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José Antonio Vasconcelos uem tem medo de teoria? A ameaca do pés-modernismo na historiografia americana MFAPESP ies José Antonio Vasconcelos Quem tem medo de teoria? A ameaga do pés-modernismo na historiografia americana AFapEsp oo ne Sumario 13 PREFACIO 17 INTRODUCAO 27 CAPITULO I-SITUANDO O DEBATE 27 1. Ahistografia Americana até a década de 1980. 28 1.1. Da abordagem “cientifica” ao culto do consenso na historiografia americana 33 1.2. Vozes dissonantes: a Nova esquerda americana ¢ as minorias sociais 39 1.3. A influéncia dos movimentos de direitos civis 49 2. A percepgao de uma crise epistemol6gica 61 3. O debate tedrico na American Historical Review 75 CAPITULO I-A HISTORIA SITIADA 76 1. As Sintomaticas preocupagGes de um historiador 79 2. Hist6ria_e p6s-modernismo 84 2.1. Como definir 0 pés-modernismo? 88 2.2. O pdés-modernismo e a escrita da Histéria 93 3. Histéria ¢ p6s-cstruturalismo 95 3.1. Estruturalismo ¢ p6s-estruturalismo 98 3.2. Identidade e diferenga: de Descartes a Nietzsche 102 3.3. P6s-estruturalismo: Foucault e Derrida 107 3.4. Para onde vai a Hist6ria a partir de agora? 108 4. A antropologia cultural lll 4.1. A abordagem estruturalista 118 4.2. A abordagem culturalista. 125 4.3. Histéria e Antropologia: entendimentos e desacertos 129 5. O novo historicismo e a historiografia contemporanea 133 5.1. Novo Historicismo e Nova Critica 137 5.2. Novo Historicismo ¢ Critica Marxista 142 5.3. Caracteristicas gerais do Novo Historicismo 148 5.4. Novo Historicismo e Historiografia. 151 6. O p6s-modernismo: um mal a ser eliminado? DE J. DERRIDA LSS 1. A desconstrugio 156 1.1. A desconstrugao em Derrida 164 1.2. A desconstrugao na Teoria Literéria 173 2. A polémica com a filosofia_analftica 186; DQuA'cHidea de Deivitis\a teorin dow atos da Hib 193 CAPITULO IV -O QUE ESTA EM JOGO NO ARTIGO DEHARLAN? ee ee co tiene 195 1.1. A critica de Harlan as teorias de Skinner 204 1.2. A desconstrugao na ética de Harlan 218 1.3. Os criticos da abordagem pés-modernista da histéria 233 2. A configuragao poética na escrita da historia 235 CONSIDERACOES FINAIS 23Z —‘ BIBLIOGRAFIA Prefacio O desafio deste livro inicia-se com a pergunta instigante de seu titulo, enderegada em especial aos historiadores cuja identidade disciplinar construiu-se, ou ao menos, pretendeu construir-se 4 margem do mundo das teorias. E bem verdade que nao faltaram apelos insistentes dos criticos da velha histéria historicista para que os historiadores pensassem teoricamente suas pesquisas, a comecar por Lucien Febvre e Marc Bloch nos inicios do movimento dos Annales na Franga dos anos 1930. Contudo, a énfase na dimenso empirica da atividade de pesquisa histérica tem prevalecido nos curriculos da disciplina em universidades do Brasil e do exterior. Uma certa divisdo de trabalho estabeleceu-se jA de longa data na mente de muitos: historiadores pesquisam as “fontes primérias” (a histéria vivida de fato), informam-se com as “fontes secundarias” (a historiografia), e inspiram-se de forma mais ou menos consciente nas teorias produzidas pelos “outros” das Ciéncias Humanas. Dito de outro modo, os historiadores trabalham materialmente a histéria, tal como mineiros enfurnados em minas preciosas e sem jamais se expor a luz do sol, enquanto aos “outros” cabe pensar a histéria, trazendo as luzes para os materiais valiosos levantados pelos primeiros. Contudo, nos tltimos vinte anos um nimero crescente de historiadores, em diversos paises, tém enfrentado o desafio da teoria suscitado pelo grande evento transdisciplinar conhecido como a “Virada Lingifstica”. Os profissionais da histéria, assim como aqueles em outras areas do saber, em especial as ciéncias humanas, tém se apercebido de uma crise epistemol6gica pari passu com a emergéncia de um sentimento geral de que 0 nosso velho mundo moderno estaria a se romper em seus fundamentos materiais e ideolégicos. Mais de vinte anos se passaram desde que Jean-Francois Lyotard assinalou, em suas reflexdes sobre a “condicaio p6s-moderna”, que j era tempo de dar um fim As grandes meta-narrativas com seus esquemas temporais progressivos, suas pretensOes unitdrias e seus conceitos totalizantes. Como exemplo desses tiltimos, podemos lembrar: a Nagao, o Homem, a Mulher, a Classe Operdria, a Burguesia, a Revolugao, a Raga, todos eles ainda muito recorrentes em estudos de hist6ria sem que muitos se déem conta das teorias envolvidas na construcao destes conceitos da modernidade. image not available image not available image not available Introdugéo Nao h4 como negar em nossos dias uma reviravolta ocorrida em praticamente todos os campos do saber. Sob designagGes diversas — pés- modernidade, neomodernidade, p6és-estruturalismo, desconstrucionismo, crise dos grandes modelos explicativos, etc. —, 0 que se impde com evidéncia € 0 fato de que existe uma ruptura facilmente identificdvel entre um discurso que se utiliza de metdforas de verticalidade e outro, que envia tais metéforas para um limbo conceitual. Para os teéricos da modernidade o visivel nao passa de aparéncia. Subjacente a tudo 0 que vemos, existe um nivel mais profundo, essencial, e é somente a partir dele que podemos verdadeiramente entender nossos objetos de estudo. Para 0 marxismo, por exemplo, as instituigdes, a superestrutura, que constitui 0 campo do visivel, se explica somente a partir da estrutura — a esséncia —, uma instancia invisivel, mas primordial. Do mesmo modo, para a psicandlise, o comportamento humano, que constitui 0 campo do visivel, se explica por mecanismos psicolégicos complexos, inconscientes, e, portanto, invisiveis. Tais metaforas de verticalidade, porém, esfacelam-se frente a critica empreendida pelos teéricos do pés-modernismo. Nao existe uma realidade primordial, subjacente ao mundo dos fenémenos. O que existe é o simulacro, a construgéo de uma realidade outra. Nao a descoberta de um nivel mais profundo de explicagao do real, mas a invengdo de um outro real. Nao se trata simplesmente de negar o valor das teorias modernistas, mas de perceber seu verdadeiro alcance. Acerca da condigao pés-moderna no ambito da academia, assim afirma Steven Connor: A férmula apresentada por Jean-Francois Lyotard para a emergéncia do pés-modernismo, a “suspeita das metanarrativas” — os princfpios orientadores e mitologias universais que um dia pareceram controlar, delimitar e interpretar todas as diferentes formas da atividade discursiva no mundo — conseguiu um amplo acordo. A condigaio p6s-moderna, dizem-nos repetidas vezes, manifesta-se na multiplicagio de centros de poder e de atividade na dissolugao de toda espécie de narrativa totalizante que afirme governar todo 0 complexo campo da atividade e da representagio soci [1 Notavel € precisamente o grau de consenso no discurso p6s- image not available image not available image not available José Antonio Vasconcelos 21 Hayden White, Dominick LaCapra, Sande Cohen, Allan Megill, David Harlan, Steven Kaplan e Martin Jay sao apenas alguns dos intimeros historiadores que, de um modo ou de outro, vém se utilizando de insights da Teoria Literéria para empreender uma anilise critica da produgaio historiografica contemporanea. Tendo tudo isso em mente, escolhi como foco de estudo uma polémica desenvolvida ao longo de diversos ntimeros da American Historical Review, para delinear um panorama geral das discussdes acerca das complexas relagées entre Historiografia, Filosofia da Linguagem e Critica Literaria, apontando assim novos caminhos para a pesquisa em histéria. Em 1989 a American Historical Review publicou um artigo intitulado “Intellectual history and the return of literature”, de autoria de David Harlan, professor do departamento de Histéria da Universidade da California, San Luis Obispo.’ Nao se tratava do primeiro artigo sobre o assunto. Jéem 1987 John Toews publicara na mesma revista um artigo com orientagoes tedricas semelhantes,’ artigo este que referenciava um outro, ainda mais antigo — de 1980 — de autoria de William Bowsma. O texto de Harlan, porém, caracterizou-se pela ousadia de suas afirmagées. Tanto assim que deu inicio a um intenso debate, do qual participaram nomes de grande projego no cenario historiografico americano, como David Hollinger,'° Joyce Appleby,'! Russel Jacoby,'? Dominick LaCapra,'* Allan Megill,"* entre outros. Harlan iniciava seu artigo afirmando que o entendimento pés- estruturalista da linguagem comprometia irremediavelmente a pretensao David Harlan. “Intellectual history and the return of literature”, American Historical Review, v. 94, n. 3, June 1989. p. 581-609. Harlan é também autor de Clergy and the great awakening in New England, de Histéria do pensamento teolégico, e The degradation of American History, uma coletanea de ensaios sobre historiografia americana. 9. John E, Toews. “Intellectual history after the linguistic turn: the autonomy of meaning and the irreducibility of experience”, American Historical Review, v. 92, n. 4, Oct 1987. p. 879-907. 10. David Hollinger. “The return of the prodigal. The persistence of historical knowing”, American Historical Review, v. 94, n. 3, June 1989. 11. Joyce Appleby. “One good turn deserves another: moving beyond the linguistic; a response to David Harlan”, American historical review, v. 94, n. 5, Dec 1989. p. 1326-1332. 12. Russel Jacoby. “A new intellectual history?”, American historical review, v. 97, n. 2, Apr 1992. p. 405-244 13. Dominick LaCapra. “Intellectual history and its ways”, American historical review, v. 97, n. 2, Apr 1992. p. 425-439. 14. Allan Megill. “Recounting the past: ‘description’. explanation and narrative in historiography”, American historical review, v. 94, n. 3, Jun 1989. p. 627-653. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. image not available image not available image not available 30 Quem tem medo de teoria? se esgote a tendéncia conservadora, vemos emergir uma histéria de cardter progressista, também chamada de “Nova Histéria”, pelos seus contemporaneos. Nela observamos um maior comprometimento com os problemas sociais do presente, assim como uma maior abertura para 0 diélogo interdisciplinar, especialmente com a Sociologia. Como representantes da historiografia progressista desse periodo, podemos citar Frederick Jackson Turner, que, em sua obra The frontier in American History, salientava a importancia da fronteira para reduzir a dependéncia americana em relagao 4 Inglaterra, e Charles Beard, que, em An economic interpretation of the Constitution, apresentava as discussdes da convencao constituinte como resultado do conflito de interesses entre credores e devedores naquela conjuntura especifica. Os historiadores dessa segunda vertente, portanto, em oposigio aos conservadores, enfatizavam a heterogeneidade, a mudanga € oconflito social. “O que agora se vé é um pais em fluxo constante, repleto de conflitos, profundamente dividido, pouco ancorado em velhas tradig6es e construtor de sua propria identidade mediante 0 rompimento dos lagos com 0 passado europeu”.”> A partir da década de 1930 a “nova histéria” norte-americana comecou a enfraquecer-se, sofrendo uma série de criticas. De um lado, entre os proprios progressistas, historiadores como Carl Becker e Charles Beard questionavam a possibilidade de que, em suas andlises, os historiadores pudessem obter resultados verdadeiramente objetivos, desvinculados de julgamentos de valor. Além disso, por causa de sua insisténcia na impessoalidade dos processos histéricos, a historiografia progressista era acusada de negligenciar a agdo dos individuos e, em conseqiiéncia, reduzir a complexidade de seus objetos de estudo. Questionava-se ainda o tratamento pouco problematizante dado pelos progressistas a hist6ria intelectual, como se as idéias fossem mero reflexo das condigGes sociais e econdmicas. De acordo com Joyce Appleby, Lynn Hunt e Margareth Jacob: J& na década de 1930 os historiadores amcricanos progressistas Carl Becker e Charles Beard soaram 0 chamado de clarim do relativismo historico, insistindo que todo homem (palavras deles) escreveria sua propria Hist6ria. Eles pareciam subentender que como todo homem tinha sua prépria verso da Historia, a Historia funcionava como um mito cultural ao invés de um relato objetivo do passado (uma posigao nao distante daquela de Nietzsche). Eles argumentavam que o ideal de uma reconstrucio definitivae objetiva 25. Ibidem, p. 23. image not available image not available image not available 34 Quem tem medo de teoria? A propria instituicio universitaéria no se manteve imune a tendéncia de contestago que parecia tomar conta da cultura norte-americana nesse perfodo. Em 1964, a Universidade de Berkeley foi paleo de um confronto envolvendo a administragdo, os estudantes, as autoridades ptiblicas e a policia. Como resultado, o prédio da universidade foi tomado pelos estudantes e as aulas foram suspensas por varios dias. Segundo os lfderes estudantis, tratava-se de uma luta contra as estruturas de poder, que, entre outras coisas, controlavam a burocracia universi Berkeley, contudo, nao constituiu um caso isolado. Até o final da década ocorreram ainda outros levantes estudantis, como na Universidade de San Francisco, na Universidade de Columbia e na Universidade de Cornell. Os pretextos para a revolta eram diversos, desde a reivindicagao para se coibissem situagdes de racismo até a oposigao 4 Guerra do Vietna. John Patrick Diggins aponta ainda outros fatores: “A luta pelo controle da universidade abrangia nomeagées de docentes, curriculos, listas de leituras e a criagio de novos programas de estudos de minorias”.*! Ainda segundo Diggins, mesmo fora dos campi, a presenga estudantil fazia-se sentir por meio de organizagdes como Students for a Democratic Society (SDS), Free Speech Movement (FSM), Young Socialist Alliance (Y SA), e Student Non-Violent Coordinating Commitee (SNCC), entre inimeras outras. Quando eclodiram tumultos envolvendo a policia e manifestantes, por ocasido da convengao do Partido Democrata, em Chicago, em 1968, por exemplo, foi bastante significativa a participacao estudantil.” Nao devemos pensar com isso que os alunos universitérios na época fossem quase todos ativistas politicos de esquerda, unidos em torno de um ideal comum. Pelo contrério, a Nova Esquerda nos anos 1960 constituia uma frag&o da populagao universitéria norte-americana, além de encontrar- se dispersa em diferentes orientagdes: marxistas, nacionalistas negros, anarquistas, pacifistas etc. Mesmo assim, era uma voz que se fazia ouvir com bastante intensidade e que soube despertar a atengao do ptiblico em geral. A situagao dos docentes universitérios, em varios aspectos, era semelhante a dos estudantes. Os professores de orientacao radical ainda estavam muito longe de constituir um segmento majoritario na profissio. E 31. John Patrick Diggins, The rise and fall of the American Left, New York : W. W. Norton and Copmpany, 1992, p. 252 32. Os movimentos citados so bastantes discutidos por Patrick Diggins, The rise and fall of the American Left, especialmente no capitulo 6, intitulado “The New Left", pp. 218-276. image not available image not available image not available 38 Quem tem medo de teoria? nos assuntos de outros paises. Esses historiadores revisionistas — Gar Alperowitz, Diane Shaver Clemens, Gabriel Kolko, etc.-, pelo contrério, argumentavam que, ao assumir uma politica externa imperialista, os americanos estavam, na verdade, dando continuidade a politica de perfodos anteriores, como a expansiao de suas fronteiras ao longo do século XIX, ou as intervengdes em paises latino-americanos no inicio do século XX. O debate tornou-se acirrado, pois suas conseqiiéncias morais eram bastante sérias. Até entao havia um certo consenso, nos Estados Unidos, de que a adogao de uma politica externa agressiva e expansionista s6 era compativel com governos totalitdrios. De acordo com Peter Novick: No pensamento americano acerca das relagées internacionais, nenhum teorema era mais influente que aquele afirmando uma grande afinidade moral entre as politicas externa e doméstica de uma na¢ao —regimes democraticos benevolentes que eram pacificos e defensivos, despotismos brutais que eram agressivos e expansionistas. Esta proposi¢ao tinha sido basica no pensamento americano sobre diplomacia desde 0 século XIX. A afirmagao de que 0 terror doméstico ¢ ideologias messiinicas de regimes “totalitarios” encontravam sua contrapartida inevitavel no impulso ilimitado para conquista daqueles paises era simplesmente a atualizagio e sistematizagao do que tinha sido por muito tempo a visio convencional.*? Mais do que uma divergéncia de opinides entre académicos, portanto, 0 revisonismo nas relagées internacionais implicava na reconsideragao de como os americanos viam a si mesmos. “As questdes explicitas no debate”, ressalta Novick, “eram bastante importantes, mas 0 que fazia a controvérsia tao acirrada eram as quest6es implicitas que ela levantava, que tinham a ver com nada menos que 0 estatuto moral dos Estados Unidos no mundo”.*° Questées ainda mais polémicas foram levantadas pelas teses revisionistas acerca das relagGes entre os Estados Unidos e a Uniao Soviética. De acordo com Peter Novick, “o ponto crucial do posicionamento revisionista era de que, ao final da Segunda Guerra Mundial, a politica soviética era dominada por uma preocupagao pela seguranga e reconstrugao, e nao com expansio e subversao global; que um anti-sovietismo visceral 39. Peter Novick, That noble dream, p. 447. 40. Ibidem, p. 447 image not available image not available image not available 42 Quem tem medo de teoria? do Southern Christian Leadership Conference (SCLC), liderado por Martin Luther King Jr., outros movimentos, como o Congress of Racial Equality (CORE) e 0 Student Non-Violent Coordinating Committee (SNCC), apresentavam propostas de ago semelhantes. Em meados da década de 1960, 0 ativismo negro comegava a dar claros sinais de mudanga em relagao a suas estratégias e objetivos. Desapontados com os parcos resultados obtidos com as taticas de protesto nao-violento, e decepcionados com a lentidao nas mudangas sociais no governo de Johnson, que receava atrair a antipatia de brancos do Sul, muitos militantes negros abriram-se a possibilidade do uso de violéncia para a obtengao de seus objetivos. Além disso, eles passaram a ver como inviavel, e mesmo indesejavel, uma integracio negra 4 sociedade que os brancos haviam criado. Esses militantes propunham entao que, para se tornarem verdadeiramente livres da opressao branca, os negros deveriam criar suas proprias instituigdes e cultivar seus préprios valores culturais. Expresses como Black Power e Black Nationalism comegavam a ser cada vez mais usadas. Associagdes, como SNCC e CORE, que previamente haviam se colocado a favor da integragao racial, agora expulsavam os membros brancos de suas fileiras, argumentando que a principal preocupagéo dos negros deveria ser com a conquista do poder, e nado com a simpatia dos brancos. Paralelamente, eclodiam tumultos em diversas das principais cidades americanas, acompanhando a emergéncia de grupos armados, como era 0 caso dos Black Panthers, liderados por Bobby Sealy e Huey Newton.” O percurso da historiografia sobre os negros americanos é andlogo, em muitos aspectos, & trajetéria dos movimentos contra o racismo nos Estados Unidos. Até 0 inicio dos anos 60, jovens historiadores negros viam © grande modeloa ser seguido na figura de John Hope Franklin, Perseguindo altos padrées de objetividade e imparcialidade na apresentagao dos resultados de suas pesquisas, ele angariou admiragao e respeito no meio académico apés a publicagao de seu estudo From slavery to freedom, em 1947, no qual discutia a sociedade do Sul dos Estados Unidos na época da escravidio. O reconhecimento de seu trabalho ficou ainda mais evidente quando Franklin foi admitido como professor efetivo do Brooklin College, tornando-se, assim, 0 primeiro historiador negro a assumir uma posicaio regular de docéncia numa instituigéo de brancos, em 1956. Franklin 49. Uma boa descrigao da trajet6ria da militancia de esquerda em prol dos negros pode ser encontrada em John Patrick Diggins, The rise and fall of the American Left, pp. 256-265. José Antonio Vasconcelos 43 acreditava que a cor da pele do pesquisador nao era garantia de privilégio epistemolégico, e que a criacdo de uma 4rea de estudos voltada exclusivamente para historiadores negros s6 contribuiria para sua marginalizagao dentro da profissao hist6rica. No dizer de Novick, “Franklin sempre esteve profundamente comprometido com as normas universalistas e€ objetivistas da profissio, com a fé na América ¢ com 0 otimismo em alcangar a justiga racial por meio da integragao”.*° Contudo, com o crescimento de uma nova “consciéncia negra”, de tendéncia separatista, os intelectuais negros que seguiam a orientagao de Franklin passaram a ser vistos com desprezo por ativistas negros, como Vincent Harding, Sterling Stuckey e Julius Lester, entre outros.*! Para a grande maioria desses ativistas, muitos deles alunos e professores de Histéria, determinados insights estariam além do alcance de pesquisadores brancos, porque estes seriam incapazes de “pensar como negros”. A tendéncia separatista no estudo da Histéria dos negros americanos ja era dominante em meados da década de 1960, mas ganhou novo impulso a partir da reagio negra A publicagio, em 1967, de um romance histérico intitulado Confessions of Nat Turner. Nesse livro, seu autor, William Styron, representava 0 lider da maior revolta de escravos na Historia dos Estados Unidos de um modo desagradavel aos ativistas negros de modo geral. Eles questionavam o fato de que intelectuais brancos se achassem no direito de se apropriarem e, pior, distorcerem o passado dos negros. O final da década de 1960 e os primeiros anos da década de 1970 foram marcados por inimeros — e por vezes rancorosos — debates a esse respeito.** Um acontecimento que reflete bem este estado de crise foi o levante estudantil ocorrido na Universidade de Cornell, em 1968, no qual estudantes negros armados tomaram um dos prédios, exigindo a demissao de professores racistas ¢ a inclusao no curriculo de disciplinas sobre hist6ria e cultura afro- americana. O historiador branco Eugene Genovese descreveu a situagao em que vivia como um periodo no qual “qualquer branco trabalhando sobre a Hist6ria dos Negros tinha de agiientar um monte de insultos”. E acrescentou: Todos sentiamos isso, mas minha atitude era a de que eu nao deixaria que me insultassem. Depois de algum tempo isso j4 nao me acontecia tanto porque eu rapidamente criei uma reputagao de ser bastante selvagem. Quando algum desses garotos se levantava 50. Peter Nocick, That noble dream, p. 472. 51. Ver Peter Novick, That noble dream, pp. 472-491. 52. Sobre a repercussdo do livro de Styron especificamente, ver Peter Novick, That noble dream, pp. 474. 44 Quem tem medo de teoria? € perguntava quem era eu para escrever acerca de pessoas negras eu o olhava diretamente nos olhos e dizia “Vocé é um idiota”, e prosseguia a partir daf. Isso no me agradava, mas a questao era que eu nfo sabia como lidar com aquilo. Ou vocé faz isso ou voc’ recua.3 Com o declinio dos movimentos de nacionalismo negro, no final dos anos 1970, as tenses no ambiente académico foram progressivamente se atenuando. Contudo, as questées epistemolégicas suscitadas nessa época continuam a incomodar a profissio hist6rica nos Estados Unidos até os dias de hoje. Estudos de Histéria que, de alguma forma, questionem a moral ou a criatividade de personagens negros do passado sao geralmente recebidos com desconfianca por intelectuais negros, ao passo em que as obras que glorifiquem esses aspectos tendem a ser mais aceitas por esses mesmos intelectuais. Porém, condenar a priori esse tipo de atitude como particularista nao tem se mostrado a solugéio mais adequada, pois é justamente a adogao de um ponto de vista parcial ¢ subjetivo que tem instigado muitos desses autores a realizarem uma melhor avaliagio de obras cripto-racistas. Trata- se, portanto, de uma questao que ainda esta longe de ser resolvida, se é que o sera algum dia. Tal como verificamos com relagio a Historia dos Negros, a evolugao da Histéria das Mulheres também sempre esteve intimamente associada a movimentos pela emancipagao de minorias sociais. O feminismo americano, que jd possufa raizes em periodos anteriores, ganhou um novo impeto nos anos 1960, “estimulado em parte pelo movimento dos Direitos Civis e pelas politicas do governo destinadas a garantir um potencial de trabalho feminino, prevendo-se uma expansao econémica por toda a sociedade, incluindo as profissdes e a academia”. Outro fator, freqiientemente citado, para o despertar de uma “consciéncia feminista” neste periodo foi a publicagao do livro Mistica Feminina, de Betty Friedan, em 1963, no qual a autora denunciava as sutis estratégias de dominagao da mulher que atuavam na sociedade norte-americana. Segundo Friedan, publicitarios de TV, escritores de revistas, especialistas em beleza e psiquiatras, em conjunto, iravam para criar a imagem da mulher ideal, plenamente satisfeita com o mundo do lar, marido e filhos, e quem nao se conformasse a esse esteredtipo seria considerada neurética.* 53. Eugene Genovese, apud Peter Novick, That noble dream, p. 478. 54. Joan Scott, “Women’s history”, in: Peter Burke (ed.), New perspectives in historical writing, University Park : Pennsylvania State University Press, 1992, p. 44. 55, Betty Friedan, Mistica Feminina, Petropolis : Vozes, 1971 José Antonio Vasconcelos 45 Por causa do reconhecimento e do descontentamento em relacgao a desigualdade de condigdes e oportunidades entre homens e mulheres, a principal aspiragao das ativistas feministas, a principio, consistia na conquista da igualdade de direitos. Discriminagao no mercado de trabalho, escassez de oportunidades profissionais, remuneragao desigual para trabalhos equivalentes com base na diferenga sexual, falta de creches, proibigao legal do aborto etc., eram questées que ocupavam o topo da lista de prioridades do movimento feminista. As associagées de esquerda ja constituidas, como a SDS e a SNCC, contudo, nao abriram espago suficiente para as revindicagGes das feministas, levando-as, assim, em 1966, a formar a National Organization for Women (NOW), que lutava principalmente por reformas legislativas que favorecessem as mulheres. Exceto pela nao ratificagdo de uma importante emenda a Constituigao americana, prevendo a proibigio da discriminagio de qualquer espécie com base no sexo da pessoa —a Equal Rights Amendment (ERA) —, podemos dizer que os triunfos feministas no ambito legal foram bastante significativos. Dentre as conquistas do movimento feminista, podemos destacar 0 crescimento do niémero de mulheres nas universidades, muitas das quais se langavam em cursos de p6s-graduagao, ocupando posteriormente cargos de doc€ncia. Para as feministas, porém, esse avango no nimero de mulheres obtendo titulos de doutorado e atuando no magistério superior nao significava necessariamente o fim da discriminagdo sexual nas universidades. Segundo Joan Scott: No espago aberto pelo recrutamento de mulheres, o fem logo apareceu para reivindicar mais recursos para as mulheres e para denunciar a persisténcia da desigualdade. As feministas na academia declaravam que os preconceitos contra as mulheres no haviam desaparecido, ainda que elas tivessem credenciais académicas ou profissionais, e se organizaram para exigir uma totalidade de direitos, aos quais suas qualificagdes presumivelmente Ihes davam direito. Nas associagGes das disciplinas académicas, as mulheres formavam grupos para pressionar suas exigéncias. (Essas incluiam maior representag&o nas associagdes e nas reunides académicas, atengao as diferengas salariais entre homens e mulheres e um fim a discriminagio nas contratagdes, nos processos de efetivagiio e nas promogées).56 mo 56. Joan Scott, “Women’s history”, p. 45-46. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. image not available image not available image not available 34 Quem tem medo de teoria? Embora tenha inicialmente se especializado em Histéria medieval, Hayden White destacou-se no 4mbito da Histéria Intelectual ao trabalhar questdes contemporaneas, primeiramente sobre humanismo liberal, voltando-se, posteriormente, para um estudo lingiiistico e literario da escrita historiogréfica. Colocando em evidéncia os pressupostos de natureza poética implicados no trabalho do historiador, as idéias de White deram origem a intimeras discussGes e controvérsias, geralmente acerca de temas como a distingao entre fato e ficgao, dtividas sobre o caréter verdadeiramente “cientifico” do empreendimento historiografico e formas alternativas de representagao do conhecimento hist6rico, Num de seus ensaios te6ricos mais discutidos, “The burden of history”, de 1966, ele j4 esbogava algumas de suas teses mais polémicas, que viriam a ser desenvolvidas em trabalhos posteriores, Neste texto, White afirmava que os historiadores, atendo-se a modelos de representagao que datavam do século XIX, teriam se fechado as possibilidades abertas tanto pela ciéncia como pela literatura contemporaneas. Por causa disso, a Histéria acabava perdendo legitimidade epistemoldgica e valor artistico face 4s demais disciplinas académicas: Em resumo, quando os historiadores asseguram que a historia é uma combinacao de ciéncia e arte, eles geralmente querem dizer que € uma combinagao de ciéncia social do final do século XIX, e arte de meados do século XX. Em outras palavras, eles parecem aspirar a pouco mais que uma sintese de modos de anélise e modos de expressio para os quais somente por sua antiguidade podem ser recomendados. Se este é 0 caso, entao tanto os artistas quanto os cientistas tém raz4o em criticar os historiadores, no porque estes estudam o passado, mas porque eles 0 estudam com uma ciéneia ruim ¢ com uma arte ruim.7% A proposta de White para a Hist6ria, portanto, seria a busca de novos modos de representagao, recorrendo, para tanto, aos tiltimos desdobramentos na ciéncia e na arte contemporaneas. Neste sentido, a historiografia deveria “transcender as antigas e estaveis concepgdes de mundo que exigiam a descrigaéo da cépia literal de uma realidade presumivelmente estatica”, abrindo-se a uma perspectiva na qual os pesquisadores tivessem consciéncia do “cardter essencialmente provisério das construgdes metaféricas que utilizam”.”* 73. Hayden White, “The burden of history”, in: Tropies of discourse, p. 43. Este texto foi publicado pela primeira vez, na forma de um artigo, no periddico History and Theory 5, n. 2, 1966. 74. Ibidem, p. 50. image not available image not available aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. image not available image not available aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. image not available image not available aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. image not available image not available aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. image not available image not available image not available José Antonio Vasconcelos 2 79 entrincheirados, resistindo a ataques tedricos de diversos flancos, podemos nos perguntar: por que as novas tendéncias so vistas com tanta apreensio, com tanto medo? Os anos 1980 foram definitivamente um marco divisor de Aguas na historiografia, principalmente nos Estados Unidos. Neste periodo a objetividade da histéria foi posta em xeque de maneira dramitica, os debates sobre este tema foram conduzidos com extrema acidez, ¢ muitos autores se pronunciavam sobre a situagio em tons quase apocalipticos. Para que possamos compreender as quest6es teéricas que tém inquietado os historiadores nos tltimos vinte anos, é preciso situar a historiografia num quadro geral de crise dos grandes modelos explicativos nas ciéncias humanas e considerar mais detidamente as ameagas de que fala Stone —a Lingiiistica, a Antropologia e o Novo Historicismo —, procurando perceber como estas tendéncias tém sido assumidas e desenvolvidas dentro dos estudos historiograficos nos tltimos anos. 2. Hist6ria e pos-modernismo Atualmente, pelo menos no Ambito académico, nao temos dificuldade em reconhecer a idéia de progresso como sendo mais um dos grandes mitos da cultura ocidental contemporanea. Ja nao é possfvel acreditar que a historia do género humano siga necessariamente um curso rumo a niveis cada vez mais altos de desenvolvimento cultural. Os chamados “povos primitivos”, que j4 foram tidos como exemplos de estdgios atrasados de civilizagao, na verdade revelam estruturas sociais altamente complexas, como atestam as pesquisas etnolégicas, de modo que se torna dificil um estudo comparativo em termos de superioridade ou inferioridade cultural.'*' Podendo ser 141. A bibliografia sobre os estudos de “sociedades tribais” € bastante vasta, € nao caberia aqui sendo a mengio de nomes clissicos no campo da etnologia — disciplina também conhecida pelo nome de antropologia cultural ou social -, como Bronislaw Malinovski, A. R. Radcliffe Brown, Franz Boas, Ralph Linton, Claude Lévi Strauss, Marcel Mauss, Arnold Van Gennep e Victor Turner, que em seus escritos tedricos discorrem extensivamente sobre esta questéo. Entre os historiadores encontra-se bastante em evidéncia o nome de Clifford Geertz, que também se posiciona contra a possibilidade de um estudo comparativo entre diferentes culturas em termos de superioridade ou inferioridade. Ver Clifford Geertz, A interpretagio das culturas, Rio de Janeiro : Livros Técnicos e Cientificos, 1989. Para uma interpretacio critica de Geertz, em defesa do estudo comparativo de culturas, ver Giovanni Levi, “On microhistory”, in: Peter Burke (ed.), New perspectives in historical writing. University Park : Pennsylvania State University Press, 1995, pp. 93-113. image not available image not available 82 Quem tem medo de teoria? Lévi-Strauss, os selvagens nao sao inferiores, mas apenas diferentes. Mesmo assim, em sua tentativa de dar sentido ao conhecimento humano, ele estabelece uma dicotomia entre pensamento mitico e pensamento conceitual que se revela em sintonia com a nogao de progresso. Numa perspectiva levi-straussiana, os selvagens nao seriam inferiores a nés, mas nés temos cientistas enquanto eles tém bricouleurs, nosso pensamento € universal e conceitual, ao passo que o deles € particular e mitico. O pensamento deles € bom, mas 0 nosso é 6timo. Mas 0 fato é que chegamos em um momento de nossa cultura em que nao ha mais como pensar as rupturas epistemolégicas dentro de uma narrativa coerente. Por mais que tedricos como Lévi-Strauss nos oferecam um amplo esquema interpretativo do conhecimento, lentamente somos levados a crer que todo esquema é insuficiente, que os modelos modernos jamais nos garantirao aquela visio abrangente e unificadora que dé conta da multiplicidade e da polissemia no pensamento contemporaneo. Nao quero dizer com isso que 0 dissenso seja algo recente, pelo contrario, ele € pré-moderno. O que argumento € que a critica as pretensdes de objetividade da ciéncia em nossos dias tem chegado a niveis sem precedentes. Nao se trata mais de opor antigo a novo, mito a conceito, erro a verdade, mas de perceber que os atuais critérios de legitimagao podem dar aval a miltiplas interpretagdes, mesmo que conflitantes entre si. As ciéncias humanas, ¢ particularmente a histéria, nao se encontram imunes a crise epistemolégica que atualmente assola a modernidade. Peter Novick enfrenta diretamente esta questdo ao trabalhar a questéo da objetividade na historiografia americana: “Para os pais fundadores da profissao hist6rica havia uma contradigio entre, de um lado, os eventos singulares do passado (houve apenas wma Guerra Civil Americana), e de outro lado, a existéncia da mais ampla variedade de versdes destes eventos”.'** A busca de um esquema que possa estabelecer de forma definitiva a correta interpretagao de um evento passado é ento vista por Novick como parte do mito da objetividade no estudo da Histéria.'” Os historiadores atualmente sao ainda confrontados com uma crise de superprodugao académica, 0 que colabora para solapar a ilusdio da objetividade e da unidade do conhecimento histérico. Russel Jacoby, por 148. Peter Novick, That noble dream: the “objectivity question” and the American historical profession, Cambridge : Cambridge University Press, 1988. p. 4-5. 149. Ibidem, p. 5. José Antonio Vasconcelos 83 exemplo, assim ilustra esta crise no 4mbito da literatura e da Histéria Intelectual: Generalizagées sobre disciplinas académicas requerem audacia. Materiais abundantes ¢ descobertas mesmo em pequenos campos comprometem, quando nio refutam, as generalizagSes. Quem consegue acompanhar? Em um tnico ano (1987), professores universitérios publicaram 215 artigos sobre John Milton, 132 sobre Henry James, e 554 sobre William Shakespeare. [...] Afirmagées sobre “a” diregao dos estudos sobre Edmund Burke ou Shakespeare inevitavelmente parecem enganosos ou errados; intimeros, talvez um numero enorme de especialistas, contradizem um resumo do campo. Com a Histéria Intelectual nao é diferente; generalizagdes sobre sua diregiio ou contornos parece arbitréria, Embora pequeno, 0 campo parece amplo demais para permitir afirmagées véilidas com relagio & sua diregao. Ha uma virada no sentido dos estudos retéricos? Um renascimento da abordagem contextual de grandes figuras? Uma mudanga para idéias populares de grupos sociais? Estas questées parecem sabotar respostas claras. Tudo sempre parece depender de quem e onde esté olhando.'5° A questao da superproducao é também tomada em consideragao pelo historiador F. R. Ankersmit. De acordo com este autor “estamos todos familiarizados com o fato de que em qualquer 4rea imagindvel da historiografia, em qualquer especialidade, um extraordindrio nimero de livros ¢ artigos € produzido anualmente, tornando impossfvel uma visio abrangente deles todos”.'*' Como resultado disso, os textos dos grandes autores do passado deixam de ser legitimadores, e as discussGes passam a se desenvolver em torno das interpretagdes destes grandes autores. Mas 0 nimero de intérpretes importantes é tao grande que uma vida humana é pouco para dar conta das leituras indispensdveis para uma visdo completa de um campo de estudo. Somos obrigados a fazer escolhas, que em ultima 150. Russel Jacoby, “A new intellectual history?” American Historical Review. v. 97. n. 2, Apr. 1992, p. 405. 151. F. R. Ankersmit, “Historiography and postmodernism”, History and Theory, v. 28, n. 2, 1989. p. 137. image not available image not available image not available José Antonio Vasconcelos 87 apenas uma identidade de apar€ncias — que podem ser miltiplas — e nao de esséncia — que deveria ser tinica. Deste modo, somos sempre confrontados com o espectro do relativismo epistemolégico. Frente aos dilemas colocados pelo pés-modernismo, parece-me inevitavel uma sensacio de déja-vu. Afinal, nao foi Maquiavel, sob muitos aspectos inaugurador do pensamento politico moderno, que introduziu a idéia de que a moral € relativa, que havia uma moral crista € outra paga, ambas legitimas, mas a segunda mais adequada a um principe com pretensdes expansionistas? Nao foram os romanticos que, em pleno século XIX, propugnaram ideais contra-iluministas, cultuando 0 Volksgeist, os valores locais, e denunciado a megalomania dos franceses, que queriam fazer de sua cultura particular um padrao universal e atemporal? E autores como Nietzsche, Schopenhauer ou Kierkegaard, com a valorizagao da vontade, do irracional e do dionisiaco, com seu feroz ataque aos modelos totalizadores na sociedade a na cultura, nao estariam eles em sintonia com muitas das teses advogadas pelos arautos do pés-modernismo? Os pés-modernistas, apesar de seu entusiasmo iconoclasta, reconhecem de bom grado sua dfvida para com a modernidade. Linda Hutcheon, em uma frase de efeito, embora um tanto enigmatica, afirma que “o pés- modernismo paradoxal é, ao mesmo tempo, edipianamente oposicional e filialmente fiel ao modernismo”.'*’ De acordo com esta autora: Certamente a natureza provis6ria e indeterminada do conhecimento histérico no foi descoberta pelo pés-modernismo. Nem o questionamento do status ontolégico e epistemolégico do ‘fato” hist6rico ou a suspeita de aparente neutralidade e objetividade do relato, Mas a concentragio dessas problematizagées na arte p6s- modema é algo que nao podemos ignorar.!* E nao s6 na arte. Também no ambito académico o debate sobre 0 pés- modernismo da mostras de ser mais do que uma moda passageira. “Com 0 aparecimento de La Condition postmoderne, de Jean-Francois Lyotard, em 1979, e com sua tradugio para o inglés em 1984, esses diferentes diagndsticos disciplinares [acerca de uma ruptura com a modernidade] recebe[ra]m uma 157. Linda Hutcheon, Poética do pés-modernismo, Rio de Janeiro : Imago, 1991. p. 122. 158. Ibidem, p. 121 image not available image not available image not available José Antonio Vasconcelos a status epistemolégico que os textos de seus discfipulos mais obscuros. E dificil admitir que Plato seja um grande autor niéo porque seus textos sejam excepcionalmente brilhantes, mas pelo excepcional consenso dentro de nossa cultura em reconhecé-los como tal. Do mesmo modo, nao é facil, no campo da Teoria Literdria, perder de vista as bases tedricas que nos permitiam distinguir os grandes autores e as grandes obras da literatura universal e das literaturas nacionais. Se Finnegan's Wake s6 se imp6s como uma importante obra literaria por causa do consenso que se estabeleceu a este respeito, entéo estabelegamos 0 consenso de que Sands of Time apresenta uma qualidade literaria incomparavelmente maior e Sidney Sheldon superard James Joyce no canone literdrio ocidental. Os criticos literarios, em geral, nao aceitam silenciosamente “disparates” dessa natureza. Nao pretendo argumentar com tudo isso que os historiadores “eram p6s-modernistas e nao sabiam”, ou que o impacto do pés-modernismo nao diz respeito A Histéria. Meu objetivo, isto sim, é deixar claro que 0 que mais ameaga a Hist6ria nao é 0 relativismo, embora 0 relativismo pés-modernista seja realmente avassalador. O que, na verdade, assusta os historiadores so duas outras tendéncias p6s-modemistas: a insisténcia em submergir a Hist6ria no Ambito da Literatura, e o esmaecimento da distingao entre texto e contexto. Estas tendéncias, explicitadas teoricamente pelo pés- estruturalismo, sero analisadas mais detidamente ao trabalharmos especificamente esta corrente de pensamento. Outra questao que freqiientemente se presta a confusées diz respeito a quem devemos colocar no rol de historiadores pés-modernistas. Jérn Riisen, por exemplo, apresenta Emmanuel Le Roy Ladurie e Carlo Ginzburg como historiadores pés-modernistas, 0 que é altamente contestavel.' Linda Hutcheon vai ainda mais longe e situa Fernand Braudel(!) na linha de frente do pés-modernismo, por sua problematizag4o da nogao de tempo hist6rico.'” Ora, € notério o enyolvimento de Ladurie com a exploragao quantitativa e cartogréfica dos arquivos militares franceses, um empreendimento inequivocamente moderno, uma vez que se alinha aos “grandes modelos explicativos”, de que fala Stone, ou as “metanarrativas” de que trata Lyotard.'** Ginzburg, por sua vez, alerta que a Histéria “vista de baixo” e 166. ‘Jérn Risen, “Conscientizacio Histérica frente A pés-modernidade.. p. 316. 167. Linda Hutcheon, Poética do pés-modernismo, p. 130. 168. Cf. Emmanuel Le Roy Ladurie. “Quantitative and cartographical exploitation of French Military archives, 1819-1826", Deadalus, v. 100, n. 2, Spring 1971. p. 397-441. image not available aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. image not available image not available image not available aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. image not available image not available image not available José Antonio Vasconcelos 103 A abordagem genealdgica de Foucault, portanto, nao busca origens, mas descontinuidades, com o intuito de encontrar formagGes discursivas. Como observa Harlan: “Leia vinte textos médicos escritos entre 1770 e 1780, sugeria Foucault, e entao leia outros vinte escritos entre 1820 e 1830. ‘No espacgo de quarenta ou cinqiienta anos tudo mudou: sobre 0 que se falava, a mancira como se falava; Nao somente os remédios, naturalmente, nao somente as doengas e suas classificagées, mas o proprio ponto de vista. [...]) Um mundo conceptual inteiro desapareceu e seu lugar foi tomado por um novo “discurso””.'** O discurso, neste sentido, poderia ser entendido entio como uma estrutura inconsciente que estabelece a possibilidade de conhecimento. Trata-se, portanto, de um conceito que caracterizaria Foucault como um auténtico estruturalista, exceto pelo fato de que a nogao foucaultiana de discurso é utilizada para investir contra as pretenses das Ciéncias Humanas, isto é, para investir contra a prépria perspectiva estruturalista. Para tornar mais clara esta questio Foucault apresenta uma classificagao zoolégica citada pelo escritor argentino Jorge Luis Borges como proveniente de uma ficticia enciclopédia chinesa, segundo a qual os animais estariam divididos em categorias, como “os que pertencem ao imperador”, os “embalsamados”, “os domesticados”, “os leitées”, “as sereias”, e assim por diante. A impossibilidade de concebermos as espécies animais dentro desta classificagao aparentemente absurda sugere, para Foucault, nado que 0 nosso modo de pensar seja melhor do que os outros, mas que nosso pensamento é limitado pelo discurso dentro do qual ele se articula. Nao existe pois qualquer fundamento extra-discursivo ou pré-discursivo que confira legitimidade as Ciéncias Humanas, nao existe um sujeito ou uma natureza humana que nao sejam historicamente construfdos. As préprias nogées de falso e verdadeiro s6 fazem sentido com referéncia a uma formagao discursiva particular. Mark Philp, em um ensaio acerca de Foucault, assim se refere ao conceito de discurso: O seu método [0 de Foucault] consiste em indagar quais as regras que comandam esses enunciados; quais as regras que nos permitem identificar certos enunciados como verdadeiros e outros como falsos; quais as regras que nos permitem a elaboracao de um mapa, de um modelo ou de um sistema classificativo; quais as regras que nos permitem identificar determinados individuos como autores; e 188. David Harlan. “Intellectual history and the return of literature”. American Historical Review. v. 94. n. 3. June 1989. p. 590. image not available image not available image not available José Antonio Vasconcelos 107 nossas conclusdes, de que ele possa constituir um referente transcendental para a andlise, € na verdade uma idéia fundamentalmente errénea e, no limite, ideologicamente perigosa. 3.4 — Para onde vai a Historia a partir de agora? E interessante notarmos que recentemente um novo tipo de histéria tem se esforgado por obter reconhecimento institucional, uma histéria mais intertextual que contextual, mais preocupada com a invengao de significados vivos do que com a quimérica recuperagio de intencionalidades de autores j4 mortos, mais interpretativa do que explicativa. Trata-se de uma historiografia, da qual Harlan constitui um excelente exemplo, que se diz inspirada por autores como Michel Foucault e Jacques Derrida, que frequientemente (e sintomaticamente) se reportam a Nietzsche em seus escritos. Para estes novos historiadores a tarefa da historia nao € a de desenterrar tudo 0 que j4 nao vive mais, mas encontrar no passado, elementos que possam abrir perspectivas para o presente e para o futuro. Isto exige aquela faculdade mencionada por Nietzsche, a do esquecimento, um esquecimento criativo que nos permita selecionar no passado somente aquilo que possa orientar nossas agGes no futuro. Evidentemente, uma hist6ria presentista e plural, como aque se propde atualmente, nio é imune a tendéncia tradicional no pensamento ocidental de reducio da diferenga 4 identidade. Como bem nos alerta Deleuze, “nao basta multiplicar perspectivas para fazer perspectivismo. E preciso que a cada perspectiva ou ponto de vista corresponda uma obra aut6noma, dotada de um sentido suficiente: 0 que conta é a divergéncia das séries, 0 descentramento dos circulos, o ‘monstro’ [isto é, a diferenga]”.""* Além do mais, ha razdes de sobra para uma certa suspeita acerca de “novas abordagens” na Histéria. Contudo, esta nova historiografia difere em um aspecto importante de todas as demais tentativas de renovagao historiogrfica: nao se busca mais fugir do Outro. Se até o presente a Histéria da Histéria tem se revelado como a tentativa de fuga e inevitavel retorno ao Ambito da Literatura, estes novos historiadores nio mais se pretendem cientistas, mas reconhecem explicitamente sua dependéncia com relagao aos estudos literarios. Tal como Nietzsche, que entendia a Histéria como 195. Gilles Deleuze, iferenga e repeticao, p. 126. image not available image not available image not available José Antonio Vasconcelos 111 Na histéria da antropologia social existem, portanto como que duas vertentes analiticas claramente visiveis. A primeira esta representada pelo evolucionismo, onde existe uma perspectiva totalizadora, uma sociedade tomada sempre como ponto de referéncia indiscutfvel ¢ uma teoria hist6rica que permite alinhavar todos os costumes em termos de valores muito importantes ao sistema ocidental. O segundo paradigma, representado pelo funcionalismo cristalizado com Malinowski, mostra uma tendéncia oposta. Aqui se trata de desenvolver uma visdo parcial, mas extremamente acurada da operagiio das sociedades humanas.2°? Embora tivesse sido extremamente feliz em denunciar a falacia etnocéntrica do evolucionismo social e cultural, 0 funcionalismo acabou trazendo, além da negagio dos aspectos nao utilitaristas da cultura, ainda dois outros sérios problemas teéricos: a impossibilidade de reunir os dados coletados na pesquisa etnografica numa sintese abrangente e a exclusio do tempo e da histéria como categorias de andlise. O estruturalismo de Lé Strauss procurou superar 0 primeiro, mas como veremos, manteve-se relativamente refrataério 4 incorporacao do estudo do tempo e da Hist6ria em suas anilises. 4.1. A abordagem estruturalista A grande inovagio de Lévi-Strauss foi a aplicagao da teoria lingiifstica de Ferdinand de Saussure ao estudo da Antropologia. Como ja haviamos visto, ao discutirmos 0 p6s-estruturalismo, Saussure buscava entender a lingua como um sistema de relagdes diferenciais. Embora tal sistema estivesse sujeito a um processo de continua transformagao, seu estudo sé poderia ser conduzido adequadamente, de acordo com Saussure, se conferfssemos a primazia da sincronia sobre a diacronia. Tomando por base essas premissas, Lévi-Strauss ampliou 0 modelo saussuriano, aplicando-o a todas as manifestagdes culturais, e nao sé a linguagem.”* Nesse sentido, as Roberto da Matta,., p. 106. 203. Na verdade Lévi-Strauss julgava estar dando continuidade a um projeto ja jumbrado pelo préprio Saussure, conforme a seguinte passagem: “O que €, entao, a antropologia social? Ninguém, parece-me, esteve tao proximo de defini- la [...] do que Ferdinand de Saussure quando, ao apresentar a lingiifstica como parte de uma ciéncia ainda por nascer, ele reserva a esta 0 nome de semiologia, image not available image not available image not available José Antonio Vasconcelos 115 o nome de Braudel num ensaio posterior, e afirmando que “na idéia de uma historia estrutural nada existe que possa chocar os historiadores”.?!! Mas se em determinados momentos Lévi-Strauss viu-se obrigado a retratar posigGes anteriores, por outro lado ele jamais deixou de tecer duras criticas com respeito a prioridade de uma abordagem histérica no estudo da cultura, uma vez que, seguindo os passos de Saussure, ele ressaltava a primazia da perspectiva sincr6nica sobre a diacronica: “Por mais importante que seja a perspectiva hist6rica, nao podemos atingi-la senao no final [...]".7!* Mas a aversao de Lévi-Strauss @ Historia s6 se fez sentir de modo absolutamente evidente a partir de sua polémica com Sartre, desenvolvida no capitulo final de O pensamento selvagem. De acordo com Merquior, “Sartre havia afirmado [em Critique de la Raison Dialetique, de 1960] que © pensamento era uma forma de razio analitica, e que a principal diferenga entre este e a dialética era que esta sabia, e a razdo analitica nao, como transcender um contexto histérico determinado”.”’ Implicita, nestas idéias, eraa afirmagio da superioridade do Ocidente sobre os “povos sem Hist6ria”. A resposta de Lévi-Strauss foi clara, direta ¢ incisiva: 0 conhecimento histérico nada mais seria que uma fungao da praxis atual. Obcecados por preocupag6es contemporaneas, os historiadores escolheriam que elementos do passado seriam ou nao resgatados, que personagens hist6ricos e respectivas motivagGes seriam valorizados ou condenados, comprometendo assim, irremediavelmente, a objetividade da pesquisa hist6rica. Lévi-Strauss, nesse mesmo texto, criticava ainda 0 apego da Hist6ria 4 cronologia, entendida por ele como simples artefato cultural, nao servindo assim como categoria universal de andlise. A enorme influéncia exercida por Lévi-Strauss sobre as geragdes seguintes, teve como efeito um maior acirramento da oposigio, ja estabelecida desde Saussure, entre estrutura e Histéria. Mas isso nao quer dizer que nao tenha havido tentativas de superar essa oposigao. Nesse sentido, podemos destacar 0 trabalho de Marshall Sahlins, que, a partir de uma abordagem claramente estruturalista, procurou mostrar como as relagdes sociais no Havai— que constituem 0 objeto da maioria de seus ensaios — s6 poderiam ser adequadamente estudadas se inseridas numa perspectiva hist6rica. Ao discutir certas relacgées de conflitos entre os chefes havaianos 211. Claude Lévi-Strauss, “O campo da Antropolog: 212. Claude Lévi-Strauss, “O campo da Antropologia”, p 213. José Guiherme Merquior, op. cit., p. 111. image not available image not available image not available José Antonio Vasconcelos 119 liltima. As reflexdes de Azzam caminham também neste sentido quando, discutindo a imiscibilidade entre sintaxe e semantica, ele nos diz que: Mais propriamente, a imiscibilidade esta entre um significado que pode ser determinado pela grade légica e um sentido virtual, cuja existéncia e valor escapam a qualquer determinagao. Essa oposigio, grosso modo, é a mesma que separa a estrutura da historia, tomando- se a primeira como um sistema fechado e a segunda como uma série de eventos ¢ causalidades mais ou menos caéticos, que quebram a ordem do sistema. Por assim dizer, é a imiscibilidade que se observa entre a estdtica e a dindmica??> Clifford Geertz tem sido um antropélogo bastante conhecido em sua rea de atuaciio, tendo publicado trabalhos influentes j4 na década de 1960, como Pedlers and Princes e Agricultural Involution. Contudo, foi somente apés a publicagiio de A interpretagdo das culturas, em 1973, que as idéias de Geertz projetaram-se de modo consideravel para além das fronteiras disciplinares, indo ao encontro dos interesses de outras dreas, entre elas a historiografia. Trata-se de uma coletanea de ensaios, escritos em €pocas diferentes e com propésitos diversos. Ronald G. Walters, num artigo em que discute a influéncia de Geertz na disciplina hist6rica, ressalta que “muitas dessas partes j4 eram bem conhecidas, mas é duvidoso que os historiadores as tivessem lido tao respeitosamente se nao fosse por um capitulo introdutério, escrito especialmente para este volume. Esse ensaio, ‘Descrigio densa: rumo a uma teoria interpretativa da cultura’, tornava explicitos 0 método e os pressupostos correntes através do que, de outro modo, poderiam parecer artigos dispares, ainda que inteligentes”.?”* Geertz inicia o referido ensaio com uma discussao sobre 0 conceito de cultura. Para esse autor, tal conceito constituiria ainda uma daquelas idéias “que surgem com tremendo impeto” do tipo que “solucionam tantos problemas fundamentais que prometem também resolver todos os problemas fundamentais, esclarecer todos os pontos obscuros”.”> Mesmo assim, seria . Celso Azzam Jtinior, Atropologia e interpretagao, p. 20. . Ronald G. Walters, Signs of the times: Clifford Geertz and historians Research, Autumn 1980, p. 542 225. Clifford Geertz. (0 densa: por uma teoria interpretativa da cultu in: A interpretagio das culturas, Rio de Janeiro : Livros Técnicos e Cientificos, 1989, p. 13. , Social image not available image not available image not available José Antonio Vasconcelos 123 aparéncia, onde seu significado pode ser articulado de forma mais poderosa e percebido com mais exatidao”.’* Por sua resisténcia a grandes sinteses ou esquemas conceituais amplos, e por sua atengiio a detalhes da vida social dos povos que estuda, poderiamos ser tentados a ver em Geertz uma retomada da abordagem funcionalista. As consideragées que Geertz faz acerca da briga de galos balinesa, porém, nos mostram que esta é uma conclusao equivocada. A briga de galos, para Geertz nao cumpre uma fun¢do social no sentido de manter ou alterar regras previamente estabelecidas. Ela “nao mata ninguém, nao castra ninguém, nao reduz ninguém a condigao de animal, nao altera as relagdes hierarquicas entre as pessoas ou remodela a hierarquia; ela nem mesmo redistribui a renda de maneira significativa.”?* Ela € simplesmente um meio pelo qual os balineses representam a sua sociedade para si mesmos: O que coloca a briga de galos & parte no curso ordinirio da vida, que a ergue do reino dos assuntos praticos cotidianos ea cerca com uma aura de importancia maior, nao €, como poderia pensar a sociologia funcionalista, o fato de ela reforgar a discriminagaio do Status (esse reforgo nao € necessdrio numa sociedade em que cada ato proclama essa discriminagio), mas o fato de ela fornecer um. comentario metassocial sobre todo o tema de distribuir os seres humanos em categorias hierdrquicas fixas e depois organizar a maior parte da existéncia coletiva em torno dessa distribuigao. Sua fungao, se assim podemos chamé-la, é interpretativa: é uma leitura balinesa da experiéncia balinesa, é uma histéria sobre eles que eles contam a si mesmos.?3° Ao apresentar a briga de galos em Bali como uma experiéncia a ser lida pelo antrop6logo, Geertz associa, de modo inequfvoco, a interpretagao social a leitura de textos. “Se se toma a briga de galos”, nos diz ele, “ou qualquer outra estrutura simbélica coletivamente, organizada, como meio de ‘dizer alguma coisa sobre algo’ [...], enfrenta-se um problema nao de mecanica social, mas de semintica social”.*’ Em “Mistura de géneros”, 234. Clifford Geertz, “Notas sobre a briga de galos balinesa”, in: A interpretagio das culturas, p. 310-311. 235. Ibidem, p. 311. 236. Ibidem, p. 315-316 237. Ibidem, p. 316. image not available image not available image not available 130 Quem tem medo de teoria? Essa expressio j4 havia sido usada antes, por Wesley Morris, em seu livro Towards a new historicism, mas somente apés ter sido adotada por Greenblatt € que um numero considerdvel de autores de Teoria Liter4ria aderiu ao termo, passando a identificar-se como “novos historicistas”.?** Como o préprio nome nos da a entender, o “Novo Historicismo” opde- se a.um “yelho historicismo”, isto é, uma abordagem nos estudos de Histéria Literéria que enfatiza a importancia do contexto histérico para o entendimento adequado de uma obra de literatura. O historicismo literério remonta a Hippolyte Taine, que em sua Histoire de la litterature anglaise, de 1863, aponta trés fatores que dio forma a toda producio literdria: as caracteristicas inatas dos diversos povos; 0 millieu, isto é, as condigdes geograficas; e as diferentes épocas, nas quais poderiamos distinguir idéias dominantes. De acordo com este autor, “ao considerarmos a raga, 0 meio e 0 momento, isto é, a fonte interior, a pressdo exterior e 0 impulso j4 adquirido, acabamos por abarcar nao s6 as causas reais, mas também todas as causas possiveis do movimento”.** O texto de literatura seria ainda considerado expressao da interioridade do autor, mas uma interioridade, em Ultima andlise, completamente dependente de instancias externas. Sob esta 6tica, a obra de John Milton, por exemplo, poderia ser entendida como mero reflexo do contexto revoluciondrio inglés, assim como a obra de Dickens seria ndo mais que o espelho da sociedade vitoriana. Portanto, de acordo com.-a visio historicista tradicional, 0 correto entendimento de um texto literério teria como premissa fundamental 0 conhecimento do contexto hist6rico no qual este se encontra inserido. O Novo Historicismo, como seu predecessor, considera importante a relago texto/contexto, mas a vé como algo problematico. Para os novos historicistas h4 uma relag&o de dependéncia recfproca entre a textualidade da Histéria e a historicidade dos textos literérios, de modo que, para 0 critico, torna-se importante perceber ndo sé como o texto é moldado pelo contexto, mas também como o préprio contexto sé € acessivel a nés de forma textualizada, e s6 adquire significado a luz do texto literério ao qual se contrapde. Este enfoque permite que se substitua uma abordagem 253. Wesley Morris € citado por Bonnie Klomp Stevens ¢ Larry L Stewart, em A guide to criticism and research, Forth Worth : Harcourt Brace Jovanovich, 1992. 254. Hipolito Taine, Historia de la literatura inglesa, Buenos Aires : Editorial Americalle, 1945, p.. 20. image not available image not available image not available José Antonio Vasconcelos 135 Neste contexto, a recusa, por parte dos Novos Criticos, em considerar quest6es como raga, género, classes sociais, etc., como elementos de andlise, tem contribufdo progressivamente para que eles sejam vistos com suspeita por seus colegas “de esquerda”. Nao quero com isso afirmar que uma abordagem formalista seja incompativel com um posicionamento politico de contestagao 4 ordem estabelecida. A deniincia da ideologia presente no texto literério, identificada por muitos autores ligados 4 Nova Critica a partir de uma andlise formalista, tem sido certamente sempre vista como resultado de um comprometimento politico genuinamente de esquerda. Mas o fato é que, por sua énfase na forma, os Novos Criticos sao constantemente — e nao sem raz4o — acusados de ignorar 0 contetido social e politico dos textos literdrios. Tomemos como exemplo duas andlises da pega Macbeth, de William Shakespeare, para ilustrar a diferenga entre a abordagem da Nova Critica e a de seus adversdrios. Escolho nfo sem raziio um texto do Renascimento inglés, pois é nesta drea que se concentra a maioria dos autores do Novo Historicismo. Segundo Dudley Miles e Robert C. Pooley, Macbeth, representa uma das melhores obras de Shakespeare, pois nela os personagens so responsdveis por suas proprias agoes.”*' O mesmo nao ocorre, por exemplo, na pega Romeu e Julieta, tidas por esses autores como inferior, uma vez que 0 final tragico deve-se ao acaso, a uma seqiléncia de infelizes coincidéncias. Em Macbeth, pelo contrério, 0 protagonista tem plena consciéncia da imoralidade de suas agdes, que terminam por trazer-lhe a rufna e a propria morte. Seguindo um caminho diferente, John Dover Wilson analisa a mesma obra — Macbeth — nao a partir de seu enredo, dos personagens ou do foco narrativo, mas a partir de suas implicagées politicas.*” De acordo com Wilson, no tempo de Shakespeare havia diversas versdes dos epis6dios envolvendo as sucessées dindsticas na Escécia do século XI, perfodo em que viveu Macbeth. Shakespeare escolhe representar Macbeth como um monstro sangilindrio porque isto Ihe permite introduzir na hist6ria um personagem mitico — Banquo -, cujo filho Fleance teria fugido para a Inglaterra e se casado com uma descendente direta do Rei Artur.’ Do 261. Dudley Miles e Robert C. Pooley, Life and literature ii Foresman and Company, 1948. pp. 101 ¢ seguintes. 262. John Dover Wilson. “Introduction”. In: William Shakespeare, Macbeth, London: Cambridge University Press, 1968. 263. A principal fonte de John D. Wilson, op. cit. sio as Chronicles of England, Scotland and Ireland, de Holinshed. De acordo com estas crénicas, Malcom II, England, Chicago : Scott, image not available aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. image not available image not available image not available 144 Quem tem medo de teoria? € apontada pelos novos historicistas como uma das razées pelas quais estes resistem a teorizagao de seu trabalho. “Duvidamos que seja possfvel”, dizem Gallagher e Greenblatt, “construir um sistema independente de nosso préprio tempo e lugar e dos objetos particulares com os quais nos interessamos, ¢ duvidamos também que qualquer trabalho importante que possamos fazer possa comegar com tal tentativa’”. No caso dos criticos ligados ao Novo Historicismo, 0 engajamento politico que informa suas andlises é geralmente decorrente dos movimentos de esquerda que eclodiram, sobretudo, nos anos 1960, época em que muitos dos expoentes atuais da Critica Literaria estavam cursando a graduacio. Greenblatt, particularmente, admite isso de modo aberto, afirmando que sua pratica critica, “como a de muitos outros ligados ao Novo Historicismo, foi moldada de forma decisiva pelos anos [19]60 ¢ inicio dos anos [19]70 americanos, sobretudo pela oposigaéo 4 guerra do Vietna”. E acrescenta: “Trabalhos que nao fossem comprometidos, que nao contivessem julgamentos, que nao conseguissem associar 0 presente ao passado nao tinham valor. [...] parecia terrivelmente claro que a neutralidade era em si mesma uma posi¢io politica, implicando a decisdo de apoiar as polfticas oficiais tanto diante do ptiblico quanto do meio académico”.”*? A idéia de que os valores e as condigGes sociais do critico, seu género, classe social, etnicidade etc., tém grande influéncia sobre a forma como sao lidos e interpretados os textos literdrios do passado, tampouco passa despercebida por Montrose. De acordo com esse autor: Integral para um projeto coletivo de critica hist6rica deve ser a percepgiio € o reconhecimento de que nossas andllises € nossos entendimentos necessariamente provém de nossos pontos de vista moldados histérica, social e institucionalmente; que as histérias que reconstruimos sao construgoes textuais de criticos que somos, nés prépri ativamente constr6i e delimita seu objeto de estudo, e se o pesquisador std historicamente posicionado em face deste objeto, segue-se que a busca de uma critica hist6rica mais antiga pela recuperagdo de Significados que sejam auténticos, corretos e completos, em qualquer sentido final ou absoluto, é ilus6ria. Portanto, a pratica de sujeitos histéricos. Se a pesquisa académica 281. Catherine Gallagher ¢ Stephen Greenblatt, Practicing New Historicism, p. 2. 282. Stephen Greenblatt, “O Novo Historicismo: ressonancia e encantamento”, p. 248. image not available image not available image not available José Antonio Vasconcelos 149 Mas a resposta de Wilson nao esclarece totalmente a questio. A consideracdo de como os documentos sao construidos é algo que j4 faz parte do horizonte de preocupagées dos historiadores, pelo menos desde o refinamento da erudigio hist6rica no século XIX. E, mesmo que ainda hoje existam profissionais de Histéria que fazem uso dos documentos de forma puramente instrumental, e poderiamos dizer até mesmo ingénua, procurando extrair deles “fatos brutos”, naéo podemos nos esquecer daqueles que, a exemplo de Robert Darnton, Carlo Ginzburg ou Emmanuel Le Roy Ladurie, para citar somente alguns dos mais representativos, destacam-se, entre outras coisas, pelo uso criativo e extremamente perspicaz que fazem de suas fontes. Além disso, 0 estudo das formas de representacio empregadas na historiografia, levando em conta as contribuigdes da ret6rica e da teoria da narrativa, € algo que j4 vem sendo feito ha algum tempo por historiadores como Hayden White e Dominick LaCapra, que, embora nao tenham estado alheios As contribuigdes do Novo Historicismo, buscaram seus principais insights em outras correntes, como a semistica formalista ou a desconstrugao derridiana. A questao, portanto, permanece. O que, afinal, os novos historicistas tém de original ou de “ameagador” para a escrita da Historia em nossos dias? Que o Novo Historicismo coloque em xeque a identidade e a autonomia de um campo de estudos como a Teoria Literdria, a propria acidez das criticas e o calor dos debates nao deixa espago para dtividas. Mas as vozes de historiadores, se nao de todo ausentes, so relativamente escassas no que concerne as discusses teéricas envolvendo os novos historicistas. Creio, portanto, que o impacto do Novo Historicismo na historiografia se faz sentir nao tanto como influéncia, mas expressa-se, sobretudo, em termos de sobredeterminagio, isto é, as tendéncias contempordneas da critica literéria correspondem outras, andlogas, na historiografia. Se historiadores contemporaneos sentem que o didlogo coma literatura tende a dissolver a Historia em um género literdrio, da parte dos tedricos da literatura manifesta-se também o temor de que seu campo de estudos seja engolido pela Histéria. A propria abordagem do Novo Historicismo, que recolocando o papel da Histéria na critica literaria é vista como uma forma tedrica de resisténcia 4 teoria - entendendo-se por teoria as reflexdes formalistas dos Novos Criticos —, encontra equivalentes na historiografia. Afinal, nao foi a Miséria da Teoria, de Edward Thompson, também um manifesto te6rico de resisténcia a teoria?™ 294. A argumentacio de Thompson nesta obra, em que polemiza com Althusser, é bastante complexa, mas podemos citar, a titulo de exemplo, uma passagem em que Thompson discute a questiio da relagdio entre o ser ¢ a consciéncia social: “De image not available Capitulo Ill A abordagem pos-estruturalista de Jacques Derrida David Harlan, em seu artigo “Intellectual History and the Return of Literature”, que deu infcio a toda a polémica que estamos procurando mapear, contrasta as concepgées de autores de orientagao contextualista 4 visio pés-moderna e pés-estruturalista da Histéria. O principal autor contextualista discutido por Harlan é, conforme vimos anteriormente, Quentin Skinner, que busca resgatar as intengdes dos autores do passado, fundamentando-se na teoria dos atos da fala. Aos argumentos teGricos de Skinner, Harlan contrapGe as idéias de autores p6s-estruturalistas, especialmente de Jacques Derrida. Contudo, este confronto no campo da historiografia tem seu correlato na Filosofia, pois 0 préprio Derrida se envolveu numa discussdo com John Searle, um dos principais representantes da teoria dos atos da fala. Nao pretendo reconstituir em sua totalidade o debate envolvendo Derrida e Searle, mas tendo em mente que essa discussaio filos6fica orienta teoricamente a discuss4o historiografica envolvendo Harlan e seus opositores, é importante que resgatemos alguns elementos da Filosofia de Derrida, especialmente seu posicionamento frente a vertente anglo-saxGnica da Filosofia Analitica. Sendo assim, procurarei neste capitulo apresentar em linhas gerais algumas das principais idéias de Derrida, com énfase em sua critica 4 teoria dos atos da fala de John Austin e John Searle, para, em seguida, no capitulo IV, tecer comentarios criticos ao texto de Harlan e apontar caminhos para os problemas tedricos que ele levanta. O pés-estruturalismo tem freqiientemente sido colocado como instancia critica frente as pretensdes de objetividade no estudo da Histéria. Na verdade, quanto mais nos aprofundamos na literatura sobre 0 pés- estruturalismo, mais podemos perceber 0 quanto este se apresenta como um fendmeno complexo e confuso. Em primeiro lugar, o pr6prio prefixo “pés” pressupde uma compreensio do estruturalismo que o precedeu, e que, devemos admitir, € bastante problematica. Basta dizer que o termo “estruturalista” tem sido muitas vezes usado com referéncia a autores de 154 Quem tem medo de teoria? areas e perspectivas diversas e, por vezes, irreconcilidveis. Uma lista de autores estruturalistas incluindo os nomes de Ferdinand de Saussure, Claude Lévi-Strauss, Fernand Braudel, Wladmir Propp e Michel Foucault, por exemplo, jd seria o suficiente para dar uma nogo do que quero dizer. Em segundo lugar, mesmo que tenhamos definido, grosso modo, 0 que entendemos por estruturalismo, nos caberia formular uma definigao de “pés- estruturalismo” que fosse tao simples e direta quanto possivel, de modo que pudesse servir de principio para um estudo mais aprofundado, e, ao mesmo tempo, tao abrangente quanto possivel, de modo a abarcar todos os autores e escritos classificados sob esta rubrica. Por fim, para complicar ainda mais este cendrio, tal lista de autores e obras pés-estruturalistas simplesmente nao existe. Jacques Lacan, Louis Althusser e Michel Foucault, por exemplo, figuram em alguns comentadores como estruturalistas e em outros como pés-estruturalistas, sem que haja consenso definitive a esse respeito. O mesmo pode ser dito de Roland Barthes, pois muitos de seus livros e ensaios apresentam aspectos pés-estruturalistas sobre um pano de fundo estruturalista bastante tradicional.” O estudo de uma tendéncia téo vaga e difusa, portanto, soaria desanimador nao fosse pela impressionante repercussdo dos escritos de Jacques Derrida, um autor inequivocamente associado ao pés- estruturalismo, e cujas idéias nos servirdo de roteiro para a compreensao desta corrente te6rica, No capitulo anterior eu havia sugerido que 0 pés- estruturalismo utilizava a teoria estruturalista para questionar e tornar problemiaticas — mas nao negar — as premissas do pr6prio estruturalismo. Nesse sentido, o pés-estruturalismo, em relag&o a seu predecessor, poderia ser metaforicamente comparado a alguém que avanga numa piscina cada vez mais funda até que seus pés nao mais possam tocar 0 chao. Quando o estruturalismo “perde o chao”, penetramos no dominio pés-estruturalista. Embora essa imagem, em virtude de sua propria simplicidade, obviamente nao possa esgotar um fenémeno tao rico e, ao mesmo tempo, to indefinido 209. Para uma discussio sobre a imprecisio semantica da expressiio pés-estruturalismo, podemos nos remeter a dois autores que trabalham de modo interessante essa questo, De um ponto de vista da histéria das idéias temos o livro de José Guilherme Merquior, De Praga a Paris: 0 surgimento, a mudanga e a dissolugdo da idéia estruturalista, Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1991. Do ponto de vista da teoria literaria, temos a introdugao de Jonathan Culler a seu livro On deconstruction, Ithaca ; Cornell University Press, 1994. José Antonio Vasconcelos 155 quanto o pensamento pés-estruturalista, ela € Util para ilustrar o efeito produzido pela desconstrucdo, uma estratégia para a leitura de textos desenvolvida por Derrida, a qual, ainda que inadequadamente, tem sido freqiientemente associada ao empreendimento pés-estruturalista como um todo. 1. A desconstrugao Na verdade, o termo “desconstrugao” 4 apenas um entre os intimeros neologismos cunhados por Derrida, tais como fonocentrismo, logocentrismo ou différrance. E mais: em seus escritos, Derrida nao confere a esse termo tanto destaque quanto é dado nao sé por muitos de seus admiradores, mas também, e talvez principalmente, pela maioria de seus opositores. O fato é que a palavra “desconstrug4o” ganhou espago e tornou-se um jargao corrente na Teoria Literéria, em especial nos Estados Unidos. E interessante notar que a difusao das idéias de Derrida na América do Norte, dando-se a partir dos departamentos de Teoria Literaria, mais do que dos préprios departamentos de Filosofia, € um fendmeno observado por varios comentadores. Segundo Christopher Norris, intérprete de Derrida, “foi um texto lido em 1966, numa conferéncia organizada pela Universidade Johns Hopkins, que marcou a emergéncia da desconstrugao ‘literaria’ como uma forga na Critica Literdria americana”.*"’ E Frank Lentriccia, discutindo algumas das tendéncias da Critica Literdria norte-americana na década de 1970, faz a seguinte constatagio: “em algum momento, no inicio dos anos 1970, nés acordamos do sono dogmitico de nossa noite de repouso fenomenolégico para descobrir que uma nova presenga havia tomado conta de nossa imaginagao critica de vanguarda: Jacques Derrida. [...] A reorientagdo para a direcdo e polémica pés-estruturalista nas carreiras intelectuais de Paul de Man, J. Hillis Miller, Geoffrey Hartman, Edward Said e Joseph Riddel [...] [todos eles ligados a departamentos de Teoria Literéria], j4 diz tudo”.*°' 300. Christopher Norris, Derrida, Cambridge, Harvard University Press, 1987, p. 13. 301. Frank Lentiriccia, After the new criticism, Chicago : University of Chicago Press, 1980, p. 159. image not available José Antonio Vasconcelos 157 desconstrucionista, que tenta subverter as préprias nogées de conceito e método. Eis porque Derrida, em certas passagens, ao escrever sobre a desconstrugio, prefere utilizar 0 termo “estratégia”: O que me interessava naquele momento [da escrita de La dissemination, La double séance ¢ La mythologie blanche], 0 que tento continuar agora sob outras vias, €, a par de uma “economia geral”, uma espécie de estratégia geral da desconstrucao. |...] E, pois necessério antecipar um duplo gesto, segundo uma unidade simultaneamente sistematica e como que afastada de si mesma, uma escrita desdobrada, isto é multiplicada por si prépria, aquilo a que chamei em “La double séance, uma dupla ciéncia: por um lado, atravessar uma fase de derrubamento. [...] aceitar essa necessidade é reconhecer que, numa oposigiio filoséfica clissica, nfo tratamos com uma coexisténcia pacifica de um vis-a-vis, mas com uma hierarquia violenta. Um dos dois termos domina 0 outro (axiologicamente, logicamente, etc.), ocupa o cimo. Desconstruir a oposi¢ao € primeiro, num determinado momento, derrubar a hierarquia.°* Para Derrida, 0 pensamento metafisico tradicional, por ele chamado de logocéntrico, jamais se desvinculou de uma abordagem que identifica pares de oposigdes — razao e sensacao, espirito e matéria, identidade e diferenca, l6gica e retérica, masculino e feminino etc., mas, sobretudo, fala e escrita—, estabelecendo a primazia do primeiro sobre 0 segundo termo da oposicao. Esta hierarquizagao das relagdes opositivas nos remete a uma categoria fundamental, a presenga, a partir da qual podemos explicar a realidade em geral. Segundo Derrida: A hist6ria da metafisica, como a historia do Ocidente, seria a historia dessas metéforas e dessas metonimias [os diferentes nomes que utilizamos para nos referir a um centro ou fundamento estavel a partir do qual possamos pensar a totalidade de uma estrutura ou mesmo da realidade em geral]. A sua forma matricial seria—espero que me perdoem por ser tio pouco demonstrativo e tao elitico, mas € parachegar mais depressa 20 meu tema principal — a determinagiio do ser como presenga em todos os sentidos desta palavra. Poder- se-ia mostrar que todos os nomes do fundamento, do principio, ou 304. Jacques Derrida, Posigdes, Lisboa : Plitano, 1975, pp. 53-54. 158 Quem tem medo de teoria? do centro, sempre designaram o invariante de uma presenga (eidos, arqué, telos, energeia, ousia (esséncia, existéncia, substancia, sujeito) alehteia, transcendentalidade, consciéncia, Deus, homem, ete.) 505 Num primeiro momento, a desconstrugao visa inverter a hierarquia dos conceitos, procurando pensar 0 segundo termo como principal e originério. Na relagdo entre causa e efeito, por exemplo, este é tradicionalmente entendido como secundario e derivado daquela. Mas, em nossa experiéncia, primeiramente constatamos a manifestagao do efeito, para entio remontarmos a suas causas. Assim concebido, 0 efeito é que deveria ser tido como origindrio, pois é por causa dele que um fendmeno pode ser concebido como causa. Em outras palavras, numa perspectiva desconstrucionista, 0 efeito é entendido como a causa de sua prépria causa” Outro exemplo: a condigao masculina sé é concebfvel em sua relagao Aquilo que ela ndo é. A idéia de homem s6 pode ser pensada enquanto tal enquanto estiver em oposigao as idéias de mulher ou gay. O Outro, portanto, é essencial & compreensao de Si Mesmo, e, em fungao disso, nao pode ser considerado como algo meramente acidental e secundario. Pensar 0 termo inferior como principal, produzir 0 derrubamento da hierarquia, como sugere Derrida, constitui, deste modo, 0 primeiro passo na dinamica de uma abordagem desconstrucionista. Contudo, permanecendo simplesmente neste momento de inversao, continuaremos ainda presos a uma perspectiva logocéntrica. Uma oposigao hierarquica, mesmo sendo invertida, continua sendo hierérquica. Nesse sentido, e isto 0 préprio Derrida o reconhece, esta fase de derrubamento seria andloga a cléssica oposigao entre tese e antitese proposta pela légica hegeliana.*”” A pratica da 305. Jacques Derrida, “Escritura, signo ¢ jogo no discurso das ciéncias humanas”, in: A escritura e a diferenca, 2. ed. Sdo Paulo : Perspectiva, 1995, p. 231. 306. Embora 0 exemplo da relagao causa/efeito aqui utilizado nao tenha sido proposto propriamente por Derrida, mas sim por Nietzsche, cle € apresentado, acertadamente, acredito, por Jonathan Culler, como um exemplo de desconstrugio caracteristica da abordagem pés-estruturalista. Jonathan Culler, On deconstruction, Ithaca, Cornell University Press. 1994, pp. 86-88. 307. Jacques Derrida, Posigdes, p. 56. “A diferincia [tradugdo portuguesa de différance, um conceito derridiano nesse texto associado & desconstrugio] deve assinar (num ponto de proximidade quase absoluta com Hegel [...]), 0 ponto de ruptura com a Aufhebung ¢ da dialética especulativa”[o grifo € meu]. José Antonio Vasconcelos 159 desconstrugdo, portanto, consiste em inverter a hierarquia tradicionalmente estabelecida entre um conceito e seu oposto correlato, para em seguida estabelecer, nao a redugio de um conceito a outro, como determinaria a filsosofia de Hegel, mas sim 0 jogo, a incessante alternancia de primazia de um termo sobre o outro, produzindo, assim, uma situagdo de constante indecisao. Vejamos como Derrida apresenta essa passagem do derrubamento ao jogo, contrastando sua abordagem com a de Hegel: A partir dai, para marcar este desvio [isto é, a pratica da desconstrugio seguindo 0 momento de inversao das hierarquias} [...] foi preciso analisar, fazer trabalhar algumas marcas, tanto no texto da hist6ria da filosofia como no texto “literério” [...], marcas essas [...] a que chamei por analogia (sublinho-o) indefiniveis, isto é, unidades de simulacro, “falsas” propriedades verbais, nominais ou seminticas, que j4 no se deixam compreender na oposigao filoséfica (bindria) e que, todavia a habitam, lhe resistem, a desorganizam, mas sem nunca constituirem um terceiro termo, sem nunca darem uma solugao na forma dialéctica especulativa ...]. De facto, é contra a reapropriagao incessante desse trabalho de simulacro numa dialéctica de tipo hegeliano (que chega a idealizar ea “semantizar” este valor de trabalho) que me esforgo por levar a operagao critica, j4 que 0 idealismo hegeliano consiste justamente em superar as oposigGes binarias do idealismo classico, em resolver sua contradi¢ao num terceiro termo que vem “aufheben”, negar superando, idealizando, sublimando numa interioridade anamnésica (Errrinerung), internando a diferenga numa presenga-a-si.2°8 O termo “jogo”, empregado por Derrida com relagao a esta segunda fase da desconstrugio, foi proposto a principio numa palestra — “Estrutura, signo e jogo no discurso das ciéncias humanas” —, apresentada na Universidade de Johns Hopkins, em 1966, e posteriormente publicada numa coletanea intitulada A escritura e a diferenga.*” Na verdade, nesse texto Derrida somente se refere ao jogo de maneira indireta, sem explicar em qualquer momento o que é 0 jogo, em que este consiste. E isso em fungao de 308. Jacques Derrida, Ibidem, pp. 55-56. 309, Jacques Derrida, “Escritura, signo ¢ jogo no discurso das ciéncias humanas”, in. A escritura e a diferenga, pp. 229-249. 160 Quem tem medo de teoria? um principio fundamental da filosofia derridiana: o de que nao existe principio, fundamento ou conceito que seja anterior ou esteja fora do jogo de diferencgas que operam em qualquer discurso. Deste modo, afirmar que jogo é isto” ou “o jogo é aquilo” seria reduzir essa nogao ao sistema de oposigdes que ela visa subverter. “O jogo”, de acordo com Derrida, “é sempre um jogo de auséncia e presenga, mas se 0 quisermos pensar radicalmente, é preciso pensé-lo antes da alternativa da presenga ¢ da auséncia; é preciso pensar 0 ser como presenga ou auséncia a partir da possibilidade do jogo, e nao inversamente™.*'” Uma das principais caracteristicas da abordagem desconstrucionista, tal como praticada por Derrida, € a apropriagio e utilizagao de conceitos derivados de um sistema de pensamento para, ao final, mostrar como esse sistema nao funciona. Voltando ao exemplo a que me referi anteriormente, se afirmarmos que 0 efeito é a causa que faz com que a causa possa ser concebida enquanto tal, nds estaremos langando mio de um conceito — 0 de causa — para questionar o préprio sistema — 0 da causalidade — no qual este conceito se fundamenta. De acordo com Jonathan Culler, te6rico do estruturalismo € pés-estruturalismo literarios, “este duplo procedimento de sistematicamente empregar os conceitos ou premissas que se est solapando, coloca 0 critico numa posigao, nao de distanciamento cético, mas de um envolvimento sem garantias, afirmando que a causalidade € indispensdvel ao mesmo tempo em que se nega a esta qualquer justificagdo rigorosa”. E acrescenta: “este é um aspecto da desconstrugaéo que muitos acham dificil de entender e aceitar”.*!' Para que possamos perceber melhor essa caracteristica da abordagem desconstrucionista, vamos tomar como exemplo o texto “Estrutura, signo e jogo no discurso das ciéncias humanas”. Nele, Derrida parte de uma oposigao bindria entre 0 dentro e o fora do centro numa estrutura. De acordo com Derrida, “a estrutura, ou melhor, a estruturalidade da estrutura, embora tenha sempre estado em agao, sempre se viu neutralizada, reduzida: por um gesto que consistia em dar-lhe um centro, em relaciona-la a um ponto de presenga, auma origem fixa”.*'* Esse centro seria entéo uma condi¢do necessaria para 310. Jacques Derrida, fbidem, p. 248. 311. Jonathan Culler, On deconstruction... pp. 87-88. 312. Jacques Derrida, “Estrutura, Signo ¢ jogo no discurso das ciéncias humanas”, in: A escritura e a diferenga, p. 230. José Antonio Vasconcelos 161 a substituigao dos elementos no interior de uma estrutura, mas, a0 mesmo tempo, um elemento dessa estrutura que nao se presta a substituigao. Nesse sentido, podemos dizer que, paradoxalmente, o centro esta, ao mesmo tempo, dentro da estrutura e fora dela. Isso permite a Derrida afirmar que 0 “conceito de estrutura centrada — embora represente a propria coeréncia, a condigio da episteme como filosofia ou como ciéncia — € contraditoriamente coerente”.*!* Na pratica da descontrugao, portanto, nao se trata de reduzir 0 exterior ao interior, nem de celebrar anarquicamente 0 predominio do conceito de fora sobre 0 de dentro, mas, a partir dessa oposigao, procurar pensar 0 jogo que a antecede e a torna possivel. Esta primeira oposi¢ao, na verdade, constitui um predmbulo, a partir do qual Derrida da inicio a uma discussdo sobre 0 empreendimento estruturalista, e, em particular, aquela versao de estruturalismo representada pela obra de Claude Lévi-Strauss. Também nas teorias desse autor, Derrida identifica pares de conceitos opostos que sao submetidos 4 critica desconstrucionista: etnocentrismo e descentramento, pensamento conceitual e pensamento mitico, engenheiro ¢ bricoleur, ¢, relacionados a estes, ainda os conceitos de significante e significado, e de sensivel e inteligfvel. Para ilustrar a estratégia desconstrucionista utilizada por Derrida, tomemos a oposi¢io entre conceito e mito e observemos como ela se torna problematica na obra de Lévi-Strauss. Este, de acordo com Derrida, reconhece que “‘o discurso sobre esta estrutura a-céntrica que é 0 mito nao pode ele préprio ter sujeito e centro absolutos. Deve, para apreender a forma e 0 movimento do mito, evitar a violéncia que consistiria em centrar uma linguagem descritiva de uma estrutura a-céntrica”. Desse modo, somos levados & conclustio de que “Por oposigio ao discurso epistémico, 0 discurso estrutural sobre os mitos, 0 discurso mito-ldgico deve ser ele proprio mito- morfo” *'* Por isso é que, em Le cru et le Cuit, Lévi-Strauss chega a admitir que “‘serd acertado considerd-lo [seu livro] como um mito: de qualquer modo, 0 mito da mitologia”.*"’ Esta primeira fase de derrubamento, de inversao de uma hierarquia previamente estabelecida por uma perspectiva etnocéntrica, que afirmava a 313. Ibidem, p. 230. 314. Ibidem, p. 241. 315. Claude Lévi-Strauss, Le Cru et le cuit, apud Jacques Derrida, “Escritura, signo € jogo nos discurso das ciéncias humanas”, in: A escritura e a diferenga, p. 242 162 Quem tem medo de teoria? prioridade do pensamento conceitual sobre o pensamento mitico, do raciocinio légico sobre a bricolagem, e que é levada a cabo pelo préprio Lévi-Strauss, nos forga a pensar 0 mito como uma forma de pensamento original, irredutivel & légica e até mesmo como condigio da prépria episteme. Mas a desconstrugao derridiana vai além, questionando, em primeiro lugar, 0 alcance de uma abordagem que pretende ultrapassar os limites colocados pela metafisica tradicional, e que, ao mesmo tempo, utiliza uma linguagem derivada dessa mesma tradigao. “Nao tem nenhum sentido”, nos diz Derrida, “abandonar os conceitos da metaffsica para abalar a metafisica; nao dispomos de nenhuma linguagem — de nenhuma sintaxe e de nenhum léxico — que seja estranho a essa hist6ria; nao podemos enunciar nenhuma proposig’o destruidora que nao se tenha j4 visto obrigada a escorregar para a forma, para a légica e para as postulagées implicitas daquilo mesmo que gostaria de contestar”.*'° Sendo assim, diante de um gesto que faria sucumbir a nogdo de conceito — e, deste modo, toda a Filosofia, tal como a entendemos -, sob a primazia do mito, Derrida faz uma pausa, colocando o seguinte questionamento: Contudo, se nos rendermos a necessidade do gesto de Lévi-Strauss, no podemos ignorar os seus riscos. Se a mito-légica é mito- mérfica, sera que todos os discursos sobre os mitos se equivalem? Dever-se-a abandonar toda exigéncia epistemolégica permitindo distinguir entre varias qualidades do discurso sobre o mito? Questao classica, mas inevitavel. Nao podemos responder a ela — e creio que Lévi-Strauss nao lhe responde — enquanto nao tiver sido expressamente exposto o problema das relagGes entre o filosofema 37 ou 0 teorema de um lado, e 0 mitema ou mitopoema do outro. Ora, se hd relagdo entre filosofema e mitema, e se sabemos que estes ocupam lugares opostos, € porque uma disting’o pode e deve ser feita entre esses dois conceitos, para que, ao invés de reduzirmos um ao outro, possamos pensar 0 jogo existente entre ambos. Sem esta segunda fase, a desconstrugao permaneceria incompleta. Ao que, Derrida acrescenta: “O que pretendo acentuar € apenas que a passagem para além da Filosofia nao consiste em virar a pagina da Filosofia, (0 que finalmente acaba sendo filosofar mal) mas em continuar a ler de uma certa maneira os filésofos”.*"* 316. Jacques Derrida, “Escritura, signo e jogo nos discurso das ciéncias humanas”, in: A escritura e a diferenga, p 317. lbidem, p. 242. 318. Ibidem, p. 243. José Antonio Vasconcelos 163 Como podemos perceber, portanto, a desconstrugdo derridiana nao tem por objetivo negar, simplesmente e levianamente, o valor da tradig&o filos6fica ocidental, ou negar qualquer distingao entre conceito e mito, ou entre Filosofia e Literatura. O que Derrida busca realizar, em todos os seus escritos, é um questionamento, uma critica rigorosa dos limites de uma filosofia da representagaio, para que possamos vislumbrar a possibilidade de uma forma de pensamento que esteja além — ou aquém — desses limites. Mas 0 fato, é que Derrida tem sido freqiientemente visto como um teérico niilista, dando aval a livre interpretagdo, destituida de qualquer rigor critico. Christopher Norris, discutindo a desconstrugao em Derrida, contrapde-se com insisténcia a esse ponto de vista, argumentando que “tratar a desconstrugao como um convite aberto a formas novas e mais aventurosas de critica interpretativa é claramente equivocar-se com relagao aquilo que é mais distintivo e exigente nos textos de Derrida”*!” E ainda: A énfase de Derrida sobre a textualidade e a escrita ndo é, em qualquer sentido, uma ruptura com a filosofia, ou uma declaragao de liberdades interpretativas até entéo nado sonhadas sob a severa lei repressiva da clareza e verdade conceituais. Que esta impressao esteja tio divulgada é parcialmente o resultado de que os filésofos tenham mostrado pouca vontade em Jer Derrida, mas um zelo incomum em denuncié-lo com base em conhecimento de segunda mao de seu trabalho. [...] Como eu ja argumentei - e argumentarei novamente -, a desconstrugio é mal servida por aqueles fanaticos de uma “liberdade” textual ilimitada, que rejeitam as préprias nogdes de pensamento rigoroso ou de critica conceitual 3? Quando Norris usa os termos “filésofos” e “fandticos”, devemos entender, respectivamente, uma tendéncia majoritaria nos estudos filoséficos norte-americanos, de orientag¢ao analitica, cuja recepg4o de Derrida se faz por intermédio dos departamentos de Literatura, ao lado de uma corrente da Teoria Literdria americana que interpreta as idéias de Derrida, muitas vezes tendo apenas uma compreensio superficial da tradigo metafisica que ele critica. Segundo Jonathan Culller, essa tendéncia da Teoria Literdria constitui, de fato, um novo género nos estudos liter4rios, 0 qual geralmente 319. Christopher Norris, Derrida, p. 20. 320. Ibidem, p. 21, 27 José Antonio Vasconcelos 165 quais eram as intengées originais do poeta, nao se poderia estar certo que estas intengdes tenham sido preservadas na versio final do poema — de fato, pode-se estar quase certo que no. Os Novos Criticos também tipicamente rejeitam a nogio de que uma obra de literatura seja a expressdo de uma tendéncia hist6rica ou sociol6gica, ou do estado psicolégico de um autor: uma obra literdria é moldada pela luta entre 0 contetido ea forma, nao pela luta entre o sistema agrario € 0 comercial, entre a burguesia ¢ o proletariado ou entre 0 ide 0 ego. Os Novos Criticos nao sao tao dezarrazoados a ponto de negarem que a hist6ria, a sociologia e a biografia nao tenham influéncia sobre a Literatura. [...] Mesmo assim, pelo fato da obra literdria possuir uma existéncia independente, a informacao sobre qualquer coisa fora do préprio texto provavelmente nao seré muito esclarecedora —ela pode colocar alguns limites ainterpretagdio, mas nao pode dizer o que a obra é — além de poder conduzir a distragio ou ao erro.3?2 O simpésio “The Languages of Criticism and the Sciences on Man”, a que fiz mengao anteriormente, e que tomou lugar na Universidade de Johns Hopkins, em 1966, tinha por objetivo apresentar o estruturalismo ao publico americano. Os organizadores do simp6sio, Richard Macksey e Eugenio Donato, visavam com isso abrir novas perspectivas para a Critica Literéria nos Estados Unidos, que até ent&o estava fechada a abordagens alternativas em fungaio da Nova Critica, que, apesar de jé apresentar nitidos sinais de desgaste, ainda exercia um papel hegemGnico nos estudos literdrios norte-americanos. A intengaio de Macksey e Donato era entio a de “explorar 0 impacto do pensamento ‘estruturalista’ contemporéneo em métodos de critica nas ciéncias sociais e humanisticas... [e] trazer, para um contato critico, destacados proponentes europeus de estudos estruturais numa ampla variedade de disciplinas com um amplo espectro de intelectuais académicos americanos”.** Eis, por exemplo, como Frank Lentriccia descreve 0 estado do pensamento estruturalista nos Estados Unidos até entao: Embora no Continente 0 ataque a fenomenologia e ao existencialismo hd muito jé estivesse explicitamente acontecendo, . Bonnie Klomp Stevens; Larry L. Stewart. A guide to criticism and research, 2. Harcourt brace Jovanovich, 1992. p. 14-15. rd Macksey; Eugenio Donato, apud Frank Lentriccia, After the new criticism, p. 157 166 Quem tem medo de teoria? no trabalho de Lévi-Strauss e Barthes, e implicasse nos trabalhos dos lingiiistas neo-saussurreanos, em meados dos anos 1960, as figuras-chave do movimento estruturalista ainda eram praticamente desconhecidas nos circulos americanos de Critica Literaria. No ano do simpésio Hopkins, que também testemunhou o surgimento da edigao pioncira do Yale French Studies, devotado ao estruturalismo, a critica americana ainda estava fascinada, uma boa década apés 0 declinio da Nova Critica, por perspectivas que nunca tiveram sucesso em desbancar os principios formalistas bis Os quais oestruturalismo, pelo menos na intengao, parecia certamente estar perto de demolir.>74 cos, Foi durante esse simp6sio que Derrida apresentou, pela primeira vez, 0 texto “Estrutura, signo e jogo no discurso das ciéncias humanas”, inaugurando entio, contrariamente as expectativas de Macksey e Donato, nao estruturalismo, mas 0 pés-estruturalismo na América. Até entao Derrida era uma figura completamente desconhecida do ptiblico académico americano e, na Franga, apenas um filésofo promissor, conhecido apenas por uma tradugZo e um prefécio ao livro As Origens da Geometria, de Edmund Husserl. E, provavelmente, teria permanecido ainda algum tempo nesta condigao, se nao fosse por Eugenio Donato, que, numa resenha sobre Georges Poulet, entio talvez 0 autor de maior destaque no simpésio, chamou a atengao para as idéias de Derrida, estabelecendo uma relagao entre o pensamento de Poulet e o texto “Estrutura, signo e jogo no discurso das ciéncias humanas”. A partir de entao o trabalho de Derrida passou a atrair 0 interesse de intimeros criticos literarios de renome, especialmente aqueles que, mais tarde, ficaram conhecidos como o “grupo de Yale”, entre eles Paul de Man, J. Hillis Miller e Geoffrey Hartman. Enquanto isso, ainda nos anos 1960, surgiram dois importantes periédicos de Critica Literaria de orientagao p6s-estruturalista: Diacritics ¢ Gliph. Leyla Petrone-Moisés assim discorre sobre as caracteristicas dessa efervescéncia desconstrucionista nos Estados Unidos naquela época: Da Franga, as teorias de Jacques Derrida passaram aos Estados Unidos, onde encontraram calorosa acolhida, principalmente na Universidade de Yale. Rejeitando a leitura conceitual como essencialista, os desconstrucionistas norte-americanos preferem a leitura retéric; , que desmonta os artificios da linguagem utilizando 324. Frank Lentriccia, After the new criticism, pp. |57-158. José Antonio Vasconcelos 167 Seus proprios recursos figurais. Alguns, como Paul de Man, consideram que os tropos e figuras nao sao acidentes ou ornamentos discursivos, mas constitutivos de qualquer discurso. O tropo, para ele, € o paradigma lingiifstico por exceléncia (“Allegories of Reading”). Mas a ret6rica classica, como era de se esperar, também € desconstrufda por eles, no que ela implica de filosofia idealista. [...] A contribuigaio da desconstrugao para a critica literdria foi a consciéncia de seus pressupostos filoséficos, um agugamento do seu senso critico com relagdo aos textos, um afiamento dos instrumentos de leitura e um estfmulo a criatividade escritural, A. critica desconstrucionista permitiu 0 ultrapassamento do formalismo tecnicista que comegava adominar nas universidades como “método cientffico”.5 “A resposta tradicionalista a esta atividade pdés-estruturalista”, nas palavras de Lentriccia, “foi a de denuncia-la como subjetivismo irrestrito, relativismo, irracionalismo e autocontradi¢ao estrutural”. “Mas”, acrescenta Lentriccia, “uma vez que estas acusag6es sao geralmente feitas com uma paixdo que pode ser percebida como posigio de defesa rancorosa, e desprovidas de argumento substancial e rigoroso, sua validade est4 aberta a uma dtivida considerével”.*** Podemos constatar um bom exemplo desse tipo de critica ao p6s-estruturalismo literério no trabalho de Richard Freadman e Seumas Miller, Repensando a teoria, no qual se 1é: O critico desconstrutivista pressupde que 0 texto literario é caracterizado por uma série de tragos derridianos. O primeiro deles € que seus significados sio indeterminados; 0 segundo, sua linguagem é radicalmente metaférica; 0 terceiro, o texto é nio- referencial; 0 quarto, ele contém oposigdes hierarquizadas que (dependendo das varias verses) requerem desconstrugao, ou esto ’ivel de autodesconstru em um processo intermii ; © quinto, oO texto nao € nem o produto nem o repositério de “eus centrado: nao € 0 produto de intengdes autorais determinadas ¢ nado contém — nao pode conter — imagens essenciais ou simulagdes de eus individuais.°7 325. Leyla Perrone-Moysés, “Outras Margens”, Folha de Sao Paulo, 3 de dezembro de 1995, caderno Mais!, p. 6. . Ibidem, p. 162. Richard Freadman; Seumas Miller, Repensando a teoria: uma critica da teoria literaria contemporanea. Sao Paulo : Editora da Unesp, 1994. p. 174. 168 Quem tem medo de teoria? Nao pretendo colocar-me aqui como defensor incondicional da filosofia de Derrida, mas, pelo contrario, acredito que suas idéias podem e devem ser exaustivamente discutidas. Mesmo porque, proceder de outro modo seria esgotar prematuramente a fecundidade dos escritos desse autor. Contudo, a luz do que consideramos até o momento, devemos reconhecer que a interpretagado de Freadman e Miller esta completamente equivocada. Em primeiro lugar, nao é verdade que, em Derrida, os significados sejam indeterminados, mas sim que podemos pensar a possibilidade de uma instancia anterior 4 oposicao entre significado e significante. Em segundo lugar, se é certo que, para Derrida, a linguagem é radicalmente metaférica, nao devemos nos esquecer que este constitui apenas o primeiro passo na estratégia descontrucionista. O momento seguinte seria 0 resgate do sentido literal da linguagem, entendida como texto, ou arquiescritura — esclareceremos posteriormente essa nogao — € o estabelecimento do jogo entre Os conceitos de literalidade e metaforicidade. Em terceiro lugar, problematizar a relagao entre significado e significante, como faz Derrida, nao significa necessariamente negar a existéncia de um referente exterior & linguagem, o que, em outras palavras, equivaleria a negar a realidade como tal. Este gesto, que implicaria, em ultima andlise, em negar que a comunicagio seja uma das fungdes da linguagem, nao encontra aval em nenhum dos escritos de Derrida.*** Em quarto lugar, nao est4 claro para 328. Grande parte da confusao a esse respeito, deve-se 4 interpretacio do aforismo de Derrida, il n'ya pas dors-texte, como sendo uma negagao pura e simples de uma realidade extra-lingiifstica. Devemos lembrar, contudo, que na passagem em que formula esta expresso, Derrida es orrendo acerda da ra das obras de Rousseau, e sobre a possibilidade de alcancar, a partir do texto de Rousseau, um fundamento nao textual dessa leitura. Como, porém, para Derrida, 0 texto é marcado pela auséncia do referente, e como toda expressao de linguagem remete-se a uma compreensao primordial de escrita, a arquiescritura, que discutiremos posteriormente, deparamo-nos com 0 fato de que extra-textual ndo pode jamais ser alcangado, estar sempre ausente, mas isso nao nos autoriza a dizer que ele ndo exista. Isso tudo, colocado de maneira muito simples, € 0 mesmo que dizer que a escrita de Rousseau nao & Rousseau, que a descrigao que este faz de sua mae nao & sua mae, e finalmente, que por meio de um texto jamais chego a alguma que nao seja. em si mesma, um outro texto. E, portanto, a partir dessa convicgao, que interpreto a seguinte passagem de Derrida: “E, entretanto, se a leitura nao deve contentar-se em reduplicar 0 texto, nao pode legitimamente transgredir 0 texto em direcao a algo que nao ele, em diregdo a um referente (realidade metafisica, histérica, psicobiografica etc.) ou em diregao a um significado fora de texto cujo contetido poderia dar-se fora da lingua, isto é, no sentido que aqui damos a esta palavra, fora da escritura em geral. Dai por que cois José Antonio Vasconcelos 169 Freadman e Miller se a desconstrugio é algo que o critico faz com 0 texto ou se é algo que o texto faz a si mesmo, e as varias versGes a que estes autores se referem podem ser facilmente identificadas em diferentes estudos p6s-estruturalistas de teoria literdria, mas no nas obras do préprio Derrida.” Por fim, néo podemos nos furtar ao fato de que Derrida realmente parece celebrar “‘o fim do livro ¢ 0 comego da escritura”, isto é, o fim da crenga de que existe, por tras do livro, um autor, cujas idéias nos podem ser transmitidas de forma unfvoca.*” Porém, isso nao significa que devamos perder de vista nem a critica derridiana ao fonocentrismo, intimamente associada a critica das intengdes autorais, nem tampouco as implicagées politicas desse posicionamento, aspectos da filosofia de Derrida os quais trataremos em breve. A caracterizagao da critica desconstrutivista realizada por Freadman e Miller, ainda que, como vimos, seja bastante discutivel e, em muitos pontos, francamente contestivel, revela-se util se percebermos que o verdadeiro alvo de ataque desses autores nio é a filosofia de Jacques Derrida, mas grande parte da critica literéria que nela se baseia. Se a desconstrugao derridiana inspirou estudos de critica literaria originais, interessantes, profundos e rigorosos — devemos lembrar, por exemplo, os trabalhos de Paul de Man, J. Hillis Miller, Geoffrey Hartman e Gayatri Spivak, entre outros —, seria correto admitir também que, nas maos de criticos literarios as consideragdes metodolégicas que aqui arriscamos sobre um exemplo estreitamente dependentes das proposigdes gerais que esbogamos mais acima, quanto a auséncia do referente ou do significado transcendental. Nao hé fora- de-texto.”(Jacques Derrida, Gramatologia, Sao Paulo : Perspectiva, 1999, p. 194.) [o grifo é meu). 329. Uma boa maneira de observar 0 contraste entre essas duas versdes de critica literdria desconstrucionista consiste em comparar as abordagens de dois autores p6s-estruturalistas, Steven Lynn e Catherine Belsey, Para Lynn, a desconstrugao € uma atividade exercida pelo critico. Ao interpretar uma poesia, por exemplo, ele busca identificar o sentido literal e o sentido metaférico de determinados trechos do poema, para entao colocar em evidéncia a tensao ¢ a impossibilidade de decisio entre esses dois sentidos. Ja Belsey procede de forma diferente: ela procura identificar, a partir de detalhes aparentemente insignificantes, referéncias marginais, ausncias etc., 0s momentos em que o préprio texto subverte seu significado explicito. Ambos os autores so discutidos em Bonnie Klomp Stevens, Larry L. Stewart, A guide to criticism and research, pp. 41-44. 330. A formulagio “O fim do livro e o comego da escritura” constitui um dos subtitulo do primeiro capitulo do livto Gramatologia, de Jacques Derrida. 170 Quem tem medo de teoria? nao tao talentosos, a filosofia de Derrida freqiientemente viu-se reduzida a uma mera desculpa para a livre interpretagio, descomprometida com qualquer espécie de rigor critico. Paul de Man, J. Hillis Millere Geoffrey Hartmann sao todos professores de Teoria Literaria na Universidade de Yale, e podemos consideré-los como sendo os pioneiros da abordagem desconstrucionista da literatura nos Estados Unidos. O primeiro abriu o caminho, escrevendo uma série de comentarios as repercussOes do ensaio “Estrutura, Signo e Jogo no Discurso das Ciéncias Humanas”, no final da década de 1960 e inicio dos anos 1970, e servindo-se, posteriormente, de insights derridianos na andlise de obras literarias. Miller e Hartmann seguiram um percurso semelhante, inspirando- se em de Man, sendo que a contribucdo desses autores recebeu reconhecimento institucional quando Miller assumiu a presidéncia da Modern Language Association, em meados da década de 1980. Comum a esses trés autores é a preocupagao em perceber fraturas no texto literario, de modo a identificar momentos em que o texto apresenta significados implicitos que subvertem seu significado manifesto. Desse modo de Man, Miller e Hartmann polemizam com os novos criticos, uma vez que estes procuram perceber como 0 texto faz sentido, como ele possui uma unidade inerente, ao passo que aqueles tentam demonstrar justamente 0 contrario. Mas, pelo fato de concentrarem toda a atengao no texto, sem articulagdo a um contexto, de Man, Miller e Hartmann, a despeito de toda sua oposigao 4 Nova Critica, acabam permanecendo dentro dos limites de uma abordagem formalista. Em virtude disso esses autores receberam a alcunha de “Formalistas de Yale”. Nesse sentido, eles polemizam também com 0 Novo Historicismo e com 0 Marxismo, correntes cuja preocupagao primordial & com a articulaco entre texto e contexto.**! Embora de Man, Miller e Hartmann tenham empreendido pesquisas rigorosas, apresentando um alto grau de refinamento teérico, em parte eles 331. A oposigio entre essas correntes pode ser percebida com bastante evidéncia num texto do proprio Miller. em sua mensagem presidencial & Modern Language Association, em 1986, na qual ele abertamente critica os novos historicistas (J. Hillis Miller, “Presidential Address 1986, The triumph of theory, the resistance to reading and the question of the material base”, PMLA, Publications of the Modern Language Association, v. 102, n. 3, May 1987.) José Antonio Vasconcelos 171 foram também responsiveis pelo surgimento de um grande ntimero de estudos que empreendem a desconstrucado de textos literdrios de modo inconseqiiente. Se devemos nos ater ao texto, como defendem os formalistas de Yale, e, se em nossa leitura do texto literério, devemos perceber como este nao faz sentido nem possui unidade, a abordagem desconstrucionista chega perigosamente préxima de afirmar que a interpretacdo constitui um jogo sem regras, e que de um texto literario podemos tirar as conclusGes que quisermos, fazendo assim da obra de literatura um mero pretexto para digress6es interpretativas. Porém, se a linha seguida pelos formalistas de Yale foi a mais influente — sendo esta, inclusive, a compreensao de desconstrugao com a qual Harlan trabalha —, nao devemos pensar que foi a Ginica. Nesse sentido cabe destaque 4 abordagem de Gayatri Spivak, professora da Universidade de Columbia, que se remete as idéias de Derrida para trabalhar a relagao entre textos literdrios e suas implicag6es politic: especialmente a luta das colénias contra as poténcias imperialistas e o movimento feminista.*” Embora nao constitua parte da corrente dominante nos estudos desconstrucionistas, Spivak é, ainda assim, uma autora de grande projegdo, tendo sido responsavel pela tradugao de Gramatologia para o inglés. Além da nogao de desconstrugao, que, contrariamente as expectativas de Derrida, foi transformada em método de anilise pela critica literdaria, devemos levar ainda em conta ainda 0 conceito de intertextualidade, em parte também derivado da filosofia derridiana. Contrapondo-se & teoria lingiifstica de Ferdinand de Saussure, que postulava uma relagao entre o significante — isto 6, a palavra, ou sinal f6nico —e 0 significado — 0 conceito correspondente -, Derrida afirma que os significantes nos remetem a outros significantes, e assim por diante, numa cadeia infinita. Trataremos com maior profundidade, mais adiante, desse posicionamento quanto a lingiiistica. Por ora, contudo, o importante é perceber que esse modelo pode ser transposto 8 teoria do texto: assim como um significante nos remete a outros, também um texto em particular nao constitui uma unidade fechada, mas nos remete a outros textos, formando assim uma trama ilimitada, a que chamamos de intertextualidade.**’ Além de ter escrito a tradugio para o inglés de Gramatologia, acompanhada de um estudo introdutério sobre a filosofia de Derrida, Spivak é também autora de In other worlds: essays in cultural politics, London Methuen, 1985, ¢ de uma série de ensaios publicados em coletaneas. 333. Para entendermos melhor esse conceito, tomemos um exemplo de critica intertextual sugerido por Donaldo Schiller, Teoria do Romance, Sio Paulo: 172 Quem tem medo de teoria? John Rowe, arauto de uma abordagem intertextual da literatura, assim se refere a esse conceito: “‘intertextualidade’ nao indica meramente a estratégia de ler um texto com um outro, mas o fato de que todo texto ja é, por si s6, um evento intertextual... 0 texto nao é ele mesmo”.*™ O problema, porém, é que, na pritica da critica literdria, a intertextualidade torna-se uma nogao confusa, e, ao invés de ser trabalhada como uma caracteristica inerente a todo texto, como quer Rowe, ela passa a ser entendida como total liberdade interpretativa e a mais completa aus€ncia de critérios no entrecruzamento Atica, 1987. Ele sugere que consideremos as seguintes passagens de José De Alencar ¢ Mario de Andrade, respectivamente: “Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema”. (Cf. José de Alencar, Iracema, 5. ed. Sao Paulo : Atica, 1975. p. 14.) “No fundo do mato virgem nasceu Macunaima, her6i de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o siléncio foi tao grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a india tapamunhas pariu uma crianga feia. Essa crianga é que chamaram de Macunaima. (Cf. Mario de Andrade, Macunaima: o heré em nenhum carter, 6. ed. Sao Paulo : Martins, 1970. p. 9.) Quando Mirio de Andrade narra 0 nascimento de Macunaima, seu texto remete-nos a Iracema, personagem de José de Alencar. 0 “mato-virgem” lembra-nos o “além daquela serra que ainda azula no horizonte”. Ambos representam a distancia do mundo civilizado, um local ainda nao contaminado pela mao do homem branco. Mas as diferengas sdo igualmente evidentes. Iracema representa a pureza daquela que ainda nao teve contato com a cultura européia. O “além daquela serra” indica o afastamento do litoral e, portanto, o afastamento das cidades populosas, redutos de vicio ¢ criminalidade. E como se 0 ambiente bucélico produzisse por si s6 0 ser humano perfeito que nele se cria. Mas com Macunaima é diferente. Ele é preto-retinto: de que tribo ele vem, afinal? Ele é filho do medo da noite. Sua origem liga-se aos escravos fugidos que em meio A floresta conheceram parceiras indigenas € ali tiveram filhos, fruto da marginalizagao a que o civilizado os submeteu. E Macunafma € feio. Tanto fisicamente como moralmente falando: ele € desprezivel, promiscuo, dominado pela cobiga e co-responsivel pela dizimagao de seu povo. Neste sentido 0 contraste com Iracema é gritante. Que Mario de Andrade tenha tido acesso a obra de José de Alencar, nao hé dtivida alguma. Afirmar que Macunaima tenha sido uma resposta modernista explicita ¢ intencional ao romantismo de /racema seria ja temerdrio, mas ainda assim plausivel. Contudo, as miltiplas interpretagdes que ja foram ou que poderio ado des algum dia vir a ser fe s dois textos sio, em tiltima . pouco mais que puras construgées intelectuais dos leitores, nada que se assemelhe a uma “realidade objetiva”. Intertextualidade entao seria isso. Quem se der ao trabalho poderd reconstituir, a partir do texto de Mario de Andrade, toda a heranca cultural do Ocidente, mas ainda assim o fara a partir de uma perspectiva subjetiva e, portanto, essencialmente contestivel. 334. John Rowe, apud Frank Lentriccia, After the new c! s acerca do sign instancia, ism, p. 175. José Antonio Vasconcelos 173 de diferentes textos. Grande parte dos criticos literarios norte-americanos de orientagdo pés-estruturalista, partindo de uma versdo simplificada de desconstrugao, aliada a um entendimento confuso de intertextualidade, passava ento a defender a idéia de que, em Teoria Literdria, poderfamos dizer qualquer coisa de qualquer texto e nao haveria fundamento ou critério a partir do qual pudéssemos avaliar uma interpretagdio como sendo mais ou menos valida do que outra. Neste sentido, a reagao de teéricos de orientagao tradicional, ainda ligados 4 Nova Critica, nao deixa de ser pertinente. Porém, ao tomarem como objeto de suas criticas a filosofia de Derrida, esses te6ricos acabam se equivocando, pois tomam como sendo o pensamento derridiano que, na verdade, constitui apenas um conjunto de postulados estabelecidos pelo pés-estruturalismo literdrio. 2. A polémica com a filosofia analitica Quando David Harlan, em seu artigo “Intellectual History and the Return of Literature”, critica 0 contextualismo de Quentin Skinner a luz das teorias p6s-estruturalistas, e, mais especificamente, da filosofia de Jacques Derrida, sua énfase recai no uso — inadequado, segundo Harlan — que Skinner faz da chamada Teoria dos Atos da Fala. Essa teoria, desenvolvida principalmente no dmbito da filosofia analitica de tradigao anglo-sax6nica, tem nas figuras de John Austin e John Searle seus principais expoentes. O debate iniciado por Harlan na historiografia norte-americana remete-nos, desse modo, a uma polémica anterior, e mais fundamental, ocorrida a partir da publicagao da tradugdo inglesa do ensaio de Jacques Derrida “Assinatura, Evento, Contexto”. Segundo Gerald Graff, que reuniu e publicou num volume intitulado Limited Inc. os textos de Derrida relativos a tal polémica, “esse ensaio [“Assinatura, Evento, Contexto”] foi escrito para uma conferéncia sobre 0 tema da ‘Comunicagio’, organizada pelo ‘Congresso Internacional das Sociedades de Filosofia de Lingua Francesa’ (Montréal, agosto de 1971) e publicada pelas Editions de Minuit e, em 1972, em Marges — de la philosophie. A primeira traducio inglesa, feita por Samuel Weber e Jeffrey Mehlman, apareceu no primeiro volume do periédico Glyph, em 1977. [...J”. Ainda, de acordo com Graff, “No seu segundo volume (1977), Glyph publicava uma resposta ao ensaio de Derrida, dada por John Searle, ‘Reiterating the differences: a reply to Derrida’ (Reiteragao das diferengas: Resposta a Derrida”). Foi essa ‘Resposta’ que provocou a resposta de Derrida, 0 ensaio Limited Inc., twaduzido por Samuel Weber [também publicado em Glyph, e, posteriormente, na coletanea de mesmo titulo a que me referi 174 Quem tem medo de teoria? anteriormente].”**> O cerne do confronto entre Derrida e Searle diz respeito ao conceito de iteracdo, isto é, a condigao segundo a qual uma seqiiéncia de significantes pode ser repetida em diferentes contextos, e de que modo este conceito contribui para tornar problematica a relagao entre falae escrita. Como o meu propésito nao é o de apresentar em profundidade esse debate, mas sim o de tentar compreender melhor a critica derridiana 4 teoria dos atos da fala, ater-me-ei mais ao texto inicial de Derrida, “Assinatura, Evento, Contexto”. Nele, Derrida discute as idéias de John Austin, 0 autor que em primeiro lugar propos essa teoria. Como Searle posiciona-se mais como um continuador do trabalho de Austin — e defensor de suas idéias frente a apreciagao de Derrida —- do que como proponente de uma abordagem alternativa, minhas referéncias a ele serao, por conseqiiéncia, mais limitadas. Derrida inicia “Assinatura, Evento, Contexto”, que constitui uma comunicagdo apresentada num coléquio sobre a “Comunicagio”, discutindo exatamente a compreensio desse conceito: “Segundo uma estranha figura do discurso, podemos, pois, perguntar-nos de inicio se a palavra ou o significante ‘comunicagio’ comunica um contetido determinado, um sentido identificdvel, um valor descritfvel”.“” Indicando Os usos nao semi6ticos do termo “comunicagao”, no francés, como quando se diz que um choque ou um abalo pode ser comunicado, ou que, por uma passagem, dois lugares se comunicam, ele argumenta “que 0 campo de equivocidade da palavra ‘comunicagio’ deixa-se reduzir macigamente aos limites do que se chama um contexto [...]”.°*” Nesse sentido, seu emprego do termo num contexto determinado — um coldéquio na drea de lingiifstica — torna claro que sentido de “comunicacao” ele tem em vista. Com esse gesto, contudo, Derrida nao encerra a questdo, mas, pelo contrario, assinala a passagem para um outro problema, talvez ainda mais complexo, concernente a compreensiio daquilo que chamamos de “contexto”: Mas 0s requisitos de um contexto sao absolutamente determinaveis? Tal é, no fundo, a questéo mais geral que gostaria de tentar elaborar. Ha um conceito rigoroso e cientific 0 de contexto? A nogao de contexto nao abriga, sob uma certa confusao, pré-supostos filos6ficos muito determinados? Para dizer logo de modo sumrio, Gerald Graff, “Preficio do editor Americano”, in: Jacques Derrida, Limited Inc., Campinas : Papirus, 1991, p. 9. 336. Jacques Derrida, “Assinatura, Evento, Contexto”, in: Limited Ine., p. 12. 337. Ibidem, p. 12. José Antonio Vasconcelos 175 gostaria de demonstrar porque um contexto nunca é absolutamente determinavel ou, antes, em que sua determinag&o nunca esta assegurada ou saturada. Essa no saturago estrutural teria duplo efeito: 1) marcar a insufici (lingiifstico ou nao lingiiistico) tal como ¢ admitido em numerosos campos de pesquisa, com todos os conceitos aos quais € sistematicamente associado; 2) tornar necessdrios uma certa generalizagao e um certo deslocamento do conceito de escrita. Este nao poderia mais, a partir de entio, ser compreendido sob a categoria de comunicagao, se a entendemos no sentido estrito de transmissio de sentido. Inversamente, é no campo geral da escrita assim definida que os efeitos de comunicagao semintica poderao ser determinados como efeitos particulares, secundérios, inscritos, suplementares.>*8 ncia teérica do conceito corrente de contexto Desse modo, para elucidar a nogao de contexto — ou melhor, para demonstrar como este € radicalmente indetermindvel -, Derrida opera em sua argumenta¢ao um desvio que passa por uma discussao sobre a escrita € de sua relagado com a fala. Este, na verdade, é um tema constante na filosofia de Derrida, discutido em praticamente todas suas obras, especialmente em A farmdcia de Platéo, Gramatologia, Margens da Filosofia e Limited Inc. Para Derrida, a tradig&o metafisica do Ocidente teria se mantido sempre aprisionada a uma perspectiva fonocéntrica, isto é, a um posicionamento que afirma a primazia da fala sobre a escrita. Desta perspectiva, ainda segundo Derrida, nenhum pensador teria conseguido se libertar, nem mesmo os que mais se esforgaram nesse sentido, como Nietzsche, Freud e Heiddeger. De fato, nem mesmo o préprio Derrida se julga capaz de superar, com seus escritos, a tradigéo que ele critica. No inicio de Gramatologia ele afirma que “a unidade de tudo o que se deixa visar hoje, através dos mais diversos conceitos da ciéncia e da escritura, est4 determinada em principio, com maior ou menor segredo, mas sempre, por uma época hist6rico-metafisica cuja clausura nos limitamos a escrever”.*” E, algumas paginas mais adiante, Derrida acrescenta: “nao é sair de uma época o poder desenhar sua 338. Ibidem, p. 13. 339. Jacques Derrida, Gramatologia, 2. ed. Sao Paulo : Perspectiva, 1999, pp. 5-6 176 Quem tem medo de teoria? clausura”.“° Acompanhemos, portanto, ainda que brevemente, este desvio derridiano pela questio da escrita. 2.1 —A critica ao fonocentrismo A farmacia de Platéo é um ensaio em que Derrida aborda de maneira bastante direta o preconceito da Filosofia com relagio 4 escrita, juntamente com seus pressupostos e suas implicagdes. Neste texto Derrida discute algumas passagens do Fedro, de Plato, no qual este apresenta, por intermédio de Sécrates como personagem-narrador, um mito eg{pcio, segundo 0 qual 0 deus Theuth, divindade do calculo, geometria, astronomia, jogo de gamao e dados, e também dos caracteres escritos, teria oferecido ao rei Thamous, juntamente com uma série de outros presentes, a arte da escrita. Esta, segundo a divindade, teria “por efeito tornar os egipcios mais instrufdos e mais aptos para se rememorar [...]: meméria e instrugdo encontraram seu remédio (phaérmakon)” *' O rei, porém, rejeita a oferta do deus Theuth, argumentando que o artificio por este oferecido teria como efeito a substituigao da presenga viva e auténtica da fala por inscrigGes graficas, sinais estranhos, arbitraérios e desprovidos de vida. Mais trégico ainda, pelo menos na opiniao de Platao, seria o fato de que, guarnecidos pela leitura, os alunos nao teriam mais necessidade das ligdes de um professor. Juntamente com a autoridade do professor, sucumbiria também o poder exercido pelo pai sobre o filho, ou do rei sobre o stidito. Significativo, segundo Derrida, é 0 uso, em Platao, da palavra grega phdrmakon, que pode ser traduzida tanto por remédio como por veneno. A divindade oferecia a escrita como um remédio para a meméria, mas, para o rei, ela consistiria num veneno, pois substituiria a meméria, 0 verdadeiro conhecimento, por um simulacro, uma imitagio de segundo grau, que conservaria apenas a aparéncia de conhecimento. Derrida, porém, identifica inimeros pontos de conflito no texto platonico. Em primeiro lugar, como nao considerar contraditéria a atitude de Platéo, legando-nos um texto escrito, no qual ele afirma o cardter indesejavel da escrita? Em segundo lugar, porque recorrer a um mito, e nio ao discurso especulativo, como seria mais coerente, para 340. Ibidem, p. 15 [0 grifo é meu} 341. Platio, Fedro, apud Jacques Derrida, A farmacia de Platao, 2. ed. Sao Paulo : Huminuras, 1997, p. 21 178 Quem tem medo de teoria? ponto de vista: da filosofia e da lingiifstica. E essa discussdo, em especial, que nos interessa. Numa perspectiva filoséfica, de acordo com Derrida, 0 pensamento ocidental nunca abandonou completamente a concepgiio aristotélica, que toma o sinal grafico como representagao de um sinal oral, que por sua vez constituiria, ele proprio, a representagao de uma idéia, ou “afecgio” da alma. Duplamente derivada, a escrita corresponderia, assim, ao que ha de mais exterior na linguagem, enquanto a fala, por estar mais préxima ao pensamento, manteria com este uma relacao privilegiada. A expressaio francesa s’entendre-parler, cujo significado corresponderia a “entender 0 que se diz no momento em que se esta falando”, ilustra de modo particularmente feliz esta condigao da fala: nela “o sujeito afeta-se a si mesmo e refere-se a si no elemento de idealidade”.** Este fonocentrismo merece especial atengao, segundo Derrida, pois estaria na base de todas as oposigGes bindrias a partir das quais o pensamento ocidental tem trabalhado e que sua filosofia buscaria desconstruir: Todas as determinagdes metafisicas da verdade, e até mesmo a que nos recorda Heidegger para além da onto-teologia metafisica, sao mais ou menos imediatamente insepardveis da instAncia do logos ‘ou de uma razaio pensada na descendéncia do logos, em qualquer sentido que seja entendida: no sentido pré-socratico ou no sentido filosdfico, no sentido do entendimento infinito de Deus ou no sentido antropol6gico, no sentido pré-hegeliano ou no sentido pés- hegeliano. Ora, dentro desse Jogos, nunca foi rompido o liame essencial e origindrio com a phoné. De acordo com Derrida, a propria semiologia, ao estabelecer uma distingao entre o significado — idéia ou conceito — e 0 significante —- imagem actistica que representa a idéia —, parte de uma compreensao metafisica tradicional da verdade que afirma uma disting3o entre o inteligfvel e o sensivel, ¢ a prioridade do primeiro sobre 0 segundo. Ela conserva, portanto, “a referéncia a um significado que possa ‘ocorrer’, na sua inteligibilidade, antes de sua ‘queda’, antes de toda expulsao para a exterioridade do ‘este mundo’ sensivel. Enquanto face de inteligibilidade pura, remete a um logos absoluto, ao qual esta imediatamente unido”.“” Esta busca pelo significado 344. Jacques Derrida, 345. Ibidem, p. 13. 346. [bidem, p. 16. José Antonio Vasconcelos 179 inteligivel subjacente 4 qualidade sens{vel do significante, na verdade revela um anseio maior, 0 da pretensdo de encontrarmos um fundamento tiltimo a partir do qual possamos interpretar a realidade em geral e que, como j4 vimos, em Derrida se expressa na busca pela determinagao do ser como presenga: Ja se pressente, portanto, que o fonocentrismo se confunde com a determinagao historial do sentido do ser em geral como presenca, com todas as subdeterminagGes que dependem desta forma geral e que nela organizam seu sistema e seu encadeamento historial (presenga da coisa ao olhar como eidos, presenca como substancia/ esséncia/existéncia (ousia), presenga temporal como ponta (stigmé) do agora ou do instante (nun), presenga a si do cogito, consciéncia, subjetividade como fenémeno intencional do ego etc.). O logocentrismo seria, portanto, solidério com a determinagiio do ser do ente como presenga. 47 Com isso Derrida conclui que “a esséncia formal do significado é a presenga, e 0 privilégio de sua proximidade ao logos como phoné é 0 privilégio da presenga.”“* Esse pressuposto estaria, assim, presente em todo © pensamento ocidental, mas principalmente na filosofia de Hegel, 4 qual Derrida dedica consideravel atengao em obras como Posic¢ées, Margens da Filosofia e Glas. Contudo, Derrida arrisca identificar, na Histéria da Filosofia no Ocidente, pontos de ruptura com a tradigao logocéntrica, em especial nas obras de Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger. O primeiro nos chama a atengo por ter afirmado que “‘a escritura —e em primeiro lugar a sua — nao estd originariamente sujeita ao /ogos ¢ 4 verdade”, e que “esta sujeigdo veio a ser no decorrer de uma época cujo sentido nos seria necessdrio desconstruir”.*” Quanto a Heidegger, em sua disct sobre 0 sentido do ser, ele nos lembra que a “voz do ser” é “silenciosa, muda, insonora, sem palavra, originalmente d-fona’”’, operando, desse modo, segundo Derrida, uma “Ruptura entre o sentido origindrio do ser e a palavra, entre o sentido €a voz, entre a ‘voz do ser’ e a phoné, entre o ‘apelo do ser eo som articulado” [...1"2° Em fungio dessa ruptura, a filosofia de Heidegger nos levaria a 347. Ibidem, 348. Ibidem, 349. Ibidem, 350. Ibidem, José Antonio Vasconcelos 181 como a unido de um sinal fénico, 0 significante, e 0 conceito a ele correspondente, isto é, 0 significado. Desse modo, uma palavra, dentro de um sistema lingiifstico, nao adquire significado de forma positiva, mas sim por sua posigio diferencial em relagiio a outros signos lingiifsticos. Nas palavras de Saussure, “Quando se diz que os valores correspondem a conceitos, subentendem-se que sio puramente diferenciais, definidos nao positivamente por seu contetido, mas negativamente por suas relagdes com outros termos do sistema. Sua caracteristica mais exata é ser 0 que Os outros nao sao”.*™ Nesse sentido, a palavra “gato”, por exemplo, adquire significado porque é diferente de “pato”, “mato” ou “gasto”. Estas, em seu turno, também sao significantes porque se distinguem de outros signos de um determinado sistema lingiifstico. Central para a teoria lingiifstica de Saussure € a tese da arbitrariedade do signo: a significagao, por ser 0 resultado de um sistema de diferencas, é sempre convencional. Nao hé nada na natureza da linguagem em si mesma que nos obrigue a associar a palavra “gato”, por exemplo, a idéia de um felino doméstico. Pelo contrario, podemos utilizar esse mesmo termo com referéncia a outros conceitos j4 estabelecidos pela lingua, ou mesmo atribuir-lhe novos significados, alterando, assim, 0 préprio sistema lingilistico que utilizamos. Ao articular a teoria lingiifstica sassureana a nogao de différance, Derrida nao acredita estar se desviando do pensamento de Sassure, mas, pelo contraério, estaria promovendo o desdobramento légico de seus pressupostos, e, conseqiientemente, a radicalizagio de suas teses. Assim, num sistema de diferengas, um significante naéo nos remeteria a um significado, mas, por um efeito de retardamento, de différance, nos remeteria a outros significantes, e estes a mais outros, numa cadeia intermindvel. Saussure, contudo, recua frente a essas implicagdes da arbitrariedade do signo, ¢ assume dois posicionamentos que Derrida procura entao desconstruir. Em primeiro lugar, Saussure postula uma relagao natural entre © pensamento e a fala, entre 0 significado e o sinal fonico. Em segundo lugar, Sassure afirma a prioridade da fala sobre a escrita, e a derivagao desta em relagao aquela. Neste sentido, a escrita poderia ser considerada como uma armadilha para o lingiiista, conduzindo-o freqiientemente ao erro, e. ao mesmo tempo, como causa de intimeras deformag6es da linguagem falada. Como, porém, podemos dizer que o significante é arbitrdrio, estabelecido 354. Ferdinand de Saussure, Curso de lingiiistica geral, Sdo Paulo : Cultrix, 1972, p. 162 182 Quem tem medo de teoria? por uma convenc¢do, e, ao mesmo tempo, que ha uma relagao natural entre o significante e o significado? Como insistirmos na superioridade da fala sobre a escrita, percebendo, ao mesmo tempo, que esta ameaga abalar as estruturas daquela? Na visdo de Derrida: [Saussure] Faz imprudentemente da visibilidade o elemento sensivel, simples e essencial da escritura. Sobretudo ao considerar 0 audivel como meio natural em que a lingua deve naturalmente recortar e articular seus signos instituidos, ai desta forma exercendo seu arbitrério, esta explicacao exclui qualquer possibilidade de alguma relacao natural entre fala e escritura no exato momento em que a afirma. Ela confunde, entao, as nog6es de natureza e de instituigao, de que se serve constantemente, em vez de demiti-las deliberadamente, 0 que, indubitavelmente deveria ser a primeira coisa a fazer. Ela contradiz, por fim e sobretudo, a afirmagdo capital segundo a qual ‘o essencial da lingua é estranho ao carater f6nico do signo lingiifstico””.°5 Colocando em evidéncia, desse modo, as inconsisténcias da teoria lingiiistica de Saussure, Derrida nao deixa, contudo, de ressaltar que seu propésito nao é o de corrigir a teoria saussureana, ou de substitui-la por uma abordagem alternativa. Pelo contrario, Derrida ressalta que “sao boas as razGes de Saussure, e nao se trata de questionar, ao nivel em que ele o diz, a verdade do que diz Saussure com tal entonagao”.** Nem seria 0 caso, em Derrida, de negar 0 evidente fato de que em nossa cultura, aescrita € derivada da fala. Trata-se, na verdade, de desconstruir 0 edificio metafisico e lingiiistico que se erigiu sobre o preconceito de que a fala nao é sé de fato, mas também de direito, anterior 4 escrita. Como prova de que esta anterioridade nao seja necessdéria, Derrida menciona as escritas nao alfabéticas, como os hieréglifos egipcios ou os caracteres da escrita chinesa. A partir dessas considerag6es, Derrida busca uma redefinigio do conceito de escrita, de modo a poder pens&-la como uma instdncia anterior e mais abrangente que a fala: “afirmar assim, que 0 conceito de escritura excede ¢ compreende a linguagem sup6e, esta claro, uma certa definigao de linguagem 27.357 e de escritura”. 35: Jacques Derrida, Gramatologia, p. 6. Ibidem, p. 47. 7. Ibidem, p. 10. José Antonio Vasconcelos 183 Num primeiro momento, entao, Derrida argumenta que a defini¢ao de escrita, tal como é entendida numa perspectiva saussureana, por uma questao de l6gica, deveria incluir também a prépria fala: Ora, a partir do momento em que se considera a totalidade dos signos determinados, falados e a fortiori escritos como instituigdes imotivadas, dever-se-ia excluir toda relagao de subordinagao natural, toda hierarquia natural entre significantes e ordens de significantes. Se “escritura” significa inscri¢ao e primeiramente instituigao duravel de um signo (e é este 0 tinico nticleo irredutivel do conceito de escritura), a escritura em geral abrange todo o campo dos signos lingiifsticos. Neste campo pode aparecer a seguir uma série de significantes institufdos, “graficos” no sentido estrito e derivado desta palavra, regidos por uma certa relagao a outros significantes institufdos, portanto “escritos” mesmo que sejam “fénicos” 358 A seguir Derrida propée, ent&o, uma nogiio ampliada de escrita, como uma instancia anterior e mais fundamental do que a fala, e que em seu texto recebe o nome de “arquiescritura”: Nao se trata aqui de reabilitar a escritura no sentido estrito, nem de inverter a ordem de dependéncia quando evidente. O fonologismo nao sofre nenhuma objec4o enquanto se conservam os conceitos correntes de fala e de escritura que formam o tecido sélido de sua argumentacio. [...] Desejarfamos, antes, sugerir que a pretensa derivagiio da escritura, por mais real e s6lida que seja, 6 fora possfvel sob uma condigao: que a linguagem “original”, “natural” etc, nunca tivesse existido, nunca tivesse sido intacta, intocada pela escritura, que sempre tivesse sido ela mesma uma escritura. Arquiescritura cuja Necessidade aqui queremos indicar e cujo novo conceito pretendemos desenhar; e que continuamos a denominar escritura somente porque ela se comunica essencialmente com 0 conceito vulgar de escritura. Este s6 péde, historicamente, impor- se pela dissimulacao da arquiescritura, pelo desejo de uma fala expelindo seu outro e seu duplo e trabalhando para reduzir a diferenga. Se persistimos nomeando escritura esta diferenga, € porque, no trabalho de repressiio histérica, a escritura era, 358. Ibidem, p. 54. 184 Quem tem medo de teoria? situacionalmente, designadaa significar o mais temivel dadiferenca. Ela era aquilo que, mais de perto, ameagava o desejo da fala viva; daquilo que do dentro e desde o comego, encetava-a. E a diferenga, nés 0 experimentamos progressivamente, no é pensada sem o rastro [isto 6, trace, arquiescritura].3°? O trabalho de critica ao fonocentrismo ¢ de redefinigao do conceito de escrita, que ja havia sido iniciado em A farmdcia de Platdo, Gramatogia e Margens da Filosofia, tem assim continuidade em “Assinatura, Evento, Contexto”. A dimensao da escrita, desta vez explorada por Derrida, é a da auséncia. Interpretando um texto de Condillac sobre a fungao da escrita, Derrida extrai dali algumas idéias que considera paradigmaticas do pensamento logocéntrico. A fala é considerada por Condillac como um meio de comunicagao, e a escrita, por sua vez, seria uma extensao da fala, uma possibilidade de ampliar a extensdo da comunicacio no tempo e no espago, de modo que uma mensagem, um contetido semAntico possa ser transmitido mesmo na auséncia do destinatério: “Os homens em condigio de comunicarem entre si seus pensamentos por sons sentiram a necessidade de imaginar novos signos préprios para perpetud-los e torna-los conhecidos por pessoas ausentes”.* Ainda na perspectiva condillaciana, nos diz Derrida, “o sentido, 0 contetido da mensagem semantica seria transmitido, comunicado, por meios diferentes, medicagGes tecnicamente mais poderosas, a uma distancia muito maior, mas num meio essencialmente continuo e igual a si mesmo, num elemento homogéneo através do qual a unidade, a integridade do sentido nao seria essencialmente afetada”.**! Como explicar que a escrita se dé na auséncia de um interlocutor e, ainda assim, nao discernir uma ruptura entre falae escrita, mas, pelo contrario, insistir numa continuidade, insistir que esta seja uma continuagaio daquela? Para Derrida, o que a filosofia logocéntrica pressupde de fato, nao € propriamente a auséncia do Ourro no ato da escrita, mas a substituigao deste pela presenga da representacgado. Derrida assinala, porém, que este anseio pela presenga do Outro no texto escrito, por meio da representagao, torna-se vao se considerarmos que a principal caracteristica da escrita seja a iteragao, isto é, a possibilidade de que seja repetida para além do contexto 359. Ibidem, p. 69. 360. Condillac, apud Jacques Derrida, “Assinatura, Evento, Contexto”, p. 15. 361. Jacques Derrida, “Assinatura, Evento, Contexto”, in: Limited Inc., p. 14. 186 Quem tem medo de teoria? antes mesmo e fora de todo horizonte de comunicagao sociolingiifstica; na escrita, isto é, na possibilidade de funcionamento cortado, num certo ponto, de seu querer dizer “original” e sua pertinéncia a um contexto saturiivel e impositivo. Todo signo, lingiifstico ou nio lingtifstico, falado ou escrito (no sentido corrente dessa oposigéio), em pequena ou em grande escala, pode ser citado, posto entre aspas; por isso ele pode romper com todo contexto dado, engendrar ao infinito novos contextos, de modo absolutamente nao saturavel.** Uma vez esclarecido o que Derrida entende por iteragiéo e algumas das consequéncias que ele tira desse conceito para a relacio entre fala e escrita, e entre texto e contexto, podemos nos voltar agora para a desconstrugio derridiana da teoria dos atos da fala, tal como proposta por John Austin e John Searle. 2.2 —A critica de Derrida a teoria dos atos da fala A polémica envolvendo 0 comentario de Derrida as idéias de Austin e 0 conseqiiente aprofundamento dessas questdes na apreciacao de Searle e na trépicla de Derrida nos remete, sem dtivida, a uma radical distingao entre duas tradig6es intelectuais, uma de origem continental, principalmente francesa e alema, & qual, grosso modo, nos referimos sob 0 nome de hermenéutica, € outra, de extragao anglo-sax6nica, que chamamos de epistemologia. Embora essa distingdo ndo possa ser tomada de modo absoluto — seria absurdo negar a existéncia, por exemplo, de importantes epistem6logos franceses e alemaes, ou de hermeneutas ingleses e americanos — ela serve, certamente, para ilustrar duas tendéncias gerais no campo da filosofia. Ambas discutem acerca das condigées de possibilidade do conhecimento em geral, mas enquanto a primeira enfatiza questées de interpretagao textual, a segunda se refere especialmente filosofia analitica e 4 filosofia da ciéncia. Richard Rorty, filésofo americano, assim se refere a essa oposigio: “a epistemologia prossegue na suposigao de que todas as contribuigGes a um dado discurso sao comensuraveis. A hermenéutica é em 364. Jacques Derrida, “Assinatura, Evento, Contexto”, in: Limited Ine., p. na tradugdo € meu] José Antonio Vasconcelos 187 grande parte uma luta contra essa suposi¢ao”.*** Rorty, naturalmente, dedica todo 0 capitulo de um livro para discorrer sobre os desdobramentos dessas proposigGes aparentemente simples, mas 0 que me interessa ressaltar aqui é o fato de que os termos por ele utilizados — comensurabilidade e incomensurabilidade — prestam-se muito bem 4 compreensio do debate e do posicionamento de Austin/Searle e Derrida, respectivamente. Outra distingao que cumpre fazer antes de prosseguirmos, é aquela referente a duas linhas distintas dentro da propria tradigio anglo-sax6nica de pensamento filoséfico, uma que afirma a necessidade de constituirmos uma linguagem separada, puramente légica, prépria do conhecimento cientifico e livre de ambigiiidades — 0 empirismo légico —, e outra que afirma a prioridade e a pertinéncia de um estudo analitico da linguagem comum do cotidiano — a teoria dos atos da fala, propriamente dita. Estas duas diferentes abordagens para 0 estudo da linguagem em geral nos remetem As duas distintas fases no pensamento filoséfico de Wittgenstein. No Tratactus Logico-Philosophicus, a primeira das duas obras que publicou, Wittgenstein argumenta que “o mundo consta de todos os fato que efetivamente ocorrem e que por isso podem ser ‘ditos’ por proposigGes. Estas sio consideradas verdadeiras ou falsas conforme retratem (configurem) ou nao os fatos que ocorrem. A linguagem é construfda para falar acerca do mundo”.*” Seguindo esta diregio apontada por Wittgenstein, o empirismo légico, representado, sobretudo, por Moritz Schlik, Rudolf Carnap e Karl Popper, entre outros, buscou constituir uma linguagem e um conjunto de critérios para garantir o rigor e a legitimidade do conhecimento cientifico. A metaffsica, nesse sentido, por constituir-se de proposigdes nao verificdveis empiricamente, era descartada de antemao como sendo “vazia de significado”. Na segunda fase de seu pensamento, representada principalmente pela obra Investigacées Filoséficas, Wittgenstein opera uma reviravolta em relagao a sua concep¢ao anterior de linguagem e passa a fazer uma intensa e extensa critica 4 fungao designativa da linguagem, que constitufa o cerne do Tratactus. Nao que em sua segunda fase Wittgenstein negue essa fungao, mas a partir de entao ele j4 nao a considera mais a principal caracteristica da 365. Richard Rorty, A filosofia e o espelho da natureza, Rio de Janeiro : Relume- Dumard, 1994, p. 312. 366. Inés Lacerda Aratijo, Introdugao & filosofia da ciéncia, Curitiba : Editora da UFPR, 1993, p. 57. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 190 Quem tem medo de teoria? como condigao de possibilidade de suas agGes simbélicas. Portanto, sua linguagem s6 se compreende a partir da organizagio institucional da forma de sociabilidade na qual ele esta situado, que é a raiz de seu comportamento no mundo.36? A critica de Derrida a teoria dos atos da fala nao se dirige tanto no sentido de negar sua validade, mas sim de radicalizar algumas posigdes que, na visdo derridiana, Austin parece relutante em assumir. Numa perspectiva pés-estruturalista, poderiamos dizer que Austin deu o primeiro passo no sentido da desconstrugao das proposi¢Ges designativas, afirmando que estas consistem em casos especiais de sentencas performativas. Austin teria dado um passo importante também ao enfatizar a importancia do contexto social em que a comunicagio se dé. Porém, ao discorrer sobre a operagio das sentengas performativas, Austin exclui de seu campo de consideragées as sentengas nao “sérias”, isto é, aquelas proferidas em ensaios ou encenagGes teatrais. Na visio de Austin, tal uso da linguagem se da parasiticamente em relagao aos atos de fala realizados em contextos sociais auténticos: “A linguagem, em tais circunstancias”, nos esclarece Austin, “€, de maneiras especiais — inteligiveis — usada nao de maneira séria, mas de modos parasiticos sobre 0 uso normal — modos que se colocam sob a doutrina dos estiolamenios da linguagem. Tudo isso nés estamos excluindo de consideragao. Nossas elocugGes performativas, felizes ou nao, devem ser entendidas quando empregadas em circunstAncias normais”.*” Para Derrida, “Austin exclui, pois, com tudo 0 que ele chama de sea- change, 0 ‘nao-sério’ , 0 ‘parasitério’ , dando conta disso 0 ‘estiolamento’, 0 ‘nao-ordindrio’ (e com toda a teoria geral que nao seria mais comandada por essas oposig6es), aquilo que ele, contudo, reconhece como a possibilidade aberta de comunicagao”."”' Isto porque, para dar conta dessas circunstancias “anormais” da fala, Austin se vé compelido a reintroduzir a nogao de intencionalidade como determinante, pois um ntimero ilimitado de fatores contextuais, quando levados em consideragdo, poderia fazer com que um 369. Manfredo Aradjo de Oliveira, Reviravolta lingiifstico-pragmatica na filosofia contemporanea, p. 166. 370. John Austin, How to do things with words, Cambridge : Harvard University Press, 1975, p. 22 371. Jacques Derrida, “Assinatura, Evento, Contexto”, in: Limited Inc., p. 31. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Capitulo IV Q que esta em jogo no artigo de Harlan? No final do primeiro capitulo apresentei, em grandes linhas, o debate te6rico que se desenvolveu nas paginas da American Historical Review a partir da publicagéo do artigo “Intellectual history and the return of literature”, do historiador intelectual americano David Harlan.*”* Retomarei agora sucintamente algumas das principais idéias apresentadas naquele artigo, para entao discutir algumas das tensGes e contradig6es nele presentes, assim como também suas implicagées para a teoria da Histéria e, mais especificamente, para 0 dominio da Hist6ria Intelectual. Nao é meu proposito deter-me numa critica as idéias de Harlan, mas tomo este autor como representativo de um corrente que, inspirada por recentes avangos em teoria literariae filosofia da linguagem, tem proposto abordagens inovadoras para o estudo da Histéria. Ao final, buscarei discutir as idéias e as criticas a Harlan a partir de uma perspectiva mais ampla, de modo a incorporar mais efetivamente a contribuicao de outros autores ligados ao debate. 1. As insuficiéncias de Harlan e de seus criticos Lendo © conjunto de textos que compdem o debate, é interessante notar que, subjacente as quest6es tratadas explicitamente, jaz um nimero de questées ainda mais pertinentes, mas que nao sao imediatamente evidentes. Tomemos, por exemplo, o primeiro artigo de Harlan. 374. David Harlan, “Intellectual history and the return of literature”, American Historical Review, 94 (June 1989), p. 581-609. 194 Quem tem medo de teoria? Aparentemente ele polemiza com Quentin Skinner, apresentado como 0 autor de orientagao contextualista por exceléncia. Porém, se observarmos atentamente, 0 texto de Skinner data de 1975, ao passo que a publicagao do artigo de Harlan foi o resultado de um férum realizado em 1989 — quatorze anos de diferenga entre ambos! Seria coerente afirmar, portanto, que 0 principal alvo de David Harlan nao é Quentin Skinner, mas David Hollinger, Thomas Haskell, Dorothy Ross, George Stocking, Joyce Appleby etc., autores americanos, também de orientagéo contextualista, e cronologicamente mais pr6ximos de Harlan. Nao quero negar com isso a imensa influéncia de Skinner na Histéria Intelectual, mas sim destacar 0 fato de que a reagio ao artigo de Harlan nao veio diretamente de Skinner, mas sim dos contextualistas americanos. Estes autores, capazes de compreender os cédigos inacessiveis aos “nao iniciados” na historiografia, teriam assim agido de forma absolutamente légica ao reagir 4s provocagGes de Harlan. Meu propésito, contudo, nao € o de argumentar decisivamente que a “verdadeira” intengdo de Harlan seria a de atingir autores aos quais ele se refere somente de modo marginal e ocasional em seu texto. Nao que a tentativa de recuperacao da intencionalidade do autor na interpretacaio de seu texto — no caso, do artigo de Harlan — seja um empreendimento vio e fatil como sugere o préprio Harlan. Ao apontar essa primeira incongruéncia no texto de Harlan, porém, como uma possibilidade de significado na interpretagio de seu artigo, eu gostaria de ir além, identificando outros pontos de tens&o no debate. Nesse sentido, perseguirei uma abordagem de inspiragao derridiana. Derrida, por exemplo, ao discutir a nogao de différance, afirma que “essa falta silenciosa a ortografia, devo dizé-lo desde ja, serds menos, hoje, meu propésito justificé-la, menos ainda desculpa-la, do que agravar-lhe 0 jogo com uma certa insisténcia”.*”* De modo anélogo, procurarei agravar as tensdes presentes no texto de Harlan, explicitando nao s6 a ldgica, mas também a retérica de sua argumentacao, de modo a demonstrar que, num nivel mais profundo de implicagées, o texto de Harlan acaba sendo constrangido a significar exatamente 0 oposto daquilo a que ele explicitamente se propée a afirmar. Mais especificamente: seu artigo, que, num nivel l6gico e literal, repetidamente assevera que a teoria literaria ea filosofia da linguagem ameagam o entendimento que os profissionais de 375. Jacques Derrida, “A diferenca”, in: Margens da filosofia, Campinas : Papirus, 1991, p. 34. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. José Antonio Vasconcelos 199 reagao, de um lado, a estudos — principalmente obras de cardter didatico — que afirmavam a relevancia dos grandes textos da tradi¢do de pensamento politico em fungio dos valores a-temporais por eles veiculados, e, de outro lado, contra uma tendéncia empirista na ciéncia politica, representada, sobretudo, por David Easton, que manifestava a tendéncia a relegar a Histéria do pensamento politico para um segundo plano.*** Embora mais plausivel que a explicagéo de Harlan, a explicagio de Tuck ainda nao pode ser considerada definitiva, pois levanta uma polémica com a opiniao de John Gunnell acerca do “verdadeiro”, ou, mais exatamente, do “principal” alvo das criticas de Skinner, uma vez que estas se dirigem a um ntimero consideravelmente grande de autores. As incongruéncias que podemos identificar no texto de Harlan com relagdo a andlise que este faz dos textos de Skinner, contudo, nao se esgotaram ainda. Vejamos, por exemplo, como ele se refere ao impacto do pés- estruturalismo na hermenéutica, dando assim a entender que a proposta de Skinner seria a de uma volta a antigos modos de interpretagio: “Exatamente como estévamos acostumados a fazer antes da chegada dos pés- estruturalistas, podfamos ler um texto hist6rico e perscrutar através de sua linguagem como se estivéssemos olhando através de uma janela, descobrindo todo tipo de coisa sobre 0 autor e 0 mundo no qual o autor vivia, quase como se tivéssemos nos tornado um dos espides de Deus”.*** Além disso, Harlan insiste em representar 0 objetivo de Skinner como se este fosse nado mais que resgate da intencio autoral por meio de um estudo do contexto: “Skinner [...] argumentou que podemos despir 0 texto de seus significados acumulados, reconstruir a situagdo histérica em que ele inicialmente foi escrito, reinserir 0 texto em seu contexto reconstrufdo e ali discernir 0 seu sentido inerente e pré-natal’.*"’ Por fim, Harlan retrata a situagdo de Skinner como se este estivesse acuado frente aos ataques da critica p6s-estruturalista. De acordo com Harlan: Em meados dos anos 80, Skinner viu-se chamado a defender uma posigao ha apenas dez anos atras ele havia intitulado triunfalmente de “a ortodoxia emergente.” Como se pode esperar, suas declaragées 385. Richard Tuck, “History of political thought”, in: Peter Burke (org.). New perspectives in historical writing, University Park, Pennsylvania State University Press, 1995, pp. 193-205. 386, David Harlan, “Intellectual History and the return of Literature”, p. 586. 387. Ibidem, p. 588. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 210 Quem tem medo de teoria? um conjunto de significados estaveis e referéncias externas”.‘'* Em fungao disso as narrativas se encontram comprometidas, pois, “sendo feitas de palavras, elas também comegam a gerar leituras miltiplas, e significados divergentes”.*'’ Portanto, conclui Harlan, “antes de os historiadores poderem colocar um texto em seu suposto contexto, eles devem (re)constituir esse contexto — 0 que jd é, em si, um ato poético — e interpreté-lo, exatamente como se fosse ele proprio um texto”.*'° Assim, depois de tecer duras criticas aos historiadores de orientagdo contextualista — nao s6 Quentin Skinner, mas também J. G. A. Pocock, David Hollinger e Thomas Haskell —, Harlan nos oferece seguinte conclusao: Mas ele [0 contextualismo radical] nao nos deu uma respostaefetiva as criticas, dividasc suspeitas que os pés-estruturalistas levantaram acerca da historia intelectual: acrenga de que a linguagem sejaum jogo aut6nomo de transformagoes nao intencionais ao invés de um conjunto estdvel de referéncias, uma obstinada economia de oposigdes e diferengas que constitui mais do que reflete; as conseqiientes dtividas sobre as capacidades referencial e representacional da linguagem; a crescente suspeita de que a narrativa possa ser incapaz de veicular um significado fixo, determinado e acess{vel; e, finalmente, 0 eclipse do autor como um sujeito auténomo.4!7 Ora, se a linguagem é marcada pela indeterminagao, se as palavras sao prolificas, se os significantes nado nos remetem a significados estaveis, mas a uma cadeia infinita de outros significantes, e, por conseqiiéncia, e analogamente, os textos se dissolvem na trama da intertextualidade, entao, como 0 atesta o préprio Harlan, de embalo, perdemos “qualquer distingao significativa entre ‘grandes livros’ e ‘livros de historinhas’.”*'* Entretanto, numa virada surpreendente e, diria mesmo, desnorteante, Harlan nos assevera que “ninguém, nem mesmo entre os pés-estruturalistas, tem qualquer dificuldade em distinguir os ‘grandes livros’ dos ‘livros de historinhas’.”*"° 414. Ibidem, p. 585. 415. Ibidem, p. 582. 416. Ibidem, p. 595. 417. Ibidem, p. 596. 418. Ibidem, p. 597. 419. Ibidem, p. 597. José Antonio Vasconcelos att Ora, se toda a argumentagao anterior se dirigia no sentido de afirmar que a énfase do processo de significagao recai sobre a leitura mais que sobre a produgao do texto, como se justifica essa afirmagio, de que existem caracteristicas intrinsecas aos préprios textos que os tornam “grandes” ou “pequenos”? Ora, para justificar essa reviravolta teérica, Harlan langa mao de conceitos desenvolvidos por Dominick LaCapra, Ronald Barthes e Frank Kermode. De LaCapra Harlan obtém a diferenga entre “trabalhos complexos” e “documentos”. De acordo com a interpretagdo de Harlan, “os ‘trabalhos complexos se distinguem [dos documentos] por sua tendéncia a subverter os protocolos e convengoes aceitos de leitura”.*”” E, citando LaCapra, Harlan explica que “os trabalhos complexos desenvolvem a fungao contestatéria de questionar [os entendimentos recebidos] de uma maneira que tenha implicag6es mais amplas para a condugao da vida.”*?! De Barthes, Harlan retira a oposi¢ao entre textos “legiveis” (readerly/isible) e “escritiveis” (writerly/scritible): enquanto os primeiros “obedecem as convengées aceitas de leitura e interpretagdo”, os segundos “desafiam as convengées que isolam e identificam 0 significado no texto legivel”, fazendo assim que “o leitor, enquanto 1é, esteja também compondo mentalmente um texto alternativo ou ‘virtual’.”** Finalmente, de Frank Kermode, Harlan busca a nogio de “trabalhos candnicos”, que, em suas palavras, seriam “aqueles textos que tém gradualmente se revelado multidimensionais e ‘omnisignificantes’, aqueles trabalhos que produziram uma plenitude de significados e interpretagdes, sendo que somente uma pequena porcentagem deles se faz presente numa nica leitura. O grande problema de Harlan nesta passagem consiste no fato de que ele no faz muito mais do que simplesmente apresentar e explicar ligeiramente esses conceitos buscados nos escritos de LaCapra, Barthes e Kermode. Ele nao explana sobre sua origem, a problematica que eles t¢m como objetivo elucidar, nem comenta as implicagdes mais amplas desses conceitos para uma teoria geral do texto. Poderfamos, é claro, justificar essa atitude alegando que as dimensées de um artigo nado comportariam tais 420. Ibidem, p. 598. 421. Dominic LaCrapra, apud David Harlan, “Intellectual history and the return of literature”, p. 598. 422. David Harlan, “Intellectual history and the return of literature”, p. 597. 423. Ibidem, p. 598. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. José Antonio Vasconcelos 229 concepgao de linguagem, nao podemos deixar de salientar, tem implicagdes éticas bastante sérias. Se, devido ao cardter arbitrario do signo, e, por conseqiiéncia, 4 dimensio polissémica do texto, podemos extrair qualquer significado de qualquer texto, isso abre também a possibilidade de que possamos interpretar os vestigios do passado de modo absolutamente livre. Nesse sentido, uma reinterpretagao do Holocausto, por exemplo, pode chegar a conclus6es altamente polémicas. Mas 0 que a critica ao pés-modernismo e ao p6s-estruturalismo freqiientemente deixa de ressaltar, € que 0 texto exerce um papel ativo que vai além do simples estabelecimento de limites para a interpretagéo. A leitura - mesmo numa perspectiva derridiana — deve ser entendida como uma dinamica dialdgica. Isso significa que o texto abre perspectivas, transforma 0 leitor, levando-o muitas vezes a mudar radicalmente sua maneira de ver o mundo. E mais do que isso: é a leitura de textos — numa ampla acepgio dos termos “leitura” e “textos” — que d4 forma & nossa visio de mundo. “O mundo”, diz Ricoeur, numa perspectiva francamente fenomenolégica, “é 0 conjunto das referéncias abertas por todos os tipos de textos descritivos ou poéticos que li, interpretei e amei.”**° Se fizermos a énfase da interpretagao recair sobre o ato da leitura, e mais do que isso, sobre a figura do leitor, nao ha como explicar adequadamente de onde vem a novidade, nem como esse leitor se transforma no ato de ler. Toda interpretagio possivel ja estaria dada a priori e a leitura seria circular e redundante: as tnicas idéias que poderiamos alcangar seriam aquelas que ja temos de antemio. Se, pelo contrario, conferirmos ao texto um papel ativo, embora nao exclusivo, na producio de significado, um papel decorrente de sua dimensdo configurante, torna-se mais facil entender como © leitor se vé afetado pelos textos que 1é. O leitor e o texto, portanto, relacionam-se dialogicamente, sem que qualquer primazia seja atribuida ao primeiro. Ou, nas palavras de Ricoeur: “Se a tessitura da intriga [isto é, 0 enredo] pode ser descrita como um ato do juizo e da imagina¢ao produtora, é na medida em que esse ato é obra conjunta do texto e de seu leitor, como Aristoteles dizia que a sensacao é obra comum do sentido e de quem sent Na verdade, creio que nada disso é realmente estranho a Harlan, mesmo porque a tradic¢do interpretativa rabinica, que ele conclama como modelo para novas abordagens no campo da Histéria Intelectual, destaca um texto 456.NPaul Ricoeur, Tempo e narrativa, vol. 1, p. 122. 457. Ibidem,p. 118. 230 Quem tem medo de teoria? em especial — a Torah — como privilegiado em relagdo aos demais. E, se assim for, é também o texto, e nao sé a leitura, que devemos considerar como pleno de significado. Contudo, devido a interpretagao particular que faz da filosofia de Derrida, e talvez mais do que isso, 4 polémica com Quentin Skinner, Harlan acaba levando ao extremo a valorizagio da leitura, em detrimento dos momentos anteriores, de prefiguragao e configuragao do texto. A teoria de Ricoeur acerca da narrativa, desse modo, nos propicia condig6es teéricas para afirmarmos, como Harlan, que ha, de fato, uma diferenga entre “grandes” e “pequenos” textos. Se determinado texto desafia nossas convengées de interpretagio, se ele traz algo de novo a nosso horizonte, se nos faz mudar nossa maneira de ver o mundo, isto se deve ao fato de que a configuragao poética que nele se operou é de um valor superior a de outro texto que pouco consegue afetar 0 horizonte de seus leitores. Seguindo Ricoeur, portanto, temos razGes para crer que 0 canone ocidental, apesar de suas insuficiéncias, é realmente algo mais que um grande engodo, e que, definitivamente, existem padrdes de comparagao que nos levam a reconhecer uma distingao significativa entre as obras de Carlos Drummond de Andrade e as de Paulo Coelho. Resta-nos ainda um ultimo problema em relagao ao artigo de Harlan: sera mesmo que intertextualismo e contextualismo constituem abordagens mutuamente excludentes? Para discutir essa questo é necessario esclarecer © que devemos entender por “contexto histérico”. A interpretagao de um texto pressup6e que estabelegamos relagGes entre esse texto e uma configuragao textual a qual damos 0 nome de “contexto”. Dominick LaCapra, discorrendo sobre essa questdo, identifica basicamente seis diferentes tipos de contexto com os quais a pesquisa historiografica trabalha: intengdes, motivagdes, sociedade, cultura, 0 corpus e estrutura.** Tal lista, e isso 0 proprio LaCapra admite, nao esgota as possibilidades do historiador, mas ainda assim é bastante abrangente. O grande erro do historiador & considerar 0 contexto como um substrato estdvel e nao problemitico a partir do qual podemos identificar o significado de determinado texto. Pelo contrério, 0 contexto hist6rico nao € um referente, mas sim um outro texto, que pode ser lido, interpretado e com qual podemos gerar significados muiltiplos e até mesmo conflitantes. Nesse sentido, é valida a critica de 458. Dominick LaCapra, “Rethinking Intellectual History and reading texts", Modern European intellectual history, p. 57 José Antonio Vasconcelos 231 Harlan a Skinner, quando este julga identificar nas intengdes do autor uma realidade a partir da qual podemos determinar de forma un{voca o significado de um texto. Como o historiador, para realmente fazer Histéria, tem de lidar com a dimensado temporal dos objetos que estuda, identificando mudangas e permanéncias, ele precisa identificar no fluxo dos acontecimentos algo que nao mude, algo que sirva de fundamento para as relagGes que ele estabelece entre diferentes fendmenos. Mas este “algo” imutavel, este “padrao” ou “estrutura” nao pode ser entendido como um atributo do passado em si, € sim como um produto da configurag’o poética operada pelo autor do texto historiografico. Sem esse entendimento, seriamos obrigados a aceitar, por exemplo, uma tnica nogio de estrutura, que corresponderia assim a estrutura da realidade hist6rica. Isto, contudo, equivale a dizer que, se a andlise estrutural de Karl Marx esta correta, as andlises estruturais de Michel Foucault e Fernand Braudel, que partem de entendimentos diferentes da estruturalidade da Histéria, estariam necessariamente equivocadas. O contexto, pelo contrario, deveria ser visto como 0 estabelecimento até certo ponto arbitrario de um ponto de referéncia, de modo que possamos discernir as relagdes temporais entre diferentes elementos do campo hist6rico. E importante nao deixar de salientar que, embora 0 contexto histérico seja de fato um efeito da configuragio poética e nao um sistema invariavel de referentes, embora seja mais uma invengdo do que uma descoberta, isso nao significa que podemos abrir mao dessa nogao. Assim como podemos conceber a mecAnica celeste estudando o movimento dos astros em relagaio ao Sol, como faz Copérnico ou em relagio a Terra, como no sistema ptolomaico, mas nao sem relag3o a “algo”, também nao podemos deixar de levar em consideragio um contexto, ainda que este possa nao ser 0 mesmo em diferentes estudos histéricos. Mesmo porque é a nogao de contexto que torna possivel a selec¢ao do que conta ou nao como fato histérico. E em vista de determinado contexto hist6rico que certos fatos sao significativos e outros nao. Nesse sentido nao ha nada de errado numa abordagem intertextual como aquela proposta por Harlan. Determinados textos selecionados pelo historiador se tornariam, assim, 0 contexto segundo 0 qual podemos conferir significado ao texto que nos serve de objeto de estudo. Como venho utilizando até 0 momento certos insights das teorias de Ricoeur, é interessante deixar claro que nao concordo inteiramente com as idéias desse autor, especialmente quando este afirma de modo categérico que podemos distinguir, com base em certos critérios inerentes ao préprio texto, quando se trata de uma narrativa hist6rica e quando se trata de uma narrativa de ficgao. Tais critérios, de acordo com Ricoeur, dizem respeito ao Ambito dos procedimentos, das entidades e da temporalidade. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Nese livro José Antonio Vasconcelos apresenta um mapeamento da conjuntura intelectual norte-americana do fina! da década de 1980 a nossos dias, buscando assim explicar o confronto entre o pos-modernismo e seus adversarios no campo da historiografia. Mais do que uma corrente tedrica bem articulada, o pds-modernismo constitui na verdade um conjunto difuso de posicionamentos, cuja caracteristica comum consiste na recusa dos grandes modelos explicativos. No caso especifico da historiografia, os autores pés- modernistas revelam uma acentuada tendéncia a questionar a objetividade na escrita da Historia. A obra tem como fio condutor uma polémica desenvolvida nas paginas da American Historical Review, envolvendo autores como David Harlan, David Hollinger, Joyce Appleby, Allan Megill, Russell Jacoby e Dominick LaCapra. O principal ponto de discordia nesta discussdo diz respeito a possibilidade — ou impossibilidade — de recuperar as intengdes primarias dos autores de textos antigos a partir de um estudo do contexto em que tais autores viveram. Se optarmos pela negativa, dizem-nos os teéricos do pds-modernismo, isto significaria um maior grau de autonomia para o historiador com relacao a utilizagdo de suas fontes. Ao descartar a necessidade do contexto como referéncia obrigatéria na reconstrucdo do passado, argumentam Os pos-modernistas, os historiadores estariam se abrindo a novos modos de representacao dentro de seu campo de estudo. Trata-se de um debate extremamente rico, no qual as questdes levantadas ultrapassam as fronteiras da Histéria enquanto disciplina e estabelecem um proficuo dialogo com a Teoria Literaria e a Filosofia da Linguagem. 74

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