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A DEMOCRACIA Hans Kelsen Traugio IVONE CASTILHO BENEDETTI JEFFERSON LUIZ CAMARGO MARCELO BRANDAO CIPOLLA, ‘VERA BARKOW Martins Fontes ‘S@o Pavio 2000 en ria ei ern Lon Mar Bane enema teint te Meio tata Lente sl Pe Prager i Ca, a tt i prc Todos x reir a ings porteens rez irae Martins Fonts Editor ide ur Const Ran 30.40 (1:28.090 So Pl SP aa Tel (11) 239-0077 Fas 18) 3105 0887 mui nfomarinitescom ‘psi mortnntes com indice Introduciio: Kelsen € a dovtrina pura do Direito .. PRIMEIRA PARTE ‘A DEMOCRACIA SEGUNDO KELSEN Esséncia e valor da democracia Preficio L.A liberdade IL. © povo IIL. O parlamento IV. A reforma do parlamento V. A representacao profisional VI. O principio da maioria VIL. A. administragio ... VIIL A escolha dos chefes osteo IX. Democracia formal e democracia social . X. Democracia e concep;o de vida 0 problema do partamentarismo ‘Fundamentos da democracia 1 Democracia ¢ filosofia ‘A Democracia como “governo do povo": um pi mento politico .rescsseseeeeessee ‘A doutrina soviética de democracia ‘Uma nova doutrina da representagao ...secseseeteee Absolutismo filoséfico e relativismo filosofico A iidéia de liberdade natural e social ‘A idéia metafisica de liberdade ... ‘A doutrina da demoeracia de Rousseau © principio do voto majoritirio ... 161 167 168, m 18 I um. © tipo demoeratico de personalidade principio de tolerancia r © cardter racionalista da democracia . problema da lideran Democracia ¢ paz .....- ‘A democracia e a teoria do Estado .. _ na histéria das idéias politicas como relativismo politico Jesus ea democracia .. Democracia e religido .. A democracia como problema da justiva . positivismo relativista responsavel pelo totalita- rismo .... A teologia da justiga de Emil Brunner .... ‘A douttina crista do direito natural Lierdade ¢igualdade segundo a teolosa protes- tante A concepgao de Reinhold Niebuhr. A religiao é a base necessaria da democracia .. eae relativismo religioso 7 A tolerancia com base religiosa .... A filosofia da democracia de Jacques Maritain - ‘A democracia e 0 Evangelho Democracia economia .. apitalismo e socialismo em relagdio a democracia A doutrina marxista de que a democracia s6 € pos- sivel sob um sistema econdmico socialista .. Capitalismo ¢ ideologia politica ....... Uma “redefinigio” da democracia A alegada incompatibilidade da democracia com 0 socialismo (economia planificada) A “regra de Direito”” Democracia ¢ liberdade econdmica Democracia como governo estabelecido mediante concorréncia see seeeensnee Capitalismo e tolerancia Propriedade individual e liberdade na doutrina do ito natural de John Locke A propriedade coletiva na doutrina do direivo natural 180, 182 185 188 191 192 195 201 203 205 205 207 21 215 220 229 233 238 244 248 253 253 254 256 258 265 268 274 279 281 283, 287 Propriedade individual e liberdade na filosofia de Hegel ..... . 290 Propriedade individual e liberdade na teologia de Emil Brunner ... oe 294 SEGUNDA PARTE OS PRESSUPOSTOS DA TEORIA DEMOCRATICA DE KELSEN O conceito de Estado ¢ a psicologia social, com especial referéncia a teoria de grupo de Freud ..... 301 Absolutismo ¢ relativismo na filosofia e na politica ... 345 359 Introdugao Kelsen e a doutrina pura do Direito £ opinito amplamente generalizada que a cultura politico- juridica do século XX no Ocidente (em primeiro lugar conti- nental, ¢ em segundo lugar de lingua inglesa) foi notavelmen- te influenciada pelo pensamento de Hans Kelsen: seja em sen- tido positive, com 0 chamado sucesso do kelsenismo; seja em sentido negativo, com as batalhas, muitas vezes cruzadas, con- tra 0 kelsenismo. Sucesso e insucesso parecem estar ligados so- bretudo a Reine Rechtslehre ¢ a sua evolugo. A Festschrift, publicada na Austria por ocasido do nonagésimo aniversario do nascimento de Kelsen, abre-se significativamente com um censaio que tem como titulo “Das Lebenswerk Hans Kelsens: Die Reine Rechtslehre”’!. Nao hé diivida de que no complexo multiforme da pro- dugdo kelseriana a doutrina pura do direito assinala da forma mais nitida ¢ originalidade do estudioso; ¢ é também verdade que, justamente devido a essa originalidade, 0 proprio Kelsen reivindicava o mais alto grau de cientificidade, o status de teoria rigorosamente descritiva ¢ avaliativa®. As teses da doutrina pura sao bem conhecidas, mas nao parece inoportuno apresentar aqui as que so verdadeiros pon- tos pacificos em toda a sua evolugdo, em suma, as que cons- tituiram pontos de referéncia obrigatérios tanto para as ade sdes quanto para as criticas. Antes de tudo, a identificagao do Estado com o direito (ou, se preferirmos, a dissolugao daque- le neste): em segundo lugar, a exclusio (ou, se preferirmos, ‘a expulsdo) ca nogdo de direito (c portanto de Estado) de qual- quer referencia a valores, em especial aos de justi¢a, por irra- A DEMOCRACIA cionais; a elaboracdo, enfim, de um modelo normativo geral (€ de submodelos) valido para todas (ou quase todas) as orde- nagdes juridicas, Colocacao entre parénteses de contetidos, seja como con- tetidos “nominais” desta ou daquela ordenacao, desta ou da- Quela norma, seja como comportamentos cfetivos correspon: dentes ou nao aos conteiidos “‘nominais” (mas nao 0 desco- hecimento de que outras disciplinas possam e devam tratar disso}; estudo, por conseguinte, das estruturas formais das or. denagdes; atitude de rigorosa avaliatividade (que isso venha a ser depois efetivamente realizado é outra questo), essas so as condigdes minimas necessdrias para elaborar uma teoria cien tifica do direito, tal qual a Reine Rechtslehre sempre se pro. OS ser. Foi exatamente em torno desses nticleos da doutrina pura do direito que se construiram 0 sucesso ¢ 0 insucesso do kelse- nnismo. Do sucesso — e nele incluo as corregdes e os ajusta~ ‘mentos com que uma doutrina se enriquece — de se falar aqui Em vez disso, vale a pena tentar uma explicacdo, neces- sariamente parcial, do insucesso, porque, se ao primeito nao faltou generosidade para com Kelsen, o segundo foi sumamente injusto. A Reine Rechislehre certamente foi a contribuigéo mais Original de Kelsen para a filosofia do direito em nosso século, >mas ndo representa o Kelsen integral, que foi, entre autras coi. sas, jurista, ou melhor, estudioso do direito positivo em seus contetidos (especialmente do direito constitucional e do dire. to internacional), praticante do direito em altissimo nivel e, voltando a um plano mais tedrico, também historiador do pen. samento politico-juridico, antropélogo-socidlogo e, finalmente, fil6sofo politico. Ora, se os estudos feitos por Kelsen em his. t6ria das idéias, em sociologia-antropologia e, especificamen. te, em direito podem (talvez) ser lidos em si, é minha firme opinido que o Kelsen tedrico nao pode ser lido independente mente do Kelsen filésofo politico. Quanto a Reine Rechtslehre, realmente, todas as ordena- Ges so pouco definidas, com exceeao das diferencas estrutu- rais: o Sacro Império Romano, uma monarquia constitucio 3 inrRoDUCAO nal, um Estado fascista, um Estado socialista ndo so nem mais nem menos ordenagdes juridicas do que os Estados democr’- ticos. As liberdades negativas podem ser reconhecidas até mes- mo num sistema autocratico, assim como podem ser mais ou mene fortementeiitadas num sistema democrtio, Da mes ira, a li itica (ow r de gover- ma maneira, a liberdade politica (ou seja, © poder nar) pode ser mais ou menos estendida: a todos, a muitos, a oucos, em iltima instancia a um s6 pow produsdo das normas pode ser centralizada ou descen- tralizada, ¢ em ambos os cass em diferentes medidas. Nao €, portanto, tudo isso que subtrai ou acrescenta qual- quer coisa a juridicidade de uma ordenagao, que € tal por ra- zGes bem diferentes. - Ora, todas essas teses, € mais outras que poderiam ser enu- meradas,tese proprias da teoriageral do direito, também va- vara o Kelsen fildsofo da politica? ve om divide ev fa que io, elamentvel consatar que muitas vezes as teses da Reine Rechislehre foram lidas, sobre- tudo pelos detratores, como teses de filosofia politica, com to- das as instrumentalizagdes e os equivocos que disso podiam derivar. ; Uma leitura feita assim nao poderia deixar de qualificar aquela filosofia politica (se realmente fosse ilosofia politica), 10 melhor dos casos, como agnéstica eno por, como cinics entalizagao da mesma podia ava- analogamente, uma instrumentalizacao lzar um Estado burgués captalista, um Estado fascist, ou um Estado socialista. O que, para uma “‘teoria pura’, ¢ fra camente um pouco demasiado. As primeiras divulgacoes de Kelsen na Italia Entrtanto, no se pode der que a cultura italiana, mes- mo a que s6 Ié tradugdes, carecesse de instrumentos para um: Comparasio entre o Kelsen tebrico do distoe Kelsen i sofo politico. Os primeiras textos — salvo o primeirissimo, de- dicado a um tema especitico da teoria geral, ou seja, a distin- ‘edo entre direito puiblico e direito privado* — apareceram (o- dos naquela estranha (uso 0 adjetivo no bom sentido) revista 0 4 DEMOCRACIA do regime, dirigida por Volpicelli, cujo nome era Nuovi studi di diritto, economia e politica (Novos estudos de direito, eco- nomia e politica). Nela foi publicado, em 1929, o importante ensaio “II problema del parlamentarismo” (O problema do parlamentarismoy No mesmo ano surge a primeira parte de “I lineamenti de una teoria generale dello stato”” (Elementos de uma teoria geral do Estado), que ser completado naquela revista no ano seguinte (1930), Ainda a mesma revista de Volpicelli publica, no decorrer daqueles anos, outros textos de Kelsen®. Mas o mais signitfi- cativo € que poucos anos depois, em 1933, Volpicelli reine num volume os textos anteriormente publicados em Nuovi studi e acrescenta 0 primeiro ensaio de Kelsen com forte cunho teéri- co sobre o problema da democracia’. Trata-se de “Wom We- sen und Wert der Democratie’’, que fora publicado em 1920-21 no Archiv fiir Sozialwissenschaft und Sozialpolitik® e cuja se- gunda edigao, revista, sera publicada em 19299, Nao esto cla- os 0s motivos pelos quais, em 1933, Volpicelli publica em ita- liano a primeira edigao do ensaio, a de 1920-21, e ndo a se- gunda, revista, de 1929, que jé estava circulando havia alguns anos"®, © fato, todavia, ndo tem grande importancia, j4 que © cunho teérico do primeiro ensaio permanece quase inaltera- do da primeira para a segunda edigdo. Nao é, porém, isento de significado 0 fato de no mesmo ano, 1933, Renato Treves publicar, em Archivio giuridico, ‘La dottrina pura del dirit- to, Metodo e concetti fondamentali’” (Doutrina pura do direi- to. Método e conceitos fundamentais)!!, que € a tradugao de ““Methode und Grundbegriff der Reine Rechtslehre”, publi- cada no mesmo ano, no original alemao'?, Em 1933 a cultura italiana tinha disponiveis as primeiras formulagdes, em forma ja sulicientemente elaborada, das prin- cipais tomadas de posicdo de Kelsen: as relativas a uma teoria geral (€ pura) do dircito e do Estado (Volpicelli-Treves); as des- tinadas a uma filosofia politica especifica, a democracia (Vol- picelli); as que tratavam das implicagdes e aplicagdes da dou- trina democratica (“II problema de! parlamentarismo”) (Vol- picelli), e, finalmente, as relativas aos adversarios da doutrina pura do direito ou da teoria democratica (Volpicelli)’, inrRoDUGAO 5 Contudo, nao foi dos temas de filosofia politica que a cul- tura italiana tomou posse, mas da Reine Rechtslehre e, de cer- to modo, da polémica com 0 jusnaturalismo (mas esta tam- bém em relagdo com a batalha pelo positivismo juridico, de que a Reine Rechtslehre se apresentava como defensora). Os ouvidos da maioria estiveram surdos, ou talvez ensurdecidos, pelo estrépito do regime, enquanto as vores achavam mais fé- cil, ou menos dificil, falar sobre os conceitos puros ¢ formais da teoria do direito e nao sobre os conceitos, certamente mais problemiticos, de dircito e democracia, democracia e capita- lismo, democracia € socialismo. ‘A injustica em relagdo a Kelsen foi, portanto, dupla: por uum lado, para com o Kelsen da Reine Rechtslehre, lido como (santo protetor de qualquer sistema politico; por outro, para com o Kelsen teérico da democracia, que foi substancialmen- te ignorado. Kelsen revisitado ‘A reparacdo € com ela, acrescentemos, a elaboragao de ‘um balanco inicialmente rejeitado, no qual nao se previa que todas as opinides fossem registradas no ativo, partiu da ini- ciativa da editora Mulino, em 1955, de publicar, a cargo de Matteucci, 0 ensaio “Esséncia e valor da democracia’” (Es- senza e valore della democrazia), com outros dois ensaios: “Ab solutismo e relativismo na filosofia e na politica’? (**Assolu- tismo e relativismo nella filosofia e nella politica”) e “O que €a justica?” (“Che cosa é la giustizia?”). Onze anos depois segue outra edi¢&o que acrescenta 4 precedente o longo ensaio “Fundamentos da democracia”” (“*I fondamenti della demo- crazia”), publicado contemporaneamente a edigao italiana na revista Ethics!®, e o ensaio ‘A doutrina do direito natural diante do tribunal da ciéncia’” (“*La dottrina del diritto natu- rale davanti al tribunale della seienza’’)'®, Ambas as edigdes da Mulino reproduziam, aliés, a formula de Volpicelli, sim- plesmente invertendo-the os polos. Realmente, se Volpicelli en cabecava com *Elementos de uma teoria geral do Estado", ‘Matteucci encabeca com o ensaio sobre a democracia: os ou- 6 A DEMOCRACIA tros ensaios ou dizem respeito ao problema da justificagao fi- loséfica ou ao problema do direito natural, Mas nos anos cin- giienta tinham inicio duas outras operagdes culturais: em 1952, como apéndice & Teoria geral do direito e do Estado", é pu. blicado o ensaio “A doutrina do direito natural e o positivis- ‘mo juridico””'8, que pertence, legitimamente, ao filao dos tex- tos sobre ou contra o direito natural (ja representado na ed. Volpicelli na ed. Matteucci); mas no mesmo ano da edi¢ao Matteucci ¢ publicado, a cargo de G. Treves para Edizioni di Comunita, © volume A teoria comunista do direito (La teoria comunista det diritto)", Esses fatos marcam, em minha opiniao, uma virada no interesse da cultura italiana em relagao a Kelsen. Estabelecido que 0 maior interesse recaia sobre 0 Kelsen da Reine Rechts- lehre, vai-se afirmando como independente (linha Mulino) 0 interesse pelo Kelsen tedrico da democracia, O interesse pelo Kelsen antijusnaturalista vai ganhando corpo ¢ culmina com © ensaio editado por Losano sobre o problema da justiga”"; © interesse pelo Kelsen que acerta as contas com as teorias so. cialistas, estimulado pela edigdo de Giuseppino Treves, tam- bem abre um caminho, ao se redescobrirem textos anteriores, culminando, até hoje, com a traducao feita em 1978 de Socia. lismo e Estado, a cargo de Racinaro*', ¢ com a de Teoria ge- ral do direito e materialismo historico, a cargo de F. Riccobo- no, em 197922, Pode-se afirmar que da cepa comum da filosofia politica de Kelsen destacaram-se (e talvez nao seja uma simples vicissi- tude editorial) as partes da filosofia politica que eram especi- ficamente “contra” alguma outra filosofia politica. Pareceu oportuno, portanto, que a presente coletanea de textos filosé- fico-politicos de Kelsen se concentrasse principalmente na idéia de um Kelsen tedrico da democracia, e ndo de um Kelsen que, em nome da democracia, conduz batathas, quer de direita, quer de esquerda. © pensamento de um autor complexo, longevo e que, exa- tamente por isso, respirou atmosferas culturais diferentes, com momentos de intranqiiilidade, mas sem 0 uso de mascaras res- piratdrias, leva quase fatalmente & periodizacao. Esse é 0 caso de Kelsen, sobre o qual se costuma distinguir (no minimo) um inrropucio 7 periodo continental, alids da Europa Central, e um periodo amplamente anglo-saxdo (mas néo faltam propostas mais su- ts), Ora, sea periodizacdo da produgfo Kelseniane vale para o Kelsen da Reine Rechislehre e para o Kelsen jurista (inicial- mente mais ‘‘constitucionalista’” e depois mais “internaciona- lista”), ndo me parece valida (ou, se valida, minimamente) para o Kelsen tebrio da democracia. A expatriagao de Viena, a8 peregrinagdes continentais, a instalacao definitiva nos Estados Unidos da América s6 incidiram marginalmente sobre & con- cepgto da demoeracia da forma exposta por Kelsen no ensao “Wom Wesen und Wert der Democratie”. Desde a Founda- tions of Democracy, de 1955, muitas coisas mudaram: a of dem politica de virios Estados enropeus mudou em sentido de moeratia; no plano do debate teérico, os interlocutor ati vos so outros: ndo mais o amicus Weber, 0 hostis Schmitt € 05 “‘recuperdveis”” como Mosca ¢ Michels. Agora os interlo- eutores sio, por um lado, 08 tedlogoscristdos Brunner, Nich- bur, Maritain, que querem fagocitar em sua concepcao re tiosa do mundo as idéias democrticas,e de outro 0s Iaicos bburgueses, como Hayek, que querem apropriar-se com exclu- sividade da ideologia democratica. Mas nao me parece que, pelo menos em substancia, as coisas tenham mudado muito Tenho a impressio de que 0 “edificio”” democritico de Kelsen ja estava completamente projetado em **Wom Wesen und Wert der Democratie”. Os dectnios seguintes ¢ os aeon- tecimentos pouco Ihe acrescentaram e nada the subtrairam. Por esse motivo, fixarei minhas observagdes em primeiro lugar € fundamentalmente no ensaio que abre a presente coletanea, Existéncia ou valor da democracia? bjeto do primeiro ensio, aqui apresentado, &duplo, somo 0 pp ule manifesta por um nd eat-se dee por o que a democracia “é"’ (obviamente segundo Kelsen), Frese por our lad teats dee a rans or ae hs prefer aoutas formas de oreaizasa potca, 0 Wert Seria de esperar que a sucesso dos dois objetivos fosse a mes- tna do ttlo, ou sje: primeir o problema deesclrece o que a A DEMOCRACIA democracia e depois o problema de argumentar a preferi- bilidade. Entretanto, ao longo do ensaio as coisas ndo ocor- rem exatamente assim. Em todo o primeiro capitulo “a liberdade” diz respeito do ao Wesen, mas ao Wert da democracia. A passagem que me parece mais significativa a esse respeito esté no inicio, & nla se Ie: “A discordncia entre a vontade do individuo, ponto de partida da exigéncia de liberdade, e a ordem estatal, que Se apresenta ao individuo como vontade alheia, ¢ inevitavel.. hum estado democratico... essa discordancia se reduz a um mi. nimo aproximativo..."" A contraposi¢ao autonomia-heteronomia é inelutavel, mas a relagdo entre as duas nao ¢ imével. A contraposigio é inevi. tavel porque se baseia em dois dados reais: por um lado (auto- Romia) a “insopitavel aspiragao do homem a liberdade”, e por outro (heteronomia) a necessidade de uma coago social ‘se € que deve haver sociedade e, ainda mais, Estado”. © pro. blema entao é reduzir ao minimo o afastamento entre autono- mia (liberdade anarquica) e heteronomia (coergao externa). [sso & possivel, diz Kelsen, mediante a passagem da liberdade da anarquia a liberdade da democracia. Enquanto Kelsen afirma que “'se temos de ser comanda- dos, queremos sé-lo por nés mesmos"5, nada esta dizendo de especialmente novo na tradiedo do pensamento liberal demo. cratico, mas sto as passagens seguintes que demonstram a pe- culiaridade do pensamento de Kelsen, Sea autonomia pode aumentar a heteronomia diminuir ou, em ultima instancia, coincidir na medida em que os sujei- tos a obedigncia so os mesmos que estabelecem as regras as quais devertio obedecer, conclui-se que 0 maximo de demo. cracia é constituido por uma democracia direta na qual todas as decisbes so tomadas unanimemente. O principio da unanimidade, porém, é rechacado nao sé Porque baldaria qualquer idéia de “‘ordem social” (e essa ¢ 2 Critica especifica dirigida ao unanimismo), mas também por. gue conseguiria (dado que tivesse éxito) aquela feliz coincidén- cia entre autonomia e heteronomia (ou melhor, a redugéio da heteronomia em favor da autonomia) sé no momento da deci- sdo. E se, no momento da execu, ou da obediéncia, alguns, INTRODUGAO. 9 alguém, mesmo que seja uma s6 pessoa, tivesse mudado de opi igo? E evidente que quem muda de opinido sobre uma decisao uundinime de que participou, de “livre” que era naquele momen- to passa, no momento seguinte, para uma condigdo de “nao- liberdade”, Kelsen sublinha, assim, com extrema eficdcia, ana- turezadindmica da relagao “liberdade —ndo-liberdade” ea sua dependéncia da possivel mudanga de opiniio dos individuos. © argumento vai contra o principio de unanimidade, mas também vale para as decises tomadas por maioria, especialmen- te para as de maioria qualificada. Com o principio da maioria qualificada estabelece-se uma discriminagao entre “os da maio- e “0s da minoria"; 0s da maioria devem ser algo mais que simplesmente “os da maioria” e os da minoria devem ser ainda “menos”. Quem mudar de idéia depois de uma decisdo tomada or maioria qualificada encontrar, obviamente, maiores difi- culdades para passar do estado de ndo-liberdade para o de liber- dade. Cumpre ressaltar 0 peso que nessa argumentaco tem aiidéia de que, frente a decisdes j4 tomadas, em relacdo as quais determinou-se uma situacdo de liberdade (maioria) e de ndo- liberdade (minoria), os individuos podem mudar de opiniao e, portanto, pode mudar sua condicao de liberdade. E evidente a estreita conexdo entre essa tese e a outra sobre a incognoscibili- dade dos valores e a conseqitente relatividade dos mesmos, & qual voltarei adiante, — 8s valores dos quais ¢ portadora a maioria nao stio menos valores do que aqueles dos quais é portadoraaminoria. A ordem social devera apropriar-se dos valores expressos pela maioria, mas sem impedir nem dificultar que a minoria se torne maioria, le- vando 0s seus valores para a ordenagdo. Segue-se que o propriun deum sistema democratico nao é o principio da unanimidade nem 0 das maiorias qualificadas (pelo menos em principio), mas o da maioria simples. ; ‘Até aqui o valor fundamental em baila é a liberdade indivi dual e, talvez mais precisamente, a garantia do menor grau pos- sivel de ndo-liberdade. Kelsen rejeita categoricamente qualquer justficagao do prin- cipio majoritario fundada na idéia de igualdade efn relacdo a0 poder, ou seja, a.de que ‘‘a maioria de votos tem maior poder que a minoria de votos’™, 10 A DEMOCRACIA A idéia de igualdade est conjugada ndo com o poder mas com a liberdade; se é inevitavel que haja livres e nao-livres, & razoavel que 0 maior mimero possivel de individuos seja li- vre. “Portanto, a concordancia entre vontades individuais vontade do Estado serd tanto mais facil de obter quanto me- nor for 0 niimero de individuos com os quais seja necessario um acordo para decidir uma modificagdo na vontade do Esta- do.""® Serd 0 caso de desconfiar que Kelsen tenha, assim, re- descoberto e valorizado a0 maximo, sem admitir, uma idéia tipicamente jusnaturalista como a de liberdade? Povo, representacdo, democracia “representativa’” Parece-me que as concepgdes democriticas, consideradas na medida do possivel em bloco, trabalham, segundo angulos evidentemente diferentes, com trés idéias fundamentais que, dde modo geral, seguem uma ordem mais ou menos constante: a idéia da soberania popular, a idéia da igualdade dos homens (ou dos cidadaos), a idéia de liberdade (politica). Ja vimos que Kelsen pde em primeiro lugar a idéia de li- berdade politica: a de igualdade dé-the suporte. E a idéia de soberania popular (com todas as suas deriva- es, a partir da distincdo entre titularidade e exercicio da so berania, representacdo, etc.)? Bem, a idéia de soberania po- pular é varrida de uma vez. A bem da verdade, nao diretamen- te, pelo menos em “Wom Wesen”, mas com um golpe ainda mais radical. E a prépria nogao de povo que se poe em discus- sdo. Retomando analises j4 desenvolvidas em textos de teoria eral do direito € no ensaio aqui transcrito sobre 0 conceito de Estado, Kelsen exclu a possbilidade de estabelecer uma no gdo de “povo”, ou seja, de uma unidade de individuos, fican- do no ambito do levantamento sociolégico; a tinica unidade ‘com base na qual se pode construir a nocdo de povo é a nor- mativa ¢ determinada pela *‘submissio das pessoas & mesma ordem juridica estatal””%, No fundo, nem mesmo das pessoas em sua inteireza de individuos, mas no exercicio de atos espe- cificos e relagdes individuais (observe-se o pluralismo kelsenia- no nesse aspecto). O povo como conjunto de individuos é uma INTRODUGAO n itrealidade no plano sociol6gico e uma ficeao no plano ideo- l6gico (com fungaes bem precisas). No plano normativo, con- tudo, pode, numa primeira aproximagao, ser individualizado ‘como 0 conjunto dos titulares dos direitos politicos. Mas nem isto basta, segundo Kelsen: dada a férmula ““democracia é go- vernio do povo”, € se povo é 0 conjunto dos titulares dos di- teitos politicos, entdo “*povo”” € 0 conjunto dos titulares poli- ticos que efetivamente os exercem. Se assim fosse, ‘“‘democra- cia” no sentido genérico de ‘‘governo do povo” seria o atri- bbuto de qualquer sistema politico que se apresentasse como or- denagao juridica. E uma questao de maior ou menor nimero de titulares dos direitos politicos — muitos, poucos, em ulti- ma instancia um —, mas, segundo este critério, sempre demo- cracia. A conclusdo é indubitavelmente paradoxal, se nao ab- surda, ¢ por isso Kelsen a rejeita. Portanto, que nao se fale de povo como titular de uma soberania cujo exercicio pode ser pessoal ou ser mais ou menos delegado. Esse € um cami nho que nao leva a nenhum esclarecimento sobre a idéia de democracia, ou methor, que identifica democracia com auto- cracia, como resulta da fécil substituigdo da férmula ‘gover- no do povo" pela férmula “governo para 0 povo”™®. Da redugdo da nogdo de povo nogao juridica no senti- do acima deriva também a desmistificacdo da nocdo de repre- sentagdo do povo nos chamados sistemas representativos. Tam. bbém nesses contextos a “‘representacio”” é uma fiecdo — seja com valores ideoldgicos diferentes, seja nos sistemas de demo- cracia representativa, seja nos sistemas de autocracia. Mesmo © monarca, do tinico ponto de vista correto (ou seja, o jurid co), representa 0 povo, no menos do que os membros de um. parlamento representam os prdprios eleitores. Sem levar em conta os sistemas de democracia direta, para os quais 0 pro- blema da representacao obviamente nao se apresenta, demo- cracia e autocracia podem, alias, distinguir-se nao pela natu: teza da representacao, mas pelo modo de instituigao do assim chamado representante ou dos representantes: assungdo pes- soal do poder de governo (por diversas razdes: carisma, direi- to divino, lex successionis, etc.) assung20 do mesnto como base € conseqiiéncia de um exercicio prévio de dircitos politicos (substancialmente, eleigao).. 2 A DEMOCRACIA A representacdo, portanto — no sentido proprio do ter- mo —, est fora de questao. Por conseguinte, mesmo considerando a democracia sob © aspecto da representacdo, acaba-se num beco sem saida. Mas a critica da idéia de representagdio do povo que tem por base a consideragao de que 0 povo nao pode ser determinado em termos socioldgicos confere a Kelsen uma operacao isenta de preconceitos, brilhante e, a meu ver, feliz. Se a anilise sociolégica das sociedades modernas revela a inconsisténcia da nocdo de povo, por outro lado traz & tona uma realidade prdpria das sociedades modernas, uma realida- de de fato, da qual vivem e se alimentam as modernas demo- cracias, uma realidade, alids, segundo Kelsen, que se mantém atras dos bastidores. Sao 0s partidos politicos. A democracia ideal fala ¢ continua falando de soberania popular, que, co- mo jé se viu, & uma ficeao. Os que sao titulares dos direitos politicos (o que se esta- belece normativamente) e os que efetivamente os exercem (0 que se estabelece num plano factual-sociolégico) sto duas en- tidades diversas, ¢ a sua diversidade “‘coloca-nos diante da rea- lidade de um dos elementos mais importantes da democracia real: 0s partidos politicos que agrupam os homens de mesma opinido para Ihes garantir uma influéncia efetiva sobre a ges- lo dos assuntos puiblicos””®, “Estes se apresentam na forma frouxa de associagao livre e, freqiientemente, sem nenhuma forma juridica. No entanto uma parte muito essencial da for- magio da vontade geral ocorre neles, parte cuja preparacdo decide a sua ulterior orientagao: os impulsos provenientes dos Partidos politicos so como numerosas fontes subterraneas que alimentam um rio que sai para a superficie apenas na assem- biéia popular ou no parlamento, para depois correr do lado de ca num leito tinico.”3! Alguns pontos pacificos Talvez tenhia me demorado mais do que convém, mas me- nos do que desejaria, nos principios da teoria democratica de Kelsen, ivrropucao 3 Afinal qual é a esséncia da democracia segundo Kelsen? ‘Tentarei nao repetir 0 que jé foi dito nos pardgrafos an- teriores ¢ ir diretamente ao cerne do problem: democracia_ € simplesmente uma das téenicas possiveis de produc das nor- mas da ordenagdo. Mas é uma técnica que tem caracteristicas peculiares. Eliminadas as incrustacSes ideolégicas, como as de soberania popular e representacao, reconhecida a impossibili- dade de esquivar-se ao principio da divisao do trabalho, a de- mocracia moderna é o sistema de producao das normas da or- denagdo que confia tal tarefa a um corpo (parlamento) eleti- vo, com a base mais ampla possivel (sufragio universal) ¢ com: método eleitoral proporcional (mesmo sem pretensdes de re- presentagio), ¢ que funciona, via de regra, segundo o princt- pio da maioria simples. Retomo, com algumas integragbes, os corolatios de tal cconcepcio. Em primeiro lugar, no que se refere ao parlamentarismo: © parlamentarismo & a conseqiiéncia do principio da divisio do trabalho. Como tal, vale tanto para os sistemas autocrati- cos quanto para os democraticos. Em todo caso a democracia no pode passar sem ele. © parlamentarismo democritico caracteriza-se pelo sufrdgio universal, livre e seereto, pela com- peticdo de partidos, pelo método eleitoral proporcional, pelo principio da maioria simples, pela relacao dialética entre maio- ria e minoria, O parlamentarismo pode ser corrigido, seja para aumentar a sua democraticidade (ou seja, maior liberdade dos cidadaos; por exemplo, com o referendum ou com as varias formas de ini- ciativa legislative popular), seja para diminui-la (principio das maiorias qualificadas, sistemas eleitorais majoritarios, etc.), mas no pode ser eliminado. Esta claro que, se na primeira diregao o sistema demo- cratico incorpora principios ¢ instrumentos da democracia di- feta, na segunda incorpora prinefpios einstrumentos préprios dos sistemas autocraticos. Em segundo lugar, a inevitdvel condigio de nao-liberdade da minoria é em certo sentido aliviada por tr8s principios: um externo, que diz respeito ao método com que se formam, res- pectivamente, maioria e minoria (que €, como ja disse, 0 su- 4 A DEMOCRACIA frdgio universal com método eleitoral proporcional), ¢ dois in- ternos, que dizem respeito ao funcionamento do parlamento —um deles, que ja vimos, é o principio da maioria simples, € 0 outro € 0 principio da legitimidade de um obstrucionismo correto. Em terceiro lugar, um sistema nunca pode ser considera- do integral ¢ totalmente democratico (ou totalmente autocra- tico) mas, antes, uma combinagao (evidentemente em doses bastante varidveis) de elementos democraticos e autocraticos. Pode-se chamar democritico um sistema que 0 seja pelo me- nos no nivel da produgao das normas mais gerais ¢ mais abs- tratas; em suma, no nivel de legislagao. Administracao e ju- risdigdo podem, em teoria, ser programadas democraticamente, ‘mas, no mais das vezes, sdo organizadas autocraticamente, Nes- se sentido, para conter e corrigir a discricionalidade propria a todos os érgaos autocraticos, introduz-se no sistema o prin- cipio da legalidade. Em quarto lugar, o sistema democratico independe da es- trutura das relagdes econdmicas & qual se aplica. Em outras palavras, o sistema democratico € compativel tanto com o li- beralismo (ou antes com o “liberismo’”?) quanto com o cole- tivismo. Isso significa que o sistema liberal-democritico con- sidera fundamental e nao limitével (ou limitavel no menor grau possivel) a liberdade econdmica, enquanto o sistema social- democratico limita (programacao) ou elimina (mesmo que nun- ca totalmente) a liberdade econdmica (coletivizagao). 0 que importa, concretamente, é que a opedo seja fruto de uma de- cisao democratica e, como tal, possa ser derrubada téo logo mude a relagdo entre maioria e minoria®? Finalmente, 0 sistema democratico nao é bom em abso- uto (alias, nao ¢ concebivel um sistema “democratic” em ab- soluto). E um sistema “bom para’’. Para o qué? Para se obter aquilo que, de outra forma, seria a quadratura do circulo: 0 acordo entre a aspiracao a liberdade total (liberdade anarqui- Kelsen nao esconde a fraqueza (que, a seu ver, também uma forea) dos sistemas democraticos: as decisdes so sem- pre passiveis de revisao, a maioria pode tornar-se, por um vo- to a menos, minoria. iwrropucao 15 Em resumo, o sistema democratico é fundamentalmente in- certo, ndo em sua esséncia, mas em seus resultados; definitiva- mente, esté em jogo a possivel ineficiéncia ou a eseassa eficien- cia dos sistemas democriticos. Um sistema autocritico, admite Kelsen, pode conseguir, em termos de eficigncia, resultados de longo prazo mais s6lidos e tempestivos que os alcaneados pelos sistemas democraticos (mas isso apenas em principio). O prego ser pago, porém, é alto e se expressa em termos de quantidade de liberdade. Maior liberdade (ou melhor, menor “*ndo-liberda- de”) ou maior eficiéneia? Relativismo dos valores ¢ democracia Este tiltimo ponto leva-nos diretamente ao mago da filo- sofia politica de Kelsen, exposto nos dois ensaios que tratam da democracia, mas também desenvolvido mais analiticamente no ensaio sobre “Absolutismo ¢ relativismo em filosofia e em poli- tica’’. No cap. X de ‘*Esséncia e valor da democracia” jé esta claramente enunciada a tese de que “‘o conhecimento da verda- de absoluta, uma compreensio dos valores absolutos”” reflete uma concepeao absolutista-metafisica a qual, em politica, cor- responde uma atitude autocratica. A inacessibilidade da ver- dade absoluta e dos valores absolutos ao conhecimento humano requer, por outro lado, que seja considerada possivel no ape- nas a opiniao propria, mas também a opinido alheia®. Esta € a peculiaridade do sistema democritico, que, como domi- nio, ndo 0 € menos que o dos sistemas autocraticos, mas que € dominio da maioria e, por isso, implica necessariamente uma minoria ‘‘que nao esta completamente equivocada nem abso- lutamente privada de direitos” e que pode, a qualquer mo mento, tornar-se maioria. Assim se formula o Leitmotiv da filosofia politica de Kelsen. Da atitude metafisica no conheci- mento da verdade ¢ dos valores deriva, de pleno dircito, a pre- tenso de impor, custe o que custar, a Verdade ¢ o Valor, in- clusive aos dissidentes. Ao relativismo filoséfico sobre a verdade e os'valores (mais ou menos corretamente identificado com 0 criticismo kantia- no e com as suas derivagdes) corresponde, por outro lado, a 16 A DEMOCRACIA atitude democratica em seu aspecto politicamente mais carae- teristico, ou seja, na possibilidade de rever opiniées e, conse- giientemente, decisdes. relativismo filoséfico de Kelsen sobre os valores — tema’ esse que deveria voltar a ser meditado pelo criticos, ‘com mais atenedo — tem conseiéncia das dois perigos que po- dem ser ocasionados pelo carter subjetivo dos valores: por um lado, 0 solipsismo e, por outro, o pluralismo absolutamente indiferenciado, O primeiro levaria diretamente & admissdo de uma reali- dade, a do ego, no menos metafisica do que as metafisicas tradicionais. O segundo, o pluralismo absoluto, implicaria a impossibilidade de comunicacao entre os portadores de valo- res diversos e, portanto, no plano politico, a impossibilidade de tomar decisdes. Nao ¢ essa a conclusdo de Kelsen, que sai do impasse mencionando exatamente o valor que, na constru- edo precedente, ficara na sombra ou em posigao subalterna: trata-se simplesmente de admitir que “os individuos, enquan to sujeitos do conhecimento, so iguais”’. As nossas convicdes podem até vir a ser suas; e as suas podem vir a ser nossas: nesse interim, que até pode ser ilimita- do, facamos um acordo majoritério! O racionalismo da democracia e as suas incdgnitas Nesta coletanea, cujo propésito era circunscrever-se & teo- ria da democracia de Kelsen, acabou sendo inserido um en- saio de 1922 que aparentemente nao diz respeito a problemas, nnem gerais nem especificos, da democracia: é 0 ensaio intitu- lado “*Conceito de Estado e psicologia social. Com atengao especial & teoria das massas de Freud’, no qual Kelsen ren- de homenagem explicita a teoria psicanalitica. Qual a justfi- cativa dessa insergdo? Concessio a uma moda cultural ou de- sejo de mostrar até que ponto 0 Kelsen “‘te6rico puro” se in- teressava por fontes culturais aparentemente distantes das mai propriamente suas e, talvez, também capazes de comprometer © éxito de seu trabalho tebrico? Nao defendo nenhuma das duas justificativas. INTRODUGAO a fato € que em todos os ensaios a que me referi acima Kelsen trata do “‘como”” e do “porque” do Estado (ou seja, da ordenacdo) democritico: nao trata do “‘como”” e do “por- qué’’ do Estado tout court. E desse problema que se trata no ensaio em questo. O que faz de uma multiplicidade de indivi- duos e de atos individuais uma ‘*formagdo social"? E, princi- palmente, o que distingue, no ambito das formagoes sociais, essa formagao social especifica que denominamos Estado? ‘A resposta categérica de Kelsen & conhecida (e, nesse en- saio, apenas acenada™): a unidade é resultante da referéncia de todos os miiltiplos atos individuais a uma ordenagao juri- dica que se pressupde valida, Mas aqui Kelsen trata das “‘outras”” explicagdes, aquelas fornecidas pelas varias sociologias de orientagao psicoldgica, desde as mais elementares, que propdem a inieragdo como con- ceito unificador, até as mais restritivas mas nao menos pro- blematicas, que levantam como hipétese uma espécie de con- cordancia do contetido do querer, do sentir ¢ do pensar dos individuos que, assim, se tornam parte da formacao social. Depois de analisar minuciosamente as insuficiéncias des sas explicagdes (e de outras semethantes), ele enfrenta (usan- do Freud como intermediario) as explicagdes em termos de psi cologia das massas e, em especial, a elaborada por Le Bon. (O Estado é uma massa, ainda que um pouco mais complicada que as outras (multidao, etc.); caracteriza-se pela formacao de ‘uma ‘‘alma coletiva’’. O individuo tem seu aparelho psia ‘mas ao lad6 dele ou sobre ele aparece um aparelho psiquico coletivo: a alma de massa, na qual o individuo pode imergir ‘ou submergir. A alma de massa dé lugar a um “corpo”, ou seja, a um novo individuo portador de novas propriedades: e eis que, entre esses novos corpos, estao 0 Estado, a lereja, enfim, as massas organizadas. ‘Nao ha necessidade de nos demorarmos mais neste tema, Kelsen adota como suas todas as criticas feitas por Freud & construgdo de Le Bon e as cita com exatidao. O que importa ressaltar € que Kelsen, ao apropriar-se das criticas freudianas, mostra claramente aceitar (pelo menos por um momento € de modo hipotético) a correcao (que, no entanto; € muito mais que correeao) proposta por Freud. A explicacao de Freud, de 18 A DEMOCRACIA modo resumido ¢ muito simplificado, faz remontar o princi- pio da unidade de uma massa (e, portanto, também das mas- sas chamadas Estados) a um desvio da /ibido individual me diante um processo de identificagao particularmente intenso que se dé em duas direedes, ou — como diz Kelsen retomando Freud — com duplo nexo: instalagdo de um objeto comum, chefe (o Pai), no lugar do Ego ideal e, portanto, identifica- ‘a0 dos individuos entre si. Nao entro no mérito da explica- cdo freudiana, que Kelsen parece aceitar, até na discutida hi- potese da passagem da horda ao cla. Nesse ensaio Kelsen mantém-se muito nas generalidades © € bastante cauteloso. De fato, as conclusdes explicitas do autor, no contexto de um reconhecimento até caloroso das teorias freudianas, so as seguintes: 4@) nao ¢ possivel a fundacao de uma “realidade” Estado ‘em termos de psicologia social, como ndo o € em termos de sociologia causal. +b) uma explicacao correta em termos de psicologia indi- vidual, tal como propde Freud, leva A negacdo de uma reali- dade “Estado” ¢, mais ainda, de qualquer hipostatizagio de semelhante realidade, reduzindo-a simplesmente aos proces- sos de desvio da libido dos individuos em direco a um “‘chefe comum"” (que pode ser um chefe de carne e osso ou também uma idéia: 0 Proletariado, o Capital, a Nagao, etc.) e da iden- Lificagao paralela desses individuos no objeto comum de in- vestimento, Se as conclusdes fossem essas e somente essas, 0 balanco para Kelsen nJo seria negativo, mas tampouco especialmente positivo. No final das contas, Kelsen teria encontrado em Freud ‘uma confirmacao da tese que para ele é fundamental: a da ideo- logicidade (ou da falsidade substancial) da duplicacao que con- siste em hipostasiar uma realidade “Estado” ao lado de uma cexplicagdio em termos psiquicos dessa mesma realidade (Freud) ou de uma explicago em termos normativos, unificagao me- diante imputagao ordenacdo da mesma (Kelsen). Mas mesmo assim o balanco nao registraria simplesmen- te uma opinido no ativo, ja que Kelsen nunca teve a intenco de privilegiar a sua teoria do direito e do Estado relativamente inrRoDUCAO 19 a outras teorias que se referem aos mesmos fendmenos. Mi nha impresstio é de que seria preferivel dizer que Kelsen vé na teoria psicanalitica “o complementar”” mais préximo e mais ‘compativel de sua teoria (conservando cada uma seus proprios métodos suas préprias finalidades especificas). ‘Mas as coisas provavelmente nao se encerram aqui. Se re- lermos com atengio as paginas de “*Fundamentos da demo- cracia”, dedicadas, respectivamente, ao "‘tipo democrittico de personalidade”, ao “principio de tolerancia” e, sobretudo, a0 “cardter racionalista da democracia’’, ndo poderemos deixar de ter a impresstio — eu, pelo menos, ndo consigo — de que © investimento libidinal, de que Freud falava, dos homens de massa num “tipo de chefe”” ou numa idéia sucediinea dele po- de ter algum parentesco ou conexao com a pressuposicao de validade da norma fundamental da ordenacao. E, em meu mo- do de ver, ainda ha mais: se numa ordenagaio democratica co- mo a descrita por Kelsen o chefe ou os chetes nao sao tais por descendéncia “‘paterna’” mas, se assim se pode dizer, sd0 to- dos pais putativos e, além disso, no dados mas designados pelo procedimento eleitoral, e se, de alguma forma, sao fun- zgiveis e podem ser substituidos sem meios cruentos como 0 as- sassinato do Pai primigeno ou 0 tiranicidio que é seu equiva- lente historicamente provado, isso significa que uma estrutu- ra democratica da ordenagdo social representa (ou pode repre- sentar), na perspectiva freudiana que me arrisco a atribuir a Kelsen, um grau de investimento (e, portanto, de identifics 40) menos absoluto, menos totalitério, menos espontanco e, por isso mesmo, em sentido contrario, relativo, parcial, cal- culado — em todo caso, nao definitivo. E, se ¢ verdade que 05 filhos se rebelaram contra o pai despético ¢ o mataram, ¢ também que os reis despéticos muitas vezes tiveram 0 mesmo fim, sem chivida é mais dificil que isso se aplique ao chefe de- mocratico. Mas isso é apenas conseqiiéncia, respectivamente, do si tema autocraitico e do sistema democratic. Nao hé diivida de que, para Kelsen, a democracia é uma forma racionalista de governo €, por isso, preferivel ou desejavel. * Mas as conseqiiéncias também contam, sobretudo em ma- téria de forma de governo: portanto, que outros escapes, poll- ay A DEMOCRACIA ticos ou nao, seriam encontrados pelos investimentos libidi- nais que a democracia de alguma forma racionaliza e, por is- 0, inibe? Kelsen parece querer dizer que nao Ihe cabe e que nndo é impraticdvel algum canal de escape — o que constitu lum testemunho, mesmo que moderado e indireto, de otimis- ‘mo quanto a sorte da humanidade, Giacomo Gavazzi PRIMEIRA PARTE A democracia segundo Kelsen Esséncia e valor da democracia Prefacio As revolugdes burguesas de 1789 e 1848 quase transfor- maram 0 ideal democritico em lugar-comum do pensamento politico; tanto que aqueles que empreendiam opor-se mais ou menos a atuacdo desse ideal faziam-no com uma reveréncia cortés ao principio fundamentalmente reconhecido, ou por tras de uma mascara prudente de terminologia democritica. Nos Ultimos decénios anteriores & Grande Guerra, nenhum estadista importante ou pensador eélebre jamais fez qualquer confissto aberta e sincera de autocracia. Aliss, a despeito da luta de ses, crescente nesse periodo entre a burguesia e o proletari do, no existe oposigao no que se refere A forma do Estado. Liberalismo e socialismo ndo apresentam diferenga ideolgica nesse aspecto. Democracia é a palavra de ordem que, nos sé- culos XIX e XX, domina quase universalmente 05 espiritos; mas, exatamente por isso, ela perde, como qualquer palavra de ordem, o sentido que Ihe seria proprio. Para acompanhar a moda politica, acredita-se dever usar a nogio de democracia — da qual se abusou mais do que de qualquer outra nogao politica — para todas as finalidades possiveis ¢ em todas as ossiveis ocasides, tanto que ela assume os significados mais diversos, muitos deles bastante contrastantes, quando a cos- tumeira impropriedade do linguajar politico vulgar nao a de- grada deveras a uma frase convencional que no mais exige sentido determinado. Mas a revoluedo social, conseqiiéncia da Guerra Mundial, impete & revisdo também desse valor politico. Considere-se 0 grande movimento politico que, até entio, tendia, com a ma- 26 A DEMOCRACIA xima energia eo maximo sucesso, & realizago de uma demo- cracia que, em conjunto com 0 socialismo — como justamen- te mostra 0 nome do partido que dirige esse movimento —, representa a metade de sua esséncia espiritual. Esse movimen- to se detém, ou melhor, cinde-se exatamente no momento em que se trata de realizar nao s6 os principios do socialismo mas também — e principalmente — os da democracia. Enquanto uuma fragdo, de inicio titubeante e bastante indecisa mas de- pois decidida, segue a tendéncia de outrora, a outra fragao, de forma impetuosa ¢ igualmente decidida, dirige-se para uma nova meta que se revela, espontanea e abertamente, como uma forma de autocracia. Mas nio é somente a ditadura do proletariado, fundada no plano teérico da doutrina neocomunista e atualizada no pla- no pritico do partido bolchevique russo, que se insurge con- tra 0 ideal de democracia. A forte pressio exercida por esse movimento do proletariado sobre 0 espirito e a pol ropa leva a burguesia a assumir também, por reagao, uma ati- tude antidemocratica. Essa reagdo encontra expressao tedrica e pritica no fascismo italiano. Sendo assim, hoje se apresenta o problema da democra- cia frente a ditadura partidaria — de esquerda ¢ de direita —, assim como numa certa época apresentava-se frente & auto- cracia monarquica. CAPITULO I A liberdade Na idéia de democracia — e & dessa idéia que queremos tratar primeiro, e ndo da realidade politica mais ou menos pr6- xima dela — encontram-se dois postulados da nossa razao pré- tica, exigem satisfagao dois instintos primordiais do ser social. Em primeiro lugar, a reagdo contra a coercdo resultante do estado de sociedade, o protesto contra a vontade alheia diante da qual € preciso inclinar-se, 0 protesto contra tormento da heteronomia. E a prdpria natureza que, exigindo liberdade, se rebela contra a sociedade. O peso da vontade alheia, imposto pela vida em sociedade, parece tanto mais opressivo quanto ‘mais diretamente se exprime no homem 0 sentimento primiti- vo do préprio valor, quanto mais elementar frente ao man- dante, a0 que comanda, ¢ 0 tipo de vida de quem € obrigado a obedecer: “Ele € homem como eu, somos iguais, entdo que direito tem ele de mandar em mim?” Assim, a idéia absoluta- mente negativa ¢ com profundas raizes anti-herdicas de igualdade! trabalha em favor de uma exigéncia igualmente ne- gativa de liberdade. Da idéia de que somos — idealmente — iguais, pode-se deduzir que ninguém deve mandar em ninguém. Mas a expe- rigncia ensina que, se quisermos ser realmente todos iguais, de- veremos deixar-nos comandar. Por isso a ideologia politica nao renuncia a unir liberdade com igualdade. A sintese desses dois principios é justamente a caracteristica da democracia, como Cicero, mestre da ideologia politica, expressama frase famo- sa: “Itaque nulla alia in civitate, nisi in qua populi potestas summa est, ullum domicilium libertas habet: qua quidem c: 28 A DEMOCRACIA te nihil potest esse dulcius et quae, si aequa non est, ne liber- tas quidem est.”” Sea idéia de liberdade pode tornar-se um principio dessa organizacao social — de que antes era nega¢do — ¢ finalmen- te um principio de organizagao estatal, isso s6 ¢ possivel atra- vés de uma mudanga de significado. A negacio absoluta de qualquer vinculo social em geral, e portanto do Estado em par- ular, leva ao reconhecimento de uma forma especial desse vinculo, a democracia, que, com seu contrario dialético, a au- tocracia, representa todas as possiveis formas do Estado, alids, da sociedade em geral. Se deve haver sociedade e, mais ainda, Estado, deve ha- ver um regulamento obrigat6rio das relagdes dos homens en- tre si, deve haver um poder. Mas, se devemos ser comanda- dos, queremos sé-lo por nds mesmos. A liberdade natural transforma-se em liberdade social ou politica. E politicamen- te livre aquele que est submetido, sim, mas A vontade pré- pria e nao alheia. Com isso apresenta-se a antitese de princi- pio das formas politicas e sociais. Em termos de teoria do conhecimento, se a sociedade de- ve existir como sistema distinto da natureza, ao lado da legali- dade natural deve existit uma legalidade social especifica. A norma acaba por se opor a lei causal. Do ponto de vista da natureza, liberdade significa, originalmente, negagdo da lega- lidade natural ou causal (livre-arbitrio). “Volta & natureza”” (ou a “liberdade natural”) significa apenas “libertagao dos vin- culos sociais"”. A ascensio a sociedade (ou a liberdade social) significa “libertagao da legalidade natural”. Esta contradicao resolve-se apenas quando a ‘“liberdade”’ se torna a expresso de uma legalidade especifica, ou seja, da legalidade social (equi- vale a dizer ético-politica e juridico-estatal), quando a antitese de natureza e sociedade se torna a expressdo de duas legalida- des diferentes e, portanto, de dois modos diferentes de consi- A liberdade concebida como autodeterminagao politica do cidadao, como participagao do proprio cidadao na formac&o da vontade diretiva do Estado, em suma, a antiga idéia de li- berdade costuma-se contrapor a liberdade dos germanos, pa- a 0s quais liberdade queria dizer auséncia de qualquer domi- A DEMOCRACIA SEGUNDO KELSEN 29 nio, de qualquer Estado, Nao se trata, a bem da verdade, de uma distingdo hist6rico-etnogréfica. A passagem da forma ger- ‘manica a chamada forma antiga do problema de liberdade & apenas o primeiro estagio do inevitavel processo de transfor- ‘macdo, da desnaturacdo & qual acaba por se sobrepor o ins- tinto origindrio de liberdade, no eaminho que leva a conscién- cia humana do estado de natureza ao estado de ordem social. Essa transformagao semantica na nogao de liberdade é carac- teristica do mecanismo do nosso pensamento social. A impor- ‘Ancia realmente enorme da idéia de liberdade na ideologia po- litica seria inexplicdvel se ela ndo proviesse das profundezas da alma humana, de onde provém também 0 instinto primiti- vo antiestatal que impele o individuo contra a sociedade. No entanto, por uma ilustio quase incompreensivel, essa idéia de liberdade acaba por exprimir apenas uma determinada posi- Go do individuo na sociedade. Da liberdade da anarquia forma-se a liberdade da democracia. Essa transformagao & maior do que parece a primeira vis- ta, Rousseau, talvez 0 mais importante tedrico da democra- cia, apresenta 0 problema do Estado ideal — que, para cle, €o problema da democracia? — nestes termos: ““Encontrar uma forma de associacdo que defenda e proteja qualquer mem- bro a ela pertencente e na qual o individuo, mesmo se unindo a todos os outros, obedega apenas a si mesmo e permaneca livre como antes.”” Seu ataque ao prinefpio parlamentar da Inglaterra mostra até que ponto ele considera a liberdade co- mo pedra fundamental ¢ como cixo do seu sistema politico: “0 povo inglés acredita ser livre mas esta enganado: ¢ livre apenas durante as eleicdes dos membros do parlamento; elei- tos esses membros, ele vive em escraviddo, é um nada.” Es- td claro que dai Rousseau deduz o principio da democracia di reta, Mas, mesmo que a vontade geral seja realizada direta. mente pelo povo, 0 individuo é livre 56 por um momento, isto é, durante @ votagdo, mas apenas se votou com a maioria e nao com a minoria vencida. Por isso, o principio democratico de liberdade parece exigir que a possibilidade de uma deciso imposta & minoria se reduza ao minimo; maiotia qualificada, possivelmente unanimidade, sao consideradas garantias da li berdade individual. Entretanto, a oposi¢ao dos interesses, que

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