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MARCELO REBELO DE SOUSA PARECER 1. B-nos solicitado Parecer de Direito acerca da constitucionalidade de taxas de criagdo municipal respeitantes a disticos e antincios implantados ou afixados nas fachadas dos estabelecimentos de propriedade privada, e que se destinem a indicar ou tornar piblico os nomes dos estabelecimentos ou das respectivas firmas ou marcas. 2, — Trata-se de matéria recorrente, ao longo das tiltimas décadas, que, por isso, tem merecido a atengdo de doutrina ¢ jurisprudéncia, sobre a qual jé expressamos a nossa opinio, ¢ que tem merecido a nossa sucessiva reflexao. Aliés, matéria que, de uma éptica juridica, se reconduz & questo da distingiio entre taxas ¢ impostos. 3. Na verdade, a serem qualificaveis de imposto tais taxas, a sua criagiio obedeceria, constitucionalmente, & reserva relativa da competéncia legislativa da Assembleia da Repiblica [efr. o disposto no artigo 165°., niimero 1, alinea i), da Constituigaio da Republica Portuguesa]. MARCELO REBELO DE SOUSA Nestes termos, a resposta & Consulta traduzir-se-ia num juizo de manifesta inconstitucionalidade organica quanto a sua criagao municipal Ao invés, a serem consideradas verdadeiras taxas, 0 juizo pertinente seria o da nao inconstitucionalidade. 4. Primeiro passo a dar é 0 da destringa entre taxa e imposto. E, nos seus tragos gerais, pacifico 0 entendimento na doutrina quanto ao critério de distingéo: a bilateralidade ou a unilateralidade — isto é, a existéncia ou inexisténcia de contrapartida especifica consistente em prestagio administrativa — isto , a cargo da Administragio Publica —, contrapartida essa que nao tem de equivaler rigorosamente a0 montante da taxa (diversamente do que aconteceria com a tarifa), Ou seja, a taxa é bilateral no sentido de sinalagmatica: supde contrapartida prestacional administrativa especifica, inexistente no imposto. E a aludida prestagao nfo tem de equivaler rigorosamente ao montante da taxa exigida ao beneficidrio. MARCELO REBELO DE SOUSA. Basta que a prestagéio administrativa em aprego seja especifica, isto é, se traduza em vantagem auténoma e individualizada, exigivel pelo particular responsavel pelo pagamento da taxa! *. A distingdo entre as figuras da taxa e do imposto, no Diteito Fiscal portugues, foi tragada, desde logo, por José Joaquim Teixeira Ribeiro, com base na unilateralidade do segundo [cft. José JOAQUIM TEIXEIRA RIBEIRO, “Finangas”, Coimbra, 1968 (policopiado), pg. 389, “Ligdes de Finangas Pablicas”, 5*. edi¢Zo, Coimbra, 1995, pg. 258 ¢ “Nogdo Juridica de Taxa”, in “Revista de Legislago ¢ Jurisprudéncia”, ano 117°, (1984-85), pg. 293] A mesma ideia foi partilhada por Pedro Soares Martinez, para quem “juridicamente, o critério da destringa reside na existéncia ou nfo de uma conexio entre a relagiio considerada ¢ outra, que the seja anterior ou dependa daquela” [cft, PEDRO SOARES MARTINEZ, “Direito Fiscal”, Lisboa, 1969 (policopiado), pg. 30]. Este critério estrutural de disting%io entre taxa ¢ imposto, seria, depois, antes mesmo do fim do século XX, adoptado pela doutrina fiscalista nacional, nomeadamente por José Manuel Cardoso da Costa, Alberto Xavier, Carlos Pamplona Corte Real, Nuno S4 Gomes, Antonio Braz Teixeira ¢ José Luis Saldanha Sanches [eft. José MANUEL CagDoso DA Costa, “Curso de Direito Fiscal”, 2". edigio, Coimbra, 1972, pg. 4; ALBERTO XAVIER, “Manual de Direito Fiscal”, Lisboa, 1974, pg. 43; CARLOS PAMPLONA CoRTE REAL, “Curso de Direito Fiscal”, [ Volume, 1982, “Cademnos de Ciéncia e Técnica Fiscal”, n°. 124, pg. 124; NUNO SA GoMEs, “Ligées de Direito Fiscal”, I Volume, 1984, “Cadernos de Cigncia e Técnica Fiscal”, n°. 133, pgs. 85-86; ANTONIO BRAZ TEIXEIRA, “Finangas Publicas ¢ Direito Financeiro”, Lisboa, 1990 (policopiado), pg. 260; Jost Luis SALDANHA SANCHES, “Prinefpios de Direito Fiscal”, Lisboa, 1998, pgs. 18-22]. 2 Particularmente felizes cram as consideragdes de Alberto Xavier © de José Manuel Cardoso da Costa. Dizia o primeiro, seguido por Nuno $4 Gomes: “A prestago patrimonial em que © imposto consiste é uma prestagio unilateral, no sentido de nfo sinalagmiética.., ‘Nao assim nas taxas. Aqui o fundamento do tributo é a prestagio da actividade piiblica, a utilizagio do dominio puiblico e a remogao do limite juridico ¢ por isso cstas realidades ¢ a taxa que hes corresponde encontram-se entre si ligadas por um nexo sinalagmatico, em termos de uma se apresentar como contrapartida da outra” (eft. op. cit,, loc. cit.), Ia o segundo mais longe: “... a nota essencial caracterizadora dos «impostos», © pela qual, nomeadamente, eles se distinguem das «axa», € a sua «unilateralidade»: o imposto é uma prestago coactivamente exigida pelo Estado (ou eventualmente por outro ente piblico) com cardcter definitivo, em ordem & prossecugao de uma finalidade publica (maxime, financeira) nfo sancionatéria, ¢ 4 qual no corresponde qualquer contrapartida especifica” (cft. Jos® MANUEL MARCELO REBELO DE SOUSA 5.1 5.2. . Aprofundemos um pouco quanto fica exposto. Partindo do princfpio de que a taxa supde sempre a existéncia de contrapartida especifica, varias interrogagdes essenciais se suscitam, A primeira é a de apurar se a taxa, ali4s como o imposto, pode ter caracter sancionatério. ‘A resposta é negativa. Nem uma nem outro podem revestir cunho sancionatério. A segunda interrogagao suscitével ¢ a de explicitar em que se traduz o facto de a contrapartida especifica nao ter de equivaler rigorosamente ao montante da correspondente taxa. O principio constitucional da proporcionalidade aplica-se as taxas como a toda a legislagio ¢ administragio, postulando a individualizagao indispensével & comparabilidade, vedando o arbitrio em geral e apontando para a adequagtio, a necessidade ¢ a correlagio minima entre meios e fins (cft., em especial para as CARDOSO DA Costa, “O enquadramento constitucional do Direito dos Impostos em Portugal; a jurisprudéncia do Tribunal Constitucional”, in “Perspectivas constitucionais. Nos vinte anos da Constituigio de 1976”, Separata do Volume 11, Coimbra, 1997, pgs. 401-401). Como se depreende da passagem transcrita, Cardoso da Costa aditava ao critério estrutural da definiggo do imposto um critério finalista — piblico, maxime financeito, ¢ nfo sancionatério (eft. op. cit., pgs. 403-404), E este outro eritério também se aplica a definigao da taxa, MARCELO REBELO DE SOUSA, 5.3 taxas, de criag&o administrativa, 0 artigo 266°. mimero 2, da Constituigtio da Republica Portuguesa). Mas a proporcionalidade niio implica, inevitavelmente, a equivaléncia rigorosa de prestagdes, diversamente da ideia de prego do servigo que define a tarifa, E suficiente que no ocorra desproporgao intoleravel entre as duas realidades *. A terceira interrogag%io formulivel € a de determinar se 0 sinalagma acarreta. ou implica a contemporaneidade das prestagdes, A resposta é, também neste particular, negativa. © sinalagma nao determina, de modo necessirio, a contemporaneidade ou simultaneidade das prestagdes, Nem no delinear dos contornos do conceito de taxa, nem noutras manifestagdes da bilateralidade prestacional. Reciprocidade é coisa diversa de simultaneidade. Nada impede, na Constituig&io como na lei, que exista uma no coincidéncia temporal entre prestagdes. No caso, entre o ‘Com uma latitude aparentemente maior no entendimento da proporcionalidade, José MANUEL ‘CARDOSO DA CosTA considera “compativel... com taxas de montante inclusivamente superior (, porventura, até consideravelmente superior) ao scrvigo prestado” (eff. “ O enquadramento constitucional”, cit, pg. 405). Mas admite, em qualquer caso, a inter-telacao entre « conduta administrativa ea taxa MARCELO REBELO DE SOUSA 5.4, pagamento da taxa e a efectivagdo da contrapartida espectfica correspondente. Ponto € que a distancia no tempo no ultrapasse os limites impostos pelo principio da proporcionalidade, na medida em que acarrete intolerdvel desproporgao entre as prestagdes em presenca. A quarta interrogag%io aventével ¢ a de apurar em que pode consistir a contrapartida especifica, designadamente se ela tem de ser individualizada e exigivel pelo particular responsdvel pelo pagamento da taxa. Neste ponto, a resposta é mais complexa. Ela impde, antes do mais, que se entenda por contrapartida especifica uma contrapartida individualizada. Contrapartida individualizada significa que se traduz em utilidades novas ou em acréscimo de utilidades preexistentes, uma e outro, proporcionadas pela actuago da entidade & qual € paga a taxa, Trata-se de realizagio de prestago administrativa, latu sensu, envolvendo prestagao stricto sensu de servigo piblico, fruigao de bens do dominio piiblico ou remogao de obstaculo, no atinente quer aquele servigo, quer a esta fruigio. Significa, por conseguinte, contrapartida individualizada na utilidade ou nas utilidades proporcionadas. MARCELO REBELO DE SOUSA 5.5. 5.6. Contrapartida individualizada quer ainda dizer que se exprime em utilidades directamente proporcionadas ao particular onerado com a taxa. Quer dizer, decorrentemente, contrapartida individualizada na fruigo directa da utilidade ou das utilidades proporcionadas. Se a utilidade ou as utilidades proporcionadas sao individualizadas em si mesmas e por beneficiarem directamente 0 administrado sobre o qual impende o dever de pagar a taxa, entio esse administrado dispde do direito de exigir que a entidade piiblica em questo actue por forma a proporcionar-lhe aquela utilidade ou aquelas utilidades. Sob pena de indemnizagéo por lesio de interesse legalmente protegido. Por outro lado, o facto de ter de existir directo beneficio do aludido particular nfo implica que s6 ele seja beneficiado pela utilidade ou das utilidades proporcionadas. Podem essas utilidades beneficiar, parcialmente, outros administrados, que isso nfo impede que ocorra individualizagio da contrapartida. Essencial é que se verifique conexao especifica entre as utilidades © 0 administrado, ou seja, que cle beneficie dessas utilidades de forma especifica e a titulo principal, por virtude da existéncia de MARCELO REBELO DE SOUSA 5.7. conexio mais intensa entre as utilidades proporcionadas pela prestagao administrativa e o administrado onerado com a taxa. O que acaba de ser dito permite distinguir a taxa de uma modalidade de prestagao financeira coactiva, doutrinariamente apelada de contribuigdo especial, e que é, no geral, reconduzida a imposto. A taxa corresponde contrapartida sempre individual e exigivel pelo devedor, diversamente do que sucede com a contribuigao especial, devida por contrapartida genética e niio exigivel, até por nela nao existir conexdo primordial com certo administrado *, A jurisprudéncia do Tribunal Constitucional debruga-se, ha longa data, sobre a caracterizag&o da taxa e a distingao entre esta c 0 imposto. Atendendo, alias, 4 substancia e no ao nomen iuris e considerando que a diferenga especifica reside no vinculo sinalagmatico bilateral, inscrito no seu conceito. Ao que se somaria a exigéncia de finalidade publica financeira nao sancionatéria e de proporcionalidade* ° 7, Cif, classicemente, ANTONIO BRAZ TEIKEIRA, OD. cit, pe 269; © José L.uls SALDANHA SANCHES, ‘op. cit, pgs. 18-22. Cir, j neste sentido, o Parecer da Comisso Constitucional n°. 30/81, tn “Pareceres da Comisstio Constitucional” © os Acérdios n®. 77/86 e 348/86 (respectivamente de 8 de Outubro e de 11 de Dezembro de 1986). Que teriam sequéncia, ier alia, nos Acérdios n, 205/87, 76/88, 412/89, 363/92, 236/94, 379/94 c 183/96 (respectivamente de 17 de Junko de 1987, 7 de Abril de 1988, 31 de Maio de 1989, 12 de Novembro de 1992, 16 de Margo de 1994, 11 de Maio de 1994, 11 de Maio de 1994 e 14 de Fevereiro de 1996), Ci. 0 teor dos Acérdios n®, 7/84, 497/89, 70/92, e 67/90 ¢ 1140/96 (respectivamente de 24 de Janeiro de 1984, 13 de Julho de 1989, 24 de Fevereiro de 1992, 14 de Margo de 1990 e 6 de ‘Novembro de 1996) MARCELO REBELO DE SOUSA 7 72. Subjacente ao entendimento doutrinario exposto e & jurisprudéncia mais antiga apresentada encontra-se uma ideia central, melhor ou pior explicitada. Es: ideia-chave & a de sinalagma, que o mesmo é dizer de correlagio entre prestagzio administrativa ¢ taxa. Dela decorrem a especificidade, a individualizago, a proporcionalidade ¢ a exigibilidade. Mas, assim sendo, qual & a raztio de ser essencial da taxa, por contraposigaio & do imposto, a este se reconduzindo a contribuigio especial? Acompanhamos J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira na interpretago da Constituigao da Repablica Portuguesa. Passamos a transcrever: “Ao definit 0 regime constitucional dos impostos, nada indica que a Constituigio nao tenha descansado no conceito de imposto prevalecente na ciéncia e no direito fiscais, que consiste numa contribuigio imposta a todos ou a uma certa No sentido de que o crtério de bilateralidade posse comportar “a utilizago do bem (voluntéria ou obrigatéria) se perfile como mera possibilidades, exigindo-se, porém, que a imposigio do pagamento continue exclusivamente relacfonada com aquela utilizagéo” ¢ o sinalegma suponha ‘ou envolva 6 respeito da proporcionalidade, eft. jf 03 Acérddos 1". 357/99 e 410/00 (de 15 de Junho de 1999 ¢ de 3 de Outubro de 2000). Que, ais, se inserem em linhagem doutrinria que acentua néo existir contradig&o insandvel entre o interesse do onerado ¢ eventual utilidede para a generalidade da populagio (linhagem em que avulta o Parecer da Procitadoris-Geral da Repablica n°, 59/86, in Diario da Repiiblic, 1 Série, de 15 de Abril de 1987), MARCELO REBELO DE SOUSA categoria de pessoas, de acordo com a sua capacidade contributiva, e destinada a financiar o Estado ¢ as fungdes piiblicas em geral, sem destino especifico. O imposto destingue-se designadamente da taxa, que é igualmente uma receita piblica unilateralmente estabelecida pelo poder ptiblico, mas que, ao contrario do imposto, consiste na contrapartida de um servigo especifico prestado pelo Estado (ou por outra pessoa colectiva piiblica, ou dotada de poderes piiblicos) ou da vantagem decorrente da utilizagéo individual de um bem ou do prejuizo causado a um bem colective, devendo haver uma correlag%io material entre o custo ou o valor da prestagio individualmente recebida (ou beneficio individualmente conferido ou do prejuizo individualmente causado) ¢ 0 montante da taxa devida, nao podendo este exceder substancialmente aquele (mas podendo corresponder apenas a uma parte do valor ou do custo). Por definigao, a taxa destina-sc a financiar o servigo piiblico prestado ou a pagar o beneficio decorrente da utilizagao de um bem do dominio piiblico, ¢ nao outras despesas publicas, nao podendo, portanto, ser desviado para outros fins. Porém, além do seu objectivo tributario, as taxas podem também servir para restringir ou reduzir a procura de determinados servigos publicos (por cx., as «taxas moderadoras» no SNS ou as discutidas taxas de entrada de automéveis nas cidades). MARCELO REBELO DE SOUSA Esta distingo entre imposto e taxa, embora nao constitucionalmente explicitada nesta sede, esti hoje prevista no art. 165°-1/i, desde a revistio constitucional de 1997, que alargou a reserva de lei parlamentar ao wegime geraly das taxas.” § 7.3. Quanto ao acolhimento constitucional do conceito de contribuigio financeira a favor das entidades publicas — conceito diverso da figura de taxa —, aditam os dois constitucionalistas coimbrées: “A mesma norma constitucional também menciona, inovadoramente, a par dos impostos e das taxas, outras «contribuigées financeiras a favor das entidades pitblicas». Com esta referéncia — que claramente aponta para uma terceira categoria tributaria, ao lado dos impostos ¢ das taxas stricto sensu —, a Constituigao parece ter dado guarida ao controverso conceito de parafiscalidade, que comporta certas figuras hibridas, que compartilham em parte da natureza dos impostos (porque nao tém necessariamente uma contrapartida individualizada para cada contribuinte) e em parie da natureza das taxas (porque visam retribuir 0 servigo prestado por certa instituigdo piblica, ou dotada de poderes piblicos, a um certo circulo ou certa categoria de pessoas ou entidades, que beneficiam colectivamente da actividade daquela). E nesta categoria Cf, J. J. GOMES CANOTILHO @ VITAL MOREIRA, “Constituigio da Repiblioa Portuguesa Anotada”, Volume I, 4, edigfo revista, Coimbra, 2007, pg. 1094. MARCELO REBELO DE SOUSA que entram tradicionalmente as contribuigdes para. a seguranca social, as quotas das ordens profissionais e outros organismos de autodisciplina profissional, as «taxas» dos organismos reguladores, etc. Em certo sentido trata-se de «taxas colectivas», na medida em que visam retribuir os servigos prestados por uma entidade piblica a um certo conjunto ou categoria de pessoas. A diferenga essencial entre os impostos e estas contribuigdes «bilaterais» é que aqueles visam financiar as despesas publicas em geral, nao podendo, em principio, ser consignados a certos servigos publicos ou a certas despesas, enquanto que as segundas, tal como as taxas em sentido estrito, visam financiar certos servigos piiblicos © certas despesas (responsiveis pelas prestages ptblicas de que as contribuigdes sdo contrapartidas), aos quais ficam consignadas, naio podendo, portanto, ser desviadas para outros servigos e despesas. A constitucionalizagfio deste «ertium genus» veio dar guarida a uma figura que, por falta de reconhecimento constitucional, era anteriormente equiparada pela doutrina e pela jurisprudéncia aos impostos, com as inerentes consequéncias, sobretudo em termos de criagio e disciplina por via legislativa e de reserva parlamentar. Como resulta do art. 165°-I/i, as taxas € as outras contribuigdes de caracter «bilateral» s6 esto sujeitas a reserva parlamentar quanto ao seu regime geral, mas nao quanto a sua criagao individual e quanto ao regime concreto, podendo portanto 12 MARCELO REBELO DE SOUSA 7A. ser criadas por diploma legislativo governamental ¢ reguladas por via regulamentar, observada a lei-quadro competente.”® Em suma, 0 entendimento constitucional transcrito corresponde ao doutrinario ¢ jurisprudencial antes sintetizado, densificando o sinalagma, através de trés modalidades de contrapartidas: a de servigo administrativo especifico, ade yantagem da utilizac&o individual de um bem piiblico a de prejuizo causado a um bem colectivo. As expressdes bem piiblico ou bem colectivo (ou semi-piblico, como, por vezes, ¢ chamado), preferimos a de bem do dominio piblico, passivel de uso privado e mesmo privativo. E a contrapartida, no tocante a esses bens, tanto pode resultar da sua utilizago por privado — incluindo a remogfio de obstéculo a mesma— como de prejuizo também neles causado por privados. Fundamental se antolha que a contrapartida seja individualizada, mesmo que compativel com utilidades alheias, 0 que leva alguns autores a falar cm bens semi-piiblicos para aludir a em bens do dominio piblico passiveis de tal situagiio. Ci. op. eit, pg, 1095. 13 MARCELO REBELO DE SOUSA 8.1. 8.2, No quadro tragado, qual scr 0 alcance do artigo 4°. da Lei Geral Tributaria, nomeadamente do seu némero 2, que dispde o seguinte: “As taxas assentam na prestagao correcta de um servigo piiblico, na utilizagio de um bem do dominio piblico ou na remogio de um obsticulo jurfdico ao comportamento dos particulares.”? Este preceito acentua a natureza sinalagmatica da taxa, por contraste com a nao sinalagmatica do imposto, assente “essencialmente na capacidade contributiva, revelada nos termos da Ici, através do rendimento ou da sua utilizagéo e do patriménio”, de acordo com o disposto no numero | do mesmo artigo 4°, Também permite sublinhar a distingo relativamente contribuigdo especial, considerada imposto, e que envolve a cumulagio de utilidades particular e colectiva, sendo a primeira subalterna ou reflexa relativamente & segunda, nos termos do disposto no ntimero 2 ainda do artigo 4°. Suscita, no obstante, duas dlividas, quais sejam as de saber se a contrapartida de prejuizo causado em bens do dominio piiblico por privados € taxa ou contribuigéio especial, e se a remogio de obsticulo a actividade particular nfo relacionada com a utilizagio de bens piblicos é taxa ou imposto. 14 MARCELO REBELO DE SOUSA, Quanto a primeira diivida, a resposta resultante da conjugagiio dos preceitos legais é a de que depende da primazia ou subalternidade da utilidade privada ou da intervengao privada: sera taxa se estas primarem, contribuigGo especial e, portanto, imposto, em caso contrario. E 0 mesmo se aplica, a nosso ver, em caso de utilizagao privada de bens.do dominio publico. Ela justificard taxa se for exclusiva ou privativa, ou apenas dominante, e contribuigo especial — leia-se imposto — se o niio for. Quanto & segunda ditvida, a resposta tem de ser encontrada no ratio legis, que € a de o sinalagma supor uma conexiio priméria forte entre as obrigagdes reciprocas. Tao forte que corresponda a especificidade, a proporcionalidade e a exigibilidade por parte do titular da obrigagio de pagar a taxa de certa conduta administrativa, Isto, seja essa conduta prestagdo de servigo publico, prestagio traduzida na disponibilizagio de bens do dominio publico, ou prestago consistente na remogio de obstaculos a fruigio, quer de servigo piblico, quer de bens do dominio piblico. Impée-se, pois, interpretar restritivamente a parte final do nimero 2 do artigo 4°, independentemente de o sinal dado pela interpretagao constitucional ir também no mesmo sentido. Conceber que cabem no citado ntimero 2 do artigo 4°, quaisquer condutas administrativas de que resulte utilidade para o particular, 15 MARCELO REBELO DE SOUSA 91. 9.2, utilidade essa néio correspondente nem a prestagio de servigo publico, nem a disponibilizagao de bens do dominio publico é descaracterizar o conceito de taxa, enfraquecendo o sinalagma e, nele, a exigibilidade, Passa a ser possivel fazer corresponder uma alegada taxa a qualquer acto de administrag3o vantajoso para um particular, independentemente de existir exigibilidade por parte deste, e proporcionalidade na relago entre a alegada taxa ¢ uma utilidade reciproca da entidade privada. Em tiltima anélise, é a especificidade, enquanto individualizagao, que deixa de existir, ji que a alegada taxa passa a ser “cega” ou insensivel a essa individualizagio. Por outras palavras, falece o sinalagma, tal como ele legitima o conceito de taxa. Feita esta suméria digressio em redor do que ¢, para a Constituigao da Reptiblica Portuguesa ¢ a Lei Geral Tributaria, ¢ chegado 0 momento de indagar se as taxas mencionadas na Consulta o so na verdade, ou nao passam de impostos apresentados como se de taxas se tratasse, Existe, quanto a elas, a ideia de contrapartida de prestagio de serviso publico? 16 MARCELO REBELO DE SOUSA 9.3. 9.4. Pensamos que néo. ‘A mera emissio de licenga nfo é, em sentido rigoroso, prestagdo de servigo puiblico. E existiré utilizagdo de bens do dominio piblico? Pensamos, igualmente, que n&o. Sio privados os iméveis nos quais se acham implantados ou afixados os disticos ou antincios, Mesmo que sejam pendentes sobre a via publica, nfo se pode dizer que a utilizam a titulo exclusivo ou dominante, pelo que nos encontramos perante situagdo legitimamente de contribuig&o especial, tratada como imposto, Ocorreré, ao menos, remog&o administrativa de obstéculo ou limite a actividade privada, que corresponda a viabilizagdo da prestagio de servigo publico ou a utilizagio exclusiva ou dominante de bens do dominio piblico? Novamente, a resposta é niio. ‘Uma licenga para exercicio de actividade privada sem incidéncia em prestagio de servigo piiblico ou em utilizagfio exclusiva ou dominante de bens do dominio piiblico nao é uma taxa. 7 MARCELO REBELO DE SOUSA, Faltam-lhe a proporcionalidade, a exigibilidade e, antes de tudo 0 mais, a individualizagao, indissociavel da especificidade. 9.5. Sendo este 0 nosso entendimento, as taxas municipais, objecto de apreciagiio, sio contribuigdes especiais, ou seja, impostos, ¢ nio taxas,'° 9.6. & esmagadoramente dominante a jurisprudéncia do Tribunal Constitucional em sentido idéntico ao sustentado, Nomeadamente, sublinhando a importincia do sinalagma e 0 seu alcance, as decorrentes individualizagao e proporcionalidade, a nao relevancia principal da utilizagdo de bens pablicos (ou semi-piiblicos, na acepgtio de passiveis de uso cumulativo piblico ¢ privado), a insuficiéncia do critério da mera remogiio de interdig&o ou limite a actividade privada.'' "© 6 que fica dito consome abjecgdes teoricamente susvitiveis acerca da existéncia de restrigao ao direito de propriedade ou ao ius aedificandi, & salvaguarda do ambiente, a0 ondenamento do tervitério e urbanistico ou ao policiamento da publicidade em aprey9. E irrelevante discutir que resrigdes sfo levantadas ou executadas pelo licenciamento, ja que fica de pé a exclusio do conceito de taxa de remogdio de proibigio ou de limite sem uso exchisivo ou. dominante de bem do dominio piblico. E itrelevante invocar ambiente como bem passivel de cumulativas utilidade piblica o privadas, j& que n8o ocorre, no caso vertente, individuelizagio primacial de utilidade privada, Quanto ao ordenamento do territério © urbanistico, a ele se aplica uma € outra das raves acabadas de expor. Quanto ao policiamento, além dessas das razdes & de evocar o facto de se nio poder dizer que a alogeda texa 6 contrapartida de. prestagio de servigo pilblico susceptivel de especificasio, individualizagdo, proporcionalidade e exigibitidade, Chi, inter alia, 08 Acérdios n®, $58/98, 63/99, 32/00, 96/00, 346/01, 92/02, 436/03, 437/03, 453/03, 34/04, 109/04, 113/04 e 464/04 (de 11 de Novembro de 1998, de 31 de Margo de 1999, de 8 de Margo de 2000, de 17 de Margo de 2000, de 10 de Julho de 2001, de 26 de Fevereiro de 2002, de 30 de Setembro de 2003, de 30 de Setembro de 2003, de 14 de Outubro de 2003, de 14 de Janeiro de 2004, de 11 de Fevereiro de 2004, de 17 de Fevereiro de 2004, e de 23 de Junho de 2004). 18. MARCELO REBELO DE SOUSA. Alids, trata-se de jurispradéncia sensivel a reflexdes doutrinarias complementares daquelas atras referidas, '? | L1, Em suma, e porque nos néio encontramos perante taxas, é inconstitucional a respectiva criagio por Municipio, uma vez que viola 0 disposto no artigo 165%, mimero 1, alinea i), da Constituigao da Repiblica Portuguesa. Este 6 o nosso parecer, salvo melhor opiniaio Lisboa, 25 de Margo de 2011 Professor Catedratico da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Cf, edicionalmente, em termos gorais, tanto PAULO PITTA # CUNHA, JOSE GUILIIERME XAVIER, DEBASTO € ANTONIO LOBO XAVIER, “Os Conceitos de Taxa Imposto — A propésito de licengas, municipais”, in “Pisco”, x", $1-52, 1998, fls. 13 e segs., JOAO LUIS CASALTA NABAIS, “Contratos Fiscais”, Coimbra, 1994, pg. 236, ¢ “Por um Estado Fiscal Suportével — Estudos de Direito Fiscal”, Coimbra, 2005, pgs. 583-584; e, em especial, JOsé Luis SALDANHA SANCHES, “Manual de Dircito Fiscal”, 3°. edigio, Coimbra, 2007, pgs. 31 ¢ segs Cf, com enteadimento diverso, JOSE MANUEL CARDOSO DA Costa, “Ainda a distingdo entre «taxa e “«imposto» na jurisprudéncia constitucional”, in “Homenagem a José Guilherme Xavier de Basio”, 2006, pes. 561 e segs. Als, muma parte da argumentagio, na esteira dos votos de vertide do Conselheiro Bonjamim Rodrigues nalguns arestos do Tribunal Constitucional Apesar do mérito dos autores, nfo os acompanhamos, nem na interpretagio da Lei Geral ‘Tributéria, em na invocasdo da ocorréncia de prestacio de servigo pabtico — em sentido rigoroso = no caso de renovagiio de livenga (isto, no eoncemmente a Cardoso da Cost). Antes consideramos descaracterizador da taxa a sua ampliagio @ medida das conveniéncias da patente correspondéncia a qualquer acto de administrarao vantajoso para particular, desde que & ‘ventagem se traduza em permitit 0 desenvolvimento de actividade antes proibida ov condicionada no seu exeretco.

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