos ganham algo a partir da sua proximidade com a fábrica de morte e outros
essas circunstâncias inéditas acarretaram ao artista engajado tem uma aplicabilidade lugares de matança organizada em massa. O trabalho extraordinário de Tadeusz
abrangente. Elas deveriam ser estudadas cuidadosamente pejo futuro acadêmico Borowski me vem à mente como a nossa mais vívida investigação sobre a
engajado para que "a realidade política não seja rifada por causa de compromisso articulação do campo e da fábrica de morte. Podemos continuar de um modo
político; isso também reduz o impacto político" .50 heurístico argumentando que o eampo não é sempre uma fábricade morte, embora
É com esse espírito que quero assumir o risco de identificar os campos ~ possa facilmente se tornar uma, e que a fábrica de morte é uma possível variação
campos de refugiados, campos de trabalho, campos de punição, campos de nos padrões da administração racional iniciada pelo campo. Os procedimentos da
concentração, e mesmo campos de morte ~ os quais oferecem oportunidades fábrica de morte podem também ser pensados como parcialmente derivados dos
para uma reflexão moral e política no sentido cuidadoso e cauteloso descrito pelo campos que os precederam na Europa e fora dela. A manifestação definitiva sobre
filósofo Stuart Hampshire que examina o nazismo para refinar a sua compreensão esta tese encontra-se, é claro, no irado e comovente Discurso sobre o
de justiça." Outros escritores ousados, particularmente o sociólogo dos campos Colonialismo de Césaire.
de concentração, o alemão Wolfgang Sofsky e o filósofo político ugandense, O segundo tipo de campo nos leva para a zona cinzenta onde as fronteiras
Mahmood Mamdani, que com muita percepção aplicou o conceito de fascismo em da humanidade são negociadas à força. São especialmente importantes por terem
seu cuidadoso estudo sobre a Uganda de Idi Amin, podem guiar e inspirar esta infligido duros testes ao papel e à postura do intelectual crítico. Jean Améry, o
pesquisa em termos das conexões históricas e práticas entre o ultranacionalismo e interlocutor mais profundo de Primo Levi, embora não seja o mais inquietante -
a emergência das formas de vida infra-humanas que a instituição destes campos este título cabe a Borowski ~ descreve seu grande choque em descobrir até a
.certamente produz." Reunir todos estes exemplos históricos muito diferentes aos exaustão como a sua própria cabeça mole passava por um aprendizado no campo,
quais o corpo deste trabalho específico se dirige já significa ter transgredido a onde, sem habilidades técnicas ou práticas, e privados de certezas religiosas, os
singularidade prescritivaque se invoca para proteger o status especial do genocídio intelectuais eram menos bem equipados e mais vulneráveis do que muitos de seus
nazista. Sem que sejamos levados profundamente pela questão do que, se é que há companheiros. Nessas condições, o seu compromisso característico com uma
de fato um quê, pode constituir um denominador comum ao nível da experiência, humanidade abstrata em demasia chegava às raias da impotência:
podemos observar que o campo e seus elTOS extremos têm sido associados com a
transformação da justiça e com tentativas importantes de esclarecer e repor a o pensamento racional-analítico no campo e em especial em Auschwitz não s6 não
ordem moral e histórica normal da modernidade, uma vez que o estado de emergência ajudava em nada, mas desembocava numa trágica dialética de autodestruição... Para
começar, o intelectual não percebia tão facilmente as condições inimagináveis como
se tornou uma realidade cotidiana. A condição de morte social é comum aos internos
um fato dado como as percebia o não-intelectual. A longa prática de questionar os
de campo em regimes de falta de liberdade, coerção e brutalidade sistemática. Se fenômenos da realidade cotidiana impedia-o de simplesmente se ajustar às realidades
do campo porque estas faziam um contraste agudo demais com tudo que ele havia
considerado até então como possível e humanamente aceitável."
50. T. W. Adorno, "Commiunens" Notes on Literature 2, tradução de Shierry Weber Nicholsou
(Columbia University Press, 1992), pp- 88-89.
51. Stuart Hampshire, Innocence and Experience (Harvard University Press, 1989), pp. 66-72.
52. Mahmood Mamdaní, Imperialism and Fascísm ín Uganda (Heinernann, 1983), em especial 5]. Jean Améry, At the Mini/'s Limits: Contempíations by a Survivor on Auschwitz and Its Realiües,
parte 2, tradução de Sidney e Stella P. Rosenfeld (Indiana University Press, 1(80), p. 4.

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

As observações argutas de Améry sobre a incapacidade emocional e física Dolorosamente batido, eu estava satisfeito comigo mesmo. Mas não, como se poderia
pensar, por razões de coragem e honra, e sim somente porque eu havia percebido
dos intelectuais nas condições do campo podem ser mençi.o~adas ainda ~~tra vez bem que há situações na vida nas quais o nosso corpo é o nosso eu por inteiro e
em função daquilo que elas revelam sobre a vulnera~lhdade específica dos nossa inteira sorte. Eu era o meu corpo e nada mais: na fome, no mUITO que havia
intelectuais, não em termos das demandas físicas do regime de campo, mas con; tomado, no murro que eu dera. Meu corpo, debilitado e coberto de sujeira, era a
relação ao caráter "filosófico" deste e à dinâmica de. seu poder absoluto., E minha calamidade. Meu corpo, ao se levantar para lutar, era a minha dignidade física
conveniente citar mais longamente uma passagem vigorosa em que Amery e metafísica. Em situações como a minha, a violência física é o único meio para repor
uma personalidade escangalhada. No soco eu era eu mesmo - para mim mesmo e
esclarece os mecanismos daquele poder total num sentido que extrapola o seu para o meu oponente. O que li mais tarde emLesdanmésde la ferre [Os Condenados
caso particular: da Terra] de Prantz Fanou em sua análise teórica do componamento dos povos
colonizados, eu antecipei naquele momento quando dei uma fauna concreta à minha
Mais do que seus companheiros não intelectualizados, o intelectu~l :i~ava dignidade dando um soco num rosto humano. Ser judeu significava a aceitação da
enfraquecido na campo pelo seu maior respeito pelo poder, o que era hisrónca e sentença de morte imposta pelo mundo como um veredicto do mundo. Fugir disso
soeioloaicamente explicável; de fato, o intelectual tem estado sempre e em todo recuando para dentro de si mesmo teria sido nada mais do que uma desgraça,
lugar totalmente sob a influência do poder. Ele era e é acostumado a pô-lo em enquanto que a aceitação era simultaneamente uma revolta física contra isso. Tornei-
dúvida, a submetê-lo às suas análises críticas, e no entanto nesse mes~o ~rocesso me uma pessoa não por ter apelado subjetivamente para a minha humanidade abstrata,
intelectual acaba capitulando diante dele. A capitulação t~rnou-se Jnteln,!n~nte mas sim por ter descoberto a mim mesmo dentro de uma dada realidade social como
inevitável na ausência de oposição visível à força hostil. Embora exércitos um judeu rebelde e por ter me assumido assim."
gigantescos possam batalhar contra os torpedeiros lá fora, de.ntro?o campo ouve-
se falar sobre isso muito de longe e não se era capaz de acreditar russo. A esu:utura Deveríamos observar que há dificuldades envolvendo a tentativa de traduzir
de poder do Estado dos 58 agigantava-se diante do prisio?eiro de uma to~ma
este gesto e percepção individual para termos e regras muito distintos de
monstruosa e invencível, uma realidade da qual não se podia escapar e por ISSO
acabava parecendo razoável. Não importa qual tenha .sido o sel1yensam~~l,o d? administração de Estado. É também essencial perceber que Améry, assim como
lado de fora neste sentido aqui ele se tornava um hegeliano: no bnlho metálico da Fanon com quem seu trabalho tem um diálogo tão profundo, sublimou esses
sua totalidade, o Estado dos S8 aparecia como um Estado no qual a idéia estava se problemas por meio do seu "laço existencial" com a liberação nacional e com o
tomando em realidade. projeto de construção de Estado que se encaixa com dificuldade na sua defesa
igualmente apaixonada do humanismo radical. Ambos os aspectos foram
Ê interessante também que Améry, a quem o trabalho de Fanon oferecia decisivamente moldados por suas experiências nas mãos dos nazistas. O último
um ponto constante de referência e de diálogo, foi levado a descobrir o poder de deles foi um corretivo conhecido e poderoso ao anti-humanismo formal da esquerda
uma contra-violência mesmo limitada na reposição da humanidade dignificada da da Guerra Fria, algo que Améry considerava insignificante. Suas pungentes reflexões
qual ele havia sido despojado: isso facilitou o contra-movimento de reto~o da sobre a idéia de lar, sobre as complexidades da identidade e da identificação, e
infra-humanidade em direção a uma subjetividade reconhecível que pesaria nas sobre os recursos filosóficos disponíveis para renovar a crítica humanística sem
equações democráticas de Kant. Ao fazer este raciocínio, ele aponta para.outra cair nos padrões estabelecidos pelos humanismos do passado, comprometidos com
daquelas conexões ressonantes que muitas vezes produzem hesitação, evasrvas e a masculinidade e com a aceitação da raça, continuam a trazer inspiração, mesmo
silêncios embaraçosos. Nessas circunstâncias, deve-se observar que, a~ contrár~o quando seu compromisso com a constelação conceitual do Iluminismo clássico
das aspirações de essencialistas e bioJXllíticos, o seu corpo emancipado nao parece ultrapassado. Seu apelo estridente para o retorno dos valores do Iluminismo
manifestava espontaneamente as verdades absolutas do seu Outro judeu "racial:'. parece, porém, um tanto distinto, assim que observamos que se tratava do resultado
Suas palavras são ainda mais notáveis porque a sua contribuição à fenomenologia de um longo e paciente desvio pelas barbaridades genocidas que a ciência racial, a
da corporificação e da autonomia não faz concessões à veracidade das diferenças
raciolõgicas: 54. Ibid., p. 91.

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ENTRE CAMPOS u Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça
PAUL GIlROV

razão raciológica e a humanidade exclusiva haviam possibilitado. Não se devia Eu já es!:va n~ campo para prisioneiros "coloniais" há um ano....Meus progressos
pretender transcender esses valores por meios dialétícos ou quaisquer outros. Era em alemao haviam finalmente permitido que eu lesse a poesia de Goethe no original...
preciso preservá-los com paixão, trabalhá-los e rememorá-los vivamente para que ~ derrota .da França e do Oeste em 1940 havia, a princípio, deixado tontos os
eles pudessem se precaver contra os perigos futuros inevitáveis que as noções mt~lectuals n~gro~. Logo acordamos, desnudos e sóbrios, na dor aguda da
catastr~fe ... FOI assnn que pensei, perto do arame farpado do campo, que a nossa
inocentes e simplistas de progresso não podem entrever de modo algum.
voz mais e?carnada, os nossos trabalhos mais de Negro seriam ao mesmo tempo os
a extraordinário relato de Améry sobre as suas experiências em Auschwitz nossos mais humanos ...e a sentinela nazista me olhou de cima a baixo com um ar
Monowitz e outros campos poderia ser instrutivamente colocado ao lado das imbecilizado. Sorri para ele e ele não me compreendeu.
reflexões de Léopold Sédar Senghor. Como Dedan Kimathi e Ahmed Bem Bella, Estranho encontro, lição significativa. 55
Senghor é um representante apropriado da geração de intelectuais da colônia que
enfrentaram o fascismo no campo de batalha e depois recorreram a esses seus A poesia produzida por Senghor no campo seria publicada sob o título de
confrontos para esclarecer suas abordagens da liberdade e da democracia, da Hosties Noíres [Vítimas Negras]. a livro foi tirado às escondidas do complexo
cultura e da identidade. O trabalho de Senghor apresenta um padrão similar em penal e entregue ao seu amigo Georges Pompidou por um outro guarda, um soldado
que um ardoroso humanismo combina-se com uma particularidade étnica romântica alemão que havia sido anteriormente professor de chinês na Universidade de Viena. 56
e uma estima pelo sincretismo cultural e a simbiose transcultural, muito embora Se~ dúvida, um estranho encontro. Estes são apenas pequenos exemplos. Muitos
isto não lhe tenha saído contraditório. a poeta senegalense, estadista, lutador da mais poderiam ser tirados das vídas corajosas e estranhas - talvez menos conhecidas
resistência, socialista, c teórico influente da Negritude, do hibridismo e da mistura - de outras testemunhas negras da barbárie européia. A sua complexa consciência
cultural foi capturado com seus companheiros da Infantaria Colonial em La Charité- dos perigos do pensamento de campo e sua boa compreensão das antitoxinas que
sur-Loire emjunho de 1940. Salvo de um massacre racista no momento da rendição podem ser descobertas e celebradas no cruzamento de culturas - misturando-se e
devido à intervenção de um oficial francês, Senghor ficou preso por dois anos em se movendo entre elas - oferecem importantes recursos a serem exigidos pelos
campos penitenciários alemães, principalmente em Frontstalag 230, perto de Poitiers. povos pós-coloniais da atualidade se quisermos resistir às tormentas que nos esperam.
Nesses campos, Senghor encontrou-se com outras tropas vindas da África . A necessidade hoje de encontrar uma resposta para a globalização tem
diretamente para o combate, cujas origens sociais eram muito diferentes da sua estimulado formas de pensamento de campo novas e mesmo mais desesperadas.
própria origem e formação de elite. Senghor procurou conforto nas canções, poemas :-rm~ das muitas facetas que os exemplos tirados da geração que enfrentou o
e estórias tradicionais de seus companheiros africanos e nos trabalhos clássicos da fascismo pode transmitir é um convite para contemplar a natureza precária de
filosofia e da literatura européia. Nenhuma dessas experiências compensava a nosso próprio meio político. Ao refletir sobre o contexto brutal no qual esses
estada no campo, mas o ajudaram de fato a reconstituir seu senso de humanidade .test.em~Inh~s foram inicialmente pronunciados e pensar sobre os padrões
para além do alcance do absolutismo, ainda por perto. Ele descreve como a sua I11st1tuClOnms que os amoldavam, toma-se mais fácil perceber que nós vivemos em
releitura - particularmente a de Goethe - desencadeou uma "verdadeira conversão" um nicho sitiado dentro de um estado que era antes de emergência, apesar de não
que o capacitou a conviver com os complexos padrões trunsculturais da sua própria o ser mais agora. A ubiqüidade do campo em nossa paisagem midiática nos conduz
mentalidade híbrida e a enca.rar aquela complexa interação como algo mais do que à banalização do excepcional e nos faz habituados a isso. A modernidade está
perda e traição, o que sempre nos é apresentado como tal. Sua compreensão da sitiada. Enquanto democracia, criatividade e esperança cosmopolita, ela é jogada
relação entre o particular e o universal foi assim realçada, juntamente com sua
compreensão da própria negritude. Num ensaio pós-guerra, "A Mensagem de
Goethe aos Novos Negros", ele descreve como chegou a essas importantes 55. Léopold Sédar S~ng~or, "Le Message de Goethe Aux Nêgres Nouveaux", Liberté J Negritude et
Humanisme du Seuil, 1964, pp. 84-86. Tradução minha.
percepções, postado diante do arame farpado do campo e sob o olhar inexpressivo
56. Esteca~o enc~nlrado na con:espondência com Pompidcu é citado por Jacques Louis Hymans emAn
de uma sentinela nazista: traellectuai Rlugraphy ofLeopold Sedar Senghor (Uruversity of Edinburgh Press, 1(71), p. 112.

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ENTRE CAMPOS" Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY I

contra um sistema moribundo de política formal e seus dormentes códigos conseqüentemente, sobre os apelos que as particularidades religiosa", nacionais,
representacionais, contra os valores corrosivos da racionalidade económica e a regionais ou étnicas exercem sobre a nossa compreensão.
abjeção da vida urbana pós-industrial. A persistência do fascismo e a imitação Em tempos recentes muito se tem escrito sobre aquela substituição decisiva
difusa de seus estilos constituem tão somente o sinal mais alarmante de que o que da espécie pelo étnico e a compreensão transformada da humanidade e de seus
há de melhor na cultura da modernidade está sendo assaltado dc todos os lados limites que criou raízes no seu rastro. O judeu é apenas uma das muitas figuras de
pelos movimentos políticos e pelas forças tecnológicas que trabalham no sentido particularidade que assumiu uma nova forma ao se tomar um objeto de raciclogia
do apagamento das considerações éticas e da morte das sensibilidades estéticas. naquele momento de transformação. É importante reconhecer que, assim como no
O poder ressurgente da linguagem racista e racializante, da raciologia, é um forte caso do "Negro", outro óbvio contendor na interação dinâmica da modernidade, do
laço entre os riscos de nosso perigoso tempo e os efeitos contínuos dos horrores Eu e da alteridade, as representações do judeu têm uma longa história, sendo que
passados que continuam a nos assombrar na Europa. A modernidade está sendo as invenções, elaborações e projeções modernas daquela figura foram re-
julgada e o fascismo mantém as rédeas. Podemos disputar o valor do termo "pós- trabalhadas com base num material amplo herdado de um tempo anterior em que
modernidade" como um instrumento interpretativo em relação a estas novas o cosmos, o global e o divino eram configurados de um modo muito diferente.
condições. Seja lá qual for a solução daquele debate, as experiências de campo Em conclusão, vamos mais uma vez nos deixar guiar por Améry ao abordar
resgatadas por mim, e que espero ter homenageado de passagem, dirigem-se a a relação entre modernidade e Iluminismo, que se torna fundamental neste ponto
ele, sobretudo porque aquelas experiências promovem uma perspectiva reflexiva da história do anti-semitismo e de outros racismos. Seu forte comprometimento
e desconfiada em relação às verdades proclamadas pelos defensores complacentes com os objetivos do Iluminismo era temperado pelo reconhecimento do poder
em demasia da modernidade, assim como pelos seus inimigos mais ferrenhos e inescapãvel das emoções que não poderiam, e não deveriam, ser silenciadas. A
seus herdeiros de última hora. vontade que se seguiu de reconciliar a paixão rebelde com a justiça imparcial
Observar que as conquistas da modernidade estão sob constante risco é de numa combinação que poderia simultaneamente preencher, assim como transcender
alguma ajuda, mas seria ainda mais importante poder saudar o seu estado incompleto as leis do Iluminismo, foi articulada com precisão para que o racionalismo raso não
e pendente. Talvez seja possível reconhecer naquela condição vulnerável os triunfasse e, portanto, como ele afirma, "colocasse o incompreensível na geladeira
movimentos iniciais de uma séria resposta aos danos que a raciologia tem da história". As suas palavras enfatizam quanto precisamos ainda refletir,
repetidamente sancionado na "era dos campos". As respostas complexas e as especialmente aqueles de nós que não contam com uma memória viva e incorporada
identidades facetadas dos itinerantes negros que testemunharam a catástrofe do desses terrores, os quais atuariam como o nosso tormenro e o nosso incentivo para
genocídio na Europa, tendo sido forçados por sua própria formação a associá-la com conhecer melhor a modernidade. Com isso, somos levados a uma percepção dos
a história colonial, serão retomadas em outros capítulos. Enquanto isso, o conceito de ganhos éticos e políticos que resultam de se manter uma conversa sobre o valor da
modernidade continua inestimável no sentido de desenvolver a mudança de orientação modernidade em movimento.
proposta por mim em resposta à complexa situação que os seus percursos puseram As frases conclusivas de Améry ao prefácio da reedição de Nos Limites da
em foco. Em primeiro lugar, ele afasta a discussão do fascismo da idéia ilusória de Mente em 1977 descrevem essa posição difícil, que a despeito de todas as suas
um sonderweg (peculiaridade histórica J alemão e da percepção de que apenas a boas intenções, não parece tê-lo ajudado na difícil tarefa de considerar a vida
Alemanha representaria o centro imoral do anti-semitismo voltado para o extermínio. suportável. Em resposta às suas demandas precisas, parece valer a pena tentar
Em segundo lugar, vimo" que a modernidade enquanto uma categoria temporal e esclarecer os níveis de abstração em que o conceito de modernidade funciona no
qualitativa introduz diversos problemas filosóficos e históricos em cujo centro reside sentido mais produtivo. Tentei argumentar que há observações críticas valiosas a
a questão fundamental da relação entre o nacionalismo racial, o governo e a fazer sobre a escala de análise com a qual aquele conceito tem sido mais
racionalidade. A articulação de razão e história emerge Como um problema sobretudo prontamente associado. Pensar na modernidade como uma região em vez de um
quando reconhecemos as disputas sobre a escala em que a história deveria operar e, período gera urgentes questões adicionais: podemos continuar confiantes de que a

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

modernidade não é um código conveniente e exclusivo de relações sociais em


certas partes favorecidas da Europa? Será que um comprometimento com histórias 3
translocais de sofrimento poderia contribuir para realizar a passagem da escrita da
história eurocêntrica para modos cosmopolitas de escrita? Em termos mais IDENTIDADE, PERTENCIMENTO E A
polêmicos, como manter a dualidade da modernidade como progresso e catástrofe,
civilização e barbárie na vanguarda das nossas deliberações? Até que ponto o fato
CRÍTICA DA SIMILITUDE PURA
de colocarmos os racismos no centro do nosso pensamento transforma nosso domínio
com relação àquelas dualidades? Examinar o Iluminismo como um fenómeno étnico-
histórico através de seus códigos vemaculares traz alguma contribuição? O Logo ao abrir os olhos pela primeiravez, a criança deve ver a pátria, c até o dia da sua
Iluminismo deveria se tornar nada mais do que um fardo distinto de grupos específicos, morte, nada mais deve ver. Todo verdadeiro republicano terá absorvido, junto com
o qual embora aponte para além da sua particularidade no sentido de um o leitede sua mãe, o amor ao país,o que significadizer o amor à leie à liberdade.Este
amor é a sua inteira existência; ele vê apenas a pátria, ele vive para ela apenas:
universalismo emergente tem sérias dificuldades de fazer este ajuste desejável?
quando está solitário, ele nada é; quando ele já não mais tem a pátria. ele não mais
Aqui confrontamo-nos com questões políticas substanciais às quais as disputas existe; e se morto não estiver, ele está pior que morto.
metodológicas superficiais servem como um pretexto inadequado. Será que as
especulações meta-históricas, filosóficas e sociológicas são desfeitas pelas ROUSSEAU
narrativas micro-históricas, as quais acrescentariam tanta textura e cor local a
ponto da generalização tornar-se impossível e nós nos tornamos politicamente inertes,
Se as coisas não estão indo tão bem no pensamento contemporâneo, é porque está
seguros na confiança de que temos a melhor interpretação do material disponível? havendo um retorno... às abstrações, ao problema das origens, todo este tipo de
É melhor saudar uma mudança de escala e de trabalho no sentido de um coisa...Qualqueranáliseem temos de movimentos, vetares,está bloqueada. Estamos
retrato mais complexo dentro de uma moldura de tempo de maior duração, em uma fase muito débil, um período de reação. Ainda assim, a filosofia achava que
possivelmente também dentro de um esquema conceituai que reoriente nosso já havia superado o problema das origens. Já não era mais uma questão de começar
ou terminar. Em vez disso, a questão era o que acontece "entre uma coisa e outra"?
pensamento para longe do glamour do étnico e o redirecione para o que costumava
ser chamado de "o problema da espécie". Isto poderia ser apresentado como um
G.ll..LES OELEUZE
exercício de universalismo estratégico.
Não estou menosprezando o ofício do historiador, e nem a mudança que
proponho aqui precisa significar que a modernidade sempre desliza para trás no VIMOS QlIE o mundo incerto e dividido que habitamos fez com que a identidade
tempo em direção a Lutero e à invenção da impressora, ou a Colombo e à revolução racial tivesse uma relevância em moldes novos e poderosos. Mas não devemos
na consciência européia de mundo. Enquanto as humanidades recuam da acusação aceitar como algo dado o conceito de identidade e suas múltiplas associações com
de politização, a resposta favorita para essas pressões reside na costumeira recusa a "raça" e a raciologia. O termo "identidade" alcançou em tempos recentes uma
em reconhecer a cumplicidade da racionalidade e da barbárie. Uma complacência grande ressonância, tanto dentro quanto fora do mundo acadêmico. Ele oferece
conservadora procura tranqüilamente reinstaurar os universalismos inocentes e muito mais do que uma maneira óbvia e de senso comum para se falar sobre
não reflexivos -diberal, religioso e etnocêntrico. Aqui o conceito de pós-modernidade individualidade, comunidade e solidariedade, proporcionando um modo para se
poderia oferecer um meio útil e suplementar para marcar a perda irrevogável entender a interação entre as experiências subjetivas do mundo e os cenários
daquela inocência na busca da verdade e na escrita d,l história em relação à qual culturais e históricos onde se formam essas subjetividades frágeis e significativas.
as histórias dos negros e dos judeus no mundo ocidental moderno fornecem os A identidade tem sido mesmo conduzida para dentro das entranhas do comércio
melhores exemplos, isto é, os mais desumanos. pós-moderno, onde o objetivo do marketing planetário promove não apenas o

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROV

direcionamento de objetos e serviços às identidades de consumidores específicos, As mesmas qualidades inquietantes tomam-se evidentes quando o termo é
como também a idéia de que absolutamente qualquer produto pode ser saturado de empregado para articular temas controversos c potencialmente esclarecedores na
identidade. Qualquer mercadoria é passível de ser "rotulada" em moldes que instigam teoria social e política moderna. A identidade tem sido um componente central no
uma identificação e tentam conduzir a identidade. I vocabulário acadêmico designado a promover uma reflexão crítica sobre quem
Neste capítulo minha intenção é mostrar que há mais coisas em jogo no atual somos e o que queremos. A identidade nos ajuda a compreender a formação
interesse pela identidade do que aquilo que costumamos perceber. Gostaria também daquele pronome perigoso: "nós", e a levar em conta os padrões de inclusão e
de revelar algumas das complexidades que fazem da identidade uma idéia útil a ser exclusão que ela cria mesmo sem querer. Esta situação se torna ainda mais difícil,
explorada se conseguirmos de fato deixar para trás a sua obviedade, reconhecendo uma vez que a identidade é reconhecida como um problema em si mesmo, adquirindo
que ela está longe de ser a questão simples que o seu uso corrente no governo e no assim uma importância adicionaL O cálculo da relação entre identidade e diferença,
espaço do mercado dá a entender. Onde a palavra se torna um conceito, a identidade entre similaridade e alteridade é uma operação intrinsecamente política. Isto
é tomada como central em relação a várias questões teóricas e políticas urgentes, acontece quando as coletividades políticas refletem sobre o que torna possível
dentre as principais, pertencimento, etnicidade e nacionalidade. Os conflitos suas conexões obrigatórias. Trata-se de uma parte fundamental de como elas
racializados, por exemplo, são agora compreendidos por muitos analistas como um compreendem suas relações de parentesco - que podem ser uma conexão
problema de identidades incompatíveis que demarcam conflitos mais profundos entre imaginária, mas mesmo assim poderosa neste sentido.
culturas e civilizações. Este diagnóstico estabelece, ou talvez confirme a crença A linguagem distintiva da identidade aparece novamente quando as pessoas
ainda mais difundida de que as formas de conflito político, às quais a divisão racial buscam calcular como o pertencimento tácito a um grupo ou uma comunidade
tem sido associada, são de algum modo irreais ou não substanciais, secundárias ou pode ser transformado em estilos mais ati vos de solidariedade, quando elas debatem
periféricas. Este é um ponto que pretendo contestar. A recente popularidade da sobre o lugar em que se devem constituir as fronteiras em torno de um grupo e
identidade como um dispositivo interpretativo é também resultado da pluralidade como devem ser impostas - se de fato forem necessárias. A identidade se torna
excepcional de significados que o termo pode atrelar. Estas diversas inflexões - uma questão de poder e autoridade quando um grupo procura realizar a si próprio
algumas das quais são adaptadas a partir de usos acadêmicos altamente especializados de uma forma política. Este grupo pode ser uma nação, um Estado, um movimento,
- são condensadas e entrelaçadas à medida que o termo circula. Somos uma classe, ou alguma combinação instável de todos eles. Ao escrever sobre a
constantemente informados que compartilhar uma identidade é o mesmo que estar necessidade de relações e instituições políticas no começo da nossa era, Rousseau
vinculado nos níveis mais fundamentais: nacional, "racial", étnico, regional e local. A chamou atenção para os elementos audaciosos e criativos da história de como
identidade é sempre delimitada e particular. Ela circunscreve as divisões e os grupos desorganizados e internamente divididos se transformaram em unidades
subconjuntos em nossas vidas sociais e ajuda a definir as fronteiras entre nossas coerentes, capazes de ação unificada e merecedora do status especial que definiu
tentativas locais e irregulares de dar sentido ao mundo. Nunca se fala de uma a nação como um corpo político. Em sua reflexão sobre as realizações de líderes
identidade humana. O conceito leva o pensamento para longe de qualquer engajamento individuais e heróicos como construtores de culturas políticas que puderam "vincular
com a similaridade básica e anti-antropológica que é a premissa deste livro. Como os cidadãos à pátria, e uns aos outros", ele observou que a prescrição de uma
afirma Judith Butler em urna reflexão profunda sobre o conceito: "parece que o que identidade comum unificadora foi uma parte importante desse processo político.
esperamos do termo identidade é especificidade cultural e que, às vezes, esperamos De um modo significativo para os nossos propósitos, ele buscou um exemplo na
até mesmo que identidade e especifidade funcionem de modo intercambiável"," história dos Filhos de Israel:

1. Mark Leonard, Bruaín» (Demos, 1997). (Moisés) concebeu e executou o surpreendente projeto de criação de uma nação a
2. Judith Butler, "Collected and Fractured" em Iaemíues, org. Kwame Anthony Appiah e Henry partir de um enxame de fugitivos miseráveis desprovidos de arte, de armas, talentos,
Louis Gates, Jr. (University of Chicago Press, 1995). virtudes ou coragem, que pcrambulavam como uma horda de forasteiros sobre a

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

face da terra sem um palmo sequer de chão que pudessem chamar de seu. Desta A vertiginosa variedade de idéias condensadas no conceito de identidade e
horda errante e servil, Moisés teve a audácia de criar um corpo político, um povo
a vasta extensão de assuntos aos quais o conceito pode se referir fomentam
livre ... dando a eles aquele conjunto duradouro de instituições, resistentes ao tempo,
à sina e aos conquistadores que cinco mil anos não conseguiram destruir nem conexões analíticas entre temas e perspectivas que não são convencionalmente
mesmo alterar... A fim de prevenir que seu povo se dispersasse entre povos associados. Pode-se estabelecer elos entre preocupações políticas, culturais,
estrangeiros, ele lhes deu costumes e hábitos incompatíveis com aqueles de outras psicológicas e psicoanalíticas. Precisamos considerar, por exemplo, como se
nações; ele os sobrecarregou de ritos e cerimônias peculiares; ele os transtornou de compõem os laços emocionais e afetivos que formam a base específica da similitude
mil maneiras com o intuito de os manter constantemente alertas e os tornar para
raciológica e étnica, e como estes se tomam arívidades sociais padronizadas e
sempre forasteiros em meio a outros homens."
dotadas de traços culturais elaborados. De que maneira esses laços são capazes
de induzir atos conspícuos de altruísmo, violência e coragem? Como eles motivam
Ao descrever os elementos de tecnologia política que terminariam por produzir
as pessoas em termos de uma interconexão social na qual a individualidade é
a nação como um campo fortificado, Rousseau chamou atenção para a velha
abandonada ou dissolvida no todo mais amplo representado por uma nação, um
associação entre identidade e território. O feito de Moisés é considerado ainda
povo, uma "raça" ou um grupo étnico? Estas são questões importantes porque,
mais impressionante porque foi realizado sem o poder aglutinador da terra
como vimos, graves conseqüências morais e políticas acontecem quando se faz
compartilhada. Rousseau enfatizou que os tipos de conexão às quais nossas idéias
uso da mágica da identidade, seja em termos taticos, seja de modos manipuladores
de identidade se referem são fenômenos históricos, sociais e culturais, e não naturais.
e deliberadamente supersimplificados. Mesmo nas circunstâncias mais civilizadas,
Mesmo naquele ponto inicial de constituição da modernidade, ele reconheceu que
os signos do mesmo degeneraram prontamente em emblemas de uma suposta
é preciso trabalho para convocar a particularidade e os sentimentos de identidade
diferença essencial ou imutável. O apelo especial de uma similitude que transcende
que são em geral vivenciados como se fossem consequências espontâneas ou
a individualidade ainda fornece um antídoto às formas de incerteza e ansiedade
automáticas de alguma cultura ou tradição dominante que especifica diferenças
que têm se associado a crises econômicas e políticas. A idéia de uma identidade
básicas e absolutas entre as pessoas. A consciência da identidade ganha um poder
fundamentalmente compartilhada torna-se uma plataforma para a fantasia de
adicional a partir da idéia de que ela não é o produto final da "audácia" de algum
uma divisão absoluta e eterna.
homem grandioso, mas o resultado de uma experiência compartilhada, enraizada e
O uso de uniformes e outros símbolos para efetivar a condição de ser o
vinculada em especial a lugar, localização, linguagem e mutualidade.
mesmo sobre a qual a identidade apenas fala tem sido às vezes sintomático do
Quando pensamos em termos analíticos na relação tensa entre o mesmo e a
processo em que uma personalidade ansiosa pode ser despida e suas preocupações
diferença, a interação da consciência com o território e o lugar se torna um tema
exorcizadas através da emergência de todo um complexo mais forte. Os uniformes
fundamental. Ela permite reflexões sobre o cerne dos conflitos em tomo de como
usados nos anos 1930 pelos fascistas (e que ainda são usados por alguns grupos
a vida social e a política democrática deveriam ser organizadas no começo do
fascistas de hoje) produziam uma ilusão forçosa de similaridade tanto para os
século XXI. Deveríamos tentar lembrar que o limiar entre estas duas condições
membros do grupo quanto para aqueles que observavam suas atividades
antagônicas pode ser transposto e que a formação da identidade tem uma história,
espetaculares. A União Britânica de Fascistas, uma das menos bem sucedidas
apesar de seu carãter histórico ficar freqüente e sistematicamente oculto. O enfoque
organizações de camisas pretas daquele período, argumentava que sua vestimenta
sobre a identidade nos ajuda a indagar em que sentido o reconhecimento da
tornava-se ainda mais atraente para os seus membros quando contrastada com o
similaridade e da diferenciação é a premissa da cultura política moderna ratificada
conflito e a amargura criados pelas divisões de classe que então dilaceravam a
por Rousseau e cujos escritos ainda vêm em auxílio de nossas análises.
nação por dentro:

3. J.-J. Rousseau, "Consideratlons on the Government cf Poland'' em Rousseau Politica! Writiflgs, (A "camisa preta") derruba uma das grandes barreiras de classe através da remoção
tradução e organização de Prederick warkíns (Nelson and Sons. 1953). ppI63-164. das diferenças de vestimenta, e um dos objetívos do fascismo é quebrar as barreiras

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ENTRE CAMPOS" Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça
PAUL GIlROY I

de classe. A camisa preta já conseguiu realizar no interior das nossas próprias


benigno. Seus ideólogos centrados na idéia de etnia inventaram sistematicamente
fileiras aquela unidade para além das classes que será, em Última instância,
assegurada na nação como um todo.' uma identidade africâner durante o período em que os movimentos fascistas surgiram
em ~utros l~g~e~. Eles proveram a sua comunidade política com a sua própria
Veremos a seguir como os movimentos ultranacionalistas e fascistas do versao de cnstianísmo e um repertório de mitos que foram a base para o drama
século XX empregaram recursos tecnológicos elaborados com o intuito de gerar político elaborado que transformou sua nação histórica em um ente racializado:
espetáculos de identidade capazes de unificar e coordenar uma diversidade inevitável
c desordenada em termos de uma uniformidade humana ideal e não natural. Suas ~ evento mais dramático na expansão do nacionalismo afridiner foi a simbólica
vl~gem d_e carro de bois de 1938,que celebrou a vitória da Grande Trek [migração].
versões sintéticas de uma identidade fundamental pareciam ainda mais sedutoras alto vngoes co~ nomes de heróis vO,ortrekker como Piet Retief, Hendrik Potgeíter
assim que toda diferença era banida ou apagada do coletivo. A diferença interna e Andres Pr~tonus atravessaram a Africa do Sul através de várias rotas... até que
foi reprimida a fim de maximizar a diferença entre estes grupos e os demais. A eles convergiram para um monte proeminente com vista para Pretoria. Nesse lugar,
identidade foi celebrada com extravagância em estilos militares: uniformes foram em 16 de dezembro de 1938, o centenário da batalha do Rio Sangrento, que marcou
combinados COm movimentos de corpo sincronizados, treinamentos físicos, pompa a derrota do reino zulu, mais de 100.000 africâneres - talvez um décimo de toda a
população africâner - participaram do cerimonial, lançando a pedra de fundação do
ritual e hierarquia visível a fim de criar e alimentar a crença confortadora na
Monumento Voortreker. Os homens deixaramcrescer a barba, as mulheresvestiram
similaridade como uma invariância absoluta e metafísica. Homens e mulheres o t~aj: v.oo~t.rcker, ~ara o evento... (eles) se ajoelharam em mação silenciosa... A
poderiam então aparecer tal Como peças de engrenagem intercambiáveis e cenrnonia fOI concJUlda com o canto de Die Stern van Suid Afrika: Deus Salve o Rei
descartáveis na máquina militar da nação erigida em campo, ou COmo células fora excluído.' '

';I
indistinguíveis na entidade orgânica mais ampla que abrangeu e dissolveu a
individualidade de seus membros. Suas ações podem até ser imaginadas como se . . Os conflitos ubíquos de hoje entre bases de eleitorado antagônicas que
expressassem o espírito interior, o destino e a historicalidade da comunidade nacional. relvlll.dicam identidades incompatíveis e exclusivas sugerem que essas técnicas
O cidadão era apresentado como um soldado e a violência - tanto potencial quanto teatrais em larga escala têm sido amplamente adotadas para produzir e estabilizar
de fato - foi dedicada ao avanço dos interesses nacionais. Esta comunidade vital as i.denti~ades e instigar .uma identificação nacional, "racial" ou étnica. A redução
constituiu-se através da interação dinâmica entre soldados marchando juntos em da identidade a versões mcomplexas, militarizadas e fraternais de uma similitude
uma cronometria austera e as multidões que assistiam e saboreavam o espetáculo pura, .inauguradas pelo fascismo e nazismo na década de 1930, é agora rotineira
criado por aqueles. Ao disseminar estes efeitos políticos valiosos, a identidade era especíalmenre onde as forças do nacionalismo, do "tribalismo" e das divisões étnicas
mediada por tecnologias culturais e comunicativas como o filme, a iluminação e o estão em ação. A identidade então se revela como um elemento crítico no vocabulário
som amplificado. Estes atributos do século XX foram apenas parcialmente distintivo empregado para expressar os dilemas geopolíticos da era moderna tardia.
encobertos pela invocação do ritual e do mito antigo. Qu~ndo o poder da identidade absoluta é criado, isto se dá em geral para responder
As estórias bíblicas de construção da nação que demonstram o favor divino, a SItuações nas quais as ações de indivíduos e grupos estão sendo reduzidas a
e as sanções morais que elas suprem às propostas políticas mundanas, têm sido pouco mais do que o funcionamento de algum mecanismo pré-social abrangente.
invocadas por muitos grupos nacionalistas diferentes. Os africâneres da África do ~o ~a.ssado, esta maquinaria foi com freqüêncía compreendida Como um processo
Sul oferecem um exemplo especialmente interessante e doentio de como os "ritos histórico ou econômico que definia o destino manifesto especial do grupo em
e cerimônias característicos" de Rousseau nem sempre servem a um propósito questão. Hoje em dia, é mais provável que seja representada como um traço pré-

4. The Bíackshirt (novembro 24-30, 1933), p.S: citado em John Harvey, Men in. Black (Chicago
Universlty Press, 1995), p.242. 5. Leonard Thompson, The Pulitical Mythology ofApartheid (Ynle Univershy Press, 19R5), p.39.

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY I

discriminação inexorável sofrida por eles, com o passar dos anos muitos tútsis
político, sócio-biológico ou biocultural, algo misterioso e genético que sanciona tipos
subornaram funcionários do governo local para poder mudar sua carteira de
especialmente rígidos de pensamento determinista. identidade para hútu. Infelizmente, isto não os protegeu ... As marcas que
Neste sentido, a identidade deixa de ser um processo contínuo de construção denunciavamos nitsis eram;primeiro,serem altos, e segundo,terem um nariz afilado.
do eu e de interação social. Em vez disso, torna-se uma coisa a ser possuída e Estes critérios serviram até para levar milícias histéricas a matarem um certo número
ostentada. É um signo silencioso que impede a possibilidade de comunicação através de hútus cujo crime era o de "ser muito alto para um hútu". Quando havia dúvida
do golfo entre uma ilha de particularidade solidamente defendida c seus vizinhos sobre as características físicas de uma pessoa ou devido às reclamações de que um
número demasiado de tútsis havia mudado suas carteiras de identidade, o
igualmente bem fortificados, entre um campo nacional e os demais. Quando a Inrerahamwe convocava os moradores dos vilarejos a verificarem a "tutsídade'' da
identidade se refere a uma marca indelével, ou a um código de alguma forma pessoa investigada em questão.'
inscrito nos corpos de seus portadores, a alreridade só pode ser uma ameaça. A
identidade é assim um destino latente. Vista ou não vista, estando na superfície do Eventos semelhantes ainda eram relatados quatro anos depois, quando o
corpo ou enterrada profundamente em suas células, a identidade aparta para sempre ataque genocida contra os tútsis fora rearticulado no interior da guerra civil do
um grupo em relação a outros que sejam desprovidos dos traços particulares Congo - um conflito que já havia abarcado vários outros Estados e que parecia
escolhidos que se tornam a base para a tipologia e a avaliação comparativa. Não oferecer a chave para a estabilidade na região. Sob a presidência de Laurenr
sendo mais um locus para a afirmação da subjetividade ou da autonomia, a Kabila, as pessoas cujas características físicas as tomavam suspeitas ainda eram
identidade se transforma. Sua movimentação revela um desejo profundo de assassinadas abertamente.' É importante lembrar, porém, que as marcas lingüfsticas
solidariedade mecânica, serialidade e hípersimilaridade. O escopo da ação individual do conflito colonial residual entre as esferas de influência anglófonas e francófonas
diminui até desaparecer. As pessoas se tornam portadoras das diferenças que a também estavam implicadas na sustentação da carnificina.
retórica da identidade absoluta inventa e depois as convida a celebrar. Em vez de Estes fragmentos de uma história de barbaridade inexprimível enfatizam
comunicativos e capazes de fazer escolhas, os indivíduos são vistos como como a noção de identidade fixa opera facilmente em ambos os lados do abismo
passageiros obedientes e silenciosos movendo-se em meio a uma paisagem moral que separa em geral a escrita acadêmica do mundo desordenado dos conflitos
insípida rumo aos seus destinos fixos, aos quais suas identidades essenciais, seus políticos. Em tempos recentes, a identidade também veio a se constituir em uma
genes e as culturas fechadas que eles criam os têm relegado para todo o sempre. espécie de ponte entre as abordagens freqüentemente discrepantes do entendimento
E, ainda assim, o desejo de fixar a identidade ao corpo é inevitavelmente frustrado do eu e da soclalidade, encontrados em ambos os lados desse abismo crescente.
pela recusa do corpo em revelar os signos requeridos da incompatibilidade absoluta Enquanto tema de pesquisa contemporânea, a identidade proporcionou ao
que as pessoas imaginam que nele estejam localizados. pensamento acadêmico uma rota importante de retomo às lutas e incertezas da
Numerosos exemplos de cruzamentos culturais podem ilustrar este argumento. vida cotidiana, onde a idéia de identidade tomou-se especialmente ressonante. Ela
Os relatórios do genocídio em Ruanda revelaram repetidas vezes que as carteiras forneceu também as rubricas características de uma virada implosiva e interna
de identidade emitidas pelas autoridades políticas eram uma fonte vital de informação que leva ao fim as tarefas difíceis da política na medida que as faz parecer
necessária para classificar as pessoas nos tipos "tribais" supostamente naturais irrelevantes diante de poderes mais fundamentais e profundos que regulam a
que as levaram à morte ou à libertação. Neste caso, assim como em várias outras conduta humana independente de superficialidades governamentais. Se a identidade
instâncias bem documentadas de massacre em massa, os corpos em questão não
revelaram livremente os segredos da identidade:
6. African Rights, Rwanda Death, Despair and Defiance (Londres, 1994), pp.347-354. ver também
Muitos tútsis têm sido mortos porque suas carteiras dc identidade os destacavam Sander L. Gilman, The jew's Body (Routledge, 1991), emespecial capitulo 7, "The Jewish Nose:
como tútsis ou então porque eles não estavam com suas carteiras no momento, não Are jcws White ar The History of the Nose Job."
sendo portanto capazes de provar que não eram túrsis ... A fim de escapar à 7. Arthur Malu-Malu e Thierre Oberle, Sunday Times, 30 de agosto de 1998.

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o rescíntc da Raça PAUL GILROY

e a diferença são fundamentais, então não são passíveis de serem re- moderna são conscientemente postas de lado em favor da busca de sentimentos
instrumentalizadas por métodos políticos rudimentares que não conseguem chegar primordiais e de variedades míticas de parentesco que são erroneamente
ao âmago de ontologias primordiais, destinos e sinas. Quando os riscos são tão consideradas mais profundas. Ao mesmo tempo, a identidade individual, a
altos assim, nada pode ser feito para contrabalançar as conseqüências catastróficas contrapartida da coletiva, é constantemente negociada, cultivada e protegida como
que resultam da tolerância à diferença e de tentativas equivocadas de se praticar uma fonte de prazer, poder, riqueza e perigo potencial. Essa identidade é cada vez
a democracia. A diferença corrompe e compromete a identidade. Os encontros mais moldada pelo mercado, modificada pelas indústrias culturais, além de ser
com ela são tão importunos e potencialmente destrutivas quanto o foram para gerenciada e orquestrada por instituições e cenários localizados, como escolas,
Houston Stewart Chamberlain. Eles colocam esta preciosíssima mercadoria, a vizinhanças e locais de trabalho. A identidade pode ser inscrita no mundo público
identidade enraizada, em grave perigo. tedioso da política oficial onde as questões referentes à ausência de identidade
Quando as identidades nacionais e étnicas são representadas e projetadas coletiva - e o conseqüente desaparecimento de comunidade e solidariedade da
como puras, o contato com a diferença as ameaça com a diluição e compromete vida social- têm também sido discutidas longamente por políticos de ambos os
suas purezas sobrevalorizadas com a possibilidade crônica de contaminação. O lados do espectro político.
cruzamento como mistura e movimento deve ser assim resistido a todo custo. Outros aspectos do caráter fundamentalmente escorregadio da identidade
Novos ódios e violências surgem não como acontecia no passado, a partir de um podem ser detectados no modo corno o termo é usado para registrar o impacto de
conhecimento antropológico supostamente confiável a respeito da identidade e da processos que ocorrem acima e abaixo do nível no qual o Estado soberano e seus
diferença do Outro, mas do problema novo de não ser capaz de localizar a diferença modos específicos de pertencimento estão constituídos. O crescimento dos
do Outro no léxico de senso comum sobre a alteridade. Pessoas diferentes são nacionalismos e outras identidades étnicas e religiosas absolutistas, a acentuação
certamente odiadas e temidas, mas a antipatia oportuna contra elas não é nada se das divisões regionais e locais e a mudança em andamento na relação entre redes
comparada com os ódios voltados contra a ameaça maior representada por aquele supranacionais e subnacionais de economia, política e informação dotaram os
que é meio-diferente e em parte familiar. Ter-se misturado é ter sido partidário de apelos contemporâneos identidade de uma maior significância. A identidade veio
ã

uma grande traição. Qualquer traço desconcertante de hibridez deve ser amputado para proporcionar uma espécie de âncora em meio às águas turbulentas da
das zonas ordenadas e desbranqueadas de uma cultura pura impossível. A segurança desindustrialização e dos padrões em larga escala de reconstrução planetária que
da similitude pode ser então recobrada através de uma das duas opções que são com alguma hesitação denominados "globalização". 8 Ao que parece, recuperar
aparecem regularmente no ponto de desintegração desta lógica deprimente: a ou possuir uma identidade em bases apropriadas pode proporcionar um meio para
separação ou o massacre. se manter à distância estes processos históricos, porém, geradores de ansiedade.
Sentir orgulho de uma identidade exclusiva ou fazer dela um santuário proporciona
IDENTIDADE, SOLIDARIEDADE E PERSONALIDADE um meio de adquirir certeza sobre quem se é e onde se encaixar, sobre as demandas
da comunidade e os limites da obrigação social.
A linguagem política da identidade reequilibra as distinções entre conexões A politização do género e da sexualidadeampliou o entendimentoda identidade
escolhidas e particularidades dadas: entre a pessoa que você escolhe ser e as ao chamar a atenção para os fatores sociais, familiares, históricos e culturais que
coisas que determinam sua individualidade por lhe serem impostas. É especialmente
importante para o argumento a seguir que o termo "identidade" tenha se tornado
8. William Greider, One World, Ready or tvot: lhe Manic Logic ofGlobal Capitalism (Simon and
um elemento significativo nos conflitos contemporâneos envolvendo diferenças
Schuster, 1997); Jerry Mandcr e Edward Goldsmith, orgs., The Case against the Global Economy
culturais, étnicas, religiosas, "raciais" e nacionais. A idéia de identidade coletiva and for a Tum toward the Local (Sierra Books, 1996); Benjamin R. Barber, Jihad vs. McWorld:
emergiu como um objeto do pensamento político ainda que seu aparecimento sinalize How the Planet is Both Falling Aport anelCmning Together and What this Means for Democracv]
uma triste situação onde as regras características que definem a cultura política (Random House, 1995).

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I ENTRE CAMPOS :: Nações, CuLturas e o fascínio da Raça I I PAUL GILRQY I

influenciam a formação e a reprodução social da masculinidade e da femininidade. de leis universais e sem lugar definido. As formas de incerteza que caracterizam
Dois grupos de sujeitos são vinculados pela força centrípeta das identidades de este nosso tempo mais cético dão ênfase ainda aos perigos decorrentes da falta de
gênero estáveis que eles aparentemente têm em comum. Mas a inquieta intensidade um tipo específico de consciência própria e de cuidado de si.
disciplinar com a qual estas idéias se firmam parece aumentar em proporção inversa Quando a subjetividade é colocada no comando dos seus próprios mecanismos
ao colapso da família e das estruturas do lar e ao eclipse da dominação doméstica e desejos, faz-se um pesado investimento na idéia de identidade e nas linguagens
masculina. Nestas áreas importantes, o conceito da identidade alimentou novas do eu através das quais ela tem sido projetada. O fim das certezas associadas aos
maneiras de pensar sobre a pessoa, a similaridade e a solidariedade. Se a identidade métodos religiosos para compreender a si mesmo e se posicionar em Um
abstrata e suas temáticas estão à beira de se tomarem um tipo de preocupação relacionamento moral apropriado com outros eus dotados dos mesmos atributos
obsessiva nos países superdesenvolvidos, este novo padrão demonstra como éticos e cognitivos tem tido conseqüências duradouras. A idéia de uma identidade
movimentos políticos e atividades governamentais têm sido reconstituídos por uma interna, pré-dada que regula a conduta social para além da apreensão da reflexão
mudança no status e na capacidade do Estado-nação." consciente tem sido valiosa para restabelecer os elementos de uma certeza cada
Esta transformação também revela algo importante sobre o funcionamento vez mais rara e preciosa em uma situação onde a dúvida e a inquietude tornaram-
da sociedade de consumo. 10 O carro que você dirige, a marca de roupa, ou de se rotineiras. Esta idéia tem estado também intimamente associada com a
sapato esportivo que você usa já não pode mais ser entendido como expressões consolidação de lima racial agia genômica que promove formas de resignação de
acidentais ou contingentes das artes da vida cotidiana e das restrições materiais onde nos vem o incentivo para não fazer nada enquanto esperamos que aquelas
que brotam das desigualdades crescentes de status e riqueza. As mercadorias de diferenças naturais decisivas anunciem sua presença. Estas especificações são
grife adquirem um peso adicional quando são imaginadas como se representassem contraditas pelos efeitos da aceleração tecnológica que surgem do processamento
as verdades íntimas privadas da existência individual ou como se fixassem a fronteira digital e das comunicações mediadas pelo computador. Elas significam que a
das sensibilidades comunais que se esvaíram de outras áreas da interação pública identidade individual é ainda menos restringida pelas formas imediatas da presença
ou cívica. Embora isto envolva um grau demasiado de simplificação, podemos física estabelecida pelo corpo. As fronteiras da necessidade pessoal não mais
começar a desembalar a idéia de identidade para que esta revele vários problemas terminam no limiar da pele.'?
superpostos e interconectados que se encontram em geral emaranhados nos usos A distância que uma identidade individual pode viajar ao encontro de outras
contemporâneos mais rotineiros do termo. O primeiro destes usos é o entendimento e por meio de instrumentos tecnológicos fazer-se presente para elas aumentou,
da identidade como subjetividade. As obrigações religiosas e espirituais relativas à sendo que a qualidade dessa interação tem se transformado devido a uma cultura
personalidade foram gradualmente assimiladas ao objetivo secular e moderno de de simulação que cresceu em torno dela. Não mais encontrando uniformidade e
uma pessoa ordenada que opera em uma sociedade organizada. II Esta combinação unanimidade em símbolos usados no próprio corpo ou em torno dele, como a camiseta
histórica foi complementada pela idéia de que a estabilidade e a coerência da preta, a identidade política fascista cultivada pelos atuais grupos ultranacionalistas
personalidade eram pré-condição para a atividade competente e confiável de busca e de supremacia branca pode ser constituída de um modo remoto e transnacional
da verdade. Essa idéia mesma tem sido questionada à medida que a verdade pela Internet através de recursos computadorizados como a Aryan Crusader's
emergiu como algo provisório e perspectivado que raramente se submete à aplicação Library [Biblioteca do Cruzado Ariano], uma rede on llne operada nos Estados
Unidos, mas oferecida pelo mundo afora a qualquer pessoa com um computador e
um modem em mãos. Os governos e as corporações estão a promover estes
recursos tecnológicos como máquinas de comércio modernizado e ferramentas de
9. Jean-Marie Guéhenno, Thc End 01 lhe Nation State (University of Minnesota Press, 1995).
10. Zygmunt Bauman, Freedom. (Open University Press, 1988).
11. Charles Taylor, Soarcesofehe Seif(Hllfvard Univcrsi!y Press, 1989); William Connolly, ldentity/
Difference (Cornell University Press, 1991). 12. Chris Hables Gray, org., The Cyhorg Handhook (Routledge, 1995).

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça s
PAUL GILROY

democracia, mas o acesso a eles é profundamente distorcido pela pobreza, pela


...não existe uma personalidade separada da prática colaborativa de sua f _
desigualdade, e por diversos outros fatores culturais e políticos." Isto não significa, O "eu" é L1m' . ' . iguruçao.
. , ~ economia rep~ese.ntaclOnal: uma relficação continuamente derrotada
porém, que os processos culturais animados e estimulados por eles permaneçam pai entreldç~mentos mutáveis com as histórias, as experiências, as auto.
confinados às camadas privilegiadas onde eles são mais claramente evidentes. re~r~~ent~çoes de outros sujeitos; com seus textos, condutas gestos
objetificações." ' ' ,
Eles podem ser situados em seu cenário social mais amplo:

Na estória da construção da identidade na cultura da simulação, as experiências na . Co~ base nesta reflexão, o argumento seguinte se forma em torno de uma
Internet aparecem de modo proeminente, mas estas experiências só podem ser terceIra. linha de questionamento: de que maneira o conceito de identidade
entendidas como parte de um contexto cultural maior, Esse contexto é a estória da proporciona um modo para se falar sobre a solidariedade social e política? C
erosão de fronteiras entre o real e o virtual, o animado e o inanimado, o eu unitário e o te "identi , .omo o
rrno I entidade" é invocado no chamamento e na vinculação de agentes individuais
eu múltiplo, que ocorre tanto nos campos avançados da pesquisa científica quanto
~m g.rupos que se tornam atares sociais? Para estes propósitos, o exame da
nos padrões da vida cotidiana. De cientistas tentando criar vida artificial a crianças
"morünando-se' em uma série de personae virtuais, veremos evidências de mudanças lde~tl~ade reque.!uma confrontação com as idéias específicas de identidade étnica,
fundamentais na maneira como criamos e vivenciamos a identidade humana." raCtalizada.e na~lOnal e de seus equivalentes cívicos. Este ponto de partida introduz
u~na combma?ao de. noções distintivamente modernas, que em conjunto com
Este movimento incerto e para fora, do eu inquieto e limitado pelo corpo em discursos de cidadania, produziram com intensidade, em vez de terem concedido
direção ao mundo, leva-nos a um segundo conjunto de dificuldades no campo da uma expressão secundária às formas de solidariedade dotadas de um poder
. d bif nunca
identidade. Trata-se do problema da condição de ser o mesmo, entendido aqui VISto e mo I izar movimentos de massa c animar amplos círculos de eleitores, O
como intersubjetividade. Considerar a identidade a partir deste ângulo requer o p.lenopoder das, t:cnologia~ de cQmunicação, como o rádio, a gravação de sons, os
reconhecimento do papel do conceito em avaliações sobre o que precisamente filmes.~.e a televisão,
. tem Sido empregado para criar formas de solidariedade e de
conta como o mesmo e o que conta como diferente. Isto, por sua vez, levanta consciencra nac~onal que impulsionaram a idéia de pertencimenro para muito além
ainda a questão do reconhecimento e de sua recusa em constituir uma identidade do que. for~ realizado no século XL'X através da industrialização da impressão e da
e instigar a identificação. O tema da identificação e a conseqüente relação entre a formalização das línguas nacionais."
sociologia, a psicologia, e mesmo a psicanálise fazem seu ingresso neste ponto, . Conflitos contemporâneos sobre o status da identidade nacional oferecem
acrescentando camadas de complexidade às deliberações sobre como os eus - e ~qu~ os melhores exemplos, Se nos voltarmos por um momento para o caso da
suas identidades - se formam através de relacionamentos de exterioridade, conflito AfTI~a do Sul.. veremos que o histórico discurso de posse de Nelson Mandela como
e exclusão. As diferenças podem ser encontradas no interior das identidades, bem presidente de Estado ilustrou tanto a maleabilidade do sentimento nacionalista,
como entre elas, O Outro, contra cuja resistência a integridade de uma identidade quanto ,alg~mas das ten~ões mais persistentes em torno de sua constituição radical.
deve se estabelecer, pode ser reconhecido como parte do eu que já não é mais C_om o l~tUltO, de pr~duzlr um conteúdo alternativo para uma nOVa identidade política
plausivelmente entendido como uma entidade unitária, mas em vez disso aparece n.ao-r~clal, pos-~·aclal ou talvez anti-racinl que pudesse conectar conjunto dos °
como um momento frágil nos circuitos dialógicos que Debbora Battaglia denominou cld~d~os do pars renas~ido em novas bases para além do alcance de códigos
em termos apropriados de uma "economia representacional'': racializantes e de fantasias de uma vida favorecida como um povo escolhido por

13. Amy Harmun, "Racial DivideFound 00 Informatiou Highway", New York Times, 10 de abril de
199R. 15. Debbo~_a"Batt~glia, "P~'oblem:~tjzing
thc Self: A Thematic Introduction" em D. Baltaglia, org.,
RheIOl.I.o (Jj ~clf-Mukmg. (University of Califórnia Press, 1995), p.Z.
14, Sherry Turkle, L(te on lhe Screen. Identity in lhe Age ofthe Internet (Simon and Schuster, 1995),
p.10. Ió. Benedict Andersen, Imagínea Communitíes: Refíection on the Originand Spread ofNauonaiísm
(Verso, 1983). .

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GIlROV

Deus, o presidente Mandela se voltou para a terra - o chão comum ~ bem debaixo território pudessem ser deixadas de lado. Meu convite aqui é para que as
dos pés de seu público diverso, unificado e mutuamente desconfiado. De maneira consideremos à luz de outras possibilidades que se definiram por vezes em oposição
significativa, ele falou não apenas do solo, mas da beleza do país, apresentando a às formas de solidariedade sancionadas pelos regimes territoriais do Estado-nação.
idéia de uma relação comum tanto com a beleza cultivada quanto com a beleza Veremos que a idéia de movimento pode oferecer uma alternativa à poética
natural da terra como elementos de um novo começo. Para ele, isto era a chave sedentária, seja do solo, seja do sangue. Tanto as tecnologias de comunicação,
para o despertar de uma consciência verdadeiramente democrática. Uma relação quanto os padrões anteriores de ítinerância ignorados pelas ciências humanas podem
transformada entre corpo e meio-ambiente transcenderia as irrelevâncias das ser usados para articular imaginações de identidade sem lugar definido, assim como
hierarquias raciais redundantes da África do Sul do Apartheid: as novas bases de solidariedade e ação sincronizada. Com estas possibilidades em
mente, quero sugerir que o exame da história desterritorializada da diáspora africana
Não tenho nenhuma hesitação em dizer aos meus compatriotas que cada um de nós moderna no hemisfério ocidental, bem como da escravidão racial através da qual
está tão intimamente ligado ao solo deste belo país como estão as famosas árvores ela se realizou, tem algo útil para nos ensinar sobre o funcionamento da identidade
de jacarandá de Pretoria e as árvores mimosa do busbveld.
e da identificação e, além disso, algo valioso a ser dito a propósito das pretensões
Cada vez que um de nós toca o solo desta terra, temos uma sensação de renovação
pessoal... Esta unidade espiritual e física que todos nós compartilhamos com esta da nacionalidade e do Estado-nação sobre a escrita da própria história.
pátria comum explica a profundidade da dor que todos nós carregamos em nossos Excluídos do acesso à alfabetização sob ameaça de morte, os escravos
corações ao vermos nosso país ser rasgado ao meio por um conflito terrível.I] tirados da África à força recorreram às mesmas narrativas bíblicas com as quais
já nos deparamos, para compreender sua situação e, devagar e às custas de uma
Ainda resta saber se estas louváveis pretensões eram mesmo uma parte grande carga emocional, construir o que pode ser entendido como um novo conjunto
plausível da reconstrução da nacionalidade sul-africana. Mais importante para os de identidades. Eles também imaginaram a si mesmos como um povo eleito por
nossos propósitos aqui é que o território e, de fato, a própria natureza têm sido vontade divina. Isto significa que o sofrimento que abateu suas proto-nações
tomados como um meio para definir a cidadania e as formas de enraizamento que escravizadas teria tido um sentido e que a sua dor tinha o propósito não apenas de
compõem a solidariedade nacional e a coesão. As palavras do presidente Mandela alcançar a liberdade dos céus, mas a redenção moral de qualquer um que estivesse
eram poderosas por lidarem com a organicidade que a natureza conferiu às idéias preparado para juntar-se a eles na causa justa da busca de liberdade política e
modernas de cultura. Nessa imprecisão, Mandela construiu uma versão ecológica autonomia individual. Em nenhum outro lugar estes temas são mais poderosamente
da relação entre humanidade compartilhada, cidadania comum, lugar e identidade. articulados do que no trabalho de Martin Luther King, Ir. Em meio aos conflitos da
O discurso subverteu as suposições tradicionais ao sugerir que o Apartheid foi década de 1960 que acabariam por lhe tirar a vida, ele escreveu sobre as dificuldades
uma violação brutal da natureza, que poderia ser reparada apenas se as pessoas vivenciadas pelos americanos negros cuja lealdade aos Estados Unidos se rompera
estivessem preparadas para se concentrar na unidade estabelecida pela sua ligação devido à falta de direitos políticos e oportunidades econômicas, tendo a dizer o
com o belo meio-ambiente que lhes é comum, assim como a responsabilidade seguinte a respeito do que hoje reconhecemos come identidade (ele também
comum em relação a ele. recorreu à mitologia bíblica do povo eleito para articular suas esperanças e escolhas
O argumento alternativo desenvolvido abaixo reconhece a dinâmica sócio- políticas):
ecológica da formação da identidade, No entanto, espera-se que o leitor considere
o que poderia ser alcançado caso as poderosas pretensões ao solo, às raízes e ao Algumacoisa do espírito de nossos antepassados escravos precisa ser hoje adotada.
Das entranhas do nosso ser, devemos cantar com eles: "Antes que eu me torne
escravo, serei enterrado na minha sepultura, irei embora com meu Senhor e serei
livre". Este espírito, esta força, esta sensação resistente de ser alguém é o primeiro
17. O discurso deposse do presidente Mandela foi reproduzido em The lndependent, 11 demaio de passo vital que o negro deve dar ao tratar de seu dilema... Para superar este conflito
1995, p.l2.
trágico, será necessário que o negro encontre uma nova auto-imagem... Os faraós

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY
'i

tinham uma estratégia favorita e efetiva de manter oprimidos os seus escravos: arena política. Com o auxílio de Baldwin, podemos apreender os muitos perigos
mantê-los brigando entre si... Mas quando os escravos se unem, os Mares Vermelhos envolvidos no molde oco do "eu também", ou em outros tipos de competição
da história se abrem e os Egitos da escravidão desmoronam."
igualmente sem sentido e imoral, os quais acarretaram muito sofrimento entre
povos, nações, populações ali grupos étnicos; uma competição em tomo daqueles
Devemos ter cautela visto que há agora ganhos políticos consideráveis a
cujas identidades têm sido mais severamente injuriadas; e, de fato, em torno daqueles
serem obtidos quando se é reconhecido como detentor de uma identidade definida
que podem ser pensados como os mais desenraizados, nômades ou cosmopolitas
exclusivamente por esta e outras histórias de sofrimento inefável. Dr. King não
e, portanto, como as pessoas mais essencialmente "modernas", Oll em termos
tirou proveito dessa associação, mas aqueles que seguiram seus passos nem sempre
paradigmáticos, mais "pós-modernos" de nosso planeta. No entanto, com o alerta
foram tão escrupulosos. A identidade da vítima, insulada e apresentada como um
de Baldwin ainda em mente, há muito a ser aprendido ao colocarmos em primeiro
estado essencial e imutável, tornou-se, nos anos seguintes à morte de King, uma
plano essa experiência de ser vitimizado e usá-Ia para desafiar a inocência
aquisição valorizada sobretudo quando cálculos financeiros procuraram transformar
intencional de algumas versões eurocêntricas dos prazeres e problemas da
mal-feitos históricos em quantias compensatórias em dinheiro." Este problema
modernidade. Essa operação difícil permite mais do que uma coda às versões
não tem se limitado à política negra com suas demandas por reparações e outras
históricas e sociológicas convencionais do desenvolvimento moderno. Será que
formas de restituição financeira devido à escravidão nas Américas. Da Palestina
um sentido transformado do que significa ser uma pessoa modema talvez possa
à Bósnia, a imagem de vítima tornou-se útil em todo tipo ele manobras dúbias que
resultar desta reavaliação?
podem obscurecer as questões morais e políticas que surgem de exigências ele
A reconstrução cuidadosa das narrativas trágicas e semi-ocultas que
justiça. Ainda assim, apesar ele todos os seus atrativos pragmáticos e estratégicos,
demonstram como se construiu e se reproduziu a crença fatídica em identidades
o papel de vítima tem suas desvantagens enquanto base de qualquer identidade
religiosas, nacionais e étnicas mutuamente impermeáveis já foi tratada brevemente
política. Com sua perceptividade característica, James Baldwin descreveu algumas
no capítulo anterior. Ela se adequa bem ao trabalho arqueológico em andamento
delas em uma discussão sobre o significado do terror racial e seu impacto sobre a
para explicar as culturas e sociedades complexas do Novo Mundo e seu
identidade:
relacionamento com a história do pensamento europeu, bem como de sua literatura
Eu me recuso definitivamente a falar do ponto de vista da vítima. A vítima não pode
e da compreensão de si mesmo." A importância da colónia e do império também
, tem sido reavaliada e as fronteiras em torno dos Estados-nação europeus emergem
ter nenhum ponto de vista precisamente porque ela concebe a si mesma como -"
vítima. O testemunho da vítima enquanto vítimacorrobora simplesmente a realidade de um modo mais poroso e permeável do que gostariam de admitir alguns arquitetos
das correntes que a aprisionam - confirma e deste modo consola o carcereiro." de uma história nacional complacente. Estas descobertas apóiam a exigência de
uma mudança decisiva de perspectiva. Mais uma vez, parece que para
Baldwin nos alerta para não fecharmos a brecha entre identidade e política, compreendermos as histórias sombrias do poder colonial e imperial que desonram
subestimando as complexidades da sua interconexão. Suas palavras apontam para o edifício esmerado da modernidade inocente e questionam a estória heróica da
a armadilha de esperar que o que se imagina de uma maneira preguiçosa como marcha triunfal da razão universal, será preciso nos afastar da escala historiográfica
uma identidade compartilhada possa ser diretamente transferida para o interior da definida pelas fronteiras fechadas do Estado-nação. Se estivermos preparados
para nos apossar dessas histórias e decidir colocá-Ias para funcionar de modo que

18. Martin Luther King, Jr., Where Do Wc Co From Here: Chaos or Community? (Harper and Row,
1967), p. 124.
19. Donald G. McNcil, Jr., "Africana Seek Redrcss for German Ocnccíde", New York Times, 1 de 2l:P~~r Hulrne, Colonial Encouruers (Methuen, 19l16); Anrhouy Pagdcn. European Encounters in
junho de 1998. lhe New World: From Renaíssance to Romantícism (Ya1e, 1993); Richard C. Trexler, Sex and
20. James Baldwin, Evidence ofThings No; Scen (Henry Holt and Co., 1985), p.78. Conquest (Cornell Univcrsity Press, 1995).

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I ENTRE CAMPOS :: Nações, CuLturas e o Fascinio da Raça I I PAUL GILROY I

revelem entendimentos mais modestos e mais plausíveis de democracia, de o COSMOPOLITISMO DESENRAIZADO DO ATLÂNTICO NEGRO
tolerância com a diferença e de reconhecimento dos cruzamentos culturais do que
aqueles que existem na atualidade, este argumento histórico poderá redirecionar a Imaginemos quc o estudo da identidade da diéspora africana no mundo
atenção para algumas das questões contemporâneas mais gerais ligadas à moderno ocidental comece com uma compreensão da vida de figuras exemplares
compreensão da identidade nas ciências humanas. As histórias de violência e de do século XVIII, sendo as mais conhecidas, Olaudah Equiano, Ignatius Sancho e
terror, com as quais a racionalidade moderna tem sido cúmplice, oferecem um Phillis Wheatley." Equiano foi um marinheiro e ativista político em defesa da
meio apropriado para testar e avaliar o poder explanatório das teorias de identidade abolição da escravidão, deixando-nos uma autobiografia que ocupa posição central
e de cultura que surgiram em circunstâncias mais silenciosas e menos sangrentas. nas iniciativas literárias deste grupo. Ele nasceu no lugar que hoje conhecemos por
Talvez essas teorias também derivem de modos acadêmicos mais complacentes Nigéria na metade do século XVIII, tendo sido raptado ainda criança e embarcado
de se pensar sobre o poder, comuns em climas temperados. A idéia de que a posse como escravo para a travessia do Atlântico. Equiano teve vários senhores em
de uma identidade específica deveria ser uma precondição ou qualificação para se partes diferentes das Américas. Sua passagem de mercadoria para homem livre e
engajar neste tipo de trabalho é algo trivial. O desafio intelectual que se define aqui os processos de construção de si mesmo envolvidos nisso expressam-se de um
é que as histórias de sofrimento não deveriam ser alocadas exclusivamente entre modo mais claro na série de nomes pelos quais ele foi conhecido em diferentes
as suas vítimas. Se o fossem, a memória do trauma desapareceria à medida que a fases de sua vida - primeiro Michael, depois Jacob e, finalmente, Gusravus Vassa,
memória viva do ocorrido se apagasse. nome copiado de um renomado patriota sueco.
Esta mudança de perspectiva proposta aqui sobre o valor do sofrimento não Wheatley, poeta ilustre, celebridade, e testemunha eloqüente das sublevações
é, portanto, de interesse exclusivo das vítimas ou dos familiares que as têm na políticas da guerra revolucionária americana contra os britânicos, era contemporânea
lembrança. Por ser uma matéria de justiça, não é uma questão apenas para as de Equiano. Ela foi tirada da Senegâmbia ainda menina, chegando a Boston em
"minorias" maltratadas, cujas próprias identidades perdidas ou em desaparecimento 1761, enrolada em um pedaço de tapete sujo; e recebeu o nome do navio negreiro
possam ser restauradas ou resgatadas pela prática de comemoração. É matéria de que a transportou pelo oceano. Por lhe faltarem os dentes da frente, as pessoas
preocupação também para aqueles que possam ter se beneficiado direra ou que a examinaram calcularam que ela tivesse cerca de sete anos de idade. Ela foi
indiretamente da aplicação racional da irracionalidade e da barbaridade. Talvez, comprada por Susannah e John Wheatley para que Susannah fizesse uso dela na
acima de tudo, esta tentativa de reconceitualizar a modernidade a fim de que ela residência do casal. Ao perceber a capacidade excepcional de aprendizado de
abarque estas possibilidades seja relevante para a maioria que provavelmente não Phillis, seus senhores a segregaram dos outros escravos, nomearam sua filha de
se consideraria membro de nenhum dos grupos principais: vítimas e perpetradores. dezoito anos como a primeira tutora da menina, decidindo então que ela fosse
Esta posição difícil desafia esse grupo não nomeado a testemunhar sofrimentos educada de modo mais sistemático. Ela compensou os investimentos deles em sua
que vão além do alcance das palavras e, por isso mesmo, a ver como a compreensão capacidade mental com uma torrente de poesia extraordinária que reflete a sua
da própria particularidade ou identidade poderia ser transformada a partir de um transformação pessoal de africana em americana, bem como a moralidade do
contato baseado em princípios com as demandas da alteridade. 22 sistema mais amplo que engendrara uma tal transformação. Wheatiey foi a primeira
pessoa negra a publicar um livro. Poems on Various Subjects, Religious and
Moral [Poemas Sobre Vários Assuntos, Religiosos e Morais] foi publicado em
Londres em 1773 por um impressor que se mostrara eético quanto abona fides

22. Charles Taylor, "Understanding and Ethnocemricity", tn Philosophy and the Human Scíences, 23. James Walvin, An African 's Life: The Life I:!f Olaudah Equiano, 1745-1797 (Cassell, 1999): Ola
Philosophical Papers 2 (Cambridge University Press, 1985). Larsmo, Maroonberget (Bonniers, 1996).

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY I

de sua autora negra. Esta obra tem sido reconhecida por vários críticos como o apreensão sofisticada do sincretismo, da adaptação e da intermistura culturais.
ápice de uma tradição distintiva de criatividade da literatura afro-americana. Decerto, podemos identificar elementos no trabalho de Wheatley que traem a
Assim como Equiano e muitos outros ex-escravos e seus descendentes que presença residual da religião animista africana ou do culto ao sol. Mas, apesar de
seguiriam seus passos, Wheatley atravessou o Atlântico diversas vezes, não só podermos encontrar palavras africanas e detalhes etnológicos precisos na narrativa
quando ainda era escrava, mas também como mulher livre. Suas viagens a levaram de Bquiano, o trabalho dele, assim como o de Wheatley, também foi influenciado
para Londres, onde transitou por círculos sociais ilustres, tendo contrariado as por Pape e Milton. Eles aspiram a ser valorizados em seus próprios termos enquanto
expectativas de seus anfitriões ao declarar corajosamente sua simpatia pelos formações multifacetadas e complexas. Não deveriam ser valorizados apenas como
abolicionistas, conforme Peter Fryer demonstrou." Sir Brook Watson, futuro prefeito um meio para observar 1l durabilidade dos elementos africanos, ou então ser
de Londres, deu-lhe de presente o livro Paradise Lost [Paraíso Perdido], tendo descartados como uma mistura inadequada, destinada a ser sempre algo a menos
ela além disso usufruído da patronagem muito significativa de Selina Hastings, do que as entidades supostamente puras que primeiro se combinaram para produzi-
condessa de Huntington, uma personagem rica, proeminente e bem conectada la. O legado destes trabalhos é ainda mais valioso como uma mistura, como algo
com o movimento evangélico metodista e a quem Wheatley dedicou o seu livro. híbrido. Sua forma recombinante tem um débito com as suas culturas "genitoras",
Os poemas de Wheatley eram amplamente bem recebidos, resenhados e debatidos mas permanece positiva e insubordinadamente bastarda. Ela não reproduz nenhuma
não apenas por suas próprias qualidades, mas também, conforme enfatiza Henry das supostas purezas anteriores que a geraram em inúmeras formas diversificadas.
Louis Gates, Jr., devido ao que se considerava como revelador das capacidades Ao menos aqui a identidade deve estar divorciada da pureza.
intelectuais e imaginativas dos negros de um modo geral. Aos vinte e três anos, A mistura transcultural nos alerta não apenas para as complexidades
quinze anos dos quais como escrava, ela foi libertada quando da morte de sua sincréticas da língua, da cultura e da vida moderna cotidiana nas terras quentes
senhora, não conseguindo, porém, publicar o segundo volume de poesias, que onde se praticou a escravidão racial, mas também para as metamorfoses da
vendera de porta em porta a fim de levantar recursos para poder se sustentar em identidade individual que desafiam a pureza nas "zonas de cantata" de uma metrópole
liberdade. E possível que este último trabalho tenha sido menos restringido por imperial." Mesmo sob tais condições, a identidade era um amálgama resultante
suas obrigações servis do que o trabalho anterior. de muitos acréscimos. Sua constituição protéica não se submeteu aos roteiros do
Talvez seja importante para a nossa reflexão sobre o funcionamento da absolutismo étnico, nacional, racial ou cultural.
identidade o fato de que embora Equiano tivesse se envolvido num projeto para Assim como as elegias de Wheatley, a autobiografia absorvente de Bquiano
reassentnr os negros indesejados de Londres do século XVIII em Serra Leoa, permite muitas reflexões preciosas sobre a escravidão racial moderna e esclarece
nem ele nem Wheatley jamais voltaram às terras natais africanas onde iniciaram algumas das mudanças de consciência e perspectiva por que passaram os escravos
suas longas jornadas pela escravidão. africanos à medida que negociavam o trauma, o horror e a violência da ruptura
Esta dupla de escritores deixou uma coleção interessante de publicações forçada do lar e dos familiares, denominada de "alienação natal" por Orlando
que nos permitem considerar os efeitos da relocação, do deslocamento e da transição Patterson." Equiano trabalhou árdua e longamente em vários lugares diferentes
forçada entre códigos e hábitos culturais, língua e religião. Os autores pertencem à do Novo Mundo a fim de poder comprar sua liberdade da mão de seu senhor.
geração que sofreu o trauma da travessia forçada do Atlântico, cujos efeitos físicos Antes que ele conseguisse isso na época em que servia a Robert King, um quaker
e psicológicos decorrentes daquela disjunção brutal deviam se fazer sentir com a da Filadélfia, ele visitou a Inglaterra e serviu a bordo de navios de guerra da Marinha
maior intensidade. Mais significativo, porém, é o fato de que através de seu domínio
conspícuo de gênero, estilo e idioma expressivo, seus textos nos impõem uma
25. Mary Louise Pran, Imperial Eyes: Trave! and Transculturation (Rourledge, 1(92).
26. Orlando Patrerson, Slavcry and Social. Death: A Comparative Study (Harvard Univcrsity Press,
24. Perer Fryer, Staying Power: The History of Black People in Britain (Pluto Press, 1984). 1982).

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ENTRE CAMPOS" Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça
PAUL GIL ROY

Real, participando de várias batalhas contra os franceses. Viajou ainda pelo dominical segurando sua bíblia aberta no Livro dos Atas 12;4. Essa citação e as
Mediterrâneo, foi para o Ártico como parte da expedição de John Phipps em 1773, outras referências bíblicas com as quais ele adornou seu texto são indicadores
e esteve entre os Indios rnusquitos da América Central, um encontro que transmite importantes do carãter preciso da perspectiva protestante de Equiano. O capítulo
aos seus leitores o quanto a identidade previamente africana do narrador teria se 7 da sua narrativa descreve um encontro decisivo com o metodismo evangélico do
distanciado de qualquer coisa que pudesse ser descrita como do bom selvagem. "grande despertar" de George Whitefield, que gozara de uma presença expressiva
A apresentação da estória de vida de Equiano foi, sem dúvida, moldada no pensamento anti-escravista, sendo uma influência significativa no ativismo negro
para corresponder às expectativas e convenções de um público leitor abolicionista. contra a escravidão na época." Wheatley assinalou algumas dessas mesmas
De fato, ela descreve os abusos, a injustiça e a exploração, mas também demonstra afiliações em um poema bastante divulgado em celebração à morte de Whitefield
que ele foi tratado com alguma decência e medida de confiança pelos seus senhores em agosto de 1772. O poema lembrava que ele se concentrara em instigar os
por quem ele foi capaz de desenvolver significativa afeição e intimidade tanto sob negros a consentirem na sua salvação cristã, reproduzindo alguns de seus apelos
o jugo de sua servidão, quanto contra ele. Colhido numa cilada em um barco no pelo reconhecimento geral de Cristo como um salvador "imparcial":
'I'âmisa em Deptford, em 1762, e obrigado a um confronto inesperado com um
senhor a quem, como conta aos seus leitores, ele havia "amado como um filho", Ele rezava para que a graça pudesse em todo coração morar,
Equiano sentiu o desespero de querer alcançar o abrigo da cidade às margens do Ele desejava ver a América brilhar;
rio onde ambos sabiam que sua liberdade estaria assegurada. Em vez disso, ele se Ele cobrou da sua juventude que toda graça divina
viu vendido de um senhor a outro já muito perto da costa que não conseguiu alcançar. Deveria brilhar plenamente na conduta deles...
"... Recebam-no, africanos, ele anseia por Vocês,
Passo a passo, Equiano adquiriu não apenas habilidades para melhorar a
Salvador Imparcial é o seu título devido:
sorte que lhe coube como marinheiro e negociante, mas também uma consciência Lavados na fonte do sangue redimido,
crítica elaborada e complexa capacitada a analisar, assim como descrever, suas Vocês serão filhos, reis e sacerdotes de Dells".2H
experiências e o sistema exemplificados por ambos. Tornou-se um cristão fervoroso
e tal como Wheatley o fizera, recorreu às categorias morais dessa fé para denunciar Para os metodistas deste grupo, a visão paulina, plenamente exposta em
o tráfico imoral de seres humanos que o arrancara da África e do qual ele mesmo Aos Gálatas 3:26-29, era central ao ideal de uma comunidade propriamente cristã":
havia participado como um tripulante relutante em viagens para transporte de
escravos. Sua boa sorte econômica e o gerenciamento astuto de seus próprios Porque todos vocês são filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo.
ganhos fizeram dele um homem livre e um forte defensor da frugalidade, diligência Porque todos dentre vocês que foram banzados em Cristo já foram revestidos por
Cristo.
e do esforço protestante disciplinado. Um metodismo radical tocou a sua vida bem
Não há nem judeu nem grego, não há servo ou livre, não há homem ou mulher:
como a de Wheatley. Com isso ele ganhou as ferramentas apropriadas para que porque todos vocês são um em Cristo Jesus.
ele pudesse desmascarar as ações piedosas cristãs que se revelavam ocas por sua E se são de Cristo, então vocês são a semente dc Abraão e herdeiros conforme a
indiferença com relação ao sofrimento dos escravos. promessa.
Havia outras formas alternativas de cristianismo que fornecem pistas sobre
as maneiras como Equiano e Wheatley pensaram em si mesmos como filhos de
Deus e seres humanos, pecadores, trabalhadores e patriotas, homens e mulheres 27. Adam Potkay, "Introduction" emAdam Potkay e Sandra Burr, orgs., BlackAtlantic Writers ufthe
livres, cujo sentimento vívido de liberdade fora condicionado pelo fato de também Eighter!Jlth Century (St. Marrin's Press, 1995), p.ç.
terem sido escravizados. O frontispício da autobiografia de Bquiano, The Life of 28. "On the Death of the Rev. Mr. George Whírcfield. 1770", linhas 20-23 e 34-37; John C. Shields,
org., The Collected WorÁ:5 of Phillis Wheatley (Oxford University Press, 1988), p.23.
Olaudah Equiano ar Gustavus Vassa the African (A Vida de Olaudah Equiano 29. Daniel Boyarin investigou aspectos da história desta idéia em seu excelente estudo A Radical
ou Gustavus Vassa, o Africano], publicada em 1789, apresenta-o em sua roupa Jew: Paul and the Policies of ldentity (Univeristy of Califórnia Press, 1995).

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GIlROY I

Equiano apresenta um dos brancos mais agressivos e menos compassivos a injustiça e a imoralidade do tráfico de escravos e afirmações menos freqüentes
com quem ele entrou em conflito como aquele que o insultou por ser "um dos de uma autonomia que precedeu o cantata decisivo com os brancos e seu mundo.
homens de São Paulo.?" As diferenças superficiais de gênero e status social, A poeta e crítica afro-americana June Jordan é, sem dúvida, perspicaz ao chamar
raça e casta, marcadas no corpo de acordo com a ordem frívola do homem, deveriam a atenção para a poderosa afirmação de autonomia que salta em meio ao poema
ser abandonadas em prol de um relacionamento com Cristo que oferecia um meio "On Being Brought from África to America" ["Sobre Ser Trazida da África para a
de transcender e, portanto, de escapar os limites impostos pela mortalidade e pelo América"], publicado por Wheatley quando tinha apenas dezesseis anos de idade:
sistema de identificação e diferenciação codificado pelo corpo, denominado
atualmente de "fenótipo''. Há aqui também uma espécie de apelo pela renúncia de Foi a piedade que me trouxe da minha terra pagã,
características específicas definidoras, associadas com o corpo c articuladas por Ensinou a minha alma ignorante a compreender
Que há um Deus e que há um Salvador também:
meio dele. Estas são as mesmas qualidades que poderiam hoje ser pensadas como
Antes a redenção cu nem buscava nem conhecia.
constituindo as formas mais fixas e imutáveis de identidade. Elas foram perdidas, Alguns vêem a nossa raça escura com um olhar desdenhoso,
ou melhor, deixadas para trás, no momento em que o corpo africano distintivo de "A cor deles é uma sorte diabólica."
Equiano foi imerso nas águas batismais receptivas da sua nova fé cristã. Talvez o Lembrem-se, cristãos, negros, pretos como Caim,
que devamos reconhecer como uma nova "identidade" tenha sido constituída junto Podem ser refinados e se juntar à corrente angelical.
com uma nova análise da escravidão naquela imersão decisiva. Para ele, a
escravidão se tomou uma experiência útil, tanto em termos morais e analíticos, Equiano, Wheatley e muitos outros como eles também são importantes para
como individuais. Foi uma dádiva de DeLIS que redimiu o sofrimento através da as reflexões contemporâneas sobre a identidade raciaiizada por terem habitado
concessão da sabedoria: diferentes lugares. Uma parte significativa de suas vidas itinerantes passou-se em
solo britânico e é tentador especular aqui sobre como um reconhecimento de suas
Julguei que atribulações e decepções acontecem às vezes para o nosso bem e contribuições políticas e culturais para a Inglaterra, ou talvez para a vida
pensei que Deus talvez tivesse permitido isso a fim de me ensinar sabedoria e heterocultural de Londres, poderia complicar os retratos que a nação faz de si
resignação. Isto porque ele havia até então me protegido sob as asas de sua mesma. Esta representação decididamente monocromática atua com frequência
compaixãoe pela sua mão invisível, porém,poderosa,havia me mostradoo caminho
demasiada no sentido de excluir ou enfraquecer a importância da participação
que eu não conhecia. JI
negra, minimizando ainda o poder do circuito colonial e imperial na determinação
dos padrões internos da vida nacional.
Graças à densidade de suas alusões e a condensação de sua forma poética
A tensão sobre onde colocar os negros do século XVIU liga-se não apenas
de escrita, a ambivalência de Wheatley sobre a sua trajerória em meio a culturas e
a um nativismo britânico codificado pela cor que é indiferente senão atívamente
entre identidades é uma busca mais evasiva. Sua poesia tem sido debatida em
hostil à presença de escravos e ex-escravos, mas também a outro problema
detalhes precisamente por os analistas sentirem dificuldade em avaliar a relação
conceitual. Este conflito mais profundo pode se tornar visível no contraste entre,
entre o seu domínio do neoclassicismo inglês, seu entusiasmo pela luta revolucionária
de um lado, as nações constituídas como campos, enraizadas em um só ponto
americana e aqueles poucos momentos em que denúncias estridentes inesperadas
apesar de seus tentáculos imperiais terem se estendido para mais longe, e de outro
da escravidão irrompem de sua escrita. Uma apreciação da providência divina que
lado, os padrões muito diferentes de habitação itinerante, encontrados nas aventuras
a tirou das trevas de sua vida africana combina-se com declarações diretas sobre
marítimas transnacionais de Equiano e celebrados na criatividade de Wheatley
que se desenvolve com base em cruzamentos culturais. Os modos comemorativos
30. Olaudah Equiano, The lnteresííng Narrative O/lhe Llfe ofOlaudah Equiano, 2 vols. (PaU Mali,
1969), vol. 2, p. 195 apropriados para esta muito distinta ecologia do pertencimento revelam-se nas
31. Ibid., p.182. oposições entre geografia e genealogia, entre terra e mar. Esta última possibilidade

148 14.
ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fasdnio da Raça PAUL GILROY I

. ma reversão parcial do mito segundo o qual a Britannia exercia o domínio Esta "analogia" é evidêncía de que a força da raciologia emergente havia
aClOna u .
ond as Podemos começar a perceber a força sublime do oceano e o tocado a própria consciência modema de Equiano. Ela pode ser usada, por seu
b as
wre ' .'
soeiado daqueles que fizeram seus lares ternporanos sobre ele tal como turno, para introduzir uma discussão da idéia da diãspora que, transcodificada de
impacto as . . . .. ".
um contrapoder que restringiu, regulou, inibiu e por vezes desafiou o exerctctc da suas fontes bíblicas e divorciada, em geral, das tradições judaicas, nas quais é
soberania territorial,32 basicamente articulada, provou ser muito útil aos pensadores negros ao longo de
Não é de se surpreender que em sua busca para encontrar precedentes sua luta para compreender a dinâmica da identidade e do pertencimento constituída
históricos que pudessem explicar o caráter do idílio africano d? qual ele fora raptado entre os pólos da geografia e da genealogia. Para eles, a história judaica de um
Injusto tráfico transnacional de carne humana, Equiano tenha se voltado modo geral, e a idéia da diáspora em particular, eram meios apropriados para
por um I . ' .
uma vez mais para a sua Bíblia, Num passo interessante, que tambem repudiava ajustar o conflito entre os deveres emanados do lugar de moradia e aquelas
ias baseadas na idéia de raca daqueles que recorriam à hipótese camita" , diferentes obrigações, tentações, vícios e prazeres que pertenciam ao lugar de
as t eon· '!:
com base bíblica, para apresentar a negritude como uma maldição e nela encontrar estadia temporária. A diáspora é uma idéia especialmente valiosa porque aponta
justificativas para a escravidão, ele arg.um~ntou ~ue os africanos não era~ para um sentido mais refinado e mais maleável de cultura do que as noções
descendentes do filho amaldiçoado de Noé, cUJO castigo acarretara o que podena características de enraizamento exemplificadas acima nas palavras do presidente
ser lido como uma legitimação da escravidão, mas sim da união de Abrar:o :om Mandela. Ela toma problemática a espacializaçâo da identidade e interrompe a
Ketura. Esta afirmação ousada apoiou-se em citações de trabalhos acadêmicos ontologização do lugar.
de seu tempo, Ela se combina com outra afirmação recorrente em análises literárias
e políticas produzidas por africanos escravizados e seus d~s~endentes, Para Equiano A DIÁSPORA COMO UMA ECOLOGIA SOCIAL DE IDENTIFICAÇÃO
haveria um precedente histórico importante para as tradições e a conduta do povo
africano de cujo seio ele fora cruelmente arrancado: A idéia da diéspora oferece uma alternativa imediata à disciplina severa do
parentesco primordial e do pertencimento enraizado. Ela rejeita a noção popular
... não possa deixar de sugerir aqui o que há tempos tem me imp~essiona~lo muito de nações naturais espontaneamente dotadas de uma consciência de si próprias,
intensamente, isto é, a forte analogia que, mesmo neste esboço, imperfeito como compostas meticulosamente por famílias uniformes; ou seja, aqueles conjuntos
seja, parece prevalecer nas maneiras e nos costumes dos :ncus compatriotas e intercambiáveis de corpos ordenados que expressam e reproduzem culturas distintas
aquelesdos judeus antes que eles alcançassem a Terra Prometida, c particularmente
em absoluto, assim como pares heterossexuais formados com perfeição. Como
os Patriarcas, ao tempo em que eles ainda estavam naquele estado pastoral que é
descrito no Gênese - uma analogia que por si só me induziria a pensar que um povo uma alternativa à metafísica da "raça", da nação e da cultura delimitada e codificada
teria surgido do outro ... Quanto à diferença de cor entre os africanos eboe e os no corpo, a diãspora é um conceito que problematiza a mecânica cultural e histórica
judeus modernos, não me atreVO a exp I·rca-'1 a." do pertencimento. Ela perturba o poder fundamental do território na definição da
identidade ao quebrar a seqüêncía simples de elos explanatórios entre lugar,
32. Marcus Redikcr, Berween the Devi! and the Deep Blue Sea: Merchant Seamen, l'irme; a~d t~ localização e consciência, Deste modo, ela destrói a invocação ingênua da memória
Anglo-American Maritime Wor/d, 1700-1750 (Cambridge University Press, 1987); aOlce. ' comum como a base da particularidade, ao chamar a atenção para a dinâmica
Thomson, Mercenaries. Pírates, and Sovereigns (Princeton University Press, 1994); E. E. Rice,
org., rne Sea nnd History (Sutton Publishing, 1996), em especial capítulo 5,; N. A, M, Rod.g.er,
"Sea Power and Empire: J688-1793" em P. J. Marshall, org., The Oxford History ofthe British
j política contingente da comemoração.
A antiga palavra diáspora adquiriu uma entonação modema como resultado
limpíre. Volume Two: The Eighteenth Century (Oxfo:d: 1998). . . . ) .." de sua imprevista utilidade para os nacionalismos e imperialismos subalternos de
33. Edith R. Sanders, "The Hamitic Hypothesls; Its Ong1O nnd Functions 10 Time I erspecnve ,
fins do século XIX. Ela continua sendo um elemento persistente nas reverberações
Joumal of Ajrican History; X, 4, pp.521-532. _
34. Equiano, TlU? tnterestíng Narraiive, pp.38-4ü. Para uma discussão inovadora destas formulaçoes contínuas geradas pelos projetas políticos na Palestina dentre outros lugares. Se
ver Adam Potkay, "Introduction" em Rlack Atlaruic Wrirers of lhe Eig/lIeenrh Century. ela puder ser despojada de suas associações disciplinares, a diãspora pode oferecer

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I ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascinio da Raça I I PAUL GIlROY I

sementes capazes de gerar frutos nas lutas para abarcar a socialidade de uma diversas versões da consciência diaspórica enfatizam a possibilidade e a
nova fase, quando é provável que o deslocamento, a fuga, o exílio e a migração desejabilidade do retorno. É possível que reconheçam ou não a dificuldade deste
forçada se tornem fenômenos conhecidos e recorrentes, transformando os termos gesto. Saber até que ponto o retorno é acessível ou desejado permite um momento
necessários à compreensão da identidade. Afastando-se da ambição e da imodéstia valioso de comparação em termos da tipologia e classificação das histórias da
totalizadora da palavra "global", a diéspora é um termo que designa o que é externo diáspora e de seus movimentos políticos.
à nação, contribuindo para a análise dos processos e formas interculturais e A "diãspora" não possui as associações modernistas e cosmopolitas da
transculturais. Ela identifica uma rede relacional, produzida de modo característico palavra "exílio", da qual tem sido bastante distinguida sobretudo nas histórias judaicas
pela dispersão forçada e pela saída às pressas e relutante. Não é apenas uma onde o termo encontra-se mais profundamente imbricado." Devemos ter cuidado
palavra de movimento, embora o movimento desesperado e determinado seja integral para que o termo "história" retenha o seu status plural neste momento porque a
a ela. Sob este signo, os fatores de impulsão são uma influência dominante. A diéspora teve várias ressonâncias diferentes nas culturas judaicas dentro e fora da
urgência deles decorrente faz da diáspora mais do que um sinónimo em voga de Europa, tanto antes quanto depois da fundação do Estado de Israel.
peregrinação ou nomadismo. Como as biografias de Equiano e Wheatley sugerem, A percepção de Equiano sobre uma afinidade entre judeus e negros está
a própria vida está em jogo na maneira como a palavra conota fuga após a ameaça por trás do trabalho de muitos pensadores negros modernos do hemisfério ocidental
de violência em vez de experiências de deslocamento decididas livremente. que ansiavam por adaptar a idéia da diãspora à" suas circunstâncias específicas
Escravidão, pogroms, servidão, genocídio e outros terrores inomináveis estiveram no período posterior à escravidão. Muitos deles desenvolveram esquemas
todos presentes na constituição de diãsporas e na reprodução da consciência da conceituais e programas políticos voltados para a afiliação à diéspora (bem como
diáspora na qual se ajusta a identidade, menos na força eqüalizante e pré-democrática sua negação) muito antes de terem encontrado um nome apropriado para a lógica
do território soberano e mais na dinâmica social da lembrança e da comemoração, política e emocional especial que governava essas operações. O trabalho de Edwarcl
definidas por um forte sentido dos perigos envolvidos no esquecimento da localização Wilmot Blyden no final do século XIX representa outro lugar importante de uma
da origem e do processo de uma dispersão plena de lágrimas. transferência intercultural similar. Blyden era um "retornado" à África das Índias
O termo possibilita uma fissura histórica e experiencial entre lugares de Ocidentais Holandesas vindo dos Estados Unidos. Ele discorreu sobre o seu próprio
residência e lugares de pertencimento. Isto por sua vez estabelece uma oposição envolvimento redentor com o Estado-nação livre da Libéria e seus dispositivos
ainda mais profunda. A consciência de afiliação à diãspora encontra-se em oposição educacionais, de acordo com as linhas sugeridas por uma interpretação da história
às estruturas e formas de poder distintivamente modernas, direcionadas pela e da cultura judaicas moldada por uma relação intelectual e pessoal com os judeus
complexidade institucional cios Estados-nação. A identificação da diãspora existe e o judaísmo. Em 1898, impressionado por aquilo que descreveu como "esse
por fora e por vezes em oposição às formas e códigos políticos da cidadania movimento maravilhoso chamado sionismo", ele tentou chamar a atenção de "judeus
moderna. O Estado-nação tem sido regularmente apresentado como o meio pensantes e ilustrados para o grande continente da África - não apenas para suas
institucional capaz de por um ponto final na dispersão da diéspora. Em uma ponta extremidades ao norte e ao sul, ma" para a sua vasta área intertropical'',
do circuito comunicativo, isto deve ser realizado por meio da assimilação daqueles fundamentado na noção de que lá eles encontrariam "aspirações religiosas e
que estavam fora de lugar. Na outra ponta, consegue-se um resultado semelhante espirituais próximas às sua" próprias't."
por meio da expectativa de seu retorno ao lugar de origem. O equilíbrio fundamental
entre natureza e sociedade civil pode então ser restabelecido. Em ambas opções,
é o Estado-nação que impõe um fim abrupto à ordem espacial e temporal da vida
da diãspora. O anseio pela diéspora e a ambivalência em torno dela transformam- 35. Elliot P. Skinner, "The Dialectic berween Diasporas and Home1ands", em Joseph E. Harris, org..
se em um exílio simples e preciso uma vez que exista a possibilidade de uma fácil Global Dímensions ofthe African Díaspora (Howard University Press, 1982).
reconciliação com o lugar de estadia ou o lugar de origem. Algumas entre as 36. Edward Wilmot Blyden, On lhe lewísh Questíon (Lionel Hart and Co., 1898). p.23.
ENTRE CAMPOS :: Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROV

Ao considerarmos anteriormente o poder das raízes e do enraizamento como Se pudermos adotar esta postura analítica mais difícil, o celebrado "efeito
base da identidade, deparamo-nos com invocações de organicidade que forjaram borholeta" - quando forças pequenas, quase insignificantes, podem em desafio às
uma conexão incômoda entre os domínios conflitantes da natureza e da cultura. expectativas convencionais precipitar mudanças maiores e imprevisíveis em outros
Elas fizeram com que a nação e a cidadania parecessem ser fenômenos naturais lugares - torna-se um acontecimento comum. A propagação perfeita de estilos e
em vez de sociais - como que expressões espontâneas de uma distinção palpável hábitos culturais foi considerada radicalmente contingente no momento em que a
numa harmonia interna profunda entre o povo e seus lugares de moradia. A diéspora geografia e a genealogia começaram a incomodar uma a outra. Somos levados
é um meio apropriado para se reavaliar a idéia de uma identidade essencial e rumo aos limites conflituosos da "raça", da etnicidade e da cultura. Quando uma
absoluta precisamente porque ela é incompatível com esse tipo de pensamento diãspora responde a um Estado-nação, inicia-se um conflito entre aqueles que
nacionalista e raciológico. Esta palavra está intimamente associada à idéia de concordam que são mais ou menos o que foram antes, mas que não conseguem
semente para disseminar. Esta herança etimológica é um legado incerto e uma concordar quanto a se o mais ou o menos deve ter primazia nas aval iações históricas
benção imprecisa. Ela nos pede para que tentemos avaliar a importância do processo e políticas contemporâneas.
de dispersão em oposição à suposta uniformidade daquilo que tem se dispersado. O momento reprodutivo da diâspora suscita ainda outras questões incômodas.
A diãspora impõe tensões importantes entre o aqui e o agora, o antes e o depois, Em uma discussão sobre algumas abordagens recentes da idéia de diãspora e sua
entre a semente dentro do saco, do pacote, do bolso e a semente que se espalhou relação com o masculinismo;" Stefan Helmreich identificou os processos de
no chão, no fruto ou no corpo. Ao chamar a atenção tanto para a similaridade no reprodução e transmissão cultural para os quais a diáspora chama a atenção como
interior da diferenciação, quanto para a diferenciação no interior da similaridade, sendo radicalmente definidos por gênero. Ele enfatiza a relação etimológica íntima
a diáspora causa transtornos à sugestão que a identidade cultural e política possa entre a palavra diéspora e a palavra esperma como se o seu elo comum à palavra
ser entendida através da analogia das ervilhas indistinguíveis alojadas nas vagens grega que significa semear e espalhar ainda corrompesse por dentro a aplicação
protetoras do parentesco próximo e do ser de uma subespécie. É possível imaginar contemporânea do conceito. Esta explicação pode ser testada e contextualizada
que um sentido mais complexo e ecologicamente sofisticado de interação entre ao introduzirmos um outro termo familiar, a palavra espório: () vetar unicelular da
organismos e meio-ambientes pode se tornar um recurso para se pensar criticamente reprodução supostamente "assexuada" .38 Poderia esta conexão alternativa, isenta
sobre a identidade? de gênero, complicar a noção de que a diéspora se inscreve como um trepo
Imagine-se um cenário em que sementes similares - mas não exatamente masculinista e que, portanto, não pode se livrar do pântano do androcentrismo,
idênticas - se enraízam em diferentes lugares. Plantas da mesma espécie raramente onde tem sido abrigada por nacionalismos modernos e pelas concepções religiosas
são absolutamente indistinguíveis. A natureza nem sempre produz clones de particularidade étnica, as quais coexistem festivamente com aqueles? Embora
intercambiáveis. Solos, nutrientes, predadores, pragas e polinização variam ainda seja contestada, a diáspora coloca-se à disposição da crítica às sensibilidades
juntamente com o clima imprevisível. As estações mudam. Também mudam os políticas absolutistas, principalmente aquelas que se articulam em tomo dos temas
climas, que podem ser definidos com base em diversas escalas: micro, macro, bem da nação, da "raça" e da etnicidade. Parece ser de uma severidade indevida sugerir
como mezzo. A diéspora fornece pistas e indícios valiosos para a elaboração de que ela esteja mais profundamente contaminada pelas toxinas da dominação
uma ecologia social de identidade e identificação cultural que nos leva para muito masculina do que outros termos heurísticos do vocabulário emergente da teoria
além do dualismo inflexível da genealogia e da geografia. A pressão para se associar, crítica transcultural. Não há motivo para que a descendência através da linhagem
assim como a vontade de lembrar ou de esquecer, pode variar de acordo com
mudanças na atmosfera econômica e polfuca. Ao contrário das marés, o clima não
pode ser previsto com precisão. Em suma, o trabalho requerido para descobrir as 37. Stefan Helmreich, "Kinship, Nation, and Paul Gilroy's Concept of Diáspora", Diaspora 2, 2
origens é mais difícil em alguns lugares e em alguns momentos. (1993), pp.243-249.
38. Lenda Scheibinger, Nature's Body (Beacon Press, 1993).

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GIlROY I

masculina seja privilegiada em relação à dissidência através do princípio Se a nação modema deve ser preparada para a guerra, reproduzir os cidadãos
rizomórfico." A diáspora pode ser usada para invocar a ambos. soldados do futuro não é um processo que possa ser deixado ao acaso ou às
Quando a separação, o tempo e a distância em relação ao ponto de origem, fantasias. Mais uma vez, o ambiente institucional preferencial para esta atividade
ou ao centro de soberania, complicam o simbolismo da reprodução étnica e nacional, disciplinar e gerencial é a farrúlia. A farm1ia é entendida como nada mais do que o
as inquietações quanto às fronteiras e aos limites da similitude podem levar as tijolo essencial da construção e elevação da nação. Esta narrativa de construção
pessoas a buscar segurança na santidade da diferença incorporada. Os novos da nação nos leva até o fascismo e seus mitos distintivos de renascimento após
racismos que codificam a biologia em termos culturais têm sido amalgamados com períodos de fraqueza e decadência." A diãspora desafia esta narrativa ao valorizar
variantes ainda mais recentes, que recrutam o corpo para um serviço disciplinar e os parentescos sub e supranacionais, abrindo espaço para uma relação mais
codificam a particularidade cultural de acordo com uma compreensão das práticas ambivalente em relação aos campos nacionais.
e atributos culturais determinados pelos genes. As diferenças de gênero se tomam Estas tendências não-nacionais impulsionaram outros efeitos desestabí-
extremamente importantes na atividade de construção da nação por serem um lizadores e subversivos. Eles se ampliam quando se acrescenta o conceito de
sinal de uma hierarquia natural irresistível que está no centro da vida cívica. As diáspora em relatos anti-essencialistas de formação de identidade como um processo,
forças ímpias da biopolftica nacionalista intersectam com os corpos das mulheres, empregando-o para desencadear uma mudança decisiva de orientação distanciada
encarregadas da reprodução da diferença étnica absoluta e da continuação das das identidades primordiais estabelecidas alternativamente pela natureza e pela
linhagens de sangue. A integridade da nação se torna a integridade da sua cultura. Em vez disso, ao adotar a diãspora, as teorias de identidade voltam-se
masculinidade. De fato, ela só pode ser uma nação se a versão correta da hierarquia para a contingência, a indeterminação e o conflito. Com a idéia de valorizar a
de gênero tiver sido estabelecida e reproduzida. A família é o principal instrumento diáspora acima da unanimidade coerciva da nação, o conceito se toma explicitamente
desta operação. Ela conecta homens e mulheres, meninos e meninas à eoletividade anti-nacional. Esta mudança liga-se à transformação da idéia unidirecional e corrente
mais ampla segundo a qual eles devem se orientar se quiserem conseguir uma da diãspora como uma forma de dispersão catastrófica, porém, simples, dotada de
pátria. O ministro Louis Farrakhan da Nação do Islã exemplificou o poder persistente um momento original identificável e reversível- o local do trauma - num sentido
deste tipo de pensamento sobre a nação e o gênero em sua descrição da passeata bem mais complexo. A diaspora pode ser usada para instaurar com urgência um
de homens afro-americanos a Washington em 1995. Ele considerou aquele evento modelo "caótico" no qual pontos de atração estranhos e mutantes são os únicos
como um ato de guerra em que se poderia aferir a condição de sua masculinidade aspectos visíveis de uma frágil estabilidade em meio à turbulência social e cultural.
nacional alternativa: A importância destes nódulos é mal compreendida se forem identificados
como fenômenos locais fixos. Eles aparecem de modo imprevisto e quando a
Nenhuma nação ganha qualquerrespeito se você vai à guerra e coloca suas mulheres diáspora se toma um conceito, a teia ou a rede que eles nos deixam perceber pode
nas trincheiras, enquanto os homens ficam em casa cozinhando. Toda nação que demarcar novos entendimentos do eu, da similitude e da solidariedade. Entretanto,
vai à guerra é um teste à fibra da masculinidade daquela nação. E, de fato, ir a
não são estágios sucessivos de um relato genealógico de relações de parentesco-
Washington para exigir justiça para o nosso povo é como ir à guerra. 411
equivalentes aos galhos de uma única árvore de família. Um não gera o outro
numa seqüência confortadora de teleologia étnica; nem são tampouco pontos de
39. "Ser rizomórfico é produzir esremas e filamentos que parecem ser raízes ou, melhor ainda, parada, numa jornada linear rumo à destinação que uma identidade completa possa
conectar com eles através da penetração do tronco, mas colocá-los para novos usos. Estamos representar. Eles sugerem um modo diferente de conexão das formas de atuação
cansados das árvores. Devemos parar de acreditar em árvores, raizes e radículas. Elas já nos micropolltica praticadas em culturas e em movimentos de resistência e
fizeram sofrer demais. Toda a cultura arborescente está nelas fundada, da biologia à lingüfstica".
Gilles Delenze e Pelix Guattari, "Rhizome", em A Thousand Plateaus (University of Minnesota
Presa, 1998), p.IS.
40. Louis Parrakhan, "A Cal! to March", Emerge, vol. 7, no.l (outubro 1995), p.66. 41. Rnger Griffin, The Nature of Fascism (Routledge, J993).

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transformação, bem como em outros processos políticos, visíveis em uma escala da diáspora e da poética da diáspora. O mesmo está presente, mas de que maneira
maior e diferente. Sua pluralidade e regionalismo valorizam algo mais do que uma podemos imaginá-lo como alguma outra coisa que não seja uma essência que gera
condição prolongada de luto social em relação às rupturas de exílio, perda, o meramente acidental? A iteração é a chave deste processo. O mesmo é retido
brutalidade, cstresse e separação forçada. Eles acentuam uma disposição mais sem precisar ser reificado. Ele é permanentemente reprocessado. Ele é mantido
indeterminada e, como alguns diriam, modernista, na qual a alienação natal e o e modificado naquilo que se torna uma tradição decididamente não tradicional, pois
estranhamento cultural podem instigar a reflexão e criar prazer bem como causar não se trata de tradição como uma repetição fechada ou simples. Sempre promíscua,
uma ansiedade sobre a coerência da nação e a estabilidade do seu cerne étnico a diáspora e a política de comemoração definida por ela nos desafiam a apreender
imaginário. Formas contrastantes de ação política emergiram para criar novas formas mutáveis que podem redefinir a idéia de cultura através de uma reconciliação
possibilidades e novos prazeres, quando as pessoas dispersadas reconhecem os com o movimento e COm a variação complexa e dinâmica.
efeitos do deslocamento espacial na transformação da questão da origem em algo Os afiliados atuais da tradição que conta com Equiano e Wheatley como
problemático. Essas pessoas podem vir a aceitar a possibilidade de que não são ancestrais imaginários encontram-se em um circuito económico, cultural e político
mais o que já foram um dia, não sendo possível, portanto, voltar as fitas da sua muito diferente - uma diáspora diferente - em relação àquela encontrada por
história cultural. A idéia da diãspora estimula a teoria crítica a proceder com rigor, seus predecessores. Seres humanos vivos já não são mais uma mercadoria e a
porém de maneira cautelosa, a fim de não privilegiar o Estado-nação moderno e dispersão dos negros ocorreu ainda com mais intensidade na Europa, onde os
sua ordem institucional em detrimento dos padrões subnacionais e supranacionais elementos do processo de disseminação repetiram-se outra vez com a chegada
de poder, comunicação e conflito que eles se esforçam por disciplinar, regular e de povos caribenhos e outros grupos de ex-colonos no período pós-1945. Várias
governar. O próprio conceito de espaço é transformado quando é visto em termos gerações de negros têm nascido na Europa e sua identificação com o continente
do circuito ex-cêntrico comunicativo que capacitou as populações dispersas a africano tornou-se ainda mais atenuada e remota, sobretudo após o fim das guerras
dialogarem, interagirem e, em tempos mais recentes, até mesmo sincronizarem anti-coloniais. É difícil manter tanto a memória da escravidão quanto uma
elementos significativos de suas vidas sociais e culturais. disposição para com a identidade que deriva de origens africanas, uma vez que a
Aquilo que o escritor afro-americano Leroi Jones chamou anteriormente de ruptura causada pela migração intervém e encena seus próprios testes de
"o mesmo mutante?" acena com um tema valioso com o qual se pode acrescentar pertencimento. No entanto, a noção de uma distintiva identidade africana derivada
algo à idéia da diáspora. Nem o essencialismo mecanicista que é por demais não definhou e os frutos morais e políticos da vida negra no hemisfério ocidental
fastidioso para reconhecer a possibilidade de diferença no interior da similitude, têm se espalhado sistematicamente entre um número cada vez maior de pessoas
nem a alternativa preguiçosa que anima um tipo supostamente estratégico de em diferentes áreas.
essencialismo podem fornecer as chaves do funcionamento desordenado das Os músicos, dançarinos e artistas negros do Novo Mundo difundiram estas
identidades da diãspora. Estas são fonnas culturais criolizadas, sincretizadas, reflexões, estilos e prazeres através dos recursos institucionais das indústrias
hibridizadas e cronicamente impuras, sobretudo se já tiverem estado alguma vez culturais colonizadas e capturadas por eles. Essas mfdias, principalmente a gravação
enraizadas na cumplicidade do terror racionalizado e da razão racializada. Este de som, têm sido apropriadas às vezes com propósitos subversivos de protesto e
mesmo mutante não é um tipo de essência invariável que acaba encerrada em afirmação. Os códigos vernaculares e as culturas expressivas constituídas a partir
seguida em uma aparência externa que está sempre a mudar de forma e com a daquele novo começo de vida decorrente da escravidão racial reapareceram no
qual é eventualmente associada. Não é o sinal de um interior integral ininterrupto, centro de um fenómeno global que tem em geral ido além de noções inocentes de
protegido por uma casca camuflada. Esta expressão nomeia o problema da política mero entretenimento - tal como a complexa poesia de Wheatley o fez muito tempo
atrás. O que se entende de fonna errônea como sendo simples mercadorias culturais
tem servido para transmitir uma poderosa observação ética e política sobre direitos,
42. Leroi Jones, Black Müsic (Quill, 1967), pp. 180-211. justiça e democracia que enuncia, mas também transcende a crítica da tipologia

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racial modema e as ideologias de supremacia branca. A história viva dos negros do Unidos, Canadá, Reino Unido, França, Itália, Alemanha, Espanha, Escandinávia,
Novo Mundo dotou esta expressiva tradição de flexibilidade e durabilidade. Irlanda, Holanda, Bélgica, Suíça, Japão, Austrália, Nova Zelândia, Costa do Marfim
Bob Marley, cujas gravações continuam vendendo pelo mundo todo, passada e Gabão. Vendas enormes também foram registradas em mercados onde a banda
mais de uma década desde a sua morte, permite aqui um exemplo final apropriado. não se apresentou, sobretudo no Brasil, Senegal, Gana, Nigéria, Taiwan e Filipinas.
Sua presença duradoura na cultura popular globalizada é um alerta importante do A estatura global de Marley teve por base o trabalho árduo e exigente dos
poder das tecnologias que embasam a cultura de simulação. Esses mesmos recursos circuitos transcontinentais, assim como as qualidades poéticas investidas na
tecnológicos subjugaram os limites da natureza, dotando Marley de uma vida virtual linguagem do sofrimento e da moderação que ele tomou universal. Em conclusão,
após a morte na qual sua popularidade pode continuar a crescer sem estar presa a sua imagem transnacional é um convite para mais uma rodada de reflexões sobre
qualquer resíduo político embaraçoso que o possa tomar uma figura ameaçadora o status da identidade e as escalas conflitantes em que a similaridade, a subjetividade
ou atemorizante. Mas há algo mais em termos desta popularidade mundial do que e a solidariedade podem ser imaginadas. Conectar-se com ele através das teias da
uma imortalidade baseada em vídeos engenhosos e uma reconstrução evidente da cultura popular planetária pode ser pensado como um estágio adicional na evolução
imagem de Bob Marley, despida da maior parte de seu etiopianismo militante - não-progressiva da diáspora na era digital. Reconhecer isto significa que a
mais um povo eleito e outra terra prometida para se juntar àqueles já examinados investigação deve tirar o foco das noções de identidade fixa - que como já
acima. constatamos estão estropiadas - para centrá-lo nos processos de identificação.
A vida e o trabalho de Bob abrem-se ao estudo da identidade da diãspora As pessoas conectam a si mesmas e suas esperanças à figura de Bob Marley
pós-modema. Eles nos ajudam a perceber o funcionamento daqueles circuitos como homem.jamaicano, caribenho, africano ou um artista pau-africano? Ele seria,
culturais complexos que transformaram um padrão de dispersão simples e de alguma maneira, todas as alternativas acima e, mais do que isso, uma voz: rebelde
unidirecional em uma rede de teias constituída através de múltiplos pontos de do mundo pobre e subdesenvolvido que se fez audível no cerne da vida social e
interseção. A sua performance histórica na cerimônia de independência do económica superdesenvolvida chamada por ele de Babilônia? Em que nível de
Zimbábue, em 1980, simbolizou o religamento parcial com as origens africanas que análise cultural podemos entender sua reconciliação de tecnologias modernas e
permeia o anseio da diáspora. Assim como muitos outros, ele também não foi para pós-modernas com forças místicas anti-modemas? Como podemos combinar seu
a África para construir o seu lar. Em vez disso, ele optou por um comprometimento trabalho enquanto um intelectual, um pensador, com sua imagem de figura primitiva,
cosmopolita mais difícil e uma forma diferente de solidariedade e de identificação hipermasculina: um selvagem nem tão bom, encoberto pela fumaça de ganga
que não requeria a sua presença física naquele continente, tal como muitos outros [maconha]? Estamos preparados agora, tantos anos após sua morte e mitificação,
pau-africanistas proeminentes o fizeram antes e desde então. para deixar de lado as novas formas de interpretação evidentemente promovidas
O triunfo de Bob marca não apenas o começo daquilo que passou a ser sob a constelação de seu estrelato c vê-lo como uma figura mundial, cuja carreira
conhecido como "world musíc" ou "world beat", uma categoria de marketing atravessou continentes e cuja postura política revolucionária ganhou adeptos devido
de importância crescente que ajuda a situar a transformação e o possível fim de à sua capacidade de imaginar o fim do capitalismo do mesmo jeito que imaginava
uma cultura jovem guiada pela música. Sua música foi construída a partir do poder o fim do mundo?
aparentemente universal de uma linguagem poética e política que se difundiu a Na imagem de Bob Marley, há algo mais do que a domesticação do outro e
partir de suas raízes para encontrar novos públicos sequiosos de suas reflexões. a acomodação do terceiromundisrno insubordinado ao multiculturalismo de
Bob tomou-se, de fato, uma figura planetária. Sua música foi pirateada na Europa corporações. Algo perdura mesmo quando descartamos a apresentação da
Oriental e acabou entremeada com o anseio por liberdade e direitos em toda a diferença como espetáculo e como poderoso mecanismo de marketing nos negócios
África, no Pacífico e na América Latina. Apreendida na forma de mercadoria, globais de venda de discos, fitas, CDs, vídeos e mercadorias associadas. Por maior
sua música viajou e encontrou novos públicos, assim como aconteceu com sua que seja o talento de Bob, as inovações formais da sua música devem ocupar um
banda. Entre 1976 e 1980, eles atravessaram o planeta, apresentando-se nos Estados segundo lugar em relação à sua importância como o lugar de uma revolução na

160 I 161 I
ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça I

estrutura dos mercados globais para estas mercadorias culturais. O glamour do


primitivo foi acionado para animar sua imagem e aumentar o poder de sedução da
sua música. Essa mágica moderna exigia que Bob fosse purificado, simplificado,
nacionalizado e particularizado. Uma aura de autenticidade foi manufaturada não
para validar suas aspirações políticas ou status de rebelde, mas para investir sua
música de uma aura de transgressão cuidadosamente calculada que ainda a faz
vendável e atraente em todo o planeta. A alteridade foi invocada e funciona de
modo a aumentar o vácuo entre a sua memória e suas remotas audiências de tipo
"crossover" [para além da linha de cor], além de administrar este vazio II
experimental de modo que os prazeres de consumir a ele e ao seu trabalho sejam FASCISMO, CORPORIFICAÇÃO E
de alguma maneira ampliados. CONSERVADORISMO REVOLUCIONÁRIO
Foi só recentemente que a figura até então ignorada do pai branco de Bob
foi trazida à tona, acenada como a chave para se interpretar as realizações de seu O que proponho é nada menos que a libertação
filho c compreender a motivação patológica para o sucesso que o tirou de do homem de cor em relação a ele mesmo.
Trenchtown. Nesse sentido, já terminou a fase em que Bob foi representado como Caminharemos muito lentamente porque há dois campos:
exótico e perigoso. Podemos observar um Bob Marley pródigo, benigno e quase o branco e o negro.
infantil sendo trazido de volta para o seio de sua família empresarial. Pode-se
reconhecer tudo isso. Mas a utopia obstinada projetada através da música e da FRANTZ FANON
imaginação anti-colonial de Bob Marley permanece como algo que não é delimitado
por um invólucro étnico proibitivo, ou por um "alerta de saúde" racial em que os
encontros com a alteridade apresentam-se como perigosos ao bem estar de alguém
com sua própria identidade singular. A música e a competência com os instrumentos
precisam ser aprendidas e praticadas antes que possam se tomar meios convincentes
de comunicação. Isto deveria restringir o seu papel como signos de particularidade
autêntica e absoluta. É possível que na imagem maculada, mas ainda assim poderosa
do estrelato global de Bob Marley, possamos discernir o poder da identidade baseada
não numa similaridade mesquinha e pressuposta, mas na vontade, inclinação,
disposição e afinidade. O poder translocal de sua voz dissidente invoca estas
possibilidades c um parentesco escolhido e reconhecidamente político que é ainda
mais precioso devido a sua distância das suposições mutiladoras da solidariedade
automática fundada em vínculos de sangue ou de terra.

162
,
4
HITLER VESTIA CÁQUI: !CONES,
PROPAGANDA E POLÍTICA ESTÉTICA

A não análise do fascismo é um dos fatos políticos importantes dos últimos trinta
anos. Isto permite que o fascismo seja usado como um significante flutuante, cuja
função é essencialmente aquela da denúncia.
MICHELfDUCAULT

OUé certo que é preciso estudar o papel do esporte... O esporte é ambíguo. Por um lado,
ele pode ter um efeito anti-bárbaro e ann-sádico por meio do jogo justo, um espírito de
cortesia, e de consideração pelo fraco. Por outro lado, em muitas de suas variedades
e práticas, ele pode promover a agressão, a brutalidade e o sadismo, sobretudo em
pessoas que não se expõem ao esforço e à disciplina requeridas pelos esportes, mas
em vez disso apenas assistem: são aqueles que em geral gritam das arquibancadas.

ADORNO

o SONHO moderno de organizar a comunidade nacional em um campo


fortificado, disciplinado por meio de regras marciais e armado contra as investidas
de outras unidades expansionistas semelhantes, foi apenas um possível cenário
latente na formação e na consolidação do Estado-nação burguês. A história de
lutas ern torno da extensão e do status da "raça" e de sua relação com as idéias
de nação e de cultura nas quais ela acabou enredada não pode se permitir minimizar
o impacto de forças compensatórias menos militaristas. Muitos dos efeitos iliberais,
injustos e brutais da hierarquia racial têm sido identificados e denunciados. É verdade
que as opiniões audíveis de uma minoria apresentaram de maneira intermitente a
democracia modema como incompatível com as acepções rígidas da raciologia,
mas aquelas forças, em especial nos períodos imperial e colonial, nem sempre
foram persuasivas, para não dizer, vitoriosas. I

1. Douglas A. Lorirner, Colour: Class and lhe viaoríans: English Attitudes to the Negro ln the Mid-
Nlneteenth Century (Leicester University Press, 1978), em especial capítulos 7 e 9.
ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascinio da Raça PAUL GILROY I

Vimos que as melhores intenções cosmopolitas vindas de uma posição sentimento de diferenças culturais não substituiu inteiramente os argumentos
iluminista podiam ser solapadas quando confrontadas com a diferença racial biológicos enquanto a chave-explicativa para se compreender a sorte das recentes
aparentemente imutável. Elas se encontravam comprometidas devido à ambigüidade nações imperiais racializadas, a degeneração como resultado seja dos climas tórridos,
e ao conflito com relação aos limites que definiriam a humanidade, sendo derrotadas seja de uma superexposição à fascinante diferença nativa, colocava em constante
em geral pelo pensamento defensor da supremacia branca, o que levou a maioria risco a particularidade européia e suas capacidades reprodutívas. De volta ao lar,
das versões iluministas da razão a se tornar cúmplice ativa do projeto político na outra ponta de uma corrente cultural cada vez mais ordenada e substancial, a
voltado para a classificação do mundo com base na "raça" e para a leitura do noção de uma missão imperial fornecia a medida mais significativa para se avaliar
movimento da história através de categorias racializadas.s Aliada a um fraco sentido a integridade da nação.
de unidade da vida humana, esta combinação seria um legado dúbio dos sucessores Para que esses poderosos, porém precários sistemas planetários perdurassem,
liberais e socialistas do Iluminismo. De fato, poderíamos dizer que foi somente eles precisavam investir na institucionalização, codificação e purificação de suas
com a derrota dos nazistas e de seus aliados em meados do século XX que a culturas nacionais expandidas em termos imperiais. Os arquitetos e administradores
raciologia inteiramente respeitável do período anterior foi empurrada em termos desse processo sentiam que a estabilidade e a continuidade dependiam da transmissão
sumários para fora dos limites da aceitabilidade. Antes disso, mesmo vozes organizada dos motivos, hábitos e mentalidades culturais-chave para colonizadores
dissidentes da má administração imperial e do expansionismo colonial tinham de distantes, e para um novo público dentro do país que desenvolveria lima relação
arrolar as mesmas idéias antropológicas de "raça", nação e cultura que haviam com o projeto imperial como apoiadores e como colonizadores em potencial, e, é
aclamado o poder imperial, dirigindo-as para fins mais eqüitativos em oposição à claro, para uma proporção limitada, mas significativa de colonizados a quem era
lógica mesma do seu entrelaçamento enganoso.' preciso permitir um pé nas operações de acordos manifestamente brutais e
É verdade que a operação necessariamente desordenada dos sistemas exploradores. O lugar de literaturas imaginativas nesse projeto educacional e
imperiais existentes subverteu a idéia de nações como unidades fechadas e governamental abrangente recebeu recentemente um tratamento extensivo e mesmo
racializadas, integradas pelas suas culturas imaculadas específicas. Esta imagem desproporcional. Ô Tem-se dado uma atenção menos substancial às maneiras
da nação, e por implicação, de suas extensões coloniais, foi projetada de início por intencionais menos óbvias com que a cultura material e os desenvolvimentos
figuras como Ernst Renan e Matthew Arnold. Sua elaboração numa ciência racial tecnológicos de fins do século XIX - novos objetos, mercadorias, dispositivos e
desenvolvida deve-se a Houston Stewart Chamberlain e seus pares preto-fascistas. procedimentos, incluindo-se cartões postais, pacotes de cigarros, a revolução na
A persistente recusa da vida colonial em se conformar com o meticuloso padrão impressão e empacotamento em cores a baixo custo - propiciaram novas e
prescrito tem sido confirmada por numerosos estudos sobre a sexualidade e o estimulantes oportunidades comunicativas e veículos culturais para uma
império que revelam os malogros transgressivos tanto do colonizador como do fantasmagoria imperial."
colonizado em respeitar as obrigações limitativas impostas sobre a sua conduta
pelas constrições do pensamento de raça." Mesmo nos casos em que um forte

Fernando Henriques, Children 0./Calíban (Secker, 1974); Ann Laura Stoler, "Carnal Knowledgc
2. Leon Poliakov, The Aryan Myth: A History of Racist and Nationalist ldeas in Europe, tradução de and Imperial Pnwer: Gender, Race and Morality in Colonial Asia", in Micacla di Leonardo, org.,
Edmund Howard (Chatlo and Windus, 1974); Ivan Hannaford, Race: The History ofanldea in the Gender ai the Crossroads of Knowledge (University of Califoruia Press, 1991); Christopher
West (Johns Hopkins, 1996); Eric Voegelin, "lhe Growth uf the Race Idea", Review of Politics Lenc, The Ruling Passíon (Duke Univcrsity Prese, J(95): Anton Gill, Ruling Passions (BBC
(julho de 1940), pp. 283-3J7; Petcr Hulme, "The Hidden Hand of Nature", in The Enlightenment Book, 1995). -
and its Shadows, org. HuIme e L. Jordanova (Routledge, 1991), 5. O trabalho marcante e influente de Edward Said abriu espaço para uma série de imitações inferiores
3. George W. Stocking, Jr., org., volksgeíst as Method and Ethic (Wiseonsin University Press, 1996). em que a reflexão crítica não se faz acompanhar de sensibilidades éticas e políticas fundamentadas.
4, Ronald Hyam, Empire and Sexuality: Thc British Experience (University of Manchester Prcss, 6. Annie Combes, The Remvention ofAfríca (Yale University Press, 1994); James R. Ryan, Pícturing
1990); K. Ballhàtchet, Race, Sex and Ctoss under the Rai (Weidenfcld and Nicholson, 1980); the Empire: Photograpky and lhe Visua/ization ofme British Empíre (Reaktion Books, 1997).

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascinio da Raça PAUL G1lROY

Entre essas oportunidades havia uma cultura visual muito rica que disseminou entusiástico, foi instado a encontrar uma voz patriótica convincente. A cultura
em larga escala um conjunto de imagens militaristas e patrióticas do império e da visual emergente de anúncios e consumo de mercadorias complementou esses
colónia, celebrando e criando um estimulante mundo de signos em que a diferença desenvolvimentos. Com ela introduziu-se a memória oficial da missão imperial nas
racial era fundamental em termos absolutos." Enquanto a fotografia representava frestas mais ínfimas da vida cotidiana. O império já não estava exclusivamente "lá
um papel especial na consolidação e popularização da antropologia física de raça, fora". Ele chegou em casa, e assim "internalizado" condicionou a vida social e
não seria exagero afirmar que pelo menos na Grã-Breranha tomou-se impossível cultural no coração do sistema imperial. A atuação econônúca e ética das mulheres
comprar uma caixa de chá, açúcar, sabonete ou biscoitos sem se deparar com nos primeiros protestos de consumidores contra os produtos do trabalho escravo já
manifestações pequenas, porém potentes, de um glorificado ideal imperial. As havia demonstrado que a moralidade de "raça" podia se tornar um assunto privado
sementes do que se tornaria depois a ciência da propaganda, uma inovação urgente. Inquietações semelhantes emergiam agora no centro ritual e emocional
comunicativa que floresceu durante a guerra de 1914-1918, foram plantadas já da cultura pública orquestrada por um tipo diferente de Estado com recursos nunca
neste momento. Do mesmo modo, é muito significativo que a orientação sistemática vistos de violência, comunicação e informação à sua disposição. O célebre poema
e a manipulação da opinião pública britânica sobre os prazeres da aventura imperial "Recessional'' [Hino de recesso do culto divino], que conclui o livro de 1903 de
tenham feito uma contribuição tão vasta à aceitação política popular de "raça" e Kipling, The Five Nations [As Cinco Nações], destila o sagrado sentimento
nação. Um novo conjunto de relações de classe e de status foi então costurado de nacionalista que governava as aspirações educacionais desta propaganda imperial.
acordo com as especificações do sistema imperial. No empacotamento de chocolate É significativo que as suas palavras fossem lançadas como uma mjunção fúnebre
e de chá, em museus, livros didáticos, mapas, shows de lanterna mágica, exposições, contra o esquecimento:
revistas e outros tipos de literatura ligeira, o patriotismo e o nacionalismo imperial
eram deliberadamente manipulados em moldes sedutores e estimulantes." Deus de nossos pais, há muito conhecido,
Esta fantasmagoria imperial apoiava-se na linguagem e na lógica da raciologia Senhor de nossa vasta linha de batalha,
em suas encarnações pós-darwinianas." Ela era defendida e energizada pela Sob euja Mão tremenda conservamos
O domínio sobre a palmeira e o pinheiro-
emergência de novos gêneros e formas populares, muitos dos quais voltavam-se
Senhor Deus das Hostes, esteja ainda conosco,
para a vida militar das colónias. Na Inglaterra, a voz vernacular de Rudyard Kipling Para que não esqueçamos - para que não esqueçamos!
com suas "baladas de caserna" e "canções de serviço" ainda é um forte lembrete 10
de que na África e na Índia um proletariado aquiescente, porém nem sempre Muitos escritos contemporâneos sobre a vida colonial têm abordado a
discussão sobre os complexos mecanismos de interdependência e sincretismo que
caracterizaram inevitavelmente a vida social e cultural das colõnias. Contudo, ter
7. John M. MacKenzie, Propaganda and Empire (Univcrsity of Manchester Press, 1984); J. W. M.
Hitchberger, lmages ofthe Anny: The Military in British Art, 1815,1914 (University of Manchester como foco exclusivo os importantes mecanismos da hibridização cultural e intelectual
Press, 1988). significa passar por cima do ponto-chave de Kipling: o fato básico de que esses
8. Sophie D. Coe e Michael D. Coe, The True History ofChocoíate (Thames and Hudson, 1996),p. 244. impérios eram estruturas militares e militarizantes. O entrelaçamento de culturas,
9. Greta .lones, Social Darwinism and English Thought: The Interaction betwecn. Biological and
Social Theory (Harvester Press, 1980). sensibilidades e idéias não era somente um aspecto da vida das próprias colónias.
10. Rudyard Kipling, The Seven Seas (Methuen, 1897). Estes padrões não se confinam à Grã- Também é possível perceber processos relacionados e equivalentes em que o
Bretanha. Os romances alemães que abordam a supressão do levante dos hererô da África do domínio colonial, os estados de espírito e as mentalidades geravam impacto na vida
Sudoeste são também um bom exemplo: ver Gustav Frenssen, Peter Moors Fahrt nach Südwest:
Ein Feldugs-bericht (Thousand, Berlin, 1936 [1907J: e Hans Grimm, Sudafnkanische Novelten das metrópoles. A propaganda imperial ajudou a reconstituir a relação entre as
(Frankfurt/Main, 1913). No cenário francês, os romances de Ernest psichari, neto de Rcnan, tropas e o conjunto dos cidadãos num novo molde que anulava os códigos polí~i~os
oferecem um bom exemplo comparativo. Todos estes e muitos trabalhos similares são discutidos e as obrigações morais do passado. Ela reinventou a idéia da aventura militar
por Hugh Ridley em lmages of Imperial Rule (Croom Hclm, 1983).
como uma potente fonte de romance, prazer e fantasia, no momento mesmo em

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROV

que as administrações das colónias reescreviam as regras da soldadesca útil. Todos diretor do Instituto Kaiser Wilhelm de Antropologia, Genética e Eugenia e autor de
esses processos inter-relacionados serviram de suporte à aceitação da "raça". A The Rehoboth Bastaras and the Problem af Miscegenation among Humans [Os
questão central dominante prefigurada por eles é a possibilidade de uma relação Bastardos Rehoboth e o Problema da Miscigenação entre Humanos], publicado em
significativa entre a eventual brutalidade genocida das colónias e o genocídio nazista 19 J 3 e que se constituiu numa notável conttibuição à aplicação da genética mendeliana
ocorrido depois na Europa. às populações humanas. Fischer desenvolveu os trabalhos de campo de seu estudo
Infelizmente, não é sempre que as histórias contemporâneas do império, da pioneiro na colónia alemã da África do Sudoeste em 1908 - um ano após a derrota
guerra e do militarismo são adequadas para se abordar esta importante questão. dos hercrós. Seu objeto foi definido por meio de um estudo dos resultados da
Quando se chega à questão do impacto da história colonial, essas histórias nem intermistura racial entre as populações holandesa e hotentote. O impacto de seu
sempre se detém na questão da diferença racializada em termos substanciais, ou trabalho seria sentido mais tarde na legislação racial decretada pelos nazistas.
com profundidade e seriedade suficientes. É possível que elas nem mesmo A partir deste começo auspicioso, a carreira de Fischer que corre em paralelo
reconheçam o lugar central da "raça" como um conceito dinâmico político, histórico com a odisséia profissional de seu querido amigo Martin Heidegger de várias
e económico ao longo deste período. A obrigação rígida de se manter fronteiras maneiras (a começar pelo seu papel em expulsar os judeus da mais prestigiosa
entre subdisciplinas definidas e compartimentadas em termos geográficos toma universidade da Alemanha), culminou com a sua nomeação pelo nazismo para o
este problema mais complicado, acarretando um prejuízo mais pesado em algumas cargo de reitor da Universidade de Berlim em 1933, e também para missões como
áreas de estudo do que em outras. A antropologia, por exemplo, tem precisado a de julgar "a cabeça nórdica ideal" em um concurso organizado por revistas
considerar as suas próprias contribuições à ponte entre a política colonial e a política populares de antropologia. Tempos depois ele empregaria a mesma capacitação
e prática domésticas com maior envolvimento do que outras disciplinas. O trabalho científica no treinamento de médicos da SS responsáveis pela seleção de pessoas
paciente e exemplar de George Stocking e de outros colocou a dinâmica da sociedade dos campos de concentração nas áreas de antropologia física e ciência racial no
colonial precisamente no meio da história de sua disciplina, sendo agora difícil Instituto Kaiser Wilhelm, assim como em seus deveres como juiz no Tribunal de
negar que as variações no âmbito e nas sinas dos sistemas imperiais da Europa Apelação de Saúde Genética. Numa ação conjunta com o seu colega mais
não aferassem o desenvolvimento e a institucionalização do conhecimento científico conhecido Hans Gunther e vários outros luminares da raciclogia nazista, Fischer
e acadêmico em diferentes tradições nacionais. também ajudou a organizar a avaliação antropológica e a subseqüente esterilização
A perda das colónias alemãs depois de 1918 fez com que a ciência racial secreta dos "Rheinlandbastarde", os filhos mestiços de mulheres alemãs com
alemã se voltasse para uma direção distintiva devido à diminuição de oportunidades membros das tropas coloniais francesas que haviam constituído o exército de
para se estudar os povos coloniais de uma sti cartada. A própria história da ocupação do Rheinland após 1918. 12 É significativo que Fischer não tenha querido
antropologia alemã, que tinha uma ligação próxima com o desenvolvimento da
12. Informações mais detalhadas sobre Fischer podem ser encontradas no trabalho marcante e inspirador
higiene racial, aponta para aquilo que se pode considerar como um interessante
de Max Weinreich e daqueles pesquisadores que seguiram seus passos: Paul Weindling, Sheila
caso prima faeie a respeito da importância da raciologia enquanto vínculo crítico Faith Weiss, e em especial Robert Proctor. Ver o ensaio extraordinário de Prnctor "From
entre a administração colonial e a subseqüente direção catastrófica da política Anthropologie to Rassenkunde in the German Anthropological Tradirion'', ín George W. Stocking,
org., Rimes, Bodies, Behaviour: Essays on. Bíological Anthropulogy (University of wísconsín
social genocida do nazismo. Uma figura fundamental no estabelecimento daquela
Press, 1988); e seu livro Racial H)'giene: Medicine under the Nazis (Harvard University Press,
conexão foi Eugen Fischer, personalidade proeminente no panteão intelectual da 1988); Paul Weindling, Health, Race and German Poiitícs between Nationai Uníficaüon and
academia nazista. Era o mais conhecido antropólogo e especialista em "mistura de Naztsm, 1870-1945 (Cambridge University Press, 1988); Sheila Faith Weiss, "The Race-Hygiene
Movement in Germany", Osiris (2nd séries), 3 (1987), pp. 193-236. Ver também Rosemarie K.
raça" de seu país durante o período entre guerras. [[ É lembrado agora como o
Lester, "Blaeks in Gcrmany and German Blacks: A Little Known Aspect of Black History", in
Reinhold Grimm e Josr Hermand, orgs., Blacks and German Cuiture (Unlversity of Wisconsin
11. Max.Weinreich, Hítler's Professors: The Par! of Scholarship ln Germany's Crimes against The Press, 1986); c Rclner Pommerin, Sterilisícrung der Rhelnland bastorde: Das Schiksa! einer
Iewish. Peopie (Yiddish Scientif1c Insuture, 1946). farbigen deutschen Minderheil, 1918·/937 (Droste, 1979).

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY I

se tomar um membro formal do Partido Nazista até 1940. Benno Müller Hill, outro sistema imperial." O estudo dos impérios da Europa de Victor Kiernan, que inclui
rigoroso e eminente historiador da ciência racial, apresentou num apêndice de seu alguns dados preliminares em matéria da genealogia de uma importante inovação
estudo clássico Ciência Assassina, uma série de conversas com figuras dessa colonial, a bala dumdum, é uma exceção parcial a este lamentável e persistente
estranha subcultura intelectual. Uma das pessoas com quem ele conversou foi padrão.'? Um outro exemplo nos vem do clássico estudo histórico de John Ellis
Gertrnd, filha de Fischer. Ela negou o anti-semitismo de seu pai, revelou a interessante sobre o impacto da metralhadora. IS Ellis integra narrativas culturais e
informação de que Heidegger o visitou com regularidade até a sua morte, e explicou tecnocicntíficas com maestria. Ele vincula um reJato do impacto destes meios
que tendo conservado a lucidez até o final de seus dias, "ele pensou muito sobre a revolucionários de matança industrializada às idéias sobre raça, nação e império.
história do homem branco na África". 13 Seu livro é essencial devido à maneira com que ele expõe a discrepância entre as
As deficiências mais típicas do conhecimento acadêmico histórico atitudes assumidas em guerras coloniais para desdobrar o poder de transação da
contemporâneo em matéria de raça constituem uma forma de visão dentro de morte advindo da metralhadora contra as "espécies inferiores sem o apoio na lei"
um túnel. A sua gravidade pode ser avaliada no modo como um livro de valor e as respostas muito distintas em relação ao emprego dela em cenários europeus,
inestimável como o de Daniel Pick, com suas reflexões sobre a racionalização onde aquela arma poderia tão-somente violar noções de humanidade e de jogos
da matança na época modema, deixa de fazer qualquer menção específica aos justos que haviam caracterizado as fases iniciais do pensamento sobre a conduta
conflitos imperiais e coloniais em que se decidiu não aplicar as regras da honrada das guerras. O relato de Ellis se interrompe estranhamente sem comentar
Convenção de Genebra, ou então no caso da brilhante exposição geral da o ponto em que se ultrapassou o limite entre os brancos e o resto, tendo a
Wehnnacht e do novo tipo de guerra desenvolvida na frente de batalha russa em metralhadora sido empunhada dentro das fronteiras européias contra os habitantes
que nem mesmo se questiona se a conduta chocante da Alemanha naquela locais que, assim como tantas outras vítimas do império antes deles, foram destituídos
campanha militar poderia ter tido um precedente na atividadc colonial." Se pela raciologia de seu precioso status de seres humanos, apesar de sua diferença
antropólogos e eminentes professores como Fischer fizeram uso de suas ser menor em termos da nova norma ariana.
experiências coloniais em arividades posteriores dentro da Europa, por que os Em minha opinião, o papel recorrente do pensamento sistemático de raça
militares não teriam feito o mesmo? A possibilidade de quaisquer vínculos não em legitimar e racionalizar casos posteriores de matança industrializada não tem
precisa, é claro, ser abordada exclusivamente de um modo negativo. Poderíamos sido mera coincidência, ou uma simples conseqüência do papel semelhante
também nos perguntar se no momento em que os nazistas tomaram o poder desempenhado por ele em manifestações coloniais anteriores com a mesma
estava ainda minimamente viva a opinião política e religiosa que protestara contra patologia geral. Embora o simples fato desta recorrência deva suscitar questões
as tentativas vigorosas, porém controversas, do General von Trotha de exterminar extremamente importantes, isto não tem ocorrido com freqüência, em especial
o povo hererõ mantido por ele sob "custódia proterora'' .15 quando os analistas se tornam tão habituados à presença da divisão racial e da sua
Em sua maioria, os poucos estudos preciosos sobre o poder tecnológico e suposta naturalidade a ponto de eles serem incapazes de perceber o seu impacto
militar em estabelecimentos coloniais também não fazem mais do que tentativas singular enquanto meio de integração e divisão espiritual e política. Qual foi a
mínimas de restabelecer uma ligação entre suas inegáveis percepções sobre a contribuição da prática desta raciologia para o processo de genocídio? Por que as
interconexão da raça, nação e cultura e a vida social nos centros metropolitanos do

13. Bcnnn MUller Hill, Murderous Science (Oxford Universiry Press, 1988). 16. Daniel R. Headrick, The Tools of Empire (Oxford Univcrsity Prcss, (980); Michael Adas,
14. DanielPick, WarMachine, TheRanonattmüon ofSlaughterin the ModemAge (Yale University Machines as the Measure of Men (Cornell University Press, 1989).
Press, 1993); Omer Bartov, Hítlcr s Army: Soldiers, NazÜ and War in lhe Third Reich (Oxford 17. Victor Kiernan, European Empiresfrom Conquest to Coítapse. 1815-1960 (Lciccstcr University
Uuiversity Press, 1992). Press, 1982).
15. W. O, Henderson, lhe German Colonial Empire (Cass, 1993). pp. 74.114. 18. John Elfis, The Social Hístory ofthc Machinc Gun (Pimlico, 1993).

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ENTRE CAMPOS .. Nações, CuLturas e o Fascinio da Raça PAUL GILROY

linguagens de legitimação se apóiam tão fortemente na idéia de raça, e por que a As conexões e continuidades que saltam à nossa vista, assim que se examina
combinação dessa idéia com a linguagem e os símbolos do ultranacionalismo por inteiro a confiança do fascismo na raciologia, pode ser perrurbadora.>' É
proporcionam meios tão poderosos para motivar e galvanizar as pessoas no sentido extremamente difícil conhecer com exatidão quando os fascismos tiveram início,
do modo resoluto e voltado para a ação que a ideologia fascista sempre valorizou inteirar-nos de como eles se projetavam, soavam e se davam a sentir, e explorar as
em contraposição à fraqueza representada pela teoria e pela reflexão inútil? continuidades inevitáveis entre as regras normais da governança democrática e o
seu repúdio revolucionário. Contudo, o trabalho mais rigoroso e sensível de
"RAÇA" E F ASCLSMO comparação destes objetos demonstrou de um modo consistente que há muito a se
ganhar moral e intelectualmente com o esforço para se pôr de novo em foco estas
Vamos nos voltar agora para os problemas trazidos por esses díjtceis laços questões proibitivas e corrosivas. Elas deveriam ser essenciais em nossas tentativas
históricos. Uma maneira óbvia para se reconhecer o poder da raciologiae conservá- de reescrever a história de nossa espécie e de destilar e esclarecer os significados
la no centro destas indagações é partir da consideração do fascismo e de suas em favor de nossa própria condição subseqüerue à catástrofe. Fugiremos a estas
conexões políticas conceituais - ao invés de seus aspectos contingenciais - com a incumbências somente se não estivermos preparados para nos confrontar com o
idéia de "raça". É possível também que contribua em algo em termos de uma poder imperioso da raciologia enquanto modo de divisão e abuso.
estratégia para reintegrar histórias interligadas, porém falsamente separadas, para Livros volumosos têm se dedicado a abordar as inúmeras dificuldades
estabelecer pontes entre disciplinas divergentes, e para abordar reivindicações relativas à questão de como o fascismo deveria ser definido. Somos obrigados a
morais que são aparentemente incomensuráveis, as quais têm sido postas em ação fazer distinções entre o fascismo como um desenvolvimento histórico, um movimento
em comemorações ativas e deliberadas em torno desses eventos catastróficos. político e social, um padrão de governo fora de comum, e uma formação ideológica
Minha abordagem do conceito de fascismo se faz com algum temor sobretudo e cultural reconhecível. Em atenção ao trabalho monumental de grandes
por ele fazer a ligação entre tantos distintos fenômenos históricos e locais. Ele tem historiadores da história comparada do fascismo como Roger Griffin e Stanley
sido engolfado devido à maneira de seu funcionamento como um termo geral de Payne, assim como especialistas sobre a sua linhagem intelectual como George
injúria e corrompido devido ao modo com que vem sendo empregado para expressar Mosse e Zeev Stemheel, acredito que a busca de uma definição genérica de
uma sensação de maldade que é de uma abstraçãc frustrante, mas que permanece fascismo é não só possível e desejável, como imperativa. Ela é necessária sobretudo
refém do modismo de um fascínio contemporâneo pela obscenidade, criminalidade, porque, embora alguns entusiastas contemporâneos do fascismo optem pejo simples
agressão e horror. Enfrentar uma vez mais a idéia de fascismo genérico significa - uso de uniformes nazistas, muitos outros não anunciam seus comprometimentos
assim espero - trabalhar para redimi-lo de sua trivíalização, recolocando-o em seu niilistas e ultranacionalistas com tanta audácia. À medida que a memória do período
devido lugar nas discussões sobre os limites morais e políticos do que se pode fascista se esvai, é essencial que consigamos identificar estes novos grupos e sua
aceitar." Não se pode negar a urgência desta tarefa; contudo, meus objetivos influência sobre as vidas voláteis das sociedades organizadas pós-industriais. Não
neste capítulo são mais modestos. Gostaria apenas de esboçar uma economia deixa de ser um avanço manter uma discussão sobre o fascismo como um projeto
ética voltada para o presente multicultural onde tanto o fascismo como as raciologias heurístico contínuo nurn cenário de pós-Guerra Fria onde o Oeste desapareceu e a
que aqui se entranharam são merecedores de uma séria atenção que já se faz há Europa renascida precisa se confrontar com o seu passado.
muito necessária.

20. Stefan Kühl, The NaÚ Connectíon: Eugenics, Amcrícan Racism and Gerrnan National Socíaíism
(Oxford Ijniversiry press, 1994); Edward J. Larson, Sex; Race and Scíence: Eugenics in the Deep
South (Johns Hopkins University Press, 1995); Marouf A. Hasian, Jr., The Rheionc Qt'Eugenics
19. Umberto Eco, "Ur-Fascismo", New York Review of Books, 22 de junho de 1995. in Anglo-American Thought (Univcrsity of Geórgia Press, 1995), em especial o capítulo 3.

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Ponderar sobre a natureza do fascismo e seu apelo recorrente não se resume torno do fato central da diferença racial, e de sua conseqüente elevação a um
a uma questão de esclarecer os alvos daqueles dentre nós que "e opõem ao racismo. valor eterno metafísico, minimiza o efeito de quaisquer contradições entre as
É uma questão para anti-racistas e também para aqueles que aspiram à libertação. maneiras diversas com que eles compreendem as conexões entre nacionalidade,
Isso nos obriga a escrutinar nossas próprias filosofia" políticas, práticas e predileções cultura e natureza, história, destino e a sorte. A raça embaça essas coisas de um
culturais no ponto em que elas "e aproximam dos perigos suscitados entre quem se modo essencial às operações do poder totalitário. Ela aglutina o intelectual e o anti-
deixa encantar pejo poder." Pretendo discutir, em outro capítulo, os atrativos intelectual, o científico e o estético. Ela proporciona fontes de conforto,
especiais das técnicas políticas do fascismo que agem sobre grupos populacionais restabelecimento da confiança, convicção, moralidade, método e ética. Uma certeza
que têm sido as suas vítimas, Enquanto isso, a definição básica, mas eficaz de especial flui da crença fervorosa de que a ordem da diferença que se apóia na
fascismo apresentada por Griffin proporciona um ponto de partida inestimével." variação natural somática tem um poder auto-evidente e fundamental para
Ele acentua os seus aspectos populistas e ultranacionalistas, chamando a atenção determinar e dividir.
para a pretensão dos fascistas de acenar com um renascimento dinâmico após
períodos de fraqueza e decadência nacional. Outros estudiosos com percepções o GLAMOUR DO FASCISMO
valiosas puseram maior ênfase no investimento especial que o ideal de fraternidade
recebeu por parte dos movimentos fascistas. A masculinização abrangente da esfera Sabemos que o poder de atração exercido pelo fascismo não foi anulado
pública e o estilo militar com que essa masculinização tem se realizado em muitos com a derrota dos nazistas de Hitler e de seus aliados. Os vestígios dos nazistas
e diversos cenários sugerem uma relação com padrões de desejo masculino, são onipresentes e as imagens apressadas a seu respeito oferecem débeis
requerendo-se aqui uma avaliação comparativa e de cruzamentos culturais." Isto marcadores morais num mundo cruel que parece freqüentemente destituído de
não significa negar os papéis das mulheres como participantes completas, ética política, No interior do mundo de sonhos da cultura popular, eles representam
energéticas e conhecedoras no interior desses movimentos, Contudo, o carãter de um poder malévolo supernatural, elegante e brutal, imbuído de um fardo pesado,
forte teor masculino, decorrente sobretudo da exultação da guerra como um espaço transgressivo e erótico." Embora este padrão de representação permita reflexões
em que os homens podem "e conhecer melhor e amar uns aos outros com interessantes a respeito da cultura popular contemporânea, ele não revela nada
legitimidade, dada a ausência do feminino, não acontece por acaso. Ele se associa sobre a história dos fascismos, ou sobre as bases da popularidade contínua, ou
intimamente com os vários tipos de ultranacionalismo beligerante que são sempre revivida, usufruídas por eles. É claro que nem todo mundo que é atraído por aquele
articulados pelos fascistas. estilo se deixa cativar pela ideologia fascista, toma-se um entusiasta das realizações
Embora este tipo de autoritarismo tenha se apoiado muito no saber racional históricas dos fascistas do passado, ou fica motivado a dar apoio político aos seus
da ciência racial, ele também tem se vinculado fortemente a outros tipos menos herdeiros contemporâneos sem levar em consideração se a herança hedionda da
respeitáveis de pensamento de raça que derivam de fontes ocultas, místicas e desumanidade organizada é reconhecida ou negada. Algumas pessoas filiam-se,
positivamente irracionais. Não se tem dado muita atenção ao modo como a adesão sem dúvida, ao pacote histórico como um todo, mas minha preocupação aqui é
compartilhada ao princípio fundamental de "raça" estabiliza a interconexão desses menos com aqueles que são atraídos pelos programas políticos escorregadios
sistemas bem diferentes e potencialmente incompatíveis. A sua convergência em envolvidos nisso, e mais com a vida quase independente do estilo político aque eles
têm sido associados. O estilo continua vivo e exerce um impulso poderoso que
:c--:---.----
21. Michael Foucault, prefácio em Gilles Deleuze e Félix Guarrari, Antí-Oedipus: Capitatism and
Schizophrenía (Viking, 1977), p. xiv 24. James Brown, o organizador da edição britânica da revista GQ, publicada por Condé Nast, foi
22. Roger Griffin, The Nature of Fascism (Routledge, 1993). demitido de seu cargo em fevereiro de 1999 por ler descrito o general nazista Rommel como
23. KIaus Theweleit, Male Fantasies, tradução de Srephen Conway, Erica Carter e Chrls Turner, 2 alguém "elegante diante da verdadeira adversidade". além de tê-lo incluído na Jist~ dos "homens
vots. (Pclity Press, 1987 e 1989). mais perspicazes do século XX" compilada pela revista. Guardían, 19 de fevereiro de 1999.

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pode ser ainda mais sedutor em situações onde a ideologia não é conhecida e nem Novas suásticas aparecem vez e outra grafiradas nos muros ao longo
é entusiasmante. Em tais cenários, torna-se possível separar os uniformes, as botas, do meu percurso pela cidade onde vivo e trabalho. Seja lá qual for a intenção de
as rajadas, as bandeiras, as colunas de luz, as multidões orquestradas e os corpos seus autores, e suas intenções insultuosas podem ser muito complexas, não há
perfeitos de seu ponto terminal em matéria de feitos genocidas. nenhuma maneira legítima de alegar ignorância com relação aos males
É preciso ter em mente, com muito cuidado, o perigo perene que nos espera inevitavelmente referidos por aqueles símbolos. Eles são reconhecidos e aceitos
ao ingressar neste solo. Podemos facilmente superestimar a coerência ideológica como sinais de (e sobre) hierarquias naturais e culturais de "raça". É por isso que
e a consistência das doutrinas fascistas que, por vezes, têm sido levadas mais a homens da Klan, odinisras, ariosofistas, anti-semitas, e outros muitos aspirantes
sério por seus críticos do que pelos seus seguidores. É fácil demais ler um texto- racistas gravitam em torno da constelação específica destes chocantes símbolos
chave, por exemplo, o manifesto de Hitler, Mein Kampf, como se o seu projeto modernos, incorporando-os em suas insígnias locais e tatuando-os de forma indelével
tivesse sido aplicado racional e rigorosamente. Em 1925 ele não poderia ter se em seus corpos. Onde quer que as suásticas apareçam, as formas populistas do
direcionado com precisão para culminar no terror e no barbarismo do genocídio pensamento de raça e do ultranacionalismo nunca estão distantes. Essas insígnias
nazista. As teorias de propaganda, informação e vontade, detalhadas no livro de ainda são reconhecíveis com facilidade como as "imagens da vontade" do movimento
Hitler, sugerem outras maneiras para se abordar o seu conteúdo, propósito, direção nazista, talvez mais agora do que antes quando Hitler e seus associados começaram
e disposição racial. Embora o estilo do livro não o revele, Mein Kampfé tanto uma a adaptá-las criativamente para aquela finalidade. Apesar de sabermos onde foi
projeção do desejo quanto um manual de instrução. Em todo caso, as exigências parar aquele desenvolvimento, as tendências fascistas podem continuar vivas e
metodológicas da historiografia não admitem a extravagância de se aplicar atraentes em parte devido ao poderoso domínio exercido pelo sedutor estilo fascista.
mecanismos retrospectivos que o abordassem como um projeto completo em termos A presença persistente do fascismo tanto como uma opção política menor,
daquilo que sucedeu depois. Deste modo, os comprometimentos ocultos que ainda quanto como um ponto de referência cultural maior, serve também para lembrar
apóiam uma parte considerável do pensamento fascista, em especial um débito que ele deve ser considerado em sua positividade. Em outros termos, as adesões
irredimível com os padrões da teoria da conspiração - padrões estes desafiadores ao fascismo precisam ser abordadas como experiências compensadoras e
da lógica - precisam ser reconhecidos antes de se considerar todas as questões prazerosas para adeptos, devotos e, mais recentemente, imitadores. Embora esta
habituais relativas à agência e à contingência. Seria preciso reconhecer que a observação aponte de imediato para os estudos sócio-psicológicos a respeito dos
consolidação do poder fascista no governo exibiu um grau incomum de oportunismo movimentos autoritários e dos tipos de personalidade, pretendo seguir um caminho
sagaz e algumas elaboradas habilidades de improvisação. distinto, sugerido pela própria ênfase de Hitler sobre os aspectos "criativos" dessa
A abordagem das complexidades culturais do fascismo como parte de uma sensibilidade metapolttica." Este caminho se define pela premissa de que as
história de nosso presente requer o reconhecimento de que o desejo de se identificar qualidades distintivas do estilo político fascista, em especial o seu emprego entusiasta
com os nazistas de Hitler e o desejo de ser um completo neonazista pós-hitleriano
podem ser bem distintos. Embora devamos admitir o papel especial dos nazistas
enquanto um modelo político em meio a um fascismo altamente desacreditado
gostaria de aventar que o apelo duradouro do nazismo, bem como de outros estilos 25. "Em meados do verão de 1920, a nova bandeira apareceu diante do público pela primeira vez...ela
teve o efeito de uma tocha incendiada...E é realmente um símbolo! Não são apenas as cores
militaristas e fascistas, continua a ser um fenômeno cultural significativo. Portanto, singulares, as quais todos nós amamos com tanta paixão e que antigamente angariaram tanta
ele promete uma reabilitação parcial das idéias e dos princípios fascistas pela via honra para o povo alemão, que atestam a nossa veneração pelo passado; elas também eram a
do puro poder de atração dos movimentos fascistas, das culturas fascistas. Numa melhor encarnação da vontade do nosso movimento. Como nacionais socialistas. vemos nosso
programa em nossa bandeira. No vermelho vemos a idéia social do movimento, TIO branco a idéia
área em que a política e o estilo se tornaram necessariamente difíceis de distinguir, nacionalista, na suástica a missão e a luta pela vitória do homem ariano, e também por isso, a
conforme veremos, a cultura política fascista permanece de celta forma pendente, vitória da idéia do trabalho criativo, que como tal tem sido e será sempre anri-semita". Mein
em parte devido a um contínuo apelo estilístico. Kampf. tradução de Ralph Manheim (Hougthon Mifflin, [971), p. 497.

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...~

e estratégico de tecnologias comunicativas c de culturas, têm sido há muito Dois acadêmicos influentes, Paul Virilio e Alice Yeager Kaplan, construíram
associadas com o acentuado poder da visualidade. Isto significa que a difícil suas reflexões sobre a história do fascismo com base na noção de que o seu objeto
incumbência de analisar os prazeres e paixões do fascismo não pode ser realizada político armado e militarizado não apenas chegou a se conhecer a si mesmo através
amenos que tenhamos como foco as importantes inovações tecnológicas no campo do novo canal popular aberto pelo filme, mas também vivenciou sua identidade
da cultura visual que foram centrais à ascensão dos movimentos fascistas, e que cxtãtica, coletiva, ultranacional como se fosse um filme. Este "espelhamento" das
ainda nos ajudam a definir a natureza de sua especial atratividade. vidas públicas e privadas da comunidade nacional forneceu um ponto de partida
Apesar de estar por vezes fora de compasso com os movimentos anti- para grande numero de pesquisas sobre o lugar privilegiado da visualidade e da
modernistas que eram radicalmente conservadores, assim como sofisticados em visualização na constituição da comunidade organizada e da esfera pública fascistas.
termos tecnológicos, o novo padrão populista, o qual deu as bases para a construção Esta linha de investigação ganha impulso no cenário alemão devido às especulações
desses movimentos essencialmente agressivos, deveu muito aos meios de grandiosas de Goebbels a respeito do aparente potencial infinito da propaganda
comunicação e identificação supridos tão somente pelas sugestões e estímulos visual. É possível que isto se confirme em razão da qualidade de suas meditações
visuais. Daniel Guérin, francês filiado à Esquerda, cujo trabalho eminente revela sobre a mudança de escala ocorrida diante da sua própria imagem na tela: "Vejo a
um olhar interpretativo acurado sobre muitas dimensões negligenciadas da cultura mim mesmo em um filme pródigo com que a UFA (a companhia produtora do
e da solidariedade nazista, escreveu com argucia sobre as suas experiências durante filme) me ofertou. Todos os meus discursos desde 1933. Estranho e fascinante.
uma viagem pela Alemanha no início dos anos 1930. Ele é um dos muitos escritores Como as coisas se parecem Iongfnquas''." É possível que seja significativa essa
que chamaram a atenção para as qualidades dinâmicas do "estrelato'' de Hitler: combinação de desconcerto e de prazer rapsódico com relação às suas próprias
"Trata-se de uma organização científica, modema, de propaganda que deu ao partido atividades dinâmicas. Do mesmo modo deve ser importante que nesta cultura visual,
de Hitler o seu formidável poder de expansão...Naturalmente, você encontrará os as imagens do poder, particularmente quando manifestadas na pessoa do líder,
heróis do dia em cartões postais, e se você desejar um retrato do Führer há ficassem desassociadas das restrições dadas pelas suas dimensões naturais. Hitler
escolhas em excesso"." podia ficar enorme numa tela de cinema e, em seguida, encolher até o tamanho de
As palavras de Guérin oferecem um pequeno exemplo de um processo um cartaz ou cartão postal. Esta elasticidade era um elemento essencial para
abrangente em que as pessoas se tornaram participantes de um pacto autoritário, conferir qualidade à sua calculada estatura super-humana.
tendo sua visão focada no ícone onipresente do líder/deidade. Precisamos lembrar Estes movimentos autoritários não só transformaram o significado da cultura
que este podia ser um papel de atuação intensa. O estudo de Simonetra Falasca- visual e do cspetáculo público, mas também sistematizaram uma abordagem do
Zamponi sobre o espetãculo político na Itália fascista traz ainda mais apoio para poder e da comunicação, denominada há muito por Walter Benjamin e outros, de
este argumento. Aquilo que ela chama de "mitificação'' de II Duce realizou-se "estetização" ou "teatralização'' da política. Benjamin contrapôs aquele estado de
através dos mesmos veículos popular-culturais empregados para exaltar Hitler. A coisas aterrorizante a uma possibilidade política alternativa que ele associou ao
imagem endeusada de Mussolini brilhava em cartazes, cartões e emblemas num poder libertador do comunismo, designando-a com uma certa esperança de
sistema comparável de totalização da celebridade política. Como ela conta, era "politização da arte". Acabamos destituídos dessa alternativa utópica em razão de
possível "mesmo encontrar sabonetes no formato de Mussolini"." nosso entendimento do comunismo como afiliado ao princípio de governo pelo
terror, e também por conhecermos o seu entusiasmo paralelo por tecnologias
26. Daniel Guérin, The Brown Piague, traduzido por Robert Schwarzwald (Duke University Preso), heróicas, monumentais e códigos estéticos semelhantes. É ainda mais perturbador
pp. 97-98.
o fato de que os padrões em nossas próprias culturas políticas e nas vidas dos
27. Henri Béraud, Ce Que J'ui lIU ii Rome (Les Editions de Franco, 1(29), citado por Simoneta
Falasca-Zampom, Fascist Spectacle (University of California Press, 1997), p. 80. Ver também
Emilio Gentile, The Sacralieatton ofPolitics ln Fascist Italy, tradução de Keith Botstoro (Harvard 28. Citado por Eric Rentschlcr, The Minístry of lílusion, Nazi Cinema and Irs A/talife (Harvard
University Prcss, 1996). Ijniversuy Press. 1996), p. 215.

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Estados democráticos parecem também ter sido atingidos por aspectos de um Seja qual for o significado que se confira à pré-história totalitária destas
processo estetizante comparável. A televisão constituiu este problema. Nossos formas de manipulação política, é plausível supor que a crítica da "estetização da
políticos manipulam comumente as suas aparências tísicas com procedimentos política" assim como uma compreensão de suas conseqüências para o
cosméticos, enfeitam as suas imagens televisivas, e amaciam nossas reações a desenvolvimento da solidariedade e da identidade política continuem a ser uma
eles através do seu comando da elocução e da sua atenção constante à poderosa questão urgente. De fato, desde a época de Benjamin, muitos dos padrões
dinâmica comunicativa da gesticulação e da postura corporal. tecnológicos e estéticos da comunicação política estabelecida pelos movimentos
Esta utilização da construção de imagem e de técnicas de conservação de fascistas penetraram diretamentc as práticas correntes da vida política das nações
imagem criou uma situação em que os ícones estabelecem rigidamente e dominam democráticas. O legado do domínio fascista sobrevive tanto dentro como fora da
muitas vezes a vívida autoridade do mundo falado em moldes que relembram as democracia. Embora a interação glamorosa entre líder e liderado continue a ser
operações da propaganda fascista. O poder da fala, já reduzido em muito pelo uma fonte constante de tensão dramática e prazer libidinal, as estratégias de
imperativo de prover bites de som vazios, porém memoráveis, reduziu-se ainda publicidade política, cujo extraordinário modelo inicial foi dado pelo trabalho de
mais desde as inovações de Hitler. Nessa resultante cultura cívica aviltada, a Leni Riefenstahl, têm sido consideravelmente refinadas durante os últimos sessenta
linguagem renuncia à sua lucidez e ao seu papel especial na constituição e anos, permanecendo vivas em propagandas contemporâneas. O corpo, a
diferenciação das relações sociais e políticas. A fala política sucumbe a um jogo personalidade e a famflia do líder não são os únicos focos deste influente modelo.
sombrio de equívocos inrerminéveis e gritaria encenada. A prática da política é O evento teatral e político, o comício partidário em que os espectadores comuns
inicialmente modificada e depois destruída pelas mentalidades de marketing e de podem tanto descobrir como se dissolver na unidade arrebatadora e extasiante de
publicidade. A competente história de autoria de Stuart Ewen sobre relações públicas muitos, constitui outro ponto fixo. Não podemos também ignorar as dimensões
e a arte do spin [manipulação de informações] e outra biografia recente do sobrinho afetivas dos ícones políticos contemporâneos, cujo protótipo moderno foi fornecido
de Freud, Edward Bemays, o pioneiro deste novo modelo comunicativo, apresentam pela suástica.
uma boa parte desta história que liga estas atividades contemporâneas ao seu Por mais que isto de início nos pareça sem graça e potencialmente imoral,
passado totalitário. As instituições políticas, e mesmo nações inteiras, podem ser há algo a se ganhar com uma abordagem do modelo acima como algo semelhante
condensadas em símbolos visuais. Elas têm sido vistas, e portanto, vivenciadas de a um logotipo empresarial ou um nome de grife." A suástica foi um novo tipo de
novas maneiras. Citadas por ícones, elas podem ser até mesmo vendidas de acordo símbolo capaz de trazer ordem a um mundo caótico e ameaçador na medida em
com a mesma ciência comercial que vende todos os outros produtos. Um bom que tornava de igual valor todos que a envergassem. O logotipo, definido pelo guru
exemplo nos chega através das discussões sobre a "re-etiquetação" da Grã- do design Paul Rand como "basicamente um meio de identificação", torna-se
Bretanha que celebrou o fim do governo conservador e que permearam ainda algo mais neste ponto. É um elemento de identidade social misturado como um
mais fortemente os debates sobre o lugar da monarquia britânica na projeção todo com o "produto" distintivo que está por trás disso. Rand continua: "Em termos
vendável da nação para o mundo todo depois da morte da Princesa Diana - um ideais, a identidade e o produto são um só". A adaptação criativa da suástica por
ícone básico tanto para a nação britânica, quanto para a idéia mesma de caridade. Hitler nos vem à mente na explicação de Rand a respeito desta abordagem da
Essas controvérsias transmitiram a mensagem de que o significado da nacionalidade comunicação visual: "O ..Jogo serve a um duplo propósito: ajuda a estabelecer e
e a idéia de uma especificidade nacional são pensados agora como infinitamente autenticar um novo produto ao mesmo tempo em que combina produto e logo
manipuláveis. Qualquer coisa é possível. Algo tão persistentemente ilusório como como uma unidade integrada. Isto é possível apenas quando cada componente é
a identidade britânica pós-colonial pode supostamente ser representada na prancha
de desenho, e depois projetada pejo mundo afora com uma tal força subjacente,
que é capaz de saltar para a vida sem conhecer quaisquer obstáculos manifestos
de ordem histórica ou política à sua produção espontânea. 29. Malcolrn Quinn, The Swauika (Routledge, 1995).

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projetado de modo a acomodar o outro; eles precisam ser simples o suficiente para totalitários anteriores. li Este livro comunica vividamente a paixão intelectual urgente
tornar possível esta uníão''.» de um autodidata que escreve e pensa em busca de uma saída própria com base
,~aten?àO a estes padrões criativos e comunicativos, assim como ao exíguo nos vocabulários, paradigmas e conceitos encontrados por ele no marxismo,
reperrono de Imagens que tem sido usado para mantê-los, é essencial se quisermos maofsmo, funonismo e no Poder Negro. Mais de trinta anos depois, muitos dos
compre~nder.os prazeres positivos suscitados pelas iniciativas estético-políticas do seus julgamentos, estratégias e comentários são difíceis de sustentar, Embora a
ultranacionalismo. Esta observação não é incompatível Com o entendimento da sua utopia possa parecer tão absurda quanto às vezes o é a sua retórica, a direção
importância do terror no funcionamento cotidiano dessas formas de autoridade e a seriedade de suas pesquisas em matéria de relações fundamentais entre raça,
política que estendem o domínio dos processos e preocupações políticas em todas fascismo e capitalismo, em diversos cenários, permanecem ainda mais significativas
a.s dire,ções, assi,m merecendo o nome de totalitário. É claro, outros aspectos por terem sido conduzidas sob as mais difíceis circunstâncias. Há ainda problemas
simbólicos associados com os padrões distintivos de governabilidade totalitária _o importantes deixados à mostra pelo estudo histórico comparativo sobre a violência
uso de prisões, a espetacularização da morte, o rebaixamento dos tribunais e a de Estado e a regulamentação estatal da informação sob várias formas de governo,
deformação geral da esfera pública - tornaram-se também traços comuns da vida dentro e fora do mundo superdesenvclvido. A militarização da administração legal
contemporânea em muitos países nominalmente democráticos. Estas tendências, e a orientação dos cidadãos para a guerra são apenas duas das questões que
apesar de claramente alarmantes, não são relevantes de um modo direto ao ocuparam Jackson e ainda vale a pena persegui-las. É apenas com este cenário
argumento apresentado aqui. Não quero ser visto repetindo a mesma velha e de fundo que a militarização desastrosa das culturas políticas negras durante a
desacreditada análise que descobre fascismo em todo lugar, ou confunde de um fase do Poder Negro pode ser propriamente compreendida, e também ser explicada
modo t:~dencio.so o estado de emergência, que abrevia e modifica processos a fascinação contínua pelas coisas militares na cultura popular negra.
dem~~ratlcos, com o processo mais extensivo que confirma a sua obliteração. Em Como os movimentos fascistas não têm nenhum programa de governo que
mat~~na de tradições de reflexão política negra, a tentação de denunciar como não seja a negação brutal e a vontade de governar, os objetivos e programas sociais
fascIs~as as operações brutais e repulsivas, porém normais, do governo tem sido específicos de teor político e econômico que podem caracterizar o fascismo em
espe~Ialmente forte. Pode-se de fato mitigar este último aspecto, levando-se em geral são quase impossíveis de se identificar, Nos raros exemplos em que os fascistas
c~nslderação que as reivindicações de direitos civis e humanos e de justiça social alcançaram o poder governamental, as suas atividades tinham de se justapor em
VlIarn-,s~ por vezes em oposição às instituições de Estado democráticas, porém termos substanciais às operações normais do poder. A discussão sobre as suas
exclus,lVlsta.S e fundadas em hierarquia e tipologia racial. Tentativas encobertas de alianças estratégicas com outros partidos discrepantes, as suas duplicidades
d~es~ as VIdas políticas dos dissidentes e mesmo de exterminar Oponentes políticos ideológicas e mudanças de ânimo, por exemplo, com relação às operações do
tem SIdo uma tentação persistente do poder governamental. capitalismo de mercado, não deveriam ser temidas, mas sim bem recebidas enquanto
. . Estas tendências convergem para os escritos de prisão, corajosos e meio importante para se buscar uma caracterização mais próxima do
mspiradores, de George Jackson, Sangue no meu Olho, seu derradeiro trabalho excepcionalismo fascista. A ênfase nos processos culturais e comunicativos imprime
antes de ser assassinado, é memorável em seu esforço de combinar este tipo de uma direção distintiva a essas pesquisas. mas os problemas de definição reaparecem
o~s~:vação com uma teoria sistemática do fascismo, assim como por ter explorado se concedermos que aspectos da govemança fascista como a manipulação rotineira
a idéia de que , A " h ' d .
. a menca avía esenvolvido o que ele denominou de "uma forma da opinião pública, o abuso da lei, e os cultos da violência, da juventude e do corpo
fasClsta-~orporativistade Estado", ou então produzido um novo híbrido anti- aparecem agora no interior de práticas diversas de cultura popular, nos mundos de
democrátlco que b '. - sonhos da publicidade e do setor televisivo de infoentretcnirnento, assim como
a sorveu Intensamente os padroes desbravados pelos regimes

-_._----
30. Paul Rand, From LaSCUtn to Brooklyn (Yale University Prcss, 1996), pp. 83-91. 31. George Jackson, Btood in My Eye (Jonathan Cape, 1972).

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1:I~11\1: \,MI"TV;;l •• l~d"U~~, vurcuras e o r asctruo na xaça PAUL tilLKUY

dentro da esfera mais estreita da política formal. Esta consolidação OCOITeu no IMAGEM, ÍCONE, PALAVRA E SOM
contexto de uma revolução tecnológica e comunicativa que, embora mais vasta, é
comparável à revolução industrial que constituiu o pano fundo das especulações Em sua crítica e exposição engenhosa dos modernismos fascistas de Ernst
de Benjamin nos anos de 1920 e 1930. Isto também tem sido associado com um Jünger e Leni Riefenstahl, Russell A. Berman identifica os elementos de uma
certo grau de insurgência política e económica - desindustrialização, pobreza em abordagem distintiva em matéria de estética, exemplos dos quais ele encontrou nos
massa, altos níveis de desemprego e deslocamento de populações - o que, uma vez trabalhos de ambos. Em especial, ele descreve o comprometimento comum deles no
mais, convida muitos a encontrarem no ultranacionalismn popul ista, no racismo, no sentido de um "deslocamento da representação verbal pela visual" em que "o poder
restabelecimento da confiança autoritária, e num tipo de certeza, as respostas às da imagem torna a escritura obsoleta". Ele afirma que este aspecto é uma das
dúvidas e ansiedades radicais sobre a identidade, o ser e o pertencimento. chaves mais importantes do que é específico na modo como o fascismo se dirige aos
Temos uma boa oportunidade aqui para reavaliar as meditações esperançosas seus celebradores, fazendo de seus espectadores, participantes. O impacto da tese
de Benjamin sobre o lugar do filme e da fotografia no contramovimento da de Berman cresce quando lembramos que Triumph oflhe Will [O Triunfo da Vontade]
estetização da política. Suas reflexões precisam ser complementadas, levando-se foi feito apenas sete anos depois do surgimento dos filmes sonoros. De fato, o trabalho
em consideração as tecnologias culturais contemporâneas. Uma maneira de estendê- de Riefenstahl, de uma inovação estonteante, fez muito para consolidar o vocabulário
las pode ser encontrada nos argumentos respectivos do historiador Benedict e a gramática do filme como um instrumento que fez um uso emocional da fala e da
Anderson e do escritor de thal Thongchai Winichakul, colega associado do primeiro música em termos integrais para fins poéticos e sinfónicos. Como vimos no capítulo
por um certo período, a respeito dos poderes aglutinadores da palavra impressa e I, esta questão da relação da visão com outros sentidos e dimensões da comunicação,
das tecnologias da cartografia. Estas tecnologias culturais e estes meios em particular o seu aparente triunfo sobre a língua escrita, é um componente
institucionalizados de educação e comunicação fomentaram novas formas de extremamente significativo na história da raciologia. Isto é central para a própria
solidariedade e interconexão. O seu alcance e poder em matéria de sincronização estória de Riefenstahl, uma vez que os inquéritos do pós-guerra, que averiguaram a
das vidas alargaram-se e transformaram a comunidade imaginada que é a nação. extensão e a natureza do seu envolvimento com a causa do nazismo, consideraram
O que então, em nosso próprio tempo, diríamos sobre o poder residual do rádio, precisamente este ponto. Em uma de suas defesas da acusação de que O Triunfo
som, telefones e mesmo do cinema, do poder dominante da TV, do filme e vídeo, e da Vontade era uma peça completa de propaganda nazista, ela foi bem sucedida em
do poder emergente das tecnologias digitais enquanto fontes comparáveis de argumentar que na ausência de uma análise política que imprimisse uma direção aos
solidariedade, identificação e perrencimento? Caso seja muita ousadia indagar sobre pensamentos do público respectivo, o filme não podia ser considerado nada mais do
como estes complexos tecnológicos constroem e reproduzem o poder, poderíamos que um documento artístico e histórico.
prosseguir com a questão geral por meio de um exemplo específico: como a "raça" Berman associa Riefenstahl com Jünger, embora o conservadorismo
circula no seu interior e qual o seu impacto sobre as relações de solidariedade revolucionário deste último houvesse sido moldado pelas experiências sublimes do
associadas com a nacionalidade e a etnicidade? Que formas de pertencimento têm campo de batalha durante a guerra de 1914-1918. Como ele sugere, eles estão
sido alimentadas pelas culturas visuais produzidas e reproduzidas por estes sistemas? conectados pela sua crença compartilhada na prioridade filosófica e experiencial
Acima de tudo, o que as suas operações comunicam sobre a persistência da "raça" da imagem sobre a escrita. Ao discutir desde a famosa seqüência de abertura de
enquanto meio para classificar e dividir os seres humanos? Com estas questões O Triunfo da Vontade, em que o avião de Hitler desce através das nuvens em
em mente, vou abordar o legado duradouro das tecnologias comunicativas fascistas Nuremberg, até os acordes da abertura de Die Metstersínger [O Mestre-Cantor]
no mundo de sonhos da cultura de massa contemporânea. Berman desenvolve com elegância seu ponto de vista fundamental:

A questão não é que Hitler aterrissa em Nuremberg; a questão é que Hitler aterrissa
em Nurernberg e é visto; "Wir wollcn unsuren Füher sehen [Queremos ver nossa

186 187
r.N I ",r. I..flMrV;) neçoes. vurruras e o r-ascmtc ua xaça t'AUL l:IIL"'UI

líder]",grita a multidão,e o filme...define-secomo o instrumento apropriadode um modernizador, gostaria de defender um ponto de vista básico, desenvolvido por
fascista que privilegia a representação visual e da vista. A vontade triunfa quando aqueles que afirmam que a escala da ilusão e da transparência requeridas pela
ela se torna evidente em termos visuais, e triunfa sobre a opção representacional cultura política fascista era "possível somente na era do filme, do gramofone e do
alternativa, mencionada na abertura do filme, a escrita e lima cultura associada de
alto-falante" ,34 Esta observação sublinha que com a sacralização e a militarização
alfabetismoverbal. 1,
da política que caracterizaram os movimentos fascistas, as pessoas começaram a
vivenciar o seu pertencimento mútuo de acordo com os princípios novos da
A primazia da visualidade é confirmada pelas próprias reminiscências de
associação mediada por aparatos tecnológicos. Os eventos de massa, produzidos
Riefenstahl acerca dos problemas encontrados por ela no trabalho de edição de
de acordo com as especificações relatadas com tanta paixão por Riefenstahl
seu filme, especialmente em sua tentativa de sincronizar a trilha sonora musical do
filme com o fluxo revolucionário de imagens que emergiram da sua sobrecarregada oferendavam o ritual e a liturgia que fluíam das doutrinas fundamentais de raça e
máquina editora. A sua autobiografia deixa claro que nem o maestro, nem o nação. Desde então, a transformação do poder das imagens relativas às palavras
compositor da trilha do filme, foram capazes de dirigir a orquestra através das _escritas e faladas - que tornaram possíveis estes desenvolvimentos tem moldado
variações de tempo requeridas pela sequência da marcha de vinte minutos que a formas de solidariedade, identificação e pertencimento em termos mais gerais.
cineasta havia juntado a partir de uns 10.668 metros de cenas filmadas utilizáveis: Tanto os vídeos pop, como a publicidade política demonstram que, apesar de nem
sempre chamarem atenção para isso, as técnicas e o estilo fascista contribuem
As rápidas mudanças visuais tornaram impossível aos seus maestros e músicos grandemente para as operações do selar televisivo de infoentretenimento. Estes
entrar em tempo e tocar de forma ajustada aos grupos que marchavam em ritmos padrões comunicativos têm sido transmitidos no interior mesmo da cultura política
diversos. Apesarde horasde prática,nem o maestro, nem Herr Windt(o compositor), negra. As suas conexões com a "raça" persistem e desenvolvem-se por fazerem
foram capazesde sincronizara música corretamente; e Herr Windtchegou a sugerir parte agora do modo como a cultura popular é representada e vendida enquanto
que eu simplesmente deixasse de fora a parada inteira. Então eu mesma assumi a
tarefa de dirigir a orquestra com seus oitenta homens. Inseri uma batida em cada fenómeno planetário.
imagem, e sabia exatamente quando a música deveria ser conduzida mais rápida e A importância reduzida da cultura impressa enquanto fonte de ligação,
mais lenta." pertendmento e simultaneidade, e a subseqüente desvalorização da fala como um
instrumento de aquisição de uma consciência comum, estiveram entre os elementos
As imagens marciais cuidadosamente entoadas tiveram prioridade absoluta mais importantes da revolução comunicativa e cultural do fascismo. Ao explorar
sobre cada um dos aspectos de toda a comunicação. Sacrificou-se entusiasticamente esses efeitos contínuos sobre a produção e a renovação da solidariedade política
qualquer integridade possível da música a este propósito superior. em que a integração mecânica tem sido substituída pela expansão e interligação
Em minha opinião, quer Riefenstahl fosse inteiramente ciente disso, ou não, icónica, descobriremos que a prioridade dada à visualidade não é ainda dominante
o sucesso da revolução em tecnologias de visualização e culturas visuais na cultura política negra contemporânea, sendo, porém, parte essencial e crescente
desbravadas por ela mudaram para sempre a apreensão da solidariedade e da vida das pré-condições para o enraizamento das formas de cultura política preto-fascistas,
eoletiva sincronizada de comunidades nacionais, étnicas, ou racializadas, na direção fascistas e pseudofascistas. Deixando de lado o fato de se esta história se limita
mesma ansiada pelos seus associados, Hitler, Speer e Goebbels. Esta constatação aos idiomas negros passíveis de serem demonstrados, o problema central levantado
arrisca-se a levantar outro problema, o de confinar a estética e os estilos fascistas por ela é a mediação da solidariedade e o apelo a ela através de tecnologias visuais
exclusivamente às áreas superdesenvolvidas e mais ricas do planeta. Contudo, ao e de conexões icónicas que os dominam.
assumir o risco de situar as tentações do fascismo enquanto parte do processo

32. Russell A. Berman, Modem Culture and Criucal Theory: Arl, Poliucs. und the Legacv of lhe
Frankfurt School (wisconsin University Press, 1989), p. 100.
33. Leni Riefenstahl, The Síeve ofTime (Quartet Books, 1992), p. 165. 34. Rey Chow, "Fascist Longings in Our Midst",Ariel, vol. 26, no. 1 (janeiro de 1995), p, 38.

188 189
tl'UKI:: CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça ~t\u .. \ u .. "v.

Chamar _ , a atenção par a a cen -entr a Iid


r a d e d e vanas
" tecnologias comunicativas poderia depender da tecnologia do rádio para tudo. Apesar dos esforços nazistas
com relaçao as polític I' "
. . as popu ratas e ultranacionalistas do fascismo não significa em coletivizar e socializar a experiência de ouvir, isto ainda era em grande parte
fazer da visualizaçg-, da 1 . ,
. ' e regu amentação escópica da comunidade, o aspecto um negócio privado, sendo assim bem fácil para um ouvinte simplesmente mudar
dominante em todos os e tác i d h' ,. .
, . . s agIos a tstona modema. DIversas combinações de de canal sempre que se sentisse amolado ou desencantado." Os discursos públicos
tecnologia parecem te d ' '
r ocupa o aquele papel principal em tempos distintos. As de Hitler eram infalivelmente transmitidos pelo rádio, alcançando uma audiência
mudanças da fala e da . , -. , .
. Impressao ampliada para o rãdio e o som gravado e depois de cerca de 56,000.000 em 1935, mas em nítido contraste com as técnicas pessoais
para a Imagem, ícone til I ' '
. . ' I me e uz, parecem ter SIdo aceleradas à medida que os e íntimas empregadas por Roosevelt e Churchill, o seu desempenho solitário em
nazistas se aprOXImava d -
. . fi e sua ascensao ao governo. Entretanto, se for para se estúdio era considerado ineficaz e destituído das qualidades inspiradoras que só
acreditar em Hitler de d ',.
,_. ' s e o uucio mesmo de suas campanhas, as falas, comícios e poderiam ser supridas na medida de uma colaboração recíproca entre ele e a
reumoes tiveram precedê' '.. I' , ,
, encia em re açao ao poder limitado da palavra escrita. Foi audiência. Sentia-se que as possibilidades interativas suscitadas diante de uma
apenas apos 1930 que .
. os microfones e alto-falantes tomaram-se um equipamento multidão de verdade seriam essenciais para que os seus discursos pudessem ser
padronizado nas reun'- , . . '"
. _ ices nazistas. Antes diSSO, a incapacidade de ouvir havia emitidos num tom adequado de intensidade. Durante doze anos, de 1933 até o final
colocado restnçoes' ' I .
3" a esca a e ao tipo de eventos políticos possíveis de serem da guerra, ele não mais transmitiu de estúdio."
d
encena os. o Impedi I 1 ..
, ( o pe as ondas eletromagnéricas, que foram reguladas pelo O filme, por seu turno, correspondia às necessidades de uma nação de
governo ate pelo me _
' d nos o vemo de 1932, o departamento de Goebbels distribuiu espectadores que se encontrava no processo de mudança de uma associação de
50 ,000 d ISCaS e gramot d' ,
' one com OS recursos de HItler ao longo do mês de fevereiro meros sujeitos para um corpo exclusivo de nobres cidadãos que seriam os "Senhores
d aquele ano. Essas gr - . .
. - . . avações foram tocadas a partir de furgões móveis durante a do Reich".lsto lhes proporcionava novos meios para vivencial' suas próprias ações.
e 1eIçao presHiencIal s . O . .. " .
c egumte. s dISCurSOS de Mussolini dirigidos ao Império só Eles foram entranhados de toda uma nova variedade de consciência posta em
loram lançados numa I ' , ,
, co eçao de discos fonográficos a partir de 1938, ação visualmente por meio do espelho ativo fornecido, acima de tudo, pela tela de
ASSIm que OS O· . t 1
.. d . azis as a cançaram o poder, eles se mostraram muito atuantes cinema. O coletivo nacional podia descobrir e satisfazer-se consigo mesmo e com
emmatena e prom., - d .
. , çao o uso de aparelhos baratos de rádio, com alcance limitado a sua subordinação comum a uma liderança toda poderosa por meios igualmente
e que eram IdeaiS par d . . '
díê . a esernpenhar a tarefa de smcromzar a nação numa única novos. A apreciação coletiva do conteúdo da cultura nacional também foi
au iencra, uma "unidad d ãdio'' 36
'di e e ra 10. Seu objetivo era colocar um aparelho de transformada. Riefenstahl, Speer e outros reduziram-na aos elementos antigos e
Ta o em cada lar alem- , .
"Ih- ao, sendo que os rãdios em uso ultrapassaram o número de sagrados da pedra, fogo e luz, ornamentando-os com uma grandeza helenomaniaca.
seis mr oes em 1934 p .
· - . ' or malar que seja o poder de um instrumento destinado à A idéia de urna comunidade nacional foi adaptada para e pela experiência da
au d rçao, um sentídr, q _ . ..
ue nao pode ser paralisado ou fechado com facilidade, não se nação de se ver a si mesma com essa aparência. As suas memórias e história
oficiais e particulares foram projetadas em cartazes e espetáculos políticos, na
arquitetura monumental, em rituais iluminados e em treinamentos orquestrados e
35. Z. A. Zeman, Nazi p--;-- . geométricos de massas, As exigências das filmagens moldaram diretamente esse
36. Wolfgang Sa h' 'h opaganda (Oxford University Press, 1964), p. 34.
c so serva que o d d - ".
importante par sucesso a pro uçao em massa de radlOs abnu um precedente processo. Ele foi apreendido, preservado, refinado, e disseminado em formas
a
liberdadenasv'd' d
a ProdUÇão em' d ,. .
massa e auromcvcís que traria um outro novo sentido de
I as vs alcmães Ele oi fi de Hi , ampliadas e editadas, Os eventos reais não podiam se equiparar aos requisitos
em 9 de março de 1934-" ' s. ~ cita uma a a e ~ltl~r p.ubhcad_a no Volikis~her Beobachter
popular foi be . Hã poucos meses apenas, a industria alema, ao produzir um novo rádio
, m eucedida em I d d
receptores. Quero a o ' ançar no .me~ca to e ven er um enorme número de aparelhos
de projetar Um ~ t g ,ra colocar diante da industria automobilística alemã a missão significativa -'--------
J .. li omovelqu . bri .
milhões". For th L e consiga o ngatonamente atrair compradores, chegando à casa dos 37. Horst J. Bergmeier e Ruiner E. Lotz. Hitiers Airwllves: The lnside Story of Nazi Radio
Press, 1992), p. ~9. OVe of the Automobtle, tradução de Don Reneau (University of Califórnia Broadcasting and Propaganda S'wing (Yale University Press, 1997).
38. David Welch, The Third Rcich: Politics and Propaganda (Routledge, 1993), p. 34.

190 191
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exigentes do novo registro histórico, e por isso Riefenstahl utilizou a sua máquina que contém a marca mais profunda do pensamento de raça, os seus emblemas
editora feita sob encomenda para aperfeiçoá-los. eram uma prova externa desesperada de que, apesar das aparências em contrário,
Não quero perder de vista os vários níveis de envolvimento com o ritual, o elas foram invariavelmente e desde sempre similares em termos fundamentais e
espetáculo e a exibição que caracterizam as perspectivas de diferentes participantes- exclusivos.
espectadores. É importante não apagar a distinção entre aqueles para quem esta Numa resenha penetrante de George Orwell a respeito de Mein Kampf,
superestimulaçãc visual ocorria em tempo real e face a face, e outros, posicionados datada dos tempos de guerra, onde há uma reflexão sobre a dinâmica psicológica
numa maior distância, cuja identificação e sincronização com o tempo marcial dos do hitlerismo e um alerta para que não se subestimasse o apelo emocional de sua
eventos de origem eram remotos. Estes últimos tomaram-se familiarizados com o concepção militarista de política, ele observou que "enquanto o socialismo e mesmo
cerne disso de um modo hiper real e praticamente inaudito, envolvendo estranhos o capitalismo, de uma maneira mais relutante, disseram às pessoas, 'eu lhes ofereço
ângulos da câmcra, a ação em velocidades variadas, e imagens sobrepostas ou em tempos prazerosos', Hitler disse a elas, 'eu lhes ofereço luta, perigo e morte' e
dissolução. Contudo, como sugiro aqui, o cinema forneceu um canal dinâmico e como resultado uma nação inteira se lança aos pés dele"." Para se compreender
massivo para uma mudança cultural substancial. Esta mudança se dava para trás essa escolha superficialmente perversa, que tem se repetido por diversas vezes na
na direção da serialidade e da solidariedade mecânica, mas também ia além disso. história de movimentos fascistas menos bem-sucedidos, devemos observar que os
Ela formava uma interconexão não-sincrônica - uma ontologia nacional - e era mesmos efeitos aglutinadores também foram induzidos pelos emblemas visíveis e
mediada e realizada por via das conexões laterais e hierárquicas que caracterizam pelas insígnias da logo-solidariedade. Colocados ou usados junto ao corpo, estes
a associação icónica e aquilo que talvez possa ser agora reconhecido como "logo- signos e gestos expressavam mais do que assentimento às transformações
solidariedade". revolucionárias da vida social. Elas eram ainda mais potentes na ausência de
A militarização foi e continua a ser o centro deste processo abrangente. É o palavras, podendo através do uso de ícones por si só estender imperativos, hábitos
fundamento do estilo fascista e dos valores estéticos em que a guerra, tanto como e disciplina marciais para além dos limites da minoria uniformizada.
experiência sagrada e iluminadora, como na condição de análogo a outras dimensões As reflexões de Hitler sobre esses padrões comunicativos e seus planos
de socialidade hierárquica brutal, ocupa uma posição privilegiada. Assim, a presença para aplicá-los em distintos estágios do desenvolvimento do movimento Nacional
de homens uniformizados é um aspecto recorrente e sintomático de seus poderes, Socialista constituem uma ajuda valiosa para se compreender o significado dessas
os quais são comuns em diferentes ordens cerimoniais e rituais, irrompendo através mudanças e o papel da mídia para preparar e orquestrar o entrincheiramento delas.
das barreiras erigidas pelas formalidades ideológicas de Esquerda e de Direita. Os Hitler descreve um movimento progressivo desde o período inicial em que o poder
movimentos fascistas demarcaram uma ruptura sutil em relação aos padrões do da palavra falada era supremo em termos da construção da causa nazista até
simbolismo político que haviam se estabelecido com a.Revolução Francesa, quando chegar a fase em que as reuniões de massa se tomaram a instituição organizacional-
pela primeira vez o cocar tricolor e outros emblemas patrióticos transportaram as chave e, por último, o estágio final, quando os símbolos e as sugestões visuais
forças institucionalizadas da divisão política popular para o curso da vida cotidiana." tomaram-se uma necessidade dominante. Embora essa análise se paute pelo seu
O velho padrão moderno dirigia a atenção para uma fundamental unidade na visível desprezo em relação às massas parecidas com rebanhos, as palavras de
diversidade da nação revolucionária e de seus cidadãos, enquanto o padrão mais Hitler adquirem um novo significado em nosso próprio tempo, quando a saturação
novo da interconexão icônica enfatizava a intercambialidade e a disponibilidade do espaço público pela publicidade tem se associado aos altos níveis de analfabetismo
dos membros individuais pertencentes ao corpo coletivo. No primeiro caso, as funcional. Ele continua:
pessoas tornavam-se similares devido à intermediação dos emblemas; no segundo,

39. LYUIl HUIll, Politics, CU/fure and Class in the French Rcvolution (Routledge, 1984). pp. 57-SR. 40. George Orwell, The Colleeted Essays, voJ. 2, org. Sonia Orwell e Ian Angus (Penguin, 1968).

192 193
ENTRt LAMI'U:"I naçoes, vuuuras e o r asctm o oa xaça PAUL GILROY I

Quando muito, um panfleto ou um cartaz pode, dada a sua brevidade, contar com a
insígnia eferiva pode em centenas de milhares de casos dar o primeiro ímpeto ao
certeza de prender por um momento a atenção de alguém que tenha um pensamento
diverso. O retrato em todas as sua formas, até chegar ao filme, tem maiores
interesse em um movimento". Eu acrescentaria aqui uma outra sugestão. O papel
possibilidades. Aqui um homem precisa usar seus miolos bem menos; basta olhar. da insígnia, dos símbolos, e dos ícones, não se limita ao primeiro encontro narrado
ou quando muito ler textos curtos em extremo, e assim muitos aceitarão mai~ por Hitler. Ao que parece, o uso dos ícones podia promover, manter e renovar a
PJOntamente uma apresentação pictórica do que lerão um artigo de qualquer "logo-solidariedade", assim como iniciá-la. Os diversos tipos de interconexão que
comprimento. O retrato lhes traz em tempo muito mais curto, eu poderia quase dizer [i os ícones consolidam são um aspecto fundamental do modo como as aspirações
de um só golpe, o esclarecimento ljue eles conseguiriam com material escrito somente
do irracionalismo autoritário, baseadas na consciência de raça, devem ser
após árdua leitura."
imaginadas. Ao chamar a atenção para laços culturais mais profundos e autênticos,
Esta forte percepção de valor em relação ao que se vê, em comparação que não poderiam ser falados ou escritos sem que fossem diminuídos, esses signos
com o que se lê, ou ouve, foi bastante aperfeiçoado na discussão posterior de estabeleciam a significância do que podia ser dito ou escrito e tomavam alguns
Hitler sobre o poder dos símbolos que foram empregados com tanto sucesso durante tipos de fala totalmente desnecessários. O poder emudecedor dos ícones liga-se,
a construção do movimento nazista. Ele inicia as famosas passagens de Mein enfim, às proibições em matéria do que pode ser falado, ao silenciamento da
Kampf em que aborda a suástica e a bandeira nazista há pouco desenhada com população, e à pressão característica sobre a própria linguagem que ajuda a definir
uma reminiscência sobre uma manifestação comunista coberta de bandeiras e a governança totalitária por via do seu investimento obrigatório em circunlóquios,
flores vermelhas vista por ele no período turbulento que se seguiu à guerra de eufemismos e códigos.
1914-1918. "Um mal' de bandeiras vermelhas, lenços vermelhos e flores vermelhas Um exemplo interessante das conseqüências práticas dessa solidariedade
!l metafísica, e destituída de palavras, criada pelo desdobramento de ícones, pode
deram a esta manifestação, que se estima ter contado com cerca de cento e vinte
mil pessoas, um aspecto que era gigantesco de um ponto de vista meramente ser tirado dos debates acrimoniosos sobre a extensão e o carãter do
externo. Eu mesmo pude sentir e compreender como o homem do povo sucumbe comprometimento nazista de Martin Heidegger. O seu caso deprimente ainda
facilmente à mágica sugestiva de um espetáculo tão grandioso em seus efeitos"." representa o mais significativo balão de ensaio dos debates sobre a importância
IJ
Se esta passagem transmite algo do débito imaginativo que o Nacional Socialismo das idéias nazistas, ultranacionalistas, e outras idéias e sistemas cognitivos
teve em relação aos seus antecessores de esquerda, a atenção de Hitler à dinâmica raciológico-mfsticos para o pensamento filosófico moderno. Um das vezes em que
psicológica e simbólica envolvida na consolidação de seu poder emergente, por se aceita que Heidegger fez observações que não só apoiaram a causa nazista,
meio da produção de "um retrato da vontade de nosso movimento" numa forma mas que de fato ligaram os seus próprios conceitos filosóficos diretamente ao
tão concentrada, parece ter ultrapassado qualquer coisa que os comunistas projeto nacional socialista ocorreu durante um encontro com Karl Lõwith. Mais
houvessem realizado até aquele ponto. jovem do que o filósofo, Lõwith era um ex-estudante judeu que fora muito ligado a
Se uma suástica preta contra um fundo vermelho e branco era um retrato , ele no passado, sendo que mais tarde tomar-se-ia seu colega e desempenharia um
precisamos agora nos perguntar que tipo de retrato era este. A exposição cativante papel central ao levantar a discussão sobre o nazismo de Heidegger ao longo dos
de Hitler sobre como as cores e as dimensões da nova bandeira nazista foram anos 1940. Lõwith deixou um relato detalhado de um encontro entre eles ocorrido
escolhidas não precisa ser repetida aqui. Ela tem importância secundária em relação em 1936, na Roma de Mussolini. Ele afirmou que nessa ocasião, Heidegger
à percepção suprema que decorre da observação feita por Hitler de que "uma concedeu prontamente que "o partidarismo dele pelo Nacional Socialismo encontra-
se na essência da sua filosofia" e que "o seu conceito de 'historicidade' era a base
do 'engajamento' político dele''." Esta explicação que tem a ver afinal com a
41. Hitler, Mein Kwnpf, p. 470. A fonte destas idéias pode ser o trabalho de Ernst Jüngcr. Ver
Bennan, Modem Cultural and Criticai Theorv. pp. 99-J 18.
42. Ibid., p. 492. ~ 43. Karl Lõwíth, "My Last Meeting with Heidegger in Rome J 936", in R. Wolin, crg., The Heidegger
Contraversy : A Critical Reaja (MIT Prcss. 1993), pp. 140-144.

194 195
ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

visão de Heidegger sobre a nação alemã e seu caráter e destino político, histórico exemplo. Não quero especular sobre o que esta escolha de Heidegger possa
e ôntico, tem sido ainda mais desenvolvida por diversos acadêmicos, de forma comunicar sobre ele como um homem, ou sobre o seu status como embaixador
mais notável por Pierre Bourdieu." Cito isto aqui de passagem por me parecer intelectual de seu país ao longo de sua visita. Em vez disso, é mais produtivo
ligado à decisão de Heidegger de exibir a suástica cm sua própria pessoa. Em indagar-se sobre o que esta exibição de partidarismo pela causa nacional-socialista
contradição com a mais dispersiva e desordenada heterogeneidade das aparências, significava em termos de um ato político, após a promulgação das leis de Nuremberg
é possível que tenha sido o poder metafísico de um ícone decididamente invariável e já completados dois anos desde a queimação pública de livros considerados "de
que - para se adotar uma metáfora bem não heideggeriana - sintonizou as pessoas escrita judaica destrutiva" em campi universitários, assim como o início de ações
com o ,canto de sereias de seu ser coletivo, isto é, o ser racial e nacional: "o ser é civis e legais contra os judeus. Esta fase de violência e de perseguição ativa havia
o protótipo duradouro, o sempre idêntico"." conduzido a uma situação em que as palavras e os signos ganhavam uma nova
O eminente filósofo aproveitara a oportunidade para trazer sua família para importância, em particular quando os processos de higiene cultural e racial, que
uma viagem curta pela Itália enquanto ministrava uma série de palestras sobre a então se desenvolviam, não conseguiam separar as pessoas prontamente em linhas
obra poética de Hõlderlin no Instituto Cultural Alemão-Italiano, e outras ainda, Iingüfsticas ou somáticas. Esses signos e ícones, sejam em vestimentas, sejam na
sobre a Europa e a filosofia alemã no Instituto Kaiser Wilhelm. Impedido de assistir marcação de prédios, lares e instituições cívicas, transportavam os espectadores
ao segundo evento por ser judeu, Lõwirh surpreendeu-se por Heidegger ter usado imediatamente a um lugar especial, para além da duplicidade das palavras, onde as
um distintivo ou alfinete com a suástica na lapela durante toda a viagem. Lõwith divisões históricas e raciais fundamentais podiam ser percebidas de súbito. A
incomodava-se com o fato de que aquele que havia sido seu mentor por um certo utilização deles fez com que uma situação complexa e confusa, caracterizada por
período não percebesse que o gesto dele era inapropriado quando em companhia uma vasta assimilação e amalgamação, parecesse bem distinta. Uma vez colocados
de um judeu de quem ele fora próximo no passado: em seus lugares os emblemas históricos e ícones adequados, a população alemã
poderia se conformar aos códigos binários mais simples do pensamento de raça: a
No dia seguinte minha esposa e eu fizemos uma excursão para Frascati e Tusculum favor ou contra, dentro ou fora.
com Heidegger, sua esposa e seus dois filhos pequenos, de quem eu cuidara muitas As opiniões de Lôwith sobre a filosofia de Heidegger, e seu relato sobre a
vezes quando eram menores. Era uma tarde radiante e eu estava feliz com este
conversa deles nessa ocasião, têm sido rechaçadas em termos predizfveis e sumários
encontro final, apesar de inegáveis reservas, Mesmo nesta ocasião, Heidegger não
tirou a insígnia partidária de sua lapela. Ele a usou durante toda a sua estada em pelos apologistas mais ferrenhos do filósofo." Prefiro afirmar que a decisão de
Roma, e era óbvio não ter ocorrido a ele que a ~uástica ficava deslocada enquanto Heidegger de exibir a suástica em sua pessoa é uma questão relevante em si
ele passava um dia comigo." mesma. Ela o vincula diretamente à filosofia prática de Hitler de uma maneira
imediata seja lá qual for a interpretação que se tenha sobre as conexões entre o
É possível que este juízo de Lõwith de que Heidegger simplesmente não nazismo de Heidegger e seus outros cometimentos filosóficos.
percebesse a impropriedade de seu gesto seja generoso demais, mas nunca
saberemos com precisão o que motivou o grande filósofo a tornar visível este
cometimento. Talvez esta não seja a questão mais interessante acenada com este

44. Pierre Bourdieu, The Politicai Ontoiogy ojMartín Heidegger, tradução de Peter Colfier (Polity 47. Karl Lõwith, Martin Heidegger and European Nihilism; org. Richard Wolin, tradução de Gary
Press,1991). Steiner (Columbia University Press, 1995). Em seu livro recente, Heidegger; Philosophy, Narism
45. Martin Heidegger, Introduction to Metaphysics, tradução de Ralph Mauheim (Yale University (Cambridge University Press, 1997), o filósofo Julian Young descreve o relato de Lôwith sobre
Press, 1959), p. 202. a reunião como provido de "evidências relativamente fracas", mas não considera o fato de
46, Lõwith, "My Lasr Meering with Heidegger in Rome 1936", pp. 140-144. Heidegger usar o emblema nazista como um gesto comunicativo por si só significativo.

196 197
t'AUL lilLROY
ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

ESPETÂCULO PARAMILITAR, ESPORTE, RAÇA E O CORPO


vulgar pelos seus aliados políticos, salta de suas páginas, exemplificando o modelo
mesmo de tudo que o treinamento físico do povo deveria instilar na juventude de
É preciso repetir aqui que uma orientação paramilitar constituiu um aspecto uma nação a renascer em breve:
integral do modo como se recompôs a cultura política durante o período fascista."
Nenhum outro esporte promove tanto quanto este o espírito de ataque, demanda
Muito tempo antes que o ultranacionalismo moderno deslocasse os seus antecedentes
decisões esclarecedoras, e treina o corpo com uma destreza de aço ...acima de tudo
coloniais, a vida militar pusera uma ênfase distintiva na arregimentação enquanto o corpo jovem e saudável deve aprender a sofrer golpes. É claro que isto pode
sinal de perfeição. Ambos podiam ser aferidos através da exibição coordenada do parecer extravagante aos olhos de nossos atuais combatentes espirituais. Mas não
corpo masculino. Esta espetacular corporificação política dramatizava o poder é uma função do Estado popular criar uma colônia de estetas pacfficos e degenerados
nacional, governamental e racial. Intensificada através de filmes apropriados, e físicos. Não é no respeitável lojista ou na velha donzela virtuosa que este vê o seu
ideal de humanidade, mas sim na corporificação desafiante da força masculina e em
aqui deveríamos relembrar o desagrado permanente de Leni RiefenstahI em relação
mulheres capazes de gerar homens para o mundo.
às imagens filmadas que não escapavam às convenções visuais da mera projeção E assim o esporte não existe somente para tomar o indivíduo forte, ágil e audaz; ele
integral do cine-jornal, esta corporificação política proporcionava uma maneira deveria também endurecê-lo e ensiná-lo a suportar dificuldades.P
evidente para comunicar o efeito capaz de inspirar a admiração durante eventos
espetaculares, dirigidos a um público sempre crescente que poderia encontrar prazer Estas palavras poderiam quase ter saído das páginas de Guia do Escoteiro
nas hierarquias racializadas, então avivadas por meio da "renovação criativa para Meninos, ou Rovering to Success [Mirando O Sucesso]. Elas nos trazem
abrangente" dos nazistas." um estranho eco distorcido vindo de um ideal imperial mais antigo." Com elas
O interesse fascista na utilização dos esportes e do treinamento físico como podemos também começar a deduzir como na passagem da participação das
parte da sua propaganda e como um componente crítico do seu estilo político é massas no esporte para a observação do esporte pelas massas, Louis e Schmeling
sem dúvida relevante aqui. Isto é verdade não apenas devido às maneiras óbvias - a quem um especialista dos mais importantes como Andrew Young se referiu
como as modernas atividades esportivas têm funcionado como cifras de guerra, como tendo combatido em avanço a Segunda Guerra Mundial - podiam se tomar
camuflado a relação entre o entretenimento e a política e produzido os mais fortes um novo tipo de herói popular racializado. Ambos foram alçados a um nível febril
e duradouros arquétipos raciais. Voltarei logo mais a estes pontos ao discutir a de representatividade icônica, graças ao papel desempenhado integralmente pela
Olympiad de Leni Riefensrahl, mas quero inicialmente apontá-los através do exemplo mfdia ao encenar seus conflitos e infundir suas personalidades públicas, seu estrelato
igualmente significativo trazido pelas figuras contrastantes de Joe Louis e Max e seus corpos com uma significância nacional e raciológica. As lutas entre esses
Schmeling. As opiniões de Hitler sobre a atividade esportiva no Estado volkish dois boxeadores pontuaram o período que levou à eclosão da guerra. As suas
foram expostas até certo ponto em Mein Kampf. Em meio ao seu predizível vidas entrelaçadas ainda oferecem um contraponto ao tema imortal da superioridade
entusiasmo em conceder prioridade ao treinamento do corpo em vez da mente, ariana através de uma estória distinta - a comercialização transnacional do esporte
uma defesa do boxe, que segundo ele era injustamente descartado como algo e de seu papel na construção de audiências planetárias.

50. Hitler, Mein Kampf, p. 410.


48. Scott Hughes Myerly, Brisísh. MiliUlry Spectac!e: Fromthe NapoleonicWars rhrough lhe Crimea
51. O endosso de Bnden Powell com respeito ao boxe como um exerctcio masculino pode ser
(Harvard University Press, 1996), capítulo 1, "The Spectacular Imege". encontrado na seçâo "Games to Develop Strength", no capitulo 6 de Scoutíng for Boys (C.
49. Estas palavras são de Hitler, à página 533 de Mein Kampf. George Mosse fez mais do que
Arthur Penrson Ltd., 1941 [1908]. Ver tambémUlfHedetofr, "War, Racisrn, Soccer", in Plemming
qualquer outro para apresentarelementos da história desses desenvolvimentos em seu livro The Rogilds, org., Every Cloud Hm a Sííver Lining (Akademise Forlag, 1986), e J. A. Mangan e
Nationalizarion of the Masses: Politicai Symbolism and Mass Movements ín Germanyfrom lhe James Walvin, orgs., ManlinessundMorality:Middle.CtussMusculinityín BritainondAmerica;
NapoíeontcWars throughthe Third Reich (Comell University press, 1975), e Masses and Man:
1800·J946 (University of Manchester, 1987).
Nationa!istand Fascist Perceptíons of Reality (Wayne SrareIjniversity Press, 1987).

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ENTRE CAMPOS •• Nações, tuuuras e o r asctmc ua Raça PAUL GILROY I

Tempos depois, ambos atletas fariam contribuições extensivas aos esforços filme sobre a peleja, com direitos integrais sobre a distribuição no além-mar, o qual
de guerra das nações às quais suas proezas pugiJísticas estavam associadas - ele assistiu em companhia de Hitler, logo após voltar para a Alemanha. O ministério
Schmeling como soldado pára-quedista, e Louis, entre outras coisas, como de Goebbels editou todo o filme da luta juntamente com cenas de treinamento em
coadjuvante com Ronald Reagan no filme propagandístico This is the Army [Este campo de ambos os boxeadores, além de imagens da recepção triunfante de
éoExército], datado de 1943. É significativo que ambos também ficassem vinculados Schmeling em Frankfurt. O filme resultante, Max Sehmeling's Vietary, a Germany
ao sistema de estrelato da indústria do cinema, Schmeling através do seu casamento Victory [A Vitória de Max Schmeling, uma Vitória da Alemanha], foi projetado em
com a atriz Anny Ondra, uma estrela de filmes apropriadamente loira que salas superlotadas.P
acompanharia seu marido com frequência em jantares na residência de Goebbels. Levou algum tempo até que Louis conseguisse se restabelecer como o
Na época de seu primeiro encontro, Louis, cujos feitos históricos seriam celebrados adversário mais atraente aos olhos de Schrneling. Para tanto, ele contou com o
em um disco de 1941 pelos talentos combinados de Richard Wright, Paul Robeson apoio da Liga Anti-Nazista que estava bem ciente dos ganhos políticos simbólicos
e Count Basie, era então o mais famoso homem negro nos Estados Unidos. Como decorrentes do possível resultado de qualquer revanche e, é claro, sabia que se
é bem conhecido, ele foi derrotado pelo campeão alemão na primeira luta realizada Schmeling conseguisse derrotar Louis pela segunda vez, o alemão tornar-se-ia,
.em junho de 1936 no estádio Yankee, no Bronx, a pouco tempo de se iniciarem os uma vez mais, o campeão mundial. Agora aos 24 anos de idade, tendo se tornado
jogos das Olimpíadas de Berlim. A vitória inesperada de Schmcling contribuiu segundo campeão negro de peso pesado após derrotar Jimmy Braddock, Louis
muito para as expectativas em torno da superioridade física ariana, destruídas passou por um longo período de treinamento para se preparar para a segunda luta.
semanas depois pelo extraordinário sucesso físico de lesse Owens. Esta luta ocorreu por fim em junho de 1938 em meio a uma atmosfera altamente
Schmeling havia boxeado pela primeira vez nos Estados Unidos em fins dos politizada, o que Schmeling considerou como uma resposta americana de cunho
anos 1920. Ele venceu o campeonato de pesos pesados em 1930, mas perdeu o imitativo à politização do esporte durante o Terceiro Reich. Louis descreveu seu
título novamente logo depois. Ao retornar em meados dos anos 1930, ele vinha sentimento crescente de que o mundo inteiro estaria assistindo o segundo encontro
tanto para lutar com Louis quanto para atuar como um emissário do governo nazista deles:
que aguardava ansioso devido às previsões de um boicote americano aos próximos
jogos olímpicos, os quais haviam sido concedidos à cidade de Berlim antes da Pelo que pude constatar ao ler os jornais e ouvir as conversas, o mundo inteiro
ascensão dos nazistas ao poder. Schmeling afirma que ele era um estudioso atento estava vendo esta luta entre eu e Schmeling. A Alemanha estava dilacerando a
dos filmes sobre a atuação de Louis no ringue. Ele conta que durante um almoço Europa, e ouvíamos cada vez mais falar sobre campos de concentração para os
com Hitler em Munique, pouco tempo antes da primeira luta, o Führer mostrava- judeus. Muitos americanos tinham família na Europa e temiam pelas vidas dos seus
parentes. Schmeling representava tudo que os americanos não gostavam, e eles
se preocupado com o fato de o desafiante arriscar o prestígio de sua nação e de
queriam vê-lo batido e bem batido. Bem, aqui estava eu, um homem negro. A mim
sua "raça" num combate com um homem negro (deve-se observar aqui que este cabia o fardo de representar a todos da América. Pessoas negras e brancas
tipo de luta esportiva entre negros e brancos era ilegal em algumas partes dos conversavam sobre minhas lutas; falavam também sobre mim como uma pessoa.
Estados Unidos naquela época). A vitória de Schmeling sobre Louis deliciou os Imagino quc eu lhes parecesse bem. Os americanos brancos - mesmo enquanto
líderes de seu país que haviam minimizado a luta por preverem um resultado oposto. alguns deles ainda linchavam pessoas negras no Sul - dependiam de mim para
nocautear a Alemanha."
Também foi bem recebido por muitos americanos brancos afeitos a consignar
Louis à mediocridade e bastante preparados para cingir-se ao triunfo racializado
do "Ieutão terrífico" sobre o impudente e confiante jovem homem negro que
aparentemente havia ultrapassado a si mesmo. Hitler e Goebbels ficaram
entusiasmados com esse triunfo, considerando-o como um símbolo poderoso da 52. Chris Mead, Joe Louis: A Bíograpky (Scribners/Rcbson Books, 1986), p. 100.
inata supremacia branca. O próprio Schmeling conseguiu obter a propriedade do 53. Joe Louis, cem Edna Rust e Art Rusr, My Life (Eco, 1997 [1978]). p. 137.

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

Um convite da Casa Branca para jantar com o presidente tornou patente o que a América se esforçava por distinguir a política nazista de "raça" dos seus
significado político da luta, o que deixou Louis fortemente impressionado. Após próprios sistemas de segregação e de cassação do sufrágio universal, discussões
apalpar os músculos do boxeador, Franklin Roosevelt disse, "Joe, dependemos intensas desenvolvidas na imprensa negra ganharam novo ímpeto. No New York
destes músculos para a América". World Teiegram, Heywood Broun transmitiu um sentimento bem diferente:
A vitória extraordinária de Louis na segunda luta precisou somente de dois
minutos e quatro segundos. O filme da luta foi tão curto que precisou ser alongado É possível que dentro de cem anos algum historiador venha a reorizar.i.queo declínio
do prestígio nazista começou com um golpe de esquerda dado por um ex-operário
com cenas em câmara lenta. Tempos depois, os técnicos de filme nazistas tiveram
não-especializado do setor automobilístico, que jamais estudara as políticas sociais
de reeditar a luta para mostrá-la em seus próprios cine-jornais de forma a tomar de Neville Chamberlain e não tinha opinião alguma sobre a situação na
plausível a versão de que Schmeling havia sido atingido par um golpe baixo, segundo Tchecoslováquia...Sabia-se que Schmeling se via como um símbolo nazista. Não se
declararam seus empresários após a partida.>' Ao visitar Schmeling no hospital, o sabe se Joe Louis se vê comumente como um representante de sua raça c como
embaixador Hans Heinrich Dieckhoff incentivou-o a encaminhar um protesto pela alguém que se dedica a fazer avançar o seu prestigio ...Mas isto pode ter estado em
seu coração quando ele explodiu o mito nórdico com uma luva explosiva."
maneira com que Louis conseguiu sair vitorioso, mas ouviu em troco que não
houvera nenhuma falta e que a vitória de Louis fora legítima. Louis concluiu suas
Na Alemanha, os opositores do regime de Hitler organizaram
reflexões sobre a significância histórica e política da luta com a seguinte observação:
espontaneamente as suas próprias celebrações pelo triunfo de Louis. Mas esta
"Ouvi dizer até mesmo que quando os alemães souberam que eu estava batendo
não foi a única resposta à grande luta. A figura de Heidegger nos vem à mente
para valer em Schmeling, eles cortaram a transmissão de rádio para a Alemanha.
mais uma vez. Infelizmente não sabemos qual foi a sua reação em 1938, porém,
Eles não queriam que o seu povo soubesse que um simples preto velho estava
três anos antes, durante o curso de palestras publicadas posteriormente como
estraçalhando a Raça Ariana".
Introdução à Metafísica, ele expressara seu desagrado perante a triste situação
As ramificações da vitória de Louis seriam importantes para a política de
em que um boxeador poderia acabar sendo reconhecido como um herói nacional.
"raça" de ambos os países. O relato a seu respeito, de autoria do próprio Louis, foi
A polêmica correspondente, contrária ao "escurecimento do mundo", ligou esta
contra a corrente de grande parte da cobertura de imprensa, mas não apresentou
lamentável ocorrência histórica à crítica da força corrosiva da tecnologia moderna,
Alemanha e Estados Unidos de um jeito simplista, isto é, contrapostos um ao outro.
a uma visão mordaz sobre os comícios de massa, e a sua antipatia com relação a
As memórias dele desafiam as pretensões morais da América por terem
outros aspectos dos regimes tecnológicos, o que presumivelmente incluía o nazismo
tranqüilamente chamado a atenção para o fato de que ambas as nações se
existente naquele momento. Uma vez que é neste texto que Heidegger não só
apoiavam numa política de "raça". Ele descreve, por exemplo, a presença de nazistas
afirma a "verdade e a grandeza interior?" do movimento nacional socialista, mas
americanos autóctones, que compareceram ao seu campo de treino para
também emprega o conceito de "raça" numa breve discussão do espírito nacional,
demonstrar seu apoio entusiástico à mensagem de ódio vinda de Hitler. Em dias
da beleza, do corpo, e do combate, há uma certa imperícia em alardear estas
subseqüentes à luta, o New York Times se esforçou para persuadir seus leitores de
passagens, tal como se tem feito, como capazes de evidenciar o repúdio do filósofo
que o resultado era insignificante e que "nada havia se passado". Contudo, à medida
em relação às fervorosas opiniões defendidas por ele anteriormente quando era
reitor da Universidade de Preiburg. A forte opinião de Heidegger sobre o fracasso
54. O melhor relato curto das lutas e da atmosfera cm torno delas encontra-se em Mead, Joe Louis:
do hitlerismo em se equiparar aos exigentes padrões pessoais estabelecidos por
A Biography, pp. 92-159: ver também Joe Louis Bnrrow Ir. c Bárbara Munder, Joe Louis: The
Brown Bomba (Weidcnfeld Paperbacks, ] 988); Richard Bak, JOe Louis: The Great Black Hope
(Taylor Publishing, 1996), e Joe Louis, My Live, Grande parte do material de Mead sobre
SchmeJing foi tirada da autobiografia do lutador. Errínnerungen (Verslager UlIstcin GMBH, 55. Conforme citado por Mead, Joe Louis, p. 159.
1977). 56. Heidegger, Introduction to Metaphy,l'ics, p. 199.

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ENTRE CAMPOS :: Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

ele não chega a ser um repúdio do nazismo seja nas formas genéricas, seja nas Em conclusão, podemos retomar a Leni Riefenstahl com suas revolucionárias
formas ideais às quais ele aderira de um modo idiossincrásico. Contudo, ele pode realizações artísticas e tecnológicas, as quais apontam para uma série de questões
ter acertado mais do que pensou quando, com a sabedoria de um integrante, ele interligadas neste capítulo. O poder duradouro do trabalho dela confirma que ele
apontou, com proveito, esses aspectos específicos da cultura política nazista como continua a ser a base sobre a qual a plausibilidade do estilo fascista e de seus
a perturbadora essência histórica daquilo que o Nacional Socialismo havia se tomado. valores estéticos associados será estabelecida. As circunstâncias em torno da
produção de O Triunfo da Vontade, sua gravação do sexto Congresso Nazista e
LENI RmPENSTAHL E A COMUNIDADE CARISMÁTICA o segundo filme feito por Riefenstahl durante o período nazista não podem ser
reconstruídos em detalhe aqui. Mas é importante perceber o lugar de O Triunfo
Embora a história do treinamento vocal e dramatúrgico de Hitler, assim na carreira de Riefenstahl, de atriz a diretora, para apreciar o encanto erótico
como dos elementos "wagnerianos" na encenação do ritual nazista, sejam percursos lançado por ela sobre a liderança nazista, para entender a relação desta liderança
críticos bem conhecidos, é preciso relembrá-los neste ponto, mesmo que brevemente, com os seus primeiros filmes alpinos, rodados tendo como fundo a extremidade
corrio dimensões adicionais daquilo que Hitler descreveu como "a mágica sugestiva sublime de gelo e neve, o cenário natural do mito e do heroísmo racial nórdico, e
do espetãculo". É importante que não abordemos as tecnologias da especularização para compreender algo das inovações técnicas substantivas que constituem a ligação
como fatores secundários ou subsidiários, como algo que teria vindo depois e mais óbvia entre este filme, Olympiad (o filme feito por ela sobre os jogos olímpicos
simplesmente conduzido o irracionalismo autoritário para uma audiência de massas. de 1936), e a nova cultura visual iniciada por eles.
Já afirmei que a câmera foi diretamente responsável pelo tipo de solidariedade Além destas questões fundamentais, devemos apreciar a escala
celebrada pelos movimentos fascistas. Ela foi utilizada não apenas em festividades extraordinária da produção. O Triunfo da Vontade foi O mais caro filme
organizadas para demarcar e comunicar o renascimento da nação depois de ter documentário produzido até então, envolvendo centenas de milhares de metros de
passado por períodos de fraqueza, decadência e inatividade. Embora possa haver filme e dúzias de cinegrafistas altamente especializados. Exigiu, ainda, horas
algum exagero em dizer que esses eventos foram sempre realizados em benefício incontáveis de trabalho de edição e seus padrões técnicos propiciaram uma miríade
muito mais da sua audiência remota do que da imediata, podemos estar certos de de inovações profissionais posteriores, A nova paleta com longas tomadas de cena,
que as festividades espetaculares que objetivavam produzir aquilo que RogerGriffin cenas de diluição vagarosa, variações da velocidade da câmera, e justaposições
denominou de "comunidade carismãtica'"" eram encenadas tendo em mente o com as quais Riefensrahl estendeu os limites de seu instrumento, já foram discutidos
poder e a atuação da câmera. em mínucias pelos historiadores do cinema. Contudo, nada disso deveria obscurecer
seja a contribuição política básica do filme para o realinhamento entre o partido, o
movimento e a nação, que então acontecia após o assassinato do líder populista, o
57. A citação foi tirada do ensaio de Griffin em Günter Berghaus, org., Fascism and Theatre: camisa marrom Ernst Rohm, a mando de Hitler, seja a sua realização mais evidente:
Comparanve Srudies on the Aesthetics and Politics of Performunce ln Europc, J925-1945
(Bcrghahn Books, 1996). Há uma importante controvérsia sobre este ponto entre aqueles que a orientação da comunidade nacional para a guerra, que Riefenstahl fez com que
debateram o trabalho de Riefenstahl. Paul Virilio cita a própria Ricfenstahl dizendo que o se parecesse desejável, assim como inevitável. A sua afirmação sedutora do poder
Congresso do partido filmado em O Triunfo da Vontade "foi organizado nos moldes de uma histórico, da beleza cultural e da força civilizada do domínio alemão é o cenário
perfonnance teatral, não apenas como uma manifestação popular, mas também para fornecer o
material para um filme de propaganda ...tudo era decidido em referência ii cârncra". Ele eiraa fonte para o próprio estrelato difidente de Hitler, uma estranha combinação de ódio e de
destes comentários como constante de Hintcr den Kulissen dcs Reichs-Parteirag-Filrns. Virilio, autoridade, descrita por Orwell como "o rosto patético com cara de cachorro ...de
War ond Cinema: The Logistícs ojPerceptíon (Verso, 1989). Os defensores contemporâneos de um homem sofredor sob o peso de erros intoleráveis". A energia dinâmica e
Riefenstahl estão cientes dos riscos em se conceder este ponto. Audrey Salkeld, a apologista
mais completa de Riefensrahl, fez constar uma negação cabal: "não se pode dizer que o espetáculo estimulante do filme é o amor que o povo devota ao seu líder, transmitida pelo
pomposo tenha sido encenado para as câmcras'' Audrey Salkeld, A Ponratt of Lení Riefenstal climax rapsódico de Riefenstahl e pelos rostos extáticos das multidões enquanto
(Jonathan Cape, 1996), p. 133. ovacionam. Tais como correntes oceânicas, fileiras de pessoas uniformizadas em

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GIlROY

marcha sincronizada passam diante do espectador, ao mesmo tempo cm que, numa Riefenstahl com a causa nazista não exigiu que ela desempenhasse o papel de
faceta tranqüilizadora, um gato cochila sobre o beiral de uma janela debaixo de uma racista anti-negro em qualquer sentido mais evidente. O Negro não era um
uma bandeira nazista. problema central da política contemporânea até onde ela pudesse disccmir, o que
Para um derradeiro juízo sobre a estética de Riefenstahl é preciso examinar permitiu, portanto, que ela - ao contrário de Hitler - prestasse congratulações
a questão da continuidade entre O Triunfo da Vontade, Olympiad, e tempos sinceras a Jesse Owens pelo seu sucesso físico e histórico. O seu entusiasmo
depois, suas bem recebidas fotografias "antropológicas" do povo nuba do Sudão. declarado pela África e o seu prazer evidente com a perfeição natural que ela
Esta extraordinária seqüência criativa e a sua relação com a cultura visual fascista descobriu nos corpos flexíveis e brilhantes de jovens africanos proporcionam mais
foram apontadas inicialmente em 1972 por Susan Sontag, em uma abordagem um exemplo da crise da "raça" e da representação esboçada em meu capítulo
provocativa e profícua." Numa leitura devastadora e arguta do trabalho de inicial. Mas, mesmo nos anos 1930, o fascínio dela pelo físico de Owens revela que
Ríefenstahl, ela preservou muito da sua força intelectual e contribuiu em boa hora essa estética fascista não era constrangida pela "raça", ou , para dizê-lo mais
para um bloqueio estratégico contra tentativas feministas e declaradamente anti- claramente, não é constrangida pela "raça" dentro das formas que poderíamos
políticas de reabilitação da cineasta nazistajã em idade avançada. Embora o ensaio prever. Contudo, o trabalho dela não se redime por esta aparente ausência de raça,
de Sontag ainda ofereça um ponto de partida adequado para o exame da estética como alguns defensores da sua reabilitação gostariam.
fascista, ele contém a marca de seu tempo. Não se explora, por exemplo, a questão Deveríamos reconhecer que a perspectiva de Riefenstahl não excluía a
da diferenciação racial em si mesma, ou as questões do ultranacionalismo, noção de que alguns negros, no mínimo, poderiam ser aristocratas de corpo. Mas
simbolismo, tipologia e hierarquia que se seguem a isso. Trata-se, porém, de aspectos esta aceitação não significava que se renunciara, transcendera ou abandonara o
do trabalho de Riefenstahl que têm um peso direto sobre as suas escolhas e pensamento de raça. Alguns aspectos disso eram confirmados nitidamente por
estratégias estéticas. Para fazer alguns acertos na abordagem de Sontag, tendo-se este fenômeno. Precisamos nos lembrar que, graças a ela, o festival olímpico das
em conta estes problemas de um modo mais abrangente, deveríamos lembrar que nações, encenado em Berlim em 1936, foi apresentado como um evento de beleza
a filiação e o apoio de Riefenstahl ao nazismo se deram sem os benefícios de um e força. Esta é uma forte combinação. Com isso se revela não apenas um nordismo
pertencimento partidário formal. O evidente prazer de Riefenstahl em contar com óbvio, mas também temas "espartanos" mais antigos, recompostos de acordo com
a amizade de figuras antigas do partido que, por seu turno, aproveitavam-se do os códigos helenomaníacos que consideravam a Grécia e a Alemanha como partes
glamour elegante da cineasta, envolta em suas vestes brancas, para modificar e correlatas de uma sensibilidade única e singular.s? As câmeras da cineasta
projetar as suas próprias personalidades públicas, permeia muito fortemente as demoram-se sobre Owens, e aquele pré-sentimento relacionado ao seu flerte
longas memórias escritas por ela e também muitas outras tentativas de se defender. posterior com o povo da Núbia, cuja cultura e sociedade ela projetou com uma
O'auto-retrato familiar é o de uma figura jovial e apolítica, artística em essência, selvageria indissolúvel e beligerante que por certo lhe dava prazer, tem sido lembrado,
negligenciada devido a sua busca rapsódica de beleza e injustamente perseguida repetidas vezes, de modo a mitigar a sua ligação com a causa nazista. Uma vez
por gente ignorante e desarrazoada. mais, o seu reconhecimento benigno e superficial da excelência negra em termos
A ausência de uma filiação formal ao partido deveria servir como alerta de compleição física não precisa ser visto como uma espécie de repúdio à teoria
àqueles cuja compreensão do caráter cultural do nazismo continua apegado a esses raciológica. Neste mundo de signos raciais inflacionados, um atleta natural
recursos oficiais e inadequados para se avaliar a existência de cumplicidade. 59 suficientemente bom, mas temperamental, é decerto aquilo que esperaríamos que
Poderíamos acrescentar que a relação complexa, porém íntima e entusiástica, de um africano selvagem pudesse se tornar. A noção de beleza negra é uma questão
mais complexa, mas mesmo isso precisa se constituir numa porta de entrada para
58. Susan Sontag, "Fascinating Pasoism", in Under lhe Sign ofSasurn (Farrar, Strauss and Giroux,
1984). 60. Suzanne L. Marchand, Downfrom Olympus: Archaeology andPhilhellenism in Gerrnany, 1750-
59. Ernst Hanfstangl, Hitler: The Missing Years (Eyre and Spottiswood, 1956). 1970 (Princeton University Press, 1996.

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

que nos liberemos da idéia de raça e de suas hierarquias naturais inegociaveis. Isto Sejam quais forem as conexões de Riefenstahl com a causa nazista, seus
também pode consolidar os laços mais destrutivas entre a negrura e o corpo em filmes não contêm nenhum anti-semitismo aberto, e isto, quando combinado com a
detrimento óbvio de quaisquer possíveis conexões entre a negrura e a mente. sua projeção "positiva" dos nuba, bem como seu olhar simpático às realizações de
Vamos deixar isto claro: não é que o reconhecimento das capacidades atletas como Owens e Kitei Son, o vencedor coreano da maratona de 1936, dão a
cognitivas e racionais dos negros seja necessariamente mais valioso do que o questão por encerrada. Ela não poderia ter negociado com o racismo e a sua
reconhecimento dos seus atributos físicos, embora esta seja uma questão justa a celebração dos grandes feitos de não-brancos exemplares toma-se uma evidência
se fazer em relações sociais construídas com base numa divisão aguda e dualista vital a ser usada em apoio das inúmeras vezes em que ela se declarou totalmente
entre corpo e mente. A questão central é ainda mais simples: a associação da apclítica. Nesta interpretação ela se torna uma poeta inocente da forma humana,
negrura com a inteligência, razão, e atividades mentais, constitui um desafio às uma celebrante da atividade esportiva em geral, cujas câmeras inovadoras
acepções básicas da raciologia - tanto em versões científicas, como de senso comum preocupavam-se tão somente em registrar o empenho universal de seus atletas
- ao passo que o mesmo não aCOITe quando ao "Negro" se confere o dote do corpo sem nome, por fora ou para além das alegações que os seus Estados-nação de
desvalorizado, mesmo nos casos em que esse corpo deva ser admirado. O corpo origem pudessem fazer em tomo deles.
negro pode ser apreciado como belo, poderoso e gracioso tal como um cavalo de Audrey Salkeld, a mais recente biógrafa de Riefenstahl, que tem a dúbia
corrida, ou um tigre, parece belo, poderoso e gracioso. Beleza e força física são, distinção de ser a sua apologista mais medrosa, envereda por esse caminho ao
afinal de contas, compreendidos por Riefenstahl como atributos naturais exclusivos tentar se contrapor ao feitiço do trabalho de Sontag, deixando de lado a avaliação
ao invés de realizações culturais. Eles são os produtos coincidentes da boa sorte de que a cineasta teria sido a pessoa mais injustiçada e mal-compreendida para
na loteria racial da natureza em vez de produtos do trabalho árduo, disciplina, elegê-la a propagandista mais dotada em matéria de qualificações! Além de afirmar
treinamento e comedimento. Esta característica mesma de ausência de esforço que a sociedade mais perdeu do que ganhou ao criar "embaraços" aos
por parte da beleza e da força física significa um valor reduzido quando seu código extraordinários talentos de Riefenstahl, ela declarou que os críticos não deram
se inscreve na pele negra forte e sinuosa. atenção suficiente ao fato de a arte da cineasta ter-se moldado de acordo com a
A celebração jovial e erótica do corpo humano realizada por Riefenstahl sua maneira de "ser uma montanhista e amante da natureza". Salkeld acusa ainda
poderia ser entendida como o início de um novo ângulo de visão. Invoca-se a o historiador da cultura, crítico de cinema e sociólogo Siegfried Kracauer, que foi
humanidade, mas se trata de uma humanidade hierárquica, fraturada e nitidamente contemporâneo de Riefenstahl, tendo fugido da Alemanha quando os nazistas
diferenciada ao longo de linhas raciais visíveis. A tragédia subjacente e implícita é assumiram o poder, de ter "se apressado cm por em letra de imprensa o primeiro
a perda ariana de poder físico e não a retenção africana disso. A possibilidade de estudo do cinema alemão de teor politicamente correto feito no pós-guerra...numa
que Riefenstahl possa ser uma fundadora da cultura visual, capaz de produzir e busca zelosa das fontes do nazismo". É difícil perceber por que o trabalho de
estetizar a "raça" como uma categoria significativa, não emerge na maioria dos Kracauer é visto como ilegítimo, sendo também difícil evitar a conclusão de que
escritos a respeito de sua obra. As conexões óbvias entre o trabalho dela e os ela se enfurece tão somente com o fato deste trabalho marcante sobre as ligações
retratos corporais de Bruce Weber ou Robert Mapplethorpe, ou ainda o fato de da crítica romântica da cultura industrial herdada da Mountain Filmes por Riefenstahl
que outros criptofascistas talentosos e excêntricos, como Heidegger, tenham em seu início de carreira ter apontado para uma avaliação mais negativa de seu
decidido exibir a suástica em suas lapelas, ainda estão à espera de ser investigadas. 61 trabalho posterior, contrariando as próprias tentativas revisionistas de Salkeld em
abençoã-lo.f

61. Patricia Morrisroe, Mupplethorpe (Random House, 1995), afirma: "Recentemente ele havia
começado a envergar um broche com a suástica em suajaqueta...[c] Mapplethorpe brincava com
a idéia de criar um linha inteira de "jóias nazistas", sendo que a suástica tornou-se outro amuleto
em seus colares fetichistas" (p. 103). 62. Salkeld, A Portraít oiLeni Riefenstahl.

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ENTRE CAMPOS •• Naçoes, rurturas e o Fascínio da Raça

Força física, esporte, combate, competição e seus valores correlates, podem


não ser os componentes centrais numa estética fascista genérica. Mas o modo 5
como eles apresentam a relação entre a identidade nacional e racial e a incorporação
física permanece no centro daquilo que distinguia os movimentos fascistas do
"DEPOIS QUE O AMOR SE FOI": BIOPOLÍTICA
passado, assim como daquilo que continua fascista na sua influência sobre a cultura
E O DECLÍNIO DA ESFERA PÚBLICA NEGRA
contemporânea. Em 1928, muito tempo antes que ficasse claro o que aconteceria
com a Alemanha, e muito tempo antes que Riefenstahl desse vida à cultura visual
desse país, Emmanuel Lcvinas se esforçava em compreender a filosofia do
hitlerismo. Ele dirigiu uma especial atenção ao sentimento de identidade entre o eu o biológico, com a noção de inevitabilidade que ele acarreta, torna-se mais do que
e o corpo, que estava então em construção onde quer que os movimentos fascistas um objeto da vida espiritual. Ele se torna seu coração. As misteriosas instigações do
sangue, os apelos do hereditário c do passado a que o corpo serve como um veículo
devolvessem o corpo e seus prazeres ao povo, cujo aprendizado anterior era feito
enigmático, perdem a característica de serem problemas sujeitos a uma solução
de concepções culturais e espirituais vindas do cristianismo e do liberalismo. Essas desencadeada por um Eu livre e soberano. O Eu não só introduz no desconhecido
doutrinas lhes diziam que o seu sentimento dc encarnação e restrição corporal era os elementos destes problemas para resolvê-los; ele também é constituído por
um estágio a ser palmilhado rumo a um sentimento superior e mais valioso associado estes elementos. A essência do homem não está mais na liberdade, mas sim num tipo
às idéias de alma e de espírito. Ao contrário dessas tradições, como Levinas de servidão. Ser verdadeiro consigo mesmo não quer dizer que se deva, uma vez
mais, tomar distância de eventos contingentes que sempre são estranhos à liberdade
alertava, o hiríerisrno encontrava e fundava uma nova definição de liberdade a
pessoal; ao contrário, isso significa tomar-se consciente da inevitável cadeia original
partir da aceitação dos limites impostos pelo corpo. A alma ou espírito não que é singular aos nossos corpos e sobretudo aceitá-la.
desaparece, mas a sua essência é redefinida pelo fato de estar acorrentada ao
corpo: "A essência do homem não está mais na liberdade, mas em um tipo de EIv1MANUEL LEVINAS
servidão. Ser realmente verdadeiro...significa tornar-se ciente da inegável cadeia
original que é algo singular em termos dos nossos corpos, e acima de tudo, aceitar Uma multidão de homens e mulheres confundia-se como figuras de um pesadelo na
essas correntes't.v' Suas palavras permitem uma apreensão adequada da bruma esverdeada dos cigarros. A vitrola movida a moedas tinia e era como olhar as
compleição física extasiante, capturada e projetada em dimensões maiores do que profundezas de uma caverna escura. E agora alguém se moveu para um canto e ao
a vida pelas câmeras de Riefenstahl à medida que seguiam no encalço de seus olhar para baixo na curva do bar, por cima das cabeças e ombros ondulantes, eu vi
a vitrola movida a moedas, acesa como um sonho ruim da Fornalha de Fogo Ardente,
belos e extenuados atletas, cujos limites precisavam ser ultrapassados, caso a
gritando Jelíy, Jelly, Jelly a noite toda.
vontade, afinal das contas, devesse triunfar. Estas definições truncadas de liberdade,
assim criadas, serão examinadas no próximo capítulo. RALPH ELLJSON

As TRADIÇÕES específicas de interação pública que eram originalmente


produtos da atuação dos escravos estão sendo superadas. Como já expliquei, elas
estão em declínio, agora que as culturas pós-escravas têm sido recompostas em
torno de novas prioridades e oportunidades associadas com a mídia digital, a
desindustrialização e o crescimento do consumismo. As realizações culturais
63. Emmanuel Levinas, "Reflectiam cn toe Philosophy of Hitlerism", tradução de Scan Hand, provocadas pela vida escrava mais do que forneceram o núcleo disputado da
CriticalInquiry, 17 (outono 1990), p. 69.
identidade americana: elas abasteceram a plataforma para as culturas da juventude,

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ENTRE [AMI'U::' .. Naçces, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

culturas populares e estilos de dissidência longe de seus lugares de origem. Hoje mão da autoridade para explicar e traduzir aquilo pelo que lutamos tão bravamente
elas estão fraturadas pelas divisões óbvias entre norte e sul, pelas regiões para alcançar. No entanto, ainda estamos muito dependentes da desconceituada
superdesenvolvidas e subdesenvolvidas do planeta, que têm sido impostas pela autenticidade das formas vernaculares. Alguns discursos críticos até já deram a
globalização do comércio e do poder. Elas continuam poderosas, mas a amplitude entender que somente o vernáculo pode conferir a medalha de representatividade
de seus apelos criou novas dificuldades. Serão elas formas locais ou globais? A em relação a uma gama de outras atividades culturais obviamente menos autênticas.
quem elas pertencem, se é que pertencem a alguém? Estes problemas de valor, de julgamento, e é claro, de divisão de classes
Este capítulo sugere que uma investigação desta grande e irreversível dentro do coletivo racial, têm se apresentado em um tempo de grande incerteza
mudança na vida da diáspora atlântica e suas culturas sucessoras não pode mais sobre os limites da particularidade e da solidariedade. Embora isto tenha alcançado
ser postergada. Em termos mais controversos, ele emprega a discussão da mudança grande aceitação, a idéia de que formas vemaculares incorporam uma essência
de padrões na cultura popular negra para explorar o impacto contínuo da revolução "étnica" especial tem sido mais articulada regularmente por críticos afinados com
cultural do fascismo no mundo contemporâneo. Com este cenário ao fundo, gostaria as definições absolutistas de culturajã criticadas por mim. Nas mãos destes críticos,
também de visualizar algumas das questões éticas e políticas que surgiram quando o vernáculo negro pode se transformar em uma peça de propriedade intelectual,
intelectuais de postura crítica foram instados a discorrer sobre a duradoura potência cujos direitos autorais efetivcs cabem somente a eles. Suas apresentações sobre
de estilos culturais negros. Estes têm sido formas fora-da-lei que desafiam os isso especificam as qualidades elusivas de diferença racializada que somente eles
analistas convencionais e exigem o fim de variedades de críticas desinteressantes podem afirmar serem capazes de compreender e parafrasear, se não exatamente
e contemplativas. No entanto, eles representaram problemas ainda maiores para de decodificar, O desejo de monopolizar a prática destas valiosas habilidades
os críticos politicamente engajados, cujo trabalho - independentemente dos nobres transcuIturais e envolver-se nas oportunidades de regulamentação social a que
motivos que o geram - revela-se inadequado onde ele se move rápido ou de um elas convidam supriu alguns críticos com um investimento ainda maior na
modo simplista demais para condenar ou celebrar. O que eles têm a dizer sobre a singularidade, pureza e poder do vernáculo.
circulação das noções biopolíticas que carregam a marca histórica de Riefenstabl Mas essa singularidade exagerada tem sido por vezes puncionada diante do
e sua estática fisicalidade racializada? aparecimento súbito de fenômenos do submundo em meio ao brilho das indústrias
Uma versão especialmente vívida destes problemas tomou forma onde as culturais e de seu maquinário insaciável da mercadorização. É compreensível por
formas vemaculares que têm sido testadas complexa e moralmente apareceram que os analistas, em especial os renegados acadêmicos que aplicam sua erudição
em tempo recente e em atraso como objetos de escrutínio acadêmico. Elas têm ao material popular em moda, deveriam desejar arregimentar a implacável
sido manifestas em discussões eruditas de hip-hop e rap, onde a libertação e a alteridade do híp-hop como parte de um argumento em favor da legitimidade de
justiça ainda são reivindicadas, mas ficaram para trás em anos recentes em relação sua própria atividade interpretativa.' Mas, questões políticas e éticas não podem
ao conservadorismo revolucionário, misoginia e contos estilizados de excesso sexual. ser colocadas de lado tal como eles fazem. Somos obrigados a perguntar a respeito
Estas expressões culturais têm sido produzidas em um tempo em que as pessoas das pressões que pesam sobre os críticos que intermedeiam e aplaudem as culturas
parecem menos seguras do que elas eram antes sobre o que define a particularidade rebeldes mesmo que elas derretarn numa pseudo-rebelião de embalagem atraente.
cultural a qual elas ainda precisam reivindicar. Suas artes vernaculares precipitam Que fatores direcionam o modo com que estes intelectuais constroem os atributos
e dramatizam conflitos intracomunais sobre os significados e formas de identidade políticos das culturas de baixo que eles esclarecem e sobre as quais se pronunciam?
e liberdade. Eles projetam uma crescente falta de consenso sobre o que o núcleo
cultural e étnico da negritude deveria conter. Os problemas resultantes multiplicam- 1. O trabalho realizado em meados de 1990 pelos acadêmicos afro-americanos Tricia Rose e Michael
Eric Dyson compartilha desta qualidade, apesar das suas diferenças políticas óbvias. Ver Tricia
se pelo fato de que a rápida e a extraordinária transformação global desencadeada Rose, Black Noise: Rap Music and Black Culture iII Contemporary América (Wesleyan University
pelo hip-hop foi totalmente imprevista. Com esta imprevista mudança planetária Press. 1994); e Michael Eric Dyson, Reftectíng Black: African American Cultural Criticísm
ao nosso lado, os críticos negros demonstraram uma relutância especial em abrir (University of Minnesota Press, 1993).

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROV

Estas questões não surgiram com aquela mesma força nas gerações o mais interessante de tudo isso, seu entusiasmo pelo trabalho dúbio do infame
anteriores, para as quais o niilismo, a violência e a misoginia não eram pontos comediante inglês Benny Hill. A idéia de que as técnicas de fazer caretas sobre
fortes de comercialização tal como se tornaram hoje. Elas levam a uma retratos ou pinturas utilizadas por Hill e de que seus personagens de fala bretã
consideração renovada das questões de classe e de poder que perturbaram com como Ernie, o Leiteiro, podem ter contribuído, através de Campbell, para a
insistência as solidariedades biopolíticas apropriadas e codificadas em termos multiplicidade impura e híbrida que é o híp-hop deveria ter fincado um último
corporais, supostamente baseadas em identidades invariáveis de "raça" e de gênero. prego no caixão de qualquer relato etnocêntrico de suas origens e desenvolvimento."
Para ser mais preciso, em que sentido o hip-hop poderia hoje ser descrito como Campbell contou a um jornalista inglês:
marginal ou revolucionário? Qualquer um que afirme a continua marginalidade do
hlp-hop deveria ser pressionado a dizer onde imagina que o centro pode estar o jeito de estar em dia com as minhas coisas é que eu anumo meninas diferentes e
agora. Pretiro argumentar que a marginalidade do híp-hop é agora tão oficial e pergunto a elas o que elas gostam de fazer. A Playboy está aqui há vários anos,
rotineira como o seu desafio superinflado, mesmo se a música e seu estilo de vida assim como a Penthouse. Benny Hill está aqui há muito tempo... talvez eu comece a
acontecer e a fazer mais coisas do tipo de Beony Hill, e ser mais engraçado.'
correspondente ainda estão sendo apresentados - comercializados - como formas
fora-da-lei. A música insistentemente associada com a transgressão é um mistério
A profunda e sincera apreciação de Campbell pelas façanhas cômicas de
raciológico que anseia por uma solução. As pistas para se entender a sua
Benny Hill lembra-nos que o sincretismo será sempre um processo imprevisível e
longevidade podem ser apresentadas ao tratarmos de questões íncômodas como a
surpreendente. Este processo sublinha o alcance global das culturas populares,
associação empresarial em desenvolvimento do hip-hop com as subculturas
assim como a complexidade de suas dinâmicas por cima das linhas de cor. O
patrocinadas pelo comércio que foram moldadas pela televisão, anúncios, desenhos
cruzamento, assim como a dispersão da diãspora em outros países, não é mais algo
e jogos de computador", ou ao interrogarmos o conservadorismo revolucinãrio
que pode ser conceituado como um processo unidirecional ou reversível. O caminho
que constitui o seu foco político rotineiro, mas que é ultrasimplificado, mistificado
de volta foi impedido por Campbell e seus colegas de mente aberta. O caso dele e
ou, o que é mais comum, apenas ignorado pelos seus celebradores acadêmicos.
as arívidades comerciais subseqüentes também nos fazem considerar como as
A defesa principista de Henry Louis Gates, Jr. a respeito de "2 Live Crew"
qualidades transgressivas do hlp-hop levaram à sua identificação não só como
de Luther "Luke'' Campbell em contraposição às acusações de obscenidade, no
uma cultura negra entre muitas, mas atualmente como a cultura mais negra de
início dos anos 1990, deveria ser sempre lembrada como um momento histórico
fato - a que fornece a medida pela qual todas as outras podem ser avaliadas.
importante, quando essas difíceis questões podiam ser inicialmente esclarecidas.
Esses atributos valiosos têm uma complexa relação com os sinais de prazer e
Quase uma década depois, o fato das filiações caribenhas de Campbell e de sua
perigo que pedem para serem identificados pelos filiados e praticantes brancos da
afinidade eletiva pelo outro Luke Skywalker, o príncipe da brancura, terem sido
música. Os delicados críticos "internos" não querem encarar a extensão com que,
ultrapassadas parece menos problemático do que o seu apetite ocasional pelo diálogo
num mercado global para estes produtos sedutores, os consumidores brancos apóiam
conflitante baseado em regiões com rappers da costa leste e da oeste; seu
atualmente esta cultura negra." Eles recuam em relação à possibilidade óbvia de
envolvimento entusiástico no mundo endinheirado das celebridades do golfe; sua
ânsia bem conhecida de se tornar envolvido com a publicação de revistas
pornográficas de estilo leve, projetadas para "leitores" negros; sua apresentação
3. Paul D. Miller, "Booty Makes Bank", The Source, 77 (fevereiro de 1996).
do "Peep-Sbow'' na televisão pay-per-view [paga por programa] BET; e, o que é 4. Entrevista de Luther "Lnkc Skywalker" Campbcll por Joseph Gallivan em The tndependent, 13
de janeiro de 1994, p. 26.
5. As declarações de Tricia Rose di; que o híp-hop reduz-se a um núcleo de "práticas negras"
invariáveis e exclusivamente afro-americanas, que resistem permanentemente tanto à
2. "PaRappa lhe Rapper", um jogo do PJaystation da Sony, foi um dos vários produtos que visaram mercadorização quanto ii apropriação branca, caracteriza este modo de negação. Ver Rose, Black
estabelecer uma ponte entre esses mercados. Noíse. pp. 7 e 80-84 passim.

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I ENTRE CAMPOS •• Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça I I r .... uL "~LI\UT

que a popularidade transracial da música possa ser significativa nas lutas políticas Em segundo lugar, precisamos prestar uma atenção bem mais paciente e
contra a supremacia branca que sem duvida se encontram adiante. Eles têm cuidadosa às questões de gênero e sexualidade do que aquela que os críticos têm
dificuldades para aceitar os gostos abrangentes dos criadores destas formas lhe dedicado até agora. Estes são os condutos básicos do potencial de cruzamento
musicais, cuja lealdade às batidas mais phat ["quentes"] excede em geral o seu da linha de cor, assim como o âmago instável de uma espúria particularidade racial
compromisso com a pureza racial imaginária e quaisquer regras que norteariam a naturalizada. Em terceiro lugar, teremos de produzir um entendimento melhor do
produção musical fenoticamente codificada. ti relacionamento entre o hlp-hop e outros estilos (sub)culturais com os quais ele
A possibilidade de que a globalização tenha empurrado a nação híp-hop mantém um diálogo criativo.
numa complexa situação intercultural está afastada mesmo quc Missy Para tratar destas questões, meu enfoque inicial será o ponto em que as
"misdemeanor" [delito leve] Elliott apareça em anúncios da GAP; Lord Tariq e contra-correntes produzidas pelo híp-hop desestabilizam-se e fluem de volta em
Peter Gunz fazem um hip-hop de estilo karaokê e antífono a partir do canibalizado correntes mais reconhecidamente tradicionais e previsíveis. Quero começar
e reciclado Steely Dan; e "No Woman No Cry'' é cantada novamente por residentes admitindo que o hip-hop contribuiu com algo positivo para a revigoração das
caribenhos em New York, tomando-se um sucesso tardio vinte anos depois da tradições do rhythm and bfues. Ele liberou uma nova energia muito necessária
primeira versão de Bob Marley. Após vinte anos de hip~hop, a comunidade negra às lentas jams [improvisações] e às batidas de tempo acelerado do "swing" que
americana mostrou pouca interesse nas respostas que o rap europeu de M.C. -ao menos na Grã-Bretanha - têm um potencial totalmente diferente em matéria
Solaar, Nique Ta Mêre, e IAM dirigiu às suas próprias convocações iniciais. de apelo cruzado dirigido a ouvintes brancos, cujo apoio eles não buscaram
A busca por melhores relatos a respeito do sincretismo popular-cultural e ativamente. Começarei e terminarei com as articulações musicais da cultura
sua resson~ncia política em mudança nos Estados Unidos, e para além desse país, aparentemente obcecada com o sexo que define um privilegiado ponto de ingresso
demanda ajustes no modo como nos aproximamos dos fenómenos populares que na esfera pública subalterna e proporciona uma chave para as noções de liberdade
se agrupam sob o título de hlp-hop. O primeiro significa questionar a influência que de um modo um tanto inesperado lá prosperam, fazendo com que a infra-
que essa própria forma insubordinada exerce sobre escritores críticos, graças a humanidade racializada se torne outra vez uma humanidade não-racial.
seu endosso tranqüilo da própria vontade deles de que o mundo possa ser
pr~nt~mente transformado em um texto - sua fé profissional de que nada pode ERaS, TÂNATOS E EROS NOVAMENTE
resistir ao poder da língua escrita. Esta é uma desvantagem familiar apontada em
termos sucintos por Míchel Foueault em sua famosa advertência contra a redução Há um momento significativo na antiga remixagem do sucesso de R. Kel1y,
~a sangrenta "realidade de conflito casual aberto" à "calma forma platónica de "Bump and Grind'', quando o cantor modifica a famosa linha de inflexão da canção
linguagem e diélogo''." Isto se aplica profundamente nesta área, em especial quando em voga em 1969, "Ooh Child" de Five Stairsteps. Quase colado à melodia e à
a fenomenologia e a integridade das criações musicais são dispensadas em favor letra da versão original, Kelly advertiu ou, possivelmente, prometeu às mulheres a
do trabalho mais fácil de analisar as letras, as imagens de vídeo que as quem a sua música de sedução se dirige que "as coisas vão ficar mais esquisitas".
complementam e as características tecnológicas desqualificadas da produção de Isto transformou o espírito relativamente sadio e otimista do original que trazia
hlp-hop. conforto aos seus ouvintes mediante notícias tranqüilizadoras de que "as coisas
vão ficar mais fáceis". Ao que parece, em meados de 1990 aquela mensagem não
cra mais um conselho plausível para o público negro ouvinte e espectador.
6. U~ bom exemplo disto é.o uso de "I Keep Forgettin'" de Leibcr and Stoller na gravação de Cerca de seis anos depois de aparecer pela primeira vez, Kelly continua
Michael MacDonald da faixa "Regulare" por Nate Dogg e Warren G. Pode-se também encontrá-
sendo um produtor e artista talentoso, cuja carreira ajuda a periodizar mudanças
la.no álbum da trilha sonora de AboV(' the Rim pela Deathrow/Atlantic Records.
7. Mlchel Foucault, "Truth and Power", in Power Knowledge: SelectedInterviews ona OtherWritings importantes nas culturas afro-americanas e atlântico-negras. Ele tem sido mais
1972-1977, org. Colin Gordon (Pantheon, 1980), p. 115. ' leal às musas profanas do rhythm and blues do que muitos de seus companheiros

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praticantes dos produtos híbridos decorrentes do soul e do rapo Sua oposição alicerce dessa tradição modema encoberta. Seu gesto criativo, que conseguia ser
formal, quase operática, das vozes entrosadas e antagónicas de um casal negro simultaneamente insubordinado e reverente, expressava de uma maneira diminuta
infeliz no clássico "Be Careful" de Sparkle saiu especialmente bem quando a contração e a remodelação da esfera pública negra. Esses processos
comparado aos trabalhos de seus principais competidores: Missy EIliott, Erykah desenvolveram-se passo a passo com o que poderia ser chamado de encolhimento
Badu e outras estrelas emergentes da programação pop do "black alternativo". da narrativa do idioma do rhythm and blues: um dos efeitos mais perniciosos da
No entanto, neste caso sua menção e adaptação da canção anterior não foram preeminência de uma cultura híp-hop que tem sido dominada por lendas sombrias
motivadas pejo desejo de se envolver na arqueologia das tradições vivas de sexo, drogas e jogos bélicos. A pose comedida de Kelly era inteiramente cúmplice
"íntertextuais''. Estas funcionavam como uma amostra roubada ou um riff [frase com o que bell hooks definiu como "o domínio asfixiante e ameaçador da vida
melódica temática e repetida] instrumental emprestado para indexar os (que) a masculinidade patriarcal impõe sobre os homens negros"."
relacionamentos interperformâticos que constituem uma contracultura. Como Sean É possível argumentar que o repúdio explícito da reforma social contido nas
"Puff Daddy" Combs, que construiu uma carreira impressionante através de gestos palavras de Kelly transmitia de um modo mais simples algo profundo sobre o caráter
similares, Kelly tornou o passado audível aqui e agora, mas de um modo contemporâneo ímplodido da cultura política negra que tem cada vez mais dificuldade
subserviente. A história musical foi recrutada a serviço do presente." Digamos para encontrar qualquer tom político. Contudo, quero sugerir algo diferente e um
que, ao contrário da desprezível reinscrição de "For the Love of Money" de Ojays pouco mais complexo. O repúdio de Kelly pelo progresso era perceptível pela
por Charlie Baltimore numa celebração chocante de tudo que o dinheiro pode maneira que se combinava com um endosso ardente e incomum de busca do prazer
comprar, a transformação subversiva de Kelly de um velho fragmento de uma sexual. Essa combinação de tristeza com antecipação e compensação era um
canção da época de seu nascimento revelou os impulsos edípicos que formam o evento especial. Isto permitiu uma corporificação histórica precisa do processo
sombrio no qual a política pública tornou-se ímpronunciãvel e uma bíopolítica
centrada no corpo começou a dominar.
A grande popularidade de R. Kelly era um dos muitos sinais de que a política
8. Este tipo de menção não assume a forma de uma paródia ou pastiche. Suas intenções são
do corpo negro era em geral representada interna e externamente como um corpo
disciplinares, e é mais bem compreendida como uma ordenação criativa que nem sempre serve a
impulsos progressivos. Esta menção não joga com o hiato entre o antes e o agora, mas ao invés íntegro, porém "estranho". A atividade sexual intensa e selvagem entre adultos
disso o utiliza para afirmar uma continuidade espúria que adiciona legitimidade e gravidade ao heterosexuais em acordo e em ambiente privado era o traço residual transcodificado
contemporâneo. Outro exemplo da ressonância política em mudança na política popular entre
de rebeliões políticas anteriores. A apresentação e representação androcêntrica e
esses períodos diferentes é fornecido pela maneira como o grupo Arrested Development tomou
emprestado partes de "Everyday People" de Sly and Family Stone e o transformou em "People falocrática da copulação heterosexual em que Kelly continuou a se destacar foram
Everyday." A canção mais antiga era uma afirmação do pluralismo que capitaneava o refrão: o sinal e o limite de um carisma diferente e de uma utopia diferente daquelas que
Kenny Burke e seus irmãos tinham em mente em Chicago trinta anos atrás ao
Há uma pessoa azul que não consegue aceitar a pessoa verde
Por viver com uma pessoa gorda tentando ser muito magra fazerem a versão original de "Oob Child"." A escolha do nome "Stairsteps"
E golpes diferentes para pessoas diferentes. [Degraus] para o seu quinteto familiar pré-Jackson havia sugerido um momento
Eu não sou melhor e nem você
ascendente, uma ascensão racial e um movimento comunal em direção a algo
Nós somos os mesmos não importa o que fazemos
Você me ama-você me odeia, você mc conhece e então
Você não consegue saber em que saco eu estou
Eu sou a pessoa de todos os dias. 9. bell hooks. "Reeonstructing Black Masculiniry", in Stack Looks: Race and RepresentaliOfI
(South End Press, 1993). p. 113. .
A linha decisiva do antagonismo entre "raças" diferentes, que a música anterior localizou e depois 10. "Eu sei que isto pode soar engraçado saindo da minha boca, mas eu tento realmente ser diferente,
apagou, é movida para a outra que vem depois, e é feita de modo a operar dentro do grupo racial cu tento chegar num nível sexual e romântico, deixando apenas um toque para a imaginação", R.
em tomo da conduta bêbada e desrespeitosa dos "irmãos" com relação à "rainha negra" do cantor. Kelly entrevistado em Pride (maio/junho 1994), p. 35.

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tl'llKt l,.AMI'U:l •• Naçoes, tuuuras e o Fascínio da Raça t'AUL blLKUY

mais "brilhante", algo mais próximo do céu, se não rumo ao Deus de sua fé raciólogos, era a mente que vinha primeiro! A biopolítica racializada opera a partir
islâmica. de premissas totalmente diferentes que recusam esta distinção. Ela usa uma
Quero explorar a possibilidade de que este objetivo, o qual se identificava inversão destas prioridades históricas para estabelecer os limites da autêntica
graças a sua iluminação em meio à escuridão do poder da supremacia branca que comunidade racial. Isto se realiza quase que exclusivamente pela representação
ameaçava engolfã-lo, foi chamado de Liberdade - outra palavra que tem visual de corpos racializados - engajados em atividades características, geralmente
desaparecido invariavelmente da linguagem política dos negros no Ocidente, e que sexuais ou esportivas - que se não induzem imediata solidariedade, por certo
ficará ainda mais remota em termos da sua consciência, agora que a libertação da embasarn e instigam a identificação.
África do Sul está oficialmente realizada. Lamento o desaparecimento da busca Este desenvolvimento é problemático por várias razões. Por um lado, ele
de Liberdade como um elemento na cultura vernacular negra e me pergunto por marca a comunidade racial exclusivamente como um espaço de arividade
que razão não parece ser mais apropriado, ou até mesmo plausível, especular heterossexual e confirma o abandono de qualquer política que não seja a contínua
sobre a liberdade do sujeito da política negra em países superdcsenvolvidos. Pretendo criatividade oposicionística do cuidar de si pautado pelo gênero: uma atividade que
também examinar os efeitos na política negra de transpor aquela ânsia por liberdade é dotada quase que com uma significância sagrada, mas levada a efeito com algo
em um modo diferente e privado, assinalado pela centralidade crescente do que do mesmo espírito resoluto aplicado no exercício com pesos. Se a política afinal
pode ser chamado de uma "biopolltica racializada''. Atas sexuais ritualizados de sobreviver, ela vai se tomar uma preocupação exclusivamente estética com todos
vários tipos e um prazer erótico no corpo proporcionam os novos meios para se os riscos que implica. O corpo racializado, despido, invulnerável e sugestivamente
vincular esta nova liberdade à vida negra. O que uma vez foi vida abjeta torna-se arrumado com uma precisão que será familiar aos leitores íntimos do Marquês de
nada mais do que um estilo de vida entre outras Opções menos exóticas. Sade, cujos escritos anteciparam este desenvolvimento, fornece o seu princípio de
Aqui o movimento rumo à biopolítica é melhor compreendido como uma avaliação crítica. Os filiados da coletividade racializada são levados deste modo "a
conseqüência do padrão identificado como "políticas de identidade" em períodos focalizar sua atenção em si próprios, a decifrar, reconhecer a si mesmos e admitir-
anteriores por diversos escritores. II É uma disposição em que a pessoa é definida se como sujeitos do desejo, trazendo para o jogo entre eles um certo relacionamento
como o corpo e em que certos corpos exemplares em di versos momentos durante que lhes permite descobrir no desejo, a verdade de seu ser"."
a década de 1990 - aqueles de Usher, Tupac, Mike Tyson, Michael Jordan, Jada O término das reflexões sobre a liberdade e a proliferação de sinais e de
Pinkett Smith, Naomi Cambell, Lil' Kim e Veronica Webb - podiam se tornar conversa sobre a sexualidade como recreação racializada intencional são
instaurações iminentes e impactadas da comunidade. Esta situação requer uma coincidentes. Em conjunto, eles apontam para uma forma original de produção
concepção diferente de liberdade em relação àquelas canalizadas até agora na artística que vai além das culturas terapêuticas de compensação em que a simples
cidadania moderna, ou desenvolvidas em culturas pós-escravas, quando as liberdades similitude forneceu as razões fundamentais e o bilhete de ingresso para um senso
corporais e espirituais eram bem diferenciadas, sendo mais provável que a liberdade estético de diferença racial para a qual os corpos masculinos esculpidos e impressos
fosse associada com a morte do que com a vida. Nesta freqüência histórica, com tinta escura que adornam álbuns de bandas como KCi de Jodeci, JoJo e
intelectuais orgânicos desde Frederick Douglass até George Clinton sugeriram cantores pós-Kelly como Ginuine e Usher constituem um notável significante
que as formas mais valiosas encontram-se na liberação da mente. A prescrição de popular."
Dr. Funkenstein era "Liberte sua mente e sua bunda o seguirá". O dualismo era
problemático, mas podia ser desculpado porque ao contrário das expectativas dos

12. Michel Poucault, The Use o/ Pleasure (Viking, 1986), p.5.


11. Uma v~rsão aprofundada a este respeito é esboçada por June Jordan em "Waiting for a Taxi", in t3. Ver também Michael Jordan, Rare Air: Michael on Michaei, org. Mark Vancil (HarperCollins,
Technícal Dtffículties: African-American Notes on lhe State of Union (Pantheon, 1992). 1993).

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I:I~ 11\1: Lf\t"lI'V::l raaçces, cuuuras e o t-ascimc ela Raça I"AUL b!LKVT

Estes silêncios e sinais carnais permitiram outras reflexões sobre o caráter qualquer maneira, relações fraternal istas igualmente problemáticas podem ser
em mudança da esfera pública negra. Eles representam o fim das noções mais projetadas através de qualquer espetáculo esportivo segregado. Talvez seja por
antigas de interação pública que ajudaram a criar e foram elas mesmas criadas por isso que os regimes fascistas europeus da década de 1930 tenham se voltado
formas de diálogo intersubjetivo densamente codificado que nutriram a solidariedade prontamente para a potência combinada do esporte, da política e da propaganda e
racial e tornaram a idéia de uma exclusiva identidade racial crível e operável. O extraído uma "linguagem performativa" do mundo de atividades esportivas, dotando-
surrado modelo de publicidade negra derivada de rituais sagrados e de utilidade a de um novo significado." Na Espanha de Franco, por exemplo, os esportistas
musical sobrevivem nos vestígios de uma forma totalmente profana. Seus preciosos que representavam seu país no campo de futebol eram submetidos a uma disciplina
atributos dialógicos retêm alguma significância ética mesmo quando este se esvaí militar. As camisas azuis da Falange substituíram o vermelho republicano, sendo a
e é substituído por fenômenos mórbidos como a imagem americocênrrica da esfera saudação fascista introduzida antes do pontapé inicial. Jogadores e árbitros suspeitos
pública negra, remodelada nas dimensões de uma quadra de basquetbol em áreas eram eliminados e a imprensa censurada transmitia o jogo dentro desse novo
pobres urbanas. Este é um palco exclusivamente masculino para o teatro do poder espírito político.
e do parentesco em que o som é deslocado pela visão e as palavras são geralmente Estes pontos sobre o relacionamento da identidade, publicidade e
secundárias em relação aos gestos físicos. A aristocracia natural definida por meio masculinidade podem ser ilustrados peja popularidade de filmes de basquete negro
do poder e da graça corporais pode anunciar a sua presença heróica e divina como Above lhe Rim e o mais recente de Spikc Lee, He Gal Game. O CD da
quando a vida se torna um jogo de arcos. 14 Um indício da significância memorável trilha sonora do primeiro filme foi lançado em 1995, tendo sido pioneiro de um novo
deste local apareceu numa das entrevistas de R. Kelly: tratamento na comercialização de rhythm and blue ao apresentar faixas de 18
artistas distintos. Este formato foi um meio poderoso para aumentar o interesse
~obelt Kelly foi criado em toda área do lado sul de Chicago. Ele e seus amigos em um filme que prometia completar e mesmo estender a narrativa de White Men
Jogam basquete e de três a quatro manhãs por semana eles aparecem cm uma das
Can 'I Jump de um modo mais corajoso que extraía seus efeitos de realidade do
suas quadraspreferidas (nas ruas 18,47,63, 67 ou 115). "Quando eu entro na quadra
e aspessoasme reconhecem, dizem,aqueleé aquelecaraque canta.Elas nãopercebem léxico masculinista do híp-hop. A popularidade de antologias de CDs associadas
~ue eu sou.um cara normal. Eu estou ansioso para mostrar quem eu sou. Eu posso a filmes como o álbum da trilha sonora de Above lhe Rim evidenciou ainda mais
Jogar bola Igual a você. Eu acerto a cesta como você, e até melhor"." que o poder independente da música estava se enfraquecendo, ao passo que a
autoridade da cultura de imagem em relação à qual a música tomou-se cada vez
Atualmente a topografia poética de raça e de lugar, centrada na quadra de mais parasitária crescia com firmeza. Foi, afinal, um álbum similar de trilha sonora
basquete, não tem um equivalente exato na paisagem cultural da Grã-Bretanha. O do filme Deep Cova de Bill Duke que primeiro revelou os curiosos talentos de
apego pelo futebol ainda impede esta ocorrência na Europa, na África e cm grande Snoop Doggy Dogg, o jovem rapper de Long Beach que rapidamente se tornou o
parte da América Latina, mas essa situação passa por uma rápida mudança. De mais bem sucedido artista na história do gênero, antecipando Notorious BIG e
Tupac no centro de pânicos morais e políticos intensos com relação às conseqüências
e causas sociais do gangsta rapo Uma faixa do disco Above lhe Rim apresentara
14. George L. Mosse, Nationalism and Sexuality. Míddle-Class Mora/ity and Sexual Norms in
os talentos de D. J. Rogers, conhecido como "The Message Man'' [O Mensageiro]
~odem Europe (University Wiscousin Presa, 1985), em especial capítulo 3; Jordan, Rare AÍ!:
15. Vlbe, vol. 2, no. 4 (maio de 1994), p.72. O mesmo artigo oferece estas observações interessantes com toda a probabilidade o maior cantor de gospel de sua geração. Como parte
sobre o espaço em que KeJJy vive: "Ele mora no centro histórico da cidade em um apartamento de uma tentativa para reviver a carreira de Rogers, ele foi induzido provavelmente

l
de um quarto parcamente decorado. 'Onde eu moro é como Batman em Gotham City. Ninguém
sabe onde eu moro. Se você vier ao meu berço, você tem de eslarcom a visão tapada ...não é só um
apart~mento para mim. Escuto minha música lá dentro. Eu nunca tenho companhia porque isto 16. John London, "Competíng Together in Fascist Europe: Sport in Early Francoism", in Günter
é a minha solidão. Ser silencioso sobre a minha vida pessoal permite-me expressá-la no estúdio'", Berghaus, org., Fascísm. and. Theatre: Comparative Studies on lhe Aesthetícs and Politu:s cf
Perfonnance ín Europe, 1925-1945 (Berghahn Books, 1996).

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t.I'lIKt. l.AMI'U~ .. l'HIÇOt!5, \..UUUrd~ " U r asvnuu Ud I\aça
t'AUL úlLKUY

pelo produtor de discos Dr. Dre a cantar "Doggie Style'', uma música que endossou A alteração da composição e do significado da política sobre o corpo negro
e mesmo ampliou o chamado histórico de Snoop para que se cultivasse um conjunto apontada por estes conflitos tem sido associada a diversas outras mudanças sociais
de hábitos sexuais distintivos que poderiam trazer certeza, confiança e determinação e tecnológicas que não podem ser exploradas cm detalhe aqui, mesmo que devam
de volta à maquinaria do ser racializado:
ser observadas de relance. Primeiramente, esta transformação não pode ser
separada da privatização tanto da produção como do uso cultural - uma tendência
Vamos fazerno estilo canino
eu gosto mesmo de montar no estilo canino.. de longa duração que tem importantes implicações em termos das tentativas de
neném chegue mais perto eu quero te despir defesa da significância política da cultura popular negra. A configuração da esfera
eu vou te fazer isso neném até você não aguentar mais.. pública como uma quadra de basquete é mais uma vez sugestiva. Ela indica que
você e eu no chão vamos ficar excitados .. as formas vernaculares que eram antes chamadas de "cultura de rua" estão em
neném não se mexapara não atrapalharmeu tesão... processo de desertar as ruas. Elas não são mais vistas basicamente como um
vire-se, abaixea cabeçapara eu me excitar..
espaço privilegiado para a elaboração da autenticidade cultural, mas sim como um
por favor, me deixe te lamberdo meujeito predileto
vire-se nenéme se segureem mim parame deixarte amarlá embaixo local de conflito, violência, crime e patologia social. Esta virada pode ser percebida
não precisa se preocupar eu sou o seu homem estilo canino. no nítido contraste entre o hino de dança "Street Life'' do final dos anos 1970 de
The Crusaders e a faixa ominosa "Street Jeopardy'' de 1997 de Pugee Wyclef
Um coral tradicional de vozes santificadas intermedeia todas as exortações Jean. O desdobramento vital da cultura racializada é agora mais provável de ser
,
, imaginado em discretos cenários privados, semiprivados e püblico-privados que
antifônicas apropriadas. Isto era mais que a busca do prazer sexual como
compensação pelos erros forjados em nome da supremacia branca. Era ainda podem ser encontrados a exemplo da quadra de basquete entre os eixos
mais do que uma alternativa dionisica no estilo de Prince ao ascetismo de rígidas estabelecidos respectivamente pela intimidade de um quarto de dormir e pelo recinto
figuras paramilitares como Ice Cube que respondiam às incertezas sobre identidade móvel e fortificado de um veículo para fins esportivos.
racial e solidariedade com um programa de austeridade que articulava algumas Em segundo lugar, a família supre o único local institucional para esta
noções sacerdotais antigas sobre a associação da abstenção sexual com a aquisição biopolftica e, como já foi observado antes, um localismo radical que opera sob o
do conhecimento e das formas de amor a si próprio requeridas pela reconstrução signo de comunidade de projetas de "bairro" como a simples acumulação de
cornunal.!' Era não só uma confinnação de que o gangsta rap via-se obrigado a unidades familiares." A família continua preeminente por estreitar os horizontes
combinar e a competir com um "booty rap'' [rap de teor sexual] alternativo, mas de qualquer aspiração prolongada pela mudança social. Mas como Jodeci deixou
por mais que eles tentassem esconder suas características tradicionais, ambas as claro, a santidade da família pôde ser sacrificada quando surgiram objetivos
versões desse estilo inabilidoso ainda podiam prontamente penetrar as surradas hedonísticos mais importantes. Como se pode esperar, o relacionamento entre pais
forças da música de igreja negra. e filhos é visto como crucial para a saúde e a prosperidade da "raça" como um
todo, mas o dever do cuidado paterno existe em oposição ao espaço da intimidade
sexual. Há de fato duas dimensões privadas em vez de uma só. Essas privacidades
17. Ver sua discussão com Angela Davis em Tronsíüon. 58 (1992). Ela inclui o seguinte diálogo: íntegras e profanas devem competir para ser reconhecidas como o locus no qual
Ice Cube [LC.]: Alguém da organização Black Panthcr fumava? os significados mais intensos de ser negro podem ser estabelecidos:
Angela Davis [A.D.]: Eu tenho certeza que sim.
lLC]; Alguém bebia?
[A.D.]: Eu tenho certeza que sim.
[I.c.J~Is~o não é amar a si.próprio... ~arll mim a melhor organiZação para o povo negro é a Nação
do Isl~. E a melhor organJzaçã~: os Irmãos não bebem, não fumam e não ficam caçando mulher. 18. Paul Gilroy, "It's a Family Affair: Black Culture and the Trope of Kinship", in Small Acts
Eles tem somente uma ocupaçao.
(Serpent's Tail, 1994).

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I"flUL I.>lLr;UI
ENTRE CAMPOS .. Naçoes. turturas e o rascmtc da Raça

menina, onde está nossa criança?


e de outros locais deveria também ser observado. Diante dessas mudanças, a
mande-a para a casa de sua mãe por um tempo cultura de ma tornou-se muitas coisas, sendo a mais notável a "cultura do jipe".
todos os meus amigos se foram, você sabe que eu os mandei embora Os veículos de estilo militar tornaram-se equivalentes em tamanho grande do
menina, eu vivo para você, então não estou nem aí para as notícias Walkman l 9 - uma peça de tecnologia nomeada por uma palavra que na ausência
então, desligue a TV, por favor. de um termo plural significa a sua associação com o mesmo triste processo da
e se você se preocupa um pouco comigo, quero escutar você gemer
privatização social.
vamos ficar a sós
o que é melhor do que eu e você? Você é melhor do que um maldito filme Enquanto todo mundo se punha a imitar o N.W.A. ao nomear suas bandas
nosso amor é tão divertido com misteriosas sequências de iniciais ou números que só os iniciados podiam
vamos fazer uma coisa bem louca e então vou te fazer gozar... decodificar - D.NV, M.O.P., S.W.V., D.R.S., D.M.X. e E.O.L., são os exemplos
mais óbvios - R. Kelly barizava seu grupo musical de apoio Public Announcement
A neutralidade de cênero da criança nesta narrativa tórrida sugere uma
• • [Anúncio Público], um nome que deixava para trás o impulso de esconder. Este
extrema indiferença paternal em vez de uma postura politicamente correta. E de nome reconhecia abertamente uma obrigação histórica de se colocar a serviço das
fato significativo que nesta escala de excitação seja o cinema a proporcionar o esferas públicas alternativas e subalternas que abrigavam os processos de formação
ponto de referência. O uso padronizado da música negra é muito revelador das de identidade vernacular por meio de uma variedade de tecnologias comunicativas
qualidades em mudança desta cultura pública subalterna. O lugar dominante do diferentes - impressão, rádio, áudio e vídeo - numa ampla gama de cenários situados
rádio em matéria de fixar os limites da esfera pública negra como comunidade em diferentes distâncias do evento central em tempo real, ou seja, da representação
interpretativa tem sido cedido ao vídeo, a ponto de comprometer o poder do som e ao VIVO.
os princípios dialógicos que embasaram a construção do vemãculo negro no passado. Estas sucessivas tecnologias comunicativas organizavam o espaço e o tempo
É interessante notar que Snoop Dog havia dramatizado as pretensões distintas de de maneiras diferentes, instigando e promovendo tipos distintos de identificação.
cada veículo ao direito de representar a cultura como um todo nas vinhetas de Elas criaram e manipularam a memória de maneiras dissimilares e encenaram os
humor e drama inseridas entre as contribuições em ritmo de rap em seu primeiro enigmas corporais e físicos da identidade cultural em processos contrastantes.
e melhor álbum (também intitulado Doggy Style [Estilo Canino]). Seus efeitos políticos são variados e contraditórios, mas a tendência de longo prazo
A proliferação de piadas, desenhos e outros materiais humorísticos em para que a música, o som e o texto ocupem um lugar secundário em relação às
recentes gravações de música popular negra faz mais do que tentar preencher o imagens não pode ser ignorada. Precisamos perguntar se a identificação e o desejo
tempo mais longo de duração da música que se tornou possível com o disco em escópicos diferem do que pode ser chamado de configurações "órficas'' alternativas,
formato de CD. Esta rãtica é comum às notáveis contribuições de Snoop, Wyclef, organizadas em torno da música e da escuta. Estas últimas privilegiam o imaginário
Erykah Badu, Xscapc e muitos outros. Ela parece ser uma tentativa para simular sobre o simbólico? Numa associação óbvia com a história fascista, discutida no
e deste modo recuperar um tipo de interação dialógica que tem sido inibida pela capítulo anterior, o crescente domínio da especularidade sobre a auralidade poderia
tecnologia de produção, mas é buscada assim mesmo por usuários invisíveis. Ela ser pensado como uma contribuição em termos de uma força especial para as
pode também proporcionar sugestões cuidadosamente construídas e dirigidas a representações do corpo racial exemplar aprisionado no olhar fixo de sujeitos que
uma audiência por cima da linha de cor que podem sintonizá-la com os sinais de o desejam e se identificam com ele. Confundidas, objetivadas e verificadas, essas
prazer e de perigo ansiados por ela. A proliferação dessas inserções dramáticas é imagens tornaram-se os depósitos da alteridade racial, agora que a produção da
ainda outra indicação de que a autoridade fundadora do evento performático tem
sido minada pela emergência de formas musicais que não podem, como resultado
de sua dependência da tecnologia, ser fiel ou facilmente traduzíveis em cenários 19. Ver "Annual Cal"Audio Spetacutars", in The Source, que se encontra em geral na edição de junho
de concertos. O impacto de problemas resultantes da economia política de clubes da revista.

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t'AUL l,jLKUf

subjetividade opera por mecanismos sensoriais e tecnológicos diferentes. Devemos instituíam novas situações de ausência de liberdade que combinavam uma condição
ser claros sobre o que se ganha e o que se pode perder com o deslocamento de falta de poder, de miséria e de pobreza, ou retinham e modificavam padrões de
contemporâneo do som em relação ao epicentro da produção cultural negra: dominação racializada herdados do período escravista, despojando as pessoas de
direitos políticos formais." Considerava-se a liberdade como relevante sobretudo
No som, e na consciência denominada de escuta, há de fato uma fratura em relação por ela representar o término da escravidão em vez do início de uma seqüência
ao todo abrangente do mundo da visão e da arte. Em sua inteireza, o som é um diferente de lutas em que seus próprios significados seriam estabelecidos e seus
escândalo que soa em tocata e tinidos. Enquanto que na visão, a forma está unida
futuros limites identificados. Uma vez ganho formalmente o status de livre, poderia
ao conteúdo de maneira a apaziguá-lo, no som a qualidade perceptível transborda
de modo que a forma não possa mais conter seu conteúdo. Uma verdadeira ferida se parecer que não havia mais necessidade de elaborar os significados distintos que a
produz no mundo através da qual O mundo que está aqui prolonga uma dimensão liberdade alcançou entre as pessoas radicalmente alienadas da promessa e da
que não pode ser convertida em visão. 20 prática de liberdade por gerações de servidão imposta pelo terror. O fim da
escravidão produziu algumas novas soluções "técnicas" para os problemas de
As PROVAÇÕES DA LIBERDADE perceber e regular as pessoas negras e livres:

Os estudos contemporâneos da cultura vernacular negra são tão silenciosos Depois da chegada da liberdade, havia dois pontos com os quais praticamente
quanto a literatura do híp-hop sobre o conceito de liberdade e sua significância todas as pessoas em nosso lugar concordavam, e eu acho quc isso era geralmente
política e metafísica. Isto é desconcertante, dadas as complexas conexões históricas verdade em todo o Sul: que eles devem mudar seus nomes e devem deixar a velha
fazenda por pelo menos alguns dias ou semanas para que eles tenham mesmo
entre escravidão e liberdade que se evidenciam nas formas assumidas pela cultura
certeza de que estão livres."
negra, e as maneiras com que ela foi comprometida por seus produtores e usuários.
A liberdade emergiu como um tema consistente nos escritos sobre a história negra, Somente entre os negros nos Estados Unidos é que o acesso às instituições
tendo-se abordado a inter-relação dialética da liberdade e da escravidão, mas onde políticas definiu de fato as fronteiras da liberdade no período pós-escravidão. Mesmo
isso se deu, a liberdade tem sido apresentada em geral como uma ocorrência naquela situação excepcional, os limites da liberdade tinham de ser primeiro
singular: um evento único e para sempre. A liberdade é vista como o limiar que foi encontrados e depois testados. Leon Litwack" apontou o significativo papel dos
irrevogavelmente atravessado ao se declarar em termos formais o término da casamentos em simbolizar e demonstrar o status de livre dos escravos libertados.
escravidão e enquanto populações de ex-escravos se mudavam em meio a O lugar da família, o significado de domesticidade e a necessidade de conseguir
dificuldades para novos espaços de autonomia acentuada - íntima, privada, cívica, espaços claramente demarcados para atividades íntimas e privadas são todas
económica - que o conceito ajudou a definir. questões importantes nas tecnologias da personalidade livre que deixaram marcas
O desejo de alcançar as liberdades cívica e económica e a busca de liberdades
pessoais haviam se alinhado lado a lado durante o período de lutas contra a
escravidão. Uma tensão considerável entre estas dinâmicas diferentes desenvolveu- 21. Eric Poncr. Nothing Bul Freedom (Louisiana State University Press, 1983).
se no período pós-emancipação. A mudança fundamental representada pelo Jubileu 22. Bonker T. Washington, Up From Slavery (Airmont Books, 1967), p. 27.
23. "Assim que a emancipação foi reconhecida, milhares de casais 'casados', com o incentivo de
estava a exigir a abertura de um novo capítulo na narrativa da história negra,
padresnegrose missionários brancosdo norte,apressaram-separa fazer seujuramentomatrimonial
agora que as formas de sociedade civil, encontradas pelos recentes emancipados, tanto em termos legais como espirituais... A insistência de professores, missionários e oficiais da
Agência dos Libertos para que os negros formalizassem seus casamentos vinha da noção de que
a sanção legal era necessária para a contenção sexual e moral e que era preciso incutir nos ex-
escravos 'as obrigações do estado de casado na vida civilizada:", Leon F. Litwack, Been ín rhe
20. Emmanucl Levinas, "The Transcendence of Words'', em The Levinas Reader; org. Sean Hand Storm. So Long: T'he Aftermatn 01 Slàvery (Athlone Press, 1980), p. 240. Ver capítulo S, "How
(Blackwell, 1989), p. 147. Frec IS Free?"

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101'1111:10 LAIOJI'U::' •• l~d~Ut::~, "'UUUld~ t:: U Fd~""1I1U ue l\d~d PAUL GIlROY

duradouras sobre as economias libidinais e as alegorias eróticas do desejo político Mechal Sobel" e Charles H. Long," e, em particular, por Lawrence Levine, cujo
de hoje. O papel relativamente limitado das instituições políticas em estabelecer a estudo de valor inestimável Cultura Negra e Consciência Negra 27 aponta para
história daquelas emancipações incompletas que não viabilizaram direramente a conexões históricas importantes entre a reprodução subcultural de gênero e as
liberdade substantiva na forma de direitos políticos é, portanto, algo que precisa ser representações míticas e heróicas de liberdade. A liberdade não tem sido encarada
explorado com cuidado. Se bel! hooks estiver certa, a concepção compensatória como uma questão em estudos sociológicos de largo escopo a respeito do vernáculo
que os ex-escravos faziam da masculinidade patriarcal e a propensão masculinista negro: o sagrado e o profano."
e fraternalista de seus descendentes poderiam ser trabalhadas em termos profícuos Em vez de lidar com formas assumidas e promovidas pela consciência
em uma análise crítica do desenvolvimento da democracia comprometida pelos protéica de liberdade, os analistas investigaram em geral o impacto de se tornar
imperativos da supremacia branca. livre sobre os escravos e seus padrões de produção cultural. Ao explorar as
Os regimes coercivos que se seguiram à escravidão racial modema sob as transformações forjadas pelo Jubileu, bem como os efeitos de sua comemoração
bandeiras da liberdade eram, tal como havia sido a escravidão, internos à civilização ritual, pode-se, porém, prosseguir sem encarar o valor da liberdade como um
ocidentaL Suas histórias complicam a história da democracia e a suposição do elemento nas vidas dos ex-escravos ou as práticas idiomáticas distintas através
progresso social e moral em cujo sentido aquela narrativa heróica é em geral das quais eles procuravam representar as diferenças psicológicas, sociais e
direcionada. Sob a orientação de ideólogos que desenvolviam compenetradamente econômicas trazidas pela liberdade: para eles próprios, para seus descendentes, e
as artes de governar, disciplinar e educar o indivíduo saído da escravidão, os ex- para os senhores e senhoras de escravos que iniciavam por seu turno sua jornada
escravos e seus descendentes alcançaram de um modo gradual e desigual a liberdade para fora da escravidão, deixando de ser opressores e tomando-se exploradores.
de votar, de se associar, organizar e comunicar. Eles se tomaram portadores de A memória da escravidão é raramente tratada, embora os silêncios e evasões em
direitos e praticantes de ofícios que confirmaram seu igual valor como pessoas torno dela, revelados pela cultura popular, tornem isso mais compreensível. Sugeri
livres em circunstâncias que tomavam a liberdade e a igualdade impraticável, mas que o domínio das estórias de amor e de perda em formas de música popular negra
não impensável. Seus descendentes continuam a esticar as fronteiras da civilidade abarca a condição de sentir dor;" transcodifica e entrelaça os distintos anseios
que circundaram e promoveram esses direitos. pelas liberdades pessoais e cívicas e preserva as memórias de sofrimento e de
Seria um erro assumir que o abismo entre as declarações retóricas formais perda de uma maneira apropriada e irredutivelmente ética. As memórias
da emancipação negra e a realização prática das esperanças democráticas definisse incorporadas'" sobre a falta de liberdade e o terror são cultivadas em práticas
e exaurisse a política da condição de ser livre. Gostaria de sugerir que, por mais
importante que seja a compreensão relativamente estreita da liberdade centrada
em direitos políticos, isto deixa intocadas vastas áreas de pensamento sobre a 25. Mechal Sobel, Trabeíin' On. The Slave Iourncy to an Afro-Baptist Faith (Princeton llniversity
liberdade e O desejo de ser visto como livre. Urna política de liberdade (e da condição press, 1988).
26. Charles H. Long, Sígnifícanons (Fortress Press, 1986).
de ser livre de fato) precisa ser tratada hoje com uma sensibilidade especial, uma
27. Lawrence Levine, B/uck Cutture and B/ack Consciousness: Afro-American Folk Thought From
vez que os significados de liberdade e os idiomas através dos quais ela é apreendida Slavery lO Freedom (Oxford University Press, 1977).
tomaram-se extremamente significativos para as interpretações da cultura popular 28. Michael Eric Dysun é outra vez típico destes problemas. Ele observa que no vernáculo negro, "a
liberdade pessoal é constantemente visualizada através dos tropos da soltura sexual", mas uão
contemporânea. Trabalhos importantes nesta área já foram desenvolvidos pelo
leva esta observação adiante. Ver Dyson, Reflecting Black, p. 279. Não é somente uma questão
antropólogo Daniel Miller," por historiadores da religião afro-americana como de "soltura", embora esta escolha de palavras tenha a virtude de tomar explícita a conexão com
a escravidão.
29. Paul Gilroy, The Blaek Atlantic: Modemily and Doub/e Conciousncss (Harvard Uruversiry
Press, 1993), capitulo 6.
30. A respeito desse conceito, ver o livro apropriado de Paul Connerton How Socteties Remember
24. Daniel Miller, "Absolure Freedorn iu Trinidad", Man, 26 (1991), pp. 323-341. (Cambridge University Press, 1989), seção 3, "Bodily Pracüces''.

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ENTRE CAMPOS .. Nações, curturas e o rescmto da Raça PAUL GILROY

comemorativas. As canções e os rituais sociais que a rodeiam tornaram-se um Hoje em dia as velhas canções se repetem sem nenhuma contribuição criativa
meio valioso para se cultivar uma relação próxima com a presença do sofrimento adicional. A canção de Monica em 1998 sobre "Misty Blue" de Dorothy Moore,
e da morte. Em meio aos horrores da escravidão quando as liberdades corporais e ou a versão de Sparkle sobre "Loving You" de Minnie Riperton não tentam
espirituais eram prontamente distinguidas de acordo com as linhas sugeridas pelo acrescentar nada aos originais. A ocorrência de uma menção parece ser uma
cristianismo - se não pela cosmologia africana - a morte era constantemente última e desesperada tentativa para se impedir que a canção seja relegada ao
entendida como uma fuga bem vinda dos sofrimentos terrenos. Ela oferecia a papel subordinado de trilha sonora, contribuindo para a expansão do mundo da
oportunidade de se atingir uma liberdade heterônima superior em que o corpo imagem. O jogo da verdade está atualizado e as novas regras são fixadas por meio
mortal - finalmente livre de cadeias - seria deixado de lado, enquanto a alma de uma distinta concepção pós-moderna de mortalidade, conforme estou tentado a
recém-liberada voava para o céu, ou encontrava seu lugar no panteão dos afirrnar, O cultivo tradicional de uma relação próxima com a presença da morte é
ancestrais. Muitas práticas forjadas com o hábito da escravidão perduravam. Mas remodelado porque a morte não é mais sentida como uma transição ou uma
hoje a própria memória social da escravidão tem sido reprimida, ou deixada de libertação." Dr. Dre, o produtor dos discos de Snoop, batizou a marca que ele
lado, sendo que a tradição da lembrança dinâmica fundada por ela é assaltada de fundou juntamente com Suge Knight de Death Row Records [Discos Fila da Morte].
todos os lados. Embora o status de vítima que a escravidão confere e a identidade Big Punisher chama seu álbum de Capital Punishment [Pena Capital]. Seguindo
de sobrevivente que ela promove sejam às vezes altamente valorizados, a memória o padrão estabelecido por Snoop em 1994 em sua gravação "Murder Was the
da escravidão é vista sobretudo como um estorvo. É uma pele velha que tem de Case" [Era Caso de Assassinato] que imaginava a experiência de morrer e foi
ser arrancada antes de que alguém possa ter a esperança de alcançar uina vida construída como um anúncio simulado de morte, The Notorious BIG e Tupac
autêntica de amor racializado a si mesmo." ensaiaram ambos suas próprias saídas deste tumulto mortal. Assim, a alteração do
A música de R. Kelly, Snoop Dogg, S.w.v., Biggie, Tupac e outros registra valor e da compreensão da morte que se desenvolveram em meio à crise da AIDS,
estas mudanças. A fenda mais profunda entre os padrões tradicionais antigos e a à economia das drogas e à militarização da vida social de áreas urbanas
biopolítica mais recente fica evidente quando aquilo que antes foram estórias de depauperadas também contribuíram para a reformulação da esfera pública negra
amor transforma-se em estórias de sexo. Mesmo quando eram sistematicamente e sua historicidade:
profanos, os modos de intersubjetividade descritos e por vezes praticados em
estágios anteriores do desdobramento do rhythm and blues eram informados A vida cotidianatorna-seum perpétuoensaio geral para a morte. O que se ensaia
pela proximidade do sagrado e pelas definições do amor espiritual que eram ali é a efemeridade e a evonescéncia das coisas que os humanos podem alcançar e os
laçosque os humanospodemtecer. O impactode um tal ensaiocotidianopareceser
cultivados. Não precisou muito, por exemplo, para adaptar "I Had a Talk with My
similar àquele realizado poralgumas inoculações preventivas: se tomado diariamente,
God Last Night" [Tive uma Conversa com Meu Deus na Noite Passada] ao seu em dosesparcialmente desintoxicadas e, portanto, não-mortíferas, o veneno terrível
equivalente profano na gravação marcante da Chess de Mitty Collier "I Had a parece perder seu poder. Ao contrário, ele instiga a imunidade e a indiferença à
Talk with My Mao Last Night" [Tive uma Conversa com Meu Homem na Noite toxina no organismoinoculado. J]
Passada]. A espiritualidade lançou longas sombras sobre as formas emergentes
de criatividade secular e profana em que as canções de paixão eram com freqüência
também canções de protesto. Aqui o caso óbvio de paradigma é "Rcspect'' de 32. Isto se transmite com muita força, sendo que seu relacionamento com a problemática da liberdade
Aretha. se esclarece em diversas faixa~ do grupo Da Lench Mob de Ice Cube. Ver, por exemplo, "Capital
Punishment in America" e "Itreedom Got an A.K.", ambos de seu álbum Guerillas in the Mist
(Street Knowledge 7-92206-2).
33. Zygmunt Bauman, Mortalry, Imortality und Olha Ufe Strmegíes (Polity, 1993), pp. 187-188.
Ver também Ernst Bloch e Theodor W. Adorno, "Something's Míssíng", in Ernst Bloch, The
31. Shahrazad Ali, Are You Still a Stave? (Civilized Publicatíons, n.d.). Utopian Function of Art and Literurure (MIT Prcss, 1998), pp. 5-8.

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t.NIKt. t.AMI'V::' õõ 1~<If';Utl:;, LUItUr<lS e o -as cimo ua Raça
PAUL GIL ROY

É preciso repetir que de acordo com a biopolttica a pessoa é identificada todos os "batty bwoy" [homossexuais] como preço de sua reprodução com o
somente em termos do corpo. O melhor que esta mudança acarreta é uma tempo. Eles podem, como muitos artistas do rhythm and blues, atuar em
confrontação de princípio anticristão com a idéia de que a vida continua após a celebrações rituais altamente estilizadas de intimidade heteros::;exual que suspendem
morte. Esta recusa de antídotos religiosos para a morte é freqüentemente descrita e transcendem a incoerência cotidiana e a assimetria de gênero, transformando-
como niilismo." Nestas circunstâncias, o desejo de ser livre liga-se de perto ao as em uma narrativa ordenada do ser e do vir a ser raciais. É portanto necessário
desejo de ser visto como livre e à busca de uma experiência de intensidade individual reconhecer que a centralidade de gênero para as culturas populares negras pode
e corporificada que contrasta nitidamente com as formas coletivas e individuais de ser também analisada como uma articulação alternativa de liberdade que associa <I
imortalidade estimadas em tempos passados. Assim como o soul e o reggae atuaçâo autónoma com o desejo sexual e promove o exercício simbólico de podei
constituíram-se em dádivas para as culturas jovens do mundo visível em períodos no domínio especial provido pela sexualidade.
anteriores, hoje estes estilos tornaram-se o coração de uma cultura pop globalizada Neste espaço crepuscular, Bell Biv Devoe, um grupo que assumiu os tropos
criando-se uma intensidade desconhecida de sentimentos que apontam do basquetebol muito mais do que qualquer outro, utilizou-se deles para produzir
potencialmente para a transcendência da raça nas culturas enlatadas de obsessão um convite recatado à prática da relação anal; D.R.S. (Dirty Rotten Scoundrels
pelo corpo e de transcendência do corpo que existem entre consumidores deu a simples ordem de "despir-se" às suas infelizes parceiras; e S.W.v (Sísten
adolescentes em todo lugar. with Voices) instigou seus parceiros a rumar para "Downtown" [centro da cidade
Jean Luc Nancy enfatizou que a liberdade liga-se a uma política de e descobrir entre as coxas delas um caminho para o seu coração:
representação." Esta relação alcança uma significância especial quando a "raça"
se torna a racionalidade para negar e conter a liberdade e quando a indiferença ... Você se pergunta como você pode fazer isto melhor
estudada em relação à morte e ao sofrimento de outros proporciona um atalho neném é fácil virar meu mundo do avesso
sua descoberta nos levará para outro lugar
para a notoriedade e as celebridades duradouras associadas ao domínio das gangues.
neném não há dúvida nisso
Isto se toma agora um fenómeno social em virtude da sua anti-socialidade. Como Eu estive esperando pelo momento especial, antecipando todas as coisas que voei
as velhas certezas sobre os limites estabelecidos da identidade racial perderam vai me fazer
seu poder de convencimento, a segurança ontológica capaz de responder a um dê o primeiro passo para liberar minhas emoções e pegue a estrada para o êxtase
você tem de ir ao centro da cidade... provar a doçura será [) bastante...,6
sentido radicalmente reduzido de valor da vida tem sido buscada no poder
naturalizante da diferença de gênero e sexo, assim como na habilidade de enganar
Estes são temas que certamente têm precedentes na cultura popular negra
a morte e de matar. Sexo e gênero são experimentados - vividos conflitivamente-.
mas sua significância tem se transformado em tempos recentes. Outros discurso
em um grau aumentado que de algum modo conota a "raça". A diferença de
racializados que modificariam e, por conseguinte, contestariam seu statu
gênero e os códigos de gênero racializado oferecem um sinal especial para um
representativo, acabaram silenciados à medida que aumentou a distância entre'
modo de autenticidade racial que é tão evasivo quanto desejável. Nestas
vernáculo profano e as preocupações com o sagrado e espiritual. O enfoqu
circunstâncias, a representação iterativa de gênero, de conflitos de gênero e de
biopolítico extingue qualquer concepção sobre o dualismo de mente/corpo e tennin
sexualidades traz confiança e estabilidade para as noções essencialistas e
com as aspirações modernistas em matéria de ascensão racial que antes s
absolutistas de particularidade racial. Estas noções podem, tal como as estrelas
expressavam mediante a linguagem da cidadania público-política. O corpo ~r
homofóbicas do salão de dança de meados da década de 1990, exigir a morte de
movimento na quadra de basquete, esforçando-se contra o maquinário da academu

34. Nas, "Lifc's a Bitch'', do CD Illmatic (Colúmbia, CK 57684, 1994).


- -_._----
36. S,W.V. !t's About Time (RCA 07863 66074-2, 1992). Ver também S.W.v.. TfJe Remexes (RC
35, Jean Luc Nancy, The Experience of Freedom (Stanford University Press, 1993). 07863-66401-2,1994).

234 235
ENTRE CAMPOS ,. Nações, cutturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY I

no volante de urncarro esportivo, entre os lençóis, e finalmente depositado e ornado do emprego, da saúde e da habitação são os fundamentos que apoiaram a destruição
com vestes espalhafatosas de grife sobre a lápide mortuária é agora tudo o que da ordem cívica das áreas pobres urbanas.
resta. O comovente e perturbador "Suicidal Thoughts" [Pensamentos Suicidas] de O conceito de uma subclasse socialmente excluída intervém nesses diferentes
The Notorious Big apresenta a decisão de tirar a vida de si mesmo como o ápice relatos do niilismo negro. Cada uma dessas explicações oferece uma semente
dessas terríveis condições. racional diminuta contida em uma imensa casca mística, mas elas não são
satisfatórias mesmo quando consideradas em conjunto. O nexo da consciência e
NIILISMO E PSEUDOLIBERDADE do comportamento que é reduzido ao termo pejorativo "niilismo" associa-se com
representações idiomáticas de liberdade. Seus principais gêneros e estilos
Conforme já disse, o tema da liberdade continua importante por se relacionar contemporâneos são a propriedade, o sexo e os meios de violência. Desta
diretamente aos debates contemporâneos sobre as conseqüências anti-sociais do perspectiva, o "niilismo" deixa de ser anti-social e toma-se social no sentido óbvio
niilismo negro." Interpretações influentes a respeito da política negra do termo: ele gera a comunidade e define as fronteiras fortificadas da particularidade
contemporânea enfatizaram a falta de sentido, de amor e de esperança na vida racial.
metropolitana negra, explicando que a crise ética crônica que possivelmente está Mais uma vez, a memória sedimentada da escravidão proporciona o ponto
na origem disso tudo gera ainda outros sintomas de miséria negra: homofobia, de partida para a compreensão do desenvolvimento deste padrão vernacular. Ela
misoginia, anti-semirismo e nacionalismos fundamentalistas que têm se afirmado direciona a atenção para o simbolismo complexo de riqueza e status na cultura
agora nas culturas políticas negras. O poder corrosivo da comunidade exercido popular negra. A cultura visual de hip-hop tomou-se rapidamente o pivô da
por este nii~ismo vemacular deve-se a uma variedade de mecanismos causais transformação alquímica das algemas de feno em correntes de ouro." Racializadas
~ferentes. As vezes ele é visto como uma capitulação ao eu-ismo e ao agora- por MI'. T, cujas incursões audaciosas continuam vivas no mundo atemporal da TV
rsmo, os valores de mercado - individualismo, insensibilidade e indiferença pelos a cabo, as correntes de ouro externalizaram a mudança de preço da força de
outros - que dominam o mundo empresarial majoritário e suas mercadorias de teor trabalho do escravo (assalariado) - calculada com base no valor da troca. O ouro
popular e cultural. Outras vezes ele tem sido interpretado como um conjunto de das correntes expressou os limites da economia monetária onde elas circulavam,
hábitos "étnicos" peculiares aos negros. Seja como uma resposta mecanicista ao
racismo e à privação material ou como um traço "étnico" mais criativo, esse poder
tem se vinculado com rapidez aos padrões de organização doméstica, parentesco
38. O ator Mr. T antecipou as opiniões de uma geração de músicos de hlp-hop de velha guarda ao dar
e comunidade que supostamente distinguem a vida social negra. Por fim, ele é em 1985 esta explicação sobre seu gosto espalhafatoso por jóias:
visto como uma característica estrutural do capitalismo desindustrializado que não As correntes de ouro são um símbolo que me traz à lembrança os meus grandes ancestrais
africanos, que foram trazidos aqui como escravos com correntes de ferro nos seus tornozelos,
nec~ssita mais da mão-de-obra viva de comunidades negras fraturadas
seus pulsos, seus pescoços e às vezes até nas suas cinturas. Eu transformei minhas corr~ntes em
terminalmente e que estão agora à margem da prática em curso de acumulação ouro, portanto declaro o seguinte: o falo de eu usar correntes de ouro em vez de ferro e porque
flexível e podem considerar desprezíveis as oportunidades económicas limitadas ainda sou um escravo, só que a etiqueta com o meu preço está mais cara agora. Eu ainda sou
oferecidas a elas pelo emprego "neo-escravo" numa casta servil, insegura e mal comprado e vendido pelos poderes que existem nesta sociedade, pessoas bra~cas, ~as ~~sta vez
elas me pagam por encomenda, milhões e milhões de dólares pelos meus serviços. Eu eXiJO e eles
paga de trabalhadores domésticos, auxiliares de enfermagem, faxineiras, me pagam ... Sim, eu ainda sou um escravo nesta sociedade, mas eu ainda sou livre por vontade de
entregadores, mensageiros, serventes e guardas. A segmentação e a casualização Deus. "Como é que você ainda é um escravo Mr. T?" Veja bem, a única coisa que ainda interessa
a esta sociedade é o dinheiro. E a única coisa que ela teme e respeita é mais dinheiro.
Mr. T, An Autobiography by M,: T (W.H. Allen, 1985), p. 4. Este relato da conexão entre a
escravidão c a identidade vincula a autonomia pessoal com os símbolos de riqueza e a memória
37. Comei West, "Nihilisrn in Black América", Race Maltas (Beacon Press, 1993)' ver també do terror. A condição da escravidão persiste, mas é mudada por graça divina e pela própria
Ishmae1 Reed , "A'"
nmg D'rrty L auu d" .
ry , no livro ' 1993)_ m
de mesmo nome (Addison-Wesley, capacidade mundana de se deixar empregar por outros.

236 237
ENTRE CAMPOS .. Nações. Culturas e o Fascínio da Raça I'AUL lllLKUY

mas que também eram capazes de transcender - especialmente em tempos de Dominação e liberdade tornaram-se termos intercambiáveis em um projeto comum
para subjugar a natureza e a humanidade -cada um dOH quais é usado como desculpa
crise. A humanidade livre, anteriormente sob a guarda de Deus, poderia ser agora
para validar o controle de um pelo outro. O raciocínio envolvido nisso é estritamente
conduzida em exibições de riqueza que excediam em muito o valor de uma pessoa circular. A máquina não só fugiu sem o motorista, mas o motorista tornou-se uma
- de um corpo. O mesmo tipo de ostentação pode ser detectado no apetite por mera parte da maquina."
carros como símbolos de status, riqueza e poder masculino, demonstrado por alguns
músicos de hlp-hop contemporâneos: Como o processo civilizatório era muito dependente da institucionalização
de seu trabalho não-livre, os escravos consideravam-no" com ceticismo e suas
Dre gaba-se de uma coteção de carros: um Chevy Blazer branco, um Benz 300seg pretensões éticas com extrema suspeita. Suas reflexões hermenêuticas
conversível, uma BMW 735, dois 64 e um Nissan Pathfinder ("minha mãe passou a
mão no meu Pathfinder, ela é como minha irmã, parece jovem. Ela está se esbaldando
com esta merda minha, então acho que tenho apenas cinco carros".) ..19
I fundamentaram uma cultura vernacular que pressupunha a possibilidade de que a
liberdade deveria ser buscada por fora das regras, códigos e expectativas desta
civilização eminentemente codificada em cores. A transgressão destes códigos
Para darmos início a um exame das formas que o relacionamento entre as era um sinal de que a liberdade era então reivindicada. Ela apresentava a
liberdades cívica e pessoal podem assumir na idade pós-liberal, é preciso cultivar a possibilidade de uma (anti)política animada pelo desejo de violar- uma negação da
habilidade de desvencilhar o lúdico do programático e descobrir quaisquer liames autoridade injusta, opressiva e, portanto, ilegítima. Ao romper com estas regras
político.s. entre eles. Épossível perceber que os problemas apontados nestas tentativas mediante pequenos atas, porém ritualizados, foi possível desfigurar o asseado edifício
de se ajustar à liberdade nasceram com a escravidão, mas as liberdades cívicas do da supremacia branca que protegia liberdades enodoadas e, portanto, inautênticas.
Ocidente moderno que constituem o objeto privilegiado destas indagações não As culturas de insubordinação percebiam as liberdades mais substantivas e
eram antitéticas à escravidão e outras formas de servidão legal e legítima. valorosas como aquelas capazes de seguir imperativos morais em circunstâncias
Os efeitos duradouros da escravidão são mais evidentes nos desejos restritas. Elas foram elaboradas através dos meios da música e da dança, assim
constantemente declarados de se libertar da servidão do trabalho e da lei injusta e como através da escrita. A música expressou e confirmou a não-liberdade enquanto
opressiva. Eles também podem ser sentidos na identificação da liberdade com a evoluía para padrões complexos que apontavam para além da miséria e em direção
morte que caracteriza em profundidade algumas versões do cristianismo negro e à reciprocidade, prefigurando a democracia ainda por vir em suas formas antifônicas.
adiam a emancipação e a possibilidade de redenção para um mundo futuro melhor. A dança refinou o exercício do poder autônomo do corpo ao reinvindicar seu
Equipados, entre outras coisas, com os traços vivos de uma ontcteología africana, retomo de uma situação de soberania absoluta do trabalho. Ela produziu a hierarquia
os escravos do hemisfério ocidental não procuraram e nem anteciparam o modo alternativa "natura}" - totalmente antitética à ordem requerida pelas instituições
de dominação do mundo externo que havia provido os europeus com as pré- da supremacia branca - que constitui arualmente a base das culturas esportivas
condições essenciais para o desenvolvimento da consciência da liberdade. O sistema negras, tendo lançado o super-humano Michael Jordan como um personagem
da grande fazenda escravista fez com que aquele modo de dominação da natureza escravizado de desenho animado, assim como muita música negra feita para ser
se tornasse parte da experiência de ausência de liberdade vivenciada pelos nada mais do que um mero passatempo para acompanhar a autodisciplina pós-
escravos. Eles resistiram a isso juntamente com suas noções correspondentes de modema necessária à malhação física.
propriedade, tempo e causalidade. O resultado final deste processo foi bem descrito
por Murray Bookchin:

40. Murray Bookchin, The Ecology Df Freedom: The Emergence and Dissolution 01 Híerarch»
(Cheshíre Books, 1982), p. 272.
39. dream harnpton, "G down'', The Source (setembro de 1993), P. 68. 41. Frederick Douglass, My BOI/Jage My Freedom (Miller, Orton and Mulligan, 1855), p. 50.

238 239
tl'llKt LAI"lI'U::> õõ l~do,;UeS, vurruras e o -ascuuc aa «açe PAUL GILROY

SEGUINDO E FAREJANDO POR Aí De qualquer forma esses gestos impõem a prioridade do momento enunciativo, do
que se está dizendo sobre o dito. Devemos também nos lembrar que de acordo
Eles podem estar ligados por suas aparições em desenho animado e por um com este vernáculo, "dog'' [cachorro] é tanto um verbo quanto um substantivo
entusiasmo étnico com o jogo de bola, mas a super-humanidade de Jordan e a [em inglês].
fraternidade heróica que tem nele o homem dos músculos salientes representam o O encarte do álbum de Snoop, Doggy Style, foi impresso em papel reciclável.
oposto exato de Snoop Dogg, cuja infra-humanidade o induziu a se apresentar com Ele o usou para fazer agradecimentos calorosos à Igreja Batista da Comunidade
uma cara de cachorro, como alguém menos que humano. É melhor deixar de lado Golgotha (possivelmente onde a sua carreira de músico começou como maestro
a questão de se a histórica marca registrada oral" 1-8-7 em um policial a paisana", de coro e pianista), além de outras pessoas. O lado G do álbum de Snoop inicia-se
que anunciou sua chegada na trilha sonora de Deep Cover, poderia ser simplesmente com a faixa que é ainda a mais conhecida dele. O título dela é formado por duas
uma reafirmação idiomática de algumas ansiedades modernistas muito bem questões fundamentais que surgiram repetidamente, tal como gêmeos no coração
conhecidas sobre os limites da atuação existencial, da autonomia e, em particular, de um diálogo histórico que reclama a conclusão das indagações ontológicas a que
da subjetividade em termos da relação entre fazer a si mesmo e tirar deliberadamente se dedicaram os escravos recém libertos enquanto lutavam para definir e esclarecer
a vida de outro." os limites de seu novo status como indivíduos livres e modernos: "QUEM SOU
A música e o rap de Snoop continuam com sua fidelidade canina às formas EU (QUAL É O MEU NOME)?"
antifônicas que ligam os estilos negros do Novo Mundo a seus antecedentes Snoop declarou sabiamente que seu trabalho não tem nenhum significado
africanos. A esfera pública em declínio configura-se em termos negativos, porém, político. Quando ele é pressionado a se posicionar nessa ordem restrita, suas
não niilfsticos, mas ainda é quase tão reconhecível quanto uma transcodificação opiniões convencionais ao extremo estão bem longe daquelas que pudessem ser
pós-tradicional da congregação cristã negra. Os ensinamentos de Snoop às suas chamadas razoavelmente de niilfsticas:
audiências - "Se você não dá a mínima como eu não dou a mínima, acenem com
esses seus dedos filhos da puta para cima" - não estão muito distantes dos gritos Quanto a eu ser político, a única coisa que posso dizer é que os EUA filho da puta
dos músicos de rap da velha guarda, cujas ambições cruzadas por cima da linha pode começar a dar dinheiro para o bairro, abrindo oportunidades e iniciando
negócios, pode fazer alguma coisa para que os negros não queiram matar-se uns
de cor exigiam deles que xingassem menos do que ele o faz, ou mesmo dos
aos outros. Dê a eles algum tipo de emprego e finanças, porque a matança não
pregadores que buscavam gestos de solidariedade similares de suas congregações." ocorre por amor ou por dinheiro. Eles estão matando e enganando uns aos outros
porquc não há nenhuma op0i1unidade. Enquanto for negro com negro, ou negro
com marrom, está bem - eles não gostam de negro com branco. Eles mandam os
42. Ver June Jordan, "Beyond Apocalypse Now'', in Civil Wars (Beacou Press, 1981), emespecial guardas nacionais, assim como quando nós estouramos a bunda deles cm 29 de
p. 171; Robert C. Solomon, From Rationalism to Existentíalísm: The Existemialists and Theír abrilde 1992,as forçasarmadase o exércitofilho da puta com metralhadoras cnonnes
Nineteenth Century Backgrounds (Harvester, 1972), capítulo 7. Ver também a discussão de - por causa de negros que estavam roubando."
L 'Estrangerde Albert Camus em Culture and Imperialism deEdward Said (Chatto andWindus,
1993).
O desenho atrevido na capa de Doggy Style apresentava Snoop como um
43. Em seu relato sobre as apresentações recentes dele em Londres, Hip-Hop Connection. no. 14
(1995), p. 14, observou estadinâmica emação: "Àsvezes estaexibição parecia-se com um jogo cachorro de estórias em quadrinho. Isto não nos trouxe um guia mais confiável
de ditos de Snoop.."Levantem as mãos para cima', ele gritava e a audiência obedecia com , para o suposto niilismo e outras qualidades anti-sociais de seu trabalho. Precisamos
prontidão. Eles demonstravam uma estranha satisfação. Não ocorria a eles queo acompanhamento considerar por que um jovem afro-americano escolheria - neste momento -
instrumental deDoggystyJe é idealmente apropriado a um concerto aovivo. Aprodução musical
de Dre significa que a aruação de Snoop deveria incluir músicos, e não um DAT barato e apresentar a si mesmo para o mundo com as feições e com a identidade de um
impessoal. Não incomodados porestapatente omissão, os Tas cantavam avidamente seguindo
a arenga casual de Snoop". Ver também Walter F. Pins, Jr., Otd Ship ofZion: The Afro-Baptíst
Ritual in the African Díaspora (Oxford University Press, 1993). 44. Hip-Hop Connection, 62(abril de 1994), p. 31.

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tN I Kt I.AMI'U:::l naçces, vurruras e o r-ascrme na Kaça PAUL GILROY I

cachorro." Como é que a máscara de cachorro, manipulada por ele, porém, não humano e o canino exibe esses elementos de identidade que não se reduzem à
inventada por 'ele, e que ele usou com tanta criatividade, facilitou a sua celebridade estrutura humana de seu antigo dono, o pai-cachorro "Calvin Broadus", com uma
por cima da linha de cor? Será que ele está com isso situando e testando os limites estatura del,93m. Deixa-se algo para trás quando se representa aquela operação
de uma humanidade desracializada, ou criando uma nova relação sustentável com somática. A metamorfose exige que nos confrontemos com as aptidões reflexivas
a natureza interior e exterior? Será que o caçador de xoxotas, a persona de um de Snoop. Seu retrato estilizado de um ser bandido bem intencionado - protéico,
cachorro muitíssimo astuto e apanhador de cachorros, procura simplesmente fazer que muda de forma, e múltiplo - é provavelmente menos significativo do que a
da miséria e do insulto a virtude, num processo familiar de inversão semiótica, força antiburguesa, vulgar e íntegra do vernáculo negro que rasteja em algum
capaz de transformar xingamentos em palavras de louvor, de revalorizar a palavra lugar atrás dele." Sua personalidade ínfima, suja e animalesca conduz a atenção
"Nigger" [corruptela de Negro] e de fazer com que o termo "cachorro" se torne crítica às zonas difíceis, onde algumas pessoas despencam pelas rachaduras do
uma expressão de afeto? Haverá um sentido em que chamar a si mesmo de edifício moral kantiano para o fundo do poço ardente da ínfra-humanidade.
"cachorro" expresse uma avaliação acurada do status social de homens jovens e Estes argumentos tomaram-se questões urgentes nas sociedades capitalistas
negros? Que crítica maliciosa sobre o significado da infra-humanidade negra se de consumo, onde as coisas assumem regularmente as características sociais das
expressa através do movimento entre corpos - entre identidades de Snoop? pessoas e as pessoas podem tomar-se coisas para todas os propósitos e intenções.
Um cachorro não é uma raposa, nem um leão, um coelho, ou um macaco Tanto Levinas comoYi Fu Tuan nos lembraram que o destino e o papel dos animais
gesticulador. Snoop não é um cachorro. A sua postura de imprimir a máscara do podem ser bem diferentes." Apesar de eles poderem ser agentes e até mesmo
Outro indiferenciado e racializado com feições caninas enigmáticas revela algo ser detentores de direitos, os animais não são coisas e nem pessoas." Para sublinhar
sobre o funcionamento da supremacia branca e das culturas de compensação que este ponto, digamos que o destino moderno deles tem estado muito ligado ao
reagem a ela. Isto pode ser lido como um gesto político e, como acredito, moral. A desenvolvimento da racial agia sistemática. A consideração deste vínculo poderia
escolha em ser um cachorro reles e sujo significa a valorização do infra-humano até mesmo contribuir para a restauração de uma humanidade perdida. Levinas
ao invés da hiper-humanidade promovida através da biopolítica centrada no corpo recontou com muita propriedade instrutiva a estória de Bobby, o cachorro errante,
e suas inscrições visuais na saúde, no esporte, na boa forma e nas indústrias de "o último kantiano na Alemanha", que lhe trazia conforto no campo nazista para
lazer. Deixaríamos escapar o ponto principal, caso enfatizássemos em demasia prisioneiros de guerra judeus, onde ele e seus camaradas haviam sido "despidos de
que o cachorro é um sinal do status de vítima de Snoop, assim como de seus sua pele humana", tornando-se "subumanos, uma gangue de macacos". A inter-
hábitos sexuais, ou que ele às vezes requer recursos tecnocientíficos de uma arma espécie de Snoop, com sua capacidade de mudar de forma, desempenha um serviço
de fogo antes de poder interagir em termos iguais com humanos reais, ou seja, semelhante. Ele também apresenta um caso em que
brancos. Ao optar em ser visto como um cachorro, ele recusa a identificação com
o corpo masculino aperfeiçoado e invulnerável que se tornou o padrão corrente da não se pode recusar a face de um animal. É por meio da face que se entende um
cultura popular negra cimentando a ligação perigosa entre saúde corporal e pureza cachorro, por exemplo. Contudo, a prioridade aqui não se encontra no animal, mas
racial, dissolvendo a linha divisória entre cantores e atletas, e produzindo fenômenos sim na face humana... o fenômeno da face não está em sua forma mais pura no
estranhos como o estrelato de Dennis Rodman, a apropriação erotizada da
masculinidade divina de Michael Jordan por R. Kelly e a curta carreira como
46. Peter Stallybrass e Allon White, The Politics and Poeücs of Tronsgressíon (Methuen, 1986).
cantor e rapper de Shaquille O'Neal. A característica "mórfica'' de Snoop entre o 47. Emmanuel Levinas, "The Name of a Dog, or Natural Rights", in DifficlIltFreedom: Essays on
Judoísm (Athlone, 1990); Yi Fu Tuan, Dominance and AjJection: The Making uf Pets (Yale
tjníversity Press, 1984); ver também Paul W. Taylor, Respect for Nature: A Theory of
Envíronmental Ethics (Princeton Unlversity Press, 1986).
45. Edmund Leach, "Anthropological Aspects ofLanguage: Animal Categorias and Verbal Abuse",in
48. Hilda Kean, Animal Rights: Politicaiand Social Change in Britatn sina 1800 (Reaktion Books,
E,H. Lenneberg, org., New Dírecticms in lhe Study of Language (MIT Press, 1964), pp. 23-63,
1998).

242 243
I ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça I I PAUL GIL ROY I

cachorro. N? cachorro, no ~nimal, há outros fenômenos. Por exemplo, a força da da proximidade pode ser usado não só para reinterpretar o que passa como
natureza é vitalidade pura. E isto que mais caracteriza o cachorro. Mas, ele também "niilismo", mas para construir um argumento sobre o valor positivo da
tem uma face." intersubjetividade nas culturas políticas negras que estão agora tão centradas no
sujeito até chegar ao solipsismo. Neste sentido, o cachorro de Snoop pode ajudar a
A segunda metade de Doggy Style se abre com um cenário de banheiro farejar uma rota de fuga do impasse corrente quanto a pensar sobre a identidade
que confere aos procedimentos um momento tradicional de formatação do racializada. Ao contra-argumentar àqueles que recusariam qualquer significado
"privado". É uma reversão a uma era anterior durante a odisséia do rhythm and filosófico e metafísico à cultura popular negra, podemos pôr em foco a eta-poética
blues, quando o discurso de autenticidade racial clamava pela remoção da roupa contida na conclamação de Snoop para "fazer isto no estilo canino", indagando as
em vez da troca de pele humana por pêlo canino. Este pequeno drama apresenta razões por que os indivíduos deveriam se reconhecer como sujeitos de uma
Snoop conversando com uma namorada. FJe se ressente da intrusão do mundo sexualidade enlouquecida e perguntando sobre o prêmio que esta conversa sobre
público em seu espaço de intimidade. A conversa deles não faz menção à alma, sexo oferece em matéria de ligação e proximidade moral com o outro.
mas este é o laço entre eles. Eles se atêm firmemente ao roteiro refinado em Sem querer incluir algumas notas de rodapé "étnicas" e esotéricas na história
centenas de discos de soul, do tipo "desligue as luzes e acenda uma vela". No do sujeito desejoso, gostaria de tentar situar o cachorro de Snoop e a cadeia de
entanto, seus movimentos não se legitimam por referências a qualquer noção de equivalências na qual ele se insere em algum lugar na genealogia das tecnologias
amor. O cachorro e a cadela pertencem um ao outro. Eles são um casal, mas sua da personalidade livre negra. O erotismo radicalmente alienado ao qual Snoop e
associação não produz a cura sexual. Não há cura no encontro deles porque o seus pares identificados como cães dirigem nossa atenção poderia com uma certa
poder do sexo não está em funcionamento aqui como um meio para naturalizar a perversidade contribuir com alguma base ética proveitosa para a esfera pública
diferença racial. Também não se celebra a união infeliz da saúde corporal e da negra alvitada. Isto é uma confirmação de que precisamos falar mais e não menos
pureza racial. Nesta banheira, a limpeza não se situa ao lado da religiosidade, sobre sexo. A "solidão dual" transmitida e celebrada de acordo com o trapo popular
embora a sensação de depressão possa estar perto dela. O sexo rústico e bestial de fazer isto no estilo canino não tinha a ver com uma mutualidade ingénua ou
praticado por eles não tem a ver com autenticidade, não oferece um momento de bucólica. Com isso rompe-se a estrutura monadológica que tem se instituído sob a
redenção comunal e nem algum meio privado para estabilizar a personalidade racial disciplina severa da autenticidade racial, propondo-se um outro modo de intimidade
reconstruída masculina ou feminina. O trabalho de Snoop vai além do apagamento
c
que talvez possa ajudar a recriar uma ligação entre posturas morais e metáforas
masculinista da atuação sexual das mulheres negras que ele, sem dúvida, reprime. 50 vernaculares do amor erótico mundano. Uma periodização da modernidade
Estas imagens circulam em uma conversa pública vulgar e insubordinada subalterna que abrange esta possibilidade estabelece-se com o movimento que vai
sobre sexo e intimidade, poder, falta de poder e prazer corporal que pode ser das "alegorias domésticas do desejo político?" às alegorias políticas do desejo
reconstruída mesmo com os fragmentos da comunicação antifônica que têm sido privado. Talvez esta conversa sobre sexo possa também reabilitar as questões
capturados na forma de mercadoria e deste modo circulado em termos prematuras de responsabilidade intersubjetiva c de prestação de contas que tém
multinacionais. Quero terminar este capítulo sugerindo que o significado ético e sido expulsas da comunidade interpretativa ao longo do reinado do absolutismo
político da afirmação da negritude de Snoop, mascarada de cachorro, tem ainda étnico e de seus sinais corporais.
um último aspecto importante. Seu questionamento simultâneo da humanidade e
,
,
A socialidade estabelecida com a conversa sobre sexo culmina com um
convite para reconhecer o que Zygmunt Bauman - para citar Levinas mais uma

. ie ara.ox of~orahty:
49"TIPd - An Interview
., with Emmanuel Levinas", capítulo 11 em Robert
~e~ascom e David Wood, The Provocation ojLevinas (Routledge, 1988), p. 168.
51. Claudia Tale, Dumesric Allegories af Politica! Desire (Oxford Ijniversity Press, 1992), ent
50. E útil c~mparar Doggy Sryle com a misoginia irresrrua de DRS e outros porta-vozes do
gangsrensrro. especial capítulos 3 e 7.

244 I 245 I
ENTRE CAMPOS :: Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça PAUL GIlROY

vez - descreve como o espaço pré-ontológico da ética. 52 Neste cenário podemos popular negra representa apenas um futor _. embora seja um fator importante e
chamar a isso de um ser para o outro, ou mesmo de um não-ser intencional que influente - em um equilíbrio de forças mais abrangentes. Contudo, o contlito entre
existe antes da metafísica racial que domina atualmente o conservadorismo os conservadores revolucionários e outras possibilidades mais democráticas e
revolucionário do hip-hop. Este núcleo ético foi central para as culturas musicais emancipatórias já é lá bem visível. A cultura popular negra guiada pelo mercado
do Novo Mundo à medida que elas adaptaram os padrões sagrados às exigências tem tornado a estética política em geral uma pré-condição para este falso desafio
seculares. Ele foi primeiro subvalorizado e depois sacrificado. Snoop, R. Kel1y, do marketíng. E agora, não é mais o comunismo que responde enfaticamente a
S.W.v., Usher, Li!' Kim, Foxy Brown e o resto da turma já estão fazendo a sua este grave perigo ao imaginar que pode politizar a arte, mas em vez disso é uma
parte na revitalização daquele núcleo ético. Minha preocupação é que o prática intelectual insurgente que reage a estes riscos fascistas, revelando a
conservadorismo revolucionário que domina o hip-hop possa ter pouca paciência extensão com que a arte popular já tem sido politizada de maneiras imprevistas.
com eles. O entusiasmo do conservadorismo revolucionário pelo mercado significa
que as conquistas comerciais destes artistas serão respeitadas. No entanto, a
impureza e a profanidade não podem ser toleradas ao longo prazo por não
contribuírem em nada com o heroísmo requerido pela reconstrução racial. Pessoas
autoritárias e censores podem também jogar a carta da autenticidade.
Conservadorismo revolucionário: esta formulação nos leva imediatamente aos limites
de nosso vocabulário político disponível. Há algo explicitamente revolucionário na
apresentação da violência como o princípio-chave da interação social e política c
talvez também nos ódios da democracia, do academicismo, da decadência, tepidez,
fraqueza e suavidade em geral que têm sido ensaiados com regularidade. O
conservadorismo é assinalado em alto e bom som na rigidez sem alegria dos papéis
de gênero que são definidos em uma abordagem absolutista tanto em termos de
particularidade ética como de particularidade racial e, sobretudo, numa apresentação
sombria da humanidade negra composta de criaturas limitadas que requerem
tradição, pedagogia e organização. Isto parece caminhar de mãos dadas com o
medo fascista e o desprezo das massas. Ice Cube narrou esta conversa reveladora
com seu antigo mentor, o Ministro Louis Farrakhan:

Ele me disse, as pessoas são mentalmente crianças. Elas são viciadas em sexo e
violência. Então se você tiver um remédio para dar a elas, misture-o com um pouco
de refrigerante para que elas bebam os dois e não lhes seja difícil de digerir."

É importante lembrar que os perigos derivados da fusão da biopolftica e do


conservadorismo revolucionário não se encontram somente no bíp-hop. A cultura

52. Zygmunt Bauman, Postmodem Ethics (Blackwell, 1993), pp. 92-98.


53. Ice Cube, entrevistado por Ekow Eshun em The Face, no. 65 (fevereiro de 1994l. p. 91.

246 247
6
As TIRANIAS
DO UNANIMISMO

Eu lí todos os relatos do movimento fascista que caíram em minhas mãos, e página


após página, encontrei e reconheci padrões emocionais que me são familiares. O
que me surpreendeu com uma força especial foi li preocupação nazista com a
construção de uma sociedade em que existiria entre todas as pessoas (o povo
alemão, é claro!) uma solidariedade de ideais, uma circulação contínua de crenças,
noções e suposições fundamentais. Eu não estou falando da idéia popular de
arregimentar o pensamento das pessoas; estou falando das suposições implícitas,
quase inconscientes ou pré-conscientes e os ideais em relação aos quais nações e
raças inteiras agem e vivem.

RICHARD WRIGHr

Quanto mais estreito for o alcance de ação de uma comunidade formada por uma
personalidade coletiva, mais destrutiva se torna a experiência do sentimento fraternal.
Forasteiros, desconhecidos, diferentes tomam-se criaturas para serem afastadas;
os traços de personalidade que a comunidade compartilha tomam-se cada vez mais
exclusivos; o próprio ato de compartilhar torna-se cada vez mais centrado em decisões
sobre quem pode ou não pode pertencer... A fraternidade tornou-se uma empatia
para um selero grupo de pessoas aliada à rejeição daqueles que não fazem parte do
círculo local. Esta rejeição cria a vontade de autonomia em relação ao mundo exterior,
de que ele o deixe a sós, em vez de exigir que o mundo exterior se transforme..
Fragmentação e divisão é a própria lógica desta fraternidade, enquanto os grupos
de pessoas que pertencem realmente tomam-se cada vez menores. É uma versão de
fraternidade que leva ao fratricídio.

RICHARD SENNETT

ESTE É um período especialmente importante nas vidas e consciências dos


povos afro-descendentes de países superdesenvolvidos. Suas rrajetõrias pela
modernidade alcançaram em tempos recentes um estágio significativo, enquanto a
I ENTRE CAMPOS •• Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça I I t"t\u" .,u""Ul

luta da África contra a dominação colonial, que definiu tantas aspirações políticas e democracia raciais de uma inquietação mais profunda sobre os limites da
no período pós-escravidão, chegou ao seu desfecho. Os países africanos são ainda particularidade racializada. É preciso lembrar aqui que as pessoas condenadas
explorados e excluídos, mas mudou o modo de sua marginalização. Os padrões pela primeira vez pelo crime de genocídio foram os africanos Jean-Paul Akayesu
distintivos do imperialismo do século XIX regrediram. Novas batalhas sobre saúde, e Jean Kambamba. Isto não deveria obscurecer o fato de que o tribalismo coloca-
tecnologia, ecologia, e em especial a dívida emergiram para expandir e adaptar se de um modo muito ambíguo em relação às idéias modernas de "raça", I apesar
nossa compreensão dos conflitos políticos coloniais e quiçá pós-coloniais. Os países de ele ter sido de fato inventado em vez de ter sido transmitido perfeitamente
mais ricos do mundo permanecem profundamente divididos a respeito do desde o passado pré-colonial, afirmando-se como uma força poderosa suprema
cancelamento das dívidas contraídas pelos governos africanos. para a solidariedade "étnica" e a divisão sectária.
Neste período nominalmente pós-colonial, o desejo de liberdade, que foi por Para complicar ainda mais o assunto, as divisões políticas e ideológicas
um longo tempo o centro do imaginário político negro moderno, deve dar uma estabelecidas nos primeiros tempos tornam-se embaçadas. Os líderes negros
pausa e refletir seriamente ao se confrontar com estas simples questões fantoches de Bopbutatswana, um pseudoEstado do Apartheid, convocaram
enganadoras: "liberdade em relação a quê?" "liberdade para realizar o quê?" A desastrosamente a organização defensora da supremacia branca, a Afrikaner
emancipação da África do Sul do domínio criminoso do Apartheid, embora ela Weerstandsbeweging (AWB), para protegê-los, uma vez que a despeito de suas
possa ser incompleta, oferece uma boa oportunidade para reconsiderar a relação diferenças políticas, eles se associavam por cima da linha da cor por força de seus
mais ampla entre a diéspora de Novo Mundo da África e o futuro da África. Esta investimentos fascistas em mitologias de masculinidade, na ficção da pureza e
reflexão envolve ponderar sobre as políticas de descolonização numa era sem num ódio comum pela diluição de sua sagrada especificidade. Já em paragens
colónias, e buscar a possibilidade de uma consciência anti-imperialista numa era menos distantes, os ideólogos strasseritas que foram os primeiros a forjar uma
sem impérios triunfantes organizados ao longo das linhas audaciosas e racistas do "terceira posição" para a neofascista Frente Nacional Britânica em fins dos anos
século XIX. Ela confronta os limites históricos e filosóficos da idéia de libertação e 1980, apresentaram Louis Farrakhan em suas publicações como "um Deus enviado
promove uma reavaliação daquelas noções modernas fundamentais de liberdade e a todas as raças e culturas", distribuíram folhetos em apoio à sua Nação do Islã, e
revolução. visitaram sua Mesquita número 4 em Washington, D. C., com a intenção de estudar
A linguagem da revolução pode até persistir, mas nestes dias é mais provável seu programa antidrogas.
que se deixe de lado as complexidades da transformação societãria em geral e se Por volta da mesma época, a revista da Frente Nacional, Nationalism Toda)',
promova uma virada "interior" ao estilo Nova Era. Esta orientação oportuna é de entrevistou um outro afro-americano ultranacionalista, Osíris Akkebala, "uma velha
alguma maneira bem diferente do processo histórico de posse de si mesmo que figura do Movimento Pau-Africano Internacional (MPAI)", sediado na Florida.
James Brown em plena era do Poder Negro denominou notoriamente de uma Ele lhes disse que a sua organização havia investido a separação de raças de um
"uma revolução da mente". Vimos que esta revolução acarreta uma compreensão significado sagrado de acordo com seu status como parte da lei de Deus, e que os
transfonnadado sujeito racial articulado exclusivamente por intermédio do corpo e membros se opunham ao casamento entre negros e brancos porque ele "resulta
de seu poder imaginário para determinar o destino social humano. Esta revolução, em genocídio racial"." As relações fraternais entre estes dois grupos
se é mesmo revolução, é um projeto biopolftico que não somente produz novas ultranacionalistas pareciam continuar intactas, dez anos mais tarde, quando Akkebala
verdades de senso-comum sobre a "raça", mas ao fazê-lo, fixa a mente e o corpo reapareceu na Grã-Bretanha. Desta vez, ele serviu como testemunha de defesa
num relacionamento distintivo de modo que tanto o gerenciamentc e () treinamento
do segundo transforma-se na chave para regular o primeiro.
O genocídio em Ruanda e os conflitos contínuos no Congo, Burandí e outros J. Edith Sanders, "Thc Hamiric Hypothesis: Its Orígíns and Functions in Time Perspective", Iournal
lu?ares são apenas os mais notáveis eventos recentes que imbuíram as indagações of African Hístory, 10 (1969), pp- 524-526.
feitas pelos negros da diáspora em relação ao status da diferença, solidariedade, 2. "A Callro Arms, a Callto Sacnfice", Nationalism Today (sem data).

250 I I 251
ENTRE lAMI'U~ •• nacces. lUlturas e o t-escmtc da Raça rHUl. ' ' ' ' ' ' ' ' U I

no julgamento em 1998 do ativista do Partido Nacional Britânico (PNB) Nick intensificadas no interesse da justiça económica, da democracia política,do equilíbrio
Griffin, o editor de The Rune. acusado de incitar o ódio racial. Nessa ocasião, ele ecológico e das batalhas existentes contra o poder da supremacia branca e de
disse ao jornal negro britânico New Nauon: "Vemos o PNB como nossos aliados outras formas de absolutismo. Nestas condições, torna-se importante examinar
naturais. Ambos enxergamos a necessidade de preservar nossas raças distintas".' como as conexões simbólicas e culturais vitais entre a África e sua diâspora
É possível que o PNB tenha ansiado em retificar sua posição frente às sugestões moderna poderiam ser protegidas. Elas podem até se configurar em algo importante
de que estaria envolvido no assassinato de Stephen Lawrence. Mas isto não é para o futuro desenvolvimento de ambas as regiões, numa época em que o abismo
suficiente para explicar seu apoio ativo à família de Archie O'Brien , um material e experiencial entre zonas superdesenvolvidase subdesenvolvidas do planeta
desempregado de vinte e seis anos de idade, nascido nas Bermudas, mestre de tem se ampliado com o aceleramento das mudanças tecnológicas e os novos modos
cozinha e rastafãri, a quem o PNB juntou-se numa manifestação em frente ao de exploração, caracterizados pelo débito punitivo e interminável e pelos negócios
Home Office [Secretaria de Negócios Internos] em setembro de 1996. O'Brien efervescentes com detritos de alta periculosidade.'
buscava o patrocínio financeiro do governo britânico para o seu plano de emigrar e Esta percepção de uma profunda mudança na localização e significação da
estabelecer-se na África, de preferência em Gana. Entrevistado pelo lhe Guardian, África para o imaginário político de sua mais recente diáspora tem também sido
ele disse que ao contrário de seus associados do PNB, ele não defendia um retomo registrada no momento em que comunidades negras no interior das zonas
compulsório à África para todas as pessoas negras. Conforme ele explicou: "Eu superdesenvolvidas vivenciam tanto um grau de diferenciação interna sem
não posso me expressar aqui. Posso somente me expressar na África, rodeado precedentes, como novos níveis de empobrecimento económico. As áreas
pelo meu próprio povo e pela natureza... Isto não é para todos. Você tem de alcançar metropolitanas onde essas populações têm se concentrado podem ser caracterizadas
um certo nível de consciência e ser capaz de viver fora do país antes de ir para lá. pelo término daquele mundo da vida comum compartilhado no passado pelo pobre
O povo negro precisa ser preparado antes de retomar para a África".4 e pelo privilegiado. Esses grupos não mais se agrupam em comunidades integradas
Estes contatos contribuem para um padrão de eventos perturbadores que para além das linhas de classe e talvez nem mais residam no mesmo espaço físico,
aceleram ainda mais a inquietude sobre a mudança de natureza das afirmações ou mesmo permaneçam numa mesma "cultura" indiferenciada ou vivenciem o
que as idéias modernas de "raça" podem fazer sobre um mundo em que as racismo em moldes idênticos. Esta divergência em matéria de experiência e história
solidariedades raciais não mais desfrutam de uma lealdade automática ou prioridade negra alimentou a crise subjacente na compreensão da particularidade racial
incontestável acima de outras disputas coletivas baseadas na idade, religião, língua, esboçada em capítulos anteriores. As afirmações cada vez mais desesperadas
região, saúde, gênero ou preferência sexual. Estas preocupações têm se tomado sobre uma identidade racial comum e invariante não podem ser plausivelmente
ainda mais incômodas num novo contexto geopolítico em que é cada vez menor a projetadas por meio da idéia de uma cultura comum; elas encontram de preferência
possibilidade de se imaginar uma alternativa para o capitalismo, os mecanismos uma expressão alternativa num retomo significativo a aspectos de uma antiga
reguladores do mercado e a lógica viciosa da racionalidade econômica. Não é ciência racial. A identidade, compreendida apenas como uma condição de ser o
ainda uma questão de se os negros do mundo superdesenvolvido, a salvo mesmo, encontra-se outra vez alojada em propriedades especiais discerníveis nos
provavelmente da escassez brutal que define as áreas em desenvolvimento, terão corpos negros, sendo significada por elas. O interesse nas propriedades bioquímicas
vontade de continuar se associando com a África. Apesar deste desenlace ainda da melanina e no funcionamento das formas racializadas distintas da memória têm
ser uma possibilidade distinta num médio prazo, no presente momento é mais uma sido os dois mais proeminentes temas deste renascimento. Os códigos biológicos
questão de como conexões tênues e preciosas poderiam ser mantidas ou do século XVIII têm sido trazidos de volta de um modo invertido. Impregnados de

3. Ross Slater, "Revealed: rhe B. N,'s Black Buddies", New Nauon; 4 de junho de 1998. 5. Marian A. L. Miller, lhe Third World in Global Environmental Poliria (Open University Press,
4. The Guardian, 11 de setembro de 1996, p. 5. 1995).

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_... n __..... __ •••• ~~~~~, .....n.u,"~ '" U I-""~I"IU"''' I\"ça PAUL GILROY

temas ocultos e da Nova Era, eles têm sido dispostos de modo a produzir aparições da classe trabalhadora, sendo em geral masculina. Respondeu com freqüência à
instantâneas, vagas e tantãlicas de uma superioridade negra redentora e acusação de comercialismo cínico, pretendendo para si o papel de correspondente
compensatória. Estes tropos fazem parte de uma nova poética racial poderosa, de guerra que informa sobre a realidade inaceitável, visível das linhas de frente do
mas esta não tem sido suficiente para concluir um procedimento cosmético capaz gueto, de um modo vivo, porém o mais desapaixonado possível. A outra definição
de esconder as cicatrizes de uma divisão intracomunal que são visíveis através de que contou com Dr. C. Delores Tucker, chefe do Congresso Político Nacional das
lentes econômicas, além de serem confirmadas pelas disputas em tomo dos atributos Mulheres Negras, como uma conveniente figura de fachada, era afirmativamente
morais, comportamentais e carnais da negritude em vez de seus atributos corporais. feminista, inconscientemente burguesa, indubitavelmente moralista e claramente
Os temores muito difundidos sobre a decadência, a misoginia e o niilismo da confiante em sua crença central de que por mais que as formas populares pudessem
devassidão, o gangsta rap, o booty rap, e a vulgaridade subversiva da dança de ser rentáveis aos seus mercadores, elas estavam a promover o tráfico dos
salão jamaicana (que agora circula em correntes bem distantes de suas origens estereótipos mais vis e destrutivos, o que só poderia ser prejudicial aos interesses
nos guetos caribenhos) proporcionam percepções valiosas com relação às patologias comunais".
do corpo negro político, baseadas em classe e gênero. Onde quer que este conflito binário crônico tenha se enraizado, ele criou
As múltiplas controvérsias em torno da conduta de Mike Tyson, ex-campeão uma nova doença que se provou resistente aos simples tratamentos oferecidos
peso pesado de boxe, condenado por estupro, são instrutivas. No verão de 1995, anteriormente pelos remédios adocicados do nacionalismo e do essencialismo.
para marcar a sua saída da cadeia, onde ele cumprira pena pelo estupro de Desiree Para sustentar sua eficácia declinante, estas terapias fadadas ao fracassa devem
Washington, e bem antes de Tyson ter adquirido um trágico gosto pela carne fresca agora ser suplementadas por um regime corretivo austero, centrado na
de seus adversários, sugeriu-se que ele deveria fazer um heróico "retorno ao lar" regulamentação da conduta pessoal e interpessoal entre homens e mulheres ~,
no Harlem. A proposta de uma celebração pública daria ensejo a Tyson para cada vez mais, entre pais e filhos. Em ambas as versões desta estratégia, a família
"declarar que ele pretende levar Uma vida positiva, seguindo os passos de Joe negra é vista como o principal objeto das tecnologias de constituição do sujeito
Louis e Muhammad Ali". O acontecimento, para o qual também se planejou urna racial que objetivam reconstruir as pessoas negras e refazer os lares negros,
marcha pelas ruas e um grande evento de gala no Teatro Apollo, foi imediatamente treinando-os no sentido de uma consciência comum nacional e uma hierarquia de
denunciado por uma ampla gama de figuras políticas. Uma organização chamada gênero apropriada. A famflia define os limites das formas da ação política que são
Afro-Americanos Contra a Violência denunciou a cumplicidade do evento com "a vistas como integrais em termos da reconstrução da nação minguante. A retórica
mercantilização da violência" e sua "exibição arrebatadora do ódio à mulher negra, ominosa da Nova Era condiciona as ambições deste atrocenrrismo, mesmo quando
da cobiça e da irresponsabilidade coletiva". Este episódio esquecido simboliza com este rejeita a Europa e suas diabruras?
nitidez as divisões profundas que haviam surgido com as primeiras controvérsias A análise feminista negra em geral repudiou com razão a identificação das
sobre o niilismo, o cinismo e a violência do gangsta rapo Houve ainda o corpo venturas da raça com a integridade pública de suas masculinidades. O impacto de
musculoso e tatuado de um outro herói atlético negro, relançado aqui no papel de suas críticas trouxe acréscimos substanciais à incerteza sobre a particularidade
vítima de uma conspiração promovida por forças repulsivas contrárias aos negros, coletiva e as condições em que a solidariedade racializada pode emergir e ser
a ser projetado no centro deste drama. Muitos dos mesmos elementos seriam sustentada. Os conflitos políticos sobre a compatibilidade da homossexualidade
reapresentados numa posição chave mais incisiva em torno da figura de O. J. negra com o modelo masculino preferido de identidade racial também sublinharam
Simpson.
A sugestão de que duas definições opostas mas estranhamente 6. Kierna Mayo Dawsey, "Caught Up in lhe (Gangstaj Rapture: Dr. C. Delores Tucker's Crusade
complementares de nacionalismo negro têm se confrontado nos Estados Unidos, Against 'Gangsla Rap' ano 'Reality Check'", ambos em The Source (junho de 1994). _ .
na Grã Bretanha e em algumas partes do Caribe, não deixa de ser uma grande e 7. Richard King, M. O., African Origill of Bioíogicol Psychiatry (U. B. and U. S. Communicatrous
descuidada simplificação. A primeira definição linha a reputação de vir das ruas, Syslems, 1990).

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I ENTRE CAMPOS •• Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça I I PAUL GILROY I

a ausência de solidariedade espontânea ou automática e o desaparecimento de de lírica poética e novas audiências em locais remotos, sequiosas dos prazeres que
uma ética de cuidado a partir da interação intra-racial. aquelas novas formas exibem e dirigem. A música e a dança, por tanto tempo o
A elite cultural em que os intelectuais e acadêmicos negros têm sido centro do mundo público alternativo, em cujo seio a dissidência se estruturou como
proeminentes, embora de modo algum dominantes, apareceu também durante este uma contracultura, cedem com relutância seus espaços tradicionais de ascendência
período fatídico, atuando como algo semelhante à vanguarda de uma nova minoria para pseudo-performances e simulações feitas à base de vídeo. A cultura negra
de classe média que melhorou sua própria posição em termos substanciais. Se ela não está apenas mercadorizada, mas também empresta um fascínio especial e
se situa na oficina de máquinas das indústrias de entretenimento, ou já tem um pé exótico à comercialização de uma série extraordinária de mercadorias e serviços
preso às profissões mais antigas e respeitáveis, este grupo influente dá mostras de sem qualquer conexão com estas formas culturais, ou com as pessoas que as
uma reação muito conflituosa em relação ao negro pobre de cujo destino ela escapou, desenvolveram. Mas já basta de boas novas.
mas de quem ela continua a depender para a sua compreensão sobre a diferença
que faz a "raça". O advento deste grupo, num momento em que as palavras Os LIMITES DO CONSERVADORISMO REVOLUCIONÁRIO
"exclusão" e "subclasse" nunca estão muito longe dos lábios dos criadores de
políticas e dos formadores de opiniões políticas, aponta mais uma vez para a questão De um certo ângulo, as seguintes observações sobre o lugar do
controvertida daquela ordem obstinada de diferenças de classe que pode ser "conservadorismo revolucionário" na cultura política negra contemporânea poderiam
identificada no interior daquilo que não pode mais ser dignamente creditado como ser lidas como uma análise ampliada sobre o papel do rapper Ice Cube na venda
uma comunidade racial singular. dos filmes Street Fighter, Dangerous Ground e Anaconda. O primeiro filme
A desindustrialização faz com que a situação económica destas comunidades chamou minha atenção porque parecia representar uma instância altamente
negras divididas seja desoladora, particularmente onde o seu mundo social subalterno desenvolvida de um marketing multiforme. Hip-hop, jogos de computador e
é circunscrito por um alto grau de segregação espacial. S Ao mesmo tempo, os cinema entrelaçavam-se de uma maneira sugestiva capaz de projetar Cube e sua
elementos da globalização e a centralidade das culturas negras em termos de cultura marginalidade oficial tanto quanto o perfil transformado de uma cultura jovem em
popular, culturas jovens, propaganda, cinema e esporte nunca estiveram tão grandes. que a música não era mais o elemento central. Foi interessante também constatar
Entretanto, esta acentuada visibilidade não significa que o corpo negro seja retratado que não se percebiam contradições entre as ligações informais de Cube com a
em posturas ou papéis que seriam escolhidos como um meio para articular ou Nação do Islã e a variedade de práticas correntes de Hollywood representadas
complementar os interesses políticos dos negros. Pode-se argumentar que as novas por Anaconda e Dangerous Ground, bem como a colaboração dele com aquela
tecnologias comunicativas e as formas indefinidas de apropriação que elas fomentam bem conhecida "cave bítch'' [puta da caverna], a atriz e modelo inglesa Elizabeth
têm um impacto negativo sobre as tãticas de construção da solidariedade, inventadas Hurley. A facilidade aparente com que ele podia se mexer em meio a esses projetos
em períodos anteriores e refinadas quando a subcultura negra saiu de seus corriqueiros de Hollywood levou-me a uma reavaliação da circulação da
subterrâneos durante os anos 1960 e 1970. A consciência da ação grupal e marginalidade racial na economia de símbolos rebeldes da cultura jovem. Com isso
sincronizada, previamente mediada pelo impresso e pelo som, tem se transformado, iniciou-se um tipo diferente de especulação sobre a compatibilidade da retórica
começando a se esfacelar na atmosfera distinta criada pelos regimes comunicativos política revolucionária com as formas mais convencionais de raciocínio económico,
e rcpresentacionais dominados pelas imagens. O poder crescente da visualidade se não explicitamente, conservadoras. É importante perceber que a adesão enfática
inclina a balança para longe do som e mesmo do impresso, criando novas formas de Cube à separação racial, tanto como uma terapia necessária, quanto como uma
política positiva, aparentemente se relaciona em termos exclusivos com a esfera
da conduta interpessoal. Esta conveniente restrição também dispensa a
8. Douglass S. Massey e Nancy A. Denton,American Apanheíd: Segregation and the Making ofthe consideração de quaisquer questões suscitadas pela venda de sua própria arte
Underclass (Harvard University Press, 1993).
para legiões de jovens brancos de sexo masculino que são - pelo menos oficialmente

I 256 I 257 I
ENTRE CAMPOS •• Naçces, turruras e o tasctnto ua Raça PAUL GILRUY

_ OS grandes consumidores do hlp-hop. Nenhum problema até aqui. A intimidade As incursões de Cube como relações públicas revelam repetidamente que
transracial não é considerada insuperável nos espaços empresariais freqüentados ele se orgulha de suas próprias atividades na condição de pai. Mas a paternidade
por ele e que são essenciais para a escalada de seu estrelato para além das linhas tem uma outra ressonância aqui. Ela afirma a naturalidade da hierarquia. A
de cor. No mundo comercial, assim como no espaço obscuro da jurisdição da separação completa é apenas uma questão para aqueles que ocupam os papéis
performance, o cantata através da linha da cor pode ser tolerado e legitimado subordinados nesse esquema ideal. Os pais (que é de se presumir serão aqueles a
como um fato excepcional da vida econômica, embora seja possivelmente lastimado. fazer cumprir essas regras) podem atravessar à vontade a linha da cor. Eles se
Em dimensões mais íntimas, ele se torna de fato um problema: movem para dentro e para fora livremente, de acordo com as necessidades ditadas
por suas carreiras, tendentes a atravessar as linhas de cor. Eles oferecem aos seus
Acredito que precisamos fazer uma coisa, precisamos nos separar. NÓs realmente subordinados e seguidores uma fantasia de segregação, enquanto eles mesmos
temos de dizer: "Tudo bem, gente branca. Vocês querem nos ajudar? Vão para sua consolidam o oposto absoluto daquela: uma rede de relações económicas, culturais
comunidadee derrubem os muros". Quando eles estão naquela conversa na sala de
e políticas, dirigida tão somente pelas exigências do mercado e pelo mais estrito
diretoriafalando sobre nós, vocês precisamcorrigi-los. Não venham aqui para falar
besteira." delineamento entre os mundos público e privado. Tudo é para ser politizado, mas
somente para aqueles que estão ao pé do monte.
Esta estratégia foi invocada em uma outra declaração de Ice Cube na mesma Parece-me que para situar este tipo de raciocínio em sua lamentável linhagem
conversa: "Cuidem dos seus, que cuidaremos dos nossos". Na sua fala tipicamente política modernista, precisamos de uma topografia capaz de funcionar em mais
eloqüente, estas palavras pessimistas são parte de uma acusação precisa. Elas dimensões do que aquela definida pela antiquada oposição entre Esquerda e Direita.
ajudam a avivar um discurso que identifica o papel traiçoeiro e a conduta inadequada A corrente de significados fundamentaltistas) estabelecida aqui - força,
dos líderes políticos negros. É muito significativo que as ações engajadas daquele masculinidade, fraternidade, autoconfiança, disciplina, hierarquia - articula-se
grupo ultrajado sejam concebidas ao longo de linhas análogas ao papel impróprio e sobretudo através dos apelos ao valor da pureza racial, assim como em razão
inadequado dos pais em famílias negras instáveis e em lares insustentáveis onde a deles. Ela não adquire força devido à sua própria capacidade hermenêutica, mas
autoridade masculina tem estado ausente. A substituição destes líderes e pais é torna-se crível, porém, graças a uma omissão que age ainda mais efetivarnente na
necessária no processo de construção da reparação racial. A paternidade toma-se ausência de qualquer linguagem interpretativa alternativa que pudesse desafiar o
o principal meio de reconstrução comunal. Sua característica primária não é a valor irresistivelmente catastrófico atribuído à mistura e aos contatos interculturais
ternura, a percepção, a paciência, o amor, a simpatia, ou o cuidado, mas a força- e "transraciais". Seu triunfo salienta que carecemos de uma linguagem adequada
de preferência o mesmo tipo que tem estado em falta nas ações desses líderes para compreender a mistura fora do perigo e da catástrofe. Encontrar este novo e
negros "sem espinha" que "tiraram seus olhos do grande prêmio nos anos 1970" e, valioso idioma não exige a mera inversão da polaridade dos circuitos internos da
mais uma vez, conforme Cube, cometeram o grave erro de "tentar tornar as escolas hibridez de modo que o que era antes visto em termos de perda, diluição e fraqueza
públicas melhores em vez de construir nossas próprias escolas". Esta observação torne-se agora estimado, oferecendo uma oportunidade para celebrar o
revela a lógica da privatização em funcionamento. A identidade racial tem sido cosmopolitismo vigoroso favorecido pela modernidade graças aos contatos
privatizada exatamente como a educação deveria ser. O tema da retirada - cívica transgressivos e criativos com diferentes pessoas. É possível que dependendo de
e interpessoal - governa esta nova forma de segregação proposta agora. uma organicidade mais complexa que compreenda a diferença segundo as formas
de interarticulação e interdependência imperceptíveis sugeridas pela idéia de
simbiose, nós possamos começar a compreender o que ainda é melhor denominado
de mistura "transcultural", assim como as suposições sobre alteridade promovidas
por ela, enquanto fenômenos sem qualquer valor necessário ou fixo. Esta sugestão
9. New fork Times Magazine, 3 de abril de 1994. p. 45.
transitória, mas talvez radical, poderia também ser útil quando vinculada a um

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I ENTRI:: lAMI'U::' •• reacoes. vurruras e o rasctrnc aa «aça I I PAUL GILRUY I

apelo para aquilo que seria possível denominar de uma "modernidade indiferente". sabedoria contingente, mas inescapável, que estipula que os seres humanos são
Sob aquele signo promissor, a democracia anti-racista, a proteção e as noções mais semelhantes do que diferentes e afirma a unidade natural e biológica esmagadora
viáveis de reciprocidade cívica poderiam vicejar na ausência de uma obrigação de da espécie humana, em que o polimorfismo é salientado, porém, não minimizado
possuir ou mesmo abranger completamente as formas do Outro, expressas por assim que passamos a esta escala nano-política.
aquele conjunto estreito de variações fenotípicas que produz a diferença racializada.
Estas modestas aspirações podem ser ligadas à idéia de que deveríamos ser A FRATERNIDADE DOS BUSCADORES DE PUREZA
mais cuidadosos ao levar em consideração a escala com a qual se deve avaliar a
diferença humana. A mudança de uma geometria euclidiana (que opera dentro de Na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos, na África do Sul, na Bósnia e em
limites de medição muito demarcados que estão longe de serem naturais) e sua outros lugares, buscadores de pureza politicamente opostos têm se preparado para
sucessora analítica cartesiana, que vincula a percepção a um racionalismo enterrar suas diferenças e se tomar parceiros na lúgubre dança do absolutismo. É,
determinista no sentido de uma geometria fracionada que problematiza as questões portanto, importante repetir que os conflitos contemporâneos sobre o status da
de escala e de medição de um modo radical, apresenta uma analogia útil neste diferença racializada apareceram numa área bem distante do alcance das distinções
ponto. A escala corporal é com certeza importante, mas não é a única base possível simplistas entre a Esquerda e a Direita, radical e conservadora. Minha sugestão é
para o cálculo e a interação. Diversos tipos de solidariedades para além das locais que na origem, estas confluências não são de modo algum manifestações de uma
e nacionais afirmam sua presença e têm de ser colocadas dentro de uma hierarquia ideologia politica, mas sim de alguma coisa anterior a ela que desafia as regras e
explícita de escalas com múltiplos padrões de determinação. No capítulo 1, expliquei as suposições da política moderna ao exaltar a ontologia particularista e o parentesco
que esta atenção dada à escala e aos seus efeitos é demandada pela emergência primordial acima da combinação distintiva da solidariedade e da autonomia que
do genoma humano como um "código de códigos" e o foco principal da preocupação tiveram por muito tempo a palavra modernidade como emblemática. Seja qual for
com a distinção humana. O que Fanon chamou de "epidermização" da diferença a quantidade de melanina presente em suas células, estes puristas expressam uma
opera somente em uma escala, que não será sempre capaz de reivindicar prioridade compreensão distintiva de cultura, tradição, personalidade, parentesco, etnicidade,
sobre outros modos de diferenciação e determinação menos visíveis de imediato. nação e "raça" que confunde as linhas entre as opiniões localizadas anteriormente
Os graus variáveis de melanina no corpo assemelham-se a um pobre meio alternativo nos elos finais do espectro das ideologias políticas modernas. Reconhecer isto não
para estas especulações biossociais e para a epistemologia radicalmente realista é capitular diante da antiga - e em minha opinião equivocada - afirmação liberal
através da qual eles devem funcionar. de que os extremos intolerantes e antidemocráticos fundem-se rapidamente entre
Biólogos como Richard Lewontin e Steven Rose já nos advertiram que nós si para fundar um totalitarismo anti-ideológico e pragmático. Não se trata de uma
estamos no limiar de uma compreensão transformada das diferenças visíveis combinação orgânica de ideologias, ou de um certo fechamento inevitável dos
codificadas no interior dos corpos humanos. É provável que as velhas noções de circuitos estreitos de fragilidade, imaginação e maldade humanas. Para os grupos
"raça" pareçam muito diferentes, menos naturais, e mais instáveis do que agora ao politicamente opostos descobrirem uma causa comum, as coisas têm de acontecer
serem confrontadas com um padrão de predisposição em termos de saúde, doença - é preciso fazer reuniões, ajustar a linguagem, redefinir os objetivos e reconfigurar
e longevidade que não obedece às regras proféticas da tipologia racial linneana. É o propósito e a solidariedade.
possível que logo apareça algo como uma nova ciência genética "pós-racial". Ela O que eu peço aqui é que vocês se aventurem numa dimensão instável,
já tem sido prefigurada em diversas formas, sendo que nem todas respeitam uma onde os adeptos da supremacia branca e os nacionalistas negros, homens da Klan,
teoria racial em declínio como a fronteira de algumas ambições eugênicas nazistas, neonazistas e absolutistas étnicos, zionistas e anri-semitas, têm sido capazes
acentuadas. Enquanto isso, as complexidades de se separar as células somáticas de se encontrar entre eles como aliados potenciais ao invés de inimigos declarados.
das células germinativas e os problemas envolvidos na distinção entre a informação Nas palavras de Primo Levi, esta "é uma zona cinzenta, com as linhas mal definidas
genética "perifrástica" e aquela inteiramente funcional pode somente confirmar a que tanto separam, como vinculam os dois campos de senhores e servos. Ela

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ENTRE CAMPU::i •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

possui uma estrutura interna inacreditavelmente complicada, e contém dentro dela como um meio válido para classificar e dividir os seres humanos. A tentativa de
mesma o bastante para confundir nossa necessidade de julgar"." Entender as ajustar a escala com que se avalia os interesses humanos para que ela não seja
formas de cumplicidade que lá surgem não é somente uma questão de reconhecer mais compatível com a raciologia revela padrões perturbadores que reclamam
a possibilidade de que os inimigos possam, em circunstâncias excepcionais, adquirir uma reavaliação sobre onde se deve traçar as linhas entre o revolucionário e o
um interesse político comum" . Isto envolve aceitar a possibilidade de que, interesses conservador, o moderno e o antimoderno. Esta situação torna-se ainda mais difícil
à parte, eles podem compartilhar maneiras paralelas de compreensão do significado quando um grupo protegido busca (ou é dotado de) um status ético especial ou
de sua própria particularidade, de reação à idéia de contato transgressivo entre singular devido às suas experiências passadas de vitimização. Neste terreno histórico
grupos e de conceitualização da etnicidade e da "raça" como princípios gerais, e pode-se suspender os critérios normais de julgamento enquanto restituição ou
mesmo necessários, de diferenciação humana. Por exemplo, o investimento comum reparação por sofrimentos passados. A idéia de que as vítimas de racismo estão
na idéia de segregação, que marca muitos desses encontros, não deveria então ser imunizadas contra o apelo do racismo precisamente por serem vítimas, ou a de que
lido como se fosse uma erupção espontânea da fundamental antipatia humana em a vitimização anterior torna as vítimas e seus descendentes isentos de critérios
relação ao Outro. Isto é melhor compreendido como um resultado político negociado normais de conduta e de julgamento, são típicos desses tipos de argumentos. Esta
que tem se produzido através de regimes de visão e de conhecimento do mundo, os espécie de raciocínio foi reduzida a um contra-senso na fórmula vulgar segundo a
quais têm uma história. qual o racismo poderia ser definido como a simples soma de preconceito e poder.
Minha intenção é reconhecer a existência destas zonas ambíguas e cinzentas A proposição de que somente as pessoas brancas poderiam ser racistas acabou se
de modo a afirmar a importância de se ligar diversos tipos de fenômenos históricos confundindo com a noção distinta de que pessoas negras não poderiam sê-lo. O
e culturais que normalmente não são associados. As caracteristicas comuns das resvalamento entre estas duas proposições interligadas é um sintoma que deveria
forças políticas que andam de mãos dadas secretamente são omitidas de uma nos alertar para o poder pernicioso de reafirmação das categorias racializantes no
certa perspectiva porque os grupos envolvidos neste contato tácito aparentam ser momento mesmo de seu suposto apagamento.
politicamente opostos. Esta conceitualização demasiada estreita a respeito de suas A capacidade de enveredar pelo caminho errado é uma possibilidade
políticas pode ser enganosa. A situação se compõe quando as diferenças raciais, onipresente que encontrou oportunidades sem precedentes na modernidade. É
religiosas ou culturais são apresentadas como uma razão para situar ações ou importante agora explorar os vínculos entre as várias formas modernas de
atitudes em categorias morais diferentes. Por exemplo, diz-se às vezes que somente autoritarismo, absolutismo, masculinismo, beligerância, intolerância e ódio genocida,
as pessoas brancas podem ser julgadas como racistas porque o racismo é um uma vez que se tornou muitíssimo claro que os fascismos do passado não esgotaram
atributo definidor da branquitude, ou então uma propriedade intrínseca do poder a paleta de barbaridade e a sintaxe do mal. Essas histórias de sofrimento podem
que ela detém. O racismo só pode ser uma conseqüência do poder e assim, continua ser usadas para trazer à tona um universalismo contra-antropológico e estratégico.
a explicação, uma vez que os negros não têm poder - como uma "raça" - eles A retórica revolucionária, às vezes empregada na interação entre nacionalistas
não podem ser racistas por definição. A tautologia passa despercebida e o salto e separatistas negros e seus associados, os adeptos da supremacia branca, é
entre a ação individual e modelação societária é encoberta. Em minha opinião, enganosa. Ser conservador é ser engajado em uma política de conservação cultural.
seria melhor interpretar estas e outras afirmações semelhantes como uma maneira Significa aderir a um senso de cultura e/ou biologia tenazmente positivo e sempre
de instigar a identificação racial e endossar o princípio da diferença racializada super integrado como um conjunto de substâncias essenciais e reificadas de
diferença racial, nacional e étnica. Nesta perspectiva, em vez de ser um produto
de políticas profanas e de história complexa, uma apreensão da "raça", em termos
10. Primo Levi, Tke Drowned and the Saved, tradução de R. Rosenthal (Summit Books, 1988),
p.27. óbvios, biologicamente determinados e naturais dá início ao desenvolvimento tanto
11. Yehuda Baucr, Jews for Sale? NaÚ-Jewish Negotiations, 1933-1945 (Yale University Press, da cultura, como da identidade. A junção desses dois termos fundacionais - "raça"
1994).
e "cultura" - indexa algo tão importante e no entanto tão frágil e quebradiço a

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ENTRE CAMPOS .. Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

ponto de se encontrar em risco incessante e poder ser rapidamente destruído. Não negligenciados que Wilson Meses denominou de "pseudomilitarisrno das tradições
se pode debater aqui se os processos sociais e psicológicos que denominamos de Hampton-Tuskeegee, onde os uniformes e a prática de exercícios disciplinados
cultura e de identidade são mesmo tão insubstanciais. A idéia de que identidades reenfatizavam a importância de um Novo Negro que repudiaria a legendária
essenciais inestimáveis encontram-se em perigo perpétuo em relação à diferença docilidade cultural de um povo excessivamente lânguido e estético"." Outros
lá fora, e que a sua preciosa pureza está sempre sob risco diante do poder indícios podem ser extraídos do trabalho de Fredcrick Douglass, que ao observar a
irreprimível daheterocultura, constituiu decerto o pivô de algumas alianças políticas condição sofrida de seus irmãos raciais em julho de 1848, dez anos depois de sua
improváveis. Essas conexões formais são extremamente importantes, mas a palavra própria fuga da escravidão, levantou pela primeira vez a famosa questão, repetida
"aliança" sugere ligações que são por demais deliberadas e conscientes para infinitamente: "O que as pessoas de cor estão fazendo por elas mesmas?" Seu
capturar as convergências tácitas e hábitos comuns da mente que deveriam ser apelo tipicamente audacioso para que houvesse mais ações dos próprios negros
reconhecidos como significativos da mesma maneira. É possível que o refúgio nas pela causa anti-escravista foi proferido com mais dor do que ódio e, segundo ele,
certezas espúrias que constituíram no passado o suprimento exclusivo em trânsito foi endereçada sobretudo aos homens livres afro-americanos "comparativamente
do próprio pensamento raciológico europeu deixe transparecer a extensão com fúteis e indiferentes". Ele comparou os malogros destes últimos em suas localidades
que se tomaram de todo exauridas as tâticas políticas produzidas na luta contra a frente à maneira energética com que "os oprimidos do velho mundo estavam a
escravidão racial, por direitos políticos democráticos e para além daqueles direitos, realizar encontros públicos, difundindo manifestos, passando resoluções e de várias
por uma medida de autonomia social e de reconhecimento cultural. outras maneiras dando a conhecer suas aspirações ao mundo". Vale a pena citar
O culto de Malcolm X foi um sintoma inicial de um processo em que o longamente o lamento de Douglass em que ele contrasta a indiferença dos afro-
passado recente do movimento de libertação negra foi reciclado e reimaginado, americanos livres em relação ao seu próprio bem-estar político com o grande
assim como ativamente reinventado. Neste momento a Nação do Islã oferece entusiasmo demonstrado por eles para com os grandiosos rituais fraternais da
aqui o modelo mais significativo de solidariedade. Ela é importante precisamente maçonaria e da Ordem dos Oddfellows, bem como as loucuras destes últimos
porque, apesar de fazer um investimento pesado na idéia de nação," a sua própria diante das realizações verdadeiras:
ideologia não se baseia no nacionalismo, em noções de cidadania, ou em direitos,
mas numa forma de afinidade mais antiga e mais diretamente autoritária que é Se fizermos uma convocação para realizar uma Convenção Nacional, com o propósito
masculinista, intolerante e militarista e que compartilha características com outras de examinar nossas mazelas, afirmar nossos direitos, e adorar medidas para nossa
elevação mútua e a emancipação de nossos conterrâneos e companheiros
culturas políticas "fratemalisras'' e "fatriarcais''. Encontrar as razões substanciais
escravizados, conseguiremos juntar cerca de cinqüenta; mas se anunciarmos uma
para este padrão duradouro requer um longo desvio histórico em tomo do garveyismo grandiosa celebração da odd-fellowship ou da maçonaria, reuniremos, como foi o
e seus antecedentes. Também seria preciso levar em conta os fenômenos caso há poucos dias em New York, de quatro a cinco mil- despesas que por si sós
seriam de dezessete a vinte mil dólares, uma soma suficiente para manter quatro ou
cinco gráficas, dedicadas à nossa elevação e ao nosso progresso. Não deveríamos
falar assim da odd-fellowsbíp ou da maçonaria, mas isto tem consumido as melhores
12. "Francamente isto não é da sua conta. O que você tem a dizer sobre isto'! Você ensinou ao
energias de muitos de nossos melhores homens, satisfazendo-os com as loucuras
Malcolm? Você disciplinou Malcolm? Você apresentou Malcolm ao mundo? Malcolm foi seu
traidor ou ele foi o nosso traidor? E se tratássemos dele como uma nação trata de um traidor, [) brilhantes dc uma exibição artificial e indispondo-os a buscar realidades sólidas e
que é que você tem a ver com isso? Vocêtem apenas de calar a boca e ficar fora disto. Porque no importantes. Os inimigos de nosso povo percebem esta nossa tendência c a
futuro, vamos nos tomar uma nação. E uma nação tem de ser capaz de lidar com traidores, incentivam. As mesmas pessoas que apregoariam tais demonstrações nos jornais,
assassinos e desertores. O homem branco trata dos dele. Os judeus tratam dos deles. Salman amotinar-se-iam contra nós se nos encontrássemos para adotar medidas em defesa
Rushdie escreveu algo obsceno sobre o Profeta, e Iman Khomeini decretou a sua morte". Estas
palavras foram proferidas pelo Ministro Parrakhan numa reunião reservada em sua mesquita em
fevereiro de 1993. Elas foram citadas no filme Brother Minister produzido por Jefrl 13. Wilson J. Meses, The Golden Age 01Black Nationalism, 1850-1925 (Oxford University Press,
Aalmuhammed, Jack Baxter e Lewis Kesren (fone 516-625-5561). 1988), p. 197.

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ENTRE CAMPOS .. Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça
PAUL GIlROY

de nossos direitos. Eles percebem nossos pontos fracos e se aproveitam deles para
e ideologias nacionalistas posteriores, mas é curioso que o impacto continuo exercido
nos aniquilar. Nós estamos imitando as qualidades e os exemplos inferiores dox
homens brancos e negligenciando os que são superiores. Não pretendemos dizer por eles sobre os modelos subsequentes de estilo e organização políticos tenha sido
~u~ .todos os membros de sociedades odd-fellow e lojas maçónicas sejam negligenciado."
indiferentes em relação aos seus direitos e aos meios de obtê-los; porque sabemos A maçonaria Prince Hall foi uma influência profunda, mesmo que por vezes
que.nao e
não e ISSO. AIguns dos melhores e mais
' esclarecidos dentre nós figuram nessas
indireta, no pensamento de Marcus Garvey e Noble Drew Ali (o fundador do
sociedades; e é com base nisso que fazemos estas observações. Queremos ver
Templo da Ciência Moura), duas figuras fundamentais que inspiraram o trabalho
estes nobres homens despendendo seu tempo, talentos e força em objetivos mais
el:v~dos e nobres do que qualquer um que possa ser realizado pelas loucuras posterior de W. D. Fard e Elijah Muhammad.'" Os fundamentos institucionais dos
debels e resplandecentes da odd-fellowship e da maçonaria". movimentos fraternos desabariam nos anos 1930 em meio ao mesmo sobressalto
econômico que viu nascer a Nação do Islã, mas seu impacto cultural, psicológico e
Parte da frustração de Douglass pode ter sido dirieida ao seu colega próximo político continuou no presente, sendo ainda mais pernicioso quando não é
Martin ~elany, um maçam entusiasta que publicaria um panfleto sobre a legitimidade reconhecido. JS A Nação do Islã recorreu decerto à tradição de Prince Hall,
do movnnenro entre os homens de cor apenas cinco anos depois. Os argumentos transformando seus ensinamentos de modo que a maçonaria pudesse ser percebida
de Delany a favor das a tivid
IVI a des maçonrcas
., - not ávei
sao veis, mas ele era apenas um como alicerçada sobre as verdades do Islã. Assim, a associação maçônica de
dos muito . lj , tantos pais fundadores da América é empregada como uma maneira de definir a
s nacrona IStaS ilustres que encontraram no círculo fraterno e segregado
da maçon . . . I d ' conspiração mundial para a qual eles contribuíram.
. _ ana rntitu a a Prince Hall!", com seus rituais, hierarquias, sigilo, e
aSSOClaçoes
. . • ' para f azer avançar suas ambições
milita res,' um am bilente propicio Onde quer que o ideal de fraternidade tenha moldado um estilo político
sociais e p Iúi A • ' distintivo, ele levanta enigmas ainda mais difíceis em matéria de cruzamentos
o I icas. o conrrano de Douglass, ele nascera livre e por isso não
enfre.n~va o problema colocado pela convenção de que a liberdade era uma pré- culturais, tanto de ordem genealógica, como interpretativa. Estes enigmas exigem
condiçao essencial para a filiação maçónica. uma compreensão histórica não convencional dos grupos fascistas e das irmandades
. .A história da maçonaria negra tem sido cuidadosamente exposta por diversos tradicionais que moldaram o desenvolvimento deles, sendo necessárias novas
hlstonadores
. ' que pon den . b re o caráter
eraram so " d e classe do movimento,
' "identificaram abordagens das teorias conspiratórias que lhes davam amparo." Os movimentos
suas ongen T, h
~ rru I ares, e recon eceram o espaço valioso proporcionado por ela fraternais e fratriarcais nos acenam com questões fundamentais sobre o poder do
para COnstrUIr formas de solidariedade moral, sociabilidade formal e ideoloeia política sigilo, em especial quando combinadas com a hierarquia e o ritual homossociais.
entre
. seus. pia'atitoantes negros. A defesa pelos maçons da centralidadeo do Egito Analisá-los requer uma sociologia e uma psicologia históricas mais detalhadas do
anügn para o avanço daa civiuzaçao
ci ilizacã tem SIdoobservada
, como uma fonte das teologias

16. Afrocentrism. Mythical Pasts and /magined Homes (Verso, 1998), de Stcven Howe é uma
~~:ri~k Dou.glass, "~hat Are t~l~ Colored People Doing for Thcmselvcs?" in H. Brotz, org.,
exceção notável a este padrão; ver capítulo 6, "The Mascnic Connection".
14. 17. Claude Andrew Clegg 1Il, An OriginalMan: The Life ofElijah Muhammad (St. Martin's Press,
!;,.e ;;.A.m~rtcan S()~'lal and Pol~lIcal Thought(Transnction, 1992), pp. 204-205; Martin Delany, 1997).
Le '. rtgm.1 and Obiects of Anciens Freemasonr»: Its Introduction imo the Unued 5tafes and
18. A questão importante das continuidades entre estes movimentos é complexa, com inrerações e
15. A~~l:~~:' amon~ ColoredMen (Piltsburgh, 1853). sobreposições a serem encontradas em diferentes níveis, não podendo assim ser resolvida aqui.
Ca ç ria de Prince Hall era o srstema negro de pedreiros livres no século XVIU.VerDono A. Os riscos de se lentar tratar deste tópico com superficialidade são amplamente ilustrados pelas
s~' Negro Freemasonry and Segregaüon (Ezra A. Cook Publications 1957)' WiW,'n A
M·ccasxín falhas de Countdownto Annageddon: Louis Farrakhan and lhe Nation of lsíom (Hurst and Co.,
M'ddl '. " , " .
(Uni .' I e Class Blacks 1/1 a White Society: Prince Hall Frecmasonrv in America 1996), de Manias Gardell.
nlVerslty f C lif . - . '
N . o a I onua Press, 1975); Harry E. DaVIS, A Histcry of Freemasonry Am(m" 19. Nicholas Goodrick-Clarke, The Oecu/t Roots ofNazism: Secret Aryan Cultsand Their lnjluence
dse' , and Accepted Sootrish Rire ofo
F egroes ln AmeI"tca (U' rutc uprcme ouncil, Ancient on Nazi ldeotog» (I. B. Tauris, 1992); c Hisler's Prtestess: Savilri Devi, the Hindu-AryanMylh
reemasonry
(U' . ' 1946) I tt J W"11' 81 k
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mversitç of Missouri Press, 1980). and Neo-Nansm (New York University Press, 1998); Daniel Pipes, Conspiraey: Haw the
Paranoíd Style Ftourishes and Where It Comes From (Free Prese, 1997).

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I ENTRE CAMPOS :: Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça I PAUL GILROY I

comportamento do movimento do que temos à disposição no momento, algo que em grande parte um gesto automotivado de submissão a (ou de imersão em) uma
possa expandír o programa preliminar estabelecido já há muito tempo pelas comunidade virtual que não pode ser socialmente confirmada por um mundo da
especulações inestimáveis de Simmel neste campo: "a sociedade secreta deve vida cotidiana radicalmente fragmentado.
buscar a criação de uma espécie de totalidade de vida. Por esta razão, ela constrói O mesmo colapso de uma cultura política, em que os disputados valores de
um sistema de fórmulas em torno de seu conteúdo intencional claramente enfatizado, solidariedade e de autonomia podiam ser mantidos num equilíbrio instável, expressa-
como um corpo cm torno de uma alma, e coloca a ambos igualmente sob a proteção se também na desagregação das sitiadas esferas públicas alternativas e das noções
do sigilo, porque somente assim ela se torna um todo harmónico em que uma parte de liberdade que lá foram criadas, em geral sob a proteção ambivalente da igreja
protege a outra"." protestante negra. Estes e outros fatores produziram as ansiedades que chamamos
O ressurgimento da fraternalista Nação do Islã tem sido central para as comumente de uma crise de "identidade". O anseio pela identidade e a vontade
mudanças recentes e notáveis no imaginário político negro, mas a busca de uma correspondente de alcançar a Certeza e a legitimidade que a posse daquela
forma mecânica pré-modema de solidariedade racializada, capaz de dar sustentação supostamente confere, acabaram associados a diversas rejeições espetaculares
à sua popularidade, assume diversas outras formas, algumas das quais conseguem da modernidade. Estes padrões assinalam as populações negras do mundo
ser bem menos proibitivas e obviamente fascistas. Embora em termos superficiais superdesenvolvido de um modo um tanto inesperado como participantes devotados
elas sejam mais atrativas, elas se ligam ainda à revisão autoritária da comunidade de algumas correntes culturais dominantes. Nos dias de hoje, a identidade e seus
menos por seus investimentos no estilo fraternal do que pela crença difundida de dissabores característicos não são de modo algum preocupações marginais, mas
que trabalhar em prol da masculinidade é o meio básico para a restauração racial fenômenos que aparecem no próprio centro da agenda política contemporânea.
e a reconstrução nacional'". As observações de Simmel sobre o apelo das Este impulso para resolver problemas críticos de solidariedade social por meio de
sociedades secretas e a proteção absoluta, mas necessariamente temporária, uma tecnologia do sujeito não é o único ponto em que uma minoria abjeta tem sido
proporcionada por elas aos seus membros, vincularam uma discussão sobre sigilo limitada pelas suposições e processos culturais tal como aqueles que a dominam.
e traição a uma sociologia da ornamentação. A abordagem de Simmel nos alerta
para a possibilidade da produção e da simulação mágicas da comunidade por meio FASCISMO UNIVERSAL
de roupas uniformizadas assumirem formas diversas. É provável que isto se
concretize por estes dias através de um par de botas ou de um chapéu fornecido A palavra fascismo é um termo surpreendentemente recente e impreciso e
pela marca" 101 % de propriedade negra" de Karl Kani TM, tal como ocorre com a que parece remoto em relação às preocupações da política cultural negra, Sua
simples dignidade burguesa de uma gravata borboleta ou o enfeite luzidio de um vida curta e controvertida tornou seu emprego difícil, havendo uma inibição forte e
pano colorido da Kente. Atualmente o papel dos uniformes é diferente porque a muito apropriada quanto a se adotar o conceito para analisar fenômenos
prova adequada de identidade não é fornecida por uma futura máquina de Estado distanciados no espaço e no tempo, com relação ao lugar de seu emprego original,
à qual os uniformes dos seguidores de Garvey e mesmo do Poder Negro atassem para descrever uma fase recente das atrocidades da Europa. 22 Prefiro enxergar a
aqueles que os vestiam. Os uniformes privatizados dos anos 1990 chegam com disputa sobre seu carãter como parte do que é utilizável nele. Esta disputa nos leva
múltiplas bênçãos do mundo empresarial. Vesti-los para buscar a solidariedade é a uma confrontação valiosa com os limites morais e políticos da democracia e da
modernidade. Proponho que trabalhemos no interior de um quadro flexível
estabelecido por duas hipóteses em disputa. A primeira sugere que um fascismo
20. Georg Simmel, "The Secret and lhe Secret Society", in The Sociotogy ofGeorg Stmmeí, organizado
e traduzido por Kurt H. Wolff (Proe Press, 1950), pp. 307-376.
21. Marita Gnlden, Savíng Our Sons: Raising Black Children ín a Turbulent World (Anchor, 1995);
Haki R. Madhubuti, Black Men: Obsolete, Single, Dnngeraus? The AfricanAmerican Family in 22. Roberto Vivarelli, "Irnerprerations of lhe Origins of Pascism'', Joumal of Modem History, 63
Transiüon. (Thinj World Press, 1990). (março de 1991), pp. 29-43.

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ENTRE CAMPOS" Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

genérico pode ser identificado;" a segunda pretende que apesar de existirem de sua definição do que as indagações sem dúvida importantes sobre as
problemas reais sobre como isolar suas marcas ideológicas e conceituais, o fascismo características dos Estados e governos fascistas. Distinções entre ideologia e cultura
possui na verdade uma forma ideológica coerente nascida - em palavras simples- fascistas, governabilidade fascista e estratégia econôrnica e política fascistas são
da articulação do nacionalismo e de uma forma de socialismo." Evidentemente, indispensáveis, mas se um fascismo genérico deve parecer plausível, nós também
este pseudo-socialismo é uma variedade anrí-marxista, mas conserva certos atributos devemos estar atentos para o faSCismo em seus aspectos pré-políticos, culturais e
utópicos e de fato revolucionários que brincam com o ideal de fraternidade, psicológicos. O fascismo, afastado do poder de Estado e distante da possibilidade
distorcendo-o numa caricatura anti-democrática e viciosamente hierárquica que de se apossar dele, é diferente do fascismo no governo, racionalmente praticado
silencia as pretensões concorrentes de seu termo comum - "igualdade". como um meio da administração política moderna. Embora relativamente poucos
Embora o nacionalismo extremo sublinhe a afinidade deste fascismo genérico movimentos fascistas tenham realmente tomado o poder, estas dimensões diferentes
com a Direita, não é preciso que isto seja visto como a propriedade ideológica das políticas fascistas podem acabar se ligando, em especial em situações de
exclusiva de ambos. Em algumas de suas formas iniciais, este fascismo sugeriu guerra civil.
uma terceira via entre os males gêmeos do socialismo e do capitalismo. Apesar de As linhas de descendê-ncia dos fascistas dos anos 1930 reivindicadas sem
reconhecer o perigo de que os críticos contemporâneos possam acabar levando nenhum pudor por alguns neofascistas contemporâneos impediram a necessidade
muito mais a sério as pretensões ideológicas da doutrina fascista do que muitos de de se trabalhar para definir que elementos das encarnações anteriores foram
seus adeptos o fazem, não aceito a observação de que o reconhecimento do poder conservados pelos adeptos e apoiadores atuais. Este tem sido um problema grave,
predominante da vontade de fraude e de destruição, liberaria os críticos da não quando o rótulo nazista foi convenientemente aplicado às suas próprias
desagradável incumbência de investigar a moralidade, a lei, a estética e a ciência arividades por adeptos da doutrina fascista, mas quando o nacionalismo pós-
fascistas'>. É inevitável e de fato apropriado que o conceito deva permanecer hitleriano, o racismo, o anti-semitismo e outras doutrinas correlatas obscureceram
envolvido em todos os tipos de disputas: políticas, éticas e históricas. Por muito a pureza de sua linhagem. Por exemplo, o movimento anti-racista e anti-fascista
tempo, ele se tornou uma expressão desvalorizada devido a ser empregada como na Grã-Bretanha foi constantemente desafiado a demarcar o ponto em que o
um termo vago e geral de ofensa. As linhas que foram traçadas em torno de patriotismo legítimo terminava e aquele onde o neonazismo empedernido começava.
análises sobre as suas encarnações históricas específicas acabaram enredadas Seja lá o que se pense sobre a sua política, o livro Lembrando em Vão,26 de Alain
em debates a respeito dos atributos do Estado fascista, das atividades dos Pinkielkraut teve a virtude de focalizar com alguma clareza a natureza excepcional
movimentos fascistas, da qualidade das ideologias fascistas e de sua relação dos Crimes fascistas contra a humanidade e a reconstrução controvertida daquele
complexa e instável com as formas, regras e padrões institucionais normais da status excepcional à luz das conseqüências catastróficas do colonialismo francês.
democracia burguesia codificada pela cor, sobretudo nos Estados Unidos, onde a Como estes juízos apresentaram problemas políticos substanciais, não seria banal
raciologia e a política social eugênica foram ruidosamente articuladas. Todavia, o lembrar que a história do nazismo e do fascismo italiano os associa em termos
fascismo é mais do que apenas um sistema político, havendo muito mais em matéria intelectuais e organizacionais com outras formas de nacionalismo, tradicionalismo
e autoritarismo, assim como com o sindicalismo, o socialismo e o ambientalismo."
Precisamos ser capazes de ver precisamente em que ponto os profissionais da
23. Roger Griffin, The Nature of Fascism (Routledge,1 (93).
24. Zeev Stemhell, The Btnh of Fascist ldeology (Princeton University Press, 1993).
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.1
tNIKt LAMt'U::O naçoes, vuuuras e o r asctntu (la xaça PAUL GILROV

ciência racial acabaram se enredando com a prática normal da eugenia e da Larson" ofereceram um meio para enfatizar a afinidade entre regimes de
eutanásia na Europa e nos Estados Unidos. Da mesma maneira, sem que nos supremacia branca em diferentes lugares e seu correspondente recrutamento da
tornemos protetores ou defensores em demasia, deveríamos estar aptos a ciência racial eugênica para atuar no interior de políticas sociais. Uma vez
reconhecer as formas de conexão (em minha opinião, isto não é totalmente reconhecida a complexidade destas interconexões, devemos trabalhar mais
necessário ou contingente) que podem ser demonstradas para vincular à causa arduamente para encontrar os aspectos característicos do fascismo na filosofia e
nazista os trabalhos de figuras importantes como Heidegger, Riefenstahl, Mies na estética, assim como na critica cultural. Este trabalho de vigilância não deveria
Van der Rohe, Paul de Man, Carl Gustav Jung e muitos outros artistas e pensadores apenas se deixar guiar pela possibilidade de que as formas passadas podem
profundos e estimulantes. Cada um destes celebrados exemplos gerou uma literatura reaparecer, mas também reconhecer que existe o perigo do fascismo estar de
extensa que não pode ser aqui reconstruída, embora ela possa ser útil para observar alguma maneira pendente - uma possibilidade que permanece inerente em todas
uma certa semelhança nas posturas assumidas por aqueles que têm procurado as tentativas de organizar a vida social de acordo com os ordenados princípios
resgatar estas figuras e suas genialidades da nódoa do nazismo, que em todos raciológicos modernos. Portanto, é inapropriado procurar uma fórmula extrahistórica
estes casos se entende como externo a qualquer coisa que eles tivessem a dizer final para o fascismo que nos permitiria arquitetar um simples teste para constatar
que seja duradouro ou valioso. sua presença ou ausência. Pretender um tal dispositivo é também trivializar a
Levar estas observações em consideração, não deveria significar que as complexidade e a mutabilidade destes fenômenos políticos repulsivos, os quais não
especificidades do fascismo estão autorizadas a desaparecer, unindo-se ao que já se pode reduzir à condição de ser um repúdio da modernidade ou sua realização,
é bem conhecido. Caso isto acontecesse, as imperfeições normais da democracia e nem uma traição da razão ou sua afirmação imoral.
capitalista tomar-se-iam indistinguíveis do Estado governamental de exceção que Eventos na América Latina e Indochina, assim como na África do Sul e no
tem no conceito de fascismo uma marca vital. O fascismo não deve ser separado Oriente Médio, são a prova de que o hitlerismo não esgotou as formas que o
da normalidade por uma questão de gradação. Mesmo assim, os modos de expressão fascismo pode assumir. Emmanuel Levinas apontou já há bastante tempo para a
cultural e as práticas da vida cotidiana sob o regime nazista, reconstruídas de diferença entre a filosofia do hitlerismo e a filosofia dos hitlerianos. Faríamos bem
forma tão reveladora em trabalhos de valor inestimável de autoria de historiadores se pensássemos em distinções similares e aplicássemos outras correlatas em todas
como George Mosse, Detlev Peukert, Gisela Bock, Jill Stephenson, Alison Owings, as considerações dos fenômenos contemporâneos que queiramos identificar como
Peter Adam, Michael Kater e Robert Wistrich, são de feição muito familiar," totalmente fascistas ou, com uma dificuldade ainda maior, como tendenciosamente
Livros com testemunhos comoventes sobre outras zonas de guerra genocida fascistas. Há obstáculos adicionais na tentativa de determinar exatamente qual
demonstram como uma brutalidade excepcional pode ser rapidamente desencadeada deveria ser o status do passado inexprimível ao se definir atualmente o significado
a partir da estabilidade aparente de uma interação normal. Stefan Kühl e Edward do conceito. Memórias irreconciliáveis do fascismo são articuladas e projetadas
pelos fascistas e seus oponentes. Isto aparece, grosso modo, quando os trabalhos
dos "negadores" do Holocausto deparam-se com o testemunho dos sobreviventes,
28. George Mosse, Toward the Final Solutian: A Histary ofEuropean Racism (UniversityofWisconsin de suas famílias e de outros defensores morais, mas há numerosas outras instâncias
Press, 1985), e Mosse, org., Nazi Culture: Intellectual, Cultural, and Social Life in the Third menos dramáticas do mesmo tipo de conflito. O empenho em iniciar debates e
Reich (Schocken, 1966);Alisou Owings, Frauen: German Women Recall the Third Reich (Penguin,
1995); Detlev Peukert, Inside Nazi Germany: Conformity, Opposítion, and Racism in Every-day fazer uso deles para averiguar o que conta como fascista não é minimizar a
Life (Penguin Books, 1993); JiU Stephenson, Women in Nazi Society (Croom Helm, 1975); importância de se conhecer de forma mais detalhada possível o que realmente
Peter Adam, The Al"tsofthe Third Reich (Thames and Hudson, 1992); Michael Kater, Dijferent
Drummers, Jazz in the Culture of Nazi Germany (Oxford University Prcss, 1992): e The
Twisteâ Muse: Musicians and Their Music in the Third Reich (Oxford University Press, 1997); 29. Stefan Kühl, The Nazi Connectíon:Eugenu:s. American Racísm,and Germon National Saciallsm
Robert Wistrich, Weekend ín Munich: Art, Propaganda, and Terror in the Third Reich (Pavilion (Oxford University Press, 1994); Edward J. Larson, Sex, Roce. and Scíence: Eugcnics in lhe
Books, J 995). Deep Sou/h (Johns Hopkins Univcrsity Press, 1995).

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

aconteceu no pass~ldo. É sim reconhecer que tanto o excepcionalismo fácil quanto onde o rótulo de fascismo será debatido de maneira improdutiva. Também haverá
as noções simplistas de repetição oferecem vias insatisfatórias para se encarar o o risco de diluir a oposição à arividade política fascista ao se encontrar o fascismo
poder contínuo dos fascismos e racismos: científico, pseudocientífico e e suas pré-condições em todo o lugar, mas isto não será assim necessariamente.
antidentific,-lIl1cntt cultural. Esta linha de questionamento poderia também Ao delimitarmos e restringirmos o termo àqueles casos nos quais se pode estabelecer
desempenhar \1111 papel em cultivar as habilidades especiais necessárias para se uma continuidade perene com fascismos passados, nós podemos também minimizar
reconhecer c se opor ao fascismo, quando ele aparece sem a conveniência de um os perigos contemporâneos e reduzir nosso senso do que a ação anti-racista e anti-
rótulo Identificável c em circunstâncias inóspitas, longe dos países superdesen- fascista pode significar como uma política orientada para o futuro, em vez de uma
volvidos, onde esrarfamos possivelmente mais sintonizados com a possibilidade de operação essencialmente defensiva contra a violência e o terror.
seu reaparecimento. Este esforço tomou-se urgente não somente devido à negativa Aqueles que entre nós estão ligados por afinidade bem como por parentesco
intermitente dos crimes fascistas contra a humanidade, mas em termos mais às histórias de sofrimento e vitimização têm uma responsabilidade adicional de
controversos devido à emergência de formas respeitáveis de nacionalismo e de não trair nossa capacidade de imaginar a democracia e a justiça em formas
patriotismo, as quais têm conseguido acomodar versões "fortes" de etnicidade e indivisíveis e não sectárias. Talvez em razão do que testemunhamos ou escolhemos
incitar comparações com os discursos fascistas, tentando alcançar um lugar legítimo para comemorar tenhamos uma obrigação especial de ficar vigilantes e alertas
nas instituições políticas oficiais. para a possibilidade de que a barbárie possa aparecer em qualquer lugar, em qualquer
As categorias que emergiram de análises históricas detalhadas dos tempo, e não somente onde a racionalidade econ6mica ou a lógica do capital dila-
movimentos fascistas tornaram-se um tanto disparatadas na transição para um a como o resultado preferido. Estes requisitos asseguram que as histórias de
modo de pensar mais geral e abstrato. Talvez seja melhor não tentar fazer um sofrimento não sejam reduzidas à experiência privada de suas vítimas. O luto é
pronunciamento final sobre o equilíbrio entre razão e ocultismo fora de qualquer apenas uma das muitas práticas da memória e esta envolve mais do que lembrar.
exemplo histórico específico, ou ainda, não tentar fazer avaliações gerais a partir Amparadas pelo cauteloso e estratégico universalismo ao qual a história do fascismo
de material relacionado às questões concretas, tal como o lugar das ideologias nos inclina, diversas histórias de sofrimento podem ser reconhecidas como
racistas en.. . qualquer "espaço político" fascista em especial. pertencentes a qualquer um que ouse se apossar delas, empregando-as em boa fé
A ênfase nos processos genocidas em que os fascismos culminaram não como dispositivos interpretativos que nos permitem clarificar os limites de nossas
deveria diminuir a nossa sensibilidade para os potenciais proto-fascistas camuflados próprias pessoas, as bases de nossas solidariedades, e talvez nos pronunciar sobre
nos conhecidos padrões cotidianos de governo, justiça, pensamento e ação. As o valor de nossos valores.
noções de etnicidade absoluta, que criaram um senso de cultura como algo orgânico Concorde-se ou não com a tentativa de aplicar o conceito de fascismo a
que pode ser produzido ou cultivado pelo Estado e ser possuído como uma forma estes fenômenos diferentes, é caso de se fazer a seguinte pergunta: O que cm
de propriedade por sujeitos individuais, nos dão um exemplo interessante desta face das crescentes crônicas de barbárie humana significaria empenhar-se em
possibilidade. Elas sugerem que os membros do grupo social dominante numa produzir uma identidade étnica ou racial idílica e permanentemente inocente? O
hierarquia social racializada não precisam se imaginar como superiores; eles que está em jogo no desejo de encontrar um modo puro por inteiro de seres
precisam apenas afirmar a diferença intransponível para despertar a possibilidade particularizados, e de torná-lo uma âncora para uma cultura única que não estivesse
de uma solidariedade fascista. apenas divorciada em termos históricos ou contingentes da prática do mal, mas
Reconheço que enquanto ainda existirem por aí um grande número de permanentemente fortificada contra aquela possibilidade precisa devido à sua
fascistas autodeclarados, agindo à luz do dia, este grau de reflexividade pode ser constituição essencial? Talvez o desejo dessa ficção de particularidade seja UnI
considerado como um luxo que a política anti-racista não pode sustentar. Isto pode aspecto problemático em especial da política negra contemporânea, além de
ser criticado como uma distração perigosa porque seu tom especulativo poderia proporcionar uma confirmação irânica de sua linhagem distintivamente modema.
desviar a atenção das ações fascistas, conduzindo-a para áreas mais problemáticas Este desejo procura proteger seus supostos beneficiários dos efeitos das complexas

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY I

escolhas morais que definem a experiência humana, insulando-a da responsabilidade similares daquele período e se o tipo de liderança autoritária exercida por Garvey
de atuar bem e escolher sabiamente; ou seja, de preferir a negociação em lugar da era semelhante àquela que era então desenvolvida por fascistas na Itália e
violência e a vontade de justiça em lugar da vontade de dominação. Ele conduziria Alemanha. James foi o único entre muitos analistas políticos a comparar Marcus
a política negra para um deserto, uma paisagem moral insípida repleta de escolhas Garvey e a Associação do Negro Unido Pelo Progresso (ANUP) com os fascistas.
difíceis onde o cinismo reinaria sem esforço sob a aparência da moralidade Chamar a atenção para isto não significa solapar qualquer uma das extraordinárias
naturalizada. Escondida dentro dessa exaltação da inocência fundada em termos e importantes realizações do movimento de Garvey. Significa, porém, cogitar a
biológicos e de sua superidentificação com a legitimação moral, há uma promessa possibilidade de um parentesco profundo entre a ANUP e os movimentos políticos
de que a agenda política estabelecida pela vontade inocente será emancipada das fascistas do período em que ela se desenvolveu. Estas afinidades podem ser
coações morais em algum ponto futuro. A instituição da identidade inocente torna avaliadas com base na idéia de um estilo político comum que permite nuançar
irrelevante o difícil trabalho de julgamento e de negociação. O fascismo florescerá apropriadamente as distinções simplistas entre ideologia de um lado e técnicas e
onde essa inocência é inflada pelos romances de "raça", nação e fraternidade estratégias organizacionais de outro. De acordo com o historiador J. A. Rogers,
étnica. em entrevista de 1937, citada numa passagem tornada célebre do segundo volume
de Os Grandes Homens de Cor do Mundo, O próprio Garvey comparou as
FASCISTAS NEGROS? atividades de sua organização com aquelas de Hitler e Mussolini:

Em 1938, ao escrever em "Uma História da Revolta Negra", uma coda Nós fomos os primeiros fascistas. Nós havíamos disciplinado homens, mulheres e
política e teórica para The Black: Jacobins [Os Jacobinos Negros], C. L. R. James crianças por meio de um treinamento para a libertação da África. As massas negras
perceberam que neste nacionalismo extremado residia a sua única esperança,
fez o seguinte comentário a respeito de Marcus Garvey:
apoiando-o prontamente. Mussolini copiou o fascismo de mim, mas os reacíonãrios
negros sabotaram o tascísmo."
Todas as coisas que Hitler iria fazer bem mais tarde, Garvey já fazia em 1920 e 1921.
Ele organizou tropas de assalto, que marchavam, uniformizadas em suas paradas,
além de manter a ordem c dar cor aos seus encontros."
Robert A. Hill, um estudioso perspicaz de Garvey," fez uma apresentação
muito apropriada da sua filosofia política autoritária e de suas concepções
James revisou o tom desta avaliação anterior à guerra em trabalho posterior, explicitamente anti-democráticas e espartanas de lei, sujeito, nacionalidade e dever.
mas estas palavras resumem apenas uma parte das muitas controvérsias Hill descreve a identificação de Garvey com o fascismo como "ingênua'', mas
historiográficas enterradas na análise do movimento garveyista. Será que a ideologia observa que esta identificação foi capaz de se fundir com o anti-semitismo explícito
de Garvey sobre uma consciência de raça fundamental o teria inclinado para lima dele, algo que Hill não minimiza. O ponto em questão aqui não é se as pretensões
versão do fascismo genérico esboçada acima, ou a sua simpatia pelas atividades de Garvey de ter sido uma inspiração para Mussolini e Hitler são verdadeiras, mas
dos ditadores europeus se deu devido às realizações práticas deles e ao seu sim o que significa para nós hoje o fato de que Garvey, "o propagandista mestre",
entusiasmo similar em relação à carreira de figuras heróicas poderosas como possa ter acreditado nisso. Embora isto nos leve a ingressar num território ainda
Napoleão? Mais do que estas indagações indecisas, porém cativantes, importa
sobretudo considerar se o movimento militarista de Garvey, com sua exortação à
31. J.A.Rogers, The World's Great Men ofColor(J.A. Rogers,c. 1947), pA20; ver também Robert
virilidade e seu desejo declarado repetidas vezes de "purificar e padronizar" a A. Hi11, introdução em Robert A. Hill e Barbara Bair, orgs., Marcus Garvey, Life and Lessons:
raça, pode ser entendido como um membro da família de outros movimentos A Centenníal Companion to the Marcus Gorvey and Universal Negro Improvemeni Association
Papers (University of Califomia Press, 1987), p. LVIII.
32. Robert A. Hill, "Making Noise: Marcus Garvey Dada, August 1922", in Deborah Willis, org.,
30. C. L R James, A History of Negro Revolt (Fact Ltd., 1985 [1938]), p. 53. Picturíng Us: African American lderüity in Photography (The New Press, 1994).

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROV

mais arriscado, é conveniente tentar situar o próprio relato de Garvey sobre seu Já se aventou que estes argumentos podem ter sido produzidos para auxiliar
projeto com relação às suas ligações anteriores com a Ku Klux Klan e outros a estratégia de longa duração de Garvey para construir a ANUP nos estados do
ideólogos da supremacia branca, o que não contou com o apoio inequívoco de sul. Tony Martin, outro eminente historiador da ANUP e biógrafo de Garvey, que
membros da ANUP. O ápice simbólico destas conexões foi uma reunião de duas encara com mais simpatia do que Hill o apelo às políticas separatistas, discorreu
horas entre Garvey e Edward Clarke, o segundo no comando da Klan, realizada sobre o relacionamento do movimento de Garvey com a Klan e outros indivíduos e
em Atlanta em junho de 1922. Entretanto, antes disso, Garvey havia se pronunciado organizações defensores da supremacia branca e do segregacionismo durante este
em defesa da organização por ela ter "linchado o orgulho de raça para dentro dos período, definindo-o como simbiótico. Após rechaçar como "simplista" qualquer
negros"." aplaudindo seu segregacionismo. Estas posições caminharam de mãos entendimento destas conexões que as considere como uma aliança baseada
dadas com o apoio às atividadcs de outros segregacionistas individuais e solidamente num desejo comum de pureza racial, entusiasmo pela emigração e
organizações em favor da supremacia branca no norte e no sul: hostilidade integração, Martin observa a emergência de áreas de "preocupação
à

comum" entre estas bases políticas eleitorais, citando favoravelmente a própria


Em nosso desejo de alcançar a grandezacomo raça, somos liberais o suficiente para defesa de Garvey sobre os cantatas entre as duas organizações. Martin encerra
estenderaos outrosum direito similar...Todasas raçasdeveriam serpuras em matéria seu estudo histórico, aliás, extremamente valioso, sobre Garvey e sua organização
de moral e de perspectivas, e por isso nós, como negros, admiramos os líderes e
com a descrição impressionante de Garvey a respeito daquele famoso encontro
membros dos clubes anglo-saxões. Eles são honestos e honrados em seu desejo de
purificare preservara raça branca, assimcomo nós estamos determinados a purificar com o líder da Klan: "Eu falava com um homem que era brutalmente um homem
e padronizar a nossa raça." branco, e eu falava com ele como um homem que era brutalmente um negro".
Este momento sugesti vo de simetria transracial gira em tomo de dois atributos
Purificar e padronizar: Garvey está a dizer que a pureza e a padronização recorrentes que na minha percepção podem ser justificadamente nomeados de
raciais têm de ser modeladas. O peso combinado e mortal da diferença, da fascismo: brutalidade e masculinismo. Por ironia, confirma-se uma certa versão de
subordinação e da opressão raciais é insuficiente para gerá-los espontaneamente. uma humanidade compartilhada e apropriadamente instituída em gêneros por meio
As tecnologias marciais para se tomar um ser racial - exercícios disciplinados, da presença destes atributos no momento mesmo em que a importância a priori
uniformes, medalhas, títulos, exibições massivas - têm de ser postas em dos códigos raciais é afirmada. A superioridade implícita de Garvey é transmitida
funcionamento para gerar estas qualidades que não estão presentes de imediato. apenas pelo modo como ele monopoliza o papel de orador durante o encontro.
As visões de Garvey foram formadas e sancionadas por uma versão de nacionalismo Um outro exemplo problemático do mesmo período entre guerras pode ser
figurado através de conhecidos valores masculinos de conquista e destreza militar: construído em tomo das viagens antropológicas de Zora Neale Hurston ao Haiti
nos anos de 1936 e 1937. Hurston explica que ela se sentiu cativada não somente
Este é um país de homem branco. Ele o encontrou, ele o conquistou e não podemos por um coronel haitiano bem vestido que era "o homem número um das forças
culpá-lo por querer ficar com ele. Eu não estou aborrecido com o homem branco do militares no Haiti", mas também por seus planos autoritários e populistas para
sul por ele me segregar porque eu sou negro. Nunca construí quaisquer bondes ou
reintroduzir algo parecido com a escravidão no país:
ferrovias. O homem branco os construiu para sua própria conveniência. E se eu não
quero ser conduzido onde ele permite, então é melhor que eu ande.
Ele é um homem negro, alto e esbelto, de cerca de quarenta anos, com as mãos e os
pés mais belos que eu já vi num homem. Ele é amado e honrado de verdade pelos
três mil homens sob suas ordens... Não há dúvida de que as tropas amam o seu
chefe ... Enfim, há o coronel Calixe com seus dedos longos afilados e seus belos pés
33. Judith Stein, The World of Marcus Garvey (Louisiana Stare University Press, 1986), p. 154. delgados, muito honesto e consciencioso, fazendo o belo trabalho de manter a
34. Marcus Garvey, "The IdeaIs ofTwo Races". Philosophy and Opinions of Marcus Garvey, vol. ordem no Haiti... ele é um homem das armas e não deseja nenhum outro emprego
2 (Frank Cass, 1967), p. 338. além deste. De fato, temos uma piada conhecida entre nós que quando eu me tomar

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY I

presidente do Haiti, ele será meu comandante do exército c eu vou permitir que ele com a Nação do Islã. Embora a compreensão de Malcolm destes contatos seja
estabeleça fazendas estatais em todos os departamentos.. algo que ele tem vontade expressa em termos de uma teoria da conspiração, seu desprezo aberto pelo resultado
há muito tempo de fazer para eliminar os mendigos das ruas de Porto Príncipe, e
imoral que eles representam, encontra-se muito fortemente expresso aqui:
fornecer alimentos para os hospitais, prisões e outras instituições de Estado Ele
aspira pateticamente a limpar as ruas do Haiti de mendigos e ladrõezinhos que
cinto Sam Brown bempolidoem sua perfeitafigurae que linda fivela douradaem seu Eu sei de fato que há uma conspiração a caminho, entre os muçulmanose os nazistas
de Lincoln Rockwell e também a Ku Klux Klan. Há uma conspiração... Bem, a Ku
cinto!"
Klux KJan fez um acordocom E1ijah Muhammad em 1960, na casa de Jeremiah X, o
ministro em Atlanta naquela época, na presença do ministro da Filadélfia. Eles
Há alguma coisa num homem de uniforme! Hurston deixou-se claramente tentavamfazerum acordocom ele para ceder a ElijahMuhammadum pedaço de terra
levar pela carga erótica colada à figura carismática deste homem de destino. Seu do tamanhode um condadona Geórgiaou na Carolinado Sul,ondeElijah Muhammad
entusiasmo extraordinário é também um momento importante em que se pode pudesse então induzir os negros a migrarem de modo que seu programa de um
também observar certas questões psicanalíticas envolvendo alguém que é convidada estado segregado ou separado parecesse viável. E até que ponto estas negociações
finalmente se desenvolveram, eu não sei. Porque eu não estava envolvido nelas
a se identificar com o aspirante a ditador. Por exemplo, a sugestão de Hurston de
depois do período de dezembro de 1960. Mas eu sei realmente que depois disso,
que ele é um objeto de amor de seus subordinados é impressionante. Que tipo de Jeremiah, que era o ministro de todo o Sul, pôde viajar pejo Sul inteiro sem que a
amor é este que mistura o heterossexual e o homossexual e delicadamente Klan o incomodassepor qualquer meio ou forma, e nem incomodariamqualquer um
condimenta a mistura com medo e coerção? Os conspícuos atributos físicos do dos muçulmanos negros desde então. Os muçulmanos negros, por seu turno, não
coronel simbolizam a inocência de suas inclinações políticas. A combinação da incomodariam a Klan."
perfeição corporal com uma mão política firme sobre os mendigos e ladrões não é
obviamente suficiente para condená-lo como um fascista, mas a ressonância é Assim como no caso de Ice Cube, é possível dizer que a implementação
forte aqui, e é significativo que Hurston também articule um desprezo pelo sistema prática daquela separação há tanto desejada, essencial ao renascimento racial,
político moribundo que, em sua opinião, impede o progresso do Haiti. Esta visão é °
requer de fato, aliás, legitima contato transgressivo com o Outro interdito, num
compartilhada com os jovens caribenhos de ação por quem ela se deixou cativar. estranho mas inteiramente previsível ato de se refletir mutuamente com
Em numerosos cenários, o fascismo envolveu precisamente esta idéia de fratemalismo. Os segregacionistas e os purificadores que se situam em ambos os
que as soluções políticas podem ser impostas sobre a massa de pessoas por um lados da fronteira fatal entre as "raças" pretendem ter o monopólio da capacidade
grupo de elite. Seu caráter populista é assim circunscrito e dirigido. Sua meta apropriada para tratar desses cantatas com o inimigo, os quais seriam prejudiciais
política básica define-se por uma exaltação incansável no sentido de atuar em prol a todos os outros. O inimigo que se anuncia como seu inimigo deixa de ser um
da instituição de uma comunidade nacional. O processo de se tornar nacional deve inimigo. Ele se torna um aliado, e um antagonista mais autêntico e traiçoeiro é
de fato ser perpetuamente adiado porque no dia que isto se der, grande parte da produzido na forma de um inimigo que diz a alguém que ele pode ser seu aliado nas
distintividade da política fascista ficará perdida. Ao menos em termos superficiais, lutas coligadas que podem trazer justiça e direitos para todos. O nazista e o homem
pode-se dizer que o repúdio de Malcolm X aos contatos posteriores da Nação do da Klan constituem uma preferência por serem abertos e honestos sobre suas
Islã com a Klan apresente um material ainda mais divisível do que os casos de crenças racializadas. Sabe-se onde se está com um homem da Klan.
Garvey e Hurston. O próprio Malcolm tem sido representado como um líder Após reconhecer os problemas de se buscar a aplicação do rótulo de fascista
carismático e autoritário, mas ele difere muito de Garvey por ter repudiado as para a Klan, deveríamos talvez considerar o que justifica uma associação entre
ligações com a Klan e os nazistas, o que foi central para a sua completa 'ruptura uma organização abertamente nazista e um movimento espiritual dedicado à

35. Zora Neale Hurston, TeU My Horse: vaodooand Life iII Haitiand Jamaica (Harper, 1990), p.89. 36. Malcolm X, The Last Speechcs (Pathfinder Press, 1989), pp. 135-136.

280 281
I'"AUL U1LI\VI
ENTRE lAM"U~ .' neçoes, vurruras e o -ascrmc aa xaça

emancipação, elevação e proteção dos africanos no estrangeiro. Isto quer dizer, é anti-modemo. A solidariedade é simulada em rituais silenciosos e espetaculares
claro, a aquisição de um território soberano: uma terra própria nacional, um pedaço que devem permanecer calados para infundir a diferenciação na totalidade. O
de terra, que legitime estas aspirações. O filho mais velho de Garvey, Marcus impulso moderno de recriar e aperfeiçoar o mundo é trivializado ao se reduzir a um
Garvey, Jr., expressou este ponto com uma clareza crua e aplacante numa antologia projeto racial restrito. Devemos reconhecer hoje que a política elaborada como
organizada em 1974 como um tributo a seu pai: uma estética tomou-se mais difícil de distinguir em relação à alternativa de Walter
Benjamin - a politização da arte - e que ambas as possibilidades existem juntas,
o Socialismo Nacional Africano postula que os filhos do Deus Negro da África têm encravadas nas formas mais benignas, mas decididamente voláteis de populismo
um encontro com o ,destino. Haveremos de recriar as glórias do antigo Bgito, da autoritário a que nos acostumamos mais e mais nos países superdesenvolvidos.
Etiópia e da Núbia. E natural que os filhos da mãe África espalhados com a grande É preciso repetir que uma susceptibilidade ao apelo do irracionalismo
diáspora se juntem outra vez. Parece certo que o mundo um dia irá encarar o brado
autoritário tomou-se parte do que significa ser uma pessoa modema. Ele se liga
negro por um "Anschíuss'' africano e a exigência resoluta de um "Lebensraum''
africano." aos sonhos de esclarecimento e autonomia como uma alternativa sempre presente.
Reconhecer que os negros não são afinal um povo permanentemente inocente,
A idéia de que o fascismo envolvia tornar a política estética também suscita para sempre imune a este fascínio funesto, é abraçar de uma maneira obstinada
a questão de seu status e relacionamento excepcionais em termos dos negócios nosso status de pessoas modernas que podem pensar e agir por si mesmas.
normais do Estado-nação burguês em que a política precisou se tomar estética
para prender a atenção das pessoas sensíveis ao compasso comunicativo acelerado
da propaganda. As histórias sangrentas recentes dos regimes autoritários no Irã,
na Grécia, América Latina, Indochina e África sugerem em unfssino que não se
ganha muito em entender o fascismo como um drama interno e privado da própria
Europa. Embora não seja o lado menos interessante de uma modernidade centrada
na Europa, nem alguma coisa eterna e maléfica, conjuntamente fora da história e
da moralidade secular, o fascismo tem alguma relação com as patologias do
desenvolvimento moderno, chamadas por Rousseau de "os talentos inventivas fatais
do homem civilizado". A capacidade de cometer o mal não é por si só moderno,
mas a metafísica da modernidade acrescentou-lhe um tom especial. A escala e o
poder do Estado-nação a condicionam. Temos de lidar não somente com os velhos
perigos do ocultismo e da irracionalidade, mas também com os novos males
representados pela aplicação racional da irracionalidade. Há também aqui um
elemento utópico e ele é sinalizado pelo valor anti-democrático, mas ainda assim
moderno da fraternidade, sendo projetado por meio do anseio por um mundo mais
simples, fundado na similaridade racial e nas certezas raciais. Homogeneidade e
hiper-similaridade tornam-se os princípios de um laço hierárquico, autoritário e

37. Marcus Garvey, lr., "Garveyism: Some Reflectlons on Irs Significancc for Today", in John
Henrik Clarke, org., com o apoio de Amy Jacques Garvey Marcus Gun'ey and the Visioll of
Africa (Vinlage, 1974), p. 387.

282 283
III
O NEGRO PARA O FUTURO

A humanidade está à espera de alguma outra


coisa que não seja a imitação cega do passado. Se
quisermos dar um passo adiante, se quisermos virar uma
nova página e realmente chegar a um novo homem,
devemos começar por tirar o gênero humano da longa e
desoladora noite de violência. Será que o novo homem
que o mundo necessita não é o homem não-violento?

MARTIN LUTHER KING, JR.


7
"TUDO SOBRE OS BENJAMINS":
NEGRITUDE MULTlCULTURAL - EMPRESARIAL,
COMERCIAL E OPOSICIONÍSTICA

Oh, meu corpo, faça de mim sempre um homem que interrogue!

FRANTZFANON

Se você usasse calça jeans tamanho 34, você a compraria no tamanho 40


simplesmente porque não queremos nossos jeans ajustados aos nossos traseiros.
Elas não foram desenhadas para as pessoas negras. As pessoas negras têm uma
certa constituição física - os homens negros e as mulheres negras. Essas outras
empresas desenham com a mente fixa naquele freguês com cara de secundarista de
escola de elite, que não são as pessoas negras. É aqui que chego ao meu ponto. As
pessoas vêem as pessoas negras como lançadores de tendências, elas observam o
que estamos fazendo e querem fazer o mesmo, pensando que será a próxima grande
onda. Elas tentam nos tirar coisas o tempo todo. A gfria que inventamos acaba em
camisetas. Nós não estamos fazendo nenhuma camiseta.

KARLKANI

o PERÍODO em que a raciología genômica articulou a nanopolítica também


envolveu conflitos amargos com relação ao status cívico e comercial das diferenças
culturais. O multiculturalismo foi atacado pelos advogados da homogeneidade
absoluta, mas conjurado contra eles pelos seus oponentes: os apóstolos de uma
diversidade igualmente absoluta. As ações de ambos os grupos deixaram de lado e
sem respostas as especulações deterministas da sociobiologia ressurgente. As forças
radicais anteriores foram confundidas pelo cálculo centrado na particularidade que
projeta a identidade cultural não como uma relação, mas sim como um mero produto
da similaridade ou da diferença. Como vimos no capítulo anterior, para tornar as
coisas ainda piores, os absolutistas de amhos os lados da linha de cor desenvolveram
um conjunto de concepções compartilhadas sobre o que é a cultura e a natureza de
seu vínculo com as "raças".
I ENTRE CAMPOS •• Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça I I PAUL GILROY I

o multiculturalismo tem relações igualmente incômodas com os vocabulários De acordo com o International Herald Tribune, após seis meses de
concorrentes do pluralismo liberal c da especulação pós-marxiana. Ambos lutaram funcionamento, a nova companhia havia "acumulado uma robusta lista de clientes
por fazer uso dele em suas distintas tentativas de reviver a prática da política e com futuras estimadas em $35 milhões." Lee, que havia dirigido os comerciais da
adaptá-la às novas circunstâncias. O multiculturalismo encontrou expressão em Levis, AT&T, Snapple e Nike bem antes deste empreendimento, insistiu em dizer
um manual para empresários, publicado pela Cable Network News (CNN) e foi que a sua agência não visa especificamente os afro-americanos, mas que está
injuriado pelos conservadores como uma nova forma de racismo. I É possível que lançando os produtos de seus clientes para um público maior de consumidores
não tenha sido politizado de forma adequada, mas com a dissolução da mercadologia mais jovens, firmadores de tendências, voltados para os esportes e para a moda
de massa ele certamente se tornou uma consideração comercial dominante. A sua que compõem o "mercado urbano". As necessidades do afro-americano, ou mesmo
vida empresarial tem sido estimulada pelo fato de que na era da mercadologia com das culturas políticas atlânticas negras, só podem parecer provincianas quando
alvos precisos, o apelo dos rostos e estilos negros não precisa mais ficar restrito contrastadas com estas reluzentes possibilidades pós-tradicionais. Os proprietários
aos consumidores negros. Estas mudanças profundas estimularam pedidos de da Budweiser; o conglomerado de indústrias de cerveja Anheuser-Busch, retribuíram
Informação exótica e autenticamente interna que foram atendidos com entusiasmo os favores de Lee com o patrocínio de um circuito promocional e a pré-estréia de
por um novo contingente de agentes culturais: uma vanguarda hip dos negócios da Gel on the Bus em 1996, o filme de longa metragem de Lee sobre a Marcha de
diferença. Um Milhão de Homens.
Em dezembro de 1996 Spikc Lee, que tem sido a figura de proa de uma boa Diversos interesses políticos tentaram em vão reivindicar para si o prêmio
parte desse movimento, anunciou uma colaboração comercial sem precedentes exclusivo do multiculturalismo, mas esse conceito sobrecarregado e básico não se
com o gigante da publicidade da Avenida Madison, a DDB Needham, uma unidade refere a qualquer posição filosófica ou política prontamente identificável. Seu
do Grupo Omnicom que detém marcas de consumo prestigiosas como McDonald's significado ainda está sendo determinado em um processo de largo alcance,
e Budweiser. A sua associação próxima com a firma levou rapidamente à formação conflituoso e, nos dias de hoje, em aberto. Esses conflitos abarcaram questões de
de uma nova agência de publicidade chamada Spike/DDB, com Lee como acionista integridade e de valor cultural, mas foram além delas, liberando uma energia política
majoritário com 51 por cento das ações no papel combinado de "presidente e que pode nos levar diretamente ao coração do pensamento contemporâneo sobre
diretor de criação". Este novo casamento empresarial foi histórico em si mesmo e a democracia cosmopolita.
não apenas pelo fato de a DDB ter reconhecido a posição mesma de Spike como O tempo destas hostilidades tem sido ditado pelas controvérsias sobre a
uma marca da cultura popular, referindo-se a ele como um "ícone" na declaração idéia de nacionalidade, a mutação do caráter dos Estados-nação e as formas de
que apresentou formalmente o novo empreendimento comercial. A nova companhia similaridade que eles podem reivindicar do conjunto de seus cidadãos hetcrcculmrais.
lançou um imprimátur empresarial respeitável com base na percepção de que agora Por seu turno, esses conflitos produziram uma ansiedade com relação às dificuldades
o "consumidor urbano" americano (vocês sabem a quem eles se referem) estabelece envolvidas em se manter a pureza cultural e biológica em resposta aos efeitos
os padrões planetários para a comercialização e o uso de alguns produtos altamente corrosivos da diferenciação, manifestada sobretudo na presença de povos pós-
lucrativos. Isto mostra que a indústria cultural está preparada para fazer investimentos coloniais - sempre fora de lugar - no centro de antigas redes imperiais. Subjacente
substanciais na negritude desde que ela permita uma "leitura" ou tradução a todos esses medos há ainda mais uma questão: se os encontros inescapãveis
costumeira e amigável, doméstica e comcrcializável do vernáculo obstinado que já com a diferença poderiam ser compreendidos como tendo qualquer espécie de
não pode mais ser chamado de contra-cultura. valor positivo.

1. Slavoj Zizek, "Multiculturalism _ A New Racism?" New Lefl Review 225 (setembro-outubro, 2. Stuart Elliot, "Spike Lee Tries for Main Street", lntemotionai Herald Tnbune, 10 de julho de
1997). 1997.

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY 1

Outros elementos da grande agenda política e ética à qual os discursos do poder desigualmente desenvolvido de relações subnacionais (locais) e
multiculturalismo proporcionam um índex oportuno têm sido também revelados supranacionais, o rnulticulturalismo pode forçar os nacionalismos, bem como as
pela intensidade absoluta das discussões que giram em torno do legado racional, explicações biosociais de raça e etnicidade, a ocupar posturas mais defensivas. A
moral e estético da civilização ocidental. Isto tem sido simbolizado pela condição legitimidade destas posturas, a escala com que elas entendem a solidariedade e a
desesperadora do sistema educacional onde o multiculturalismo adquiriu um forte exclusão da agência humana por elas têm sido questionadas como um todo em
dialeto institucional, além da função desenvolvimentista exercida pelas instituições nome da consciência cosmopolita, constituída onde o vínculo histórico entre culturas
públicas imperiais como o museu em suas atribuições de coletar, racionalizar, por à e nações foi rompido. A própria recorrência do termo "multiculturalismo" em tantos
mostra e reproduzir tanto a cultura como a civilização. 3 O multiculturalismo tem se cenários discrepantes estabelece vínculos entre eles e sugere que eles possam
desenvolvido bem distintamente nessas diversas áreas de política social e política estar apresentando os vários sintomas de uma transformação social comum.
num sentido mais amplo. Ele apareceu em modos de insurgência pública e Com O acréscimo daquele fatídico prefixo "multi", camadas sucessivas de
transgressão privada e ainda está sendo arrolado de várias maneiras: no tratamento conflito foram tecidas ao redor do conceito central de cultura. Este conceito emergiu
dos medos em relação ao cânone do pensamento ocidental; na avaliação da desse casulo como um significante dominante: tão poderoso atualmente como o de
autoridade contemporânea em matéria de empenho científico e valor estético; no justiça, direito, liberdade e razão devem ter sido já há muito tempo. Assim, há mais
esclarecimento da crise das humanidades nas quais o cruzamento de fronteiras em matéria de multiculturalismo do que o seu papel como um sinal especial para
intelectuais e o questionamento onde tenham sido traçadas linhas limítrofes (entre demonstrar e articular as múltiplas pressões internas e externas que atuam sobre o
culturas e disciplinas acadêmicas) sugeriram roteiros promissores em direção a Estado-nação. Pretendo abordá-lo aqui não como um objetivo claramente delineado,
novas formas de conhecimento. Mais fundamental ainda, em um tempo de ou como uma condição reificada com a qual se pode finalmente comprometer, mas
planetarização e desenvolvimento tecnológico acelerado, quando a política e o sim como um princípio ético e mesmo estético que se guiou pelas distintas
significado de locação, presença e proximidade estão sendo ativamente recompostos experiências históricas da modernidade já observadas por nós e ratificadas pela
e repensados, o multiculturalismo tem se desenvolvido para interrogar o significado promessa específica e o dinamismo sincrético da vida metropolitana contemporânea.
da nacionalidade como um princípio de coesão social e para criticar tentativas Talvez possamos considerar o que significaria admitir, ao invés de evitar, as
irrefletidas de manter a Europa como o grande desdobramento do inocente e implicações políticas do multiculturalismo. Essa acomodação em matéria de política
privilegiado centro da história. Por fim, o mulriculturalismo também poderia ser não precisa acarretar a traição da criatividade e da autonomia artística.
entendido como um sinal que marca o fim da hegemonia da Europa no mundo das Embora seja algo raro admitir abertamente, para muitos de nós na Europa
idéias. Ela não mais usufrui um monopólio especial de acesso às modernidades estes argumentos tão expressivos sobre a cultura e a diferença, assim como a
científicas, éticas e estéticas. relação da nacionalidade com o poder e a história, reavivam as desfalecidas imagens
A imprecisão obstinada do multiculturalismo apenas acentuou a capacidade posteriores do passado colonial e imperial. O significado residual desses contornos
do conceito tanto para nomear as formas especiais de risco que fazem perigar a na retina do imaginário nacional é assinalado por respostas sombrias em demasia à
nação nos dias de hoje, como para auxiliar na definição de alternativas emergentes presença supostamente disruptiva dos povos pós-coloniais no cerne conflituoso da
e utópicas em relação à coerência da cultura desbranqucada com os esmaecidos vida social metropolitana. Para os críticos e outras almas corajosas, preparadas
limites do Estado-nação. Desligado de suas associações com a diferença para navegar nas águas mais revoltas da política cultural contemporânea, aquela
intransponível e absoluta e reconfigurado com uma percepção mais abrangente do história imperial um tanto esquecida, ainda está presente e forte, embora permaneça
latente e invisível em grande parte, tal qual um grande rochedo debaixo da superfície
do mar. Os vestígios da modernidade imperial - a sua memória social contestada -
3. James Clifford, Routes: Traveiand Translation ín the Late Twenticth Cemury (Harvard University podem ser apreendidos somente de forma intermitente, mas podem ainda produzir
Press, 1997).
um material volátil, mesmo se nos dias de hoje são ainda as diferenças culturais,

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I ENTRE CAMPOS •• Naçoes, lULturas e o rescmtc da Raça I I PAUL GILROY I

em vez da franca inferioridade biológica desses povos (pós) coloniais, que criam paradigmática. Nos dias de hoje seria inapropriado e mesmo impossível anunciar
alarme e definem a ameaça representada por eles à monocultura insegura. um veredicto final sobre o seu significado. Nos lugares em que aquela relação é
Reinventado tanto quanto nostalgicamente rememorado, o passado imperial sistematicamente relembrada, a busca pela finalidade benéfica de antro novo
filtrado toma-se investido de um novo poder de alivio." Ele proporciona conforto começo é algo imoral, havendo muitas questões políticas e éticas importantes em
contra o choque da perda do Império e a percepção do seu declínio nacional. jogo sobre como se deveria comemorar aquele período de irracionalismo autoritário
Através da Europa, memórias de grandeza imperial são um elemento potente e e autoritarismo racional. Quero sugerir dois pontos: que as declarações sobre a
negligenciado no apelo ressurgente dos neo-fascismos confiantes uma vez mais singularidade daquela catástrofe não deveriam ser prescritivas, e que reconhecer
em si mesmos, assim como nas estratégias populistas e nacionalistas delineadas seu carãter específico não deveria significar que a expulsamos da história, e portanto
por governos preocupados em flanquear seus apelos eleitorais. Elas também são que teríamos cortado seus laços significativos com os modos de governo e disciplina
poderosamente atuantes nas definições antropológicas de humanidade do século social que são considerados normais e compreensíveis em termos habituais, isso
XIX que ainda proporcionam o solo sobre o qual julgamentos de verdade, beleza e quando não são vistos precisamente como benignos. As especulações rigorosas
bondade são feitos em termos rotineiros.' Os efeitos duradouros deste legado de Adorno sobre as formas de criação artística que poderiam ser adequadas após
constituem questões urgentes para os críticos. A situação complicada de Salman Auschwitz constituem ainda uma fonte preciosa para reflexões ulteriores.
Rushdie demonstra amplamente que foi a arte e a cultura, e não a ciência e a Preocupações similares podem ser expressas numa chave distinta atualmente, não
razão, que melhor supriram o racismo imbuído de uma orientação cultural, apenas quando lembramos aqueles horrores de modo a expor a imoralidade em
confirmando a visão deste último sobre a existência de modos de vida absolutamente procurar situá-los exclusivamente atrás de nós, mas também quando observamos
incompatíveis. Precisamos nos indagar se a produção e a recepção de arte poderiam a vitalidade constante dos fascismos que buscam subordinar o princípio nacional a
agora oferecer alguma contribuição de valor para lima compreensão provocativa serviço da etnicidade absoluta e suas crenças ocultas.
pós-antropológica tanto de cultura como de humanidade. As formas vernaculares Nos dias de hoje, os conflitos políticos racializados permanecem
de prática artística já romperam com os pontos de vista estáveis que têm permitido profundamente conectados com as mentalidades que produziram os fascismos e
afirmações sobre estas importantes questões. O mundo imagético da multicultura as lógicas morais e económicas que os sancionaram. As carreiras reluzentes de
empresarial parece firmado a fazer algo semelhante. Jean-Marie Le Pen e Bruno Mégret são apenas os lembretes mais óbvios de que
esta é mais do que uma doença britânica. Em muitos países, as respostas hostis à
ESTÁ NA M1STURA: CULTURA, PÕS-ANTROPOLOGlA diferenciação cultural, lingüística e religiosa, assim como o entusiasmo fascista
pela pureza, encontram-se dormentes no interior da mais benigna retórica patriótica
Pensadores pós-modernistas confessos chegam o mais perto possível do e do glamour da identidade nacional promovida por ela. Estas dificuldades emergem
projeto modernista quando eles questionam a figura do Homem, identificando o das condições atuais, sendo que a natureza e o significado de quaisquer laços com
papel deste último como um tropo integral das modernas ideologias de inumanidade os horrores passados são enganosos. Quero sugerir que alguns formidáveis desafios
que apareceram durante os períodos coloniais e imperiais. Esta imagem de Homem morais e políticos encontram-se nas respostas das sociedades européias ao racismo
tem sido denunciada por alguns deles como uma transposição da duplicidade que contemporâneo e ao anti-sentitismo e que as disputas sobre o valor cultural e a
vinculou a racionalidade ao terror. A relação problemática entre modernidade e integridade étnica das culturas nacionais lhes são centrais. Estes problemas são
barbarismo, progresso e catástrofe que foi elaborada no período nazista tomou-se colocados pela fortaleza do multinacionalismo oficial da Europa e pelas suas atitudes
indiferentes e intolerantes com relação à presença de refugiados, pessoas em busca
4. Renato RosaldO,Culture and Truth (Beacon Press, 1989). de asilo e outros "imigrantes", muitos dos quais, afinal, não são imigrantes em
5. Annie E. Coombes, Reínveruing Africa: Museurns, Material Culture, and Popular tmaginatíon absoluto, mas sim colonos-cidadãos que usufruíram de relações longas e íntimas
(Yale University Press, 1994). com a história e a cultura de suas pátrias inóspitas.

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

Um relato bastante complexo dos encontros sucessivos da Europa com povos É uma questão do terceiro mundo começar uma nova história do Homem, uma
maus, ignorantes e primitivos não produz nem uma sequência de episódios discretos história que levará em consideração as teses por vezes prodigiosas aplicadas pela
em algumas narrativas totalizantes da desrazão e nem uma prova conclusiva de Europa, mas que também não se esquecerá dos crimes da Europa, sendo o mais
horrível aquele que se cometeu 110 coração do homem, consistindo do
que os valores liberais, democráticos e humanos heróicos triunfarão sempre, de despedaçamento patológico de suas funções e da desintegração de sua unidade...
modo inevitável, sobre as forças "escuras". A avaliação do status de diferença na Pela Europa, por nós mesmos e pela humanidade, camaradas, precisamos inventar
Europa e para a Europa gera importantes discussões com relação àquilo que a novos conceitos c pôr em ação um novo homem."
ordem supranacional vai se tomar. Tentativas presentes para recriar a cristandade
em oposição direta ao fundamentalismo islâmico anti-mcdemo também colocaram Deixando de lado por um momento a importante questão de se o
a cultura numa posição privilegiada. Os corpos das mulheres suprem o palco no multiculturalismo poderia ser um desses novos e valiosos conceitos, devemos
qual se representam os seus dramas." A avaliação da arte e da cultura constituiu reconhecer o fato de que Panon compreendia essa obrigação por meio de um
uma importante oportunidade em que o significado da heterogeneidade cultural código binário quase tão pernicioso quanto o dualismo maniqueísta que ele procura
mesma, e não de culturas diferentes, tem sido ensaiado e trabalhado intensamente. suplantar. Lembremos que a sua perspectiva liberacionista rígida em demasia era
Algumas das questões mais apropriadas identificadas até agora nessas um produto orgânico das guerras contra o nazismo e o colonialismo. Ela se
conversações são as seguintes: podemos avançar em relação à idéia de que a esparramava da vida social militarizada para a cidade colonial. Aqui ele observou
cultura existe exclusivamente em unidades nacionais localizadas e étnicas - que as zonas de moradia respectivas do colonizador e do colonizado eram
separadas mas iguais em termos de valor estético e humano? Que significado mutuamente opostas, mas que a sua oposição não poderia ser reconciliada "a
conferimos às histórias de imperialismo e supremacia branca que estão tão serviço de uma unidade superior". 8 Para ele, a ordem política e as regras espaciais
extensivamente enredadas com o desenvolvimento da estética moderna, seus distintas que configuravam a segregação colonial seriam elaboradas no sistema de
depósitos, coleções e museus e com as concepções antropológicas que direcionaram Apartheid. Elas alocavam as pessoas em dois grandes campos - mundos próximos,
a sua consolidação? Caso pudéssemos rejeitar os diagnósticos simplistas desta porém não-sincronizados - que se encontravam muito raramente. Fanon nos conta
situação, proporcionados pelo absolutismo étnico, como poderíamos começar a que o contato entre eles era mediado tão-somente pela brutalidade funcional da
moldar uma crítica cultural transversal ou de cruzamento? Qual é o papel da polícia e dos militares que usufruíam de uma relação essencialmente permissiva
expressiva criatividade cultural em mediar ou mesmo transcender as diferenças com o governo colonial, graças à flexibilidade da lei colonial.
racializadas ou codificadas etnicamente? Que reconhecimento damos às formas Hoje, ao menos na Europa, há uma menor justificativa para este rígido
da prática cultural não-nacional e cruzada que já estão avançando espontaneamente diagnóstico dualístico. Os bárbaros de outrora estão dentro dos portões e porventura
em termos de formas populares-culturais Oll desconceituadas, muitas das quais não vivem num gueto ou enclave formalmente segregado. As fronteiras da diferença
têm suprido com fontes importantes o movimento social transnacional contra o cultural não podem mais ser estabelecidas de modo congruente com as fronteiras
racismo? nacionais. As cidades não pertencem exclusivamente aos colonizadores e seus
Já nos deparamos com o modo como essas questões foram tratadas no próximos. Pode-se identificar áreas isoladas em que elementos da vida social colonial
momento em que ainda se desenrolavam as batalhas militares para liberar a África persistem e medram, mas esses mundos urbanos tiram a sua vitalidade e muito do
do domínio colonial. Frantz Fanon as reformulou numa voz distinta, porém, seu apelo de variedades de cruzamento cultural - misturando-se e movendo-se - o
reconhecível. Importa repetir aqui suas palavras notórias: que exige a proximidade, quando não a presença, do Outro. Mais do que isso, as

7, Frantz Fanou. Wretched of Earth (Grove Prcss, 1963), pp. 254-255.


6. Vron Ware, "Moments of Dangcf", History and Theory 31 (1992), pp. 115-[37. 8. Ibid., p. 30.

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ENTRE CAMPOS .. Nações, CuLturas e o Fascinio da Raça PAUL GILROY

culturas dos nativos, não apenas o seu trabalho, podem agora ser compradas e que a política de influência, de adaptação e de assimilação seja repensada. Quem,
vendidas como mercadorias. As suas realizações exóticas são veneradas e exibidas afinal de contas, está agora sendo assimilado a quê? As implicações desta complexa
(embora nem sempre como arte autêntica) e os frutos da alteridade alcançaram amálgama cultural estão reprimidas, e seja lá qual for o seu significado político,
um valor imediato, mesmo quando a companhia das pessoas que os colheram não elas têm sido negadas habitualmente pelos porta-vozes de todas as tendências
é em si mesma desejada. Vimos que elementos selecionados da sua cultura nesta transação jovial. Este ainda emergente modo de vida com e através da
penetraram intensamente nas vidas do grupo dominante por meio das indústrias diferença é domesticado, truncado e amansado nas iniciativas multiculturais de
culturais, as quais conseguem grandes lucros com essas atividades. companhias como Benneton, Coke, Swatch, e McDonald's. Graças ao agenciamento
Assim como no tempo de Fanon, o conflito eventual entre esses grupos não da Spike DDB e seus pares, o glamour da diferença vende bem.
é algo que possa ser resolvido de um modo prematuro, claro ou dialético. É certo Compreender os eminentes sucessos do comércio multi cultural privatizado
que esse conflito não deveria ser deslocado para um nível superior ou esconjurado requer uma genealogia revisada daquilo que costumava ser chamado de "culturas
por meio do apelo a uma unidade mais elevada. Entretanto, as culturas expressivas jovens"," em termos ideais, uma genealogia que possa ligar a análise destes
que se formaram nesses espaços urbanos poliglotas - culturas vemaculares fenômenos políticos contemporâneos com questões mais antigas como a ansiedade
transnacionais e translacionais - fornecem e celebram uma variedade de a respeito da influência degenerativa da musica negra sobre a juventude da Europa
interconexões que não só reconhecem a interdependência mas, no seu melhor nos anos de 1930 e l 940. Uma compreensão distinta do lugar da "raça" na Europa
estilo insubordinado e carnavalesco, têm sido percebidas como projetando uma está à espera de ser construída com base em materiais estimulantes como a'> ricas
imediação, uma solidariedade rebelde e uma frágil humanidade universal, forte o especulações de Richard Wright sobre os choques subseqüentes ao fascismo. Ele
bastante para de súbito tomar a raça e a etnicidade sem significado. associou o crescimento do interesse na cultura negra com o clima moral e político
Esta mensagem valiosa foi acenada muito tempo atrás por Rock contra o imediato:
Racismo e pelo movimento social mestiço que criou os seus sucessores em vários
pafses.? Mais de vinte anos após aquele movimento ter surgido pela primeira vez, Na medida em que milhões de brancos da Europa foram aterrorizados e golpeados
ele ainda se move, mas de forma mais tranqüila e de acordo com padrões pelo nazismo, foi naquela medida que eles receberam a música do Negro e a sua
expressãoliterária. Aqui ocorria uma tendênciaque a Américabranca não previra ou
descentrados menos formais. Seus efeitos ainda são transmitidos em clubes de
compreendera. Assim, o Negro se tornou em grande medida para a Europa, o único
estilo underground e em festas rave, na emissão de rádios piratas, e em esferas e isolado aspectohumanode um continentediferente, brutalmente industrializado.'!
publicas alternativas que envolvem estas iniciativas. As partes mais visíveis dessa
contra-cultura ainda têm suas bases na juventude e são de natureza positivamente o
principal problema que enfrentamos ao tentar entender esses
metropolitana, mas o movimento como um todo não pode ser reduzido àqueles desenvolvimentos e outros mais recentes é a falta de meios para descrever em
atributos. Uma incompatibilidade profunda com os estados de ânimo difundidos da termos adequados, quando não teorizar, a intermistura, a fusão e o sincretismo sem
nostalgia colonial e imperial é mais importante para definir as formas de traição sugerir a existência de purezas anteriores "não-contaminadas". Estas seriam as
simbólica promovida por aquela, bem como as possibilidades cosmopolitas e condições estáveis e consagradas que supostamente precedem o processo de
democráticas engendradas por essas formas. Um novo estilo de dissidência tem mistura e para onde, como se presume, seria possível um dia retomar. Não importa
se reproduzido, sendo que nele formas discrepantes combinam entre si, entram em
conflito e se transformam em padrões promíscuos e caóticos, os quais requerem

10. Roger Hewirt, "Us and Them in lhe Late Space Age", Young, vol. 3, no. 2 (maio 1995), pp.23-
34
9. Ver meu livro "Ain't No Black in the Union Jack": The Cultural Politics of Roce and Nation 11. Richard Wtight, "TheAmerican Problem - Its Negro Phase". in D. Ray e R. M. Pamsworth,
(Hutchínson, 1987), capítulo 4. orgs., Richard Wright: Impressione and Perspectives (Ann Arbor Paperbacks, 1971 I, p. J 2.

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se o processo de mistura for apresentado como fatal ou redentor, devemos estar acréscimos ulteriores e fluem numa economia comunicativa, cuja norma reguladora
preparados para desistir da ilusão de que uma pureza cultural e étnica tenha algum é a reciclagem criativa ao invés do abandono imoral.
dia existido, ou mesmo proporcionado um fundamento para a sociedade civil. A Com a sua força bíblica algo diluída, a idéia de diãspora pode ser útil outra
ausência de uma linguagem conceituai e crítica é salientada e complicada pela vez neste ponto. Ela complementa o equilíbrio antifônico da esfera pública escondida,
acusação absurda de que as tentativas de empregar o conceito de hibridismo se formada às voltas com a feitura e uso da música negra. A diáspora abre caminho
inviabilizariam totalmente devido aos resíduos ativos da articulação daquele termo para uma concepção complexa de similitude e para versões de solidariedade que
com os vocabulários técnicos da ciência racial do século XIX. não precisam reprimir as diferenças no interior de um grupo disperso de modo a
A densidade das formas mistas e sempre impuras do presente demanda maximizar as diferenças entre uma comunidade "essencial" e as outras. O
novas analogias orgânicas e tecnológicas. A sua poética já está viva e à vontade. desconforto da diáspora em relação às noções de cultura descuidadamente
Noções de mistura têm sido celebradas, não devendo nada ao mundo da biologia, superintegradas, bem como seu sentido algo fissurado de particularidade, pode
mas tudo ao trabalho habilidoso das mãos negras sobre os pratos giratórios das também se tomar ajustado às melhores disposições do pós-modernismo politizado.
vitrolas, liberados do papel de aparatos reprodutivos passivos e tornados produtivos A identidade concebida em termos diaspóricos resiste à reificação em formas
por meio do ato de duplicar, o que impulsionou uma nova criatividade e introduziu petrificadas mesmo nos casos em que elas são indubitavelmente autênticas. As
um sentido de tempo musical infinito. A problemática das origens apareceu em um tensões em tomo da origem e da essência que a diáspora permite visualizar nos
ponto importante na estória das tipologias raciais e culturais modernistas. Embora levam a perceber que a identidade não deveria ser fossilizada por meio da
se torne irrelevante saber onde as peles mortas e velhas da particularidade étnica manutenção do espírito sagrado do absolutismo étnico. Também a identidade torna-
e racial têm sido largadas, nunca é demais repetir que a desconstrução das "raças" se um substantivo do processo. A sua abertura proporciona uma alternativa oportuna
não é a mesma coisa que acabar com os racismos. à solidariedade automática, fundada em noções antiquadas de "raça" e idéias
Não é tanto o fato que as origens múltiplas dessas formas densas e compostas controvertidas de pertencimento nacional."
sejam desconhecidas, mas sim que a obrigação de descobri-las, que um dia foi tão A história destas culturas políticas subalternas e de seus vínculos enredados
urgente, apareça agora como sem sentido e desconectada da sua legitimação e de com a ascensão e globalização gradual das indústrias culturais também cabe aqui.
seus prazeres. Sabemos de fato onde o híp-hop, reggae, soul e house tiveram O multi culturalismo empresarial observado acima simulou as celebrações da
origem e podemos identificar as fontes históricas, tecnológicas e culturais que os diferença das culturas subalternas e estabeleceu uma versão domesticada dos
constituíram, porém esta informação não contribui para situá-los e nem para estimar padrões de desagregação cultural delas, fazendo-as funcionar como parte de suas
as suas conseqüências contemporâneas. A obsessão modernista com as origens operações de marketing. Estas culturas vernáculas têm uma relação ambivalente
pode ser abandonada à medida que as culturas itinerantes se propagam através de com O mundo empresarial e articulam com frequência uma hostilidade aberta em
meios imprevistos e continuam por rotas desconhecidas em direçâo a destinos não relação a ele. A menção a estas culturas e sua simulação não reproduz o seu vasto
antecipados. A viagem em si mesma contribui para um sentido de multiplicidade, investimento ético em matéria de interação face a face, corpo a corpo, de tempo
cujo exemplo mais pertinente advém de padrões utópicos - tecnicamente sem lugar real. O privilégio distintivo conferido ao processo de atuação e seus rituais já foi
definido - de uso cultural, constituídos em tomo da música popular. A própria colocado sob pressão pelas habilidades instrumentais em processo de perda de
disseminação cultural caótica em circuitos cada vez mais elaborados usufrui de especialização. A tecnologia digital materializou uma diferente noção de autoria,
uma relação complicada com as tecnologias que conquistaram a distância, promovendo um sentido de cultura que não pode ser confinado aos códigos legais
comprimiram o tempo e pediram novas formas de identificação entre os criadores e habituais que a supõem como propriedade individual.
das formas culturais, dos humores, dos estilos e os vários grupos de usuários que
podem viver longe do lugar em que um objeto ou evento foi de início concebido. [2. Percebo fortes afinidades aqui com o argumento esboçado por Rosi Braídoui em "Sexual Difference
Esta arte é despachada em formas provisórias e não terminadas que antecipam as a Nomadic Polirical Projecr", em Nomadic Subjects (Columbia University Press, [994).

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Este afrouxamento das declarações de propriedade também deu licença cultural já atuantes nas culturas populares pós-coloniais da Europa, pennitindo-se
aos publicitários e criadores de ícones para apropriar-se do vigor das contra-culturas visualizar como essas posições polares já se tornaram redundantes.
racializadas e espoliá-las. A solidariedade da proximidade dá lugar à intersubje- Minha sugestão é que, ao considerar o status da diferença, trabalhemos
tividade sem face de tecnologias comunicativas como a Internet. A comercialização para adotar uma postura mais orientada para o futuro e que façamos o máximo de
de esportes e de mercadorias esportivas, assim como as formas de heroísmo que nossa oportunidade histórica para repensar toda a questão de como se atribui valor
essas operações demandam, tornou-se uma contrapartida vitalista à prática às formas culturais e diferenças étnicas. Ao fazê-lo, podemos incentivar as
sedentária de postar-se vidrado numa tela. Estas são as condições arriscadas em contingências não imaginadas de valor racializado. Isto deveria ser feito não para
que os investimentos na diversidade emergem como um novo veículo para valores dizermos com uma afetada pseudotolerância que tudo é de alguma forma tão bom
alternativos, supostamente não maculados pelo capitalismo, pela tecncciência e quanto tudo mais, mas para que possamos falar com confiança de algum lugar em
pelo comércio. particular e desenvolver não apenas as nossas habilidades de tradução, mas também
Algumas das mais antigas aventuras amorosas da Europa com nobres e a difícil linguagem do juízo comparativo (não homologizante). Este programa tem
primitivos selvagens estão sendo reanimados. Aquilo que é eufemisticamente como premissa a idéia de que quaisquer descobertas que possamos fazer poderiam
chamado de "world music" preenche este momento com uma trilha sonora transformar a nossa compreensão das culturas a partir das quais nós mesmos
adequada. Podemos observar a fome de formas culturais que permanecem fora imaginamos falar, assim como as culturas que nos esforçamos - sempre de forma
da imoralidade e da corrupção do mundo superdescnvolvido, mas que aprisionam o imperfeita - em julgar.
Outro primitivo em uma fantasia de inocência que pode apenas ser catastrófico
para todos os lados envolvidos nisso. Este perigo se forma quando os interesses o NEGRO É APENAS BIOLÓGICO
dos consumidores românticos começam a convergir com aqueles de pessoas de
dentro das comunidades de minoria que querem impor outra definição de etnicidade As divisões de classe no interior das comunidades negras têm sido realçadas
invariante (e portanto autêntica) por força de suas próprias razões disciplinares pela emergência da cultura de consumo pós-moderna. Contudo, em vez de aceitar
dúbias. Particularidades lingüfsticas, tradicionais e locais podem estar todas em a lógica econômica e social desta mudança histórica, o absolutismo étnico tem
perigo devido aos efeitos niveladores do multiculturalísmo empresarial, mas em concordado com os nacionalismos nostálgicos, afirmando que a "raça" continua a
resposta àquela ameaça não precisamos escolher entre fetichizar e, portanto, ser o modo de divisão principal em todas as circunstâncias contemporâneas, que a
capitular diante da sua diferença imutável, ou decidir pelo seu simples esvaziamento cultura negra está ainda intacta em essência, e que um padrão identificável de
ou apagamento. Há um grande perigo quando o absolutismo é endossado cegamente experiências e atributos corporais podem servir para vincular os negros
pelas instituições culturais, as quais recuam num sentido ossificado de diferença independentemente da sua riqueza ou saúde, seu gênero, religião, situação, ou
étnica como meio de racionalizar suas próprias práticas e juízos numa paródia de hábitos políticos e ideológicos.
pluralismo que incorpora a segregação em termos perversos. Estas proposições duvidosas são inteiramente compatíveis com a ênfase
Em nosso tempo, Fanou, cujo trabalho permite tantas reflexões preciosas, cultural desenvolvida pela multicultura empresarial e pelo marketing étnico em
torna-sepouco útil precisamente porque seu pensamento permanece ligado à lógica mira, o qual requer que marcas globais se comuniquem simultaneamente com
dualístíca que devemos abjurar ao indagarmos em que a análise de cultura e de consumidores em muitas e diferentes línguas. Elas têm sido severamente testadas
desenvolvimento da política cultural (e política social) poderia contribuir para o pelas mudanças recentes na cultura tradicional, centrada na representação e na
novo humanismo concitado por ele trinta anos atrás. Esta não é agora, ou melhor, cultura expressiva do Atlântico negro, onde - ao contrário das expectativas dos
não é apenas, uma questão do Terceiro Mundo iniciar um novo humanismo menos nacionalistas tanto de tendência biológica como cultural - as respostas específicas
triunfalista, o que pode ser a sua própria oferenda específica para a civilização, de classe e gênero à perda do vínculo essencial têm sido sempre evidentes. Essa
mas uma questão de se construir com base nas narrativas e poéticas da intermistura cultura vernacuJar pode ser usada para se examinar a batalha entre as opiniões em

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moda, e por vezes fascistas, que consideram o corpo como um sinal de diferença Spike DDB e outros negociantes empresariais da cultura negra enriqueceram
absoluta e uma outra perspectiva em que o corpo emerge atestando uma por ter assegurado que esses não são mais apenas os sonhos dos nativos. Esquemas
confirmação irônica da similaridade essencial do ser humano. Até o dia em que a corporais semelhantes têm sido demandados, projetados e mediados por novos
cor da pele não tenha maior significado do que a cor dos olhos, haverá guerra. As veículos tecnológicos e por indústrias culturais que ultrapassam substancialmente
hostilidades estão sendo conduzidas em ambos os lados da linha de cor. o poder do rádio, o qual chamou a atenção de Fanon como um meio de dirigir
Devemos seguir Fanon também aqui. Há mais a dizer sobre o corpo, os sensibilidades revolucionárias para a esfera pública oposicionista da Argélia anti-
padrões de solidariedade e identificação estabelecidos pelo mundo do corpo, e os colonial. Os sucessores do homem nativo saltitante de Fanon são visíveis em todo
processos de anatomia política, epidermização e nanopolítica que lá ocorrem. É lugar no mundo imagético da multi cultura empresarial. A sua excepcional destreza
preciso lembrar, para começar, que o corpo negro raramente fala para si mesmo. física empresta as suas qualidades mágicas à venda de mercadorias como
Alguns sempre verão uma cicatriz na carne torturada. Outros preferem perceber cosméticos, sapatos esporti vos e roupas, sendo que todos eles promovem formas
os contornos mais agradáveis de uma árvore chokeberry. Beloved [Querida] de complexas de mímica, intimidade, e talvez mesmo de solidariedade através da
Toni Morrison, de onde se tira essa imagem impressionante, parece-me sugerir linha de cor. Você vai acreditar que um homem pode voar.
que mesmo se é por demais difícil esquecer as memórias incorporadas, a decisão Não sabemos se Fanon havia se deparado com a Olympiad de Leni
de deixar de lado as reivindicações da carne e de romper com o seu pacto especial Riefenstahl, mas a sua pesquisa clínica e suas andanças metropolitanas o levaram
com o trauma passado, não precisa ser sempre ilegítima ou destituída de ética. Em a observar a significância de Joc Louis e lesse Owens'" (que foi também, por
segundo lugar, deveríamos questionar os modos como o corpo emergiu como uma sinal, um dos primeiros atletas a aparecer em anúncios da Coca-Cola). O
âncora nas correntes tempestuosas da política de identidade. No capítulo 5, vimos pressentimento inicial de Panon em relação ao que seria uma grande mudança
que o corpo tomou-se o meio através do qual, tanto a liberdade individual, quanto a histórica continua instrutivo, e é ainda mais impressionante por ter se dado tanto
solidariedade racial, são constrangidas à própria vida. Esses corpos negros já não tempo antes da industrialização e da mercadorização da saúde e da boa forma
existem para serem fiscalizados pelas almas que sobreviveriam a eles, como se corporal, nas quais os negros têm sido tão proeminentes:
imaginava anteriormente. Não há almas aqui; elas têm sido banidas pela afirmação
fatal da vitalidade carnal e corpórea, celebrada por Tupac, Biggie, e companhia. O Há uma expressão que tem se tornado singularmenteerotizada ao longo do tempo:
entusiasmo com que isso foi assumido remete-nos à observação perturbadora de o atleta negro. Há algo nessa simples idéia, como me confidenciou uma jovem
mulher, que faz com que o coração bata mais rápido."
Fanon a respeito da importância das fantasias em tomo da potência e atividade
corporal no cenário colonial maniqueísta e imóvel - o mundo das estátuas da
As imagens da vitalidade negra forneceram as flores mais vistosas para as
supremacia branca:
grinaldas da pós-modernidade, sendo que os bionacíonalistas, que consideram que
o corpo permite uma confirmação tardia da hierarquia racial, têm sido especialmente
A primeira coisa que o nativo aprende é ficar DO seu lugar e não ultrapassar certos
limites. É por isso que seus sonhos são sempre de façanha muscular; seus sonhos ávidos em reivindicá-lo. Seus apelos apareceram em várias formas enquanto
são de ação e de agressão. Sonho que estou saltando, nadando, correndo, afirmações em defesa da diferença racial substantiva e mesmo da superioridade
escalando; sonho que caí na risada, que cruzei um rio em uma braçada, ou que sou negra. Seja qual for o pretexto, eles sempre atuam em conjunção com os
seguido por um montede automóveisque nunca me alcançam...o nativo nunca pára determinismos genéticos e biológicos que são agora proclamados, não apenas pelos
de realizar sua liberdade das nove da manhã até seis ela noíte."

14. Frantz Panou, Black Skin. White MOIks, tradução de Charles Lam (Markrnan, Phuo Press. 1986
[19521, p. 166.
13. Fanon, The Wretched ofthe Earth, p. 40. 15. Ibid., p. 158.

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I ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça I I PAUL GILROY I

ideólogos do Bel! Curve IA Curva do Sino] com a sua ciência biosocíal mecanicista, o que faz a CULTURA NEGRA? Por que os HUMANOS NEGROS se expressam de
mas também pelas versões igualmente perniciosas nascidas do âmbito de idéias um modo singular e distinto de qualquer outra espécie humana não-NEGRA? Por
das próprias comunidades negras. Não compartilho da postura de John Hoberman que nós ... DANÇAMOS - CANTAMOS - nos VESTIMOS - ANDAMOS/
CORREMOS - COZINHAMOS - RIMOS/CHORAMOS - JOGAMOS FlJTEBOU
em matéria de abertura positi va à idéia de diferenças raciais biomédicas, mas é
BASQUETEBOL - PENSAMOS - TRABALHAMOS ETC ...diferentemente de outras
muito valiosa a sua detalhada enumeração crítica dos danos causados aos interesses raças? Se você comparar as CULTURAS NEGRAS em todo o mundo, você ficará
políticos negros nos Estados Unidos pela romantização racializada das proezas feliz em perceber que os HUMANOS NEGROS não são diferentes! De um extremo
esportivas." Os debates de senso comum sobre o significado do sucesso atlético ao outro do globo, você descobrirá que os humanos negros são EXPRESSIVOS _
negro mobilizaram tanto novas teorias científicas, como mitos já gastos pelo tempo. COLORIDOS - CRIATIVOS -lNDUSlRIOSOS - GENEROSOS - IMPUDENIES...tal
qual o seu vizinho do outro lado da ma ou da cidade. Todas as "Indústrias" criadas
Reciclaram-se e retrabalharam-se aspectos da raciologia científica e do primitivismo
e prcjetadas pelo HUMANO NEGRO (e pela cultura dele) serão "RICAS" em essência
em moldes que trouxeram atrativos para as culturas de compensação com as e profundidade! Mesmo quando o HUMANO NEGRO é pobre, os recursos com que
quais muitos negros respondem à sua pobreza e miséria. ele trabalha podem ser limitados, mas o produto que ele produz será bem preparado
Como um exemplo interessante desta tendência popular, temos as e EXPRESSIVO.I
apresentações da melanina pigmentar como uma medida dermal e nanopolítico da A força condutora deste traço do HUMANO NEGRO é a MELANINA química!"
fisicalidade superior negra, apresentações essas pseudocienrfficas, da Nova Era e
ocultistas." Partindo-se da sua publicação por editoras independentes e distribuição Durante muito tempo fiquei cismado com estas frases curiosas, que nas
através de redes subterrâneas, esta reversão em matéria de relatos ITÚStiCOS e pré- imagens de vizinhança e comunidade parecem articular um anseio por uma escala
Boas sobre a diferença racial usufruiu de um considerável renascimento durante perdida de socialidade na medida mesmo em que transmitem um gosto pela alquimia
os anos 1990. Uma versão cautelosa e ainda nominalmente científica desses vã da hipersimilaridade e invariabilidade absoluta. O trabalho está bem presente
argumentos foi apresentada por um professor da Howard University, T. Owens nesta utopia segregada em que a biologia expulsou toda a diferença. Esta é uma
Moore, em A Ciência da Melanina: dissipando os mitos." Sua abordagem utopia que acrescenta veracidade ao mais antigo dos estereótipos racistas e
pessimista num estilo Nova Era relaciona esses temas explosivos a uma discussão reenergiza um surrado vitorianismo. Os tropas do "humanismo" de Barnes
anódina dos suplementos vitamínicos e minerais recomendados pelos "nutricionistas impressionam também. Não é de surpreender que a proeza masculina das quadras
africano-centristas" e comercializados como PROMELANIN 2000 pela empresa esportivas e outras representações populares da excelência nos esportes
Khem Sei Nutrition. O sabor moral e político do projeto melaninista emerge do proporcione a esse autor uma figura chave: elas criam o clima em que a superioridade
trabalho de autodidatas como Carol Bames que é um exemplo típico de quem não negra aparece como plausível. Finalmente, podemos saber porque os homens
se restringe a nenhum protocolo acadêmico: brancos não podem saltar. Mas isto não é a transcendência da raça - jogada água
abaixo pela força do vínculo fraternal - como era no filme com aquele título. É em
parte uma reconciliação com padrões mais antigos para reificar a raça por meio
dos ícones da fisicalidade negra. Renuncia-se a técnicas mais modernas de
organização da relação entre corpo e alma na alegre redução do corpo negro à sua
16. John Hoberman, Darwin'sAthletes; How Sport Has Damaged BlackAmerica and Preserved lhe superioridade natural, física, bioquimicamente programada. Esses seres raciais
Myth of Race (Houghton Mlfflin, 1997).Este livro controvertido foi debatido em um simpósio
especial a seu respeitona Iruemational Reviewfor lhe Sociology ofSport, vor. 33,no. I (março "expressivos, coloridos, criativos, industriosos, generosos, impudentes" não são
1998). nada além dos seus corpos. "O negro é apenas biológico", disse Fanon. Não se
17. Bernard R. Ortiz de Monrellano, "Melanin, Afrocentricity, and Pseudoscience", Yearbook uf
Physical Anthropology 36 (199:1), pp. 33-58.
18. T. Owens Moore, lhe Sctence 01 Melanin: Dispelling lhe Myths (Beckham Hnuse Publishers, 19. Carol Bames, Melanin: The Chemical Key to Black Greatness, vol. 1, Stack Greatness Séries (C.
Inc., 1995). B. Publishers, 1988), p. 53.

I 304 I I 305 I
ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY I

trata de uma identidade negra sendo acorrentada ao corpo, pois isso apresentaria num nível superiordo cérebro, funcionando de modoa produzirumaforma musical
como o rapo Estudos com base no cletroencefalograma poderiam ser feitos para
a possibilidade de separação - de romper as cadeias.
medir a atividade cerebral dos rappers hábeis versus os inábeis."
E, no entanto, mesmo entre os "melaninistas" mais ardentes, as tecnologias
do ser racializado aparecem inevitavelmente. Mesmo sob esta lei férrea da biologia
Tendo em mente estas tristes propostas, podemos novamente abordar o
racial, as pessoas precisam ser induzidas a assumir a identidade aprovada. Elas
circuito elétrico planetário da cultura vemacular negra através da apropriada figura
precisam ser ensinadas a recobrar e a relembrar a potência da melanina em seus
de R. Kel1y. Esse crooner com sua cabeça raspada também precisa ser lembrado
órgãos, sendo treinadas de modo que possam atentar uma vez mais para os modos
por ter construído sua carreira na intersecção das culturas jovens emergentes,
como os seus corpos - concebidos em termos nanopolíticos e divididos aqui nas
baseadas em esportes e computação, e aquelas ainda baseadas em música e dança
unidades de suas células - dirigem-se a elas e a cada uma delas através do canto
em termos residuais. Nesse cruzamento, Kelly celebrou a eloqüência do corpo
das sereias da memória racial coletiva (nunca individual). Como um artigo da revista
negro com a sua canção "Your Body's Calling" [O Seu Corpo Está Chamando]. A
afrocentrista britânica The Alann alertou seus leitores:
sua afirmação característica dos poderes comunicativos do corpo singular deveria
servir como lembrete de que a carne preta EXPRESSIVA pode ser dada a falar
A velocidade com que se perde a ligação com a poderosa influência da Melanina
sobre o ser espiritual está diretamenterelacionadacom o volume de socialização e em diversas línguas. A profecia Resta de Bob Marley de que vai haver guerra até
"educação" européias recebidas...as avenidas para os nossos centros de Melanina que a cor da pele não tenha maior significado do que a cor dos olhos também salta
ficam parcialmente bloqueadas pela nossa adcção das dietasocidentais,da poluição à mente mais uma vez aqui, e não apenas porque o seu reconhecido humanismo
ambiental e dos modos de pensamento. Como a Melaninaagc como umaantena ou anti-colonial continua a fazer novos adeptos entre pessoas de todas as partes do
um aparelho receptor de alta precisão, ela irá ressoar com harmonia qualquer globo. Podemos nos perguntar se O idioma declinante da escatologia jamaicana
ocorrênciaem nossomeio ambiente. Portanto,se você se cercar de forçasnegativas
(na sua família, local de trabalho, vidasocial,ou a comidaruim que você consome), apoiada por Bob era até certo ponto menos física em termos dinâmicos do que a
estas vão alterar psicológica e neurologicamente aquilo que age para preservar a cultura privatizada do esporte-utilidade, cujo melhor porta-voz é R. Kelly. Ao
sua Melanina." contrário do corpo íntegro preferido pelas bizarras mulheres desonradas e pelos
saudáveis homens atletas que parecem do mesmo modo ter servido de inspiração
o artigo de onde se tirou a citação acima discute o papel da melanina na a KeUy, a frase poderosa de Bob põe o corpo contra si mesmo ao perseguir o
transmissão de mensagens a partir de fontes profundas, especialmente as de projeto de extirpar a supremacia branca de sua racionalidade. Para ele, o corpo
frequências de baixo profundo. De maneira semelhante, Owens Moore propôs negro não era nem salutar, nem íntegro. Ele não poderia falar com uma voz. Olhos
este estranho programa antiquado de pesquisa cultural melaninista: e pele, componentes do corpo com potencial comunicativo equivalente na era
anterior às tatuagens obrigatórias, transmitiam mensagens opostas sobre as verdades
Hoje o tambor é usado em todas as formas de música negra. A música rap, em materiais da raça e da sua significação social. Como se percebeu, esse controvertido
especi.al, é um fenômeno africanoque merece ser pesquisado. Fazer músicaa partir processo de significação era a questão principal.
de batidas não é uma tarefa fácil e requer um funcionamento avançadodo cérebro.
O impulso biopolítico para apresentar o corpo como um símbolo de
Mover-se ritmicamente, ficar dentro do compasso, pensar, criar e lembrar-se das
palavras é uma habilidade alcançadapor muito poucos fora da comunidade negra. solidariedade é comum a uma extensão bem maior de pensamento político negro
As estruturas subcorticais do cérebro nos gânglios basais que são responsáveis do que estes exemplos ardilosos sugerem. Ele vincula o ocultismo absoluto daqueles
pelo movimento e pela intercomunicação entre os dois hemisférios devem operar que acreditam na melanina como a garantia da superioridade negra aos escritos de
teor biológico menos óbvio de autores mais respeitáveis em termos acadêmicos,

20. G Peart, "More Than the Colour of My Skin", Scíence Pocus, The Alann, 9 (novembro J994),
p.25. 21. Moore, The Science ofMelanin, p. 124.

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I ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça I I PAUL GILROY I

que poderiam mesmo se opor a algumas das posições políticas adotadas no ponto
de confluência da ciência racial do século XVIII e do nacionalismo milenarista
americocentrista. O corpo e sua semiose vieram para abrigar uma batalha majestosa
na qual esses interesses distintos lutam pelo prazer de anexar os poderes
comunicativos especiais do soma aos seus concorrentes regimes de representação.
Há ainda uma outra moda mais mística de teorias de particularidade racial
centrada na idéia de atributos comuns codificados na carne preta. Somos
freqüentemente concitados a descobrir esses códigos assumindo o que uma moda
difundida a partir da revista lmage (imbuindo o homem de cor de poder) descreveu
como "a jornada interior" em uma série de fotos que apresentam uma seleção de
vestimentas masculinas refinadas modeladas em um ambiente africano simulado.
Algumas páginas depois, o significado total dessa implosão tornou-se explícito numa
imagem que havia sido reproduzida também na capa da revista (ver ilustração 1).
A poesia e a fotografia de Michael Gunn deixaram claras as dimensões desta
construção de poder interior. Era patriótico, religioso, másculo, e exclusivamente
voltado para o passado. Permite, entretanto, percepções reais da condição cultural
da América negra no período que vai da agressão policial a Rodney King à Marcha
de um Milhão de Homens da Nação do Islã. As palavras de Gunn ressoam muito
A representação vigorosa de Michael Gunn sobre as formas de
forte num desses períodos da cultura política afro-americano quando a integridade sofrimento dos afro-americanos foi capa de Image.
da "raça" como um todo era então definida em termos exclusivos como a
integridade de seus conterrâneos homens. O seu status inferior era identificado A virilidade dos afro-americanos tinha de ser renovada e emendada para
como o resultado do modo de masculinidade específico da raça que havia sido que o seu destino político progredisse.
prejudicado pelas operações da supremacia branca ao longo da escravidão e desde Uma esmerada literatura de auto-ajuda, auto-análise e auto-estima cresceu
então. Uma vez mais, a masculinidade negra tornou-se o foco das atividades em torno da idéia de que na medida em que a masculinidade expie suas faltas e
reformadoras e compensatórias que se fundavam sobre a capacidade da raça de assim se redima, ela pode transformar a condição sofrida daqueles que passaram
agir em busca de seus interesses mais abrangentes e próprios dela. Isto envolvia por procedimentos de castração simbólica que lhes negam acesso aos benefícios
um projeto político que era entendido em linhas nacionalistas e que, portanto, pessoais e políticos de uma autêntica condição masculina. Na ausência desta
dependia ainda mais crucialmente do poder revolucionário da nação minoritária intervenção, muito tempo depois que a escravidão e a segregação tivessem sido
para reproduzir a si mesma em formas viris apropriadas. A masculinidade era desmanteladas, os homens negros estariam fadados a continuar como meros garotos
tanto o catalisador necessário quanto o resultado premiado daquele processo num mundo dominado e manipulado pela fratriarquia de homens de verdade cujo
reprodutivo. status superior é transmitido por sua brancura em comum. Presa em meio às
trágicas sombras lançadas por heróis mortos e maiores que a vida, extraídos estes
mais provavelmente dos mundos do esporte e do entretenimento do que da arena
da política oficial, a crise da vida negra foi apreendida de modo plausível e
persistente, mas erroneamente, como uma crise de masculinidade negra. De um
lado havia as figuras desgraçadas de homens, porém peculiarmente heróicas, como

I 308 I I 309
ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascinio da Raça PAUL GILROY I

O. J. Simpson, Tupac Shakur, e O prefeito Marion Barry, enquanto de outro a certo modo. este "texto" escondido dotava a carne preta de habilidades cognitivas
demanda bem intencionada por modelos de papéis positivos era então acenada. especiais. Ele fixava os limites da coletividade racial como um todo, permitindo
Apelos em defesa da educação segregada por género e da reinstitucicnalização da com que Alexander, que se declarava abertamente contrária a enveredar pelas
família centrada na figura do pai podiam ser ouvidos em meio a um novo discurso "reduções biológicas da 'raça' e pelos freios artificiosos da 'cultura', passasse a
fraternal sobre as patologias múltiplas da vida social matrifocal. Pode-se apreender "falar sobre o 'meu povo'". Naquele momento, as pessoas constituíam um sujeito
a imagem de Gunn através destas linhas: político e histórico inteiramente indiferenciado que poderia ser despertado de seu
estado rotineiro de anestesia ao assistir o vídeo de 81 segundos de George Holliday
Meu país ti teu com cenas do espancamento de Rodney King. A reação das pessoas não era o
Isto é o que me fizeram 400 anos. resultado de uma justa ira moral, política, ou cívica diante dessa injustiça já tão
Sou o homem que você trouxe para cá à força.
familiar, mas resultava em vez disso da memória racial compartilhada.
Sou o homem que cultivou os seus campos.
Sou o homemque lutou em guerras não criadas por mim. Alexander não teve a oportunidade de discutir o corpo do falecido Eazy E,
Sou o homem que limpou banheiros que nem poderia usar. mas este nos permite mais uma exposição controvertida do cenário sombrio deste
Observe que eu não profano a bandeira escuro continente. Assim como ocorreu com as mais recentes lamentações
Eu a levanto, tentando me agarrar à idéia do "Sonho Americano" desencadeadas pela perda daquelas figuras imortais, Biggie e Tupac, o incómodo
Mas as marcas de meu corpo são a prova de minha existência aquí."
trabalho de rememorar Eric Wright, o criador do gangsta rap, oferece um dado
adicional interessante à procissão de heróis respeitáveis, apresentada por Alexander.
No mesmo período, uma versão mais sofisticada de alguns destes temas
Não sei quantas vezes Eric assistiu àquele vídeo histórico, mas a melanina e a
surgiu em meio à outra polida polémica neonacionalisra, como uma contribuição da
memória de raça em suas células gangsta não Oimpediram de apoiar as declarações
respeitada poeta e acadêmica Elizabeth Alexander ao catálogo de uma exposição
do policial Theodore 1. Briseno - um dos agressores de Rodney King. Ao contrário
intitulada "Homem Negro: Representações da Masculinidade na Arte
dos melaninistas, Alexander não explora a questão de como essa memória comum
Contemporânea Americana", realizada inicialmente no Museu Whitney de New
pode ser esquecida, ou que mecanismos sociais relacionam-se com a sua repressão
YorkY Numa extraordinária convergência com as preocupações melaninistas,
ou apagamento.
ela elegeu como tema central da sua polêmica contra os "discursos anti-
Após folhear a edição de junho de 1995 de The Source que homenageou a
essencialistas, pós-identidade", a idéia de que os negros americanos compartilham
vida de Eazy e suas contribuições à cultura negra vernacular, deparei-me com o
uma memória social comum e corporificada. Ao comentar os casos de Rodney
difícil problema de como diferenciar o trabalho de memória organizado em torno
King, Emmett Till e Frederick Douglass, nos termos da abordagem estabelecida
de sua vida e morte e os processos sociais e culturais examinados por Alexander.
pela eminente crítica literária Hortense Spillers, Alexander identificou um "texto
Será que a "tradição de contar estórias", motivo nítido de orgulho para ela, não
carregado na carne", composto de memórias "ancestrais" de terror. A potência
poderia ser aperfeiçoada elemodo a incluir a complexa narrativa de Eazy a respeito
simbólica tradicional do mero sangue era então reconhecida como insuficiente. De
do individualismo, da indiferença e da autodestruição, bem como a controvérsia
resultante sobre os significados contemporâneos e futuros da negritude que eram
22. Image, vol. 1, no. 3 (Janeiro 1995). A imagem recebeu a legenda de "O Preço do Sonho", sendo nela sinalizados? A narrativa da vida de Eazy e as formas de antífona que esta
posta à venda no formato de um cartaz pelo fotógrafo e poeta Michael Gunn, 1231 1 Chandlcr expressava com urgência não seriam mais significativas do que ter em seu centro
Blvd., Suíte 31, North Hollywood, CA 91607.
o corpo injuriado do homem de trinta e um anos de idade? A observação de Frank
23. Elizabeth Alexander, '''Can You Be Black and Look as This?': Reading lhe Rodney King vídeo",
in Black Male Representations oj Mascuíínity in Contemporary American An, org. Thelma Williams, de que "não havia nenhuma dessa merda politicamente correta com o N.
Golden (Whitney Museum, 1994). Reproduzido também em Public Cultura, vol. 7, no. 4 W. A., e nem mensagens claras sobre essa coisa de dotar o negro de poder,
(1994).
dominando o hlp-hop naqueles tempos. Era só beber, pegar mulheres e descarregar

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I ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça I I I'AUL lilLKUY

com esta puta, ou aquela puta..." significa algo totalmente diferente agora...Acho
seu revólver em alguns trouxas"> nos dá alguns indícios sobre os problemas de se
que você verá uma tendência de montes de rappers começando a se casar.46
enfiar Eazy/Eric num panteão como o de Alexander. Num outro eco da perspectiva
melaninista, ela apresentou o corpo negro em si mesmo. É todo um depósito de
Penso: o que o Dr. Fanon teria feito dessas estranhas posturas? Ao observá-
significado, um condutor de memória racial que se recusa a ser diferenciado por
las através da moldura colonial, ele teria detectado nesse confortável cenário
classe ou gênero, riqueza, ou saúde. O corpo era a verdade final, especial, derradeira,
unanimista, defendido por críticos como Alexander, uma fantasia de grupos mais
absoluta da identidade negra, designada por Alexander de "linha de baixo". Todas
privilegiados, de uma elite culpada e de algum modo aparentada com aquela que se
essas problemáticas divisões intraraciais evidenciadas desde a morte de Eazy por
produziu em palcos coloniais na forma de uma pequena burguesia nativa? Será
AIDS até a sua celebridade - questões incômodas como pobreza, política e poder
que ele porventura teria percebido que a unidade racializada tão desejada era
_ poderiam ser esconjuradas com um só golpe. A política racial tornou-se uma
apenas perceptível e plausível vista à distância? Como um praticante da medicina,
questão de intertextualidadc quando a fita de vídeo de Rodncy King intersectou-se
é provável que ele fosse sensível à mudança de escala que se evidencia na
com a fita de memória carregada naquelas células pretas." Gênero, privilégio,
substituição da significação epidérmica da diferença pelas qualidades da
hierarquia, riqueza e saúde; nenhum deles importava mais. O corpo cuidará de
diferenciação projetadas pela nanopolítica sobre as próprias células.
tudo quando a solidariedade é disparada para a ação perante a visão daquela carne
A epígrafe de Alexander foi tirada do trabalho de Saul Schanberg, um
triturada do homem negro. pesquisador de medicina da Duke University que fora citado na revista Natural
A carne que foi destruída pela doença é menos atrativa, porém é mais sinistra
Health, Esta citação transmite com perfeição o impulso nivelador de Alexander
em seu impacto do que a carne marcada pela violência. Apesar de toda a sua
ao afirmar que "a memória reside em lugar algum e em cada célula". Infelizmente,
óbvia cumplicidade com a alcovitagem empresarial da cultura negra, pelo menos
seu conteúdo não foi esclarecido no trabalho de Alexander. Pode-se presumir que
The Source fez com que o trabalho social de comemoração se tornasse complexo
Schanberg tenha querido dizer que a memória era compartilhada por cada célula
e difícil. Embora a masculinidade e o fraternalismo, que eram parte integrante das
em um único corpo, ao passo que em seu ensaio, Alexander sugere que cada
vendas que cruzavam as linhas de cor, impedissem em grande parte as suas
célula na política do corpo negro usufrui da mesma faculdade de recordação. Esta
pretensões radicais, a revista usou a morte de Eazy para abrir uma discussão
ordenada homologia entre células e sujeitos raciais se rompe quando observamos
sobre em que moldes precisos ele deveria ser pranteado e lembrado e que formas
que as células não são intercambiáveis, mesmo em um só corpo, e também que as
de solidariedade poderiam emergir daquela atividade social. As linhas seguintes
diferenças entre as células tiradas de pessoas diferentes, mesmo aquelas com
são algumas das respostas a essas questões oferecidas por luminares da nação
fenótipos semelhantes, podem ser significativas, especialmente na era da AIDS.
hip-hop: Será possível que estas pequenas, mas decisivas diferenças apontem para uma
concepção distinta do significado dos fenótipos em relação aos genótipos, e além
Guru: Eazy E deveria ser lembradocomo umempreendedor.
disso para a redundância das tipologias raciais do século XVIII?
Method Man: Sinto que é mim que ele tenha partido desse jeito, mas pode ser bom
se conseguir passar a mensagem para todos nós de que esta doença pode nos
atingir. Há um montão de irmãos por aí brincando de roleta russa com seus pintos. CLASSE E CULPA, O QUlRO G TI'JAANO
Masta Ace: Comprei seu primeiro disco alguns meses atrás. Quando o ~scuto agora,
certas linhas têm todo um novo significado. Quando o ouço dizer, "E sobre foder Ao me deparar com essas tentativas de resolver as crises em torno da
condição de similaridade e solidariedade raciais através de apelos ao poder do
24. Frank Williams, "Eazy E: The Life, the Legacy", The Source (junho 1995), p. 56. corpo, acabei adotando uma atitude mais benevolente em relação à irreverência
25. Uma visão alternativa sobre o significado de Rodney King foi apresentado por Willie D em Fuck
Rodney King (Priority Recorda, 1992). Eric Lotr fez uma defesa vigorosa do disco em "Comel
wesr in rhe Hour of Cimos in Race Matters", Social Text, 40 (1994), pp. 39-50. 26. tt« Source, 69 (junho 1995), p. 56.

I 312
I 313
I:.NJKI:. LAMt'U~ naçoes, LULturas e o t ascrmc da Raça I'AUL lilLRUY

subversiva da cultura negra vemacular. Eazy E, Snoop, Willie D, Biggie, Lil'Kim e Neste ponto o individualismo do indivíduo pobre, em seu estilo centrado no
seus pares insubordinados ado taram uma postura deliberadamente vulgar e gueto, parece ter derrotado o bioessencialismc conveniente da elite. Você escolhe
desordenada que resistia à disciplina e pressionava todo o tempo no sentido das ser um gangsta e você pode desistir desta filiação a qualquer momento. Eith
zonas de fronteira onde aquelas teimosas divisões de região, classe, sexo e gênero revela com clareza as conseqüências desta mudança de orientação quando
reafirmam-se e recusam-se a ser traduzidas para registres invariáveis, epidérmicos, ridiculariza as vozes negras que se levantaram contra o gangsta rap, expressando-
celulares ou nanopolíticos. As garotas e os garotos da vizinhança não serão se nestes termos: "Eles com as suas bundas de cor empinadas - nem chamo eles
arregimentados pelo programa de reparação racial e ascensão social que tem sido de negros, para mim eles não são neguinhos"."
proposto por pessoas negras em melhor posição, integrantes da burguesia. Em Outras divisões igualmente profundas têm sido reveladas em amargos
contraste com o essencialismo transcendente das células hipersimilares e das conflitos intra-raciais que emergem do discurso vernacular sobre o sexo. O corpo
memórias raciais intercambiáveis, a consciência gangsta celebrada por aqueles também está presente aqui. Mas, uma vez mais, ele não se apresenta por inteiro,
jovens é territorial em extremo. A forma de solidariedade defendida por eles é como um veículo orgânico para alguma memória racial em comum. Assim como o
especializada, isto, é claro, caso se reconheça solidariedade neste caso. Esses cão e a cadela cujos vínculos niilistas Biggie celebrou com grande ênfase, o gangsta
jovens situam-se nas fronteiras vivenciadas de sua comunidade e são fiéis a elas. se move por instinto - uma forma de memória não suscetível à regulamentação.
Este programa assume um mínimo absoluto em matéria de unidade racial a priori. Você talvez se lembre que Snoop lamenta o fato de que ele não pode evitar correr
Ele possibilita a nossa compreensão sobre o que a solidariedade acrescenta em um atrás do gato. A natureza não é a amiga, a guia, ou a aliada que parece ser no
mundo cão. M C Eiht, ao lado de quem Snoop e Eazy E parecem delicados e discurso dos pseudocientistas. É uma maldição, outra sentença suspensa em termos
mansos, expressou-se deste modo: indefinidos. Assim como foi na canção de Marley, o corpo é fragmentado, dividido
em zonas. As áreas distintas precisam ser trabalhadas de modos diferentes. Indo
Os filhos da puta estão fazendo sucesso agora, agora mesmo. Todo mundo neste bem além da inocente distinção entre olhos e pele feita por Bob, o gangsta aprecia
mundo de filhos da puta tem a mentalidade de quem não dá a mínima para o que os partes específicas do corpo. As zonas selecionadas são afirmadas e celebradas
outros dizem. O Nigga [neguinho] vai ganhar o seu dinheiro, ele vai viver do jeito
porque o espaço sobre o qual o poder pode se exercitar está sempre a encolher e
que quiser. Quando chegar esse dia, se um neguinho precisar morrer, esse é o dia.
Para a comunidade - sempre me parece que todas as vezes que um neguinho chega porque elas estão mais próximas das disfarçadas dimensões animais de vitalidade
a um certo nível ele precisa voltar para a comunidade e precisa fundar centros do que do corpo purificado, automático, favorecido pelos melaninistas e mercadores
comunitários etc. É por isso que ele diz, "Está bem, amo a comunidade c vou fazer da memória.
algumacoisa pelo lugar de onde vim". Eu não estou morto, filho da puta. É isso que Aqui nos vemos obrigados a considerar o modo como O Atlântico negro
eu sou. Quando estava nesta vizinhança filha da puta, eu me dava bem com os
respondeu aos apelos que o Bíackstreet e outros enalteceram como um "bootl
neguinhos. Neguinho não pôs nenhum dinheiro no meu bolso, os neguinhos não
me davamdrogas.Os neguinhos não faziammerda nenhumapor mim a não ser dizer, call" [convite para o prazer sexual]. A reavaliação do bootilbutt/batty [prazer
"ele é gente nossa". Portante, para a minha comunidade vou fazer a música que sexual, bunda, insano] é outro elemento do mesmo esforço desesperado em centrar
meus neguinhos gostam, mas não vou me instalar aqui e construir um centro infantil a particularidade negra no corpo. Mas não é apenas uma reafirmação do tradicional
para mim aquie construir aquele outro lá, porque isto é uma besteira de merda. Estou hedonismo articulado em atos prévios e rudes de resgate do corpo negro dos mundos
nesta merda por mim... Não sou nenhum político filho da puta. Não estou falando
tumultuados do trabalho e do labor, ou a sua celebração como um locus de
sobre essa merda de parar a violência. Não estou falando sobre o movimento negro
porque aquela merda não vai continuar na vizinhança. Nenhum filho da puta vai resistência, prazer e desejo. Trata-se de algo mais potente que reordena a hierarquia
chegar com tortas de sonhos e se postar na minha esquina."

27. "Gansta Rap Summit: 'Reality Check"', Thc Source, 57 (junho 1994), p. 72. 28. Ibid., p. 70.

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I tNfKt lAMI'U~ .. Naçoes, curturas e o Fascínio da Raça I I I'AUL blLKUY I

das zonas e órgãos do corpo em um padrão que se move decisivamente para além se trata afinal de contas de uma jornada interior, mas de um passeio até o shopping
das antigas oscilações entre sexo e violência, consideradas por James Baldwin center, realizado de preferência com a ostentação apropriada do transporte
como recheios alternados para a concha da expressão cultural negra. bell hooks e particular.
Carolyn Cooper observaram que o culto vernacular da bunda revaloriza os corpos O estilo e a moda oferecem algo no mesmo formato da solidariedade
abjetos das mulheres negras em diferentes locais; porém, o saber tradicional sobre mecânica conferida pelo uniforme do homem burguês, o que alcança uma mágica
a bunda tem ainda outro significado. O aspecto autoritário dos movimentos racial diferente em termos da Nação do Islã. Em ambos os casos, não se considera
nacionalistas que discutimos anteriormente requer o nosso reconhecimento das o corpo sem roupas como suficiente para conferir autenticidade ou identidade. As
suas tentativas óbvias de lidar e conter as possibilidades disruptivas que emanam vestimentas, artigos, coisas e mercadorias oferecem o bilhete único de ingresso
do desejo homoerótico, introjetado ou não. A penetração anal que é ao mesmo para as solidariedades estilos as, as quais são poderosas a ponto de fomentar as
tempo afirmada e rejeitada em injunções do hip-hop, como aquela de "agarrar os formas inéditas da nacionalidade encontradas em coletividades como Nação
seus tornozelos, benzinho'' não tem um único significado fixo ou eterno. Ela adquire Gangsta, Nação Hip Hop, e, é claro, a Nação do Islã. Não se trata de niilismo, pois
um sortimento de acentos distintos em cenários discursivas específicos. Foram, há uma axiologia aqui - a axiologia do mercado. É o bastante, portanto, para a
afinal de contas, os fundamentalistas que transformaram o desvio da heterosse- diferença cultural. Carl Williams, desenhista de roupas afro-americanas, que vende
xualidade compulsória em uma traição da autenticidade racial. DJ Shabba Ranks, seus desenhos com a grife Karl Kani, a qual foi tatuada na parte superior de seu
cujas declarações na área de moralidade sexual foram além da homofobia para braço, nos diz que "a aparência é tudo", e ele deve ser um bom conhecedor disso.
chegar a uma dimensão mais complicada de ambivalência, mostra como os tabus Suas roupas e acessórios respondem sim ao seu nome."
que regulam a prática sexual acabaram por determinar os limites da coletividade No interior das comunidades negras, velhas certezas sobre os limites fixos
racial: "Não me importo com o que eles querem falar a meu respeito, desde que da identidade racial perderam seu poder de convencimento, ou mesmo de imprimir
ninguém possa dizer que ando chupando uma xoxota ou fodendo um maluco". 29 A sentido às divisões extremas produzidas pela desindustrialização. Procura-se uma
referência à cicatriz/árvore chokeberry pode ser feita mais uma vez aqui para segurança ontológica, capaz de responder ao sentido já bastante reduzido de valor
salientar a mutabilidade e multiacentuação do corpo negro. da vida negra, DOS poderes naturalizantes do corpo: vestido ou desnudo, fragmentado
Neste vernáculo, a negritude não tem sido escrita no interior ou mesmo ou íntegro. Os velhos temas compensatórios que respondiam à condição de ausência
sobre o corpo, pois o corpo não é estável, ou ainda duradouro demais para permitir de poder entre os negros - sexo e gênero - têm sido transformados com a ascensão
aquele ato de inscrição. O que conta não é o que o corpo é ali carrega dentro de si, da nanopolítica centrada no corpo. O estranho programa dejogo e recreação sexual,
mas em vez disso o que o corpo faz em sua relação imediata com outros corpos. celebrado por artistas como Usher e R. Kelly, surge como uma alternativa para a
Uma dualidade mente-corpo não está sendo reinstalada de forma camuflada através solidariedade mecânica de "raça", seja ele articulado por meio da austeridade da
de apelos à memória, a qual pode ser presidida por uma elite "colonial" culpada e nação e seus substitutos, ou pela fantasia de hipersimilaridade masculina projetada
privilegiada. A negritude emerge como mais comportamental; ousaria eu dizer através da cultura de excelência esportiva negra e do heroísmo aqui cultivado
cultural? Ela pode ser anunciada por hábitos sexuais indicativos e outros gestos pelos homens e mulheres de marketing.
corporais. Em algumas circunstâncias, a negritude pode mesmo ser adquirida em O sexo é mais desordenado e instável do que as imagens convencionais da
simples processos económicos. A identidade como similitude e solidariedade não vitalidade negra que se tomaram cúmplices do cerne da supremacia branca. O
está de fato sendo essencializada aqui. Pode-se adquirir produtos que emprestam caso já mencionado de Shabba revela com precisão como o sexo tem de ser treinado,
uma uniformidade elcqüente ao corpo mudo em bases temporárias e casuais. Não domesticado, entretido, e tecnologizado em canais apropriados com vistas ao

29. Rob Kenner, "'Tap Rankin'", Vibe (outubro 1994), p. 76. 30. Scott Poulson-Bryant, "Karl Kani - Dcsign of lhe Times", Vibe (outubro 1994), pp, 59-63.

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PAUL GILROY

estabelecimento da família e, por conseguinte, da nação. O corpo emerge num imagens, e não mais na música e seus rituais antiquados. Buscar refúgio nas certezas
duplo papel de ator e objeto controvertido. Ele tem sido reivindicado por vários da incorporação essencial negra não permite lidar com as conseqüências
regimes de representação e de desejo que criam formas distintas de identificação cataclfsmicas desta mudança. A multicultura empresarial está remodelando o corpo
e introduzem possibilidades políticas diferentes e abrangentes que não estão tão negro. Temos testemunhado uma série de lutas em tomo do significado daquele
bem arrumadas a ponto de serem mutuamente exclusivas. A moda se esparrama corpo, que emerge de modo intermitente como um significante de prestígio,
no culto do esporte, enveredando pelos sonhos da superioridade negra programada autonomia, transgressão e poder numa economia supranacional de símbolos, a
em termos químicos. Os artigos de vestimenta são traficados entre o público, o qual não se reduz à lógica antiquada do poder de supremacia branca.
mundo dos cruzamentos e suas veladas contrapartidas negras. Os discursos que Ao se defrontar com aquela luta, com a desindustrialização e com a
codificam, materializam e fazem trocadilhos com a carne preta trazem a promessa proliferação das divisões intracomunais baseadas na riqueza e no dinheiro, na
de poder, mas podem logo reverter para um simples tipo racista, especialmente sexualidade e no gênero, a elite negra pode achar oportuno cair de novo nas narrativas
quando a fisicalidade excessiva bane as capacidades cognitivas, e a sexualidade excepcionais e nas identidades essenciais. Ela pode mesmo reconstruí-las com
libertina e também excessiva supostamente nos define por fora da sintaxe oficial base numa variedade de linguagens políticas: melanina, memória, nacionalidade
de gênero. Estes perigos não se restringem ao efeito que possam ter sobre os autoritária e afrocentrismo, ou alguma combinação entre todas elas. Compreendo
espectadores brancos, mas podem também ser sentidos quando os negros começam essas respostas, mas eu me pergunto até que ponto elas não têm a ver com um
a viver, não com esses riscos, mas através deles e das formas duvidosas de se grupo privilegiado que mistifica o seu próprio distanciamento crescente das vidas
ganhar poder oferecidas por eles. da maioria das pessoas negras, e cujas prioridades, hábitos e gostos não podem
Precisamos acompanhar as sinalizações do multiculturalismo empresarial e mais ser considerados como indicadores, que se auto-legitimam, da integridade
fazer com que a interface entre o esporte, a música, o vídeo e a venda da cultura racial. O corpo tem sido usado para restaurar aquela integridade em declínio de
negra se tome acessível a públicos cada vez maiores, muito distanciados dos locais maneiras que ab-rogam a responsabilidade histórica dos intelectuais (não
em que aquelas culturas foram de início engendradas. São freqüentemente, embora acadêmicos) em fazer com que ele comunique as verdades preciosas, frágeis e
nem sempre, públicos cujo entusiasmo pelos frutos da alteridade e pelo glamour contingentes da socialidade negra. Diante dos biopoderes renascidos, será possível
da diferença, sobretudo quando isso é oferecido numa forma de gênero apropriada, articular uma compreensão alternativa, pós-antropológica de cultura que tenha
pode não ter correspondência em nenhum sentimento equivalente de arrebatamento qualquer coisa parecida com aquele mesmo poder de explicação?
pelas pessoas que produziram de início essa cultura. A mesma obsessão com a
atividade masculina, o poder e a vitalidade que aparece como uma resolução PARA LEMBRAR
imaginária da crise de solidariedade negra, no momento em que a comunidade
política se reduz à dimensão de uma quadra de basquete, também se encontra bem As teorias sobre cultura estão implicadas no mundo dividido que elas se
no centro de comercialização de culturas negras, estilos e criatividade voltada em esforçam em explicar. Há muitas zonas bem fortificadas em demasia em deferência
termos simultâneos para uma audiência "cruzada" e para outra interna. Revistas às reivindicações autoritárias que as origens podem fazer, onde a pureza é estimada
como Vibe e The Source, em alguns casos contando com proeminentes e a mistura e a mutabilidade provocam medo e falta de confiança. Mas também há
comentaristas negros, têm estado na linha de frente desta operação de cruzamento. momentos preciosos em que a preocupação com os mecanismos de transmissão
Uma olhada nas páginas da Vibe na Internet deixará claro que estas não são cultural e tradução deve se tornar uma prioridade, e em que a anti-disciplina
questões provincianas. A negritude imaginária está sendo projetada para fora, sem promfscua associada com uma dinâmica cultural complexa reescreve as regras da
rosto definido, como uma forma para se orquestrar um mercado global de verdade crítica e de avaliação em códigos novos e empaticamente pós-antropológicos. Estes
em matéria de produtos de lazer e como a peça central de uma nova versão períodos levam a atenção para longe da questão das origens e em direção aos
empresarial e sem rodeios da cultura jovem, centrada na visualidade, fcones e vetares da cultura viajante moderna. Eles fazem aparecer o problema da rotina e

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I tN I Kt lAMI"V:) naçoes, vurruras e o r asctnto (la «aça I I PAUL GILROY I

da translocação irreverente da cultura. Isto é incompatível com os desejos arcanos Há quase trinta anos, tenho sido tomado por uma obsessão apaixonada em
de colecionadores de borboletas que preferem suas culturas íntegras e gostam que ouvir música, grande parte dela produzida em regiões do planeta bem longe do
as diferenças entre elas permaneçam absolutas. Embora o seu apetite ocasional canto em que habito. As fontes longínquas da música não foram parte do prazer
pela liberação nacional e outros esquemas de conservação étnica por vezes sirvam que ela me proporcionou. Viessem elas para Londres de Cali ou Califórnia,
de disfarce, eles são conservadores no sentido mais preciso e técnico do termo." Trenchtown ou Malaco, Mississippi, esses sons tinham de viajar. O seu tráfico
A sua influência crescente decerto não oferece proteção contra o poder ressurgente interno constituiu uma intricada rede circulatória que se sobrepunha, sem ser
do pensamento raciológico, poder este que tem contado com a sua cumplicidade dominada, aos sistemas distributivos do comércio apressado e indiferente que se
freqüente e encoberta. É por essa única razão que seus argumentos precisam ser faz às claras. Em resposta à acusação de consumismo trivial, eu diria que se
respondidos de um modo afirmativo cosmopolita que não faz nenhuma concessão aquela teia meio escondida fosse lembrada e reconstruída, ela poderia muito bem
à primordialização ou à reificação da cultura. complicar o nosso senso histórico do capitalismo de Guerra Fria com suas indústrias
É claro, os perigos da globalização desencadearam algumas versões potentes culturais, e a dissidência que estas últimas formam e disseminam de um modo
de absolutismo nacional e étnico." Elas têm se tomado bem mais desesperadas e involuntário. Minha experiência com estes objetos é parte da minha vivência através
voláteis devido ao poder destrutivo de processos que nivelam as variações culturais da mercadorizaçâo final de uma extraordinária criatividade cultural nascida das
e lingüísticas, tornando-as formações mais brandas e homogêneas, e nas quais os populações escravas do Novo Mundo. Vi quando suas imaginações oposicionfsticas
elementos do consumismo podem se implantar. A fantasia da particularidade foram inicialmente colonizadas, e depois subjugadas pelos valores niveladores do
blindada trazida por essas versões se expande a partir de seus pontos de partida no mercado que foi uma vez estimulado pejo comércio de seres humanos vivos, embora
mundo superdesenvolvido, Esta fantasia vincula a racíologia racional não apenas à não o seja mais. Quaisquer contra-valores tardios são vistos hoje como um auxiliar
xenofobia e ao nativismo, mas também às novas hostilidades e ansiedades pseudotransgressor do negócio oficial de vendas de artigos os mais diversos: sapatos,
condicionadas pelas formas de risco que se formaram em tempos mais recentes. roupas, perfume, bebidas adocicadas. Num certo sentido, as culturas vemaculares
Precisamos reconhecer o encanto especial lançado pelo glamour da pureza e negras de fins do século XX foram uma espécie de matraca da morte de um
identificar as variedades de medo e ódio que têm se dirigido nem tanto ao estranho contra-poder dissidente que se enraizara na modernidade marginal da escravidão
e ao diferente, mas, com uma nova intensidade, àqueles cuja diferença ou estranheza racial não fazia tanto tempo, e da qual ele havia se retirado com notável rapidez.
conseguem sempre evitar sua captura pelas categorias sociais e políticas disponíveis Como por encanto, os discos de plástico enfiados em invólucros coloridos - "os
e capazes de dar um sentido a isso. discos LP" - proporcionaram vetores improváveis e inesperados para uma
As tribunas antropológicas desses conservadorismos complacentes e incansável sensibilidade viajante. Eles se tornaram parte do engendramento da
etnocêntricos apresentam-se bem equipadas com álibis culturalistas em favor da cultura externa à nação, e a sua história suscita reflexões sobre o papel das
recusa de preocupações políticas. Quero falar contra elas a partir de uma posição tecnologias comunicativas para aumentar e mediar formas de solidariedade social
onde ainda é mais difícil tolerar o velho jogo da autenticidade cultural, sendo os e política para além das comunidades imaginadas, concretizadas por meio das
componentes profanos que compõem a pessoa irremediavelmente diversos. Não aruações quase mágicas da impressão e da cartografia.
há pureza por aqui; há sim uma enorme desconfiança em relação ao ansioso desejo É conveniente lembrar aquele mundo de sons agora que ele quase já não
de pureza, visto como pouco mais do que uma fonte dúbia da legitimidade política existe mais - despachado pelas forças de uma desenfreada íconizaçâo. O legado
mais mesquinha. auricular dos escravos para o futuro também se fez notar pela sua interessante
relação dissonante com os processos de sua própria mercadorização. Esta relação
31. Pnina Werbner e Tariq Modood, orgs., Debating Cultural Hyhridity (Zcd Books, 1997). pode ser definida por meio de um padrão de conflito que revela muito sobre a
32. Médecins sans Frontíêres, World ín Crisís: The Politics ofSurvival ar the End ofthe 20th Century incapacidade do capitalismo para reconfigurar o mundo instantaneamente de acordo
(Rout1edge, 1997).
com o ritmo de seus próprios apetites insaciáveis. Mesmo nas formas fixas e

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I ENTRE CAMPU~ .. Naçoes, curtures e o rasctntc da Raça I I PAUL GILROY I

congeladas demandadas pela industrialização da cultura, a música dissidente e mais velho e sobrecarregado de ética, consolidado por eles, nasceu dos espaços
transcendente foi produzida e despachada de um modo radicalmente inacabado. A públicos encobertos do protestantismo negro, adaptando-se dali em diante em
sua abertura antecipou o envolvimento de audiências remotas. Estas últimas eram termos sistemáticos. Esse padrão tem sido gradualmente subjugado por novas
hábeis em fazer um acréscimo a mais, porém essencial em termos criativos ao uso mercadorias, tecnologias e desejos. Está agora sendo substituído por uma cultura
social, preferivelmente ao consumo privatizado da cultura que poderia ser objetivado de simulação que transforma o valor da negritude nos negócios globalizados da
apenas em parte. Dois aspectos antagônicos da vida social desses objetos informação, do entretenimento e da telecomunicação. A substituição do analógico
específicos tornaram-se entrelaçados. A vida cultural do som gravado não se reduzia pelo digital é um símbolo e sintoma apropriado desses desenvolvimentos. A negritude
às simples relações econômicas nas quais ela se emaranhava. De fato, toda uma vista como abjeta está a ceder lugar firmemente à negritude como vitalidade,
tradição formou-se em torno da idéia de que esta música tinha um valor que juventude eterna, e dinamismo imortal. Atualmente, o corpo ideal do atleta ou
transcendia o dinheiro, para além dos lucros trazidos por ela para aqueles que a modelo masculino negro fornece uma assinatura-chave onipresente para este
vendiam sem atentar para os seus atributos éticos, pensando, por engano, que eles estranho tema. Uma fisicalidade negra exemplar, muda e heróica, foi arregimentada
a detinham por inteiro. com vistas a construir uma versão militarizada e nacionalizada da cultura popular
À medida que este período histórico aproxima-se de seu final, e quando planetária na qual o mundo do esporte conta mais do que a relação flexível e
mesmo os seus melhores aspectos residuais acabam na armadilha da cultura da subjacente improvisada em torno da gestalt da canção e da dança.
simulação e da iconização que causa um impacto corrosivo sobre a memória, o O movimento negro rransnacional, ao qual eu pertencia, era coreografado
tempo e o lugar, tenho plena consciência de ter sido moldado por um movimento tendo como cortina de fundo a violência liberatória anti-colonial da política de
translocal e transcultural, construído numa escala planetária "pós-Bandung'' que Guerra Fria. A solidariedade com aquelas lutas importantes oferecia um
se revelou pelo movimento dessas mercadorias sobrecarregadas. Chamo-as de treinamento obstinado para as sensibilidades pós-modernas emergentes. Esse
"sobrecarregadas" para enfatizar o suplemento histórico que elas carregam a mais, movimento descobriu uma ponte entre o mundo superdesenvolvido e as colônias.
seja em termos de seu uso, seja em termos de seus valores de troca. Para os filhos Ele anunciava as reivindicações políticas resultantes através da linguagem dos
dos colonos pós-coloniais, uma cultura negra utópica que havia viajado do oeste direitos e da justiça. Mesmo quando nos reassegurávamos que estávamos a lidar
para o leste, e do sul para o norte sustentava as verdades de uma história de com os direitos humanos em vez de civis, a tensão em tomo desse débito para
migração que estava emocional e politicamente bem à mão, mas nem sempre era com a modernidade era claramente evidente. Os direitos civis derivavam dos
mencionada. Será que talvez, assim como a escravidão, ela encerrasse um trauma Estados soberanos e do governo engenhoso, ao passo que os direitos humanos
que resistia a ser colocado na fala e na escrita? Essa cultura criou necessariamente buscavam sua legitimação junto a outras fontes que eram em geral mais de
uma nova mídia comunicativa, empregou novos vetares, e entranhou novos ordem moral e espirituaL Eram os direitos pelos quais a arte populista e híbrida
hospedeiros. de Bob Marley e Peter Tosh nos assegurava que valia a pena lutar. As novas
Alertado para a relação específica que esta subcultura havia estabelecido tecnologias do ser livre negro pegaram os ventos pós-coloniais e foram assopradas
entre a arte e o artcfato, acumulei pilhas de discos de vinil e mergulhei nas cenas para lá e para cá, encontrando lugares de descanso inesperados, porém férteis,
efêmeras e desconceituadas que os cercavam. Eu poderia e provavelmente deveria distanciados dos territórios onde antes existiam fazendas monocultoras. Elas
ter parado no momento em que o papelão impresso e ilustrado que embrulhava a criaram e comunicaram uma ecologia de pertencimento de teor anti-nacional e
música tomou-se quase tão interessante para mim quanto os sons inscritos na transnacional. Alimentaram um antí-capitalismo vernacular e, mais importante
superfície sulcada do plástico enfiado dentro da sua capa sedutora. Em vez disso, ainda, nutriram um corpo de idéias críticas distintivas com respeito ao lugar da
fui adiante, ávido por compreender a arquitetura completa da formação não-nacional, "raça" em relação ao objetivo da democracia e aos desenvolvimentos da história
cultural e política na qual se inseriam esses produtos em sua integridade, recusando da qual a África e os africanos foram excluídos pela lei não sentimental, lei esta
o seu status oficial de artigos vendáveis e transitórios. O padrão comunicativo, expressada de forma tão memorável por Hegel no momento em que a geografia

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I ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça I I PAUL GILROY I

se tomou o anfiteatro natural para que o drama da História fosse representado: Em oposição àquele sentido inútil de processo cultural, devemos reconhecer e
"neste ponto deixamos a África para não mencioná-la mais't." enfrentar os argumentos eloqüentes que têm sido feitos sobre a impossibilidade de
Estas observações têm o propósito de salientar que as teorias da intercultura se escapar do etnocentrismo, e sobre a necessidade de se ficar constrangido à
e da multicuitura que estão agora à disposição não contribuem para que alcancemos cultura. Esses argumentos asseveram uma cisão nítida e lógica entre as ligações
metade das estórias que precisamos levar em consideração. Talvez não venha a étnicas específicas, que são vistas como inevitáveis e desejáveis, e as forças viciosas
ser motivo de controvérsia, sugerir que a globalização precisa de uma periodização que se formam sob as bandeiras da "raça". Se esses dois fenômenos essencialmente
mais longa e mais cuidadosa do que aquela feita até o momento. Contudo, ela distintos estão vinculados, há quem nos diga que isto se dá por puro acaso. Uma
também precisa tornar-se parte de um ajuste de contas com a modernidade numa longa linhagem de reconhecida autoridade que nos vem desde Levi Strauss é
escala planetária em vez de numa escala provinciana, centrada na Europa. Esta reivindicada para sustentar esses argumentos que escondem em geral a sua própria
última tarefa requer a especificação das modernidades imperiais e coloniais, assim orientação política atrás de uma sofisticação enganosa que caracteriza o verdadeiro
como modernidades da conquista e da fazenda escravista. A questão da viagem é especialista em matéria de diferença." O desejo por um cosmopolitismo arraigado
com freqüência deixada para as margens do povoamento, o qual proporciona a opõe-se a uma rejeição trivial e tão-somente política do racismo. Declara-se aqui
premissa da vida cultural. Toma-se também atributo das pessoas marginais: que o mesmo motivo está na origem das objeções de princípio às investidas do pós-
migrantes e refugiados. Na verdade, a idéia de que a cultura pode viajar encontrou modernismo e dos estudos culturais banais.
uma audiência receptiva em tempos recentes, em particular na classe internacional Em conclusão, quero tratar do pessimismo de Richard Rorty, cuja posição
dos países superdesenvolvidos. Esta destcrritorialização tem rendido reflexões, influente reduziu nossas opções a uma escolha tensa entre privilegiar o grupo ao
mas como sempre fica a sugestão de que elas têm sido compradas a preços ínfimos, qual pertencemos ou pretender uma "tolerância impossível" em relação às práticas
e realizadas com facilidade excessiva. A cultura perde as suas qualidades adesivas repugnantes de outros a quem não precisamos justificar nossas crenças." Não
e a romantização do deslocamento é um perigo persistente. Isso pode se combinar seria preciso dizer que não é obrigatório pertencer a um desses grupos singulares
de um modo desastroso com um esquecimento intencional a respeito da força e abrangentes que sempre pode reivindicar uma fidelidade especial e fundamental
constitutiva e brutal do poder imperial e colonial. A menos que sejamos cuidadosos, para si, liquidando todas as outras pretensões em disputa. É mais importante observar
nossas reformas do duradouro esquema hegeliano acabarão por amoldar a cultura que grupos diferentes constituem-se em bases diferentes que correspondem às
às fendas das fortificadas agregações dos Estados-nação ordenados em campos, várias frequências de tratamento que nos tocam e formam nossas identidades
que forneceram previamente os seus repositórios originais. sempre incompletas em um campo instável. Em oposição a um etnocentrismo
Há mais a fazer para que abandonemos as ilusões que se seguem a uma apriorístico, eu diria que as raciologias e os nacionalismos promovem, e podem
compreensão sedentária de como se faz a cultura." Não precisamos nos satisfazer mesmo produzir, certos tipos bem específicos de coletividade, em especial aquelas
com um posto de descanso à beira da estrada, acenado pela idéia de culturas que são hierárquicas, autoritárias, patriarcais e fóbicas em relação à alteridade.
plurais. Uma teoria de culturas relacionais e de cultura como relação representa Ficamos fragilizados ao deixar de enfrentar os nacionalismos como um poder
um lugar de descanso bem melhor. Essa possibilidade tem sido impedida nos tempos específico em termos históricos, o qual vincula as patologias dos movimentos racistas
presentes pelas invocações banais de hibridismo, nas quais tudo se toma igual e contemporâneos à história da raciologia européia e do absolutismo étnico. A referida
continuamente intermisturado, combinado numa impossível consistência invariável. recusa de encarar as qualidades específicas dos discursos raciologicos, as
solidariedades e os modos de pertencimentos promovidos por eles, e as formas de

33. G W. F. Hegel, The Philosopky of History, tradução de J. Sibree (Dovcr Publications, 1956), p.
99. 35. Clifford Geertz, "The Uses of Diversity", Michigan Quarterly Review (1986).
34. Clifford, Routes. 36. Richard Rorty, Objectivity, Relattvtsm and Truth (Cambridge University Press, 1991).

I 324 I I 325 I
ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

parentesco que eles tanto constroem como projetam, compõe o problema. Os para várias formações discretas, impermeáveis, e ao final das contas, incompatíveis.
"etnocentrismos" moderados e valiosos que, como nos dizem, não podemos e não Nos dias de hoje, cada um é em geral compreendido como um mercado em si
devemos dispensar, mostram-se em toda parte zelosamente compatíveis com as mesmo por inteiro.
formas palingenéticas do ultranacionalismo populista que representa o cerne mítico O estranhamento em relação ao Estado-nação tem se consolidado através
de um genérico mínimo fascista." de um sentimento contemporâneo no qual o compromisso com a nacionalidade
A contraposição piedosa entre o etnocentrismo bom e inevitável e o racismo como uma comunidade dominante e imbuída de ética ou uma comunidade étnica
lamentável, porém excepcional, é uma charada vazia favorecida por aqueles que tomou-se difícil de manter. As tecnologias políticas que demandam o pertencimento
mistificam e se esquivam das responsabilidades morais e políticas que cabem aos nacional são muito diferentes hoje em comparação com o que eram na era da
comentaristas críticos nesta área especialmente difícil. Devemos aceitar que a cultura industrializada. Contudo, o sonho de culturas naturalmente nacionais ainda
cultura pode ser racializada e nacionalizada? As escolhas são claras. Os grupos está vivo em meio a uma fantasmagoria de tradições inventadas que não permitem
étnicos são esmagadoramente nacionais e "raciais"? E em que escala a a separação meticulosa entre os nacionalismos cívicos (bons) e os nacionalismos
solidariedade de grupo deve ser praticada e reconhecida: sala de aula, rua, étnicos (maus). A ressurgência do esporte comercial espetacular no cerne do
vizinhança, cidade, região, estado; parentesco de sangue, parentesco de espécie, "setor televisivo de infoentretenimento" é o aspecto mais expressivo do seu poder
parentesco planetário? Mesmo se aceitássemos a forma de pcrtencimento a um renovado.
"etno", de teor unitário e fundamentalista, esboçada por Rorty c transformada em Ingressamos naquilo que é, de acordo com os padrões hegelianos, uma
catecismo por seus discípulos menos sofisticados, não haveria nada a sugerir que condição da pós-História, isto é, quando a África e seu destino contemporâneo
os limites em torno daquela versão de coletividade monadística devessem conseguem emergir como questões políticas e morais significativas. As histórias
inevitavelmente coincidir com as fronteiras políticas arbitrárias dos grupos "étnicos" da modernidade imperial que se seguirão a esse ajuste rerroarivo oferecem uma
contemporâneos. Pertencer-juntos pode fazer sentido seja abaixo ou acima daquele alternativa oportuna à centralidade da Europa com as suas noções demasiado
limiar fatal, e a política, despachada pela raciologia, precisa ser reativada, e não inocentes e obstinadamente centradas na fantasia de progresso sem catástrofe.
liquidada. Esta disputa sobre o status da cultura e suas pretensões sobre os Numa resposta relutante a essa nova condição, o Estado-nação ainda tem sido
indivíduos acarretam mais uma rixa em relação ao modo como a própria política defendido como a versão menos ruim da prática governamental. Ele é ainda
deve ser compreendida. apresentado como o único arranjo disponível para organizar a tarefa essencial de
Em oposição à moda que remeteria estes conceitos irmãos - política e cultura administrar a justiça e orquestrar projetes de longa duração com relação ao
- para domfnios separados e contraditórios, quero ligá-los, ou mais precisamente, reconhecimento cultural e à redistribuição económica. Em minha opinião, trata-se
apreciar o fato de que eles já estão ligados em termos inescapãveis, tanto pela de uma resposta demasiado defensiva, sem imaginação e desnecessariamente
idéia da arte politizada, como pela noção de política do cotidiano, noção esta agora pessimista. Ela não encontra nada de valia na história que liga o comércio moderno
em desuso. A política ainda é concebida em geral como se ela também existisse à formação e ao desenvolvimento do pensamento de raça, ou na sucessão
exclusivamente dentro dos confins de fronteiras nacionais fechadas que se alinham extraordinária de movimentos translocais que se estendem do anti-escravismo e
com exatitude àqueles das autoridades govemamentais soberanas. Esta idéia ainda feminismo aos "Médicins sans Frontiêres" [Médicos Sem Fronteiras]. É sintomático
pode se manter firme, mesmo quando a meta oficial do multiculturalismo vem que ela não reconheça nenhuma influência do poder da arte feral, ou de outros
para forçar uma certa reconceitualização na maneira como se compreende o padrões de cultura, solidariedade e afinidade que atuaram, em termos semelhantes
pluralismo político. Nesse caso, a nação emerge como um receptáculo orgânico aos de meus preciosos discos, em órbitas mais largas, encontrando circuitos
translocais, irnpredizíveis e pouco examinados. Uma compreensão pós-antropológica
da condição humana é apenas a recompensa mais básica que aguarda a reanimação
37. Reger Griffin, The Nature ofFascísm (Routledge, 1993). simultânea da cultura política em escalas subnacional e supranacional.

326 327
8
"RAÇA", COSMOPOLITISMO E
CATÁSTROFE

A questão de por que as pessoas amam o que é igual a elas e odeiam o que é
diferente raramente é levantada com suficiente seriedade.

ADORNO

A guerra atual de nossos inimigos é uma luta contra os fundamentos de todas as


nações européias. Um aviador enviado por gangsters políticos que lança suas
bombas sobre os mais belos locais culturais da Europa não sabe o que faz, ele não
tem a menor idéia do que a cultura é de modo geral. E quando, em tempos recentes,
os Estados Unidos chegam a ponto de colocar negros em seus bombardeiros, isto
mostra como aquele país, fundado no passado por europeus, já se perdeu.

AlFREDROSENBERG

"SEMPRE QUE ouço a palavra cultura, eu pego a minha arma". Recordar


estas famosas palavras, proferidas há não muito tempo por um infame nazista,
deve inibir a fluência acadêmica empenhada atualmente em jogar a palavra
"cultura" de um lado para o outro. Suas palavras são citadas aqui a fim de transmitir
um importante convite: elas nos instam a compreender a frágil natureza dos
ambientes políticos que apóiam as culturas de dissidência que têm se constituído a
partir da oposição contemporânea a códigos e hierarquias raciológicos. Refletir
sobre o horrível contexto em que essas palavras foram proferidas pela primeira
vez, e pensar sobre o modelo implacável de instituições que se fixaram ao redor
delas, pode nos ajudar a identificar precisamente as diferentes maneiras que fazem
com que os dissidentes da observância racial ainda habitem um nicho sitiado.
O conflito disseminado entre o neofacismo e seus oponentes democráticos
tem sido expresso em geral como uma luta sobre a cultura e sua relação com
valores fundamentais. Um dos principais arquitetos da destruição de Sarajevo foi
ENTRE CAMPOS .. Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

Nikola Koljcvic, vice-presidente dos sérvios bosnenses e autor de oito livros sobre nazista autodeclarado e, portanto, facilmente identificável, empunha uma arma de
Shakespeare. Conta-se que ele fez da Biblioteca Nacional da cidade um alvo fogo a fim de extinguir a cultura e matar seus portadores e defensores.
específico para ser bombardeado por ela ser um símbolo do hibridismo e da Uma vez delineados os contornos das espécies iniciais de pensamento
fntennistura cultural odiados por ele. Inquietações semelhantes sobre os efeitos ultranacionalista, os primeiros nazistas reivindicaram a cultura para eles mesmos.
corrosivos da mistura cultural são rotina no interior da ultradireita. Por exemplo, o Sua raciologia fez do ariano e do alemão os guardiões históricos da cultura. Eles
conflito cultural tem sido evidente em batalhas recentes na França centradas em selecionavam e julgavam a cultura. Eles avaliavam que raças seriam capazes de
organismos governamentais locais controlados pela neofacista Front Nationale desenvolvimento cultural, declarando que a aparente cultura dos judeus não passava
[Frente Nacional]. A ultradireita desse país tem promovido uma cruzada contra a de uma impostura.' Sua vasta competência antropológica imbuiu-os de confiança
cultura de esquerda subversiva e inconveniente, os imigrantes e outros grupos para decidir que cultura deveria ser promovida e quais de suas formas degeneradas
vistos por ela como estrangeiros ou impatrióticos. A visão da Front sobre uma precisavam ser suprimidas e destrufdas." A necessidade de combater os fascismos
cultura francesa apropriada c purificada fez com que ela se empenhasse em ressurgentcs do nosso próprio tempo serve como um aviso para que estejamos
censurar a escola e outras bibliotecas públicas. Sua utopia ultranacionalista tem se sempre alertados para o lugar preeminente da "raça" na construção e na legitimação
definido contra os atas ofensivos de dissidentes, como foi o caso do grupo de híp- destes juízos culturais e políticos.
hop Nique Ta Mêre, proibido de tocar rap por um juiz em Toulon em novembro de Muito antes dos nazistas, a linguagem cívica da cultura havia se entrelaçado
1996, e o do gerente de um cinema em Vitrolles, perto de Marselha, demitido por com as idéias de "raça" e carãter nacional. Esta interconexão produziu um princípio
se recusar a retirar de cartaz filmes sobre homossexualismo. Também em Vitrolles, de diferenciação que competia com os modelos alternativos proferidos pelas biologias
a Front conseguiu que uma escultura moderna inaceitável fosse levada para o políticas de fins do século XIX. Após 1945, os efeitos do genocídio nazista fizeram
depósito local de entulhos. com que a opinião acadêmica respeitável se tornasse tímida e cautelosa quanto a
A cultura e suas instituições não apenas fomecem o índex para se medir o invocar abertamente a idéia de diferença racial em puros termos biológicos. Nessas
declínio nacional e o renascimento, mas também proporcionam o campo de batalha condições, o conceito de cultura forneceu um vocabulário descritivo alternativo e
principal onde os fascistas buscam estabelecer sua autoridade moral. O historiador um idioma político mais aceitável para tratar das variações geográficas, históricas
Saul Priedlãnder chamou a atenção para a importância dos conflitos culturais que e fenotípicas que distinguiam a desigualdade racializada e simplificá-las. Reelaborada
caracterizaram os primeiros estágios da violência anti-semita na Alemanha nazista. e repensada de acordo com os antigos imperativos da razão antropológica
=> domínio cultural, escreveu ele, "foi o primeiro de onde os judeus (e os pragmática, esta versão de cultura suplementou e depois suplantou a raciologia
'esquerdistas') foram expulsos em massa".' Sugerir que esses conflitos em torno que havia sido desacreditada pela implementação geral da raça-higiene
ia cultura levaram inexorável e irreversivelmente aos portões da fábrica de morte industrializada.' Nestas novas circunstâncias, as teorias culturalistas sobre a
seria banalizar a história que se seguiu a eles. Contudo, os conflitos sobre valores diferença racial, as quais estiveram presentes por muito tempo, tendo sido, porém,
culturais, hierarquias, instituições c relações podem ainda funcionar como um silenciadas pelos sucessos conspícuos da biologia política, poderiam uma vez mais
aarômetro grosseiro para detectar mudanças de níveis de pressão política. Sua
ecente história na França neofascista e em outros lugares sugere que precisamos
tgora de um retrato mais complexo destas batalhas do que aquele em que um 2. George L. Mosse, Nazi CU/fure: A Documentary Hisrory (Schocken Books, 1981 l.
3. Max Weinreich, Hitler's Professors: The Part of Scholarship in Germany's Crimes Aga/nst the
Jewish Peop/e (Yiddish Scientifie Institute, 1946), em especial capítulos 3-10.
4. George Stocking, org., Volkgeist as Method and Ethic: Essays 01'1 Boasian Ethnography and
Saul Friedlãnder, Nazi Germony and the Jews, vol. 1: The Years of Persecution, 1933-39 GermanAmhropologica/ Tradition (University cf wisconsiu. 1996); c Suzanue Marchand, DOlVn
(HarperCollins, 1997), p. J 2. Ver também Stephanie Barron et al.. "Dcgcnerate Art": The Fale of From Olympus: Archaeology and Philhellenism in Germany, 1750-1970 (Princeton University
thc Avant Carde in Nazi Gennany (Los Angeles Conty Museum of Art, Abrams, 1991). Press, 1996).

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I ENTRE CAMPOS .. Nações, CuLturas e o fascínio da Raça I I PAUL GIL ROY I

alçar vôo. As variedades de violência e brutalidade sancionadas por elas não foram cultura é desenvolvida de maneira apropriada e construtiva num nível diferente de
menos bárbaras do que haviam sido as expressões genocidas da bíopolrüca. É abstração. Aqui ela não precisa mais ser hierárquica, amigável em relação à raça,
preciso repetir que a "raça" proporcionou o denominador comum para todas essas ou étnica, e deve permitir que problemas éticos e estéticos mais óbvios reapareçam
operações; entretanto, suas associações primárias, porém, ambivalentes com a com a consolidação de formações democráticas e cosmopolitas que não são apenas
cultura não têm sido sempre reconhecidas, e muito menos submetidas à análise humanistas, mas também híbridas, impuras e profanas.
cuidadosa que elas merecem.' Com estas preocupações em mente, este longo capítulo começa com uma
É claro, o status controvertido do conceito de cultura tem sido bem lembrança não apologética de como a cultura tem sido associada profundamente
compreendido pelos analistas com posições políticas diversas. Mais de um século com a "raça", dirigindo-se em seguida para uma questão relacionada: não se trata
de debate explícito sobre as dimensões culturais de poder, governo nacional e do papel da "raça" e da raciologia na destruição da cultura, mas sim da significância
antagonismo de classe não obscureceram o fato de que a cultura detém um outro prospectiva da cultura cosmopolita caso a "raça" seja apagada ao final. O
conjunto de significados que dá apoio, mas também resiste aos conflitos políticos reconhecimento de ma receosa antipatia nazista com relação à cultura, constante
que emergiram com sua pluralização, racialização e etnificação. Em inglês, pelo da abertura deste capítulo, não deve por conseguinte ser mal entendido. A
menos, ainda que fortemente inflectido pela classe e suas hierarquias, o conceito reconfiguração da cultura de acordo com padrões racializados, demandada por
ajudou a indicar as alternativas benéficas e atrativas à anarquia, ao barbarismo, ao governos totalitários, dá lugar a uma história extremamente complicada, cujas
niilismo e à anomia. Ele não sugeriu a aplicação mecanicista da razão modema e implicações são significativas para a maneira que o relacionamento entre os regimes
desumana, mas sim o crescimento orgânico da vida social dentro de fronteiras normal e excepcional ainda está para ser entendida.
territoriais estáveis. Este conceito pode ainda trazer à mente a promoção da Apesar de elementos de cultura, estilo, arte e governo fascistas estarem
mutualidade e da criatividade em um regime imaginativo que se estenda em direção presentes em termos residuais, tanto dentro como fora da democracia
à realização de uma verdade, de beleza e direitos coletivos. Entretanto, como Robert contemporânea, a emergência que os alimentava em períodos anteriores esvaneceu-
Young demostrcu, mesmo aquela energia e história da cultura foram identificadas se. A emergência arual não é mais uma condição aguda e excepcional, ou uma
como produtos de uma grande dialética racial entre os instintos disputantes do fase crítica existente por um certo período até que as coisas revertam ao seu
hebraísmo e helenismo." estado mais estável e normal. Esta emergência é uma condição crônica e rotineira
No capítulo 2, vimos como esta compreensão modema e imperial distintiva a que nos habituamos cada vez mais. Nossos governos nacionais com sua luta
de cultura foi nacionalizada e particularizada no espaço soberano e imperial das supranacional contra o terrorismo, o fundamentalismo e a desordem, bem como
nacionalidades "encampadas''. Traçamos parte de seu circuito transnacional e nossas paisagens midiáticas rotineiramente transnacionais, obrigaram-nos a aceitar
consideramos algumas das conexões comunicativas - tanto negativas, como o lugar do excepcional junto com o normal e em seu interior. Estas duas condições
positivas - estabelecidas por ela. Precisamos agora nos voltar para uma direção podem coexistir facilmente num mundo onde as culturas cosmopolitas e itinerantes
diferente. Nossa preocupação com humanismos morais e políticos, ainda que com são sitiadas e, algumas vezes, engolfadas por nacionalismos e pelo absolutismo
as variedades raras e delicadas que só podem ser encontradas nas mandíbulas étnico. Enquanto civilidade, criatividade diária e esperança, essas culturas são postas
mesmas da catástrofe, exige que consideremos o que acontece quando a idéia de em confronto com o sistema de política formal e seus códigos representacionais
entorpecidos. Suas aspirações democráticas são contrapostas pelos valores
dcsumanizantes do comércio multicultural e pela abjeção da vida urbana pós-
5. Frantz ~auon, :'Racism and Cult~re", in Toward the African Revolution: Poíitical Essays, tradução
industrial com a qual elas estão entrelaçadas. Nestas condições, a cultura é assaltada
de H. Chevalier (Monthly Revicw Press, 1967); este alugo é lima interessante cxceção a essa
omissão. por movimentos politicas e forças tecnológicas que trabalham em prol do apagamento
6. Robert Young, Colonial Desire: IIybrldity in T!JeOI)', Cutture, and Race (Routledge, 1995), pp. de considerações éticas e do desaparecimento das sensibilidades estéticas. O poder
50-89.
ressurgente da linguagem racista e racializante - incluindo-se aqui os anti-

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY I

semitismos modernos, os ultranacionalismos e seus discursos correlatos - constitui urgente de manter um sentido da antinomia irredutível da cultura ocidental - a
uma forte ligação entres os riscos de nossos tempos perigosos e os efeitos dialética do Iluminismo desta cultura - e mais importante ainda, tornar aquela
duradouros de horrores passados que continuam a nos assombrar. apreensão política e eticamente útil para o desenvolvimento de uma democracia
agonística e destituída de "raça". Com base nestes indicadores, podemos aspirar a
A LELADADE NEGATIVA DO MODERNISMO À MODERNIDADE formas de democracia capazes de resistir à racialização e suas hierarquias distintivas
e de responder ao forte apelo dos nacionalismos com uma utopia cosmopolita.
A prática artística modernista cresceu onde as contraculturas modernas Wright articulou este objetivo por meio de questões dirigidas a seus pares no pós-
haviam criado raízes. Foi realçada pelo fato de que estava destinada a ser para guerra que então lutavam com as tarefas práticas envolvidas na luta contra o
sempre impura, sendo assim cronicamente ilegítima de acordo com os padrões colonialismo e na construção de instituições pós-coloniais nos países outrora
etnocêntricos da crítica cultural nacionalista. Os nazistas denunciaram suas colonizados, e recentemente independentes:
expressões degeneradas de uma "coisa pela metade" repulsiva, mas tão-somente
leal à arte, o modernismo divertiu-se com o potencial transgressivo que lhe foi Como o espírito do Iluminismoe da Reformapode se estender agora para todos os
legado por sua constituição híbrida. O modernismo foi reconstituído e redefinido homens?Como este benefícioacidental pode se tornar global em seus efeitos?Esta
é a tarefa que a história agora nos impõe. É possível se encontrar um caminho
uma vez que se considerou rompido o laço entre o progresso e a evolução, sobretudo
purgado de racismoe de lucros, para combinaras áreas racionais e os funcionários
em função do cataclismo provocado pela guerra de 1914-1918. Essa cultura racionais da Europa com aqueles da Ásia e da África?fl
modernista surgiu com uma força profana muito capacitada a romper com os elos
da miséria, consolação e resistência que caracterizavam situações de inexistência A trajetória intelectual e política de Wright revela uma espécie de complexa
de liberdade igualmente modernas. Suas formas expressivas e criativas, que dissidência surgida na Europa e em suas colónias após 1945. Uma compreensão
anunciam jocosa mas sabiamente, que não têm direito de existir, recusando-se, da relação fundamental da cultura moderna maculada com a violência racializada
porém, com obstinação a morrer, figuram como testemunhas das frágeis verdades e o terror era central à cultura de dissidência criada por ela. As percepções de
humanas da modernidade catastrófica a que recorro neste ensaio para conectar a Wright, comuns entre muitos da geração Bandung - a elite pós-colonial encarregada
colônia e a metrópole. de aplicar as lições morais e políticas a serem aprendidas com a vitória sobre os
A transformação da prática de crítica cultural de maneira que corresponda nazistas aos processos de descolonização e desegregação - haviam sido
a este novo objeto requer uma mudança considerável de perspectiva. Entre outras alimentadas devido a compreensões ainda mais perturbadoras. A ciência racial, a
coisas, é preciso que nos tornemos mais sensíveis em relação à existência de razão racializada e a imposição de suas fronteiras em torno do status humano
contraculturas étnicas e racializadas da modernidade, e mais atentos às condições oficial não eram aberrações diretas, ou simples de padrões mais nobres ou
sistêmicas em que elas têm sido capazes de se reproduzir, senão exaramente de consistentes." Definições mais eqüitativas e inclusivas de humanidade não poderiam
prosperar. Frente à condição precária e ameaçada dos valores culturais, estes ser trazidas à existência por meio de uma declaração positiva. Isto era verdade
ajustes não precisam significar que as críticas da modernidade perdem sua força. especialmente quando os objetivos mais preciosos, tais como a liberdade e a igualdade
Escrevendo em meio à atmosfera gélida da Guerra Fria, o expatriado do Atlântico
negro Richard Wright delineou uma "lealdade negativa"] em relação à modernidade
que, tal como ele pressentia, poderia se tornar compatível com o trabalho difícil e 8. Ibid., p. 64.
9. Emmanuel Chukwudi Eze, "The Color of Reason: The Idea of 'Race' in Kant's Anthropology",
in Anthropology and lhe Gennan Enlightenment: Perspectives on Humanity, org. Katherine FaulI
(Bucknell University Press and Associated University Press, 1994), pp. 200-241; Berel Lang,
7. Richard Wright, ''The Psychologioal Reactions of Oppressed Pcople", in White Man Listenl "Genocide and Kant's Enlightenment", in Act and Idea ín the Nazi Genocide (University of
(Anchor Doubleday, 1964), pp. 16-17. Chicago Press, 1990), pp. 169-190.

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL lilLRUY

haviam sido rebaixadas em termos de substitutivos racializados injustos, promovidos modernas do século XIX. Atada às linguagens do Iluminismo, do progresso, da
pelas operações do império e da colônia. Se a extensão do processo implacável, ordem e da saúde social, esta combinação permitiu conferir uma sanção moral e
identificado de início por Wright e seus pares, já foi agora observada por inteiro, prática aos racismos genocidas muito antes que metas deste tipo fossem
deve-se apelar para algo mais do que uma defesa rotineira dos mesmos valores abertamente pronunciadas como objetivos governamentais na própria Europa.'?
morais e culturais que brilharam com muito mais intensidade ao serem confrontados Este argumento precisa ser repisado porque a complexidade filosófica e histórica
pelas barbaridades que podem ter sido confundidas no passado com a sua simples deste processo está sempre a escorregar da mente crítica até mesmo agora. Ela
negação. Podemos nos desprender da conveniente fantasia de que a civilização e se esquiva aos métodos respeitáveis e repele o olhar fixo de investigações cuja
o barbarismo se opõem wn ao outro num arranjo ou conflito, feito à base de uma premissa é a legibilidade do mal e a transparência do irracional. Observar o poder
sustância congelada e ordenada, somente se adotarmos os contornos animadores substantivo da raciologia pode tomar óbvio o que era antes incompreensível.
de um antagonismo dialético, cuja promessa é a resolução. Isto explica em parte por que a "raça" pennanece um problema incômodo
Conforme se mostrou no capítulo 2, grande parte da autoridade especial para as humanidades. Ê claro, a tarefa de explicá-la no mais das vezes é atribuída
associada ao termo "cultura" na Europa modema havia se desgastado pelos esforços a negros, judeus e outros Outros como se fosse nossa propriedade intelectual
devotados à manutenção da civilização colonial. As histórias sangrentas que especial, ou alguma responsabilidade "étnica" exclusiva, associada às histórias de
permitiram aquela observação têm sido obrigadas a reconhecer o poder da sofrimento. As humanidades ainda estão dominadas por suposições particularmente
raciologia. Elas revelaram repetidas vezes as cumplicidades da civilização com a liberais e, como eu diria, suposições por vezes etnocêntricas sobre o que conta
barbárie, da racionalidade com o terror, e da razão com a irracionalidade. Por mais como conhecimento e como a renúncia à particularidade se encaixa na busca da
refinadas que sejam, as histórias locais dos malogros europeus não constituem verdade. Este não é um problema somente de judeus ou negros, mas de qualquer
fontes suficientes de percepção quanto a estas questões translocais. Elas se esforçam um que rejeite a idéia de que o espaço não demarcado de onde os protocolos
em alcançar um equilíbrio entre dois pontos de vista. De um lado, necessita-se de acadêmicos nos obrigam a falar não cobre nada pelo empréstimo de sua autoridade.
uma fidelidade meticulosa para com verdades históricas incómodas, que por vezes Agora que as acusações irrefutaveis de "correção política" colocaram um número
parecem provincianas. De outro lado, há pretensões maiores e mais audaciosas grande demais de gente direita em posição incômoda e na defensiva em relação
feitas a partir de abstrações que podem ter nascido dos motivos mais nobres e que aos padrões profissionais, bem como em relação à compatibilidade delas com o
se voltam para a emergência de um universalismo misantrópico, que às vezes, trabalho interdisciplinar sério, a "raça" alcançou o status de um segredo aberto. A
porém, parecem vazias. Embora o primeiro permaneça um aspecto essencial das palavra cria um catálogo de enigmas intelectuais e políticos que é exibido
exigências de justiça, ele acaba mutilando o poder quase alquímico dos discursos intermitentemente (às vezes de modo proeminente), mas ainda assim é
raciais de transformar um elemento de cada combinação infeliz em outro. As sistematicamente negligenciado, esquecido, e ignorado num silêncio embaraçoso a
últimas redimem-se por meio de seu intento cosmopolita e de uma habilidade para menos que as acusações ganhem corpo e a pesquisa acadêmica contemplativa e
responder à força prescritiva da particularidade absoluta, em especial quando esta
se articula com a linguagem da incomensurabilidade étnica e, por conseguinte,
cultural.
10. Helmut Bley, South-West Africa undcr Oerman Rule, 1894-1914, tradução de Hugh Ridley
A tensão entre estas duas ênfases aparece à sombra de uma compreensão (Northwestern University Press, ]971); A. F. Calvert, South-West Africa: During the German.
ainda mais chocante. Ela representa uma fonte profunda de vergonha e de Oocupation (T. Werner Laurie, 1(15); I. Goldblatt, History of South West Africa, [rom lhe
desconforto para todos aqueles que pretendem praticar a lealdade negativa de Beginníng of the Ninetcenth Century (Juta end Co., 197 l}; L. H. Gann e P. Duignan, lhe Rulers
ofGerman Africa, 1887-1914 (Stanford University Press, 1(77); Jon Swan, "Ibe Final Solution
Wright. Apesar de incorrer no risco de simplificarem demasia, deixe-me relembrar ín South West Afuca", Quanerty Joumal ofMilitary Hístory 3, 4, pp. 36-55; Bvelyn Nicodemus,
outro argumento já mencionado em capítulos anteriores. Os antigos mitos, medos "Carrying the Sun on Our Backs", in M. Catherine de Zcgher, Andrea Robhins e Max Becher,
e tipologias raciais pré-científicos foram incorporados pelas ciências raciais orgs. (The Kanaal Art Foundation, 1994).

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ENTRE CAMPOS •• reaçoes, curturas e o j-ascrmo ela Raça PAUL GILROY

desinteressada capitule em relação às exigências ruidosas da diversidade outro lugar isto se evidencia de modo tão contundente e articulado como no poema
indisciplinada e do multiculturalismo insurgente. "Tyaroye" de Senghor, uma expressão concentrada de sua revolta contra o
A história da relação entre tipologias raciais, diferenças culturais e matança massacre francês de soldados coloniais senegaleses em 1944, recém-retomados
em massa é extensa o bastante para permitir a continuação destas investigações após passarem quatro anos em prisões nazistas. II
sobre "os talentos fatais" do homem civilizado. Essa história confunde as linhas Uma sensibilidade semelhante afloraria mais tarde entre outros líderes da
audaciosas que gostaríamos de colocar entre o industrial e o pré-industrial, o primitivo geração Bandung para incriminar a lógica implacável do desenvolvimento econômico
e o moderno. Nessa zona, as palavras do nazista sobre pegar sua arma podem capitalista e os insucessos das tradições de compreensão política, tradições estas
servir a uma função mnemônica vital. Elas nos ajudam a compreender a energia de teor liberal complacente e obstinado quanto aos códigos de cor. Esse argumento
etnocida lançada na conjunção da raciologia e da cultura. Podem ser usadas como pode se complicar e estender-se ainda mais, se fizermos um outro desvio turno à
um meio de relembrar como as questões de vida e morte tornaram-se intrínsecas destinação preferida destes pensadores: um humanismo verossfmil, pós-
aos desdobramentos daquela palavra sobrecarregada, a palavra "cultura". antropológico e resolutamente não racial. Isto implica considerar o caráter ético e
normativo de uma cultura cosmopolita distintiva, manifesta nas vidas e nas
TESTEMUNHANDO A CATÁSTROFE experiências dos viajantes do Atlântico negro dos tempos de guerra e de seus
sucessores: trabalhadores, assim como estudantes. Estes podem ter sido fugitivos
A tensão entre histórias locais e abstrações cosmopolitas tem sido também dos Estados Unidos em busca de cultura e de se libertarem do Jim Crow; soldados
resolvida em histórias de viagens e de viajantes que contribuíram para o ideal em busca da cidadania e do reconhecimento que eles imaginavam poder encontrar
cosmopolita a partir Montaigne.!' As experiências translocais de intelectuais negros apenas arriscando suas vidas no campo de batalha em defesa de seus países; ou
de elite que desembarcaram na Europa do entre guerras para exigir as recompensas numerosos outros viajantes do pós-guerra, alguns dos quais foram colhidos em
culturais representadas por uma educação na metrópole já foram invocadas para relações extremamente complexas de afiliação com a Europa e suas culturas ao
atualizar e refinar esta precisa possibilidade. Chamei a atenção para a sua longo de sua participação em atívidades de restauração da ordem após o conflito
complexidade e os distintivos acentos humanistas audíveis nas críticas da com Hitler. Todos estes grupos depararam-se com aspectos do fascismo. Suas
modernidade ocidental feitas por seus membros internos. Sua compreensão das reflexões e comentários sobre as precondições, características e conseqüências
oportunidades sem precedentes abertas pela modernidade ocidental e sua frustração do fascismo conduziram-nos rumo a direções interessantes que podem oferecer
com o prejuízo que a raciologia trouxe a ela foram profundas. Argumentei também um ponto de apoio para a constituição das identidades européias de hoje e do
que as teorias de cultura, direito e justiça que eles recuperaram, além de as terem futuro multicultural da Europa de amanhã. De um modo bem sucinto, a história
bravamente oferecido ao mundo descolonizante da Guerra Fria, haviam se formado dele não começa com a II Guerra Mundial, mas sim com a ruptura cultural e
a partir de suas observações sobre a consolidação do fascismo, feitas antes da histórica representada pela I Guerra.
eclosão do conflito, e com base em suas experiências na guerra contra aquele. De A grande expansão das linhas de frente de tropas coloniais na guerra de
modo especial, a sua investigação das conexões entre as abominações perpetradas 1914-1918 é tão conhecida quanto a sua significância fundamental para os
pelo hirlerismo e aquelas forjadas pela ordem colonial, a qual lhes trouxe tanto americanos negros. Em geral considera-se que a importância deste segundo aspecto
sofrimento como benefício, engendraria recursos morais competentes. Em nenhum consista na migração interna em larga escala para o norte que acompanhou o
envolvimento americano na guerra, além das mudanças marcantes na atmosfera

11. S. M. Islam, The Ethics of Travel: From Marco Palo to Kafka (Manchester University Press. 12. L. S. Senghor, "Tyaroye," "Hosties Noíres", in Poêmes (Senil, 1984); ver também Myron J.
1996); James Clifford, Routes: Travei and Translation. in the Late Twcmíeth. Century (Harvard Echenberg, "Tragedy at Thtaroye: The Senegalese Sotdíers' Ilprising of 1944,", in P. Gutkind et
University Press, 1997). al., orgs., African Labor History (Sage, 1978).

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o ras ctntc da Raça PAUL GILROY

política que saudaram as tropas em seu retorno." Em contraposição à idéia de mais cosmopolitas. Independentemente da idéia óbvia de que a prontidão para
que o conflito na Europa estivesse longe das preocupações dos afro-americanos, sacrificar a vida em defesa de interesses nacionais era um recurso para retardar a
alguns analistas influentes identificaram de imediato a importância moral e histórica idéia de cidadania negra, subversiva em definitivo, suas palavras também transmitem
da guerra com a Alemanha. Em seu livro A África e a Guerra, publicado em uma compreensão mais significativa de que a democracia não era divisível. Há
1918, Benjamin Brawley afirmou que "a grande guerra dos nossos dias deve aqui algumas mudanças significativas de escala conceituaI e imaginativa. Primeiro,
determinar o futuro do Negro no Mundo";" e em um notório editorial em The os conflitos de americanos negros foram traduzidos com audácia em questões
Crisis, Du Bois, que vivera na Alemanha por um longo período, identificou com para o mundo como um todo. Segundo, Du Bois articulou uma dimensão
orgulho as origens francesas e huguenotes, em vez de anglo-saxãs, de seus próprios transnacional para a política afro-americana que se associa de perto com a crescente
ancestrais europeus. Embora Du Bois tivesse já há tempos reconhecido o caráter perspectiva pan-africana. Isto se tomou urgente no contexto resultante da guerra
imperialista da guerra, ele explicou detalhadamente as oportunidades que ela poderia, com a proposta de que as colônias africanas da Alemanha, recentemente liberadas,
no entanto, trazer para melhorar a posição desesperadora de sua comunidade. deveriam se tomar o núcleo de uma nova pátria africana. Esta sensibilidade afloraria
Numa mudança substancial em termos de orientação política da revista, que é nos quatro congressos pau-africanos realizados entre 1919 e 1927, três dos quais
citada às vezes como evidência da fraqueza e vaidade de Du Bois," ele explicou ocorreram em solo europeu, o que era de todo congruente com os argumentos
que a participação dos americanos negros no conflito tinha de ser séria, mesmo semelhantes de Marcus Garvey em defesa daquilo que ele chamava de um "ajuste
que eles não tivessem nenhum interesse óbvio ou imediato nisto: racial internacional" em prol do negro. 17
Du Bois chegou na França, em dezembro de 1918, como representante da
Esta é a crise do mundo. Por todos os anos que virão, os homens apontarão o ano Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (ANPPC) para investigar
de 1918 como o grandeDia da Decisão,o dia que o mundo decidiuse iria se submeter o tratamento dado a soldados negros em tempo de guerra e também para coletar
ao despotismo militare a uma paz armada sem fim - se isso pudesse ser chamadode
material que pudesse ser usado para escrever uma história da guerra. Apenas
paz - ou se eles deveriampor fim à ameaçado militarismogermânico e inaugurar os
Estados Unidos do Mundo. uma pequena proporção de tropas afro-americanas havia chegado a posições de
Nós da raça de cor não temos um interesse pequeno no resultado. Aquilo que os combate, sendo que a maioria foi muito maltratada pelo exército dos Estados Unidos.
a
alemães representam hoje significa morte para as aspirações dos negros, e de todas As realizações de alguns poucos, em especial dos quatro regimentos da 93 divisão
as raças mais escuras, por igualdade, liberdade e democracia. Não vamos hesitar. que, em um dos mais estranhos desdobramentos de guerra, lutaram bravamente
Vamos, enquanto esta guerra perdurar, esquecer nossas queixas específicas e cerrar
sob a bandeira francesa, oferecem o melhor ponto de partida para se considerar as
fileiras com nossos companheiros cidadãos c com as nações aliadas que lutam pela
democracia.Não é um sacrifício pequenoque fazemos, mas o fazemoscom alegria grandes mudanças históricas e culturais desencadeadas na vida e na mente da
e vontade com nossos olhos erguidos para as montanhas." Europa pela passagem do negro americano. Não se trata somente do fato que os
soldados negros que lutaram na França trouxessem de volta um conhecimento
Du Bois pode bem ter escrito estas palavras tendo em mente uma militante negro de como o regime americano de estratificação racial havia se tornado
incumbência dos organismos de inteligência do exército dos Estados Unidos, mas estreito e específico, mas também que eles sofreram diversas influências políticas
é de chamar a atenção a sua substituição de "América" por "Mundo". Isto permite e culturais oportunas, incluindo-se aqui o comunismo bolchevique e o nacionalismo.
perceber a tensão entre seus comprometimentos locais, provincianos e aqueles O verão sangrento de violência nunca vista contra o negro, que os saudou em seu
retorno aos Estados Unidos, imprimiu uma nova significância a essas descobertas,
13. Sir Charles Lucas, The Empire ar War (Oxford Univcrsity Press, 1924).
14. Benjamin Brawley, Africa and the War (Duffield and Co., 1(18), p. I.
15. David Levering Lewis, W. E. B. Du Bois: Biography ofa Race (Henry Holt,1993), p. 556. 17. Marcus Garvcy, "Speech ar the Royal Albert Hall June 6th 1928", em Marcus Garvey and the
16. The Crisis (julho de 19H!). Vision ofAfrica, org. John Henrik Clarke (Vintage, 1(74).

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascinio da Raça PAUL GILROY

enquanto eles se deparavam com O renascimento da Klan, definido por John Hope para nossos garotos, o que ao mesmo tempo permitiria que o coração pesaroso da
Franklin como "o maior período de luta inter-racial que a nação jamais França batesse com mais leveza."
testemunhou".18 Essa turbulência política foi acompanhada por mudanças na vida
cultural da Europa. o período entre guerras assistiu a um fluxo constante de notáveis artistas,
A diferença entre estes negros ocidentais e os outros soldados coloniais cantores c músicos afro-americanos passar pela brecha consolidada por essas
havia sido observada por inteiro. Deixando de lado os efeitos sobre o pensamento bandas, o que transformou a vida musical, teatral e artística das capitais da Europa.
militar com relação aos sucessos em combate e os conflitos entre autoridades Depois de se apresentar em Londres e Paris, o teatro de revista "Chocolate Kiddies",
européias e americanas a respeito das conseqüências da mistura de raça, o que de Sam Wooding, com uma banda de onze músicos tocando partituras arranjadas
seria recorrente na guerra contra Hitler, é significativo que o mais importante canal por Duke Ellington, estreou no Admiralspalast de Berlim em maio de 1925,21
pelo qual se introduziram aspectos atrativos e excitantes da cultura negra americana Josephine Baker, que havia trabalhado com Sissle nos Estados Unidos, acabou
pela primeira vez no coração da Europa tenha sido o militar. O apelo exercido arrebatando a atenção extasiada de Berlim. Alguns meses depois, graças ao sucesso
pelas bandas militares afro-americanos deu início a um processo elaborado que popular dos Kiddies, ela chegou em Paris, onde Louis Armstrong já havia se
revolucionou ao final as culturas populares européias. O famoso 369 a batalhão de apresentado, para estrelar em La Révue Négre." Na época da crise da bolsa de
infantaria chamou a atenção tanto pela excelência de sua música, quanto por suas 1929, quando afro-americanos afortunados preparavam-se para ir a Europa em
façanhas no campo de batalha durante os 191 dias em combate, um período mais números nunca vistos, a demanda européia por entretenimento negro autêntico
longo do que qualquer outro regimento da Força Expedicionária Aliada havia crescia tanto que artistas bem viajados tinham de se fazer passar por talentos
enfrentado." Sob a direção geral do tenente James Reese Burope," a banda do frescos colhidos em clubes notumos de Harlem e Chicago."
regimento era também regida pelo seu tambor-mor, Noble Sissle, que fez um estudo O número crescente de americanos negros a trabalho e em viagem na Europa
dos efeitos das interpretações de ragtime pela banda sobre audiências francesas: pode ter sido um fator para o grande interesse que os afro-americanos tinham pela
situação alemã no período prévio à ascensão dos nazistas ao poder. Marcus Garvey,
Nós estamos a viver um momento muito interessante, tocando nossas melodias numa rápida viagem ao país em 1928, ficara impressionado com a eficácia e
nativaspara o deleite de todas as nacionalidadesque vivem debaixo do sol... Quando disciplina alemã, assim como com a tendência alemã para a autoconfiança." A
o nosso país estava louco pela dança há alguns anos, nós bem que concordamos
com o popular compositor de canções da Broadway que escreveu: "o sincopado
domina a nação, não podemos escapar disso". Mas, se você pudesse ver o efeito 21. SI. Louis POS! Dispatch; IOdejunhode 1918,citadoem R. Kimball and W. Bolcom,Reminiscing
que as nossas boas e velhas melodias de "jazz" tem sobre as pessoas de todas as with Sissle and Blake (Vlking, 1972). Gostaria deagradecer Jayna Brown porme chamar atenção
raças e credos, você mudaria a palavra "Nação", citada acima, para "Mundo"... para estelivro magnífico.
penso às vezes que se o Kaiser ouvisse em algum momento uma melodiasincopada, 22. Petcr Jelavich, Berlin Cabaret (Harvard Univerxity Press, 19(3); Michael Kater, Dijferent
ele não se levaria tão a sério. Drummers: Jazz in the Culture ofNazi Germany (Oxford University Press, 1992), p. 8. Ver
Se a França fosse bem suprida com bandas americanas a tocar seus vívidos sons, também Jurgen Wilhelm Heinriohs, "Blackness in Weimar: 1920s German Art Practice and
tenho a certeza que isto ajudaria bastante a trazer entretenimentos de nosso país American Jazz and Dance" (tese de doutorado, Yale University, maio de 1998).
23. Nancy Nenno, "Femininity, lhePrimitive, andModem Urban Space: Josephine Baker inBerlin",
in Katharina Von Ankum, org., Women in lhe Metropo/is: Gender and Modernity ín Weimar
Culture (University of Califórnia Press, 1997),
24. "Para espanto e aflição de muitos americanos brancos, os rostos escuros pareciam estarcmtoda
18. John Hope Franklin, From S/avery lu Freednm (Vintage Books, 1969), p. 480, parte no verão de 1929 - nas piscinas do Nonnandie e nos apartamentos de luxo do Queen
19. Arthur E. Barbeau e Florette Henri, Unknown So/diers: Afrícan-American Troops in World War Mary". David Levering Lewis, When Ror/em Was ín \.bgue (Oxford University Press, 1989), p.
I (Temple University Press, 1974), p. J2J. 255.
20. Reid Badger,A Life in Ragtime. A Biography ofJames Reese Europe (Oxford University Press, 25. The Marcus Garvey and Universal lmprovement Associcuion Papers, vol. 7, novembro 1927 -
1997). agosto 1940, org. Robert A. Hillet el. (University ofCalifornia Press, 1990), p. 212.

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I ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça I I"I\UL uU..I\VJ

situação política e econômica da Alemanha, em especial no tocante à "raça", foi para os negros". Como ela explicou, este "falso credo e preconceito racial" estava
acompanhada de muito perto pelas publicações afro-americanas por todo os Estados "centrado sobretudo nas grandes cidades do leste" , sendo fortemente associado
Unidos. Nos primeiros anos do século XX, a violência contra os judeus na Rússia com a vida da classe média negra, colocada "na posição irânica de simpatizar em
e na Europa Oriental desencadeou manifestações comparativas e de simpatia na pelo menos um aspecto com o nazismo".
imprensa negra; o tratamento reservado aos judeus despertara um interesse Wedlock expressa sua frustração diante da relutância da comunidade afro-
considerável entre o público leitor negro. À medida que o movimento nazista se americana em compreender a sua situação "como intemacional''. Isto ocupa um
tornou mais proeminente, a vitimização dos judeus por meio da "raça" tornou-se lugar secundário apenas em relação à sua preocupação de que "o preconceito e o
outra vez; um ponto central de interesse. chauvinismo de grupo continuem a dividir negros e judeus". b interessante notar
A visibilidade crescente do anti-semitismo negro nos Estados Unidos foi que ela considera o próprio conhecimento da situação judaica na Alemanha como
outro fator importante por trás da atenção que se destinou aos problemas raciais um taror contribuinte das grandes expectativas dos negros em relação aos judeus
da Europa. Este crescimento era tão preocupante que o Departamento de Sociologia com quem eles entram em contato: "eles parecem esperar mais simpatia e ajuda
da Universidade de Howard, sob a direção de Ralph Bunche, empreendeu um dos judeus do que qualquer outro grupo, por causa da situação judaica alemã".
projeto de pesquisa sobre as atitudes e reações da comunidade afro-americana em Ao considerar a impulso intermitente de interesse na difícil situação dos
relação ao antí-semitismo, que se revelavam em sua imprensa independente e na judeus, Wedlock revela que alguns jamais negros, em particular o Washington
sua rrúdia impressa. Sob a diretiva de Bunche de que "nenhuma pessoa no mundo Tríbune, haviam discutido a possibilidade de um massacre dos judeus daAlemanha
de hoje é imune ao contágio de estereótipos e ódios raciais", a pesquisadora já em março de 1933. De acordo com Wedlock, os níveis de comentários e
Lunabelle Wedlock examinou o conteúdo das maiores publicações afro-americanas reportagens sobre esses tópicos no jornal subiam e desciam. Os picos de interesse
e sua cobertura dos eventos europeus ao longo de sete anos, de 1933 a 1940. seguiam-se a grandes eventos simbólicos como o triunfo olímpico de lesse Owens,
O estudo detalhado de Wedlock foi publicado em 1942. 26 É um documento as lutas entre Louis e Schmeling e a exclusão de Marian Anderson do Constitution
um tanto repetitivo e irregular que apresenta definições muito soltas e elásticas do Hall pelas Filhas da Revolução Americana (PRA) e pelo Conselho de Educação
pensamento anti-semita. De qualquer modo, ele oferece uma pesquisa inestimável do Distrito de Columbia em 1939. Nessa ocasião, observou-se que "a notável
de como os negros americanos viam a situação de sofrimento dos judeus europeus. contralto negra" havia sido recebida previamente tanto por Hitler como por
Após uma exposição histórica geral sobre o papel da publicação independente na Mussolini, que ao menos nisso pareciam estar à frente dos fanáticos americanos.
constituição do que denominaríamos agora de "esfera pública", além de algumas O livro de Wedlock revela repetidas vezes a natureza extensiva de explicações
observações a respeito dos efeitos da Depressão sobre as relações entre "duas comparativas sobre as experiências relativas de privação de direitos e violência
minorias em desvantagem", Wedlock mapeou os pontos de debate e comparação que atingiam ambos os grupos. Essas argumentações faziam-se acompanhar às
que eram então identificados entre as histórias dos dois grupos. Ela tentou esboçar vezes, assim como são agora, de especulações sobre o "parentesco cultural" dessas
uma periodização das mudanças na consciência negra americana sobre o nazismo, duas comunidades.
tanto como uma filosofia política, quanto como um modo de governo racial que De uma significância mais prática e imediata foram as opiniões sobre a
convidava à comparação com as condições nos Estados Unidos, construindo uma segregação de atletas negros e brancos nos Estados Unidos ocasionadas pelas
geografia política do anti-semitismo negro, descrito por ela como "um luxo arriscado Olimpíadas. A percepção de que Hitler havia menosprezado lesse Owens em seu
momento de glória intensificou o ritmo de uma discussão de amplo alcance que
abarcava o poder da Constituição para inibir a discriminação, a legalidade e a
ilegalidade do preconceito em ambos regimes e a idéia de que a "Geórgia teme que
26. The Reactíon of Negro Pubtícattons and Organirations lo German Antt-Semítism, Howard
University Studies in lhe Social Sciences, vol. 3, n" 2 (Howard University, 1942). Gostaria de o negro faça baixar o nível da civilização anglo-saxã; [enquanto] Hitler teme que
agradecer Laura Yow por chamar a atenção para li importância desse texto. os judeus o elevem demais". Outra maneira possível de se pensar a Alemanha

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tl'llKt l.i\l"lrU::l e açoes, uurruras e o r ascmtc aa Kaça PAUL GILROV

nazista como comparável à América contemporânea foi vislumbrada por Wedlock europeus rebaixava e corrompia não somente a sua própria arte e cultura, mas a
no modo como os jornais negros noticiavam as ações de "perseguição dos judeus" sua natureza racial que fora invadida e infectada pelo "bacilo" do jazz. O entusiasmo
promovidas por Sufi Abdul Hamid. que se autodenorninava o "Hitler negro" e que cosmopolita pelo que se tornaria logo conhecido como "O jazz judeu negro" 28
tinha as suas bases em New York, mas cuja campanha terminou abruptamente teve conseqüências inauspiciosas. As rígidas soluções políticas para essas condições
com a sua morte em um acidente de avião em 1938. Em 1934, noticiou-se que os crónicas, oferecidas pelos fascistas que então mascateavam suas fantasias militares
judeus negros do Harlem estavam levantando fundos para uma ação mundial fascistas de renascimento nacional, começaram a parecer atraentes."
antinazista. Em suas conhecidas tentativas de desvendar os enigmas apresentados pelo
Jornais como Philadelphia Tribune, Brown American e Amsterdam News jazz ao dialético, Adorno, que havia notoriamente saudado com entusiasmo os
expunham uma série de artigos sobre negros que viviam "sob o terror" na Alemanha primeiros controles nazistas impostos sobre o "Negerjazz'', revelou o que percebia
e acerca da visão nazista sobre os negros. Eles revelavam, por exemplo, um como um laço profundo entre o jazz e o fascismo. Ele descartava a música em
conhecimento detalhado dos planos nazistas de esterilizar as crianças negras parte devido às suas ligações históricas com as bandas militares que haviam
"bastardas" da região do Reno e do Ruhr, levantando ainda questões perspicazes despertado de novo a Europa. Estas conexões marciais fizeram-no afirmar que o
sobre a maneira como os nazistas viam as tropas coloniais francesas que os haviam "jazz pode facilmente ser adaptado para o uso do fascismo. Na Itália ele é
reconhecido. Duas manchetes de 1934, estampadas no Norfolk Journal and especialmente apreciado, tal como o Cubismo e o artesanato". ao Quando combinado
Guide - "Hitler, o Simon Legree moderno" e "Hitler: o Ku-Klux alemão" - parecem com um elemento volkish, mas tão somente pseudodemocrático e outros atributos
ter captado o tom de boa parte desta cobertura. Discutiu-se se seria apropriado formais e estilísticos que eram regressivos, essa herança militar tornava o jazz e o
que os residentes afro-americanos na Alemanha fossem registrados como africanos fascismo parte da mesma lastimável virada sócio-cultural. Eles foram aspectos
e a respeito do provável tratamento que viajantes negros americanos encontrariam gêmeos de um aviltamento da experiência no sentido da "i nsensibilidade mecânica
naquele país. As reações nazistas aos "males do jazz" eram também alardeadas, ou ... decadência licenciosa"." Em vez de cogitar a possibilidade de que o jazz
dando-se um certo alívio, quando por exemplo o mesmo jornal citou um relatório ajudasse a definir e a praticar novas liberdades, Adorno o considerou como uma
alemão que censurava os judeus pelo jazz, e não mais os negros, de acordo com a disseminação perniciosa de um padrão alienado e destrutivo que se estabelecera
manchete "Os nazistas nos 'livram' do jazz; culpam os judeus"." de início na composição musical de escravos, quando a lamentação em torno da
ausência de liberdade combinou-se pela primeira vez com a confirmação de sua
ADORNO, LOCKE E O DEBATE SOBRE JAZZ opressão." Para ele, Josephine Baker não foi a personificação do expressionismo.
Enquanto Adorno via e temia a pseudodemocracia encenada com o jazz, os
Os analistas europeus da ascendência do fascismo haviam também críticos negros contemporâneos em seu esforço para firmar o modernismo contra
observado a proeminência da cultura negra em geral e do jazz, em particular, na o primitivismo em moldes que acentuavam a sua própria ação tendiam a perceber
cultura pré-fascista do período Weimar. A intrusão da negritude na Europa não foi
algo que estes analistas estivessem preparados a celebrar irrefletidamente. Os
28. Michael Kater, "Forbiddcn Fruir?' American Historical Review 94, 1 (1989), pp. 11-43.
nazistas e muitos de seus oponentes podiam concordar que a estranha habilidade
29. Wendy Martin, "Remembering the Jungle: Josephine Baker and Modcrnist Parody", in Prehistories
da cultura negra americana de ser ao mesmo tempo ultramoderna c ultraprimitiva ofthe Future; The Prímuívist Project and lhe Culture (jfModernism, org. Elazar Barkan e Ronald
era a prova de sua decadência e dos riscos que ela apresentava para o corpo Bush (Stanford Univcrsity Press, 1995).
político. Desta perspectiva, a popularidade da cultura negra americana entre os 30. T. W. Adorno, "On Jazz", tradução de. Jamie Owen Daniel, Díscourse 12, I (outono-inverno,
1989), p. 61.
31. Ibid., pp. 45-69.
32. T. W. Adorno, "Pcrennial Pashtou-Jazz". in Prisrns, tradução de Samuel Weber und Shicrry
27. Norfolk: Ioumui and Cuide, 21 de dezembro de 1935, p. 9, cal. 4. Weber (Nevi1le Spearman, 1967).

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ENTRE CAMPOS o' Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROV

um momento libertador mais autêntico. Ao escrever no New Negro, J. A. Rogers basicamente negro, e assim felizmente, também é humano o bastante para ser
sugerira que um verdadeiro espírito democrático residia no "descaso zombeteiro universal em apelo e expressividade't." Como ele acrescentou, o que importa "é a
com a formalidade" transmitido por aquela música. Nos Estados Unidos, a música qualidade artística do produto, não a quantidade da distribuição, e nem a cor do
celebrava um novo espírito de alegria e espontaneidade que, como ele afirmou, artista. O inimigo comum é o perigo sempre presente de comercialização que até
"pode por si mesma fazer o papel de reformador". A importante percepção de bem recentemente tem tido uma influência ruinosa cada vez maior sobre o
Rogers fora decerto alcançada às custas de se aceitar uma visão do jazz como crescimento saudável desta música". 3S
uma força exótica e primitiva "recarregando as baterias da civilização" com um Assim como Adorno, Locke estava ciente dos perigos da comercialização e
vigor novo e muito necessário. É possível que seja hoje mais profícuo encarar da transformação da música em mercadoria. Num bom estilo hegeliano, também
esses aspectos de seu argumento como uma concessão não essencial e decorativa como Adorno, ele tentou compreender o significado da emergência do jazz como
à atmosfera então vigente e que não compromete sua tese central: "a moda recreativa dominante" em seu contexto histórico, um estágio descrito por
ele repetidas vezes como "febril e neurótico". Ele afirmou que a "moda do jazz
...apesar de seus presentes vícios e vulgarizações, de suas informalidades sexuais, deveria ser considerada como um sintoma de uma inquietação e mudança culturais
de seu espírito moralmente anárquico, o jazz tem uma missão popular a cumprir. A
profundas" que "seriam um fator importante na interpretação do espírito subjacente
alegria, apesar de tudo, tem uma base física. Aqueles que riem, dançam e cantam
estão em melhor situação mesmo em seus vícios do que aqueles que não o fazem."
de nosso tempo"."
Locke não identificou o fascismo explicitamente como outro elemento desse
Em toda parte, as vozes da disputa sobre o valor e o significado da música fluxo cultural, preferindo em vez disso enfatizar a maneira com que o jazz se
negra do entre-guerras em relação ao fascismo nascente parecem ter aceitado a opunha, tanto ao protestantismo, como às monotonias da civilização guiada pela
proposição de que mesmo se a música não era em si mesma um meio de restauração máquina. Ele reconhecia o poder explicativo das teorias dominantes do jazz, que o
e de renascimento democrático, ela poderia fornecer uma mcdida apropriada para viam como um meio de fuga emocional por um lado, e de rejuvenescimento
que o progresso da raça em desenvolvimento pudesse ser lido. Foi aqui que a emocional por outro. Contudo, o jazz não era apenas uma combinação sutil de
música começou a ser imaginada como um modelo criativo para as artes visuais e narcóticos e estimulantes como sugerem essas teorias influentes. Ao se aperceber
um plano técnico para romancistas e poetas. que as formas sérias do jazz haviam ultrapassado em muito o seu papel como "o
O grande sábio Alain Locke, logo após um período de três anos na cátedra antídoto desesperado do negro e a cura para o seu pesar", tomando-se "a língua
de Rhodcs em Oxford e outro de dois anos em Berlim, assumiu esta abordagem musical característica da idade moderna", Locke levantou a possibilidade de que
em sua cuidadosa exposição a respeito do estado da composição musical, publicada esta música alegre pudesse ser uma "anti-toxina cultural, trabalhando contra os
em 1936. Locke entendia o jazz em termos rripartites, isto é, "parte negro, parte sintomas mais mórbidos da mesma doença da qual o próprio jazz era um subproduto".
americano, [e] parte moderno". Ele reconhecia o papel fundamental que a banda Uma vez mais tal como Adorno, ele reconhecia a significância fundamental do
de James Europe - descrita por ele como "a maravilha musical da década" - "lado erótico do jazz", que tinha "uma relação direta com a sexualidade mais livre
havia desempenhado ao levar a música para um público mais vasto. Ele burlava as desta época"."
origens e o caráter raciais do jazz contra as qualidades cosmopolitas e modernas
que surgiram quando as formas negras misturaram-se com elementos dos brancos
e dos judeus numa "grande colaboração inter-racial'': "o jazz atual é um negócio
34. Alain Locke, The Negro and Ris Music, Bronze Bookler n° 2 (The Associares in Negro Folk
cosmopolita, um amálgama do tempo e dos humores modernos ... o jazz é Education, 1936), p. 72.
35. Ibid., pp. 82-83.
36. Ibid., p. 89.
33. J. A. Rogers, "Jazz at Home", New Negro, org. A. Locke (Athcneum, 1968 [1925J), p. 223. 37. Ibid., p. 38.

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascinio da Raça PAUL blLKUY

Uma contra-história fragmentária do modernismo artístico está à espera de Os estudos históricos de Kater, Detlev Peukert'" e outros trouxeram à tona
ser destilada a partir destas observações sugestivas, mas para nossa frustração relatos poderosos daquela centralidade da subcultura musical para a consciência
Locke deixa em aberto a possibilidade de "conexões diretas" entre "o jazz e as de oposição, em especial entre os jovens. É extraordinário que o regime nazista
crises da civilização modema". Suas percepções ajudam a estabelecer mais do tenha tido de batalhar tanto para cooptar e recuperar esses estilos modernos para
que meras conexões contingentes entre as culturas e as histórias negra e branca, seus próprios propósitos. A avaliação desta camada de conexões adicionais,
e entre a cultura dos negros do Novo Mundo e o destino dos judeus na Europa, conversas transculturais e convergências estilísticas inesperadas deveria incluir
aglutinados pela higiene racial nazista sob o signo abusivo do cosmopolitismo uma ampla consideração sobre a visibilidade dos negros na arte, propaganda e
desenraizado. Contudo, elas não vão muito além, deixando de mostrar como os cultura popular nazista, assim como o lugar da "raça" nos termos do que se tem
negros testemunharam vivamente as circunstâncias catastróficas a serem tentado nomear de "estética fascista", estando esta tarefa, porém, além do alcance
encontradas no ponto terminal da tipologia racial da Europa. deste livro."
A revolução cinematográfica inovadora e duradoura iniciada por Leni
ÉTICA E MÉTODOS Riefenstahl e examinada brevemente no capítulo 4 será, sem dúvida, central para
aquelas considerações. É preciso pensar também não apenas nas tentativas de
Diversas estórias de cruzamento cultural igualmente desestabilizadoras Goebbels em manufaturar substitutos racialmente aceitáveis para o jazz, mas no
podem ser tecidas em torno de figuras heróicas negras a quem é possível considerar seu desejo de produzir um entretenimento nazista grandioso que pudesse oferecer
como tendo infligido pequenas, mas significativas derrotas simbólicas sobre os um equivalente cinemático para E o vento levou. O épico de 1941, Ohm Krüger
nazistas: Josephine Baker, Jesse Owens eJoe Louis. Mais do que ninguém, Michael foi, por exemplo, encenado na África do Sul tendo como pano de fundo a guerra
Kater se esmerou em recolher e analisar os impressionantes contos da presença dos bôeres. Em Quax ín Af"rica e Congo Bxpress, o colonialismo proporcionou
do jazz e suas ramificações locais na vida cultural da Alemanha nazista, e em um veículo apropriado para os mesmos prazeres e fantasias poderosas. Assim
traçar os percursos da música até mesmo nas operações internas dos campos de como a fantasia orientalista de Josef Von Baky, Münchhausen," que é mais
concentração." Estas conexões e reflexões podem, é claro, ser deixadas de lado conhecida, essas produções tinham o efeito imprevisto de ajudar um número
de acordo com as mesmas linhas sugeridas pelas análises críticas de Adorno, significativo de prisioneiros de guerra afro-alemães e afro-americanos a sobreviver
como nada mais do que instâncias da natureza interconectada da vida cultural às durezas dos tempos de guerra por meio do trabalho como figurantes de filmes."
alienada e reificada que se seguiu à industrialização da produção cultural. Dessa O biógrafo de Goebbels, Ralf George Reuth, nos conta que apesar de Goebbels
perspectiva, elas revelariam apenas o alcance transnacional da cultura negra criticar E o vento levou em público, este era "entre os filmes de Hollywood ...
americana, exibindo parte dos recursos dinâmicos providos por essa cultura à vida aquele que mais o arrebatou"." Para saber exatamente o que prendeu seu olhar e
da Europa antes da guerra e ao longo dela. Mas é apenas isso. Minha perspectiva
é distinta na medida que reconhece oportunidades importantes neste cruzamento
de culturas. Estas histórias de cosmopolitismo desenraizado tomaram-se um 39. Detlev Peukert, tnsíde Nazi Germany: Conformíty, Opposition ond Racism ín Everyday Life,
catalisador para a multicultura do futuro. tradução de Richard Deveson (Pelican Books, 1989).
40. Karen Pmkus, Bodily Regimes: ftalian Advertising undcr Fascism (Univcrsity of Minnesota
Press, 1995); Susan Sontag, "Fascinating Pasclsm", in Under the Sign ofSaturn. (Farrar Straus
38. Michael Kater, Different Drummers: Jazz ín the Cutture of Nazi Germany (Oxford Universuy and Giroux, 1984).
Press, 1994); Eric VogeJ, "Jazz ín a Nazi Concentrarion Camp, pts. 1 and 2", Downbeat (7 de 41. Linda Schultc-Sasse, Entertainingthe Third Reich: tllusions ofWholeness iII Nazi Cinema (Duke
dezembro de 1961), pp. 20-21, e (21 de dezembro de 1961), pp. 16-21; Mike Zwerin, La University Press, 1996), cap. 10.
Tristesse de Saint Louis: Swing unáer the Nazis (Quartel, J 985); Horst 1. P. Bergmeier e Rainer 42. David Stewart Hull, PUm ín theThirdReich: A Study ofthe Cerman Cinema, 1933-1945 (University
E. Lotz, Hítler's Airwaves.The Inside SlOryofNa:)' Radio and Propaganda Swmg (YaleUniversity of Califórnia Press, 1969), p.182.
Press, 1997). 43. Ralf Georg Rcurh, Gaebbels, tradução de Krishna Winston (Harcourt Braoe, 1993), p. 194.

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I ENTRE lAMI'U~ •• naçoes. lUlturas e o j-asctntc da Raça I I PAUL GILROV I

mexeu com suas emoções, seria preciso também levar em consideração mais Se a biologia ou a cultura aspirou a uma precedência suprema, uma lógica
detalhes do que é possível fazer aqui. Basta dizer que há neste exemplo ainda mais subjacente que se expressa através de ontologias raciais e a marginalização de
evidências preliminares tanto para perceber a importância da encenação coloniaJ questões éticas, o que constitui a sua marca, propiciaram uma legitimação importante
destes.épicos, quanto para examinar o significado do cenário racializado frente ao para a brutalidade, o terror e o etnocídio historicamente decretado do diferente e
qual o conflito mundial histórico entre as nações inglesa e alemã poderia ser avaliado do inferior. É necessário testar constantemente a capacidade específica destes
com mais clareza. Em outras palavras, em que medida o cenário africano e a discursos racíalieantes. Eles podem ser comparados não apenas com a linguagem
presença de negros contribuíram para a acentuação destas imagens fascistas? de algumas religiões fundamentalistas e sectárias, mas também com as ambições
Embora reconheça, abstendo-me, porém, de enveredar pelo escopo exterminadoras representadas pelos anseios classistas de matar, que ocorrem alhures
vertiginoso destas grandes questões, gostaria de considerar a possibilidade de haver na história do totalitarismo europeu. É valioso também refletir sobre as linhas
um outro tipo de articulação, talvez mais fundamental, a ser explorado entre aquelas específicas internas em que os apelos à solidariedade e ao pertencimento racial e
histórias que não precisam mais ser consideradas como discrepantes e atribuídas étnico eram operativos. As brutalidades perpetradas em conjunção com o que
de um modo não problematizado aos seus vários profissionais étnicos. Esta conexão pode ser chamado de "poética do sangue" por meio do contínuo regime de poder e
mais conceituaI parece ter sido gerada pela lógica política distintiva da tipologia e de representação, chamado por Fanon de "epidermização'', e conduzidas, mais
diferenciação raciais que fundamenta as conexões culturais contingentes recentemente, através do emergente discurso nanopolítico de "raça" (remodelado
mencionadas acima. Ela tomou os judeus sem cultura responsáveis pela música agora em termos de genes e de informação), estão a exigir em uníssono que essa
negra que era - isso para não mencionar Hollywood -eua arma cultural mais possibilidade seja considerada.
perniciosa na luta secreta pela dominação do mundo. Esta articulação pode ser A força específica do discurso racista moderno pode ser registrada em
melhor abordada como um simples produto da anti-Iógica conspiratória que operava lugares e tempos aparentemente remotos em relação aos exemplos que tornaram
na raciologia nazista. O negro infantil produzia música e dança, mas não tinha a Europa ocidental o ponto exclusivo de ingresso nas considerações críticas sobre
preparo para compreender ou explorar o poder primitivo e sedutor de ambas como o fascismo. Dois exemplos distintos bastam para sublinhar este ponto. O primeiro
um meio para distrair, enganar e, por fim, destruir o ariano desavisado, que por seu é tirado da história do nacionalismo croata, no qual, sob a liderança de Ante Pavelic,
turno tornou-se vulnerável a essa infecção somente através das maquinações a descendência de fontes arianas heróicas tornou-se a chave de aspirações
diabólicas do judaísmo internacional. Sempre que o poder degenerativo da música assassinas, merecedoras do nome fascista. O segundo emerge dos sepulcros de
negra se difundiu entre ajuventude ariana desavisada e vulnerável, o racismo anti- Ruanda. A hipótese camita sobre as origens das diferenças "raciais" entre bahútu
negro e o anti-semitismc reconciliaram-se prontamente em matéria de política e batútsi, que lá foi introduzida por missionários e consolidada por administradores
prática. Eles se aglutinaram teoricamente através de diversos tipos de reducionismo, coloniais, tem sido identificada como um elemento importante na constituição da
determinismo e mecanicismo que envolviam a codificação da biologia como cultura mentalidade genocida. Em ambas as instâncias, a narrativa de uma identidade
e a codificação da cultura como biologia. Estas diferentes formas de raciologia absoluta emerge como um problema central. Onde quer que as forças míticas de
têm sido distinguidas mais recentemente como o velho racismo e o novo racismo, diferença racial e étnica apareçam, as solidariedades poderosas emergem juntamente
mas é importante lembrar que em grande parte do período tratado aqui, elas formaram com formas distintivas de legitimidade." Num nível mais básico - estaria tentado
o que George Stocking chamou de "gestalt etnográfica", onde o "tipo físico não a dizer humano - precisamos também notar as maneiras com que as técnicas da
se separava perceptivamente" de outros sinais de diferença." soldadesca, as quais o psicólogo militar tenente-coronel Dave Grossman chamou

45. Yael Zerubavel, RecoveredRoots:Cottectíve Memoryand file Making oflsroeíí NationoiTradítion


44. George Stocking, Victorian Anthropology (Free Press, 191!7), p. 106. (University 01' Chicago Press, J 995).

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROV

com propriedade de "assassinologia", admitem o papel que uma sensibilidade Este é mais um pequeno passo para se cogitar sobre a possibilidade de que
acentuada em relação à diferença "étnica" e "racial" desempenhou na remoção a linguagem racializante e a ação correlata podem instigar aqueles mesmos
da inibição fundamental contra a matança: sentimentos e solidariedades que em geral se pensa como prévios a elas. Estes
programas de ação são regimes racializantes ~ estruturas de sentimento e de ação
É tão mais fácil matar alguém se eles parecem muito diferentes de nós. Se a sua - que produzem as "raças" em arranjos hierárquicos ao fazer com que a "raça"
máquina de propaganda pode convencer seus soldados que os oponentes deles
seja significativa, mantendo-a como um aspecto óbvio, natural e aparentemente
não são realmente humanos, mas sim "formas inferiores de vida", então a sua
resistência natural a matar sua própria espécie será menor. A humanidade do inimigo espontâneo da vida social ordenada. A qualidade da ordem se toma ainda mais
é reduzida com frequência ao nos referirmos a ele como "gook", "Kraut" e "Nip." preciosa e relevante em situações extremas. A hierarquia, a autoridade e a
No Vietnã, este processo foi assistido por uma mentalidade de contagem de corpos, indulgência, que a ordem pode proporcionar, facilitam o processo em que homens
quando nos referíamos ao inimigo e pensávamos nele como números. Um veterano e mulheres se tornam capazes de matar outros seres humanos. Este padrão
do Vietnã me contou que isto permitiu aele pensar que matar NVAe o VC era como
complexo envolve uma interação recíproca entre a raciologia e suas conseqüências.
"pisar em formigas"."
Devemos, portanto, estar preparados para confrontar a ação da violência - e, de
fato, do próprio sangue - como um meio de produção das próprias diferenças
Primo Levi, que também se ocupou do papel dos números no processo de
"raciais" que não existem antes de tantas tentativas brutais e sangrentas para
desumanização, adotou um ponto de vista diferente ao considerar os elementos
engendrá-las.
deste problema numa seçâo de The Drowned and lhe Saved [Os Afogados e os
A ordem distinta de diferenciação "racial" é marcada pelo seu rótulo singular,
Salvos], em que ele descobre a utilidade real da violência aparentemente inútil
pelo peculiar deslizamento entre "relações reais" e "formas fenomenais" a que
testemunhada por ele como um interno de Auschwitz. Acima de tudo, aquela
esta ordem corresponde, e por uma postura específica (a)moral e (antijpolttica.
brutalidade foi útil como um meio para produzir a solidariedade entre seus
Esta ordem envolveu não só o confinamento de pessoas "não-brancas" ao status
perpetradores. Ela os capacitou a se comportar com mais liberdade sem o ônus
de animais ou de coisas, mas também a redução de pessoas européias ao status
dos fatores moral, religioso, emocional e psicológico quc teria perturbado suas
intermediário dessa ordem inferior de ser, situado entre o humano e o animal que
operações caso tivessem conferido um status humano às suas vítimas, comparável
pode ser mal-tratado sem as intrusões de uma má consciência.
àquele que haviam destinado a si mesmos. A discussão do coronel Grossman, a
Atualmente, em circunstâncias que conseguem de algum modo tanto proibir
respeito daquilo que ele chama "poder intemalizado para matar", sugere que ao
como demandar uma política cultural insurgente, nossas escolhas são mais
menos nisto o grande programa nazista de assassinato racial não parece ter sido
complexas do que aquelas sugeridas pela declaração apócrifa de Goebbels citada
excepcional."
na frase de abertura deste capítulo. Um fascismo original e convenientemente
rotulado, tendente a obliterar a cultura e a destruir seus defensores e silenciosos
guardiões, não se coloca com audácia e em oposição cerrada a uma consciência
anti-fascista inocente e íntegra que alinha a cultura e a civilização ao seu lado
46. Lt. CoI. Dave Grossman, On Killing: The Psychologiccd Cost of Leamlng to KiIl ín War and
numa batalha contra o mal. As sementes do fascismo europeu têm se espalhado
Society (Little, Brown, 1996), pp. l I" 162; Grossman especula sobre o possível efeito do
ó

condicionamento racial nazista em aumentar as taxas de perdas que foram infligidas às forças por uma grande extensão nos moldes do que Primo Levi chamou de "a silenciosa
britânicas e americanas por tropas alemãs. Acredita-se que estes índices sejam 50 por cento mais diáspora nazista". Poderíamos mencionar que a complexa linhagem do fascismo
altos do que aqueles sofridos pelas tropas alemãs nas mãos de seus inimigos. Ver também Ben
tem se complicado ainda mais devido ao amplo mimetismo de seu estilo político por
Shalir, The Psychology ufConflict and Combar (Praeger, 1988).
47. Herbert Kelrrum,"víolence without Moral Restraint", Journal ofSociat Issuos, 29, 4 (1973), pp. vários regimes, que embora possam ser de natureza ulrranacionalista, violenta ou
25-61; Henri Zukier, "The Twisted Road to Genocide: On the Psychological Developmeru ot conservadora, não compartilham da orientação do fascismo propriamente dito, cujo
Evil During lhe Holocausr", Social Research; 61 (1994), pp. 423-455.
teor é anti-conservador, anti-liberal, populista, fratemalista e revolucionário. As

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascinio da Raça PAUL GILROY

tecnologias fascistas da personalidade e da solidariedade provaram ser tão influentes Como a discussão anterior de Senghor sugere, o material sobre a vida dos
e atrativas quanto o apelo de qualquer um de seus aspectos ideológicos grandes campos fundados pelos alemães para os prisioneiros coloniais de guerra é
sístemãticos." Talvez esta seja a forma como os fascismos têm sido capazes de um tanto incompleto. Contudo, uma literatura pequena, mas extremamente útil
falar repetidamente em nome da cultura, tornando-se eloqüentes sobre as narra a experiência contraditória e às vezes bizarra de prisioneiros de guerra negros
hierarquias raciais, nacionais e étnicas construídas pela idéia da diferença cultural nas mãos dos nazistas, a quem faltava segurança sobre onde exatamente os negros
absoluta ao longo das linhas nacionais. De certo modo, então, pode-se dizer que o se encaixavam no esquema racial das coisas. Ainda que rejeite em termos um
fascismo adquiriu, ou mesmo se tomou, uma cultura em seu próprio direito. Esta tanto peremptórios o caso de Johnny Vosté, um "homem mulato que pretendia ter
operação teve lugar no interior das fronteiras constituídas por aquilo que Deleuze estado em Dachau'' sem oferecer documentos comprobatórios nesse sentido,
e Guattari se referem - em seu célebre alerta de que ninguém é poupado das Robert W. Kesting, arquivista do Museu Memorial do Holocausto dos Estados
seduções do fascismo ~ como seus "pontos focais, moleculares". Unidos em Washington, D. c., acumulou uma coleção pequena, mas profícua de
documentos extraídos em sua maioria de pastas de pesquisadores do pós-guerra
Os COSMOPOLITAS NEGROS FACE A FACE COM O FASCISMO acerca dos crimes de guerra." Sua pesquisa preliminar confirma haver evidências
saídas do próprio cenário europeu de soldados coloniais e afro-americanos, assim
É provável que Baker, Fanon e Senghor sejam os mais conhecidos dentre como de efetivos da Força Aérea sendo sumariamente assassinados e mutilados a
muitos negros que se opuseram ao fascismo no campo de batalha e na resistência. despeito dos termos de tratados internacionais que regem o tratamento dos POWs
Há outras pessoas menos conhecidas e em grande medida esquecidas que se [prisioneiros de guerra]. Há também material sugerindo que os nazistas eram
juntaram à oposição a Hitler, passaram suas vidas em campos e centros de detenção inconsistentes, se não o fossem de fato confusos, sobre como lidar com os negros
de vários tipos, ou sobreviveram silenciosamente, retornando para as estranhas capturados por eles em combate. Histórias horríveis sobre a carnificina do campo
ambigüidades de sua existência como europeus negros. Entre aqueles que deveriam de batalha e a violência inspirada em termos raciológicos combinam-se com outros
ser lembrados aqui está Hilarius "Lari'' Gilges, que foi espancado até a morte por relatos de prisioneiros negros que admitem ter encontrado uma certa medida de
nazistas em Dusseldorf em 1933, sendo uma das pOUC~lS vítimas negras de Hitler a consideração que reconhecia a sua humanidade, ou ainda terem sido tratados
ter algum tipo de memorial público. O ativista belga Johnny Vosté foi um membro razoavelmente com base numa hierarquia racial que especificava seu status como
do movimento de resistência. Preso em 1942, ele não só sobreviveu a Dachau, menor do que um humano por inteiro e, por isso mesmo, não precisando ser
mas também ajudou alguns de seus camaradas a conseguirem o mesmo. Houve maltratados, tal como no caso de animais domésticos ou de estimação.
também Johnny William, um francês nascido na Costa do Marfim que foi deportado A Força Aérea Real Britânica (J:<f\R) recrutou um número significativo de
para o complexo do campo Neuengamme perto de Hamburg, ao qual sobreviveu, eferivos negros através do Esquema de Recrutamento Ultramarino do Ministério
conforme ele acredita, graças ao calor produzido pela fábrica de armamentos da Aeronáutica. Um oficial guianês da FAR, Cy Grant, foi capturado depois de ser
Walther, onde ele foi posto em trabalho forçado. Segundo ele testemunhou, havia abatido próximo a Arnhem em 1943, tendo passado os dois anos seguintes em um
outros cinco ou seis internos negros no mesmo campo que, ao menos de início, se campo de POWs. Segundo relatou, "o único racismo que encontrei [lá] veio da
beneficiaram da reputação de destreza física estabelecida nas mentes de seus parte de um americano ... um cabo ou algo assim que estava neste campo de
captores pelo triunfo de lesse Owens em 1936.49 detenção. E ele me chamou de nigger, uma ou duas vezes, mas eu não tive nada
assim dos alemães. Eles não me escolheram para nenhum tratamento especial"."

48. Daniel Chirol, Modem Tymnss: The Power und Prevalence uf Evil iII Our Age (Princeton 50. Robert W. Kesting, "Porgotten Victims: Blacks in the Holocausr", Journal. ofNegro History, 78,
Universuy Press. 1994). 1 (1992), pp. 30-36.
49. Entrevistas com e sobre estas importantes figuras encontram-se no filme pioneiro de David 51. Mike Phillips e Trevor Phillips, wíndrush: The lrresistihle Rise 0/ Multi-Racial Brítaín
Okuefuna, Híüer s Forgotten viaíms, produzido pela Afrn-Wisdom Productions em 1997. (HarperCollins, 1998), pp. 31~32.

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ENTRE CAMPOS •• Nações, CuLturas e o Fascinio da Raça PAUL GILROY

Ransford Boi, um marinheiro da frota mercante britânica, foi capturado perto da derradeira marcha da morte pm·a Dachau; alguns estavam feridos, alguns estavam
Costa da Libéria, em dezembro de 1939, tendo sido transferido para um campo em mortos. A cena era repulsiva... Ao lado da estrada, jipes e veículos semicaterpilares
Sandbosrel, entre Bremen e Hanover. Ele passou dois anos nesse lugar antes de estavam estacionados... O imenso pátio de chamada estava cheio de soldados
ser mandado para outro campo de internação não nomeado, onde havia cerca de americanos, os melhores do General Patton, homens negros altos, medindo cerca de
1,83 m, com lenços coloridos em torno do pescoço. Eu nunca tinha visto homens
trinta outros internos negros. O regime era relaxado a ponto de ele viver algumas
negros antes. Eles eram irreais para mim. Os soldados tentavam ajudar, carregando
aventuras picarescas surpreendentes. 52 Embora não se deva conferir significância
111te111os em macas, alguns mortos, alguns moribundos que estendiam suas mãos
em demasia a estes fragmentos, é preciso permitir que eles assumam um lugar dizendo: "Irmão, eu estou morrendo, me dê sua mão". Os soldados estavam em
apropriado nos relatos das complexidades práticas da raciologia nazista num contexto estado de choque,choravam como bebês. Eles lhes davam as mãos.Algunsinternos
de guerra. Em termos mais oblíquos, este tipo de matcrial pode também ser usado estavam apenas sentados estupefatos.>'
para indicar um diferente tipo de narrativa: a pré-história de uma Europa multicultural.
Embora formados cultural e intelectualmente a partir de pressões e de Samuel Pisar, um interno de Dachau, prestou um depoimento sobre a sua
instituições bem diferentes daquelas que influenciavam esses descendentes das própria "libertação" ao Washington Post em maio de 1995. Escondido em um
colônias, os soldados afro-americanos, que chegaram por fim aos portões dos celeiro depois de escapar de uma marcha da morte, ele espionou um tanque
campos de concentração nazistas como parte das forças militares vitoriosas, também desconhecido numa estrada próxima:
deram mostra de que a sua compreensão da ordem racial a que eles haviam sido
O tanque prosseguia seu cauteloso avanço ... Procurei automaticamente pela
submetidos em suas terras natais inóspitas acabou sendo transformada diante da
detestável suástica, mas não havia nenhuma. Em vez disso, vi um emblema
dimensão absoluta dos horrores racionalmente empreendidos nos campos. O senso desconhecido - urna estrela branca com cinco pontas.
básico de vergonha humana que eles compartilhavam com seus companheiros Por um instante, o inimaginável inundou minha mente e minha alma. Depois de
brancos complicou-se no caso deles devido à percepção de que também eles haviam quatro anosnasprofundezasdo inferno, eu,condenado n'' B-1713, tambémconhecido
sido vítimas da raciologia e de suas brutalidades características através de formas como Samuel Pisar,filho de uma bela família que havia sido varridada face da terra,
cotidianas mais amenas. Muito do trabalho de limpeza em Dachau e Buehenwald sobrevivi de fato para ver a gloriosa insígnia do Exército dos Estados Unidos.
foi empreendido pelo 183" batalhão de engenheiros de combate." Sua presença Minha cabeça pareciaestourar. Com um urroselvagem salteiparaforae me arremessei
naquele humilde papel tradicionalmente designado ao negro permite visualizar as em direção àquela magnífica visão. Eu aindaestava correndo,agitandomeus braços,
experiências de soldados negros que estiveram na linha de frente no combate às quando de repente a escotilha do veículo blindado se abriu e um rosto negro,
forças militares nazistas. protegidocomcapacete c óculos,emergiu,praguejandoem minha dircção de maneira
ininteligível...Pistola na mão, pulou para o chão para me examinar mais de perto..
A presença destes soldados negros na libertação de um campo foi notada
Para sinalizar que eu era amigo e precisava de ajuda, caf a seus pés, dizendo as
por Benjamin Bender, um interno de Buchenwald em busca do paradeiro de seu
poucas palavras em inglês que minha mãe costumava suspirar enquanto sonhava
irmão em meio ao derradeiro caos deste lugar: com a nossa libertação; gritei: "Deus Abençoe a América!" Com um gesto
inconfundível, o americano alto acenou para que eu me levantasse, e me ergueu
o terreno adjacente à portaria estava coberto de corpos. Muitos tinham cobertores através da escotilha até o ventre da liberdade."
rasgados sobre suas cabeças. Estes internos haviam se recusado a se juntar à

52. Weekly Journat, 4 de maio de ]995, p. 5, e West A.Mca, vol. 22, 8 de maio de 1995, p.778.
53. Lou Potter com William Miles e Nina Rosenblum, Liberators: Fighting on TwoFrorüs in World 54. Benjamim Bender, Glimpses Through Holocaust and Liberation (North Atlantic Bnoks, 1995),
War II (Harcoun Bracc lovanovich, 1992); ver também Brenda L. Moore, To Serve My Courury; pp. 161-162.
to Serve M)' Race: The Story of the GIlI)'African-Amencan WACs Stationed Overseas duríng 55. "Escape from Dachau: My Dwn, Private V-E Dai', Wáshington Post, domingo, 7 de maio de
World War II (New York University Press, 1996). 1995.

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ENTRE CAMPOS" Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

campos. O texto local a este respeito enconrra-se na sua tentativa corajosa de


Elie Wíesel e Israel Lau, dois ex-prisioneiros muito conhecidos, mencionaram mudar os teimas que então conduziam a triste relação entre negros e judeus, em
a presença de soldados negros em momentos semelhantes de sua vivência. O especial na área de New York.
Arquivo Portunoff da Universidade de Yale, com testemunhos de sobreviventes do Para entender a tempestade de críticas que envolveu o filme, passado o
Holocausto gravados em vídeo, apresenta diversos outros exemplos contendo relatos entusiasmo inicial que saudou sua aparição, é importante notar que o termo
de prisioneiros libertados por tropas americanas negras, ou descrições de seus "Liberator" adquiriu uma definição técnica específica neste contexto. Para serem
encontros com eles logo depois de escaparem dos campos. 56 Assim como aconteceu merecedores dele, os soldados tinham de ter chegado no campo nas quarenta e
com Benjamin Bender, esses encontros tornaram-se em geral memoráveis oito horas de sua abertura à visão de um mundo incrédulo. Os registres militares
precisamente por serem as primeiras ocasiões em que se via uma pessoa negra. oficiais relativos ao deslocamento de soldados negros e seus tanques estão
Estes encontros servem como uma lembrança poderosa da arbitrariedade desaparecidos, inconclusos e contraditórios, mas ninguém põe em dúvida que os
das divisões raciais, do absurdo e da mesquinhez das tipologias raciais e dos perigos soldados afro-americanos chegaram em Mathausen e ao seu subcampo de
mortais que sempre estiveram presentes em sua institucionalização. O testemunho Gunskirchen dentro do tempo especificado, ou que tenham sido vistos em Dachau
eloqüente prestado por eles sobre a unidade e a similaridade da espécie humana, e e Buchenwald em algum momento próximo da hora da libertação, apesar de que
também sobre a moralidade do reconhecimento intersubjetivo, é ainda mais valioso não necessariamente dentro do período de quarenta e oito horas requerido. Com
por ser oferecido inocentemente do âmago da desgraça radical do século XX. base tanto em evidências fotográficas quanto em testemunhos de sobreviventes
Entretanto, estas mesmas qualidades intranqüilas tornam estes testemunhos para sustentar seu caso, o filme trouxe as mesmas pretensões de "Liberator'' para
perturbadores e extremamente difíceis de lidar num mundo codificado racialmente os soldados negros em Dachau e Buchenwald: campos mais famosos com maior
cujas suposições obstinadas são desestabilizadas por estas histórias cosmopolitas. prestígio na economia da memória oficial do Holocausto. Mas é muito mais profícuo
A exigência implícita de que as diferenças insignificantes identificada" como raciais observar que o filme, que contou com o importante endosso público do Reverendo
não têm nenhum peso quando vistas em meio à aura dos horrores engendrados Jesse Jackson, parece ter trazido um desafio profundo ao estado das relações
pela "raça" é atualmente impossível de satisfazer. entre negros e judeus nos Estados Unidos. Sua percepção da indivisibilidade do
Nos Estados Unidos, a significância contemporânea destes contos sinistro" racismo e da importância do testemunho prestado pelos negros a respeito do
tem sido disputada e diluída pela controvérsia que ainda ronda o filme documentário genocídio nazista violou uma visão popular que considera esta história como uma
inovador Liberators dirigido por Nina Rosenblum e Bill Miles e exibido na televisão propriedade de grupos e interesses particulares, cuja serventia atende a importantes
pública dos Estados Unidos e no Canal 4 da Grã-Bretanha no começo da década funções de legitimidade e solidariedade. Houve em seguida diversas denúncias do
de 1990. Como parte de uma ampla analise sobre o lugar dos afro-americanos nas filme como uma mentira e como um exemplo distorcido de uma reescrita da história
forças armadas e a relação entre as suas lutas contra o fascismo e o fracasso da politicamente correta. Ele foi definido e repudiado pelo seu revisionismo e pelo seu
América mesma em cumprir com os direitos humanos e civis de seus cidadãos papel em divulgar uma "nova linha sobre os judeus", de acordo com o radical e
negro::; durante o mesmo período, o filme reuniu ex-prisioneiros de campos e controvertido Jackson.
veteranos de guerra negros para comemorar e explorar a importância histórica, Se as teses centrais do filme, a saber, que os afro-americanos envolveram-
moral e política de seus primeiros encontros diante dos vergonhosos portões dos se bravamente na guerra contra o hitlerismo e na abertura de suas fábricas de
morte e outros campos, não podem ser recusadas, então a controvérsia sobre o
status-chave do "Liberaror" parece deslocada. Para o forasteiro isto se parece
56. Tape '1'-107; Leon Bass do 183 batalhão de engenheiros de combate, '1'-1241; Robbi Weissman,
Q

com um subproduto estranho do processo misterioso que restringia a concessão de


'1'-3061;Jacob Boehm, HVT 1357: Harry F., HVT 2761, Tobias C, HVT 2266; Susan Soffcr, '1'-
876. Estas fitas do Arquivo Fortunoff, Universidade de Yale, cobrem incidentes em Buchenwald, honras militares a unidades específicas e a seletos comandantes. Numa situação
Sa1zwedel, Gunskirchcn e Mauthauscn. em que se recusava atívamente aos negros a partilha de um reconhecimento

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I ENTRE CAMPOS .. Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça I I PAUL GILROY I

nacional proporcional ao heroísmo deles nos campos de batalha, não é de se consideram e discutem as suas próprias perspectivas de retorno, por vezes relutante,
surpreender o apagamento de quaisquer papéis que eles tenham desempenhado aos Estados Unidos. Eles são um grupo diverso e qualquer senso de unidade racial
nesses eventos. A rixa sobre a duração de tempo e o posicionamento também se rompe em meio às suas origens e lealdades regionais. Os negros sulistas e
parece trivial quando considerada juntamente com a inegável presença de negros nortistas são diferentes em termos culturais e educacionais. Mesmo o racismo
e outros americanos não-brancos nessas lutas. Este é um fato histórico que não institucionalizado em profundidade na vida militar é insuficiente para uni-los.
tem sido suficientemente apreciado e contextualizado. É parte não apenas da história O livro mostra que as relações opressivas entre negros e brancos na América
de negros e judeus em New York, mas da história da Europa no próximo século. não se modificaram para acomodar as experiências de homens que haviam sido
Os detalhes desses encontros certamente são importantes; constituem um baluarte preparados para arriscar suas vidas por seu país em combate no estrangeiro, mas
contra as tentativas de negar a ocorrência do genocídio nazista. Os registres a quem ainda se recusava direitos humanos e civis básicos na terra de seu
fragmentados e incompletos do caos da guerra não deveriam se tomar um pretexto nascimento. As tropas negras confrontam-se com uma hierarquia militar ansiosa
para as batalhas políticas contemporâneas, cuja única serventia é reificar e fortificar em expurgar de suas fileiras os soldados negros cujo papel nos combates fora
diferenças raciais espúrias.
sancionado com muita relutância, tendo se tornado central aos sucessos militares
dos aliados.
A FACE DE PEDRA Em meio ao caos das privações do pós-guerra, do mercado negro e da
Guerra Fria emergente, Smith mostra como as autoridades americanas estavam
Após reunir as implicações deste longo argumento, ficamos com a questão inquietas acerca das relações entre as tropas negras e as mulheres alemãs brancas.
de como podem ser usadas essas histórias cosmopolitas e translocaís de extremidade Este contato transgressivo constitui o tema central do romance. Mais ainda do que
e mutualidade humana. Que lugar, isto se houver algum, deveria ser conferido a ocorrera na Grã-Bretanha;" os soldados afro-americanos na Alemanha sofriam
elas na~ explicações cont~mporãneas sobre a "raça" e nos conflitos sobre a direção injúrias e eram incriminados por seus comandantes e pela polícia militar por
e o carater da cultura e civilização européia? Estas questões foram especialmente "fraternizar" com garotas e mulheres locais. Onde quer que vigorassem amplamente
pre~c~pantes não apenas aos afro-americanos e tropas coloniais que haviam as atitudes do sistema Jim Crow e o cavalheirismo sulista, as mulheres também
p~~lpado da g~erra, mas também àqueles que chegaram na Europa logo após o eram tratadas com brutalidade pelas autoridades militares de ocupação. Estes são
termíno das hostilidades formais. O romancista e escritor afro-americano William os estranhos bastidores onde os soldados de Smith consideravam o significado das
Gardner Smith fez parte das forças de ocupação na Alemanha, tendo se decidido diferenças raciais e debatiam a relação entre o genocídio nazista, legitimado pela
a mo:ar em ~aris depois da guerra. Seu trabalho oferece uma resposta raciologia, e suas próprias experiências de racismo codificado pela cor, dentro e
especIalmente interessante para estes desafios morais e políticos _ não porque fora do meio militar, no seu próprio país e 110 exterior.
seus romances manifestem grandes qualidades literárias, mas porque, imbuídos de Os protagonistas de Smith - Randy, com suas inclinações patrióticas, Homo
u~na bravura exemplar, eles ousam abordar questões complexas e importantes que com sua sensibilidade, Murdoch o sábio professor de cabeça quente e Hayes
t~m u~a r:l~ção diret~ com os problemas de identidade, pertencimento e justiça Dawkins, um datilógrafo tranqüilo da Filadélfia que atua como a voz principal do
nao raciolôgica que hoje nos preocupam.
autor - todos aceitam a centralidade esmagadora da "raça" em suas vidas, mas
O primeiro romance de Smith, O Último dos Conquistadores, foi publicado não compartilham de uma visão unificada sobre a América ou a Alemanha. A
em ~948, quando ele tinha apenas vinte e dois anos. Ele trata dos destinos de um difícil tarefa de entender o nazismo e as suas conseqüências acarretava divisões
~ontl~gente de soldados americanos na Alemanha em meio às conseqüências
ImedIatas da guerra. Smith explora uma série de posições e experiências
contrastantes à medro . ..
• ' 1 a que esses jovens negros mspecronam o naufrágio do regime 57. Graham Smith, When Jim Crow Met John Buli: Black Amerícan Soldiers ín World War Il (1. B.
nazista e observam os alemães começando a reconstruir suas vidas. Os soldados Tauris, 1987).

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROV

ainda mais afiadas entre eles. Alguns dos veteranos endurecidos pelas batalhas nenhuma maneira a sua própria racíologia.
tendem a considerar o que viam como a linha oficial do exército, identificando Seria bom repetir que estas comparações entre os dois diferentes regimes
todos os alemães com o hitlerismo, enquanto outros, inclusive Dawkins, desenvolvem racializados na Alemanha e na América já haviam sido feitas em geral pelos
passo a passo uma posição mais complexa e perturbadora que percebe o racismo americanos negros antes do início do genocídio nazista. A passagem de leis
contra os negros como fundamentalmente ligado ao anti-semitismo. Eles não discriminatórias suprimindo os direitos e as oportunidades dos judeus desencadeou
aprendem isto apenas devido à percepção de que os nazistas também se um grande debate sobre os males sancionados pelos dois sistemas opostos. Os
preocupavam com o destino de seus subalternos negros, mas por compreenderem soldados negros de Smith discutem tudo isso em certa medida. Eles também resolvem
a dura lição ensinada pelo anti-semitisrno feroz de seus compatriotas brancos. esses problemas de maneira prática em suas relações próximas com vários alemães,
Numa rodada de bebidas descontraída após o expediente, um capitão branco cujas opiniões pós-nazistas sobre a América c sua hierarquia racial são ambivalentes
aparentemente liberal reconhece os efeitos do racismo anti-negro nos Estados no conflito crónico com seus oficiais brancos e o que importa ainda mais, em seus
Unidos e em seu exército. Ele defende a democracia americana e faz um apelo atritos costumeiros com a polícia militar que se esforça por regular a conduta
sutil à reeducação da nação alemã, antes de expressar sua apreciação pelo trabalho pública dos soldados de acordo com as prescrições racistas do senador Bilbo do
efetuado pelos nazistas no sentido da eliminação dos judeus: Mississipi e de membros sulistas do Estado-Maior dos Estados Unidos.
A especificidade deste momento histórico já foi abordada por vários autores
"Gente, me esqueci. Havia um lado bom em Hitlere nos nazistas". de autobiografias." mas não foi ainda adequadamente explorada pelos historiadores.
Esperamos por este único lado.
"Eles se livraram dos judeus". Esta foi uma fase importante em que as autoridades dos Estados Unidos sentiram
Um dardo de tensão aterrissou na sala. Não se podia vê-lo ou ouvi-lo, mas se podia pela primeira vez a vulnerabilidade internacional de seu país às críticas de sua
senti-lo aterrissando. As garotas alemãs, em especial, estavam chocadas... hierarquia racial interna. É significativo que a apreensão de toda a extensão do
"A única coisa. A única coisa boa que eles fizeram... Deveríamos fazer o mesmo nos genocídio nazista tenha refinado aquela acusação da democracia codificada em
Estados Unidos". cores vigente nos Estados Unidos. Esta disposição também se faz presente nas
Como fazer um capitão parar de falar?
reminiscências dos tempos de guerra dos soldados afro-americanos, alguns deles
"Os judeus tomam todo o dinheiro", disse o capitão. "Tomam todas as lojas e
bancos.Gananciosos. Querem tudo. Não deixam nada para as pessoas. Fizeramisso tendo procurado obter do governo americano o reconhecimento público de sua
na Alemanha e Hitler foi esperto. Livrou-se deles. Estão fazendo isto agora nos contribuição para o esforço de guerra, em combate e em atividades de apoie."
Estados Unidos.Tomam o país e os americanos não têm nada a dizer sobre isso.Eles Os americanos de Smith lutaram todos na guerra contra Hitler, mas se dividem
deixam os judeus conduzirem seu país"." entre aqueles que apóiam os objetivos do autor e aqueles que os menosprezam. Os
alemães de Smith precisam ser reconhecidos também como um grupo diferenciado.
Essa percepção desconcertante sobre as operações do pensamento racial A questão da sua responsabilidade coletiva pelo genocídio nazista é levantada no
coloca a orientação moral e política dos personagens negros sob grande tensão. início da narrativa:
Ela se acentua particularmente quando se elabora o duplo padrão que permite ao
governo dos Estados Unidos atacar a conduta nazista e ao mesmo tempo praticar "Você sabe", disse Randy, "Não posso acreditar nisto. Dois anos atrás eu teria
uma forma de racismo diferente, porém brutalmente institucionalizada. Smith traz
à tona um mundo complicado e moralmente exigente, onde os anti-semitas
a.meri~anos e outros racistas podiam lutar contra o fascismo europeu com 59. As memórias de Leon C. Standifer narram detalhes fascinantes das atividades dos soldados
negros na Bavária do pós-guerra. Elas se aproximam muito das observações feitas por Gardner
smcendade sob os lemas de sua própria democracia imperfeita sem questionar de
Smith. Ver Binding Up lhe Waunds: An Amcrícan Soldier iII Occupíed Germany. 1945-1946
(Louisiann State University Press, 1997), em especial pp. 150-t73.
58. Willian Gardner Smith, The Ú/SI oj the Conquerors (Farrar, Strauss and Co., [948), p. 105. 60. U.S. News and World Report, 6 de maio de 1996.

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ENTRE CAMPOS :: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

atirado no filho da puta que dissesse que eu algum vez me sentaria num bar levantando repente, eu senti uma amargura."
um brinde com os filhos de Hitler".
Foi como um choque elétrico, a palavra Hitler. Eu podia sentir a garota ao meu lado Use ensina a Hayes o alemão elegante, Hochdeutsch., não Blatt Deussctú
tomar-se rígida... Randy ria-se... "Vocês são todos iguais. Todos vocês. As pessoas
Ela também o apresenta a sua tia e seu tio, levando-o para uma visita à casa deles,
com quem nos sentamos hoje à noite são aquelas mesmas que queimavam pessoas
nos campos e esmurravam o nariz de judeus". onde ele os agrada com um presente muito estimado, os cigarros. Enquanto o
tempo passa, os jovens soldados negros trocam idéias sobre esportes, política,
Smith faz com que o ataque de Randy aos alemães seja respondido por uma garotas e a música onipresente da American Forces Network. Hayes mostra ter
jovem alemã, igualmente irada, que replica a condenação geral de seu país feita se tornado tão familiarizado com Berlim quanto o era com Filadélfia e New York.
por ele com um exemplo distinto tirado do cenário americano: Em meio à emoção despertada pela canção "Prisoncr of Love" cantada por Perry
Como - um dos vários momentos-chave em que a música e os sentimentos trazidos
"Olhe só quem fala! E quanto aos americanos'! Você talvez não possa nem mesmo por ela têm um papel especial na narrativa - ele ouve Murdoch explicar sua
andar na rua com uma mulher branca em seu país. Os americanos brancos te enforcam relutância em deixar a Europa e retomar para os Estados Unidos. Este encontro
numa árvore se você fizer algo assim". Ela sorria com o canto da boca. merece ser citado minuciosamente: "Escute Hayes, eu não posso deixar este lugar.
"Onde você ouviu esse lixo'?" Randy gritou. Ele corou até mesmo com sua pele
Não posso. Não quero voltar para lá de novo. Juro que não. Eu não quero voltar
escura."
nunca mais". Murdoch, um combatente veterano que fingia vir de Chicago, revela
ter nascido na Geórgia, onde tudo que ele poderia esperar era o duro trabalho
A intimidade sexual e emocional entre homens negros e mulheres brancas
físico de cavador de fossas. Ele continua:
apresenta-se como algo a mais do que um símbolo primário das diferenças entre a
Europa e a América. É também a fonte principal de conflitos entre soldados
Você não está longe de toda aquela m__ há tanto tempo quanto eu. Você ainda
negros e as forças armadas a que pertencem. Smith dramatiza as maneiras como
não teve a sensação de ser livre. Eu gosto deste país maldito, sabia? ... É o primeiro
esses homens jovens negros são levados a refletir não apenas sobre o sentido de lugar que eu já fui tratado como um homem pra valer. Você sabe o que eu aprendi
sua própria negritude, mas através dos percursos da viagem militar sobre a natureza aqui? Eu aprendi a dançar todas essas danças bestas elegantes e agora sei o que é
da própria democracia. Assim como o valor do amor e a possível significância da entrar em qualquer lugar, qualquer lugar, sem me preocupar se eles servem pessoas
humanidade em comum que o desejo sexual põe cm foco, pode-se compreender de cor. Você não está aqui um tempo suficiente para se sentir como eu. Você sabe
que diacho eu aprendi? Que um negro não é diferente de ninguém. Tive de vir para
melhor este aspecto quando ele é visto contra o cenário de fundo provido pelo
cá para aprender isto. Tive de vir aqui para que os nazistas me ensinassem isso. Eles
término do fascismo. Hayes Dawkins meditava precisamente sobre estes tópicos, não ensinam este negócio lá na terra da liberdade ... Talvez você pense que é por
enquanto descansava numa praia arenosa e contemplava a água em Wannsee causa destas malditas garotas daqui. Por mim, elas podem todas ir para o inferno. Eu
com sua nova namorada alemã, Ilse Mueller: apenas me sinto como um homem. Sinto que ninguém me olha de cima por causa da
minha pele. Se eu quisesse, poderia comprar qualquer casa aqui. Posso agir como
Eu já me estirara muitas vezes na praia, mas nunca antes com uma garota branca. qualquer outra pessoa. Eu me sinto como um homem. Percebe? Apenas como um
Uma garota branca. Aqui, longe por um tempo da idéia de diferenças, era estranho homem."
como eu esquecia disso tão rápido. Já não tinha mais importância.Todo mundo era
azul, verde, ou vermelho. Ninguém olhava quando nos deitávamos juntos na praia, Murdoch volta de má vontade para uma vida miserável na Geórgia, mas
nossas peles contrastando, mas nossos corações batendo identicamente e cada um Homo, outro membro desencantado do grupo, toma outra decisão ao receber ordem
com um nariz bem no meio das nossas caras. Estranho me parecia que aqui, na terra de retorno para os Estados Unidos, dando início a uma vida de exílio no setor
do ódio, eu devesse encontrar esta fase de suma importância da democracia. E, de
61. Smith, The Last ofthe Conquerors, p. 35.
62. fbid., p. 44. 63. Ibíd., p. 68.

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ENTRI:: lAMPUS .. Nações, CuLturas e o Fascinio da Raça PAUL lilLKUY

de Bremburg. Parece que decidiram escolher este lugar para colocar quase todas as
russo. O incentivo para isso se deu num encontro com soldados russos, cuja
tropas... É um sistema engenhoso. Agora, quando querem dar ordens somente para
familiaridade com detalhes da questão racial nos Estados Unidos é surpreendente: as tropas de cor, eles têm apenas dc esperar que o comandante do grupo dê uma
eles conhecem o caso dos garotos de Scottsboro e estão bem a par da história da ordem para todas as suas tropas. Dessa maneira, isto afeta apenas os negros, mas
greve do P.T.e. de Filadélfia. Ele percebe que talvez não possa ir muito longe em eles não precisam mencionar a raça. Ê um sistema engenhoso, sem dúvida...Todos
termos materiais no bloco comunista, mas explica que existem outros benefícios os oficiais são crackers [brancos pobres rurais].65
menos tangíveis acenados por este difícil caminho.?"
A agressão pré-genocida dos alemães contra os judeus é comparada As garotas locais alemãs são espertas em matéria de enganar essas
repetidas vezes com o sistema Jlm Crow, suas semelhanças informais nortistas e regulamentações. Ilse, cujo amor por Hayes faz com que ela seja também
a violência de supremacia branca ministrada pela polícia militar na Europa. Apesar engenhosa, encontra uma maneira de frustrar as regras que regulam os cartões de
de Smith não ser muito enfático quanto a este ponto, esta convergência sugere que ração, suprimentos de PX e a movimentação de civis entre os setores para segui-
as possibilidades genocidas podem ser latentes ou dormentes dentro das formas de lo até Bremburg. Em suas buscas por um local de moradia para ela, Hayes conhece
brutalidade e de ódio racial cotidiano que operam nos limiares mais baixos. Hayes Kurt Schneider, um jovem veterano alemão, loiro de olhos azuis, que voltara há
surpreende-se em descobrir que outros negros - de ascendência colonial e mista - pouco dos Estados Unidos onde fora prisioneiro de guerra, primeiro no forte Leonard
ainda se encontram em Berlim, tendo sobrevivido ao período nazista. Ele também Wood no Missouri e, depois, em Camp Lee na Virgínia." As observações de
encontra Sonny, o lindo filho de quatro anos de um soldado afro-americano com primeira mão de Schneider sobre as relações raciais sulistas forneceram ao seu
uma mulher alemã, criado pelos amigos alemães de Ilse. veredicto sobre a América um sabor especialmente pungente. Ao que parece, ele
De um dia para o outro, Hayes e seus companheiros são enviados para um também se beneficiou daquela mágica política especial que transforma os europeus
novo posto em Bremburg. Hayes sofre com a possibilidade de ser forçado a se "étnicos" em brancos americanos assim que eles pisam em solo americano:
separar de Use e perder a camaradagem do seu alojamento no quartel de Berlim,
"Na América eles fazem quase a mesma coisa com o seu povo - os americanos
além do vigor cosmopolita da cidade e sua vida noturna. Ele se depara com um
negros _ que os nazistas faziam aqui com os judeus. Quando estava em Camp Lee
cotidiano muito diferente no ambiente novo e mais segregado, onde o racismo se na Virgínia, eu tinha de ir à cidade às vezes com outros prisioneiros para trabalhar, e
expressa de um modo vicioso e aberto, e a polícia branca, militar e civil, procura em algumas ocasiões um soldado negro vinha nos vigiar. Na hora de comer os
impor uma linha estrita, quase formal entre os soldados negros e a população local. soldados nos levavam a um restaurante. Mas, você quer saber de uma coisa? Nós
Ao que parece, esta mudança tem a ver com a forma como o exército lidava podíamos comer no restaurante, mas os soldados não. Porque eles eram negros. Os
então com as suas próprias tensões raciais na fase do pós-guerra. Em termos prisioneirospodiam comer, mas eles não serviriam aos guardas. De volta ao campo,
os soldados alemães sempre riam daquilo. Era muito engraçado... Você sabe do que
coloquiais, Bremburg era conhecida como "o inferno dos negros", trazendo muitos
você precisa na América?"
estímulos formais e informais para que as tropas negras deixassem a Europa e a
Eu esperava.
vida militar. Os homens sofriam corte marcial ao não serem encontrados em seus "Um Hitier",
alojamentos à noite, sendo punidos caso contraíssem doenças venéreas. Muito Ele olhou para mim com olhos sorridentes...
esforço engenhoso foi posto para conter os soldados negros e mantê-los confinados "Vocêprecisa de um Hitler", ele disse. "Alguém forte o bastante para assegurar que
tanto quanto possível nas áreas ao redor da base:

Eles colocaram quase todos os soldados de cor na Alemanha bem por aqui, na área
65. Ibid., p. 138.
66. Arnold Kramrner, Nazi p nsoners ofWar in America (Srein and Day, 1979); e Hermann Jung, Díe
Veutschen. Kriegsgefangenen iIIamerikanischer Hand USA (Verlag Ernst und wcrner Gieseling,
64, Ibid., p. 108. 1972).

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I tNIKt LAMI'U::' .. aaçces, Culturas e o Fascínio da Raça I I PAUL GILROY I

todos sejam tratados igualmente. Hitler teria assegurado isso". que sobrevive ao atentado de Steve, tentar por seu turno forçar a saída de Hayes.
"Como ele fez com os judeus?"
Hayes pode escapar da corte marcial sob a acusação forjada de ter estado ausente
Ele não teria feito isso com os negros".
"Você leu Mein Kampj?" durante a inspeção notuma do alojamento apenas se ele estiver preparado a dizer
"Não", ele disse? que optara em deixar o exército voluntariamente. Perante esta coerção, Hayes vai
"Você deveria. Você descobriria o que ele acha dos negros''.»? embora cheio de ressentimento, ponderando as muitas ironias em ter tido de viajar
para a Alemanha para descobrir a democracia. Seus amigos alemães foram avisados
Esta é a segunda declaração de Smith a respeito das afirmações de Hitler de que, contra todas suas as expectativas, ele voltaria um dia para aquele país.
sobre os negros. Ela antecede uma cena interessante em que os amantes unidos O último romance de Smith, A Face de Pedra (1962) compartilha e estende
novamente vão ao cinema local. Sua atenção crítica é atraída pelas técnicas muitas das preocupações de seu primeiro livro. Mais uma vez, o protagonista é um
racializadas de iluminação e pelas convenções ao estilo do coon-show [show do afro-americano sem lugar e deslocado que escolheu o exílio europeu, agora em
Negro caricaturesco] aplicadas ao filme curto de abertura, o que se identifica Paris. Mais significativo ainda é que o livro amplia e modifica as tentativas de
como parte de um processo para iniciar audiências européias indefinidas nos códigos Smith de considerar as conseqüências do pensamento racial em termos
raciais da indústria de entretenimento americana. Mais tarde, já em casa, a comparativos e transnacionais. Outra vez, o genocídio nazista está presente. Agora
masculinidade americana "mais macia" de Hayes suscita diversos comentários ele também é encenado contra a brutalidade muito distintiva envolvida nos conflitos
entre as mulheres alemãs que não estão acostumadas a ver um homem participando americanos entre negros e brancos. Os personagens de Smith habitam as sombras
de boa vontade de afazeres como o de lavar a parte que lhe cabe da louça. A projetadas por esse evento monumental, tornando-se o contexto essencial em que
felicidade do jovem casal é interrompida quando ao ser vista em público com Hayes, se pode fazer avaliações éticas e políticas importantes. Entretanto, agora uma
Use é presa pela polícia militar racista e acusada de prostituição sob pena de Iei.. terceira história sobredetermina e intermedeia a relação entre os processos históricos
Hayes é ameaçado c maltratado quando vai perguntar sobre o destino dela. Ele mundiais que formaram e reuniram seus personagens principais: a guerra em tomo
luta com os PMs, que já haviam estabelecido elos com a Polizei alemã, envolvendo- da descolonização francesa do norte da África. A Face de Pedra tenta responder
os na malha de moldes americanos com suas idéias de supremacia branca. Passam- como o racismo do processo de descolonização vincula-se com esses outros
se duas semanas antes do casal se rever; eles são capazes de recompor um pouco sistemas racializados. Chama-se a atenção para o cenário da Guerra Fria onde as
de sua felicidade comum até que aumentam as pressões sobre Hayes para ele questões da diferença racial emergem como aspectos centrais e reconhecidos de
deixar o exército e voltar para os Estados Unidos. geopolítica.
Enquanto isso, Steve, um soldado amigo que ajuda Hayes no trabalho O protagonista de Smith neste romance é Simeon Brown, outro talentoso
administrativo do escritório da companhia, aguarda pela corte marcial por ter jovem afro-americano vindo da Filadélfia para trabalhar como jornalista na França.
desobedecido a uma ordem direta ofensiva do sargento, o qual está determinado a Ele tem apenas um olho, tendo perdido a visão ao sofrer o ataque sádico e cruel de
tomar a vida do soldado a mais miserável possível. Esta acusação tem boa recepção uma gangue de jovens brancos que o capturaram quando ele atravessava o gramado
entre seus superiores por ser um instrumento conveniente para forçar a saída do deles. Simeon encara sua cegueira como uma troca em vez de uma perda. A
exército de mais um negro indesejado, assim como uma maneira de ajustar uma visão reduzida lhe deu outros tipos de força. Ele ganhou força, sabedoria, respeito,
velha rixa. O tiro sai pela culatra de maneira catastrófica depois que Steve é virilidade e auto disciplina em decorrência de ter sido mutilado. Sua deficiência de
condenado a uma detenção de seis meses. Ele aponta uma arma contra seus visão é um elemento chave de sua capacidade para se ligar a Maria, uma judia
perseguidores e foge pela estrada. As circunstâncias seguintes levam o capitão, cordata da Polónia que sobreviveu aos campos nazistas e saiu ferida, mas
determinada a usar seu belo corpo e gestos graciosos para construir uma carreira
de arriz.
67. Smith, The Last ufrhe Conquerors, p. 165.
A visão parcial de Simeon é também associada com sua vontade de ser

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

artista. Ele se move por entre os conflitos e ciumeiras que caracterizam a subcultura empregada doméstica, que não consegue votar, impedida pela patroa branca.
dos americanos expatriados - negros e brancos. A colônia negra na Margem A cada episódio, o mais brutal perpetrador de violência racial parece ter
Esquerda [do Sena] toma-se uma fonte importante de amparo na qual ele pode se estampada a mesma terrível expressão. Simeon capta suas feições como se
deleitar com a linguagem e os gracejos culturais de sua terra natal. Ele faz novos moldadas na mesma face inumana e instantaneamente reconhecível. Esta medonha
amigos entre artistas, músicos e escritores. A tensão entre os membros deste alucinação é a face de pedra que dá o título ao livro, e é este aspecto assustador da
grupo aumentara com a Guerra Fria, mas Simeon diverte-se em meio à atmosfera face de pedra que Simeon tenta capturar em sua pintura semi-acabada. O rosto é
cosmopolita, à liberdade sexual e à ausência da hierarquia de cor e do racismo apresentado de início ao leitor no episódio em que Simeon fica cego nas mãos de
anti-negro que ele deixara para trás nos Estados Unidos. Ele também se deleita seus torturadores adolescentes: "A face brilhou. Ficou mais luminosa, uma estrela
com o legado político revolucionário dos franceses: satânica, incendiada pelo ódio e pela maldade. Simeon cerrou os olhos para não
vê-la. Suas pernas cederam, mas os garotos o levantaram. O mundo carnbaleou't.s"
Ele gostava das caras do povo comum francês - não de lojistas, políticos, Mas, além de ser uma marca do racismo americano, esta face também é
intelectuais, funcionários ou policiais,mas sim de motoristas de ônibus, limpadores familiar a Maria. Traz-lhe à mente coisas doloridas que ela se esforça por esquecer.
de rua, vendedores dejornais, trabalhadores em LosHalles, ferroviários ... Ele liaem
Pouco a pouco, ela revela ter visto algo parecido ao sofrer abuso sexual aos nove
seus olhos as memórias vagas da Revolução Francesa, da Comuna, da Resistência.
Essas Coisas não haviam sido esquecidas, elas ainda estavam no povo francês e, anos de idade em um campo nazista.
através deles, em Símeon." Foi depois de um de seus encontros terríveis com brancos violentos que
Simcon decide deixar sua terra natal. Ele carrega uma pistola para se proteger,
Não demora muito para ele perceber que este belo legado tem suas limitações. temendo que se não for embora acabará matando alguém em legítima defesa. Sua
O racismo, apesar de tudo, não está ausente de Paris; apenas assume formas compreensão provinciana americana de raça começa a mudar ao ser pego em
diferentes. Embora nunca antes a sua própria vida sofresse tão poucos meio a um conflito entre argelinos e a polícia. Os argelinos, aborrecidos por sua
constrangimentos, os mecanismos brutais que ele encontrara anteriormente falta de solidariedade e de percepção acerca de suas lutas, insultam-no como a um
aparecem uma vez mais no racismo anti-colonial dos franceses contra os árabes. homem branco. Um deles serviu como membro das Forças Francesas de
Independentemente dos escritos quc lhe trazem uma renda mínima, Simeon Libertação, tendo visitado os Estados Unidos na época em que estava na marinha.
ocupa-se agora com uma pintura. Ele retrata uma face impressionante em sua Ele repreende Simeon com severidade por sua visão limitada e sua incapacidade
frieza e aparência inumana que, conforme ele explica, trata-se de um retrato do de perceber as conexões entre os sofrimentos dos negros nas cidades americanas
homem a quem ele evitara matar por ter deixado sua terra natal. Embora diversos e aquilo que os argelinos enfrentam em Paris. Ele diz a Simeon:
personagens expressem os efeitos imprevisíveis e libertadores da vida parisiense,
Simeon encontra racistas brancos dos estados sulistas que não haviam se Nós somos os negros aqui! Saiba do que os franceses nos chamam - bicot, melon;
transformado com a atmosfera alegre e multicultual. Por meio de uma técnica ratan, nor 'raf. Isto significanegroem francês.Você não tem medo de que nós talvez
o roubemos? Você não está horrorizado com nossas roupas amassadas,com o odor
muito mais refinada do que aquela usada em seu primeiro livro, Smith intercala as
de nosso corpo? Não, de verdade, quero te fazer uma pergunta séria - você deixaria
cenas parisienses com lembranças da vida anterior de Simeon nas ruas violentas sua filha casar com um de nós?"
da Filadélfia e das vidas miseráveis de seus pais sob o sistema Jim Crow e seus
equivalentes nortistas. As cenas em que se vê Simeon ser cegado, surrado pela Nem todos os americanos negros em Paris estão tão preparados para
polícia racista e atacado por um grupo de marinheiros racistas em folga, dão lugar esclarecer sua definição sobre quem se tem como negro. O amigo de Simeon,
às estórias de intimidação de seu pai em um ônibus segregado e de sua mãe,
69. Ibid., p. 28.
68. Willian Gardner Smith, The Stone Face (Farrar, Strauss and Co. 1963), p. 115. 70. Ibid., p. 57.

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça
PAUL GIlROV

Babe, é um "homem da raça" e fundador oficial da ANPPC [Associação Nacional Por anos depois da guerra, eu não sonhei com nada a não ser aquelecampo, aquelas
para o Progresso das Pessoas de Cor], mas ele se convenceu que a definição fileiras de gente, os rostos de meus pais e o rosto daquele comandante. Por anos eu
oficial francesa sobre o conflito com os argelinos é correta. Ele avisa Simeon para sonhei que poderia torturar e matar aquele homem. Por anos, eu não podia dormir se
não considerar de modo algum as situações dos dois grupos como conectadas. não tivesse uma faca debaixo de meu travesseiro"."
"Esqueça isso, homem. Os argelinos são pessoas brancas. Eles se sentem como Enquanto Maria e Simeon tornam-se cada vez mais íntimos e à vontade, ele
faz amizade com Ahmed, um radical argelino. Ele visita o bairro argelino,
pessoas brancas quando estão com negros, não se engane com isso. Um homem
comparando-o com o Harlem. Neste lugar ele reconhece muitos padrões de
negro já tem problemas demais neste mundo para se meter a defender gente
comportamento social e cultural que antes pensava como algo específico dos
branca"." Ao contrário, as palavras sábias e perturbadoras de um velho negro
americanos negros. Simeon não se detém no fato da Argélia se situar no continente
barbado perseguem os sonhos de Simeon: "Filho, onde quer que o racismo exista,
onde quer que a opressão exista, quem quer que viva na complacência de suas africano. Com muita paciência ele explica que a África parece remota da vida
sombras é culpado e amaldiçoado para sempre". 72 cotidiana dos americanos negros em termos de espaço e de tempo." Ele também
Esta injunção ancestral ainda está na mente de Simeon ao nnal da primeira deixa bem claro que os árabes não são negros. Smith faz Simeon descobrir uma
parte do romance quando ele compreende que o sentimento anti-érabe equivale profunda afinidade nascida da condição de opressão racializada. Esta solidariedade
precisamenre ao racismo anti-negro sofrido por ele no contexto americano. Quando
é confirmada assim que ele percebe uma comunidade argelina sitiada tal como em
seu país. Os argelinos são constantemente internados em campos que não se
as implicações deste pensamento são sentidas por Simeon, Maria começa a revelar
destinam à morte, mas que ainda assim lembram os dos nazistas;
um pouco de sua própria estória de vida nos campos. Isto aprofunda a compreensão
dele sobre o poder corrosivo do pensamento racial, mas é bem mais que um modo
Há dois bem perto de Paris, e os outros estão no meio-oeste e no sul. Pensava que
fácil de trazer um tom de gravidade moral à estória americana de Simeon. Ela
todos soubessem disso. Os argelinos desaparecem todos os dias, e depois se ouve
narra detalhadamente a separação forçada de seus pais durante uma inspeção de dizer que eles estão neste ou naquele campo. Estes campos não são tão agradáveis.
campo empreendida pelo seu agressor alemão. Simeon aceita sua narrativa de Não há câmara de gás, é claro, mas os guardas e funcionários não são gentis. É pior
sofrimento como mais compatível do que equivalente com a tradição de opressão na Argélia. A tortura desenvolveu-se em uma arte superior naquele lugar."
que acarretou a sua fuga. A reação dela à sua resposta paciente e solidária é mais
complexa. Não é o sofrimento passado que torna possível a sua comunicação e Quando um dos árabes pergunta a Simeon como ele se sente em viver
compreensão mútua. São suas lutas paralelas com sentimentos homicidas de como um homem negro em um país branco, sua resposta mostra o quanto ele
vingança que promovem a base de sua compreensão recíproca e estimula seu absorveu de sua intimidade com Maria: "Como um homem sem país. Como o
desejo mútuo: judeu errante". Estas palavras, que antecipam o veredicto de Babe sobre sua
própria vida como um "negro errante", assinalam o momento para um ataque da
Simeon estava calado. Ele a abraçava com força, sentindo-se mais perto dela do que polícia.
nunca. Talvez eles pudessem se compreender afinai. Ele observa a fumaça dos A percepção de que as diferenças raciais não impedem as continuidades
ciganos de ambos ondulando até o teto. Maria beijou o ombro dele e disse: "Você significativas do sentimento humano, e a compreensão de que os racismos assumem
entende, Simeon, eu não te contei isto por pena. Milhões de pessoas viveram o
várias formas, não tornam Smith um ingênuo em matéria da natureza contínua da
mesmo. Mas isto é uma parte de mim, você precisa entender isto para me entender.
divisão racial ou das tãticas apropriadas para extinguir o racismo. Simeon responde

71. lbid., p. 105.


72. Ibid., p. 58.
74. lbid., p. 93.
73. Ibid., p. 79.
75. Ibid., p. 91.

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ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

à perplexidade de um hipster [pessoa elegante e amante do jazz] branco solidário com Os árabes e também em mergulhar em complicações, causas e problemas
com estas palavras: "qualquer membro de um grupo privilegiado em uma sociedade políticos. Segundo ela, este comportamento significa em termos psicológicos uma
racista é considerado culpado. Todo sul-africano branco é culpado. Todo francês é recusa em aceitar a felicidade que a vida parisiense lhe proprociona. Simeon, que
culpado aos olhos dos argelinos. Todo americano branco é culpado. A culpa pode recusa "a psicanálise e as caixas orgone", contrapõe-se argumentando que a vida
acabar somente quando o racismo acabar". 76 Este esquema demasiado nítido se pacífica e estável a que ela aspira "pode não ser possível para um negro se ele
rompe com a força do anti-semitismo percebido no momento que os amigos argelinos pensa e sente".
de Simeon tentam consolar Maria, que se sentiu extorquida por um lojista ao As experiências de Maria também a fazem hesitar em declarar seu amor
comprar um bracelete de beleza irresistível: por Simeon. Suas ansiedades existenciais aumentam devido à preocupação imediata
com a cirurgia ocular necessária para que ela recupere a visão declinante. Simeon
"Deve ter sido um judeu sujo quem te vendeu isto". lê sobre o progresso das lutas pela desegregação no Sul enquanto aguarda a
Estas palavras caíram em cheio sobre eles. Maria levantou a cabeça num rompante operação destinada a ser um divisor de águas na vida de Maria. Ele sente dores
como se tivesse sido esbofeteada. Lou ficou boquiaberta, os olhos de Betty
em seu globo ocular vazio ao mesmo tempo em que as fotografias de Little Rock
arregalaram-se, revelando surpresa e dor... Simeon estava atordoado. Aquelas
palavras de um dos argelinos? De repente toda uma estrutura mental e psicológica vislumbradas na mídia francesa o perseguem. Os expatriados debatem longamente
que ele construíra desde a sua primeira conversa com Hossein parecia desmoronar. a situação no Congo nos cinco dias em que Simeon espera para descobrir se a
O rosto de Maria estava lívido de raiva; toda a frivolidade havia sumido. operação de Maria teve sucesso ou se ela perderá a visão. O resultado é positi vo
"Eu sou uma judia suja", ela dísse." e com isso os amantes partem para um feriado prolongado na Córsega, onde Simeon
fica cismado em ver a imagem de uma cabeça de negro na bandeira da província.
Esta cena fundamental marca a emergência de Maria como uma personagem O resultado positivo da cirurgia ocular traz mais energia e ambição a Maria.
complexa, desenvolvida e articulada, longe de ser uma nulidade fugaz cujo papel Ela agora está determinada a alcançar fama como atriz. Uma festa para celebrar
seria permitir que Smith transcendesse o seu relutante provincianismo americano. o casamento de Babe e Marika, sua namorada sueca, termina de forma abrupta
Vemos Simeon lutando com a possibilidade inquietante de que qualquer um poderia quando os convidados se inteiram do assassinato de Patrice Lumumba. Simeon
ser racista antes de Maria intervir e refutar relatos simplistas da história e do sente o impacto destrutivo sobre a vida em Paris desencadeado pelo fim do poder
desenvolvimento do anti-semitismo. Ela confronta Hossein - o ideólogo político do colonial francês. Ahmed, seu amigo argelino, desiste de seus estudos para se juntar
grupo de árabes - com a questão fundamental sobre a fonte de sua aversão aos ao Front de Libéraríon Nationale (FLN) [Frente de Libertação Nacional]. O veneno
judeus, instando-o a racionalizá-la. Ele revela que odeia os judeus mais do que lento que se difunde a partir do fim do império francês manifesta-se com o
odeia os franceses e os colonialistas. Smith recusa-se a se deixar engolfar na crescimento do nacionalismo e do chauvinismo de ultradireita. Simeon observa
conversa penosa seguinte. Simeon pergunta por que eles se deixam levar pelo com pesar uma mudança nos modos do policiamento da cidade. Protegido pela
preconceito cego nesta discussão enquanto se lembra do anri-semitismo de seus vida pacífica improvisada por ele e por Maria, Simeon compara a indiferença francesa
tempos de criança na Filadéfia e reflete sobre ele. Os argelinos partem, os quanto ao destino dos argelinos com a maneira que os cidadãos alemães deram as
espectadores brancos se desesperam, ao passo que Simeon e Maria, que não costas aos sofrimentos dos judeus, e não pode fazer nada para impedir o estado de
gosta de discutir grandes questões morais por isto a deixar mal, estão mais ligados ânimo hediondo que impregna a consciência francesa pós-colonial.
do que antes. Ela se perturba diante da inclinação dele em se solidarizar politicamente Numa noite solitária, ao ouvira som distante de uma bomba da Organisation
Armée Secrête (OAS) [Organização Armada Secreta] ser detonada, Simeon sai
para a rua e surpreende Maria flertando com Vidal, um cineasta determinado a
76. Ibid., p. 121. fazer dela uma estrela. Maria palie para fazer um filme, iniciando uma trajetória
77. lbid., p. 122.
que acabará em Hollywood, enquanto Ahmed reaparece na vida de Simeon. Através

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tNIKt LAMI'U~ Nações, curturas e o Fascínio da Raça PAUL GIL ROY

de Ahmed ele conhece duas mulheres muçulmanas, Latifah e Djamila, veteranas Unidos. Aqui nós gostamos dos negros; podemos entender porque você prefere
do movimento de libertação da Argélia. Elas o informam sobre o andamento do viver neste país. Depois desse episódio, Simeon resolve deixar Paris. Mas, antes
conflito, desafiando suas suposições sobre os aspectos religiosos do movimento e, de se decidir aonde ir, ele tem um último encontro com Maria nos Champs Elysées.
em particular sobre a posição subalterna destinada às mulheres. Convoca-se uma Ela conta que vai finalmente para os Estados Unidos. Vidal, o novo amante e
manifestação massiva de solidariedade para outubro de 1961. 78 A polícia parisiense mentor de Maria, os vê trocar abraços e pensa que ela terá de aprender a não
a reprime com terrível violência e Simeon vê quando os corpos de árabes mortos abraçar homens negros nas ruas da América. Shneon vai embora para marcar sua
são despejados no Sena. O corpo de Ahmed fica jogado na rua, sendo que mais de própria passagem de volta para a sua terra natal. Na véspera do embarque, ele
duzentos outros corpos são retirados do rio nos dias seguintes ao massacre. destrói a sua pintura da face: "Não precisava da imagem; a realidade já havia
Esta tragédia separa Simeon do resto da comunidade expatriada, que mais penetrado. Ele rasga a tela e joga as tiras tora"."
do que ele se satisfaz em continuar a viver uma fantasia, "como uma espuma a Smith foi incapaz de, ou então não estava preparado para, levar a -lógica de
flutuar no mar da sociedade francesa"." Num cais perto da Pont Neuf ele espia sua própria percepção para uma conclusão óbvia, ou seja, que a face do ódio racial
um policial desferindo seu cacete em uma mulher argelina e seu bebê. Num instante, poderia ser combatida quando e onde quer que aparecesse. A decisão final de Simeon
ele reconhece a careta característica da face de pedra "retorcida com a alegria da de enfrentar a face nos Estados Unidos, e não em Paris ou na Argélia, significa que
destruição... pontos vermelhos de excitação sobre a pele pálida de morte [do ele aceitou seu pertencimentc àquele país em vez de qualquer outro lugar. Essa
policial]". Ao atacar o policial, ele é atingido na nuca e desmaia, acordando num escolha não é esclarecedora e nem se justifica, tomando-se um repúdio explícito,
estádio esportivo em meio aos lamentos de milhares de argelinos à espera de porém, inconvincente, da alternativa cosmopolita envolvida na tomada de
punição e deportação: responsabilidade na luta contra a injustiça em suas manifestações imediatas. Trata-
se de uma capitulação às demandas de uma versão mais estreita de afinidade cultural
Simeon deita-se de costas e aperta os olhos de dor. O que aconteceria com ele? Ele que parecia ter sido transcendida pelo argumento universalizante de Smith. O retorno
não se importava. Pela primeira vez em muito tempo ele se sentiu razoavelmente em de Simeon parece ser uma maneira precipitada em demasia para concluir uma
paz com a sua consciência. Teria sido seu ataque ao policial um ato deliberado de
narrativa, cujo ritmo difícil perdeu-se num esquema polarizado mais simples que
coragem, ou o resultadode uma fúria e alucinação momentâneas? Isso não importava;
o que importava é que ele havia revidado o golpe contra a face ... a face do policial contrapõe a autenticidade, o ativismo e a boa consciência étnica à liberdade, à cura
francês... a face do torturador nazista em Buchcnwald e Dacbau, a face da multidão e ao prazer oferecidos aos negros fugitivos pela Europa. Esta ainda pode ser uma
histérica em Little Rock, a face do fanático africâner e do carniceiro português em escolha honrosa, mas não está à altura dos melhores exemplos históricos produzidos
Angola e, ainda, as faces negras dos assassinos de Lumumba - elas eram todas as pelos verdadeiros itinerantes do Atlântico negro, cujas vidas podem ser apontadas
mesmas faces. Não importa onde esta face se encontrasse, ela era inimiga dele; e
atualmcnte para afirmar outras escolhas, mais oportunas e recompensadoras.
quem quer que a temesse, sofresse com ela, ou a combatesse, era irmão dele."
O pintor Josef Nassy, nascido na Guiana holandesa em 1904, é alguém
cujas realizações criativas podem ser consideradas nesta perspectiva. Nassy, um
O policial da Súreté que libera Simeon faz um breve e incisivo discurso
negro de ascendência judia, mudou-se aos quinze anos para N ew York, cidade em
antes de mandá-lo embora. Não há racismo na França; não é como nos Estados
que seu pai concentrava seus negócios. Ele freqüentou o colegial no Brooklyn,
78. Novas análises destes eventos surgiram em decorrência do julgamento do colaborador nazista tendo depois estudado engenharia elétrica industrial no Instituto Pratt; em 1929,já
Maurice Papon, que foi chefe de polícia cm Paris na época do massacre dos manifestantes naturalizado americano, ele viajou para a Europa, onde assumiu um posto na indústria
argelinos. Os depoimentos de sobreviventes destes eventos foram recolhidos em Liberation 18 cinematográfica: o trabalho de instalação da nova tecnologia de reprodução de
(19 de outubro de 1997); ver também Le Monde, 17 de outubro de 1997, em especial "La
responsnbilité du préfer de police est dírecre, personelfe, écrasante", de Jean-Luc Einaudi. som nos cinemas. Em 1939,já residente em Bruxelas e casado com a belga Rosine
79. Smith, The Stonc Face, p. 175,
80. lbid., p. 205. 81. Ibid., p, 213.

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Van Aershot, Nassy desistiu de seu trabalho técnico e assumiu a pintura como guerra, ainda vestindo seu uniforme de correspondente de guelra, Dunbar regeu a
alternativa. Foi detido como estrangeiro inimigo pelos nazistas em abril de 1942, e Orquestra Filarmônica de Berlim num dos Concertos da Vitória, realizado no setor
levado para Beverloo, um campo de prisão temporária da Wehrmacht em americano diante de um público de cerca de "3,500 civis alemães e um punhado de
Leopoldsburg. Em novembro do mesmo ano, ele foi transferido para os campos de homens dos exércitos alíaoos''." O programa daquela noite incluía músicas de
Laufen e Tittmoning destinados a detentos civis nos Alpes da Bavária, perto da Tchaikovsky e Von Weber, assim como a sinfonia afro-americana de William Grant
fronteira austríaca, onde permaneceu - com diversos outros prisioneiros negros ~ ssn.
até a sua liberação conjunta pelo Terceiro Exército dos Estados Unidos em maio As autoridades russas e americanas foram receptivas à proposta que uma
de 1945. Suprido de materiais artísticos graças aos bons ofícios da YMCA pessoa considerada antes como inferior em termos raciais, e cujos esforços prévios
[associação cristã de jovens], e ao "patronato" do comandante do campo, Nassy no pódio do Albert Hall de Londres foram escarnecidos pelos nazistas como um
deu aulas de artes plásticas para outros prisioneiros, tendo registrado em mais de sintoma do declínio cultural inglês, seria uma escolha apropriada para liderar um
duzentas pinturas a vida nos campos onde ficou detido. Os retratos de Nassy e evento que celebrava a derrota do hitlerismo. As autoridades britânicas, porém,
outros estudos da vida no campo pintados com predominância de marrom, cinza, viam as coisas de maneira diferente e fizeram o que puderam para impedir o
bege e preto são expressões tocantes do tédio, da solidão e da despersonalização concerto. Ouviu-se o seguinte comentário sobre a regência de Dunbar, dito por um
da detenção. O conjunto deste trabalho integra agora uma única coleção no Museu alemão idoso ao seu acompanhante durante o espetéculo: "E eu pensava que eles
Severin Wunderman, em Irvine, Califórnia. Na época em que o marido estava eram uma raça decadente," Cenas similares repetiram-se em Paris um mês depois,
preso, Madame Nassy escondeu três famflias judias na residência do casal. quando Dunbar regeu a Orquestra Sinfânica Pasdoloup em concerto beneficente
Nassy não foi o único itinerante da Guiana cuja imaginação artística foi para órfãos de guerra, realizado no Palácio Chaillot. O programa daquela noite foi
testemunha da falta de humanidade dos nazistas. Contemporâneo de Nassy e três todo de composições de Grant Still.
anos mais velho do que ele, meu primo distante Rudolph Dunbar, neto de escravos, As extraordinárias estórias destes detentos negros, antifascistas, veteranos,
foi outro jovem cosmopolita cujas ambições criativas, neste caso de ordem musical, libertadores e viajantes militares não constituem apenas uma oportunidade propícia
levaram-no à Europa. Depois de alguns anos devotados ao estudo na Escola para recordar a atuação dos negros na histórica luta mundial contra o hitlerismo.
Juilliard, em New York, tendo se dedicado também de um modo camuflado a tocar Embora aquele empenho de reparação seja por si mesmo um importante gesto
jazz naquela cidade, ele chegou em Londres vindo de Leipzig e Paris, onde estudou voltado para a Europa, chega-se ainda a um outro significado menos passageiro.
filosofia, composição musical e regência, além de se aprofundar no estudo da Estas estórias são um meio precioso para situar as pessoas negras e suas batalhas
clarineta, seu principal instrumento. contra a raciologia e seus códigos no mesmo mundo moral e político que abarca os
Além de suas realizações musicais, Dunbar publicou um tratado técnico sofrimentos autênticos dos judeus e o genocídio industrializado presente na
influente sobre a clarineta e escreveu artigos com freqüência para a publicação implementação da higiene raciaL Além disso, estas estórias podem agora fazer
musical britânica Melody Maker. Suas ambições jornalísticas o levaram a ser parte da elaboração do universalismo "estratégico" para o qual tenho encaminhado
correspondente de guerra da Associated Negro Press durante a guerra, posição meu argumento. Elas promovem uma compreensão dos elos vitais entre o racismo
que ele usou para atacar as políticas segregacionistas do exército dos Estados e o fascismo que deveriam ser vistos como parte do conflito político contemporâneo
Unidos e para defender a bravura e integridade dos soldados afro-americanos no e não como uma relíquia a expressar um significado essencial e imutável do nazismo.
campo de batalha. Em setembro de 1945, quatro meses depois de terminada a

82. Journal Courier (New Haven, Conn.), 3 de setembro de 1945, reproduzido cm "In Retrospect:
W. Rudolph Dunbar, Pionecring Orcbestra Conductor", The Black Perspective in Musíc, vol. 9,
n'' 2 (outono, 1981), pp. 193-225.

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"A TERCEIRA PEDRA DO SOL":
HUMANISMO PLANETÁRIO E
UNIVERSALISMO ESTRATÉGICO

Não há dúvida de que a vida dos povos menos civilizados do mundo, os selvagens
e os bárbaros, é mais inculta, rude e cruel do que a nossa como um todo, mas a
diferença entre nós e eles não reside inteiramente nisso ...as tribos selvagens e
bárbaras representam com frequência de uma maneira mais ou menos equilibrada os
estágios de cultura pelos quais nossos ancestrais passaram há muito tempo, e seus
costumes e leis nos explicam muitas vezes, de umjeito que dificilmente perceberíamos
de outro modo, o sentido e a razão dos nossos próprios costumes e leis.

E.B.TYLOR

Se nos perguntarmos agora se a espécie humana pode ser considerada uma raça
boa Oll má (ela pode ser chamada de raça somente quando se pensa nela como uma
espécie de seres racionais da terra, comparada com aqueles seres racionais de outros
planetas, que brotaram como uma multidão de criaturas a partir de um demiurgo},
então devo confessar que não há muito para se gabar. Contudo, quem quer que
considere o comportamento humano, não apenas na história antiga, mas também na
história recente, sentirá muitas vezes a tentação de concordar com o juízo
misantrópico de Timon, mas será ainda com mais freqüência e com acerto ainda
maior que ele concordará com Morno e pensará que a característica mais
surpreendente da nossa espécie é a insensatez em vez da maldade. Mas, como a
insensatez combinada com traços de maldade...não pode ser ignorada na fisionomia
moral da nossa espécie, é óbvio que ...todos em nossa raça pensem ser recomendável
ficar de sobreaviso... Este comportamento revela a tendência de nossa espécie de
que todos sejam mal-intencionados uns em relação aos outros.

KANT

MINHA PESQUISA sobre o pertencimcnto em suas múltiplas ecologias, em


especial a ontologia racial do território soberano e o cultivo das culturas nacionais
confinadas em campos, tem se preocupado necessariamente com a organização
ENTRE CAMPOS" Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GIL ROY

simbólica do espaço, do lugar e da comunidade política. Kant que fez tanto para As teorias raciológicas posteriores seguiram os preceitos da revolução
dotar este domínio acadêmico de coerência intelectual, pronunciou-se em favor de darwinista e emanaram de premissas muito distintas bem mais sintonizadas com o
toda uma tradição de reflexão raciológica moderna organizada entre os eixos fascínio do alto modernismo em relação ao tempo e à temporalidade. A própria
disciplinares da antropologia e a geografia, combinando em algumas infelizes frases obra de Darwin fora auxiliada pela concepção de tempo descoberta por ele no
"epidermízantes", as características ffsicas e sociais das pessoas denominadas por trabalho do geólogo Sir Charles LyelJ. Transformado pela substância mesma da
ele de "Negros" com as condições climáticas em que os viajantes europeus, em terra, o próprio tempo podia agora fornecer o meio para compartir as populações,
sua busca da "alegre dança da morte e do comércio", primeiro os descobriram: e ainda compreender e expressar as diferenças entre elas. As raças não deviam
ser distinguidas meramente com base nas suas várias origens climáticas e diferenças
A superabundância das partículas de ferro, que estão presentes em todo sangue de adaptação ambiental; elas deviam ser enfileiradas numa hierarquia derivada
humano, e que se condensam e caem na substânciareticular por meio da evaporação das suas posições relativas na escala temporal evolucionéria. Bernard McGrane
dos ácidos de fósforo (os quais fazem todos os negros feder) causa a pretidão que
sumarizou esta mudança:
brilha através de sua pele superficial...O óleo da pele, o qual enfraquece o muco
nutrienteque é um requisitopara o crescimentode cabelo,permitiude ummodo bem
pouco uniforme a produção de uma cobertura lanosa para a cabeça. Além disso Para além da Europa era de agora em diante antes da Europa. A antropologia do
tudo, o calor úmidofavoreceum falte crescimentonos animaisem geral;em resumo, século XIX, a partir desta perspectiva, existia então como o eixo pelo qual as
o Negroé produzidode um modo bem adequadoao seu clima; ou seja,forte, robusto, diferenças existentes no espaço geográfico foram viradas e reviradas até que elas se
flexível, mas em meio às provisões copiosas da sua terra mãe, preguiçoso,simplório tornaram diferenças existentes no tempo histórico em desenvolvimento, ou seja, o
e vadio.' eixopelo qual a simultaneidade do espaçogeográficofoi transformadana linearidade
sucessiva do tempo evolucionário.'
o deslocamento massivo de populações envolvidas na globalização do
comércio, a escravização de africanos e a conquista do Novo Mundo romperam
o argumento de McGrane é forte, embora um tanto límpido demais quando
aplicado à transformação da raciologia no período imperial. Precisamos nos lembrar
os padrões naturais tão caros a este materialismo mecânico ilustrado. À medida
não só que Gobineau produziu O seu Ensaio sobre a desigualdade das Raças
que isto aconteceu, as forças da natureza deram lugar às da história. Mas para
Kant, escrevendo no último quartel do século XVIII, a geografia continuava
Humanas sem contar com as percepções de Darwin, mas que a raciologia mais
fundamental. Ela fornecia as bases para que a história humana pudesse se sustentada, brutal e desumana não emergiu da teoria antropológica especulativa,
desenvolver: mas sim em meio à prática de terror racial como uma forma de administração
política nos impérios coloniais da Europa." O poder imperial assegurou que o teatro
o que veio antes, a história ou a geografia? A última é o fundamento da anterior da história não fosse mais confinado à zona temperada.
porque as ocorrências têm de se referir a algo. A História está num processo que As pesquisas influentes de Gobineau sobre a química histórica que governava
nunca se afrouxa, masas coisas mudamtambéme resultampor vezes numageografia as leis do declínio, o problema da decadência e os riscos da intermistura ligaram
totalmente diferente. A Geografia é, portanto, o substrato." suas inquietações com a ordem racial e a duração limitada da civilização humana
a um novo argumento que se tomaria a matéria-prima de todas as Versões sucessivas
da ideologia fascista. A sua teoria constituía a política primordial de "raça" para

1. I. Kant, "On theDifferenl Races of Mau", in This is Roce. An Anthology, seleção, organização e
introdução de Earl W. Count Hanery Schuman (New York, 1950), p. 22. 3. Bernard McGrane, Beyond Anthropulogy: Society and the Other (Columbia University Press,
2, 1. Kant, "Physiche Geography", apêndice de 1. A. May, "Kant's Concept of Geography and lts 1989), p. 94. Ver também Johannes Fabian, Time and the Other: How Anthropo/ugy Makes lts
Relation to Recenr Geographical Thcught", tradução do autor (University of Toronto Press. Object (Columbia Univcrsity Press, 1983).
Geography Department Research Publications, 1970), p. 262. 4. Hannah Arendt, The Origins ofTotalitaríanism (Allen andUnwin, 1967), p. 171.

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além do alcance das superficialidades governamentais, situando-a entre os pólos Muhammad como de Louis Farrakhan, a Nação do Islã (NI) associou o relato
elementares da degeneração e regeneração. A destruição legada pelo bíblico da visão de Ezequiel sobre lima roda destrutiva aos relatórios contemporâneos
comprometimento teórico e político dominante com a regeneração correspondia à dos ÓVNIs. 6 No texto-chave do movimento, Mensagem ao Homem Negro da
instauração iminente de um novo tempo em que a nação novamente purificada América, publicado inicialmente em 1965, Elijah Muhammad invocou uma imagem
pudesse tornar-se, uma vez mais, ela mesma. Embora esta revolução tenha sido do fim do mundo. Era vista não só em termos de altas realizações tecnológicas,
por vezes identificada com a instituição de uma relação transformada com o poder exemplificada naquele momento pela "corrida no espaço" com os russos, mas por
divino, a autoridade extraterrestre que o fundamenta não é de modo algum sempre meio das armas de destruição em massa, as quais lembravam as explosões que
de caráter cristão. puseram um fim à guerra de 1939-1945:
O desejo de se liberar, isto é, de se liberar da "raça" e do racismo, proporcionou
fundamentos constantes para as firmes aspirações utópicas que emergiram a partir A nave feita de círculos conhecidacomo a Mãe das Naves tem 804,6 m2 e é o maior
objeto mecânico feito pelo homem no céu. É um pequeno planeta humano feito co~
de um mundo racialmente codificado em meio aos subordinados, pauperizados e
o propósito de destruir o atual mundo dos inimigos de Alá. O custo para se construir
colonizados. A ruptura da teodicéia cristã que já havia sido transformada pelo uma nave como essa é surpreendente! Os melhores cérebros foram usados para
contínuo potencial da espiritualidade africana deveria também ser reconhecida construí-la. Ela é capaz de permanecer no espaço exterior ao longo de seis a doze
como uma parte significativa de nossa pesquisa sobre as bases sociais do meses por vez sem entrar na gravidade da terra. Carrega mil e quinhentos aviões de
autoritarismo negro. O cristianismo negro orientava-se certamente para o futuro, bombardeio com os mais mortíferos explosivos - o tipousadoparalevantarmontanhas
na terra. O mesmo método deverá ser empregado na destruição do mundo.
mas o seu senso de futuro vinculava-se à sua escatologia. A sua utopia não era
...As pequenas naves circulares chamadas de discos-voadores, as quais tantos
deste mundo de dores, precisando assumir o tempo moderno, ou seja, o tempo dizem terem avistado, poderiam vir desta Nave Mãe. Esta é apenas uma das coisas
racializado e racializante. A difusão mundial dessa utopia, especialmente por Marcus armazenadas para o mundo de maldades do homem branco."
Garvey e outros defensores da diáspora pertencentes ao fundamentalismo africano
organizado, requeria a inauguração de uma nova era de desenvolvimento nacional Esta visão aterrorizante, na qual a terra a que os negros têm estado
na qual, como vimos, o exemplo das culturas políticas fascistas exercia poderosa injustamente presos é destruída, enquanto eles se mudam rumo ao céu para um lar
atração. O entusiasmo comum pelo ritual, pela pompa e sacralização da esfera melhor e mais celestial, lembra mais do que tudo as predições apocalípticas e
política levou Garvey, repetidas vezes, a declarar afinidade com Hitler e Mussolini, igualmente racializadas feitas por figuras comparáveis ocultas e excêntricas como
descrevendo-se a si próprio como a inspiração deles. Helena Blavatsky e Carl Jung, as quais ainda não foram em grande parte
A escatologia anti-cristâ da Nação do Islã oferece um exemplo relevante reconhecidas como influências sobre o desenvolvimento do NI e sua teologia." A
de um padrão bem mais abrangente através do qual a ideologia fascista tem tambérn obra de Blavatsky pode bem ter penetrado na consciência do jovem Elijah Poole
se vinculado profundamente a um conjunto de crenças ocultas que associam relatos (Muhammad) através da influência mística de Sun Ra, o grande músico e estudioso
das origens humanos e da evolução com teorias cíclicas e catastróficas do tempo.
Nesses esquemas, que têm uma longa linhagem nas letras afro-americanas, o
6. Manha F. Lee, The Nation ofIstam: An American Millenarian Movement (Syracuse University
poder divino pode ser refletido e ampliado pelas poderosas tecnologias que
Press, 1996).
contradizem silenciosamente os modelos arcaicos e orgânicos de família, parentesco 7. Elijah Muhammad, Message to the Blackman in América (United Brothers Communications
e comunidade que estão também em jogo." Sob a liderança tanto de Elijah Systems, Newport News, Virginia, 1992), p. 291.
8. Nicholus Gcodrick-Clarke, The Occuu Roots ofNazism: Secrct Aryan Culis and the lnfluence 011
Nazi ldeology (I. B. Tauris, 1992); Sylvia Cranston, H. P. B.: The Extraordinarv Llfe and Influence
of Helena Btavarsky, Founder of the Modem Theosophica! Movement (Tarcher Pumam, 1993),
5. Susan Gilman, "Pauline Hopkins and the Occuft: African American Rcvlsions of Ninereenth- em especial capítulo 7; Richard NolI, The Aryall Christ: The Secret Life ufCar! Jung (Random
Ccntury Sciences'', American Literary History, vol. 13, no. 4 (1992), pp. 57-82. House, 1997).

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ENTRE CAMPOS ., Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GIlROV

de esotérica que foi seu contemporâneo em Chicago e que, tal como ele, havia se de diferentes grupos sociais viverem simultaneamente o mesmo e indiferenciado
recusado à convocação para alistar-se no exército dos Estados Unidos durante a presente. Roger Griffin fez da preocupação desses movimentos com o renascimento
II Guerra Mundial. Os ensinamentos de Blavatsky tiveram um impacto significativo nacional uma parte vívida e essencial da sua valiosa definição genérica a respeito
sobre a sociedade americana ao final do século XIX. Ela foi amplamente lida nas das atívidades deles. A ênfase de Griffin, com relação ao investimento teórico
comunidades afro-americanas, contribuindo muito para a erudição arcana de específico que os fascistas sempre fizeram dentro da "visão de um começo
diversas versões iniciais do nacionalismo negro que mudaram a polaridade racial radicalmente novo que se segue a um período de destruição ou dissolução
da sua ariosofia e a inclinaram para o objetivo da supremacia negra em lugar da percebida"," aponta para a grande fé dos fascistas na transformação revolucionária
branca." Os elementos tirados de suas teorias de "raça" ainda circulam nos relatos e restauradora da história humana. Os fascistas afirmam que a vida social pode
contemporâneos mais conspiratórios sobre a aruação dos extraterrestres na história ser levada de volta para os ciclos severos, mas essencialmente naturais, que
humana. governam a produção de uma humanidade racialmente estratificada em formas
Para a NI, a aparição histórica dessas poderosas naves espaciais transmite fortemente generizadas e intergeracionais. Segundo Griffin, os seus mitos
algo mais do que a liberação envolvida com a partida deste planeta moralmente racialmente orientados, seculares e palingenésicos nem sempre derivam das suas
comprometido. Prevendo os derradeiros dias da terra, ela pressagia o "novo noções religiosas, as quais compartilham muitas das mesmas sensibilidades
domfnio'' dos negros sobre a humanidade. Não sinaliza o fim das divisões raciais, escatológicas.
mas sim o seu entrincheiramento mais profundo em uma nova ordem teocrática. Em algum lugar atrás de Griffin poderíamos situar com muito proveito a
Ao assumir o leme da NI, Farrakhan se posicionou bem mais além da profecia de figura do filósofo Ernst Bloch. Ele se debateu num ambiente especialmente hostil
Elijah Muhammad ao declarar ter viajado em um ÓVNI. 10 Segundo seu relato, ele com a idéia de que a busca de compreensão da dinâmica cultural positiva envolvida
fez um vôo deste tipo da cidade do México a Washington, O.c., em setembro de no movimento nazista significava ler o seu anti-capitalismo romântico e místico
1985, sendo que durante a viagem ele se encontrou com Elijah Muhammad, falecido como um fenômeno utópico - e não niilista - que havia sido apropriado a partir de
dez anos antes. fontes as mais diversas. De acordo com ele, o jubiloso irracionalismo dos hitleristas
É interessante que a memória de Parrakhan a respeito desses eventos tenha e grupos similares tinha de ser compreendido como um sintoma de realização
desaparecido logo depois, retornando dois dias depois graças a um terremoto de duradoura, o que é bem semelhante ao diagnosticado por Levinas em suas tentativas
inspiração divina. Esta experiência de se tornar incapaz de se dar conta do tempo de vincular o nazismo com os prazeres corporais do ser. Esta perspectiva implica
desponta em muitos relatos de cantata com extraterrestres, ÓVNIs, e outras numa condenação amarga dos fracassos das culturas democráticas anti-fascistas
manifestações de inteligência alienígena. O fato da sua persistente recorrência que não proporcionavam aos seus adeptos nenhuma imaginação fantasiosa com
sugere que se possa interpretá-la de uma maneira proveitosa como um sintoma do poder comparável àquela. O fato de se aplicar as percepções de Bloch às
modo como estes encontros perturbadores demandam ajustes à compreensão sobre manifestações mais recentes do desejo por uma solidariedade unanimista, uma
onde acaba o presente e começa o futuro. hierarquia rígida e natural e um parentesco autoritário, as quais emergiram na
Muitos escritores perceberam problemas oriundos das maneiras como os história do Atlântico negro, não deveria acarretar a tarefa moralmente indefensável
movimentos fascistas do século XX organizavam as suas sensibilidades temporais: de peneirar o seu conservadorismo revolucionário em busca de uns poucos
como eles se debatiam em termos da relação apropriada entre passado e futuro, fragmentos redentores que poderiam desculpar as suas más escolhas políticas
tradição e modernidade, e como eles expressavam, sem se dar conta, a incapacidade como efeitos da opressão ou subalternidade. Precisamos compreender o apelo da
utopia encouraçada e a associação entre aquela resposta e as longas histórias de
9. John F.Szwed, Spoce Is the Píace: The Líves and Times of Sun Ra (Panrheon, 1997).
10. Manias Gardell, Countdown to Armageddon: Louis Farrakhan and tne Nauon of Is/um (Hursr
and Co., 1996). 11. Rogcr Griffin, The Nature of Fascism (Routledge, 1993), p. 33,

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terror e sofrimento. Como a definição genérica de fascismo de Griffin sugere, esta de ver o fim da raciologia significa que também eu apelei para o futuro ignorado
compreensão precisa considerar a idéia do renascimento racial demarcando um contra o presente inclemente. Ao agir assim, insisto sobre a necessidade de uma
novo tempo como o seu ponto de partida. mudança fundamental de disposição com relação ao que se costumava chamar de
Vimos que as formações autoritárias e prato-fascistas da cultura política "anti-racismo''. O que se pede num espírito explicitamente utópico é que ele acabe
negra do século XX foram animadas com freqüência por um desejo intenso de com a sua relação ambivalente com a idéia de "raça" no interesse de um vir a ser
resgatar as glórias perdidas do passado africano. A vontade de restaurar aquela heterocultural, pós-antropológico e cosmopolita.
grandeza morta nem sempre se fez acompanhar de um entusiasmo equivalente Voltar-se para a idéia de um futuro cosmopolita, mesmo quando ele recua,
para remediar a má situação da África no presente. Mas a idéia de uma civilização envolve uma variedade de trabalho político sobre o discurso racial e a divisão
africana original e imaculada gerou por vezes um arcaísmo complexo tão poderoso racial que é muito diferente do que tem sido praticado em tempos recentes. No
a ponto de poder se opor ao capitalismo e, ao mesmo tempo, permanecer passado, estas atividades eram dominadas pela necessidade de se contrapor a
inteiramente alheio à democracia. O desagrado romântico e sentimental pelo formas de racismo nacionalistas e fortemente culturais. Amparado pela raciologia,
capitalismo racial, que num momento anterior transformou os próprios negros em este padrão exclusivista negava aos negros a possibilidade de pertencimento e nos
mercadorias, constitui um fator profundo a influenciar as condições morais em que forçava em vez disso a demonstrar continuamente uma presença histórica
se formam as culturas políticas negras. Contudo, este desagrado nem sempre levou substancial na vida das comunidades nacionais modernas às quais a escravidão
a uma crítica sustentada dos próprios mecanismos de mercado. Ao contrário, o racial nos obrigou de início a pertencer. Tínhamos que indicar como a "raça" poderia
desenvolvimento económico negro ao longo de linhas capitalistas tem sido ser articulada juntamente com outras dimensões do poder, demonstrando a força
repetidamente identificado como um componente substancial na ascensão da raça ccnformativa das relações imperiais e coloniais sobre a formação da vida social
como um todo e como a chave para a sua transição em direção a um autêntico metropolitana. Não é o caso de sermos complacentes, uma vez que podemos
status nacional num mundo de modernos Estados-nação. Mesmo o comércio pode facilmente cair de novo no velho programa. Contudo, a conclusão deste livro inicia-
se tomar um sinal de que a nova era está a caminho. se com a idéia de que uma teoria crítica da raciologia está agora numa posição
Estes conflitos sobre a moralidade que regularão a reconstrução comunal capaz de fazer um inventário distinto das tarefas políticas com relação à "raça" e
são aspectos menores de outra batalha da política de "raça" em relação ao que de assumi-las com um novo espírito. A inclusão corretiva ou compensatória não
constitui uma autêntica civilização. Será que é para ela ser a mutualidade genuína deveria mais constituir o tema dominante na modernidade.
e sustentável que só pode ser praticada em escala limitada? Ou o desenvolvimento O ajuste temporário que garante este drástico virar de costas à antiguidade
incessante que abre a porta de entrada para os perigos da barbaridade hi-tech africana e de frente para o futuro do nosso planeta é uma questão difícil e delicada,
ultramoderna? Termos como "selvagem" e "bárbaro" que despontaram nesta em especial se reconhecermos a possibilidade de que O contestado passado imperial
discussão sobre extremismos e humanismo misantrópico ainda são trocados como e colonial ainda não nos soltou inteiramente de suas garras. Ao nos dirigirmos para
pejorativos aqui e ali. A economia racial em que eles circulam revela as conexões um novo estágio de reflexão e aspiração que corresponda às nossas novas
duradouras entre características morais, culturais e temporais. O seu poder circunstâncias enquanto deixamos o século da linha de cor para trás, minha sugestão
constante, tal como encontramos nos distúrbios temporais associados com os é que precisamos nos tornar conscientemente mais orientados para o futuro.
movimentos revolucionários, autoritários e fascistas, significa que não podemos Precisamos encarar o futuro e encontrar linguagens políticas com as quais se pode
esquivar-nos a um encontro conclusivo com a política racial da temporalidade. discuti-lo. Não se trata absolutamente de fazer agora uma escolha para tentarmos
Esta política deve ser vista, tal como foi, a partir de dois lados: toda vez que foi esgotar e esquecer o que levou tanto tempo para lembrar, ou para simplesmente
invocada pela supremacia branca como um princípio de exclusão e disciplina social deixarmos de lado o passado e seus traumas. O reconhecimento dos sofrimentos
e quando foi domada pelas vítimas da raciologia como um meio de resistência e passados e sua projeção em locais públicos de memória e comemoração oferecem
afirmação. Este exercício difícil também é necessário porque minha própria vontade uma importante alternativa ética em relação à busca de compensação financeira

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t:NTKt: LAM"'U~ .. Nações, CuLturas e o Fascinio da Raça PAUL GIlROY I

dentro de ordens jurídicas e fiscais de distintos Estados-nação. As mudanças em Fanon apresentou esta superação imaginativa da história como uma iniciação
comunicação e infomatics significam que as reivindicações do passado são agora consciente de um ciclo de liberdade para as populações negras ainda presas ao
qualitativamente distintas. Para o bem ou para o mal, elas estão mais fracas do que choque posterior à escravidão, o seu trauma fundador. Isto porque os companheiros
antes, e a maré vazante das brutais relações coloniais que deram um significado de Fanon - os negros modernos que se inseriam, apesar de nunca à vontade, no
tão distintivo à "raça" está drenando-as ainda mais. A transformação histórica é Ocidente codificado em cores - os quais reivindicavam um Ser mais autêntico do
outro aspecto da crise contemporânea da raciologia delineada no início deste ensaio. que a ordem racializada da modernidade havia permitido, precisavam aceitar o
É mais um sinal forçoso de que a "raça" não é mais o que era. Entretanto, ainda passado e ao mesmo tempo deixá-lo para trás. Sua história transnacional e
estão vivas as reivindicações não atendidas que derivam de injustiças passadas, intercultural precisava agora ser deixada de lado, fosse ela encarada primordialmente
como por exemplo, o caso dos remanescentes do povo hereró em busca de como heróica, nobre, sapiente e magnificente, ou então como abjeta, brutalizada,
reparação económica para o genocídio sofrido por eles a mando do General Von desumanizada e acorrentada. Suas reivindicações no presente haviam se tomado
Trotha e seus associados, ou então o caso das batalhas nos tribunais travadas ilegítimas pelas demandas de autonomia e posse de si mesmo. A "desallenação da
pelos descendentes vivos dos trabalhadores-escravos dos nazistas em busca de humanidade", nas palavras de Panon, em particular sua liberação da divisão dada
reparação em oposição às companhias multinacionais que os obrigaram a servir pela ''raça'' e o repúdio da supremacia branca que deve precedê-la, estava a exigir
sob ameaça de morte. 12 esta mudança decisiva de orientação. Os ajustes políticos e éticos envolvidos nisso
Fazer com que a raciologia pareça anacrônica - situando-a justamente no não poderiam se realizar sem uma mudança na consciência do tempo e acertos
passado - requer neste momento um juízo cuidadoso quanto a que histórias o nosso significativos quanto à entrada na contemporaneidade.
presente heterocultural e o nosso futuro cosmopolita deveriam acarretar. Este Tendo por fim enterrado o status primitivo que amarrava o negro tanto à
trabalho pode ser empreendido no espírito indiscretamente anti-marxista estabelecido intra-humanidade quanto à pré-história, os negros devem ser capazes de se sentir
por aquele prototípico europeu negro, Frantz Panon, nas páginas conclusivas de seguros, mesmo se não completamente à vontade, no presente. De acordo com
seu primeiro livro, Pele Negra, Máscaras Brancas. Nele, num primeiro vôo de Fanon, a capacidade de se dirigir ao futuro, tanto como uma abstração política,
seu entusiasmo juvenil pelo existencialismo, ele voltou toda a força de uma ira quanto como algo pessoalmente concreto, era uma pré-condição para a saúde e a
ainda inocente igualmente contra a supremacia branca colonial e aquilo que agora cura, para se recobrar da alienante e corruptora anti-socialidade da "raça". Os
reconhecemos como as suas sombras negras nacionalistas. Escrevendo como se trabalhos dele proporcionam a moldura na qual pretendo juntar os fios conclusivos
ele estivesse lutando tanto para se tranquilizar quanto para direcionar os pensamentos deste livro. Minha abordagem das questões contemporâneas da ciência racial, do
dos leitores que conseguissem acompanhar até o fim o exigente percurso de seu multiculturalismo, do absolutismo e da nanopolftica se deu num espírito utópico,
livro, ele produziu estas memoráveis sentenças: "Não sou um prisioneiro da história. tendo em mente o modelo comunicativo oferecido pela intercultura da diáspora.
Não deveria buscar ali o significado do meu destino... Não tenho o direito de me Antes que eu aborde um futuro sem raça a serviço da minha própria tese, que é
permitir me ver refletido naquilo que o passado determinou... A densidade da história obstinadamente deslocada, sinto-me obrigado a reconhecer a historia dos apelos
não determina qualquer uma das minhas açõcs"." negros em termos do futuro, devendo agora observar as formações vemaculares
onde estes temas se cruzam com freqüência.
A música e os músicos engendraram recursos especialmente importantes
12. A fábrica da Ford em Colônia permaneceu aberta durante toda a II Guerra Mundial, fabricando que facilitaram os difíceis procedimentos de reajustamento temporal. É
caminhões com base no trabalho escravo vindo do [este europeu. Internos de Buchenwald foram importante reconhecer a sua tradição de ansiar por uma temporalidade que
adquiridos para trabalhar na linha de montagem. Ver também Neil Gregor, Doimler-Ben« in lhe
Third Reich (Yale University Press, 1998). fomente a capacidade de ver o curso da vida individual assim como o movimento
13. Frantz Fanon,Black Skin, White Masks, tradução de Charles Lam (Markman, Pluto Press, 1986 sincronizado dos mundos da vida contingentes. Essa tradição anunciou repetidas
[1952]), pp. 230-231 passím. vezes a fé secularizada no fato de que uma mudança virá. Esta aspiração

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PAUL GILROY
ENTRE CAMPOS .. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça

continente da América. Todo o mundo cruzaria a África nesta estradade ferro, que
pode ser compreendida melhor como uma versão ainda mais exigente do já daria proventos infinitamente maiores do que qualquer outro investimento do
formidável apelo de Fanon. Levar isso a sério hoje significa compreender que mundo. 14
a extraterrestrialidade, a futurologia, as ficções da tecnociência têm sido
articuladas nos ritmos e formas cotidianos daquilo que poderia ser denominado Apesar do apocalipse hl-tech ensinado aos seguidores de Delany por Elijah
"o curso dominante" da expressão negra vernacular. Do mesmo modo, deve- Muhammad, esquemas deste tipo têm sido bem poucos e raros. O nacionalismo
se considerar os apelos para o futuro, feitos por artistas, músicos, críticos e militante reivindicativo em que se situam ambos os homens tem se caracterizado
escritores negros - particularmente em circunstâncias históricas nas quais pela preocupação com a necessidade de provar e estabelecer o carãter propria~ente
qualquer futuro havia se tornado difícil à sua imaginação. Esta iniciativa histórico da negritude como parte de importantes campanhas para trazer a Africa
proporciona uma maneira tardia para se confrontar o fato de que uma vez e seus povos submetidos por inteiro para dentro da História moderna racialmente
tornada a necessidade absoluta, negar o futuro e o direito de se orientar para exclusiva à qual Hegel deu uma expressão tão lúcida e duradoura. Deveríamos
o futuro passou a ser uma parte integral do modo como a supremacia branca observar que nos mesmos escritos sobre a filosofia da história que haviam consignado
operou durante e após o sistema de escravidão. a África a uma condição permanente de ausência de história, Hegel identificou a
A usurpação do futuro pelos negros envolveu-os em lutas para se América como a terra do futuro, um lugar especial onde o fardo da história mundial
desvencilhar das COlTentes do primitivo e ganhar o direito de se dirigir ao futuro. revelar-se-ia, "a terra do desejo para todos aqueles que estão cansados do cômodc
Este idioma não ocorreu facilmente às culturas políticas dominadas pela de cacarecos histórico da velha Europa"." A lembrança dessa provocativa
hermenêutica da memória. O cristianismo negro havia se enraizado na crença seqüência teleológica deveria nos pôr em alerta. Ela nos permite indagar quanto da
de que o único futuro habitável situava-se num outro mundo melhor, para além reflexão contemporânea sobre os problemas criados pela preocupação com os
deste vale de lágrimas. Esse futuro celestial era a negação e a redenção do limites do ser e da comunidade é de fato uma conseqüência da globalização das
sofrimento presente. A preocupação com o futuro era do mesmo modo remota culturas populares americanas que definem atualmente uma boa parte da nossa
para aqueles imbuídos de perspectivas mais prontamente secularizadas e ansiosa modernidade pós-catastrófica.
reivindicatórias. Os futuros dessas pessoas eram delimitados e orientados pela Como vimos nos capítulos 5 e 7, estamos a tratar de uma formação na qual
idéia de reparação e pela possibilidade de reconciliação com as possibilidades os severos códigos raciais usufruíram de um papel constitutivo especial. Para dizer
tecnológicas e educacionais que haviam sido recusadas pela hierarquia racial. O de outro modo, muito deste interesse pelas culturas negras disseminadas - sinais
nacionalista polímata Martin Delany é um bom exemplo aqui. O seu projeto de negritude - pode derivar ao final das contas de uma frustração dos propagandistas
visionário a respeito de um desenvolvimento futurista político c econômico negro com os limites óbvios de um eterno presente de consumismo e de sua ambição de
envolvia a construção de uma sublime façanha tecnológica, uma grande ferrovia nos levar para os estados tensos representados pelo condicional e pelo futuro-
através do continente africano. Esta visão compelativa de desenvoltura, progresso perfeito material dos compradores. A perspectiva mais cética, menos imbuída de
e ascensão racial foi crucial para estabelecer a "posição nacional" dos afro- uma mentalidade comercial, tal como avançada aqui, exige o nOSSO questionamento
americanos, mas envolvia pouco mais do que simplesmente alcançar o que os de todos os quadros de tempo, linhas de tempo e escalas de tempo. Requer-se, em
brancos já haviam realizado em outras partes do mundo. O sonho de Delany de especial, que tentemos ficar alertas para a política de temporalização, ajustada
num mesmo grande movimento modernizar a África e proporcionar a infra-
estrutura econômica e tecnológica necessária à destruição da escravidão,
eXemplifica este laço duplo: 14. Martin Delany,The Conditirm, Elevation, Emigration and Destiny of the Colored Pcopie Oflh e
Ifnited States Politically Consídered (George Charles, 1852), p.2l3.
[A ferrovia] terminando no oeste do Oceano Atlântico; ...faria a GRANDE 15. Georg Wilhelm Friedrich Hegel, lhe Philosopky orHlstory, tradução de J. Sibree (Dover Editicns,
PASSAGEM para todo o comérciodas ÍndiasOrientais e a costa lesteda África, e o 1956), p. 86.

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tN IKt lAMI"U::' rtaçces, cutturas e o r ascrmc ela Raça I'AUL l:JILKUT

intimamente aos fluxos e refluxos, redemoinhos e correntes que têm energizado a específico ou crítico com a ciência enquanto prática. É através desta perspectiva
proteica criatividade cultural negra que estimulou e provocou este ensaio. Pode-se que as conspirações que encobriram o roubo tomam-se a questão principal. Esta
também sugerir que evitemos uma sobre-integração dos fenômenos que queremos contra-narrativa do progresso faz-se acompanhar de um certo distúrbio temporal.
investigar de modo a não reduzir O seu caráter contraditório e desigual e também a Ela diz com efeito: "Estávamos à sua frente na escada rolante ascendente da
não minimizar as suas qualidades irrequietas e mutantes. civilização até que vocês nos deslocaram por meios ilegítimos". Esses ciclos
depressivos contribuem para o clima em que paixões autoritárias e anti-liberais
o NEGRO PARA O FUTURO podem assumir o comando da imaginação política. A estória bem conhecida sobre
o conhecimento inesperado e surpreendente da estrela Sirius B pelo povo dogon -
Para compreender a história dos apelos da negritude em relação ao futuro e e o que deveríamos ter em mente - tirada integralmente da etnografia colonial de
como essa história poderia contribuir para o dinamismo cultural e a confiança Marcel Griaule c Germaine Dieterlen, tem sido desdobrada por escritores "afro-
moral de uma Europa cosmopolita e hospitaleira, precisamos examinar as distintas centristas" não apenas para romper e confundir a velha polarização primitivo/
ressonâncias e articulações a respeito do futuro que se tem exprimido em várias moderno, mas também para demonstrar uma superioridade compensatória dos
fases - emergentes, dominantes e residuais - do processo de dissidência da africanos e do conhecimento científico africano. Enquanto isso, a mesma África é
raciologia. A ciência, o símbolo maior de um futuro de promessas ilimitadas, nem excluída da revolução tecnológica contemporânea.
sempre tem sido uma aliada dos movimentos políticos envolvidos na desagregação Discrepâncias entre os diferentes níveis na hierarquia das culturas racializadas
do modema pensamento de raça. Um certo desencanto com a ciência e um exame têm sido identificadas muitas vezes como processos de disjunção temporal. Richard
das linhas corretas delimitadas pela raciologia racional entre as suas variedades Wright expressou este ponto ao levantar uma questão fundamental para a
respeitáveis e as espúrias têm sido partes essenciais da crítica da modernidade consciência dos intelectuais negros, respondendo-a deste modo:
apresentada pela história do Atlântico negro. Importantes cientistas afro-americanos
como Benjamin Bannekcr e Lewis Henry Latimer têm sido sacralizados para facilitar Meu ponto de vista é ocidental, mas um ponto de vista ocidental que conflita em
a celebração de suas conquistas durante o mês da história negra, mas as vidas de diversos aspectos com a perspectiva presente dominante do Ocidente. Estou adiante
ou atrás do Ocidente? Meu juízo pessoal é que estou adiante. E não digo isso para
personalidades complexas do século XX como Ernest Everett Just, o biólogo da
me gabar; a implicação de um tal um juízo está na natureza mesma dos valores
Marinha que abandonou a Universidade de Howard para ir a Europa, tendo sido ocidentais que eu prezo. 17
internado por um breve período pelos nazistas, continuam pouco conhecidas."
Todas essas figuras devem agora ocupar um segundo lugar em relação às populares Deixando-se de lado a questão de como a suposta hiper modernidade da
assertivas "afrocêntricas'' sobre as grandes descobertas da ciência e tecnologia música negra do século XX poderia ter contribuído para a credibilidade da assertiva
ocidental, as quais teriam sido conhecidas na África da Antiguidade, roubadas de de Wright, o exame das implicações da sua postura nos leva para longe das
suas fontes antigas e depois atribuídas aos gregos pelos historiadores favoráveis à exultações em tomo do exotismo ou kitsch negro que acompanhou por vezes a
supremacia branca. fascinação com a vanguarda musical afro-americana em lugares onde os prêmios
Esta perspectiva interroga com proveito a política racial de prestígio científico, da política de raça não são tão altos como nos Estados Unidos. Atualmente, mais
levantando a questão do impacto da helenomania européia sobre a história da importante do que a questão de se os negros estavam à frente ou atrás, é saber até
ciência, mas se fecha efetivamente à possibilidade de qualquer engajamento que ponto aqueles sentimentos dissidentes estavam em descompasso em relação

16. Kenneth R. Manning, BlackApollo ofScience: The Life of Ernest Everen Jus! (Oxford University
Press, 1983). 17. Richard Wright, White Man Listenl (Anchor, 1964), p. 53.

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ao tempo militar estrito do mundo da Guerra Fria. A partir de uma leitura contra- dos nuba tiradas por ela." É muito importante que não vejamos as atividades
corrente de Wright, eu diria que estar em descompasso nestes termos precisos desses proeminentes tecno-malandros como as únicas manifestações de uma
proporcionou algumas oportunidades críticas e analíticas e que o seu valor precisa subtradição a sobreviver exclusivamente nos experimentos lúdicos de uma minoria
ser invocado mais uma vez, agora que tantas pessoas estão preparadas para se de vanguarda no interior de uma minoria. Sua significação é mais ampla e profunda
adaptar com sofreguidão ao tempo distinto de um capitalismo de mercado do que isso, sobretudo porque ao se articular nos múltiplos cenãrios históricos
planetarizado que tem se consolidado sobre os escombros da cortina de feno. constituídos pelo modernismo populista do Atlântico negro (um estilo que impõe os
Ser contra o racismo, e contra o poder da supremacia branca, era antes seus próprios códigos temporais síncopados), a paixão deles pelo futuro põe em
estar vinculado ao futuro. Isto já não parece mais ser o caso. As palavras de .questão toda a idéia de vanguarda.
Wright também sublinham que podemos ouvir com proveito a futurologia evidente Estes exemplos chamam a atenção para o status especial usufruído
nas culturas negras populares e interpretar seus comentários sobre ciência e anteriormente pela música nas culturas vernaculares negras referidas por mim.
tecnologia como tendo algum propósito em termos de matérias éticas e mesmo Até aqui, celebradores e críticos daquelas culturas tiveram de considerar o poder
políticas. Há ainda algo a ser examinado com cautela assim que se apresenta este do som significativo antes de poder passar para tarefas distintas, e talvez menos
problema interpretativo. As pretensões sobre a complexa integridade da vida exigentes, envolvidas na análise da visualização do extraterrestre e do futurístico
cotidiana, a exemplo dos problemas morais e conceituais resultantes da descoberta em formas racializadas. Devemos caminhar ainda com maior cuidado, agora que a
pelos críticos bem-intencionados de consciência política cm todo lugar ou em lugar iconização fomece a lógica comunicativa dominante, o som está a perder o seu
algum, são cabíveis aqui devido à séria obrigação de abordar os trabalhos e feitos lugar primordial em favor da comunicação visual, e a dança COlTC o risco de se
de moda da cultura negra moderna sem se deixar levar pelos efeitos da moda. Isto tomar uma subdivisão intencional excessiva da indústria de boa forma. Os termos
significa considera-los como partículas radioativas emitidas por um movimento culturais no interior dos quais são conduzidos os julgamentos de identificação racial
social- um movimento de liberação - e mesmo como uma parte ainda mais direta têm se transformado. Ver e ouvir O futuro não precisa resultar na mesma coisa.
do próprio movimento. Precisamos identificar os vários momentos políticos desta Um outro efeito bem-vindo das especulações de Wright é que elas obrigam
futurologia vemacular e reconhecer que mesmo à medida que ela se dissolve, o os historiadores da cultura vernacular a reexaminar aqueles álbuns negligenciados,
movimento que os produziu criou uma certa perturbação temporal. Isto tem sido gravados pelos artistas deliberadamente futurfsticos e populares da Guerra Fria
registrado de um modo consciente na noção de uma identidade diaspórica composta dos anos 1970: Dexter Wansell, Masterfleet, Stargard, Earth, Wind and Pire, the
onde o tempo, a historicidade e a histcricalidade têm sido politizados duplamente: Undisputed Truth. Este período de intensa criatividade musical emergiu entre o
de início pela resistência à supremacia branca e depois pela aceitação incômoda declínio do Poder Negro e a ascensão do Pan-Africanismo popular desencadeado
de que não somos mais o que fomos anteriormente, não podendo mais enrolar as por Bob Marley. Foi um período dominado pelo desejo de encontrar um novo código
fitas de nossa complexa vida cultural até um único ponto conhecido de origem. político e ético no qual as demandas contraditórias de negritude por um lado e a
Como vimos no capítulo 3, esta difícil alternativa produz uma diáspora irreversível utopia pós-racial por outro podiam ser articuladas conjuntamente sob os signos
que pode ser compreendida como teia, multiplicidade e rede comunicativa. Requer- brilhantes do progresso, da modernidade e do estilo. Vemos esta aspiração de um
se com isso uma mudança de escala no modo como tanto a história como a tradição modo distinto quando percebemos que com o tempo a conexão da nave mãe de
devem ser conceitualizadas. George Clinton foi para as nuvens, o trompetista Donald Byrd já trilhava o futuro,
Em tempos recentes os trabalhos de teor oracular deliberado e eticamente o organista de jazz Charles Earland anunciara a possibilidade de deixar este planeta,
comprometido, mas ainda jocosos de figuras futurísticas como Sun Ra e George
Clinton começaram a chamar atenção. Greg Tate desempenhou a inestimável tarefa 18. "Sai c comprei alguns livros desta alemã chique Leni Riefenstahl, Lnst ofthe Nuba and Peoplc of
de vincular parte da obra de Clinton direramente à imaginação visual de Leni Kay [sic] [Os últimos nuba e o povo de kay]. Tem um filho da puta em uma foto que se parece
Riefenstahl ao buscar a informação sobre a inspiração trazida a ele pelas fotografias comigo". Greg Tale, Flyboy in the Buffer Milk (Simon ano Schuster, 1992), p. 34.

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e o som hi-tech hipermoderno dos sintetizadores conjurava a possibilidade de que Parece-me que o problema da inabilidade da América até agora em ultrapassar ou ao
logo ocorreria um total domínio negro da tecnociência. Logo depois, a música funk menos se manter pari passu com a Rússia na corrida pelo espaço pode ser observado
diretamente a partir deste problema racial ao qual tem sido dada prioridade máxima,
futuóstica de Wansell - composta pelos refinamentos tecnológicos da síntese e
não apenas em todo o país, mas até em Washington. Eles gastam tanto tempo
seqüenciamento de som análogo - desafiaram os solos da dança diaspórica ao
tentando entender se o voto negro potencial é tão importante a ponto de valer a
afirmar com presciência a possibilidade de "Vida em Marie". pcna enlouquecer o Sul com a abertura das escolas brancas para as crianças negras,
É preciso sempre lembrar que Wright, assim como Panon, escrevia a ruptura da barreira de cor em restaurantes, ferrovias e estações de ônibus, nos
como um prototípico europeu negro. Enquanto ele datilografava aquelas palavras, empregos de colarinho branco e em nomeações políticas, que aqueles que estão à
ele olhava ansiosamente para trás na direção dos conflitos raciais idiossincrãsicos frente de programas nucleares e de mísseis não sabem para onde ir."

de sua terra natal. A sua decisão de se colocar à frente em vez de atrás do resto
do Ocidente pode ainda nos ajudar a tornar inteligíveis as atividades mais A suposição de tempo linear ou evolucionário e sequências teleológicas
deliberadamente opacas de figuras como Ra, Clinton e Slim Gaillard, outro músico meticulosas nos quais se define e avalia o progresso pelos atos voltados para a
ex-cêntrico cuja conversa em línguas hip interplanetãrias fora um tanto eliminação do racismo teve conseqüências profundas para os artistas negros. De
negligenciada. É possível que as palavras de Wright também nos ajudem a decifrar diferentes modos, todos esses exemplos desenvolveram a hipermodemidade da
alguns dos enigmas apresentados em "Answers in Progress" [respostas em atividade extraterrestre (de humanos e outros) como um meio para conduzir uma
andamento], uma estória curta e memorável de Amiri Baraka em que se descreve interrogação codificada sobre a dúbia ética territorial associada com a supremacia
a visita de alienígenas blue a este planeta em busca dos discos de Art Blakey. A branca e sua parcialidade racial fora de moda. Todos, exceto Elijah Muhammad e
escolha de um exílio meramente territorial feita por Wright como um primeiro suas legiões, concordaram que o pensamento de raça situa-se no passado e ao
passado pertence.
passo em direção a sua utopia não-racial pode possivelmente esclarecer de um
modo interessante o pensamento criativo revelado por Duke Ellington em "Ballet Este é um ponto apropriado para relembrar que o primeiro beijo interracial
of the Plying Saucers" [A Dança dos Discos Voadores], e ainda de uma forma da televisão americana se deu entre William Shatnere Nichele Nichols, comumente
mais interessante, em seu breve ensaio de 1957 "The Race for Space" [A Corrida mais vistos em seu trabalho conjunto na ponte do Starship Enterprise de Gene
Espacial]." Nesses trabalhos, Ellington declarou o seu pertencimento à comunidade Roddcnbury. Em sua autobiografia, Nichols descreveu o que aconteceu depois
nacional americana, e em meio ao clima gelado da Guerra Fria que terminaria por que aquele episódio histórico foi ao ar: "Recebemos uma das maiores fornadas de
cartas de fãs já enviadas, todas positivas, sendo muitas dirigidas a mim por garotas
pulverizar' Wright, Fanon e tantos de seus companheiros, ele afirmou não só que a
cultura de jazz modema da América era um "bom barómetro" de suas liberdades tentando imaginar qual a sensação de beijar o Capitão Kirk, e muitas outras para
modernas singulares, mas também que a inabilidade do país em igualar-se às ele de rapazes querendo saber o mesmo sobre mim"." Embora eles tivessem sido
realizações tecnológicas de seus rivais russos era um resultado do efeito forçados por alienfgenas a dar este abraço não natural, a imagem desses não-
constrangedor da consciência de raça sobre a criatividade americana e a esperança amantes centrou-se largamente no sentimento compartilhado de que a consciência
americana: de raça liga-se à terra e é anacrônica. Foi o endosso de uma conclusão inevitável:
uma vez que a consciência de raça é tão manifestamente antiquada, as suas vítimas
e outros que percebem o segredo aberto de seu status residual devem estar mais

19. Est~ ensaio é tratado longamente por Graham Taylor cm sua tese de doutorado, "Blutopia:
vístons of lhe Future and Rcvísíons of the Past in the Work of Sun Ra, Duke Ellingron and
Anthony Braxton" (Dept. of American and Canadian Studics, University ofNoltingham, 1997). 20. Duke Ellington, 'lhe Race for Spaoe", in The DukeEllingtonReador,org. Mark Tucker (Oxford
Esta tese foi publicada com o mesmo título, com revisão, pela Duke University Press em 1999, University Press, 1993), pp. 293-296.
o nome do autor aparecendo como Graham Lock. 21. Nichelle Nichols, Beyond Uhura: Star Trekand Other Memories (Boxtree Books, 1996), p. 196.

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tNIKt LAMrU::lo naçoes, cuuuras e o -escrmc da Raça PAUL GILROY

próximos de viajantes interplanetãrios avançados do que de seus iludidos praticantes a adequação ética da democracia americana à medida que ela se dirigia para uma
terrestres. É por isso que os viajantes espaciais de Baraka queriam a música mais fase imperial madura. A cultura vemacular negra pôde observar isso dolorosamente
hip de jazz e porque, mais recentemente, algo tão perigoso no estilo "velhos tempos" através das mortes de tantos líderes da geração Bandung que se distinguiram e
como a música country white-bread de Slim Whitman podia ainda mostrar-se arriscaram a própria vida ao produzir as perspectivas globais que hoje encaramos
fatal aos invasores alienígenas mal-intencionados no filme Mars Attacks de Tim como dadas.
Burton. Há uma clara implicação de que os marcianos pós-modernos de Burton Os comentários otimistas do tempo da Guerra Fria sobre a raça e o espaço
ficam tão à vontade com o hip-hop e suas ramificações profanas quanto o restante que, tal como os de Ellington, ainda aspiram a alistar a ciência a serviço da
dos habitantes deste planeta decadente. democracia, têm um caráter bem diferente daqueles que se encontram em material
A circulação universal da cultura negra foi também enfatizada por Space posterior onde a tecnociência é vista como inteiramente cúmplice da ordem da
Iam, o popular filme infantil de 1997 no qual Michael Jordan é raptado e escravizado supremacia branca. Este padr-ão posterior abandona uma preocupação
por alienígenas impiedosos, porém incompetentes, que procuravam oferecer um desproporcional em relação ao futuro para se dirigir a um presente desesperador
programa de entretenimento ainda mais excitante cm seu parque temático pan- em que contrastes extremos entre ricos e pobres põem à mostra a profundidade
galático. Nesse filme, Jordan é um atleta super-homem, mas também de tamanho das divisões raciais e de seu poder de corrupção da promessa democrática da
reduzido para que ele pudesse agir facilmente no mesmo mundo dos "Lconey América. Neste ponto, o futuro chegou. Aquele conhecido fã do Star Trek, Dr.
Tunes", personagens de desenho animado da Warner Brorhers, que eram seus Martin Luther King, Jr., esteve entre os primeiros a dar voz a um argumento
companheiros de escravidão e seus amigos. Embora o personagem de Jordan não importante a se repetir muitas vezes nos anos seguintes à sua morte:
fosse claramente uma criança, ele ingressa no mundo infantil de um modo
interessante - como um brinquedo - deste modo correspondendo tanto ao desejo Nos dias de hoje a exploração do espaço está nos engajando não só com o nosso
da agência de propaganda de alcançar consumidores cada vez mais jovens, como entusiasmo, mas também com o nosso patriotismo. Ao desenvolvê-la como uma
competição global, nós intensificamos o seu drama inerente, introduzindo a sua
aos códigos raciais duradouros que permitem a um herói negro ser, ao mesmo
aventura em todas as salas de visita, creches, lojas e escritórios. Não se vê um tal
tempo, mais e também algo menos do que um homem, sem nunca conseguir a fervor ou júbilo servindo a guen"a contra a pobreza. Há impaciênciaem relação aos
humanidade estável do adulto que exige o reconhecimento. seus problemas, indiferença para com o seu progresso e hostilidade para com os
Cada um destes exemplos merece uma consideração mais extensa devido seus erros. Sem negar o valor do esforço científico, há um surpreendente absurdo
ao modo com que eles se desvencilham do rótulo de "primitivo", apontando para o em se destinar bilhões de dólares para se chegar à lua onde não vive ninguém,
enquanto apenas uma Fraçâo daquela quantia é apropriada a serviço dos cortiços
atrasado e trágico absurdo auto-derrotista da ordem racial da América. Contudo,
densamente habitados. Se estas estranhas perspectivas persistirem, em poucos
há algo mais em operação aqui. Estas imagens de ciência, espaço e cantata anos podemosficar seguros de que assim que pusermosum homem na lua, com um
interplanetário também revelam importantes pontos de ruptura na apreensão e telescópio adequado, ele será capaz de ver os cortiços da terra com o seu excesso
compreensão do puder pelos afro-americanos. Elas levam a uma gradual percepção populacionalintensificado,decadênciae turbulência. Em que escala de valoreseste
de que as lutas pela liberdade negra dentro e fora do espaço colonial haviam é um programa de progresso?"
alcançado um significado geopolítico planetário. O cenário de Guerra Fria constante
das observações de Wright é muito significativo por trazer este aspecto de volta
para casa. O poder do governo americano não podia mais ser adequadamente
compreendido como um mero fenômeno nacional. A guerra de 1939-1945, o cerco
de Berlim, e as operações da Cl.A e outras agências secretas pelo mundo afora
haviam mostrado que Tio Sam era bem mais ambicioso. Essas eram as condições 22. Martin Luther King., Jr., Where Do We Gofrom Here: Chaos ar Communisy? (Harper and Row,
em que a questão de "raça" tornou-se gradualmente central para os debates sobre 1967), p. 86.

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Há um contraste pronunciado entre as tentativas de Wright e Ellington de hiperhumanodo ultramoderno e ultraprimitivo que a sua culturadistintivahavia assinalado
impulsionar o futuro em favor da liberação negra, e o sentimento de King, apenas há tempos na Europa. À medida que essas pessoas viajavam cada vez mais longe das
uns poucos anos depois, de que o abismo entre as conquistas sociais e tecnológicas fontes da sua cultura situadas no Novo Mundo, elas personificaram crescentemente
era agora tão profundo a ponro de pôr em questão a própria idéia de progresso alguns de seus atributos mais apelativos para um público translocal de veneradores. Os
social e económico. A compreensão da diferença entre essas posições pode seuscorpos comunicavam saúde, vitalidade,força, e um poder absolutamente racializado
contribuir para a construção de uma linhagem de discursos de futurologia e capaz de reconciliar o primitivo com o moderno, o pós-contemporâneo.
extraterrestrialidade que mais uma vez ocupam o centro das práticas culturais Este projeto é agora uma operação virtual que pode continuar sem que os
vemaculares. Esta genealogia também exigirá o nosso confronto com o glamour seus agentes tenham de deixar seus lugares de moradia. Em outras palavras, o
translocal e o poder de atração da cultura afro-americana, assim como a aparição desenvolvimento de uma futurologia vernacular tem se ligado ao entendimento de
de ícones modernos representativos e buscas reveladoras deste tempo: corpos que a antiga negritude, compreendida de um modo estreito demais como a abjeção
exemplares, músicas características e esportes típicos. Estes premiados atributos americana, deve permitir uma nova percepção da negritude como um sinal de
transmitem uma aceleração do presente e a intensificação de seus prazeres. Eles prestígio, em especial como um significante de saúde e competência corporal, de
têm se destacado com a industrialização e a conseqüente globalização de rnídia humano, ou melhor, de super-humano, vitalidade, graça e potência animal. Isto
comunicativa e de entretenimento. Nichelle Nichols explicou que King foi muito proporciona o horizonte para que as cenas primordiais da pós-modernidade
claro sobre o significado da presença dela na ponte do Enterprise em relação às privatizada sejam representadas.
lutas de liberdade dos afro-americanos: Os códigos do complexo cultural que denominamos de infoentretenimento
negociaram e abarcaram as forças estético-políticas resultantes das tecnologias
Eu me voltei...e dei de cara com o Dr. Martin Luther King, Jr. Fiquei pasmada... O culturais desbravadas pelo fascismo europeu. Para compreender a força sedutora
homemnosapresentou. Imaginemminhasurpresaaoouvirque as primeiras palavras dessas imagens de humanidade e seu futuro tecnocientffico ordenado, precisamos
do Dr. Kingforam: "Sim, eu sou muito seu Ia e queria te dizer como é importante o reconstruir a confluência desses dois mundos de sonho de cultura de massa onde
seu papel". Ele começoua contar que ele e seusfilhos assistiam fielmente Star Trek
e o quanto eles adoravam Uhura." eles roçam e requerem identificação com os COllJOS negros superhumanos, tanto
de homem como de mulher. Esses sistemas de representação combinaram-se e se
No palco planetário, o comprometimento teimoso e provinciano da América transformaram numa única fantasmagoria bem mais poderosa do que qualquer
com a idéia de hierarquia racial fez com que as suas pretensões democráticas coisa que Fanon tenha inicialmente vislumbrado, nos anos de 1940 e 1950, em
começassem a parecer absurdas. A sua ordem racial poderia ser contradita apenas tabuletas brilhantes e esmaltadas marcadas com as palavras legendárias e
pelo mundo emergente da cultura de consumo e sem lugar fixo, onde aspectos da desencorajadoras "Sho'good eating'' [boa comida na certa], esforçando-se por
negritude injuriados por ela passavam a ser cada vez mais venerados como um nomeá-la naquelas partes de Pele Negra, Máscaras Brancas em que - ao pensar
suplemento adequado para algumas acentuadas oportunidades de mercado. Esta em lesse Owens e Joe Louis - ele discutiu os processos pelos quais a fisicalidade

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não era a situação familiar em que um apetite por culturas negras é completamente ativa do Negro não simboliza a natureza, mas sim o biológico.
divorciado de um entusiasmo equivalente pelas pessoas negras que as produziram. As conseqüências políticas mais óbvias desta mudança são perceptíveis no
Eu diria que o momento em que a Guerra Fria começou a dar lugar àquilo que a espetãculo, no ritual e no drama político numa tessitura estética, os quais têm sido
sucedeu pode ser demarcado pelo modo como as pessoas representativas em oferecidos numa escala global sem precedentes, além de serem articulados
termos raciais do afro-americano tornaram-se efetivamente o híbrido estranho e deliberadamente como um meio para promover as formas de solidariedade,
I
interconexão e unanimidade inquestionável que caracterizam o ideal impossível de
nacionalidade homogénea num mundo de Estados-nação constituídos em campos.
23. Nichols, Beyond Uhura, p. 164. A celebrada seqüência de fisicalidade negra superhumana que se estende de Jack

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I ENTRE CAMPUS .. Nações, tuuuras e o j-ascrmc ela Raça I I PAUL GIL ROY I

Johnson e Owens, passando por Louis e Muhammad Ali até Michael Jordan e N EORO NÃO MAIS
mesmo Mike Tyson deve também ser examinada como uma parte integral desta
mudança cultural substancial. A sua corporeidade contestada forneceu um elemento Estas questões incómodas proporcionaram um cenário promissor para o
decisivo para se compreender como as técnicas e tecnologias de si mesmo, a primeiro romance de "ficção científica", escrito por um autor do Atlântico negro.
identidade e a solidariedade nascidas do nacionalismo e refinadas pelos regimes Trata-se de "Black No More" [Negro Não Mais] de George Schuyler, uma exposição
governamentais e escópicos do nazismo têm sido recicladas de uma forma quase satírica sobre a era da Renascença do Harlem, publicado pela primeira vez em
irreconhecível nas operações visuais do comércio contemporâneo. Elas proporcionam 1931. Não há alienfgenas do espaço ou viagens espaciais em sua novela futurística.
agora a substância cotidiana para a venda de vestuário esportivo, sapatos e outras Ao contrário, a sua estória diz respeito aos efeitos na América da invenção de uma
mercadorias. Elas oferecem um atraente contraponto humano para o anonimato máquina para transformar pessoas negras em brancas. Como se poderia imaginar,
do logotipo empresarial, o qual promove precisamente essas formas de solidariedade as tecnologias elétricas e químicas para realizar esta transformação surpreendente
que os emblemas nazistas, em primeiro lugar, buscaram impor sobre um mundo em eram trazidas de volta da Alemanha para os Estados Unidos pelo inventor desviado
desordem. e cosmopolita, Dr. Junius Crookrnan. É especialmente significativo para os nossos
É a perfeição atlética do corpo masculino negro que especifica o futuro propósitos éticos que a primeira grande ação do protagonista, após passar por sua
aqui. Esses valores dinâmicos pós-modernos reduzem a experiência da atividade mutação de raça, é se alistar nas fileiras de uma viciosa organização de supremacia
esportiva ao ideal de ser um vencedor. Eles estão bem longe das antigas noções de branca, os Cavaleiros de Nórdica. Uma vez. mais, a ciência, a tecnologia e o
honra, beleza, disciplina e competição, previamente associadas ao esporte. A progresso expandem o campo da imoralidade. Eles multiplicam as oportunidades
distância entre eles foi muito bem ilustrada no jogo final da Copa do Mundo de existentes para se cometer atas errôneos. Schuyler, um conservador na política
1998, na França, quando Ronaldo, então o jogador mais caro, e portanto, ao que que foi ativo anti-comunista, argumenta de um ponto de vista misantrópico que os
parece o melhor jogador de futebol do planeta, foi supostamente coagido a participar negros e os brancos são absolutamente iguais em suas incapacidades morais. O
da partida decisiva e final após sofrer um ataque epilético. O patrocinador comercial seu futuro imaginário não oferece nenhuma pausa em relação àquele ciclo eterno,
do time brasileiro, a Corporação Nike, para quem a presença emblemática do somente a sua intensificação.
jogador era considerada central, exigia que ele, são ou doente, assumisse seu lugar Os tropas da extraterrestrialidade reapareceram recentemente na era das
na frente das câmeras. De repente, para aquele descendente de escravos, o futuro culturas e das relações econômicas globalizadas quando a negritude alcançou a
começou a se parecer muito com o passado. importância à qual me referi acima. Desta vez, porém, esses tropos não se associam
De muitas maneiras, a assertiva sobre a alteridade radical dos negros e a com a idéia de progresso científico ou de qualquer outro tipo de progresso. Eles
invocação associada de forças para além deste mundo tornaram-se integrais à têm se manifestado numa encarnação menos positiva como um potente elemento
crítica pós-tradicional da raciologia e da racialidade à qual o trabalho de Riefenstahl na articulação do que se poderia chamar de "fundamentalismo da Nova Era" com
constitui um monumento tão sutil e duradouro. Barrados de uma humanidade padrões perturbadores de irracionalismo autoritário. Não é preciso dizer que este
comum, além de lhes serem oferecidos os papéis igualmente insatisfatôrios de código cifrado de uma crônica falta de poder não é uma amálgama que se submete
semideus, guardião, ou bichinho de estimação, os artistas como Sun Ra buscam a supostos limites inquebrantáveis da cor ou do fenótipo.
outro modo de reconhecimento na identidade mais estrangeira que possam imaginar. Na década de 1970, aquilo que podemos denominar invocações
O momento em que eles conseguem passar do infra-humano para o super-humano liberalizadoras do arcaísmo africano e da modernidade tecnocienüfica era mantido
os leva finalmente para além do humano por inteiro. Você acreditará que um homem num equilíbrio apropriado apesar de instável. A música, o discurso e a cultura
pode voar. Essa crítica ainda é vivenciada e usufruída tanto como contra-cultura, visual de grupos como Earth, Wind and Pire demonstravam isso claramente. A
como contra-poder, formulada no ponto de junção - a encruzilhada - da morada na tensão entre esses dois comprometimentos foi resolvida num apelo universalista à
dlãspora e do estranhamento na diãspora. espiritualidade de um lado e às características humanas compartilhadas de outro.

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ENTRE CAMPOS •• Nações, CuLturas e o Fascínio da Raça PAUL GIL ROY

Este último apelo, simbolizado acima de tudo pelos feitios do rosto humano, Da pesquisa de Stephen Lawrence em Londres às ruas de Jasper, Texas, o estilo
infinitamente distintos, porém sempre semelhantes, foi inesperada e felizmente militar e destituído de humor de homens negros rígidos e uniformizados confirma a
revelado por meio do contraste explíeito com o extraterrestre. A música emoldurou linhagem insípida da sua perspectiva política. A sua disciplina recebe aplausos de
essas possibilidades ao criar espaços de prazer e descoberta. Os anos entre "Outra espectadores como se ela pudesse ser separada dos seus outros atributos
Space", uma extravaganza em c1avinete de Billy Preston e "Planet Rock" de fotogênicos. É preciso que nos perguntemos como esse militarismo terreno
Afrika Bambaataa tiveram seus salões de dança tomados não só pelo conhecido glamoroso pode prontamente coexistir com o interesse deles em alienfgenas, naves
trabalho de Clinton, mas também pelos inúmeros produtos tributários de Star Wars espaciais e numa redenção engenhada lá de cima. Há um pequeno indício quanto
e pedidos efêmeros para que ET telefonasse para casa. a isso no modo como se apresenta a ciência nos ensinamentos daqueles. Nessa
Vinte anos mais tarde, a cultura predominante americana parece ter subcultura, a ciência conseguiu escapar consistentemente da critica graças à sua
descoberto o valor dessa percepção, mas no que diz respeito à cultura negra este capacidade de negar a imagem do "Negro" infantil, estúpido e ignorante. Há uma
equilfbrio delicado dos anos 1970 e 1980 já se perdeu. Até certo ponto é evidência deste fracasso na estória do cientista rebelde Yacub a quem a Nação do
compreensível encontrar um sentimento anti-moderno nas tradições inventadas de Islã atribui a invenção não-natural da raça do diabo branco. Ele não foi amaldiçoado
uma comunidade constituída a partir da percepção de que o progresso e a catástrofe pelos tipos de ciência que praticava, mas sim devido à inspiração ilegítima delas e
não poderiam ser separados em sua própria história recente, mas ambos os lados seus resultados catastróficos. Em outro nível, as atividades deste cientista, apesar
da equação da identidade - arcaísmo negro e hipennodernidade negra - parecem de malévolas, poderiam ser pensadas como confirmadoras do empreendimento e
estar fora de qualquer controle. A busca de um espaço não contaminado, fora das do gênio da sua raça como um todo. Nesta versão da estória de Frankenstein,
operações de um sistema comprometido e não-democrático, a partir do qual um Yacub devia ser zombado por sua desobediência, arrogância e fracasso em
exame crítico poderia ser conduzido e possibilidades de desenvolvimento mais corresponder às demandas da piedade e da autoridade intergeracional, mas não
frutíferas seriam identificadas, já foi quase abandonada. As pessoas já não apostam pela imoralidade patológica de suas compulsões científicas. O crescimento da NI,
na possibilidade de partida deste planeta naquele mesmo espírito com que seus com as suas ramificações e o poder de seus companheiros de viagem, ainda envolve
antecessores se entretiveram com a idéia de um retomo à África. A África era a circulação dessas estórias fuumsucas, as quais não são periféricas ao apelo de
um lugar mais receptivo no período das guerras anticoloniais do que parece ser seu rígido programa de regeneração racial. A sua popularidade atual é apenas um
atualmente, encerrada como está na privação pós-colonial. O tradicional desejo sinal de que hoje a política negra democrática enfrenta um ressurgimento do
dos escravos de escapar precisou ser redefinido. A fuga é agora tanto uma jornada ocultismo. As tendências de conservadorismo revolucionário . , arcãicas e inventoras

interior, ou uma viagem curta até o mercado. Atualmente os entusiastas mais de tradições, estão sendo modificadas, atualizadas e parcialmente substituídas por
meticulosos da antiguidade africana buscam engajar os poderes extraterrenos dos altas doses de uma fantasia tecnocienttfica irracional que é reveladora de novos
viajantes espaciais, ou outros imbuídos de uma percepção extraterrestre, a serviço abismos para os negros em matéria de falta de poder e pauperização. O trabalho
de propósitos mais místicos e mais profanos. Os alienfgenas não representam gnóstico de Richard King se aproxima dos pináculos dessas evoluções deprimentes:
nenhuma esperança ou fuga, mas sim a frustração humana básica diante do
crescente poder dos governos terrestres com os quais eles se aliam, além da ira A negritude, o solvente universal de todos, era vista como a única realidade de
cotidiana contra os Illuminati transnacionais que estão agora mesmo a conspirar onde o tear da vida tirava os seus fios. Todas as cores, todas as energias vibratórias
não eram mais do que uma tonalidade do preto. Preta era a Cor do céu notumo, do
pela subordinação da humanidade racialmente dividida.
oceano primitivo, do espaço externo, do lugar de nascimento e ventre dos planetas,
No período inicial, a teologia da Nação do Islã relacionada às naves espaciais estrelas e galáxias do universo; buracos negros foram encontrados no centro da
foi satirizada sem grandes danos por George Clinton e sua tripulação de clones nossa galáxia mesma e num sem número de outras galáxias. Preta era a cor do
bem vestidos. Atualmente pode-se dizer que o irracionalismo autoritário triunfou carvão, o átomo fundamental encontrado em todas as coisas vivas. Os átomos de
sobre a carnavalização subversiva com a qual o Dr. Funkenstein o havia submetido. carvão se juntaram para formar a melanina negra, o primeiro elemento químico que

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ENTRE CAMPOS •• Nações, Culturas e o Fascínio da Raça PAUL GILROY

pode capturar a luz e reproduzir a si mesmo. Descobriu-se que o elemento quími~o­ que "qualquer referência aos "judeus" deveria ser substituída pela palavra
chave da vida e do próprio cérebro estava centrado em torno da neurornelanina "Illuminati", assim como a palavra "goyim'' [não-judeus] pela de "gado?". Menos
negra. A visão interior, a intuição, o gênio criativo e a iluminação espiritual fo~am
digno de nota tem sido o fato de que a capa lúgubre do livro projeta Cooper como
todos percebidos como dependentes do sangue da glândula pineal; mensageiros
químicos inatos que controlavam a cor da pele e abriam a porta esc~ndid~ p~ra a "o maior especialista do mundo em ÓVNTs". Ele parece indeciso quanto a se os
escuridão da mente coletiva e inconsciente permitiram com que o antigo cíenusta- alienígenas constituem uma ameaça real, ou se foram manufaturados pelos Illuminati
sacerdote visualizasse o conhecimento a partir dos bancos de memória inconscientes, como um meio para forçar a humanidade à unificação não desejada, resultante da
coletivos e imemoriais da mente." sua reação com base nos melhores recursos militares da Terra contra o poder
alienígena.
Em minha tentativa de compreender como foi possível este ressurgimento e Uma cuidadosa conspiração em que alienígenas e naves espaciais figuram
de esclarecer o seu caráter autoritário, cheguei através de anúncios do jornal Final em termos proeminentes como adjuntos do poder cosmopolita e como prova da
Cal! da NI ao livro Observem um Cavalo Pálido, produzido e publicado em 1991 perfídia govcrname~ta1 constitui parte essencial da língua franca que vincula a
pelo teórico da milícia William Cooper." Cooper é natural do estado de Oklahoma Nação do Islã e sua cultura periférica à perspectiva e às ações das organizações
e declara ser de "sangue Cherokce''. Ele acentua o caráter "constitucional" da autoritárias e fraternais que falam em nome de uma branquitude militarizada. Essa
sua cruzada política pela verdade e também chama a atenção para o fato de ele ter fantástica ligação fraternal por cima da linha de cor não é apenas resultante do
uma esposa chinesa, provando assim que a supremacia branca não faz parte de modo como alguns grupos ultranacionalistas negligenciam estrategicamente a
seu sistema de crenças. Ao que parece, Cooper ganhou um número substancial de "raça". O "multiculruralismo" de Cooper sugere que o racismo anti-negro pode ter
leitores negros com base nessas estratégias. O capítulo inicial de seu livro intitula- de fato se tornado bem menos importante em sua composição ideológica, perdendo
se "Silent Weapons for Quiet Wars'' [Armas Silenciosas para Guerras Tranqüilas]. terreno nos assuntos de teor anti-elite e anti-governo nos quais também aos negros
Segundo ele nos diz, este é o título de um importante documento secreto descoberto pode-se conceder um papel de vítima até certo ponto - por exemplo, como alvos
significativamente numa máquina copiadora do governo, adquirida em uma liquidação infantis dos negócios em drogas pesadas operados pelo governo, ou como vítimas
de estoques excedentes. A mesma frase já foi incorporada pela banda de hip-hop do HIV introduzido em suas comunidades como parte de um esquema genocida
uniformizada, Killarmy, um braço militar de Wu Tang Clan, que a usou, por seu para livrar o planeta da raça negra.
turno, como título de seu CD de 1997. Os representantes negros e brancos desse fundamentalismo podem discordar
Cooper construiu uma elaborada teoria conspiratória que abarca o assassinato quanto ao status icônico do General Colin Powell que aparece como o ator-chave
de Kennedy, as operações de um governo mundial secreto, a vinda de uma idade na constituição da Ordem do Novo Mundo, mas convergem em maior profundidade
do gelo e diversas outras atividades clandestinas associadas com a declaração de quanto ao valor dado por eles à fraternidade, violência e guerra. Enquanto os
guerra ao povo da América pelos llluminati. As suas explicações elaboradas e Illuminati encontram-se preparados de uma maneira simulada para permitir o
irrefutáveis são escavadas de antigos veios do "estilo paranóico" americano. Se o ingresso de mulheres em seus exércitos, a velha cultura marcial, que se opõe às
livro dele conseguiu chamar alguma atenção, isto se deu até aqui sobretudo por ambições ilícitas delas, permite que os homens verdadeiros se liguem uns aos outros
incluir uma reprodução de grandes trechos do texto de um notório panfleto arui- em um amor primordial capaz de crescer somente na medida da exclusão das
semita Protocolos dos Anciãos de Síon. No texto de Cooper, o capítulo que mulheres. Este repertório militarista não conhece linhas de cor ou de cultura.
contém esses excertos abre-se com uma nota do autor advertindo os leitores de Os membros de Frutos Militares do Islã de Khallid Muhammad demonstraram
a sua força armada nos dias que se seguiram ao brutal assassinato de James Byrd
24. Richard King, M.D., African orlgin. qf' Biologicol Psychíatry (U.B. and V.S. Comrnunicaticns em Jasper, Texas. Reunidos a apenas alguns metros dos homens brancos da Klan
Systems, 1994), pp. 13-14. que haviam chegado à cidade em missão política similar - homens que compartilham
25. Milton William Cooper, Behold a Pale Horxe (Light Technology Publishing, 1991 l· das mesmas ansiedades sobre a pureza de "raça" e a degeneração, e que poderiam

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em outras circunstâncias ser de fato aliados - eles tornaram claras as implicações Na época de sua triste vivência na Califórnia, Adorno escreveu um ensaio
políticas de sua postura anti-política ao transformar uma lista conhecida de queixas celebrado e polêmico intitulado "Stars down to Earth" [As Estrelas aqui na Terra).
em antigas reivindicações por dinheiro e por território soberano. A possibilidade de Neste ensaio, ele fez comentários cáusticos sobre a seção de horóscopo então
que os direitos políticos pudessem fazer parte da solução para esses conflitos publicada pelo Los Angeles Times. Suas observações contrárias sobre a relação
racializados foi explicitamente repudiada. Como explicou o seu comandante General entre o outro mundo e o desenvolvimento do irracionalismo autoritário tornaram-se
Omar Al-Tariq: uma vez mais interessantes no contexto contemporâneo. Embora Adorno negasse
que o seu pequeno estudo sobre aquela seção pudesse ser generalizado, ele tentou
Nunca haverá paz neste país até que o homem negro seja separado e que terra lhe identificar as variedades de desencantamento e opacidade que fomentam a
seja dada. Não estou interessado em direitos civis. Queremos reparações e rumar
necessidade de acreditar que o poder sublime das estrelas e dos planetas é o guia
para a nossaprópria terra. E se vocês nãoperceberem isso, haverá um tempo em que
nós, o homemnegro,tomaremosas vidasdos homens, mulherese bebês caucasianos. de toda a atuação humana. Ele menciona a hipostasiação da ciência, a vontade
Nós os mataremos, mataremos todos vocês. Vocês Verão o homem negro explodir e desesperada de quebrar o encanto limitador de tudo quanto existe e o desejo ardente
já estamos próximos disso - esse diajá está a cair sobre VOCêS.2~ de encontrar um atalho para sair das trevas rumo a algo melhor, algo além deste
mundo. Vimos que todas estas tendências estão vivas na obsessão contemporânea
Por meio desta citação podemos perceber que a questão do contato efetivo por alienígenas, naves espaciais e conspirações de governo. Elas também operam
com a elite e da colaboração tecnológica com alienígenas é importante, mas enfim melhor naquilo que ele denominou um clima de "agnosticismo desiludido". Aqui,
secundária. Bem mais significativo é o modo como o segredo de governo sobre os também neste ensaio sobre a seção de astrologia, os fatos, apesar de encobertos
ÓVNIs emerge como um significante extremamente forte em matéria da duplicidade pelas ações secretas de governo, constituem a questão principal e inescapável.
e corrupção geral de toda uma ordem política ilegítima. Cooper iniciou-se na perigosa Se este capítulo passar a impressão de que se arrisca a se tornar mesmerizado
trilha que o conduziu para as operações do governo mundial secreto na época em por assuntos marginais, as observações de Adorno demonstram a obrigação de
que servia no Vietnã, onde a presença dos ÓVNls e a sua participação relatada tratar das versões cotidianas, visíveis, sobre os mesmos temas ocultos:
em combates parece ter sido um evento corrente. O fato de ele lembrar "institucionalizados, objetivados e, em larga medida, socializados". Estes temas
continuamente ele seu status de veterano de guerra prova mais do que as suas têm sido articulados de maneira mais clara e óbvia em filmes de sucesso como
credenciais patrióticas. Com isso se estabelece a profundidade da traição perpetrada lndependence Day e Men in Black em que as narrativas no estilo ur [de origens]
pelo governo dos Estados Unidos, apontando-se para outro indício maior em termos de uniões heteroscxuais e reconstrução familiar têm sido momentaneamente
do poder do irracionalismo cego à cor e do militarismo. A ameaça imaginária deslocadas por outras preocupações urgentes. A família burguesa está agora
representada pelos alienfgenas, suas tecnologias ameaçadoras, e sua colaboração aparentemente perdida no espaço e há, suponho, alguma medida pequena de
secreta com governos fraudulentos tornaram-se meios para gerar e legitimar progresso envolvida na imagem alternativa de salvação planetária que se está
respostas paramilitares. Os extraterrestres colocam a vida humana em risco. A vendendo para o mundo, forjada não por Buck Rodgers ou Dan Dare, mas através
única resposta apropriada para o seu poder desmesurado é a guerra. A ameaça dos irreprimíveis estereótipos americanos encarnados na inteligência cerebral de
alienígena é acima de tudo uma oportunidade para instigar as regras marciais capazes JeffGoldblum e na fisicalidade adolescente de Will Smith. Mas o multiculturalismo
de repudiar todos os processos políticos e substitui-los por uma hierarquia natural. empresarial tem seus limites. Embora os mecanismos da conexão sejam pouco
Isto poderia ser mudado de fato somente por meio de um respeito fraternal claros, a proliferação de filmes nos quais os homens se unem em termos rransétniccs
beligerante. perante perigos maiores representados por alienígenas, invasões, cometas e
conquistas planetárias ameaçadas afirmam de fato algo da condição radical de
falta de poder, produzida por uma inabilidade crónica em reduzir a saliência das
26. Ed. Vulliamy, "Face-off in Jasper", Guardian Weekend, 1] de julho de 1998, p. 14.
divisões raciais na vida social, económica e cultural. Esta mesma tendência está

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J ENTRE (AMPU~ •• neçces. ruuuras e o Fascínio da Raça I

aberta a ser lida como um resultado das mudanças funestas que alimentaram o
crescimento do militarismo e do absolutismo étnico.
Contudo, há outra saída mais esperançosa para aqueles que se abrigam à
sombra do modernismo fascista interpretarem o modo como Hollywood colocou
estes temas extraterrestres em primeiro plano cm tempos recentes. Deixando de
lado as considerações sobre a destinação dos rendimentos, é impossível passar por
cima do fato de que esta safra de filmes expressa uma fome real e difusa por um
mundo não mais dividido pelas pequenas diferenças que mantemos e inflamos ao
chamá-las de raciais. Estes filmes buscam celebrar o fato de que a vontade de
manter esses princípios de diferenciação ultrapassados regride ao ser confrontada
com variedades mais substanciais do Outro e formas de vida verdadeiramente
extra-mundo. Com isso a fábrica global de sonhos parece afinal ter se equiparado
com o melhor conteúdo das correntes mais dominantes do pensamento político
negro. O nosso desafio agora deveria ser trazer visões ainda mais poderosas da
humanidade planerãria do futuro para o presente, religando-as com as tradições
democráticas e cosmopolitas que quase foram apagadas do atual imaginário político
negro.

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