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A Ameaca do Lobisomem Silviano Santiago Homenagem a Borges, dez anos apés a sua morte 1. A China & aqui A\inda nos lembramos das piginas introdutérias de As Palavras e as Coisas (1966), livro em que o filésofo francés Michel Foucault desen- tranha da obra ficcional de Jorge Luis Borges uma classificagio cienti- fica dos animais existentes no mundo, tal como ela se encontra relatada numa enciclopédia chinesa. No texto de Borges se If que “os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, ©) do- mesticados, d) Ieitdes, c) sereias, f) fabulosos, g) cdes em liberdade”, ¢ assim por diante. Aos olhos do francés, a listagem classificatoria se apresenta como exotica. Sua origem esta fora do Ocidente, na China. Durante o periodo a que nés, brasileiros, chamamos de Moder- nismo, a0 qual Borges por direito pertence, 0 latino-americano nao teria visto na istagem apenas exotismo, Teria se identificado com as extra- ordinarias categorias inventadas pela imaginagao fértil do argentino para inventoriar os grupos desencontrados dos animais existentes na terra, € 32. — Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 4, 1998 alas, uma por uma, ea eles, um por um, teria prestado reveréncia. S6 se presta tal reveréncia ao fogo que esté numa metifora que, ao levar ‘a idéia do exotismo americano para além dos limites ocidentais, até a China milenar, queima o véu que recobre 0 que nos é familiar desde 1492. A China é 0 melhor palco metaférico ¢ incendidrio para 0 exotis- mo por exceléncia deste Outro-do-Ocidente-dentro-do-Ocidente, que & a América Latina. Barbaro e nosso, escreveu Oswald de Andrade no mais poderoso dos manifestos modemistas, o “Pau Brasil” Em lugar da reveréncia ou da identificagdo, experimentada pelos latino-americanos diante de cada categoria, de cada ser, Miche! Fou- cault nos fala, nas paginas introdutérias de As Palavras e as Coisas, do riso, estruturalista e europeu, que lhe inspirou a leitura da enciclopé- dia chinesa inventada por Borges. 0 riso abala, escreve ele, “todas as superficies ordenadas ¢ todos os planos que tomaam sensata para nés a abundancia dos seres”. A China de Borges, continua ele, indicia o modo “como o encanto exético de um outro pensamento [o do latino-america- ‘no achinesado] € 0 limite do nosso {o do europeu]”. De um lado, limita~ do pelo “olhar codificado” e, do outro, pelo “conhecimento reflexive”, 0 filésofo encontra na enciclopédia chinesa de Borges uma “regio medi- ana” que liberta a ordem classificatéria naquito que a institui. No espir to de Maio de 68, a ordem aprisiona e, por isso, est havendo desordem. A desordem libera e, por isso, tem-se de estabelecer uma tipologia exoti- ca para apreendé-la, de preferéncia chinesa, com tonalidades cubanas, ‘Ao contririo de Foucault, o escritor modemista latino-americano teria se detido diante de cada uma das figuras arroladas pela enciclopé- dia chinesa a fim de analisar a sua peculiaridade monstruosa que, nos limites asiaticos inventados por Borges, iriam identificando a peculia ridade monstruosa dos seres que os descobridores e colonizadores in- ventaram para descrever exética e grotescamente, barrocamente se quiserem, os seres do Novo Mundo. Na monstruosidade dos trépicos (e ndo nas delicias tropicais) 0 exotismo borgeano deu ao latino-america- no a forma mais instigante e mais arregimentadora do seu poder bélico na luta contra o racismo hierarquizante do metropolitano vis-a-vis do. antigo colono. Retomando as categorias de Foucault, agora em contexto dife- rente ao de As Palavras e as Coisas, digamos que o “olhar codificado” do europeu nunca se casou com 0 “conhecimento reflexivo” do latino- americano. Ou melhor: s6 se casa no hifen Borges-Foucault, momento historico-revolucionario dos anos 60 em que o olhar curopeu, ao ser tomado de riso diante da propria criatura, 0 Exotismo, descobre que existe entre ele e esse seu Outro uma “regio mediana que liberta a ordem no seu ser mesmo”. Na literatura latino-americana essa regio mediana teve um nome. Dé-se a ele a alcunha de “realismo fantastico” ‘ou de “real maravilhoso”, pouco importa, ambas e outras alcunhas des- "No rastro arquectégi- co de Foucault estaria & figura exraordindrie de Victor Segalen, tal como aparece conceitualmen- te no Essai sur 'Exotis- me. Como diz. Gilles Manceron, “i ne Sagi, pourSegaen,¢intgrera une vision du monde bien européenne des é- ments de décor venus outre-mer, mais de considérer d’autrescivi- lisations en elles-mé- mes, sans les évaluer & Ia toise des eriites 00- cidentaux”, Pertinente para a nossa discussio €0 encontro na China de Segalen com Claudel ‘em 1909. Segaleneriti= cava o poeta, dizendo que ele tna vivido te- 2e anos na China e no chines; diz ‘nunca fizera abstragio da sua cultura ereligido. Em carta epose,esee- ve Segalen; “Claudel me parle ensuite fort & Ia sére de Vhindovisme, qu'il me semble ne con: raitre qu’a travers Mi- chelet”. Mais pertinen- te ainda seria 0 estudo contrastive da presenga do citado Claudel e do ‘compositor Darius Mie thaud no Brasil, nos anos de 1917-18, V, do fautor,"A tristeza de um Ea dlegriado outro”, Sue plemento Idéias, Jornal do Brasil, 17 de maio de 1991, A Ameaca do Lobisomem — 33 ‘crevem situagées familiares para nés, j que servem para agambarcar a longa Historia da cultura latino-americana do modo como foi revelada pela escrita ficcional, Ja para o francés Michel Foucault, “a monstruosidade que Bor- ‘ges faz circular na sua enumeragdo consiste[...] em que o proprio lugar dos encontros nela se acha arruinado. O que ¢ impossivel nio é a vizi- nhanga das coisas, é 0 préprio lugar em que elas poderiam circunvi nhar”. A ordem do alfabeto (a,b,c,d...), que sempre serviu para ordenar a abundancia de seres ¢ animais diferentes, esta arruinada. Os latino- americanos sempre vivemos no lugar da desordem nos encontros, nos encontros arruinados, nos escombros catastréficos. Por isso, desde 0 principio, tivemos de acatar a vizinhanga de guerreiros inesperados, que saem dos mares atldnticos em casas flatuantes, como verdadeiros deu- ses do trovao; tivemos de sofrer come vizinho 0 peso cultural eurocén- trico, que vem sob o jugo de nova lingua, novo cédigo religioso, ambos desestruturantes dos hdbitos ¢ comportamentos; tivemos de aprender a conviver com essa presenga imposta, extraindo dela o sumo da propria identidade vilipendiada. Essas foram, entre muitas outras, as tarcfas Jatino-americanas na conquista duma regido mediana durante 0 pro- cesso de ocidentalizagio, regidio mediana de que a enciclopédia chinesa €0 fora tio familiar quanto 0 dentro, De que forma Foucault se apropria da “realidade” latino-ame- ricana descrita metaforicamerte por Borges? Ao descobrir ki na Fran- ga que a China é aqui na América Latina ¢ acola, na Asia', Ao desco- brir que tudo ¢ familiar. Sinais precursores dessa descoberta esto na viagem de volta dos produtos culturais colonizados, tema anunciado pelo quadro “De- moiselles d’ Avignon”, de Picasso. Esto no eurocentrismo fracassado dos anos 60, incapaz de encontrar na tradigao cartesiana francesa 0 instrumental necessério para poder estabelecer uma tipologia que aju- dasse a pensar a desondem ideologica (Che Guevara e Mao Tse-tung, por exemplo) decorrente do fim das guerras coloniais. Estdo na emigra- 0 maciga das coldrias para as metrépoles, questo candente anun- ciada no Velho Mundo quando este, vencido, reinventa o seu Outro sob a forma do racismo no proprio solo nacional, como é 0 caso paradigmi- tico dos “pieds-noirs”(argelinos de origem européia) na Franga. O aqui europeu de Michel Foucault é 0 acola chinés dos latino-americanos que, por sua vez, é 0 aqui e agora de todos nés. O velho Ocidente se encontra no seu Outro, Tem como espelho o Outro. Repensar 0 solo familiar, tanto a nagdo européia quanto a historia do Mesmo que a constitui, apronté-lo para uma heterotopia, ~ eis 0 legado de Foucault, Escreve Foucault que Borges “retira apenas a mais discreta, mas também a mais insistente das neces- sidades; subtrai o local, o solo mudo onde os seres se podem justa- 34 — Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 4, 1998 por”. Conclui o francés que é impossivel “encontrar um lugar co- mum a todas as coisas”. Lugar comum — tomemos a expresso nos seus dois sentidos. O primeiro, o histérico-geografico, a Europa. 0 segundo, o das “familiaridades de pensamento”, para usar a expres- so dele. O Mesmo deixa de ser duplamente lugar comum e, por isso, tudo passa a ser simultaneamente familiar na orgia dos des- centramentos. Michel Foucault identificou a desordem ideologica francesa (eu- ropéia, mundial) na crise da linguagem, emprestousthe um solo arruina- do, por sua vez tomado de empréstimo imaginago selvagem do ar- ‘gentino achinesado. O riso francés ¢ estruturalista de Foucault, reverso da reverén- cia modemista nossa e, por isso, a outra face da tinica moeda corrente 1no mundo globalizado, acaba por traduzir uma forma de reconhecimen- to por parte do europeu da rica contribuigdo cultural latino-americana (cu de qualquer outra regio colonizada pela Europa) para a compreen- sfo do estado presente da civilizago ocidental, Com a ajuda de Bor- ges, Foucault foi configurando nos seus sucessivos livros o novo e defi- nitivo inimigo dos anos 60, 0 Mesmo: “a historia da ordem das coisas seria a histéria do Mesmo ~ daquilo que para uma cultura é algo a um tempo disperso e aparentado, portanto a distinguir por marcas ea reco- ther em identidades” Concluindo, diremos que a leitura do texto de Borges feita por Michel Foucault, aparentemente original, duplica tanto antigas leituras européias das culturas colonizadas, quanto modernas leituras latino americanas das culturas colonialistas, e também por isso acaba sendo responsivel por uma das mais candnicas leituras do escritor argentino € do periodo literirio (entre nés chamado de Modemismo, repitamos) a que ele pertence. Ao voltar os olhos em lance vanguardista para o passado colonial dda regio onde nasceu, transformando-o em manifestagio cultural au- t@ntica, Borges representa o escritor latino-americano. Tora-se expor- tador de exorismo, re-alimentando o esgotamento cultural ¢ atistico do Ocidente europeizado, Esse esgotamento se manifesta, no século XX, pelo desejo de pensar o impensado, limite e graca de toda cultura metro- politana que se quer hegeménica, até mesmo nos seus estertores. ‘A produgo modemista latino-americana ea leitura foucaultiana dde Borges tém uma data. Ao caracterizar o extraordinario trabalho dos ‘modernistas brasileiros em texto de 1950, Antonio Candido, em brilhan- te intuigdo, ja tinha desentranhado Foucault na nossa década de 20. Escreveu ele: “As nossas deficiéncias, supostas ou reais, sio reinter- pretadas {pelos modernistas] como superioridades.” E acrescentou: “As terriveis ousadias de um Picasso, um Brancusi, um Max Jacob, um ‘Tristan Tzara, eram, no fundo, mais coerentes com a nossa heranga * sas duas metiforas, sabemos, se encontram nos textos jesuitas do séoulo XVI e servem para deserever a “ c&ncia” do selvagem bra- sileir face ao futuro tae batho da colonizagto € da catequese. Diza Car- Bens} qualquer cunho {que the quiserem da.” Cuno, informa o dicio- nti, “ferrocom grav- 1a, para marcar moedas, rmedathas, ete a marca impressa por esse fer- +o, uma das faces de cer- tas moedas, na qual se fepresentavam as armas resis” A Ameag do Lobisomem — 35 ‘cultural do que com a deles.” riso de Tzara, em pleno e distante Dada, ou 0 de Miche! Foucault, em plena ¢ recente efervescéncia es- ‘ruturalista,é, portanto, mais coerente com a heranga cultural coloniza~ da do que com a colonialista. riso europeu de Foucault, que inverte a cartografia colonialista norte/sul, ¢ despertado pela realidade material latino-americana. Nos sos autores sempre souberam integrar num solo tinico, ou seja, atra- vvés da linguagem literaria e artistica, os dois ferozes inimigos inventa- dos pelo etnocentrismo, o Mesmo ¢ 0 Outro. Leitées, sercias, cies em liberdade e animais pertencentes ao imperador ou desenhados com uum pincel muito fino de pélo de camelo, esses seres heterdclitos sempre conviveram familiarmente no mesmo espago enciclopédico latino-americano. Essa ocidentalizagao forgada do Outro pelo Mesmo, onde o den- tro existe para ser tomado e ocupado pelo fora, essa universalizagdo ‘ocidentalizada do Mundo, enfiada definitivamente de fora para dentro e vomitada intermitentemente de dentro para fora, so responsaveis, res- pectivamente, por dois outros textos emblematicos de Borges, comple- mentares e excludentes. De um lado, a sempre citada biblioteca de Babel (ja o nome Babel no reenvia a uma outra ¢ menos disparatada taxinomia chinesa, agora a das linguas humanas?), onde todo o universo nada mais ¢ do que o seu exterior, a sua representagao escrita, ordena- da alfabeticamente, Do outro lado, o conto “Funes, o memorioso”, onde © mundo desde que & mundo se confunde com o interior provinciano de um homem-enciclopédia, a sua cosmopolita vivéncia-meméria. Fu nes no esquece um minimo detalhe que ele percebe, 1é ou imagina, por isso é-the desnecessaria ¢ initil a escrita. Um erudito sem escrita pré- pria. O narrador do conto nos da o exemplo revelador: 0 sistema origi- nal de numerago que ele tinha inventado, “no lo habia escrito, porque Jo pensado una sola vez ya no podia borrarsele”. ‘A meméria extraordinsria do argentino provinciano sé the surge quando, ao cair do cavalo, perde totalmente o conhecimento. A memé- ria de Funes se inscreve numa catastréfica “tabula rasa”, numa intima “folha de papel em branco”®. Relata o texto: “Al caer, [Funes - ou sera a América Latina?] perdié el conocimiento; cuando lo recobré, el pre- sente era casi intolerable de tan rico y tan nitido, y también las memori- ‘as mas antiguas y mas triviales”, Funes € 0 nico ser humano ~ compa- ravel nisso a biblioteca de Babel — que tem o direito de usar 0 verbo recordar. Diz.o narrador do conto: “Lo recuerdo (yo no tengo derecho a pronunciar ese verbo sagrado, sélo un hombre en la tierra tuvo dere- ‘cho y ese hombre ha muerto)...” Em contraste as palavras do narrador, Teiamos as palavras do personagem, Ireneo Funes: “Mas recuerdos tengo yo solo que los que habrén tenido todos las hombres desde que el mundo es mundo”. 36 — Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 4, 1998 Funes tudo lembra (tudo absorve, tudo sabe) e nada transmite. A realidade presente ¢ tio violenta,nitida e intima para ele, tfo personali- zada esta na sua deformidade fisica, que niio acata qualquer principio ordenador, venha ele da linguagem escrita, venha ele do ato de pensar. Leiamos outro trecho do conto: “No sélo le costaba comprender que el simbolo genérico perro abarcara tantos individuos dispares de diversos tamafios y diversa forma; le molestaba que el perro de las tres y cator- ce (visto de perfil) tuviera el mismo nombre que el perro de las tres y cuarto (visto de frente)”. Funes ¢ 0 Borges-anti-Borges, ja que “era casi incapaz de ideas generales, platénicas” e “pensar es olvidar dife- rencias, ¢s generalizar, abstract” Funes ¢ Pierre Ménard, 0 visivel Outro do Mesmo, aquele que, pela escrita da meméria, diz que a Europa é aqui na América Latina, ‘Aquele que tudo tem e nada possui. A biblioteca perdura, Funes vive da ‘morte prematura, Morre de uma afluéncia anormal de sangue no pul- mio. De “congestidn pulmonar”, diz 0 conto. A morte prematura pode- tia ter vindo de fora, do tombo que levou quando andava a cavalo; de fora, veio apenas 0 aleijdo. A morte prematura veio de dentro. A aflu- Encia anormal do fluido vital interior rouba-lhe o ar, fi-lo desaparecer dda face da terra. Resta-nos, como consolo para a perda, a biblioteca de Babel. O Oriente do Ocidente. 2. A Ameaca do Lobisomem Como dar continuidade a essa leitura de Borges, a essa leitura como guia para a compreensio da atual literatura latino-americana? A continuidade pelo fio condutor Borges ndo existe. Esta seria uma cons- tatago um pouco simples, mas nao simpléria, como tentaremos provar. ara que esta nossa fala se alimentasse agora do texto borgeano, teria sido preciso haver neste final de século, do lado nosso, identificagao & reveréncia para com os modemistas e, do lado europeu, riso ¢ apropria- ‘¢4o para com os latino-americanos. Identificagao ¢ reveréncia, riso € apropriago ~ essas quatro atitudes, vimos, estZo comprometidas com ‘© tempo das vanguardas, com 0 nosso Modemnismo. Representam uma determinada visio da vitoriosa produgao cultural latino-americana no século XX, desde 0 momento histérico em que ela alga vo nos anos 20, até 0 momento da sua consagragdo nos anos 60, quando espouca oom do romance hispano-americano. ‘Vale também dizer até o momento da sua museificagao européia. ‘Todos se recordam da labirintica (“los senderos se bifurcan”) ¢ consa- ‘gradora exposigao Jorge Luis Borges realizada no Centre Georges Pom- pidou, de Paris. Os grandes homens nao morrem no timulo, mas na primeira estétua piblica. A gloria enterra e, por isso, ela é dita (aqui, ‘A Ameaca do Lobisomem — 37 neste texto) postuma. Nao ha continuidade. HA solugo de continuidade. Mas o texto de Borges continuara sendo de ajuda, no para que com ele nos identi- fiquemos em reveréncia, no para que dele se apropriem ¢ riam os iluminados pensadores europeus. Teremos de ler 0 que foi e permanece recaleado (excluido, marginalizado, assassinado, etc.) tanto no texto de Borges, como no texto modemista latino-americano. Ou seja: aquele elemento, um detalhe apenas, que ameaga o texto borgeano na sua condi¢ao de méquina reprodutora, fabricante de produtos originais e canénicos pela universalidade. ara isso, tomemos como exemplo uma outra enciclopédia de animais. Agora, o Manual de Zoologia Faniéstica, escrito 2 quatro miios, por Borges e Margarita Guerrero, e por mutlas outras ios ¢s- parramadas pelo mundo, aquelas que tornam possivel uma coletinea enciclopédica. Detenhamo-nos na leitura do “Prélogo”. prélogo é uma construco cartogrifica tipica de Borges. Ele 6 trabalhado por um grande desdobramento e por desdobramentos meno- res, desdobramentos dentro do desdobramento. O todo compe um jar- ddim ~ zooligico no caso ~ de “senderos que se bifurcan” cujo horizonte anunciado ¢ o infinito. O grande desdobramento enancia e abriga sinmul- taneamente 0 jardim zoolégico da realidade e o jardim zoolégico das mitologias. De um lado, nos dz o texto, a “zoologia de Dios” (os animais) e, do outro, a “zoologia de los suefios” (os monstos). ‘Trabalhemos primeiro com as palavras dedicadas zoologia de Deus. Elas comegam por enunciar um ‘opos classico da vanguarda. O zoolégico real seria o lugar por exceléncia da crianga que existe em cada um de nés. E preciso dar voz a essa nalveté que descobre 0 ‘mundo e 0 reinventa em abusiva enciclopédia, A observagao de seres, estranhos (no so humanos, niio sZo animais domésticos) num jardim, cem lugar de alarmar ou horrorizar a crianga, encanta-a. Por isso, ir a0 zoolégico é uma “ Caberia transcrever aqui uma instrutiva anedota narrada por Cliudia Matos 0 fi nal do seu livio Acer- tei no milhar (Samba © Malandragem no tempo de Getto): “Na conversa que tive com Moreira da Silva, pedithe um esclareci- ‘mento sobre algo que ‘me deixara intrigada rum samba que ele ha- via gravado, Tratava- se de um verso impro- visado no breque final que diia:‘6ij8 me dis seram até que eu vira- va lobisomem. Como 1 ligagdo do tal lobiso- mem com 0 resto do samba era obscure, ‘embora perceptivel, perguntei-the: “Mas final, Morera, © que vvoot diz com essa his- téria de lobisomem? Nada, ora. E pra ri- mar, compreende? (eantando:) “Ate mu- dei mew nome... 6 jé ‘me disseram até que eu Virava lobisomem...” Rima, ¢ eabe bem no tamanho da frase. “Mas, Morera, se voee ps essa palavra © nfo ‘outra qualquer, € por- que tem alguma coisa ‘aver, Tem uma ligagio ‘com 0 resto, nem que oot nio peroeba, que sj inconsciente. Eo velho Morenguei com um rsinho de go- ‘ago: Bom, igaglo la isso deve ter mesmo, Mas isto. € seu t batho! Ou nfo é”™ “0 Webster's registra no verbete parallel “extending inthe same direction and at the same distance apart at every pont so as ne- ver to meet, s ines, planes ein modem nom-Bucldian geome- try, such lines and planes are consiered to meet at infinity.” ‘A Ameaga do Lobisomem — 39 Diabo, ativa a nogdo de conflito entre norma e desvio, entre saber © ignordncia, entre Céu e Inferno, entre Deus e Diabo, ete., optando pela exclusio ao final, ad astra per aspera, do que é dado, ad limine, como desvio. Borges retoma aqui um velho paradoxo popular e mistico, dado pelos diciondrios‘ como pertencente & modema geometria néo-euctidia- nna ~ o que diz que as paralelas se encontram no infinito, paradoxo este, no tenhamos divida, que é a garantia da legibilidade do seu texto pelo grande piblico. Esse paradoxo est no nosso modemista Murilo Mendes, quando ele afirma, em aforismo, que pelos cinco sentidos também se chega a Deus ¢ esti, de maneira bem mais prosaica, no provérbio que diz que todos 0s caminhos levam a Roma, Tmportante assinalar que, ao ativar os pares em guerra, ao ativé- los até 0 infinito que, como vimos, é recoberto por uma tinica metafora vencedora — platénica, schopenhauriana, biblica ou judaico-cabalistica, pouco importa -, Borges empresta ao que julga ser desvio o sentido da bestialidade (e nio da animalidade fantastica, pois esta é contemplada pela zooogia, a de Deus ¢ a dos sonhos). Decreta-se assim a impos- sibilidade de que 0 que é dito como norma se transfigure num devir ‘outro e paralelo, suplementar. Esse devir outro da norma, a ser margi- nalizado e excluido da escrita borgeana, marca sempre a posse do Dia- bo sobre 0 “ser” ¢, por isso, o movimento do ser humano em diego a0 seu outro precisa ser exorcizado literaria ¢ deliberadamente, Nao hi lugar para o maligno em livro assinado por Borges ¢ companheiros. Desde os anos 80, estamos dizendo & modemidade que ponha o diabo outro canto. ‘No nosso Modemismo, 0 diabo também precisou ser exorcizado, ‘ou assassinado, pelo menos por duas vezes. Um primeiro exemplo. Desde a pagina inicial de Grande Sertdo: Veredas, tem-se de assassinar 0 demo que existe nas transformagdes do bezerro em cachorro, em ser hhumano. Leiamos as palavras de Riobaldo: “Dai vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser — se viu -; e com mascara de cachorro. Me disseram: eu ndo quis avistar [-] Cara de gente, cara de cdo: determinaram — era 0 demo. Povo prascévio, Mataram.” O movimento da transformagao, do devir outro, & também a forte presenga do Diabo no texto de Guimardes Rosa. Disso resulta que a encamago do movimento de transformagao se dari, na imagem do redemoinho, passageiramente vencedor, é claro. De- pois de duzentas piginas, a imagem do pé-de-vento reaparece no ro- ‘mance, agora descrita em sua coneretude, “Redemoinho: o senhor sabe ~ a briga de ventos. 0 quando um esbarra com outro, ¢ se enrolam, 0 doido espeticulo. A poeira subia, a dar que dava no escuro, no alto, o ponto as voltas, folharada, ¢ ramaredo, quebrado, no estalar de pios, assovios, se torcendo turvo, esgarabulhando, Senti meu cavalo como 40 — Revisa Bras deLtratura Compare, 4, 1958 meu corpo.” Nessa passagem 0 cavalo ¢ sentido como o proprio corpo do narrador. Nao se trata de uma “imagem deliberada” por parte do omancista, ou seja, homem-c-cavalo no representam a invengo do centauro dos sonhos. Pela catilise do redemoinho/Diabo, trata-se de uma “confusdo ignorante” ~ para retomar os ensinamentos do manual de Borges-Guerrero. Um segundo exemplo. “Lobisomem. Estremeceu com 0 pensamento. Era como se lhe sritassem ao ouvido: Assassino! Lobisomem.” — eis o que sente o per- sonagem José Amaro no romance Fogo Moro, de Lins do Rego. No universo romanesco do escritor nordestino, os lugares sociais do senhor de engenho e do negro so nitidamente demarcados. Sem lugar preciso fica o homem livre, vivendo de favor nas terras do engenho. Na socie- dade dramatizada por Lins do Rego é ele o personagem passivel de vviver o movimento de transformagao: virar negro, virar senhor. Em Fogo Morto esse lugar movel é ocupado pelo seleiro José Amaro, que sera cexpulso das terras do coronel Lula. Nem senhor, nem negro, andaritho, lobisomem. Em noites de lua, o seleiro sai livremente a caminhar pelo campo ¢, diz 0 povo, se transforma em lobisomem. A busca de algo além das necessidades didrias ~ ou seja, a auto-satisfagdo na comunhdo com a natureza adormecida, a liberdade conquistada e a solido tomada pelo lirismo bucélico ~ toma José Amaro estranho ao mundo familiar das terras de engenho descritas por Lins do Rego. Pouco a pouco o sel vai sendo marginalizado, temido, ridicularizado, escorragado. O roman- ce historia as varias fases da sua transformagdo em lobisomem ¢ as respectivas conseqiiéncias. ‘Ao final do segundo capitulo se 1é: “No outro dia corria por toda ‘a parte que o mestre José Amaro estava virando (a partir de agora, os grifos siio nossos] lobisomem. Fora encontrado pelo mato, na espreita da hora do diabo; tinham visto sangue de gente na porta dele”. verbo que o livro mais conjuga para José Amaro é 0 verbo virar, j4 que ele nunea é, se for, sera alguém sem identidade definida, ‘ou com identidade a ser definida pelos outros para ser mais justamente marginalizado, Virar nos seus varios sentidos dicionarizados. Virar no sentido de transformar, como neste caso: “Diziam que pelas estradas, pela beira do rio, alta noite 0 velho virava em bicho perigoso, de unha como faca, de olhos de fogo, atrés da gente para devorar”, Também no ‘sentido de desordenar, como no caso do redemoinho roseano, ou neste outro exemplo: “E como [0 lobisomem] no encontrava pessoa viva, chupava os animais, matava os cavalos, ia deixando tudo virado com a sua passagem.” Ainda no sentido de se sentir inc6modo consigo mes- mmo: “[José Amaro] Vem como se tivesse um ente dentro dele, Vira na Tede, fala sé, da grito no sono.” Se transforma em, traz a desordem * Nao se pode exquecer {que 0 verbo virar, no ‘mundo fortemente at sualizado de Lins do ‘Rego, comportaum quar- to © sugestive sentido quando se diz de ser rmatculino que ele esta virando. ‘A Ameaga do Lotisomem — 4] para ¢, por isso, ndo se sente bem na propria pele*- eis a diabélica presenga do lobisomem aos olhos dos familiares e, principalmente, do narrador do romance. lobisomem sera triplamente excluido em Fogo Morto ~ das terras pelo senhor do engenho, da comunidade pelo temor religioso do povo ¢ da familia pela raiva da mulher. Ele questiona a propriedade rural, 0 credo religioso e a organizagao familiar. Pergunta José Amaro: “Por que seria ele para a crenga do povo aquele pavor, aquele bicho? O que fizera para merecer isto? [...] E se fosse embora e procurasse ‘outra terra para acabar os seus dias? {...] Tinha receio de sua mulher. Era sua inimiga. Por qué? O que fizera para aquele édio terrivel de Sinha?” Como arremate, diz a esposa em conversa com a amiga: “Co- madre, eu prefiro a morte a viver mais tempo naquela casa. Uma coisa me diz que ele tem parte com 0 diabo.” Triplamente ameagador, tripla- mente excluido, resta-the a auto-exclusio, Se suicida com a faca de cortar sola, completa o narrador. Os exemplos seriam inimeros dessa ligagao do verbo virar com © Diabo, também com a série sransgressdo, sentenca, punigo, casti- 0, exclusdo ¢ morte. No Modernismo, no houve lugar de Vida para 0 ser em transformagao entre os seres vivos da zoologia de Deus, entre 0s seres conjugados ¢ mortos da zoologia dos sonhos. Resta-Ihe convi- ver com a dura realidade da transformacao, sabendo de antemo que no encontrar como sobreviver a nao ser por obra e graga do Diabo. 3. Hyde and Seek: esconde-esconde Ir-ao zoolbgico, escreveu o casal Borges-Guerrero, era uma “di- versién infantit”. Ler a novela The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, autor que Borges prezava dk mais, como esté no prefiicio de Ficciones, pode ser também uma brit cadeira infantil. Pelo menos é o que se depreende do segundo capitulo dda novela, “Em busca do sr. Hyde”, onde 0 advogado Utterson, devida- mente alertado pelo amigo e companheiro de conversas, Endfield, co- mega a se interessar pelo novo ¢ desconhecido amigo do médico também companheiro de prosa, o dr. Jekyll. Ali se Ié: “If he be Mr. Hyde,” he had thought, “I shall be Mr. Seek.” Esse trocadilho, fazendo o nome proprio virar verbo e o verbo virar nome proprio, é intraduzivel, como, ali, era intraduzivel o titulo original da novela, dai a solugdo oportunista que acabou pegando nas edigdes do mundo latino: O Médico e o Monstro; diziamos, esse troca~ dilho é intraduzivel pois tanto remete para o cardter escondido, notumo «e secreto, da personalidade do profissional da medicina, quanto para 0 cariter detetivesco, legalista, perverso ¢ voyeur, do advogado. O tro- 42. — Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 4, 1998 cadilho deixa de ser intraduzivel no momento em que se descobre que a ‘combinagao de palavras ¢ 0 nome de um jogo infantil classico, “hide- and-seck”, conhecido entre nés como “esconde-esconde”. “Hide-and- seek” é, informa o Webster's, “a children’s game in which some players hiide and others then try to find them”, Uma otra “diversion infantil”. Nao se trata aqui de analisar uma vez mais, e objetivamente, esta famosa novela de Stevenson, mesmo porque Elaine Showalter recente- mente, no livro Anarguia Sexual, fez um brilhante retrospecto da criti- ca stevensoniana e, ao mesmo tempo, avangou uma leitura original que também serve para descrever, contrastivamente, 0 ethos homos- sexual do fim do século passado com o do final deste*. Sua leitura, & bom que se diga, coagula o movimento do texto stevensoniano, 0 movimento dos personagens na homossexualidade latente, na medi- da em que se vale, constantemente, de referéncias a casos reais, tanto no campo propriamente jomnatistico da época (os chamados fait-di- vers), quanto no campo das pesquisas psicanaliticas (a histeria mascu- lina). Ela esquece a delicadeza humana, demasiado humana de certos jogos: “the ape-like tricks that he (Mr. Hyde] would play me [DrJekyll], serawling in my own hand blasphemies on the pages of my books”. Tentaremos, pois, brincar de esconde-esconde com o texto de Stevenson e de Borges, como a crianga no Manual de Zoologia Fan- téstica brineou coma idéia de jardim zoolégico. Conta hoje, para nds, 0 fato de que a transformacio do médico no st. Hyde & uma exibigdo a mais de um ser virado na jaula do texto modemista e, nesse sentido, estamos solicitando a ele que ele dé continuidade deliberada ao Ma- nual de Zoologia Fantéstica, estamos pedindo a ele que encontre ali no livro o lugar de verbete que Ihe foi negado, a fim de ajudar-nos a desconstruir a ordem conceitual borgeana, vale dizer, o repouso atual do seu texto em estitua pilblica. Em contraponto a esta iiltima frase, diz 0 texto de Stevenson: “Ah, its an ill conscience that’s such an ennemy to rest!” Liberto da jaula do texto borgeano e a caminhar pela nua londrina, 0 st. Hyde & uma constante ameaga piiblica, como o lobisomem de Lins do Rego. Atropela uma crianga, assassina uma importante figura brit nica. Sem a presenga mediadora do dr. Jekyll, ele causa terror € curio sidade, alimenta de vida tanto a existéncia do dr. Jekyll quanto as exis- téncias do grupo de amigos. © préprio de. Jekyll escreve a respeito do amigo em quem se transforma: “But his love of life is wonderful; I go further: I, who sicken and freeze at the mere thought of him, when T recall the abjection and passion of his attachment, and when I know how he fears my power to cut him off by suicide, | find it in my heart to pity him”, primeiro personagem da novela a ver o sr. Hyde & 0 st. End- field. Ele o descreve (sera que chega a descrevé-lo?) para o amigo + V. nesse sentido, oe pitula“O arma do dr. Jekyll”, ne tivto Amare quia Sexual Sexo eCul- tura no Fin de siécle) de Elaine Showal- terTentaremos neste trabalho discordar da sua letura da “imagem ‘organizadora” da nove- Ja, Baseada na interpre- tagdo de Stephen Hea- th, que diz que “a ima- ‘gem organizadora dessa narrative esth em artom- bar porta, em aprender 1 segredo que se excon- de aris delas", Showal- ter acrescenta: “Os nar- radores do segredo de Jekyll tentam esclarecer (0 misteio de um outro ‘hornem, nfo com 3 com- presnsto nem coma sua disposigto de compar- tithar um segredo, mas pela forga” (Roceo, 1993, p. 151). A nossa interpretagio, ao privi- legiae a brincadeira in- fant que esté no trora- diho, seencsminhs para uma leitura menos com ‘prometida com o esta- belecimento de papéis sexuais nitidos para os personagens, sem o de- so portato de arrom- bar a “verdadeire porta da identidade”, Prefere, antes, insistirno cardter brincalho, competitizo © voyeuristico do eos ‘homossexual ‘A Ameaga do Lobisomem — 43 Utterson, insistindo na deformidade fisica, que tanto & um dos tragos de Funes, quanto das “confusdes ignorantes”, e insiste principalmente na incapacidade que sente em aprender o individuo pela descrigio, néo por falta de meméria, mas por alguma razo que no chega a exprimir: “Tnever saw a man I so disliked, and yet I scarce know why. He must, be deformed somewhere; he gives a strong feeling of deformity, although I couldn’t specify the point. He’s an extraordinary-looking man, and yet I really can name nothing out ofthe way. No, sir; 1 can make no hand of it; I can’t describe him, And it’s not want of memory; for I declare I can see him this moment”. O segundo personagem a vé-lo, o advogado Utterson, avanga ‘um pouco mais no universo borgeano, conseguindo aprender o indivi duo por uma série de comparagées que servem para introduzir 0 st. Hyde, pelo avesso, ou seja, pelo carater diabélico, no universo mistico- platénico de Borges: “God bless me, the man seems hardly human! Something tloglodyctic, shall we say? or can it be the old story of Dr. Fell? or is it the mere radiance of a foul sou! that thus transpires ‘through, and transfigures, its clay continent? The last, I think; for, O my poor Old Henry Jekyl,if ever I read Satan’s signature upon a face, itis ‘on the of your new friend!” [esse jogo de esconde-esconde calvinista, o sr. Hyde & a prenda escondida que todos cobigam como se cobiga o “mal” de que, acreditam, estio se desvencilhando, ¢ 0 jogo infantil se transforma em outra brin- cadeira similar, a do chicotinho queimado, O dr. Jekyll, a0 esconder em. ‘casa o sr. Hyde, como a um chicotinho queimado, alimenta a curiosida- de perversa dos seus amigos. Vai-Ihes soltando pistas: esid quente, cestd esfilando, estd quente de novo ~ como se o jogo (infantil) do homoerotismo, no texto modemista, s6 se pudesse dar numa espécie de tringulo onde 0 outro e semethante € a mediagio para o terceiro ¢ difecente, e, por isso, tnico cobigado por todos. Esse truque pode acon- tecer, desde que se tenha a coragem de se destruir o duplo e semelhan- tee se intrometer, pela violéncia, na danga a trés, a quatro, ete, Maior do que o mal-estar causado pela estranha figura do st. Hyde & 0 causado pela vitéria do mal de que falou o texto de Stevenson para os contemporsineos. A violencia, na novela, ndo é a que ajuda arrombar as portas do armario, do closet, como diz Elaine Showalter, mas a que opera uma definitiva reviravolta no mundo calvinista e vitoriano do fim de século. Em lugar de dar forgas ao bem como no modelo ficcional modemnista, a violéncia stevensoniana dé forgas ao mal que existe no ser humano mével, passivel de ser transformado em algum outro ser extraordinario (“he’s an extraordinary looking man”), Um dos amigos e correspon- dentes de Stevenson, A. J. Symonds, detecta o perigo da teologia as avessas pregada pela novela e Ihe escreve, apreensivo, por ocasido da publicagZo do livro: “You see I am trembling under the magician’s wand 44 Brasileira de Literatura Comparada, n° 4, 1998, of your fancy, and rebelling against it with the scom ofa soul that hates to be contaminated with the mere picture of victorious evil. Our only chance seems to me to be to maintain, against all appearances, that evil ‘can never in no way be victorious.” Tudo se passa assim na novela porque a violencia deliberada s6 esta nos varios personagens que saem & procura do sr. Hyde, todos masculinos, todos solteiros’. Ja 0 médico, no seu laboratério, chegou a transformagao por um produto do acaso. “Los senderos se bifurcan”, em Stevenson, no por obra do esforco classificatério ¢ cientfico, mas por obra ¢ graga do caso. “That night I had come to the fatal cross roads. Had I approa- ched my discovery in a more noble spirit, had I risk the experiment while under the empire of generous or pious aspirations, and all must have been otherwise, and from these agonies of death and birth, I had come forth an angel instead of a fiend. The drug had no discrimina- ting action; it was neither diabolical nor divine [grifo nosso”. Nem diabélica nem divina, para o médico, a droga nao assinala um sentido iinico, ela no tem um fim pré-determinado pela logica cientifica. Ela permite 0 jogo das permutagées até o infinito da vida humana. A droga significa, pois, a propria disponibilidade que existe para o homem em toda encruzilhada da sua vida ‘Nao tem sido salientada nas leituras da novela de Stevenson, 0 fato de que 0 destino dado a vida do médico, a transformagao final do ‘médico no sr. Hyde, ou seja, 0 fato de que o mal (isto é, a coagulagdo do duplo em um iinico ser, a negagdo da transforma¢do) sé triunfe porque ‘naquele exato momento — no instante crucial da experiéncia - circulava no mercado londrino uma droga impura. O sentido da droga & determi- nado pelo mercado das drogas. Confessa aos amigos o dr. Jekyll: “You will learn from Poole how I have had London ransacked; it was in vain; and I am now persuaded that my first supply [of salt] was impure, and that it was that unknown impurity which lent efficacy to the draught” (grifos nossos]. O universo da transformagzo é o da impureza no mercado londrino. Do momento em que o médico utiliza apenas a pureza dos produtos que sao comercializados no mercado, nao ¢ mais possivel o jogo das transformagées. O movimento de ida-e-volta da metamorfose nao é mais possivel porque a droga que o mercado passou a oferecer ao médico era pura: “[ sent out for a fresh supply [of salt], and mixed the draught; the ebullition followed, and the first change of colour, not the second; I drank it, and it was without efficiency.” A pureza coagula 0 monstro, ” Jenni Caer, estudio. ‘8 de Stevenson, obser- var “Itis interesting and significant that all the characters in the story are in a sense isolate. ‘They have no wives, no families, no close fr- cend-ships. They have servants and they have acquaintances, but that is all”

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