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AS TRES IDADES DA ETICA EMPRESARIAL ADELA CORTINA 1 Empresa e ética: a forja do carater das organizacoes 0s anos 1970, surgiu com impeto nos Estados Unidos a ética dos negécios (business ethics), que boa parte do mun- do europeu preferiu rotular como “ética da empresa”. Talvez porque 0 capitalismo renano, que conformava em tao alto grau o modo europeu de entender a empresa, induzisse a concebé-la no sé como um negécio, mas como um grupo humano que leva adiante uma tarefa valiosa para a socieda- de, a de produzir bens e servigos mediante a obtengdo do beneficio’. Desse ponto de vista, a empresa tem de ser “em- preendida” com espirito criador. A nova ética empresarial pro- pagou-se pela Europa nos anos 1980, pela América Latina ¢ pelo Oriente nos anos 1990; € 0 curioso é que as pessoas se espantavam com o fato de que alguém ousasse ligar termos como “empresa” e “ética”, Comentavam que era como querer juntar azeite e agua. Apés alguma reflexdo, esse comentario perde todo 0 seu sentido, porque a atividade empresarial ¢ atividade humana e, como tal, pode estar imbufda de um grau de moral mais ou menos elevado em suas diferentes dimens6es (na qualidade do produto e nas relagdes com os diversos elementos por ela afe- tados); pode aproximar-se mais ou menos das metas que lhe do sentido como atividade ¢ mediante as quais adquire le- gitimidade social; e pode fazé-lo com os meios exigidos pela consciéncia moral dessa sociedade, ou ficar aquém dela, mas ‘no pode se situar além desse contexto. E isso ¢ amplamente Este trabalho est inscrito no projeto de investigagio sobre éticas aplicadas BFF2001-3185-Co2-01, do Ministério de Ciencia e Tecnologia. M. ALBERT, Capitalismo contra capitalism, Paidés, Barcelona, 1992. 20 Etica da empresa no horizonte da lobalizagao A. CORTINA, Hasta um — 3 Pueblo de demonios: Etica publica y sociedad, Taurus, Madti, 1998, cap. 8, A. CORTINA ETAL, 4 Etica de la empresa: Claves para uma nueva cultura empresarial, Trotta, Madti, 52000. reconhecido pelo discurso empresarial, nfo apenas quando se pronuncia a palavra “ética”, mas também quando se abor- dam questées que implicam ética empresarial: cultura de em- Presa, avaliagdes de qualidade, recursos humanos ou capital humane, clima ético, capital social, responsabilidade corpo- rativa, diregdo que toma por base os valores, comunicacao €m ambito interno e externo, balanco social, necessidade de antecipar 0 futuro criando-o, sem dizer que jé se fala de cd- digos éticos, auditorias éticas ou fundos éticos de investi- Mento. Trata-se, aqui, de um conjunto de dimensées, algumas delas insofismaveis, que compéem o carter da organizacéo, seu ethos, e devem estar & altura das circunstancias para cum- prir a contento a missio da empresa. De modo anélogo as pessoas, as organizacées forjam para si mesmas, ao longo de suas vidas, um cardter pelo qual se identificam e sao identificadas pelo outro. Tém, 20 nascer, segundo diriam os classicos, uma “primeira natureza”, contam com os caracteres das pessoas que investem no Projeto e com os textos escritos sobre a missio € a visdo da empresa, Todavia, a0 longo de sua existéncia, vao tomando decisées que a sociedade imputa a seus membros nao como pessoas particulares, mas como membros das organizagoes. Assim, pode-se muito bem dizer que a organizacao como tal toma decisdes — por analogia com as pessoas — € pode ser respon- sabilizada por essas decisées. Ela é, pois, agente moral — nao © sdo somente as pessoas —, tendo liberdade de forjar para si mesma um carater ou outro’. Liberdade, isso sim, condicio- nada interna e externamente, como toda liberdade humana. Desde suas origens, a ética foi gestada como um saber que se propie oferecer orientagées para a aco, de modo que procedamos racionalmente, isto é, que tomemos decisdes justas € boas*. E recebe o nome de “ética” justamente porque tomar tais decis6es exige o cultivo das predisposicdes para tomé-las até que se transformem em habito, ou mesmo em costume. Assim sucede na vida cotidiana, em que as pessoas trans~ formam em costume o levantar-se da cama de determinada forma, entrar no elevador e dirigir-se ao trabalho. E ainda mais complexo: do mesmo modo que as pessoas transformam em costume comportar-se de uma forma ou de outra com cada uma das demais pessoas e com as instituicdes, realizar de uma forma ou de outra seu trabalho, também as organiza~ Ses acabam transformando em costume o comportar-se de sa forma ou de outra. E isso supde uma reserva de energias, arque seria extenuante ter de partir do zero em cada tomada decisio, pois é essencial estar jé predisposto a agir em um entido determinado. Para ser justo, dizia Aristételes, € indis- avel adquirir 0 habito de tomar decisdes justas, tanto 10 para ser prudente, forte ou magnénimo. As boas deci- Ses ndo se improvisam: toma-las sem desperdigar uma enor- quantidade de energia a cada vez exige que se forje 0 ito adequado. A palavra “habito” encerra sem dirvida uma grande ri- eza. Nao apenas se refere 4 predisposi¢&o das pessoas e organizagées a tomar decisées ¢ a agir em um sentido sminado — de tal forma que quem é justo esta pre- Sposto a tomar decisdes justas —, mas nos remete também ‘expressiio “haver-se com” a realidade de uma forma ou de utra®. Toda pessoa e toda organizacdo tém de haver-se com realidade de uma maneira ou de outra, ¢ a pessoa justa a com a realidade a partir da disposigao de ser justa. O e custard menos esforco a pessoa ou a organizacao justa 4 0 ato de decidir com justiga; em contrapartida, decidir uma forma injusta exigira delas, entre outras coisas, 0 ssforco de se defrontar com seus préprios habitos, que jé aram — para dizé-lo também com os classicos — uma nda natureza. Adquirir estes ou aqueles habitos é inevitavel. E inevi- | forjar para si mesmo uma segunda natureza que predis- mais ou menos a agir com transparéncia, a assumir ou Bo a responsabilidade corporativa, a tratar com justica os tados pela empresa. Assim, o proceder inteligente consiste incorporar o tipo de habito que melhor possa conduzir fim da pessoa ou da organizacao, no minimo por duas fez6es: porque ter de escolher ¢ inevitavel e porque ¢ uma aténtica economia de energias. Nesse sentido, a ética tem maior aleance que o direito: a egislaciio procura evitar condutas desviadas e, mesmo, comu- car o que uma sociedade tem majoritariamente por correto’, anto a ética trata do ethos, incorporando no carater das ‘pessoas e das organizacées habitos que podem levar a decisoes sstas ¢ boas. De tal forma que o “natural”, no sentido dessa segunda natureza adquirida, seja entdo tomar decisdes em 21 4S TRES IDADES DD ETICA EMPRESARIAL, J. L. L. ARANGUREN, “Btiea", in Obras completas, v. 2, Trotta, Madri, 1994, parte |, cap. 2. W. VAN DER BURG & F.W.A. BROM, “Legislation on Ethical Issues: Toward an Interactive Paradigm”, Ethical Theory and Moral Practice 3/1 (2000), p. 57-75. 22 tica da empresa ‘na horizonte da slobalizagio F. FUKUYAMA, 7 EL fin del hombre, BSA, Barcelona, 2002. O titulo ingles & muito mais revelador do contetido do liv Our Postiuuman Fut R. D. PUTNAM, Making Democracy Work: Civic Traditions in Modern Italy, Princeton University Press, Princeton, NJ, 1993 favor da integridade e da transparéncia. Falar de “natureza humana” € dificil, apesar dos novos propdsitos de fazé-lo’; mas pode-se incorporar com alguma facilidade a idéia de que ¢ inevitavel adquirir um cardter, uma “segunda nature- za”, e que, em conseqiiéncia, é inteligente fazé-lo de tal forma que tomar boas decisées se tone pouco dispendioso. Por isso, uma organizacao que adquire bons habitos gerou as disposigdes requeridas para tomar boas decisées, ¢ ‘nao s6 Ihe custa menor esforgo toma-las, poupando, portanto, energias, mas também os que se relacionam com ela podem esperar com fundamento que procedera de acordo com os fins e com os meios que exigirem da organizac3o a consciéncia moral social. Podem confiar nela. Para compreender os povos — dizia com muita coeréncia Alexis de Tocqueville —, ¢ mais importante conhecer suas leis do que sua geografia; todavia, mais importante ainda que conhecer suas leis é conhecer seus costumes, os “habitos de seu coragdo” E isto é 0 que ocorre com os povas ¢ com as organizacées que constituem sua trama social: quando seus habitos e seus costumes nao predispdem a tomar decisdes justas e boas, o mundo legislativo ¢ 0 judicial se tomam insu- ficientes, além de funcionar contra a corrente. Em tais casos, as sociedades encontram-se ja apanhadas naquele circulo vicioso de que falam as teorias da escolha racional’, um circulo que reforga as condutas nocivas a socie- dade: as organizagées ¢ as pessoas que vivem em uma socie- dade na qual habitualmente se descumprem os contratos, se Tecorre ao engano ¢ funciona a “contabilidade criativa” ndo yéem nenhum beneficio em agir de outra maneira. E nao po- dem esperar que os demais procedam de outra forma, porque serio enganadas. Portanto, nao parece racional em um am- biente adverso apostar no cumprimento dos acordos, agir com transparéncia, ajustar a “contabilidade criativa’. O circulo vicioso alimenta-se a si mesmo, € torna-se dificil rompé-lo: como é possivel dar inicio a um circulo virtuoso? Circulo virtuoso, obviamente, é aquele no qual reinam os habitos contrarios aos acima expostos e, como cabe confiar em que os demais iro agir segundo eles, todos podem se- gui-los — isso alias Ihes convém, porque o descumprimento dos pactos e as mas atuagGes sao castigados tanto com a sano legal como com a social. Na realidade, os circulos virtuosos beneficiam 0 conjunto da sociedade, como procuram mostrar os dilemas da escolha coletiva; todavia, para ser efetivos, necessitam de uma adesdo majoritaria a esses bons hdbitos, que na tradicdo grega recebe- ram o nome de “virtudes” (aretai), “exceléncias” do cardter. As virtudes sao os habitos que predispdem a escolher bem, a0 passo que os vicios s40 os que predispdem a escolher mal; quem incorpora as virtudes é excelente. Curiosamente, 0 discurso da exceléncia fez fortuna no mundo da empresa em fins do século XX. Desde que Peters ¢ Waterman publicaram seu livro Em busca da exceléncia, en- tendeu-se que as empresas excelentes so as que melhor sabem lidar no mercado. Em todo caso, convém indicar que as ex- presses que estamos empregando, tais como “habitos”, “virtu- des” (“exceléncias”), “costumes”, podem ser entendidas em um duplo sentido: seja como os costumes que se adquirem por heranca, sem reflexdo sobre sua validade moral, seja como os costumes conscientemente adquiridos ou conscientemente avalizados por sua validade moral. E, embora seja verdade que os bons costumes na empresa constituem um bem por si mesmos, é ainda melhor, por ser expresso da liberdade, que quem os assume os valorize pelo que valem, reforcando-os, por entender que eles potencializam a liberdade real do mundo social. Deve-se ter em mente que os bons habitos constituem um bem publico, do qual se beneficiam nao 6 os que se esforcaram por crid-lo, mas muitas outras pessoas. Nesse senti- do, Hegel entendia que a liberdade, para encarnar-se de modo efetivo, deveria ser incorporada aos costumes, que constituem as “leis do mundo humano livre”: Assim como a natureza tem suas leis, € os animais, as arvores € 0 sol cumprem com as suas, assim o costume é 0 que corresponde ao espirito da liberdade [...]. A pedagogia ¢ a arte de tornar os homens éticos: considera o homem como natural € mostra-the 0 caminho para voltar a nascer, para converter sua primeira natureza em uma segunda natureza espiritual, de tal maneira que 0 natural se transforma em habito . Quais deveriam ser esses habitos, essas exceléncias no caso das empresas ¢ uma das grandes questdes da ¢tica em- presarial, & qual s6 se pode responder esclarecendo em que consiste a atividade empresarial, quais so suas metas e, por- tanto, seus principios e valores". Coisa bem dificil de fazer, 23 AS TRES IDADES DA ETICA EMPRESARIAL G.W.F HEGEL, Principios de ta Fitosofia del Derecho, § 151; destaque acrescentado. © Ocuparam-se desse assunto A. CORTINA ETAL, em Etica de la empresa, op. Gl, ¢ mais tarde, juntamente com A. CASTINETRA, J. F. LOZANO, J. M. LOZANO, em Rentabilidad de la ética para la empresa. 24 Erica de empresa no horizonte da lobalizagzo B.NINO KUMAR eH. 11 ‘STEINMANN (eds), Ethics in International Management, Walter de Gruyter, Berlim, 1998. G. ENDERLE (ed), 12 International Business Ethies: Challenges and Approaches, University of Notre Dame Press, Notre Dame, 1999, A. CORTINA, “Bioética 13. transnacional como ‘quehacer puiblico”, in J. FERRER € J. L. MARTINEZ (eds.), Bioética un didlogo plural, UPC, Madri, 2002, p. 541-54, éém do Global Compact 4 das Nagoes Unidas, cexistem outros cédigos com pretensdo global, como podem ser os Principios de ta Caux Round Table ou 0s Principios globales Sullivan de responsabilidad social corporativa. Ver, a respeito, G. ENDERLE, op. cit; J. FERNANDEZ (coord), La ética en los negocios, Ail, Barcelona, 2001; J. F. LOZANO, Fundamentacion, aplicaciéin y desarrollo de los eadigos éticos en Tas empresas, tee de doutorado, Universidade de Valencia, 2002. A esse respeito, ver 15 também Journal of principalmente levando-se em conta que as empresas desen- volvem sua atividade em um mundo mutante do ponto de Vista social, econémico e politico; um mundo com tradigées € culturas diversas, com diferengas de consciéncia ética em contextos distintos. Nesse mundo, que é tudo menos imuta- vel, as préprias empresas mudam sua concepcao acerca de si mesmas e tém de compreender as mudangas de seu entoro para lutar por sua viabilidade". Donde se infere que, mais do que falar do ethos da empresa, é preciso falar dos ethoi das empresas, de seus ca- racteres, dos habitos que deveriam incorporar, tendo em conta as possiveis concepgdes de empresa ¢ 0 nivel ético adquirido pela sociedade em que se inscreve; sem esquecer que em Ambito internacional vao aparecendo paulatinamente pro- postas que pretendem dar orientagées, ainda que minimas, para o fazer empresarial em seu conjunto'”. Propostas que, a meu ver, modulam para o ambito empresarial o que sao as exigéncias de uma Etica Civica Transnacional, que se vai gestando pouco a pouco”. Se essas exigéncias propostas em ambito global, como a do Global Compact das Nagdes Unidas", so declaracées ver- bais de boas intengdes, afastadas de uma realidade empresa rial destituida de interesse por elas, ou se, ao contrario, esto enraizadas nas necessidades do mundo empresarial; se a forja de ethoi, de habitos com qualidade moral, é uma exigéncia da atividade empresarial nos diferentes contextos e tradigdes, essa éa questo com que se defrontam os diversos trabalhos deste volume. Eles se situam em nossos dias, nesta sociedade da informaciio e das comunicagdes em que vivemos, nos movemos € somos, nesta nova “era” em que se desenvolve a atividade empresarial, apés haver vivido pelo menos outras duas, a indus- trial ¢ a pés-industrial. Nas duas tltimas, os habitos gerados a partir de crengas € conviegdes foram pecas-chave no bem fazer da empresa; cabe perguntar se assim é também na era da informacdo, e de que modo ou em que medida”. 2 Aera industrial Com efeito, na era industrial, obras isoladas como as de Adam Smith e Max Weber asseveraram a convicco de que existe uma estreita conexdo entre empresa e ética, de tal forma que 0 éxito empresarial exige condigdes nao sé legais, mas também morais. No que tange a Adam Smith, nao é demais lembrar, em principio, que era professor de Filosofia Moral ¢ acreditava na economia como uma atividade capaz de gerar maior liber- dade e, por conseguinte, maior felicidade, Nessa ordem de coisas, anteriormente a A riqueza das Nagées, escreveu uma extraordinaria Teoria dos sentimentos morais, cuja chave era o sentimento de simpatia. Um sistema econémico ne- cessita sempre de um respaldo ético, e, juntamente com 0 amor-préprio como motor para o intercambio, juntamente com 0 af de lucro, existem outros sentimentos e valores indispensaveis para compreender a atividade econémica em seu conjunto"’. Nesse sentido, Sen assinala acertadamente que um bom mimero de especialistas parece ndo conhecer nenhum outro paragrafo de Smith além do célebre texto do agougueiro, cervejeiro ou do padeiro, dos quais esperamos que nos propor- cionem nossa comida nao movidos pela benevoléncia, mas por seu prdprio interesse: “Nao nos dirigimos a sua humanida- de, mas a seu amor-prdprio”, Donde tais especialistas deduzem que no mundo econémico a ética esta de sobra. Nao obstante, Smith esta bem consciente de que a economia nao é apenas intercambio, mas também produgao e distribuig&o, e que em todos esses momentos do processo ¢ imprescindivel uma éti- ca que nao € apenas a do amor-préprio: 0 habito de cumprir 98 contratos, 0 compromisso com a qualidade dos produtos, a confiabilidade das instituices, € todo um amplo mundo que inclui, em dadas circunstancias, motivagées distintas do auto-interesse. Criar riqueza para a comunidade, manter a hhonra de uma familia de comerciantes, fomentar lacos coope- tativos so méveis da aco que nao se identificam com o auto-interesse mas, néio obstante, so imprescindiveis para a atividade econémica”. Por sua vez, Max Weber, em A ética protestante e 0 espirito do capitalismo, pretendeu mostrar como o espirito do capitalismo precedeu sua encarnagdo econémica; como um tipo de ética — neste caso, a ética protestante — confor- mava esse espirito que alentou o corpo do capitalismo ao nascer. E tomou-se lugar-comum — pelo menos desde Weber 25 As TRES DANES DAETICA EMPRESARIAL Business Ethics, 39/1-2 (2002), que redme uma selecdo das comunica- GOes apresentadas no XIV Congresso da European Business Ethics Network ¢ cujos editores so A. CORTI- Ne J.C. SIURANA. P. KOSLOWSKI, Ezhif des Kapitalismus, Mohr, Tubingen, 1986; J. CONILL, De Adam Smith al imperialismo econémico”, Claves de Razén Practica 66 (1996), p. 52-6. A. SEN, “Does business ethics make economic sense?", Business Ethics Quarterly 3/1 (1993), p. 45-54 (trad. castelhania em Debats 77 (2002), p. 116-27); ver também, aqui, “Etica da empresa € desenvolvimento econdmiico” p. 40-4. 26 Elica da empresa noharizante de lobalizagio M. WEBER, La ética protestante y el espiritu del capitatismo, Penin- sula, Barcelona, 1969; RH. TAWNEY, Religion and the Rise of Capitalism: a Historical Study, John Murray Londres, 1936. Tawne afirma, no obstante, que as coisas so me- nos esquematicas do que Weber pretende (ibid, p. 320 e 321) A. CORTINA, Por una ética del consumo: La ciudadania del consu- midor en un mundo global, Taurus, Madri 2002, cap. 8 H.M. ROBERTSON, Aspects on the Rise of Economic Individualism, CUP, Cambridge, 1933. Em ‘oposigo a Robertson, ver J. BRODRICK, The economic Moral of Jesuits, Londres, 1934. e Tawney — atribuir 4 influéncia da ética protestante, de suas crengas € seus habitos, 0 fomento da produco, a pou- panca € 0 investimento que puseram o capitalismo em mar- cha"*. Quando o capitalismo adquiriu came social — chegou a dizer Manuel Castells em A era da informagdo —, seu espi- tito ja estava presente na ética calvinista. Ao enderecar a si mesmo a pergunta crucial: “Como pade converter-se em uma vocago, em um calling, no sentido de Benjamin Franklin, uma atividade guiada pelo afa de lu- cro, que era tolerada, no melhor dos casos, do ponto de vista cristéo?”, Weber acreditou encontrar a resposta na inter- pretagdo luterana da vocacao e na idéia calvinista de predes- tinacdo. 0 empresario, chamado a criar riqueza, estd justificado porque responde a sua vocacdo divina no mundo, 0 éxito em sua tarefa serd sinal de salvacao. Ficam assim justificados eticamente nao sd 0 trabalho, mas também a acumulacdo consciente ¢ legal de riqueza. 0 empresirio deve responder dedicando seu esforco & produgao de bens, forjando assim em si mesmo um cardter que vé na criagéo de riqueza uma tarefa que transcende o interesse egoista. A tese de Weber viu-se criticada de diferentes perspecti- vas”. Uma delas, exposta por Amartya Sen em sua contribui- do para este volume, poe em questo a tese de Weber e Tawney de que 0 capitalismo nasceu ligado a determinada espécie de ética, concretamente a protestant, quando 0 Japao o interio- tizou de forma magistral, a partir de um ethos bem diferente. Entretanto, essa discussdo no afeta a tese de nosso trabalho: as crencas, as conviccdes ¢ os habitos éticos so indispensdveis para o bom funcionamento do mundo empresarial. Uma segunda critica questiona que tenha sido o protes- tantismo, e no o catolicismo, que impulsionou o capitalismo. Weber procurou mostrar como a atitude da Igreja catélica diante do beneficio foi habitualmente hostil, e, nao obstante, alguns autores recordaram e recordam que também parte do pensa- mento catélico apoiou a obtencdo do beneficio. Nao apenas que 0 “espirito do capitalismo” esteve presente em ambientes catélicos, como Florenca e Veneza no século XV, e no sul da Alemanha e em Flandres, por serem centros comerciais e finan- ceiros, mas também no pensamento catdlico podem-se perce- ber aspectos que apdiam o nascimento do capitalismo”. Por exemplo, a escolastica espanhola do século XVI, muito especi- almente a Escola de Salamanca, nao sé nao condenou acriagio 27 © 0 comércio de riquezas, mas também se pode afirmar que em as Teés wanes suas contribuigdes encontram-se algumas das raizes do pensa- “14 =WPRESAIAL mento classico liberal”. Foge, naturalmente, de minhas possi- bilidades intervir nessa polémica; todavia, € absolutamente certo que as duas posicdes consideram as crencas religiosas e éticas elementos indispensaveis da vida empresarial. A terceira das criticas procura complementar Weber, asse~ gurando que a ética protestante tomou possfvel também outra dimensdo fundamental da atividade econémica, distinta da pro- dugao: 0 consumo”. Weber entende, certamente, que a ética protestante do século XVII, analisada por ele, modela uma ati- tude relacionada com 0 consumo, ao condenar o consumo de bens suntuosos € favorecer a economia € o investimento com © fim de aumentar a riqueza. Se a misstio do empresdrio con- siste em criar riqueza para a comunidade, 0 consumo de bens suntuosos dificulta a economia € 0 investimento; os que con somem satisfazem seus desejos, porém nao contribuem para ctiar riqueza social. Nesse sentido, Weber fala de um “ascetismo no mundo”, prdprio do espirito protestante, que agiu de forma poderosa contra o desfrute espontaneo das possessées, res- tringindo principalmente o consumo de artigos de luxo. Todavia, em The Romantic Ethic and the Spirit of Mo- dern Consumerism, Colin Campbell empenha-se em ampliar a tese de Weber sobre a influéncia do protestantismo no nas- cimento do capitalismo, mostrando que o protestantismo foi 9 iniciador nao sé do modo de producao capitalista, mas também da forma moderna de consumo que tornou possivel 0 capitalismo. Sem aumento de consumo, tampouco aumenta a producdo, € o protestantismo impulsionou ume outra.Sea 21 e eames. revolugao industrial foi possivel por uma ética da producdo, uaa. que deu 0 visto de aprovagao moral 2 producio ¢ acumulacao ondmica en Espana de riqueza, foi preciso haver também alguma ética do consumo oe que desse atestado de natureza moral ao consumo. Os histo- ética, Rialp, Madi, 1991. riadores da economia reconhecem a importancia da deman- da como fator crucial para a revolucao industrial, situando-a > ¢ cauurti, The €m uma “nova propensao para o consumo”; porém, na hora Romantic Ethic and the de explicar as origens dessa propensio, sugerem unicamente ne que ocorreram mudangas de valores ¢ atitudes, relacionadas Blackwell, Oxford, com 0 nascimento da moda moderna — que se altera de ma- Leer COINS Hat una ética del constano, neira acelerada — e com 0 amor romantico ¢ a novela. Origina~ op. cit, cap. 8 28 ica da empresa no horizonte da siobatizagéo A. CORTINA, 23 “Presupuestos éticos del quehacer empresarial”, in A. CORTINA (org.), Rentabilidad de la ética para ia empresa, Fundacién Argentaria/ Visor, Madri, 1997, p. 13-36; 1D., Por una ética del consumo, op. cit, caps. IX eX. R.D. PUTNAM, 24 Making Democracy Work, op. cits F FUKUYAMA, La confianza, BSA, Barcelona, 1998; 1D., La gran rupture, BSA, Barcelona, 2000. A.CORTINA, Etica 25 aplicada y democracia radical, Teenos, Madr 1993; 1D., “El estatuto de la ética aplicada, las actividades humanas”, Isegoria 13 (1996), p. 119-34, riamente, qué espécie de ética constituiu o espirito desse consumismo modemo? Como pade a busca do prazer, tolera~ da eticamente no melhor dos casos, converter-se em uma meta aceitavel para os cidadaos da sociedade ascética? Se a ascética racional — dira Campbell — promoveu a producdo, 0 lado sentimental do pietismo fomentou 0 consumo: uma e outro deram sua contribuicao para o desenvolvimento da economia modema, para 0 desenvolvimento do capitalismo industrial. Crengas e convicgées sustentam, pois, os habitos que constituem 0 humus da atividade empresarial em suas diferen- tes dimensdes, a comear por suas origens. 3 Aera pés-industrial Nos anos 1970, como dissemos, surgiu novamente a ética empresarial, apés um periodo de declive. A influéncia do positivismo e do marxismo nao havia favorecido a cone- xo entre empresa e ética, e a cultura do hedonismo fomentava © consumo compulsivo, mais que o fortalecimento ético da produgio e do consumo responsavel”. Nao obstante, novas razdes vinham avalizar o nascimento de uma renovada ética empresarial. Relacionaremos cinco delas aqui. A primeira seria a necessidade de criar capital social, a necessidade de criar redes de confianga. Depois de escdindalos como 0 de Watergate, a sociedade norte-americana recordou que a confianga € um recurso escasso que, nao obstante, forma a argamassa que une os membros de uma sociedade, também do ponto de vista da transagdo econémica. E paulati- namente essa lembranca foi percorrendo os caminhos dos paises restantes, recebendo um poderoso reforco em 1993, coma publicacao de Making Democracy Work, em que Put- nam procura mostrar — entre outras coisas — como as redes de confianga favorecem o funcionamento da economia nos Ambitos em que sio criadas**, O fim das ideologias também favoreceu 0 novo sur- gimento da ética empresarial, e nao s6 desta, mas do conjunto do que se convencionou chamar de “éticas aplicadas”, que, entre outras, tém a peculiaridade de nao surgir por requisi- cao da filosofia, mas de cada um dos Ambitos da vida social: neste caso, da prépria atividade empresarial’. 0 fim das ideo- logias trouxe, entre outras coisas, 0 interesse pelas boas pra- ticas na economia e na empresa, na area da satide ou nos meios de comunicagdo. Afinal de contas, as grandes cons- trugdes tedricas toram-se pouco criveis se nao so avalizadas pelas credenciais de uma boa pratica. Nesse sentido, torna- se inegavel que o pragmatismo foi impregnando a reflexéo nesses ambitos, como se pode notar em propostas como a do Global Compact das Nacdes Unidas. Um pragmatismo que — reforcamos — & bem-vindo sempre que orientado por idéias reguladoras”*. Em terceiro lugar, a concepe3o da empresa mudou em diversos pontos, como por exemplo: 1 As empresas passaram a apreciar cada vez mais sua dimensdo cultural, a atender ao significado simbélico de-muitos aspectos de sua vida, deixando de falar somente de resultados, eficacia, eficiéncia, para falar também de simbolos, significado ou esquemas inter- pretativos. Contar com uma cultura de empresa pas- sou a ser essencial para 0 éxito, devendo fazer parte dela os valores morais’. A propria empresa deixou de compreender a si mes ma como uma maquina para obter 0 maximo be- neficio, passando a se ver como uma organizacio, um grupo humano, que procura realizar um projeto, normalmente seguindo a iniciativa de um lider’*. 0 modelo taylorista foi substituido pelo pés-taylorista, ea cultura da cooperagao procurou substituir a do conflito. A operacdo empresarial deveria ser de ndo- soma zero: todos os stakeholders deveriam sair ga- nhando, e nao apenas os acionistas”. Em quarto lugar, a ética se apresentou como necessaria na gestéio empresarial para responder a um conjunto de desa- fios: a maior maturidade do mercado exigia das empresas delineamentos a longo prazo, orientados por valores € nao por regras ou normas miopes; o crescimento da competigéo entre as empresas, devido 4 globalizagio da economia, exigia que se “promovesse a fidelidade” da clientela, mediante 29 AAS TRES DADES 2G J. MUGUERZA, Desde ta rperplejidad, FCE, Madi, 1991; D. GARCIA-MARZA, Etica de ta Justicia, Tecnos, Madri, 1992; A. CORTINA e J. CONILL, ragmtica trascencental”, in M, DASCAL (ed), Filosofia del lenguaje W: Pragmética, Trotta, Madri, 1999, p. 137-66. J.M, LOZANO, Dimensiones y Factores del desanollo organizativo: Ja perspectiva cultural”, in A. CORTINA (org.), Rentabilidad de la ética ara la empresa, Op. ity p. 37-82. G, MORGAN, Imdgenes de la organizacién, RA-MA, Madri, 1990. RE. FREEMAN, Strategic Management: A Stakeholder Approach, Pitman Press, Boston, 1984; R. E. FREEMAN cW. M. EVAN, “Corporate Governance: A Stakeholder Interpretation”, Journal of Behavioural Economics 19 (1990), p. 327-59; GONZALEZ, La responsabilidad moral de la empresa: Una revision de la teoria de stakeholders deste la ética discursive, Universitat Jaume 1, Castell6n, 2001. 30 fica da emprase no horizonte da alobalizacae G. IZQUIERDO, Entre el fragor y el desconcicrto, prineipalmente caps. 2.5. S. GARCIA ECHEVARRIA e CH. LATTMANN, Management de los recursos humanos en Ja empresa, Diaz de Santos, Madri, 1992 30 atuacdes que gerassem confianca”; quanto mais complexas fossem as sociedades e mais mutantes os entornos, mais ine- ficazes se tornariam as solugdes juridicas ¢ mais rentaveis os mecanismos éticos para resolver os conflitos com a justiga; 0 aumento da complexidade no seio da empresa aconselhava integrar todos os que trabalhassem nela, de tal modo que fossem identificados com seu projeto; a sociedade civil e a opiniao publica exigiam das empresas que assumissem sua responsabilidade social, ¢ nao satisfazer a essas exigéncias seria, a médio ¢ longo prazo, prejudicial para a empresa. Nesse contexto, entendeu-se que a ética seria “rentavel”, Ela aumentaria a eficiéncia na configuracéio dos sistemas diretivos, reduziria custos de coordenago intemos ¢ externos para a empresa, seria um fator de inovacéio ¢ um elemento diferenciador, que permitiria projetar a longo prazo a partir dos valores”. Por razdes como essas, nasceu a “ética da empresa da época pés-industrial”, com o célebre apotegma “a ética é rentavel”, que no queria dizer sendio que a coeséo em tor- no de valores éticos, a assuncao de habitos morais aumentam a probabilidade de uma empresa ser competitiva; “compe- titiva”, aqui, significa que mantém sua viabilidade, sua ca- pacidade de permanecer no mercado, com uma boa relacdio qualidade-preco, conquistando novos clientes. Garantir a via~ bilidade € imposstvel, porque nos movemos sempre na incer- teza; empresa alguma pode garanti-la, mesmo que os que nela trabalham tenham uma formacao de ponta. Entretanto, uma coisa é “garantir”, outra, “aumentar o grau de probabili- dade”; as empresas “excelentes”, as mais éticas aumentam essa probabilidade de manter sua competi mercado darwinista. Estendeu-se entdo o tema das “empresas excelentes”: empresa excelente é a que entende a si mesma como uma organizacao dotada de uma cultura com um nivel ético; a que delineia sua atividade a partir de alguns valores que consti- tuem a identidade da empresa e que serdo tanto mais necessd- tios quanto mais cla ocupar cenarios transnacionais, em cada um dos quais serdo modulados atendendo a sua cultura, apren- dendo dela; € uma empresa proativa, um grupo humano que adquire sua coesio de alguns valores e a partir deles antecipa o futuro; toma decisées com base nesses valores idade em um que prestam solidariedade a seus membros e por isso gera um clima ético; aposta na forja do carater a médio e longo prazo € nao na busca do maximo beneficio a curto prazo; a qualidade no produto e nas relacdes internas € externas ¢ 0 selo da empresa; amplia a atenco dos implicados pela ati- Vidade empresarial, dos acionistas a todos os grupos afetados por ela; toma a responsabilidade social como um instrumento de gest&o de qualidade” e dota a si mesma dos instrumentos que ja existem como elementos que atuam “objetificando” a ética empresarial, quer se trate de cédigos, de comités de seguimento ou auditorias éticas. Resumindo, a empresa excelente procura gerar trés tipos de capital, que facilitam a agao produtiva: 1 O capital fisico, formado por terrenos, edificios, ma- quinas, terra, que se cria mediante mudangas para construir ferramentas que facilitam a producio. O capital humano, composto pelas técnicas ¢ pelos conhecimentos dos quais dispde uma empresa ou sociedade, ou seja, 0 que se convencionou chamar de “recursos humanos”, que se criam mediante mu- dancas nas pessoas, produzindo habilidades e capa~ cidades que Ihes permitem agir de formas novas’. 0 capital social, que se produz por mudangas nas relagdes entre as pessoas, mudancas que facilitam a agi"; nao se localiza nos objetos fisicos, nao é tan- givel como 0 capital fisico, mas, como o capital hu- mano, intangivel’’. 0 capital social 6, pois, um re- curso para as pessoas e para as organizacdes, da mesma maneira que os capitais fisico e humano. Até © ponto em que alguns cientistas sociais afirmam que as economias nacionais dependem ao menos dessas trés formas de capital. A quinta razdo para a revitalizagao da ética da em- presa foi a necessidade de reformuli-la a partir das exigén- cias de uma ética civica, configurada pelos valores compar- tilhados pelas diferentes “éticas de maximos” em sociedades pluralistas. Essa ética civica de minimos compartilhados, situada no nivel pés-convencional no desenvolvimento da 31 ASTRES IDADES DAETICA EMPRESARIAL 1D. GARCIA-MARZA, “Del balance social al balance ético”, in A. CORTINA (org), Rentabilidad de la ética para ta empresa, op. Cit p. 229-85, G. BECKER, Human Capital, National Bureau of Economic Research, Nova York, 1964, J.5. COLEMAN, “Social Capital in the Creation of Human Capital”, AUS 94 Supplement (1988), p. 95-120. A. CORTINA, Alianza y contrato. Poiltica, &tica y religién, ‘Trotta, Madri, 2001, cap. 6; F. HERREROS © A. DE FRANCISCO, “Introduccién: el capital social como prograrna de investigacién”, Zona Abierta 94/95 (2001), p. 1-46. 32 Etica da empresa no horizonte da lobalizacso A. CORTINA ETAL. 36 Etica de la empresa, op. cit. consciéncia moral, propunha aos diversos ambitos sociais a exigéncia de tratar os afetados pela empresa como fins em si mesmos, no sentido kantiano, que ndo devem ser instrumentalizados, e como interlocutores validos, que de- ‘vem ser tidos dialogicamente em conta nas questdes que os afetam seriamente™. Acontece, no entanto, que o paulatino advento da so- ciedade da informagao parece por em questio o tipo de ética que renasceu nos anos 1970, e que, portanto, se abre agora uma nova era. 4 Aera da informacao A ética da empresa, revitalizada em fins do século XX, percorreu jé um apaixonante caminho também em nosso pais. Todavia, na mudanca de milénio, esta se sentindo confrontada com novos desafias que podem acabar por colocé-la em ques- tao, porque, ao que parece, a sociedade em seu conjunto vai teconhecendo seu perfil e ousa atribuir-se um nome: estamos — diz-se — na “sociedade da informacao”; esta se realizando a passagem do “capitalismo renano” e do “capitalismo cali- forniano” para o “capitalismo de internet’. Continua sendo necessaria uma ética das empresas nesta nova época? Em principio, e segundo a conhecida trilogia de Manuel Castells, as metas pelas quais surgiu o capitalismo da in- formagao sao um tanto desanimadoras para a ética, uma vez que ele nasceu com 0 af de se aprofundar na légica da busca de beneficios, de intensificar a produtividade do trabalho e do capital, de globalizar a produgo e conseguir © apoio estatal para aumentar a produtividade e a compe- titividade das economias nacionais; 0 que, em seu conjunto, redundaria em detrimento da protecdo social e do interes- se publico. Com tudo isso, a ética empresarial parece defrontar-se com problemas quase irremediaveis: 1 Parece dificil conseguir que a cultura da rede seja a que € prépria dessa ética civica, tio penosamente conquistada, endo uma babel de um sem-ntimero de posigdes. Afinal de contas, a “ética civica” é a dos valores compartilhados pelos cidadaos no seio de alguma cidade, porém a rede estende os lacos até pontos recénditos ¢ desarticula o micleo de valores. Os habitantes do ciberespaco terdo sua mo- ral individual, porém nada garante que sera com- partilhada”. A imagem da empresa como organizacao que per- segue um projeto conjunto, a partir de valores pos- tayloristas, quebra-se em virtude da galopante pre- cariedade a que se reduz 0 trabalho, que inviabiliza as justas exigéncias de um salario digno, sem falar da participagdo do trabalhador pouco ou media- namente qualificado ¢ dos ideais de co-responsa- Também no é facil manter a idéia de lideranca, contando com dirigentes que mudam de empresa quando 0 permite a oportunidade econémica ou profissional, embora, evidentemente, haja excecoes. O trabalho delegado, 0 outsourcing e outras formu- las de encomenda a outras empresas supem a redefinicao das corporacées”. E dificil identificar os afetados por atuagdes que tém repercuss6es globais™. Isso para nao falar do nucleo da ética, que consiste, como dissemos, em forjar para si um cardter, um ethos responsavel, mediante decisées que tém por horizonte 0 médio e 0 longo prazos, quando o cur- to prazo € 0 que prevalece nesta sociedade da in- formacao. O clenco de problemas seria ampliado com o da mo- bilidade de capitais, que parece introduzir um abis- mo entre a economia real e a especulativa e a reali- dade dos capitais volateis. Devem-se levar ainda em conta assuntas como o das patentes biotecnolégicas, que geram uma nova dependéncia entre ricos € pobres. 33 AS TRES IDADES DA ETICA EMPRESARIAL 37 A. CORTINA, “El protagonismo de Tos ciudadanos en una sociedad mediatica’, in J. DE LORENZO (ed), Medios de comunicacién » sociedad, Consejo Social de la Universidad, Valladolid, 2000, p. 45-76. J. CONILL, “Reconfiguractén ética del mundo laboral”, in A. CORTINA (org) Rentabilidad de la ética para la empresa op. cit, p. 187-228; J.R-TEZANOS, Bl trabajo perdido, Biblioteca Nueva, Madri, 2001; Sistema 168/169 (2002), mimero monogtéfico sobre a degradagio do trabalho. 3. RIFKIN, La Era del Acceso, Pais, Barcelona, 2000, cap. 3 Para 05 pontos 5, 6 € 7, ver especialmente J. ESTEFANIA, Aqui no puede ocurrir, Taurus, Madri, 2000; G. DE LA DEHESA, Comprender ta globatizacién, Nlianza, Madri, 2000; G. IZQUIERDO, Enive el Jragor y el desconcierto, ‘op. cit, cap. 2 34 ica da empresa na horizonta da lobalizacao Aeeste propésito, ver B. 41 NINO KUMAR eH. STEINMANN (eds), Ethics in International Management, op. cit.; G. ENDERLE, International Business Ethics, op. cit J. CONILL (coord) Glosario para una sociedad intercultural, Bancaja, Valencia, 2002 J, STIGLITZ, EI 42 ‘malestar en la globalizacién, Taurus, Madri, 2002. 9. Ha dificuldade em construir uma ética global a par- tir de um universo com diversidade de culturas . 10 E preciso contar com organismos politicos e eco- némicos internacionais que articulem os mecanis- mos necessarios para abordar as questdes propostas pela atividade empresarial em Ambito global com estatura ética”. Nessas condigdes, nessa sociedade da informacao, vale a pena continuar pensando que a ética ainda é indispensvel para o éxito da atividade empresarial? E, se 0 é, como e que tipo de ética? Diante de semelhantes perguntas, caberia res- ponder, em principio, relembrando dois acontecimentos do século XXI. O dia 11 de setembro de 2001 pareceu dar inicio a uma nova época na historia da humanidade. A nagdo mais poderosa do mundo viu-se atacada em seu proprio territorio, em edifi- cios emblematicos de seu poder comercial ¢ politico, e a in- dignacdo, 0 espanto, a compaixao afloraram, como € de lei, nos diferentes cantos do planeta. Essa matanca — foi dito — marcaria um antes e um depois no acontecer mundial; nada seria como antes. Mas tudo continuou igual. E no somente porque 0 11 de setembro de 2001 des- mentiu uma vez mais os formosos versos de Jorge Manrique segundo os quais “sto iguais os que vivem por suas maos ¢ 0s ricos”, porque as guerras, a violéncia organizada, a fome, a miséria, os paramilitares e os esquadrdes-da morte tiram a vida de milhares de seres humanos nos paises pobres e, ape- sar disso, ninguém diz que “ha um antes e um depois” da morte violenta dos pobres, mas porque, como era de esperar, ‘uma psicose de panico percorreu a espinha dorsal de investido- tes, empresarios, passageiros potenciais de véos a curto e médio prazo, de modo que 0 retraimento econdmico foi uma das seqiielas daqueles atentados selvagens. Nada de novo debaixo do sol. O ensinamento do Leviata de Hobbes e da Paz perpétua de Kant era posto novamente em discussdo: muito embora certo instinto natural leve os seres humanos a ambicionar tudo, a razdo humana aconse- Tha a domesticd-lo e firmar um pacto com os demais, a fim de conservar a vida biolégica e igualmente a vida comercial, porque até mesmo o aparentemente mais fraco pode arreba- tar-Ihe vida ¢ propriedade. Mesmo que apenas para levar adiante 0 comércio, a prudéncia mais elementar aconselha a nao fomentar a agitacdo, mas, ao contrario, criar condigées de estabilidade e confianca nas quais seja possivel desenvolver avida afetiva, realizar com correcéo a atividade politica, pros- seguir com o intercémbio, que é — como diz Sen — uma expresso da liberdade. 0 11 de setembro e suas repercussées no recrudescimento da luta contra o terrorismo foram, evidentemente, noticia didria durante longo tempo em ambito mundial, mas princi- palmente nos Estados Unidos. Porém, em 2002, esse pro- tagonismo viu-se substituido por outro, em razao de novos acontecimentos, que tiveram um alio custo social e um cus- to econémico ainda mais elevado que o dos atentados ter- roristas: 0 caso Enron monopolizou a atencio dos meios de comunicacéio, e 4 Enron seguiu-se a WorldCom e um longo et caetera de corrupcdo nos paises poderosos**. Do mesmo modo que 0 caso Watergate chegou a sacu- dir um bom numero de consciéncias na década de 1970, no ano 2002 0 caso Enron, com a deterioragao paulatina do valor das agées, a ocultacao e destruigao de informacio, ina de empregados gracas @ fraude da companhia, a Giscussio sobre o papel das auditorias, as alusées a im- acio do poder politico no mais alto nivel, as reclama- junto a justica e 0 conjunto de escdndalos empresa- Tiais que se sucederam colocaram de novo em debate, de for- ‘ma bem visivel, que a ética se toma indispensavel no mun- do empresarial. O custo, nesse caso, como em muitos outros que nos ™m a meméria em nosso préprio pais, se dé ao menos em is niveis: hd o tremendo custo em dinheiro, contado e moro, € 0 grande cusfo social, a perda de confianga nas tituigdes, uma vez que se trata de assuntos que, como a, entre outros, Georges Enderle, afetam os trés niveis ‘os quais tem a ver uma empresa: 0 micronivel das deci- Ses concretas dos empresdrios, o médio nivel da empresa seu conjunto ¢ 0 macronivel das instituigées econdmicas, iais ¢ politicas. ‘Naquele tempo, por intermédio dos meios de comunica- » norte-americanos, tornaram-se famosos os professores 35 AS TRES /OADES DA ETICA EMPRESARLAL 43 Para este trabalho, tomei em grande consideracao 0 artigos publicados no didrio BI Pais, “Las tres edades de la ética empresatial” (29 de novembro {de 2000) ¢ “Enron: un caso de libro” (18 de feverciro de 2002) 36 ica da empresa ‘no horizonte da alobalizacéo E. LAMO, “Corrupcion politi LAPORTA eS. (eds), La c politica, Nan: 1997, p ica y ética "in F. ALVAREZ “arrupeisn , Madr, 271-92, de ética da empresa que ensinavam em diferentes universi- dades. Apesar da conviccao comum de que ética e empresa so como azeite ¢ agua, a crua realidade punha mais uma vez em debate o inevitavel de sua profunda conexéio. Aborda- va-se a necessidade de nao enganar os acionistas, de nao defraudar os trabalhadores, de descartar a “contabilidade cria- tiva”, de impedir que as comissées nacionais ocultassem in- formag@es sobre a situagdo real de uma empresa, de evitar que os auditores cumprissem uma dupla fungéo, de limitar as quantidades com que as empresas pudessem participar no financiamento das campanhas politicas. Em suma, falava-se da necessidade de fomentar a integridade e a transparéncia como fatores sine qua non da viabilidade empresarial. Com tantos séculos que ja carregamos sobre os ombros, € hora de serem desautorizados os que se empenham em defender que a corrup¢do, o apadrinhamento no mundo em- presarial, a cumplicidade com o poder politico na manipulacao da coisa publica so indispensdveis para seu funcionamento™. Como se 0s subornos ¢ as doagées sedutoras suavizassem, como 0 azeite, as engrenagens das maquinarias privadas ¢ publicas, fazendo-as funcionar. Como se a transparéncia e a integridade dificultassem de tal modo o suave rogar de uma toda com outras, que o mecanismo chegasse a parar. Ocorre justamente o conirario: a corrupcdo tem um alto custo eco- némico, que no caso de empresas poderosas afeta nao sé seus acionistas ¢ empregados, mas 0 conjunto da economia nacional e ainda vai além; um custo politico, que se traduz entre a cidadania em desencanto e em desinteresse, em afas- tamento prudente da aurea mediocritas da vida privada; € um elevado custo social em desconfianga, em perda dessa forma de capital, o capital social, t4o dificil de acumular, tio fécil de dilapidar, tio custoso de report. Diante de tal perda de capital econémico e social, orga- nizagées como a Transparéncia Internacional empenham seu esforgo, antes de tudo, em erradicar a corrupgio politico- econdmica, ¢ os meios de comunicacao convertem em noticia algo que também afeta a eles, tanto quanto ao restante dos agentes sociais. Conseguir esse ativo que ¢ a transparéncia ¢ a integridade é uma das tarefas mais urgentes do século XXI. Mesmo que seja somente para fazer com que democracia ¢ economia funcionem em harmonia. Curiosamente, 0 termo “integridade”, na Europa, é um tanto suspeito. Talvez porque recorde expressées como “integrismo”, uma forma de cegueira diante do que nao ¢ 0 mundo fechado das préprias convicgdes. Mas a integridade nao € nada disso; é, ao contrario, um bem publico na vida econémica, politica e social. Se quiséssemos defini-la a altu- ta de nosso tempo, poderiamos dizer que consiste no acordo entre 0 que uma pessoa, organizacao ou institui¢ao faz e os valores que diz defender, sempre que esses valores sejam uni- versalmente defensaveis, isto é, fecundos para o florescimento da vida humana pessoal e compartilhada. A integridade e a transparéncia sito bens puiblicos, cons- tituem parte do conjunto de bens do qual desfrutam nao so- mente os que os criam com seu esforgo, mas todos os afetados Por sua existéncia, com um custo zero. E como ocorre com um farol do qual se beneficiam nao apenas os que o construiram € pagaram os gastos originais e os de manutencdo, mas todos 05 que se aproximam da costa, ainda que nao tenham aplica- do no farol nem esforcgo nem dinheiro. A transparéncia ea integridade sao bens publicos, tanto nas organizagées publicas quanto nas privadas, porque criam um espacgo de confianga em tomo do que dizem politicos, empresas, organizacées solidérias e outros agentes sociais; sio justamente clas, e ndo a corrupgio, que compdem, na Vida politica e na empresarial, esse azeite da confianga nas instituigdes e nas pessoas que lubrifica os mecanismos sociais, fazendo-os funcionar. Diante dos escandalos empresariais e politicos, faz-se necessario, sem duivida alguma, reformar as leis; porém, mais ainda, reformar os hdbitos. As leis podem ser cum- pridas por medo da sangdo; porém, se for esse o tinico motivo, serd inevitavel calcular em cada caso concreto o custo de cumprir a lei ou tender a infringi-la se o custo é inferior ao beneficio. Somente quando o cumprimento da lei justa se transformar em habito, quando a integridade ¢ a transparéncia se transformarem a tal ponto em costume gue ir contra elas for ir contra a corrente, s6 entao terao sido postas as condigdes para que o jogo da economia funcione de maneira harmoniosa. Nao basta a legalidade, nem sequer o cumprimento das leis por interesse. Nao bastam o Leviatd de Hobbes ou os 37 ASTRES DADES DA ETICA EMPRESARIAL 38 ica da empresa no horizonte de slobalizacéo deménios inteligentes da Paz perpétua de Kant. E indispen- sdvel a convicgo moral de que a integridade e a transparén- cia valem por si mesmas; é indispensavel converté-las em hdbitos da conduta, nessa segunda natureza com base na qual agimos como se fosse o ébvio. Sem isso, a confianga basica que permite o intercambio perde seu chao natural, ¢ fica apenas a lei da selva, pela qual até o mais forte — como mostram, uma vez mais, 0 11 de setembro ea experiéncia de Enron — pode perder a vida. Tem-se, pois, a impressdo de que os acontecimentos do século XXI mostram como, na era da informacao e das co- municagées, 0 ethos das organizacdes empresariais continua sendo elemento-chave para o bom funcionamento da ati dade empresarial e da vida social e politica em seu conjunto. “Na andlise do desenvolvimento”, dizia Sen, “o papel da é ca empresarial deve deixar de ter uma presenca obscura e ser reconhecido claramente”. Na andlise do desenvolvimento e nao somente nele.

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