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Titulo original: Les Domaines de la Parenté Copyright © Librairie Francais Maspero — 1975 (Edigao pattocinada pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales — Centre d'études Africaines, para a colecgSo Dossiers Africsins) Tradugiio: Ana Maria Bessa —Capa: A. S. Coutinho (motivo grético: pormenor de estatueta Quioca — Angola) Todos os direitos reservados para Lingua Portuguesa EDIGOES 70— Av. Duque de Avila, 694/¢, Esq. — Lisboa-1 Tels, $56898/572001 Distribuidor no Brasil: LIVRARIA MARTINS FONTES Rua Conselhelro Rainalho, 330/340 — Sao Paulo ©—OS5 DOMINIOS DO PARENTESCO - FIUACAO, ALIANCA MATRIMONIAL, RESIDENCIA_| Michel Aghessian Mare Augé Nicole Grandin Frangoise Héritier Alain Marie Christine Messiant Directo de: MaRg/ AUGE Ol ddohue ( a8 19% I INTRODUGAO AO VOCABULARIO DO PARENTESCO* * 0s textos que se seguem foram redigidos por Michel Aghas- Sian, Niecle Grandin e Alain Marie, Reproduzem o essencial duma obra preparada para os estudantes do ciele de formacao para a Afriea Negra (FRAN), A exposigéo introdutéria, Filiagdo, consan- ‘uinidade, aliancas matrimoniais, & da autoria de Alain Marie. © Iéxico inglés-portagués foi elaborado pelo tradutor a partir das obras publicadas pela Fundagio Gulbenkian e da pratica universi- ‘ria portuguesa, tendo também em conta @ tradugdo francesa de M. Aghassian ¢ Christine Messiant. i FIMACAQ, CONSANGUINIDADE, AUANCAS MATRIMONIAIS Parentesco e filiagio Dois individuos séo parenies se um descende do outro (lagos de filiagdo directa) ou se ambos descendem ou afirmam descender dum (ou duma) antepassado(a) comum, Neste caso, 0 parentesco entre 0s dois indivi- duos — quer seja real (quer dizer, que 0 lago social que estabelece assenta num lago bioldgico de consanguini- dade) ou ficticio (dizem-se parentes, consideram-se e comportam-se como tal mesmo se, de facto, nenhum Jaco de consanguinidade existe entre um © outro)—€ determinado pelo facto de provirem—ou afirmarem provir—de uma mesma filiagio. Assim sendo, esta pode ser real (se existe um ascendente a partir do qual se estabelece uma linha genealégica ininterrupta) ou mais, ou menos ficticia (como é 0 caso dos descendentes de escravos ou de prisioneiros de guerra que so conside- rados como filhos ou filhas no grupo de parentesco que comprou ou capturou os pais, tomando lugar na genea- logia deste geupo; um outro exemplo posstvel entre tantos é 0 de uma familia de origem estrangeira acolhida e depois, ao fim de um certo numero de geragées, assimi- lada «em bloco» pelo grupo de parentesco no qual se instalou; todos as seus membros se consideram como B OS DOMINIOS DO PARENTESCO tendo a mesma filiagio que o grupo que os acotheu & serdo tratados como auténticos descendentes do ante- passado deste tiltimo). Finalmente, a filiagao, a um certo nivel, pode ser mitica e existir apenas na consciéncia dos homens, mas isso é 0 essencial na medida em que determina e exprime um certo tipo de comportamento efectivo: por exemplo, entre todos aqueles que de perto ou de longe afirmam compartilhar a mesma filiagio existem formas de solidariedade (entreajuda, coopera- Gio ritual, etc.), mais ou menos institucionalizadas, que constituem outros tantos factos sociais, observaveis por quem esti de fora e que sdo testemunho da realidade objectiva de um conjunto composto de individuos e de grupos que podem nao ser biologicamente aparentados, mas que nem por isso deixam de constituir uma socie- dade estruturada com base no modelo © expressa na Tinguagem do parentesco. E 0 caso, frequente em Africa, das sociedades de clés e de linhagem: todos os mem- bros do cid reconhecem a existéncia de um mesmo ante- passado mitico, mas sto incapazes de reconstituir uma linha genealégica precisa; esta interrompese no ante- passado conhecido ¢ nomeado da linhagem, o qual & fento considerado como um descendente do antepas- sado mitico; os antepassados da linhagem sio, pois, considerados como «irmios», uma vez que provém todos de uma mesma filiagdo (sio filhos, netos, ou simples- mente descendentes do antepassado mitico), e, conse- quentemente, as préprias linhagens sio aparentadas. Este parentesco entre linhagens pode ser real (cla homo- géneo), mas a maior parte das vezes € ideolégico: linha- gens estranhas (por exemplo, depois duma secessio) podem ser assimiladas por outro ela. Outro caso fre- quente ¢ 0 de linhagens de diferentes origens clinicas que se reagrupam em consequéncia de movimentos migratérios, constituindo um novo cla, variado aos olhos 14 INTRODUCAO AO VOCABULARIO DO PARENTESCO do observador, mas que se apresenta como 0 conjunto dos descendentes dum mesmo antepassado miftico. Constituem, assim, um grupo clanico (que 0 sociélogo podera denominar cheterogéneo pela sua composicao de linhagem), que funciona e se manifesta de forma idéntica & dum cla homogéneo. Parentesco e consanguinidade 0 parentesco €, pois, uma relagéo social; nunca coincide completamente com a consanguinidade, quer dizer, com o parentesco biolégico. Se o parentesco fosse considerado no seu sentido biol6gico, cada individuo teria, efectivamente, um néimero muito elevado de paren- tes; remontando ao passado, o numero de parentes duplicaria em cada geragio (2 pais, 4 avés, 8 bisavés, etc.) e todos aqueles que descendessem dum ramo ou doutro de qualquer destes multiplos pares de avés seriam, por- tanto, parentes em graus diversos. No fundo, e desde que se rebuscasse suficientemente longe, todos os mem- bros duma dada sociedade (sobretudo quando pequenas) seriam, pois, parentes. Assim diluido, indiferenciado e generalizado, 0 parentesco ndo poderia ser uma base de classificagio dos individuos no seio de grupos de parentesco diferentes e até opostos e, consequentemente, néo poderia ser um principio de organizacao social. Para que 0 parentesco possa, portanto, ser um princl- pio légico de classificago (duns individuos em relagdo aos outros no seio de cada grupo de parentesco, dos grupos de parentesco em relacdo aos outros no seio de cada sociedade) € necessdrio que nem todos os consan- guineos sejam reconhecidos como tal; que certas cate gorias destes sejam exclufdas do parentesco: quer por- que se considere apenas uma linha de ascendéncia com 15 0S DOMINIOS DO PARENTESCO exclusdo das outras (filiagdo unilinear em linha paterna ou materna) quer porque se considerem as duas linhas, mas atribuindo-thes funcées distintas (dupla filiagdo uni- Tinear), quer, enfim, porque se reconhece a0 mesmo tempo 0 parentesco do lado paterno e do lado materno (filiacdo indiferenciada ou bilateral ou, entao, cogndtica), tratando-os de modo idéntico (o que distingue 2 filiagao bilateral da dupla filiagao unilinear), mas, neste caso, 0 parentesco j4 néo tem uma fungio claramente distintiva € 05 grupos sociais j4 néo se definem em fungao de uma filiagdo especifica mas em funcao de outros critérios que ndo os do parentescv: comunidade de residencia, de posse da terra ou de funcionamento socioeconémico, por exemplo, Em Africa, o principio mais generalizado é 0 da filiago unilinear: privilegia-se uma nica linha. Se for a do pai, o parentesco transmite-se entre 0s homens, de pai para filho, «perdendo-se» nas mulheres; se for a da mie, © parentesco transmite-se entre as mulheres, de mae para filha, eperdendo-ses nos homens (neste caso, um filho néo faz parte do grupo de parentesco do pai, mas provém do da mae e do irmio desta). Num e noutro caso, por conseguinte, cerca de me- tade dos consanguineos (os descendentes das mulheres em sistema patrilinear; os provenientes dos homens em sistema matrilinear), sem ser ignorada, nao preside & constituicgo © & organizagéo de grupos de parentesco permanentes. Convém notar, no entanto, que néo existe filiago unilinear pura: todas as sociedades admitem em certo modo 0 parentesco nas duas linhas; mas, em regime de filiagdo unilinear, a ténica ¢ posta numa das duas linhas, de modo que, neste aspecto, a extens3o do parentesco € muito mais importante: hi um maior ntimero de parentes que so reconhecidos como tal, porque o paren- . 16 INTRODUGAO AO VOCABULARIO DO PARENTESCO tesco transmite-se de geracio em geraso, a0 passo que do outro lado vai caindo no esquecimento. No entanto, os parentes do lado materno (num sistema patrilinear) ou os parentes do lado paterno (num sistema matrili- near), embora nio constitam wm grupo em si, nao deixam de desempenhar um papel importante nas rela- gdes entre os grupos de filiagao unilinear (as suas relagées nfio so apenas interindividuais, mas, por seu intermédio, relagoes entre grupos). O parentesco do Jado néo predominante influi, além disso, no estatuto dos individuos (heranga de bens, transmissao de fun- des, ou, ainda, valorizagio ou desvalorizagio do esta- tuto dos filhos, em fungéo do estatuto do conjuge que nao transmite 0 parentesco). Alguns autores preferem, nestas condigdes, falar de sociedade «cor predominancia patrilinear» ou de socie- dade «com predominancia matrilinears, E, Leach, por seu lado, considerando igualmente a oposicao patriline dade/matrilinearidade demasiado rigida ¢ o termo «filiar gio» demasiado preciso € limitativo, propde uma con- ceptualizagao mais geral definida pelo confronto entre as relagdes de incorporagao e as relagdes de aliancas matrimoniais: «Em todo o sistema de parentesco « de casamento hd uma oposicao ideolégica fundamental entre as relacées que garantem a um individuo a per- tenga a um grupo, a um «nds» (relagdes de incorpura- 60), ¢ as relagdes, diferentes das primeiras, que ligam As relagies de parentesco certos prineipios da sua organizagdo, do seu funciona ‘mento e da sua expressio linguistica e Sdeo\bgiea, = Exemplo deste tipo de transposicgdo so os aliados (no sen- tudo palitice da term) que se tratam mutuamente por netos © como nelos (relagies de familiaridade © troga). Um outso exemplo clés- 19 0S DOMINIOS DO P4RENTESCO tesco por filiagao e parentesco por aliangas matrimoniais fornecem, pois, modelos, principios de organizagéo ¢ de expresso simbdlica aos participantes na vida social, por um lado, e, por otttro, modelos ¢ principias de inter- pretagéo aos tedricos autéctones, assim como ao inves- tigador. Quer dizer, hé interesse em se dedicar a andlise do sistema de parentesco sob um triplo aspecto: como expressée directs de certas relagdes saciais (em especial, as relagées entre parentes), como modo de expressio metaférica de relagdes sociais (por exemplo, politicas) directamente decalcadas sobre as relagdes de parentesco, como modo de formulagio € de interpretagio ideolégica mais ou menos consciente de relagdes cuja natureza real nem sempre corresponde & linguagem (utilizada) para as descrever € explicar (por exemplo, relages de pro- dugéo}. [Numa palavra, o parentesco nao € apenas um prin- cipio de classificagio e de organizagio, é também um cédigo, uma linguagem mais ou menos ideoldgica e mais ou menos manipulada. E, pois, uma chave para a inter- pretagiio de todas as sociedades (mesmo as sociedades com Estado) em que o parentesco ndo se reduz A familia conjugal, mas preside, totalmente ou em parte, & for- magia de grupos sociais ¢ A organizagéo das relagdes entre 05 mesmos, Mas € uma chave que convém manejar com precangao: considerando as suas miltiplas possibi- Tidades e nao esquecendo, em particular, que a linguagem do parentesco pode mentir. E preciso, portanto, con- frontar de cada vez o estudo do parentesco com a analise das situagdes concretas nas quais o parentesco (0 seu vocabulério, bem como as atitudes mais ou menos con- vencionais que prescreve) esta implicado. ‘ico & a dratornidades simbélica inzugurada por um juramento 09 por um ritual de troca de sangues. 20 FIUAGAO. E INCORPORAGAO Filiagso Princfpio que governa a transmissio do parentesco *: enire dois individuos ha um Jaco de filiagao quando um descende do outro (filiacdo directa) ou quando um ¢ outro descendem — ou afirmam descender *— dum mes- mo ascendente (filiacdo comum). Filiagao consanguinidade. A filiagdo € uma con- venedo social; a consanguinidade ¢ uma nosio biolégica: qualquer que seja o principio que presida & transmissio do parentesco social (quer dizer, 0 que € reconhecido pela sociedade e que atribui a cada um um estatuto, assim como uma posigio precisa no seio do grupo social), so consanguineos todos os individuos que podem ser considerados como «parentes» no sentido bioldgico, seja qual for o grau, Filiaeto € consanguinidade sto, pois, duas nogdes distintas e diferenciadas em todas as socie- + A distinguir da heranca: principio que governa a transmis- fo dos bens; e da sucessdo: principio que governa a transmissio ‘das fungdes, Nas sociedades em que 0 pareniesco coincide com a organizagdo social, a heranca e a sucessao so geralmente funcao da fillagao; e tendem a seguir a mesma linha que cia. + 0s individuos adoptados, os descendentes de escravos on de cativos € 08 grupos estranhes essirallades slo considerados como pertencendo & mesma filiagdo do grupo que 0s acolhe. 20 Os DOMINIOS DO PARENTESCO dades: por exemplo, nas sociedades em que 0 parentesco se transmite unicamente por via masculina (filiaedo patrilinear), entre um homem e 0 filho da sua irm& (ou 0 filho da sua filha) hé um lago de consanguinidade mas nio wn Sago de fitiagao—um © outro pertencem a dois grapos de parentesco diferentes —; nas socieda- des em que o parentesco se transmite por via uterina (iliagdo matrilinear) hd um Iago de consanguinidade entre © pai o filho, mas este faz parte do grupo de parentesco da mae —o lago de filiagao (social) é entre a mae e 0 filho, entre o irmao da mic (tio materno) e © filo desta (sobrinho uterino), mas nio entre o fino © © pai (no fim de contas, este s6 é considerado como progenitor). Em Antropologia ha, pois, todo © interesse ‘em reservar os termos de parentesco ¢ filiaedo para 0 seu use social exacto, deixanda de falar de eparentesca consanguineo> ou de «consanguineos» se se trata de considerar parentes que néo entram em nenhuma cate- goria socialmente definida (além disso, & preciso ter presente que algumas linguas africanas dispdem de um termo para os parentes afastados, aos quais se nio reconhece nenhum Jago de parentesco social definido, mas que se consideram como consanguineos). Filiagito unilinear ou unilateral: 0 parentesco (a pertenga a um grupo de parentesco) 36 € transmitide aos filhos dum casal legitimo por um dos pais (no sen- tido estrito do inglés parents, quer dizer, o pai e a mie) com exclusdo do outro. Quando o pai transmite o paren tesco, a filiagdo & patrilinear; quando ¢ a mae que 0 transmite, a filiagdo ¢ matrilinear. Filiagao matrilinear ou uterina: os filhos fazem parte do grupo de parentesco da mae (filiagao matrilinear), 0 que significa que sé as mulheres transmitem o paren- tesco (filiacao uterina). (Assim, os Tilhos dumm homem nao fazem parte do seu parentesco mas do da sua esposa.) 22 INTRODUCAO AD VOCABULARIO DO PARENTESCO Filiaedo pairilinear ou agndtica: os filhos fazem parte do grupo de parentesco do pai (filiagao_ patrili near), © que significa que sé os homens transmitemn o parentesco (filiagdo agndtica). (Portanto, os filhos duma mulher no fazem parte do seu parentesco mas do do seu marido,) Filiagiio cogndtica: por oposicao & filiagao unilinear, ou filiacio diferenciada, uma vez que ha duas linhas distintas, a filiagio cogndtica é uma filiaedo indiferen- ciada, pois 0 parentesco é transmitido tanto pelo pai como pela mae. Por outras palavras, a filiagéo cognd- tica reconhece 0 parentesco de ambos os \ados, pelo que se fala igualmente de filiaao bilateral. ‘Em prin. cipio, todo o individuo tem direitos e obrigacées, deveres € privilégios idénticos para com 05 seus parentes mater- nos © paternos. Dupla filiagdo unilinear (double descent): falase de dupla filiagdo unilinear ou, para alguns autores, de filia- cao bilinear (nao confundir com filiasao bilateral; cf. filiaciéo cogndtica) «quando duas filiagdes unilaterais se justapdem, cada uma regendo, com exclusao da outra, a transmissdo de determinados direitos» (D. Paulme). Por exemplo, entre os Ashanti do Gana herda-se do ntoro («espiritos) do pai, mas pertence-se ao cla (abusua) da mae, uma vez que se herda 0 «sangue» (mogya) materno} além do mais, s6 os abusua (matriclis ou matrilinha, gens) constituem grupos residenciais que dominam a distribuigdo das terras, enquanto os individuos descen- denies dum mesmo ntoro estio dispersos através de todo o pafs. Por outro lado, um homem e uma mulher do mesmo ntore podem casar-se se ndo conseguem deter minar a sua comum ascendéncia patrilateral (para |4 de quatro ou cinco geracdes), enquanto néo se podem casar os parentes do mesmo abusua. 23

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