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Descobrindo “novos” caminhos: 0 historiador e a aborgadem da cultura politica’ Surama Conde Sé Pinto Resumé Dans une article que a é&é publié au début des années quatre-vingt-dix, Serge Berstein, Professeur d‘histoire contemporaine du Institut d'études politique de Paris a souligné étre la culture politique une clé qu'introduit la diversité, du social, des rites, des symboles, ld, ot regne le parti, Uinstitution, Vimmobile. Selon cet awieur, elle permet de sonder les reins ot les coeurs des acteurs politiques, son étude est donc plus qu'enrichissante, est indispensable (BERSTEIN, 1992). Cet article met en relif les possibilités d’use et les risques que U'approche de la culture politique, presenté aujourd'hui comme une des propositions pour la renovacion des érudes de histoire politique, peut offrir aux historiens especialistes des societés anciennes, modernes ou contemporaines. 1. Primeiras Questoes Nos tiltimos anos, no campo da producio académica mundial, vem crescendo sensivelmente a publicagio de andlises no Ambito da cultura politica. A aparigo de resenhas que inventariam e avaliam esta produgio (KRISCHKE, 1997; RENNO, 1998; KUSCHNIR, CARNEIRO, 1999) & omelhor exemplo dessa tendéncia. Oaumento de interesse por este enfoque pode ser relacionado a um conjunto de fatores. Um celes, sem diivida, diz respeito as transformagécs histéricas mais amplas processadas nas tiltimas décadas. Os colapsos de regimes comu- nistas eo florescimento de nacionalismos acabaram estimulando o debate sobre temas como legitimidade e identidade, fatores fortemente influen- ciados por aspectos culturais. Na mesma medida, 0 processo de redemo- cratizagdo na América Latina com o fim dos regimes autoritarios nos anos Phoinix, Rio de Janeiro, 7: 367-378, 2001. 367 1980 impulsionou sensivelmente o interesse de estudiosos de diferentes reas pela investigagio de valores e condutas consonantes com os funda- mentos sociais e civis da democracia.* Por outro lado, seria um equivoco considerar apenas estes fatores de natureza exdgena como os tinicos responsaveis pelo aumento do néimero de autores contempordneos que hoje se dedicam a estudos de cultura po- litica. A prépria dinamica interna da pesquisa no campo das Ciéncias So- ciais em geral, onde desde os anos 1970 vém ocorrendo deslocamentos fundamentais com o questionamento de modelos explicativos até entao dominantes, também tem deserapenhado um papel de destaque neste pro- cesso. Referimo-nos, particularmente, ao que alguns autores vém denomi- nando como crise dos paradigmas estruturalistas, ou seja, do marxismo, do funcionalismo e de uma vertente da Escola do Annales (LEVI, 1992: 134; CHARTIER, 1994: 100). Tal movimento, que tem sido traduzido na recusa a explicagées deterministicas, metodologicamente quantitativistas marcadas pela “prescnga” de atores coletivos abstratos, nao localizaveis no tempo € no espaco, vem forcando as Ciéncias Humanas a rever n&o sé suas ambig6es totalizadoras mas também suas explicagées racionalistas/ materialistas. Mas 0 que se entende por Cultura Politica? Quais as implicagdes tedricas deste conceito e quando ele surge como categoria analitica? Na verdade, os conceitos e categorias da teoria da cultura politica — como subculturas politicas, cultura politica das elites, socializagio politi- cae mudanga na cultura — nao sao uma inovagao do século vinte, estiio presentes de forma subentendida desde os primérdios da Ciéncia Politica na obra de autores como Maquiavel, Montesquieu, Rousseau e Tocquiville, além, € claro, de Plato e Ariststeles (ALMOND, 1990: 139-140; SOA- R D’ARAUIJO e CASTRO, 1995: 19-22). Contudo, a principal cor- rente de estudo contemporanea responsével pela divulgagio em larga es- cala do conceito localiza-se nos anos 1960, sendo conhecida como Escola Desenvolvimentista. 2. A Escola Desenvolvimentista A Escola Desenvolvimentista, também deaominada corrente cultu- ralista, formada a principio por cientistas politicos norte-americanos, en- tre os quais se destacam as figuras de Almond e Verba, autores de The Civic Culture,’ nasccu vinculada a uma preocupagdo especifica: a de pen- 368 Phoinix, Rio de Janeiro, 7: 367-378, 2001. sar as condigées de desenvolvimento dos sistemas politicos democraticos (ALMOND, VERBA, 1963). O principal objetivo destes estudiosos era o de discutir 0 papel da cultura politica no funcionamento dos regimes de- mocraticos. A génese do conceito de cultura politica nao pode, nesse sen- tido, ser dissociada da idéia de um modelo de comportamento politico préprio das democracias participetivas. fato de estacorrente ter nascido apenas nos anos 1960 nao é fortui- to. O surgimento da Escola Desenvolvimentista esta intimamente relacio- nado & desilusio com relagio as expectativas iluministas e liberais e 0 avanco de técnicas de pesquisa e abordagens metodoldgicas observados no perfodo. No que diz respeito 20 primeiro fator, os dois grandes conflitos que marcaram 0 nosso século (a Primeira e Segunda Guerras Mundiais) encar- regaram-se de frustrar as expectativas relativas a inevitabilidade quanto ao sucesso da raga humana na solugao pacifica de seus principais proble- mas. Igualmente importante, 0 desenvolvimento de métodos de amostra- gem, a sofisticagiio dos processos de entrevistas, a utilizagio de técnicas de escala e de pontuagio e o uso apurado de andlises e inferéncias estatis- ticas permitiram aos pesquisadores tratar questdes de natureza complexa com maior objetividade. Sem diivida, uma das grandes inovagées ensejada por este projeto foi a perspectiva de se trabalhar com as dimensGes subjetivas da politica, ou seja, valores © normas que regem 0 comportamento politico de diferen- tes atores. A politica para os culturalistas era concebida como umaesfera auténoma que por isso mesmo poderia ser percebida, analisadae avaliada pelos individuos de uma determinada sociedade num determinado perio- do de tempo. ‘Almond e Verba importaram 0 conceito de cultura da Antropologia, no sentido assumidamente simplificado de orientagao psicolégica em re- lagSo aos fatos sociais. A cultura (tal como definida na nogao de cultura politica) parte desse principio considerando a existéncia de padrdes de comportamento relativamente estdveis € consistentes em uma determina- da sociedade num determinado periodo de tempo. Com base nestes pressupostos, os dois estudiosos definiram cultura politica como “ a expressdo do sistema politico de uma determinada so- ciedade nas percepgées, sentimentos e avaliagdes da sua populagéo” (ALMOND, VERBA, 1963:13). Photnix, Rio de Janeiro, 7: 367-378, 2001. 369 De acordo com o modelo teérico destes autores, as culturas politicas so derivadas do cruzamento de duas dimensées basicas. A primeira € 0 tipo de orientagao com relagao aos objetos politicos, podendo ser: cognitiva (se revela num conjunto de conhecimentos e cren- as relativos ao sistema politico), afetiva (se revela nos sentimentos nutri- dos em relagao ao sistema, as suas estruturas) e avaliativa (combina infor- mag6es, sentimentos e critérios de avaliacio). A outra dimensio bdsica é 0 tipo de objeto politico ao qual se desti- nam essas orientagGes: o sistema politico como uma totalidade, as estrutu- ras de incorporagaio das demandas individuais e coletivas, as estruturas executivas e administrativas encarregadas de dar respostas as demandas individuais e coletivas € a percep¢Ao do sujeito como ator politico. A partir desse cruzamento foi criada uma tipologia segundo a qual as culturas politicas seriam do tipo: paroquial, de sujeigdo e de participacdo (BOBBIO, 1998: 306). A cultura politica paroquial seria aquela caracterfstica das socieda- des simples, sem instituigdes estritamente politicas, sendo incompleta a diferenciacao entre as estruturas religiosa e politica, com baixos niveis de participaco politica. Jé a de sujeicdo seria a observada em sociedades onde os individuos dirigem suas percepgées, sentimentos e avaliagdes prioritariamente para as estruturas executivas e administrativas encarre- gadas de dar respostas as demandas individuaise coletivas. Finalmente, a cultura politica de participagdo seria aquela que caracterizaria os siste- ‘mas nos quais as percepgées, sentimentos e avaliagdes sobre o sistema poli- tico sao equilibradamente disiribufdos entre as estruturas de input e output. 3. As criticas a corrente culturalista A recepcao desse modelo teérico néio foi das melhores. Na verdade, a corrente culturalisia se desenvolveu comprimida entre duas tradigdes da Ciéncia Politica: 0 paradigma institucionalista e 0 paradigma socioe- conémico. O paradigma institucionalista, dominante na Ciéncia Politica con- temporanea, reconhece a autonomia dos arranjos institucionais e constitu- cionais com relagio as caracteristicas culturais da sociedade. Ou seja, se- gundo este paradigma, uma vez estabelecidas as regras de competico — a moldura constitucional —, é possivel nao apenas predizer satisfatoria- 370 Phoinix, Rio de Janeiro, 7: 367-378, 2001. mente os padrées de interacio entre os agentes racionais, mas também quais os resultados esperados dessas interagoes. Por outro lado, 0 paradigma socioeconémico, como 0 préprio nome ja indica, enfatiza a importancia de fatores socioecondmicos na definigio da performance das instituigdes democréticas e mesmo no estabelecimen- to da democracia como regime politico. Nio é de se estranhar, nesse sentido, que a teoria da cultura politica tenha sido duramente criticada por movimentos académicos tanto da es- querda quanto da direita. As correntes de pensamento de esquerda questionaram a corrente culturalista com base no argumento da preponderancia dos aspectos ma- teriais sobre as atitudes e valores. Jéa critica da direita teve como base 0 argumento da teoria da escolha racional, ou seja, baseou-se no pressupos- to da existéncia de atores racionais e maximizadores de curto prazo. Para 08 criticos da esquerda e da direita o estudo da cultura politica era, portan- to, desnecessario e dispendioso, tendo em vista que as motivagdes para a ago politica seriam sempre definidas pelo cdlculo custo/beneficio. Estas nao foram as tinicas criticas enderecadas a corrente culturalista. Almond e Verba foram acusados de erigirem um modelo teGrico que nao estabelecia claramente as relagGes entre cultura politica e estrutura politi- ca (ou seja, de nao definirem de forma nitida, o papel da cultura politica no processo politico), de nao explicarem quais as varidveis associadas & formagao das culturas politicas mas apenas fazerem referéncia aos vetores pelos quais as culturas politicas se propagam (canais de socializacao: fa- miflia, escola, sistema universitério e mfdia), de etnocentrismo, pois ado- taram 0 modelo politico norte-americano Democratico Liberal como pa- rametro de comparagio ede construirem um modelo tedrico com um bai- xo valor explicativo. Em sfntese, a teoria da cultura politica foi acusada de abrir espago para generalizac6es indiscriminadas, ser inviesada por preconceitos oci- dentais de modernidade, ter um carter essencialmente descritivo e, so- bretudo, favorecer a posigao dos paises industrializados como os mais acessiveis & formacao de uma cultura politica civica. Todas essas criticas provocaram inicialmente um refluxo na produ- giio de anélises sobre cultura politica bem como circunscreveram-nas 20 campo da Ciéncia Politica, deixando de lado o debate com a tradigéo antropol6gica que teve um papel fundamental para a conformagao do seu conceito-chave, conforme foi sublinhado anteriormente. Phoinix, Rio de Janeiro, 7: 367-378, 2001. 371 4. A renovacao tedrica e metodolégica A geracio posterior a Almond e Verba que se dedicou aos estudos sobre cultura politica foi responsvel por uma renovacio teérica e meto- dolégica importante (KUSCHNIR, CARNEIRO, 1999: 235). O desenvolvimento teérico observado no trabalho de alguns autores (PUTNAN, 1997) significou, entre outras coisas, uma mudanga de objeto politico. Os novos estudos passaram a privilegiar as condigdes que afetam o desempenho das instituigdes piiblicas Por outro lado, 0 desenvolvimento metodolégico ensejado nos ulti- mos anos pode ser traduzido na proposta de utilizagéo de miiltiplos con- juntos de dados para se chegar aos varios fatores que afetam a performan- ce do sistema democratico, ¢ nao mais 0 uso de estatisticas realizadas a partir de uma tinica fonte de informagoes. Esta tendéncia est presente na literatura brasileira sobre cultura po- litica, conforme se pode perceber a partir das andlises de Wanderley Gui- lherme dos Santos. De acordo com este autor, a cultura civica brasileira seria caracterizada por considerdvel rejeigio as instituigdes do Estado, sobretudo aquelas cujo objetivo € a preservagao da ordem (policia) e a mediacao de conflitos (Judicidrio) (SANTOS, 1993: 108). Da mesma forma, Bolivar Lamounier vem combinando pesquisas para analisar as mudangas de curto prazo das elites brasileiras nas atitudes frente ao sistema politico ocorridas durante o processo de elaboragao da atual Constituigao (1991: 324). J4 José Murilo de Carvalho tem discutido como diversos aspectos da cultura politica brasileira, e das elites em par- ticular, tiveram impacto significative na formac&o das instituigdes politi- cas (1987, 1990, 1996), A despeito dessa retomada dos estudos sobre cultura politica, no Brasil, esta abordagem, com raras exceg6es, tem sido praticada basica- mente por cientistas politicos. Os antropélogos, cmbora nos anos 1990 tenham renovado o interes- se pela politica, conforme ilustra a grande produgao nessa drea,* tém evi- tado o uso do conceito de cultura politica. Em alguns casos usam-no de maneira frouxa, sem remeter a sua origem e conceituagdes fundamentais devido ao seu forte apelo normativo e etnocéntrico. Os historiadores brasileiros também tém utilizado pouco essa abor- dagem, cmbora por outras razGes. Conforme mostram estudos recentes sobre a produgiio académica dos centros de pés-graduac%o nacional nas. 372 Phoinix, Rio de Janeiro, 7: 367-378, 2001. duas tiltimas décadas, o ntimero de trabalhos que podem ser localizados como sendo de hist6ria politica ¢ bastante expressivo (FICO, POLITO, 1996: 170; D’ALESIO, JANOTTI, 1996: 123). Na verdade, a historia politica nao deixou de ser praticada entre nés, nem mesmo no perfodo em que as critica elaboradas por historiadores ligados ao movimento dos ‘Annales A chamada escola metédica (que privilegiava a curta duragio, enfatizando o evento politico oficial, os herdis, as batalhas) provocaram um refluxo desta produgao na Frangae suscitaram iniciativas de se buscar novas formas de se trabalhar com a esfera do polftico.* Mas se por um lado a hist6ria politica continuou sendo uma opgio privilegiada entre os pesquisadores brasileiros, por outro, as novas pro- postas para a renovagio dos estudos nesse campo, como €ocaso da abor- dagem da cultura politica, pouca repercussio tiveram entre nés, embora como foi apontado recentemente, tenha se yerificado um declinio da di- mensio factual e descritiva nesses trabalhos (D’. ALESIO, JANOTTI, 1996: 126). O fato de ter sido objeto de criticas e recentemente ter passado por um processo de revisio de suas categorias € conceitos no nos parece motivo para se descartar uma abordagem que se mostra fecunda na expli- cacao dos fendmenos politicos, conforme sublinhou em inicios da década de 1990 Serge Berstein (BERSTEIN, 1992: 67-77) € comprovam alguns dos poucos trabalhos j& produzidos por historiadores brasileiros (SILVA, 1988; FERREIRA, 1990; PINTO, 1998). Talvez também jé tenha mais do que chegado a hora de os historiadores brasileiros que se dedicam a ané- lises de natureza politica tornarem-se mais sensiveis, sempre de um ponto de vista critico, a0 conjuato de propostas apresentadas nas tiltimas déca- das para a renovagao dos estudos desta natureza. O destaque aqui fica para o enfoque da cultura politica. ‘A abordagem da cultura politica € capaz de enriquecer 0 trabalho dos historiadores especialistas em sociedades antigas, modernas ou con- tempordneas sobretudo porque foge a esquematismos reducionistas nos quais 0 politico é pensado como uma instancia reflexa de injungdes eco- nomicas (BERSTEIN, 1992: 67; FERREIRA, 1992). Vem crescendo 0 ntimero de autores que, nas tiltimas décadas, a des- peito das diversas orientagGes tesricas seguidas, tém criticado a perspec- tiva segundo a qual a histéria politica era percebida como uma instdncia enclausurada no sétéo de uma casa onde a tinica porta de entrada era o pordio (FERREIRA, 1992: 270). Pierre Rosanvallon vai mais longe neste Phoinix, Rio de Janeiro, 7: 367-378, 2001. 373 movimento. Segundo este historiador francés, 0 politico nao é uma instan- cia ou um dominio entre outros da realidade. E 0 lugar onde se articula o social ¢ a sua representag’o, a matriz simbélica na qual a experiéncia coletiva se enraiza e se reflete por sua vez (ROSANVALLON, 1986). Sem diivida, com esta demarcacio mais ampla do espago do politico, so abertas novas alternativas para 0 estudos dos fendmenos politicos. Outra vantagem oferecida pela abordagem da cultura politica é ade que trata-se de um enfoque multidisciplinar que permite 0 estabelecimen- to de um didlogo com outras disciplinas como a Antropologia, sem enve- redar para 0 determinismo cultural, j4 que um dos pressupostos b4sicos presentes nas andlises dos historiadores que hoje se utilizam dessa abor- dagem € 0 relativo ao caréter dinamico das culturas politicas. Por outro lado, é preciso serem tomados certos cuidados na sua utili- zagdo. Um deles, sem duvida, relaciona-se ao emprego do termo cultura politica. E sempre oportuno lembrar os ensinamentos de Marc Bloch re- ferentes & necessidade de definicao dos conceitos utilizados pelos histo- riadores (BLOCH, 1987). O uso indisctiminado, vago ou frouxo tende a levar A imprecisao. O grande perigo aquié se repetir o mesmo que ocorreu com 0 conceito de mentalidades que, conforme sublinharam Furet e Darnton, na falta de uma definigdo, seu uso acabou por estimular “a busca infinita de novos temas” cuja escolha era regida apenas pelos modismos do momento (HUNT, 1992: 12). Outro cuidado que deve ser tomado é 0 que diz respeito as relacdes entre cultura politica e cultura global de uma sociedade. Diferente do que fizeram os desenvolvimentistas, que acabaram por dissocié-las, separan- do-as artificialmente ¢ conferindo autonomia a primeira, os historiadores devem estar atentos para o fato de que é no repertério da cultura global de uma determinada sociedade num determinado espaco de tempo que as culturas polfticas buscam elementos para constitufrem-se e atualizarem- Se, assim como nas suas referéncias histéricas — referéncias essas que sao sempre objeto de releitura pelas culturas politicas. Também parece fundamental se abandonar a hipétese de carditer qua- se teleolégico dos desenvolvimentistas, segundo a qual todas as culturas politicas, a despeito de freios ligados tradi¢&o, caminhariam sempre rumo um sistema politico democratico liberal. A histéria do século XX € tal- vez aqui o melhor argumento para descarté-la. Da mesma forma, € preciso que o historiador, se por um lado percebe acultura politica como um fendmeno complexo, que recebe influéncia de 374 Phoinix, Rio de Janeiro, 7: 367-378, 2001. varios fatores no seu longo processo de gestagao, por outro nao perca de vista o seu carater dinamico. Uma cultura politica nao se nutre s6 de tradi- Ges e/ou de historia. Para sobreviver, para garantir longevidade, ela pre- cisa responder as diversas questes do presente, o que muitas vezes impli- ca em estabelecer relages de contato com outras culturas politicas que coexistem na mesma sociedade num mesmo periodo. Dai a necessidade também de se falar de cultura politica no plural, ou seja, de culturas poli- ticas. Mas é importante destacar, conceber a existéncia de uma pluralidade de culturas politicas nao exclui, de maneira alguma, a possibilidade de existéncia de uma cultura politica dominante, partilhada pela maioria dos cidadaos de uma sociedade num determinado perfodo de tempo. Finalmente, 2 cultura politica nao deve ser pensada como um ele- mento capaz de conferir respostas a todas as questdes. O que na verdade esta abordagem é capaz. de fornecer sdo importantes instrumentais para a compreensio das motivagdes que conduzem o homem a adotar esse ou aquele comportamento politico em determinados contextos. Muitas dessas orientacOes tém sido seguidas, em alguns casos com maior éxito em outros nem tanto, por Maurice Agulhon e Serge Berstein, respectivamente. A despeito das tematicas de natureza variada tatadas nas obras Gestes historiadores franceses, seus estudos, que de forma algu- mase prendem A tipologia erigida por Almond e Verba, tém demonstrado que a abordagem da cultura politica abre ao historiador um campo de pesquisa quase inexplorado ¢ suscetivel de enriquecer singularmente a abordagem histérica dos fenémenos politicos, j4 que lanca luz sobre os aspectos subjetivos da politica, ou seja, valores, normas, tradigbes, ideais que regem os comportamentos politicos ¢ se expressam através de um vocabulario proprio, simbolos e ritos (AGULHON, 1973 € 1979; BERSTEIN, 1992). Por tudo 0 que foi dito, e com os devidos cuidados, talvez valesse & pena aos historiadores do politico, especialistas brasileiros em histéria antiga, moderna ou contemporanea apostarem mais nesta abordagem. Notas 1 Este texto é uma verso da comunicago apresentada no X Ciclo de Debates em Histéria Antiga, organizado pelo LHIA/IFCS/UFRIJ € realizado entre 18¢22 de setembro de 2000 no Instituto de Filosofia e Ciéncias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Phoinix, Rio de Janeiro, 7: 367-378, 2001 375 ? Bstes fatores também foram apontados por José Murilo de Carvalho como res- ponsAveis pelo crescente interesse em torno da problemitica da cidadania neste fim de século (CARVALHO, 1996: 259). The Civic Culture tornou-se um classico, constituindo referéncia constante nas andlises hoje produzidas no Ambito da cultura politica. * Ver por exemplo a produgdo do Niicleo de Antropologia da Politica (NuAP), fundado por pesquisadores de diversos estados ¢ universidades brasileiras. > Para uma anélise sobre as criticas que acabaram provocando a marginalizagao das histéria politica na Franga, bem como as propostas apresentadas recentemen- te para a renovagiio dos estudos nessa drea, ver a resenha de Maricta de Moraes Ferreira (FERREIRA, 1992: 265-271). Bibliografia AGULHON, M. 1848 ow l'apprentissage da la République (1848-1852). Paris: Editions du Seuil. 1973. . Marianne au Combat (UVimagerie et la Symbolique Républicaines de 1789 & 1880). Paris: Flamarion, 1979. ALMOND, G. A Discipline Divided: Schools and Sects in Political Science. New York: Sage, 1990, » VERBA, S. The Civic Culture. Princeton: Princeton University Press, 1963. . The Civic Culture Revised. 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