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Hamania del Sr. No 9, N° 16. Enero-Tusio, 2014, Mateos Napolitano A formapie da Misica Popular Brasileira (MPB)e sua nujesria hitérica (1965-1982)... pp. 51-63. A formagao da Musica Popular Brasileira (MPB) ¢ sua trajetéria histérica (1965-1982) Marcos Napolitano De Eugenio Unrversipabe pr SAo Pauto. Sko Pauro (SP), Brasit napoli@usp.br Resumo Em meados dos anos 1960, ainda sob o impacto inovador da Bossa Nova, uma ondapolitizada marcou a cena musical brasileira. Essa renovaso poético-musical foi Jogo percebida como um novo movimento, chamado pela critica musical de “moderna Miisica Popular Brasileira e, posteriormente, de MPB. Esta sigla, mais do que um género musical esteticamente definido, deve ser entendida como uma espécie de movimento sécio-cultural, produzindo novos cinones estéticos e culturais altamente valorizados pelo priprio mercado fonogréfico até, ao menos, o comeco da década de 1980, gerando um novo pantedo de compositores ¢ intérpretes, como Chico Buarque, Elis Regina, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Edu Lobo, entre outros. Palavras chave: Masica Popular: Brasil; Historia da Cangio: Brasil; Brasil: Historia Cultural. La formacién de la Misica Popular Brasileia (MPB) y su trayectoria histérica (1965-1982) Resumen A mediados de los afios 60, atin bajo el impacto innovador de la Bossa Nova, una ola politizada marcé la escena musical brasilefia. Esa renovacin politico-musical fue percibida luego como un nuevo movimiento que la critica musical llamé la “moderna” Miisica Popular Brasilefa y, posteriormente, MPB. Esta sigla, mas que un género musical estéticamente definido, debe ser entendida como una especie de movimiento socio-cultural que produjo nuevos canones estéticos y culturales altamente valorados por el propio mercado fonogréfico hasta, al menos, comienzos de la década de 1980, generando un nuevo pantedn de compositores e intérpretes como Chico Buarque, Elis Regina, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Edu Lobo, entre otros. Palabras clave: Miisica Popular: Brasil; Historia de la Cancién: Brasil; Brasil: Historia Cultural. Recibido: 7-12-13 / Aceptado: 24-01-14 Humania del Sur 51 Humana del Sur, Revista de Esadios Latinosmericanos, Asians y Asiticos ‘Universidad de Las Andes, Mérida, Afo 9, N° 16, Enero-Junio, 2014, ISSN: 1856-6812, ISSN Elect: 2264-8810 1. Introdugao A principio, entre a revolugio estética da bossa nova, de 1959, ea revolusao politica proposta pelas “cangées participantes”, em 1968, parece haver um abismo total. Mas, além de “banquinhos e violées”, utilizados tanto pelo intimista Jodo Gilberto quanto pelo engajado Geraldo Vandré, havia um fio ténue a unir estes dois momentos mégicos, sinalizadores de uma época em que a cangio ocupou o centro da esfera piiblica, Em outras palavras, a cangéo politicamente engajada dos anos 1960 era filha rebelde da Bossa Nova que, por sa vez, eta filha rebelde do samba urbano carioca dos anos 1930. Foi nessa estrutura nada elementar de parentesco que se construiu uma dada tradigéo musical brasileira, mesclando tradigdes que vinham das classes populares com o que havia de mais atualizado na miisica popular internacional (Napolitano, 2001). Essa mistura nem sempre foi harménica e consensual, mas demarcou uma atitude, um procedimento ctiativo, que caracterizou o sistema de cangées brasileiro do século XX, afirmando a ruptura na tradiggo ¢ a tradi¢go da ruptura, como afirmou certa vez Caetano Veloso. Foram dois os cancionistas ligados 4 Bossa Nova que politizaram deliberadamente a cancio brasileira, como um projeto estético ¢ ideolégico consciente ¢ assumido: Sérgio Ricardo e Carlos Lyra. Entre 1961 ¢ 1963, nos anos agitados do governo de Joo Goulart (presidente reformista deposto pelo golpe militar de 1964), os dois compositores gravaram clissicos da cang4o engajada brasileira, ainda com uma levada de Bossa Nova: “Zeléo”, “Barravento” e “Esse mundo é meu” (de Sérgio Ricardo) e “Influéncia do Jazz”, “Aruanda” e “Feio nao é bonito” (de Carlos Lyra). Estas cangées traziam os elementos tematicos que se consagrariam como paradigma de cangéo de protesto: o homem comum do povo, simbolizado por alguns tipos ideais (0 favelado, o sertanejo, 0 pescador) como os verdadeiros heréis da histéria; 0 estabelecimento de uma nova geogtafia politica da nacao-povo (0 morto, a comunidade praicira ¢ 0 sertéo); 0 papel da cangao (bem como o do “cantador”), herdis da consciéncia nacional-populat. O objetivo era cons- truir, sob as bases melédico-harménicas da Bossa Nova, um novo edificio musical, cujo acabamento, fachada e decorag4o finais procuravam incluir elementos da tradi¢ao popular. Ao lado de Nara Ledo, langaram as bases da “Moderna Musica Popular Brasileira”, sublimando na expressio musical, a utopia impossibilitada pela rea¢ao conservadora que triunfaria em 1964, qual seja: a afirmagio de um pais moderno, democritico e sofisticado pela integracio de classes, etnias e regides. 52 Humania del Sur Hamania del Sr. No 9, N° 16. Enero-Tusio, 2014, Mateos Napolitano A formapie da Misica Popular Brasileira (MPB)e sua nujesria hitérica (1965-1982)... pp. 51-63. Antes do golpe militar, os cancionistas engajados tentavam conciliar suas carreiras profissionais com as atividades de militancia, sobretudo na 4rea cultural do movimento estudantil. Além de gravar discos para a industria fonogréfica, era comum participar de projetos coletivos, cantar nas pragas € portas de fabricas, nos sindicatos urbanos e rurais. Depois do golpe de 1964, este elo foi cortado, com a imediata repressio aos movimentos sociais ¢ organizagées populares. A cangio “Marcha de Quarta Feira de Cinzas”, composta por Carlos Lyra em 1963, ganhava uma dimensio profética, rea- propriada no pés-golpe como hino da resisténcia: “Acabou nosso carnaval / Ninguém ouve cantar cang6es/.../ E, no entanto, é preciso cantar/ E preciso cantar / ¢ alegrar a cidade” Curiosamente, no caso da miisica popular, o contexto autoritério, paradoxalmente, sé fez. aumentar o circuito das cangées engajadas, sobretudo entre os jovens estudantes mais politizados. Em um primeiro momento, foram os espetaculos ao vivo, tais como Opinido (1964), Arena conta Zumbi (1965) ¢ os circuitos de shows estudantis do Teatro Paramount em Sao Paulo que ampliaram este circuito. No mesmo ano de 1965, surgiam os festivais da cangao 0 programa Fino da Bossa, na TV Record de Séo Paulo. No ano seguinte, essa mesma emissora assumiu a realizacio dos festivais da cansio, consolidando a febre tel inicio dos anos 1970. Consolidava-se assim 0 conceito moderno de Muisica Popular Brasi- leira (MPB), cuja sigla passou a ser escrita com maitis um partido politico e poético, signo de resisténcia ao regime militar de direita que se implantava no pais. Mais do que um género musical, a MPB transformou-se em instituigéo sociocultural e rétulo de mercado, chancela do gosto hegeménico as cang6es engajadas dotadas de qualidade poética e musical. A chegada deste tipo de musica na televisio potencializaria como nunca este proceso de popularizacao do género. A partir de entao, além das platéias estudantis, os telespectadores de outras faixas socioculturais ¢ etdrias, teriam acesso 4 “moderna” MPB. A maior estrela da “miisica na era da TV” foi Elis Regina, contratada pela TV Record de Sao Paulo para apresentar 0 Fino da Bossa, Apesar do nome, programa veiculava cangées que, em sua maioria, pareciam negar © intimismo, as sutilezas musicais ¢ as poéticas amenas das praias da Zona Sul do Rio, que consagraram a Bossa Nova. Cantores e compositores do passado, oriundos do rédio, sambistas de morro, jovens cantores egressos dos shows estudantis, dividiam 0 palco sob 0 comando festivo de Elis Regina ¢ Jair Rodrigues, O sucesso de audiéncia do Fino da Bossa demonstrava a wisiva em torno do género, que durou até culas, como se fosse Humania del Sur 53 Humana del Sur, Revista de Esadios Latinosmericanos, Asians y Asiticos ‘Universidad de Las Andes, Mérida, Afo 9, N° 16, Enero-Junio, 2014, ISSN: 1856-6812, ISSN Elect: 2264-8810 viabil dade em veicular cangées na TV numa escala até entéo nunca vista, para além dos programas de variedades tao marcantes na grade televistial dos anos 1950. Assim nasceram os lendarios festivais da TV Record de Sao Paulo. Ao lado de Chico Buarque de Hollanda, outro {dolo televisual de primeira hora, Elis Regina ajudou a ampliar o circuito sociocultural que consumia MPB, agregando antigas audiéncias radiofénicas que ndo tinham prestado muita atengio nas rupturas estéticas promovidas pela Bossa Nova de 1959, pois seu estilo dialogava com a tradigéo das grandes cantoras do radio, como Angela Maria e Dalva de Oliveira. Seja no plano da interpretacio (Elis) e da composigéo (Chico), ambos apontavam para uma nova relacio entre tradigéo e modernidade. Nao por acaso, ambos foram muito criticados pelas correntes de opiniao ligadas a Bossa Nova que defendiam uma cangao menos conciliadora com tradigéo musical dos boleros ¢ sambas-cangoes do radio dos anos 1940 e 1950. Elis Regina foi duramente questionada pela ctitica alinhada com a Bossa Nova, acusada de fazer a miisica brasileira “regredix” aos anos 1950, dado o seu exagero performatico ¢ 0 abuso de omamentos e virtuosismos vocais, antitese do despojamento sofisticado clegante conquistado a partir dos /ong plays de Jodo Gilberto langados em 1959 (Garcia, 1999). Estas tensées nascidas nos anos 1960 iriam se aplacar somente na década seguinte, no momento em que a sigla MPB parecia suficientemente larga e prestigiada para abarcar todos os estilos e nomes musicais consumidos pelas classes médias de oposiao ao regime militar. Sintomaticamente, dois Albuns antolégicos sinalizavam que os antigos desafetos ¢ incompatibilidades estéticas estavam superados: Chico Caetano Juntos e ao Vivo (1972) ¢ Elis ¢ Tom (1974) 2. Festivais da cangao e Tropicdlia Paradoxalmente, para a indtistria do disco ¢ da TV, a cangio engaja- da de esquerda era um bom negécio. Isto néo diminui o papel politico da cangio, mas 0 coloca diante de um amplo conjunto de dilemas e contra- digdes que no pode passar despercebido por quem deseja conhecer aquele momento historico de maneira mais aprofundada. Os discos de MPB cram voltados para uma parcela com maior poder aquisitivo da populacéo, permitindo a mobilizasao dos melhores miisicos, récnicos e estiidios, mesmo que isto custasse mais caro do que um disco vol- tado para as camadas mais populares. Ou seja, ainda que vendessem menos, quantitativamente falando, possufam maior valor agregado e apontavam pata 54 Humania del Sur Hamania del Sr. No 9, N° 16. Enero-Tusio, 2014, Mateos Napolitano A formapie da Misica Popular Brasileira (MPB)e sua nujesria hitérica (1965-1982)... pp. 51-63. uma vendagem de longo prazo, pois a indtistria passava a oferecer 0 artista ¢ nao apenas a canpdo. O mercado de cangées brasileiras, que teve um forte impulso com a Bossa Nova, ampliava-se sob a hegemonia da MPB. Para se ter idéia da importancia comercial destes anos magicos da cangao brasileira, basta dizer que em 1959, cerca de 35% do mercado era ocupado por cangées gravadas no Brasil. Em 1969, esta fatia do mercado fonografico havia saltado para 65% (Napolitano, 2001). Mesmo vendendo menos do que as cangées de feigéo mais “popular”, a MPB ocupava faixas de consumo com maior poder aquisitivo, gerando maiores lucros para as empresas. © primeiro momento de afirmagéo comercial da MPB foram os lendétios “festivais da cangao” que ocorreram em varias televis6es brasileiras entre 1965 © 1972. Sobretudo os festivais organizados pela TV Record de So Paulo foram palcos de acirradas disputas estéticas e ideolégicas, em um momento raro de confluéncia de férum politico e de feira musical, atingin- do quase 90% de audiéncia em Sio Paulo e Rio de Janeiro. Nas agitadas platéias, estudantes politizados em oposigéo ao regime militar, dividiam assentos com comportadas audiéncias e fas histéricas, culruando os idolos nascentes, como Chico Buarque de Hollanda. As premiacées dos festivais confirmam a preferéncia de piiblico ¢ plateia pelas cangdes engajadas (Stroud, 2000). Em 1966 ¢ 1967, os festivais da TV Record galvanizaram a audiéncia e mobilizaram o debate, tornando- se eventos mididticos e sociais memoraveis (Homem de Mello, 2004). O proprio termo “MPB” consolidou-se no yocabulério sdcio-cultural brasi- leiro neste contexto. Em 1966, as cangées Disparada e A Banda dividiram. © prémio maximo, ambas sinalizando maneiras diferentes de comentar ‘© momento hist6rico delicado. Este era marcado por uma ditadura que ainda néo tinha assumido sua feicéo policial extrema, mas que dava sinais de truculéncia institucional crescente, sobretudo & medida que percebia a paulatina perda de apoio da classe média que havia apoiado o golpe dado dois anos antes. O festival da TV Record de 1967 foi marcado pelo auge da cangao engajada, mas também pelo nascimento de sua consciéncia critica: © tropicalismo A guitarra clétrica, vista pela esquerda nacionalista como simbolo do imperialismo cultural, foi motivo até de passeata, ocorrida justamente, um pouco antes do III Festival da Record, em julho de 1967. Dois com- positores praticamente estreantes —Caetano Veloso e Gilberto Gil- que até entio faziam parte dos quadros da MPB inseriram a guitarra elétrica nos festivais, causando um certo escindalo nos defensores do nacionalismo musical. Ambos defenderam suas cansées inovadoras —Alegria Alegria Humania del Sur 55, Humana del Sur, Revista de Esadios Latinosmericanos, Asians y Asiticos ‘Universidad de Las Andes, Mérida, Afo 9, N° 16, Enero-Junio, 2014, ISSN: 1856-6812, ISSN Elect: 2264-8810 Domingo no Parque- que nao apenas veiculavam letras com temas mais urbanos ¢ cotidianos, menos épicas ¢ herdicas, mas apresentavam ousadias formais, arranjos com instrumentos elétricos, dialogando com o pop-rock, verdadeira heresia para os cultores do violio aciistico e dos instrumentos de percussio afto-brasileiros como simbolo da “pureza musical brasileira’. Estavam langadas as bases do Tropicalismo musical (Villaga, 2004). O Tiopicalismo consagrou-se logo no inicio de 1968, como movimen- to que pretendia ampliar o conceito de critica social e politica, presente nas cangoes de MPB, para uma critica de tipo comportamental e cultural, ins- pirada nos temas da contracultura e nas estéticas mais radicais da vanguarda literéria modernista, como a Antropofagia de Osvald de Andrade (Favaretto, 1995). O “Festival da TV Record” de 1968, foi o palco de consagracio dos tropicalistas que, além de tudo, ganharam um programa de televisio proprio (Divinos e Maravilhosos), do qual, infelizmente, nada sobrou, a0 que se sabe. No “III Festival Internacional da Cangao” (FIC), do mesmo ano, ao defender a polémica cangao “E proibido proibir”, Caetano Veloso provocou a ira da platéia politizada, pois a miisica néo apenas mergulhava de vez na estética da contracultura, criticada pela juventude politizada de esquerda, como também apresentava uma letra na qual a revolugio era apresentada na sua forma libertaria, erética e rebelde, Aos berros, Caetano reagiu contra 0 conservadorismo musical da platéia: “Mas é isso que é a juventude que quer tomar o poder (....) Se vocés forem em politica, como sao em estética, estamos feitos”. ‘Alguns dias depois, na final do III FIC a politizagao da cangéo brasileira também atingia o dpice, indo na contramao da Tropicilia e suas ousadias formais ¢ didlogos com o rock. Geraldo Vandré apresentava uma versio musical de revolucéo, mais aceita pela juventude de esquerda da época: “Pra nao dizer que nao falei das flores”. Os “indecisos cordées” que “ainda fazem da flor seu mais forte refréo / e acreditam nas flores vencendo © canhao” eram criticados, em uma critica direta aos pacifistas ¢ aos hippies. Havia chegado a hora da luta armada contra o regime militar, os grupos guerrilheiros jé estavam em franca atividade e o Brasil jé tinha a sua Mar- selhesa (Ridenti, 2010; Ventura, 1988): “Vem, vamos embora/ Nao espera acontecer/ Quem sabe faz. a hora/ Nao espera acontecer”. 3. MPB e resisténcia ao regime militar Para o campo da misica popular, os efeitos do Ato Institucional n2- 5, 0 draconiano decreto que aprofundou ainda mais o cardter ditatorial ¢ policialesco do regime militar, foram imediatos. O periodo de efervescéncia 56 Humania del Sur Hamania del Sr. No 9, N° 16. Enero-Tusio, 2014, Mateos Napolitano A formapie da Misica Popular Brasileira (MPB)e sua nujesria hitérica (1965-1982)... pp. 51-63. criativa e debates estéticos ¢ ideolégicos que marcaram a “era dos festivais da cangéo” sofriam um corte abrupto. Ao longo de 1968, a cena musical brasileira se agitou com o debate entre “tropicalistas” ligados & contracultura e “emepebistas” tributérios do nacional-popular de esquerda. Em janeiro de 1969, 0 quadro era outro. Os principais idolos musicais dos festivais eram forgados a sair de cena. Caetano Veloso ¢ Gilberto Gil, os “tropicalistas” mais conhecidos, foram presos, ainda no natal de 1968. Geraldo Vandré, o autor da “Marselhesa brasileira’, a cangéo “Caminhando”, saiu do Brasil clandes- tinamente para reaparecer no Chile alguns meses depois, j4 na condigéo de exilado. Chico Buarque, mais popular de todos, preparava-se para deixar 0 Brasil, depois de ser “aconselhado” a fazé-lo pelos militares no poder. Edu Lobo partiu para os EUA em 1971, a titulo de aperfeigoar-se musicalmente. Para os artistas consagrados que ficaram no Brasil (Elis Regina, Vinicius de Moraes, ¢ outros), o regime tratava de estabelecer uma vigilancia constante, tal como atestam os documentos produzidos pela policia politica brasileira, recentemente liberados para consulta (Napolitano, 2004). A vigilancia da policia politica se complementava pela intensa censura as cangées, cujos compositores eram obrigados a envid-las para exame e liberagao prévias a qualquer apresentagio ao vivo ou gravagéo em disco. No plano da criagio, a censura! era incorporada como uma es- pécie de superego pelo compositor ¢ causava um bloqueio que, em alguns casos, impedia a propria criagao. Foi o caso de Chico Buarque, em 1974, quando se declarou um “ex-compositor”, 4 medida que tina chegado a autocensura. Entre 1971 e 1975, a censura esteve muito ativa e tornou-se um fator estrutural na cria¢do musical e na produgo de cangées, mesmo enquanto commodities de mercado. Conforme Rita Morelli: “contexto de reptessao politica vivido pelo pais a partir da edigéo do AI-5 (...) impediu que a expansio do mercado de discos ocorresse em beneficio imediato da chamada Musica Popular Brasileira” (Morelli, 1991: 48). Acensura também prejudicava a produgio industrial das cangoes, ¢ isto ocorria num momento em que a indtistria fonografica vislumbrava 6timas perspectivas de crescimento. A necessidade de enviar as cangées para o crivo dos censores, a demora de alguns pareceres, a falta de critérios clatos para o exercicio do veto, a mudanca exigida nas letras (que acaba- va ptejudicando toda a estrutura da composigéo), tudo concortia para 0 atraso e a indefinicéo de cronogramas de producio fonografica. Muitos Albuns eram planejados de um modo e acabavam sendo gravados de outro, prejudicando o planejamento empresarial ¢ financeiro das gravadoras. Os casos mais notérios foram os Lps Chico canta’ (1973) de Chico Buarque e Humania del Sur 57 Humana del Sur, Revista de Esadios Latinosmericanos, Asians y Asiticos ‘Universidad de Las Andes, Mérida, Afo 9, N° 16, Enero-Junio, 2014, ISSN: 1856-6812, ISSN Elect: 2264-8810 Milagre dos Peixes, de Milton Nascimento (1974). Nestes casos, a acéo da censura simplesmente destruiu 0 produto, vetando a letra da maior parte das cangées, que obrigou os cantores a improvisar arranjos instrumentais ¢ vocais de iltima hora, Nomes em ascensio no mercado, como Raul Seixas ¢ Gonzaguinha tiveram a maior parte do material projetado para os seus dlbuns de 1974, completamente vetados. © “Festival Internacional da Cangéo” (FIC) de 1972, que prometia ser um grande acontecimento musical, apés 0 fracasso do ano anterior, foi cerceado nao apenas pela vigilncia policial do regime militar, mas também pela propria Rede Globo, que tentava interferir nos resultados finais. O resultado foi um festival tumultuado, com muitos conflitos nos bastidores e no proprio palco. Em 1974, coma posse do general Ernesto Geisel como presidente da Reptiblica, a cangao popular foi uma das primeiras expressbes socioculturais a configurar a nova sensacio de esperanca com a promessa de distensio politica, controle da repressao policial ¢ fim da censura, que demoraram muito ase efetivar. Apesar disso, as vozes criticas na sociedade civil foram se ampliando e as cangées de MPB comegaram a vislumbrar um mundo onde © prazer poderia voltar a ter vez, ¢ a sublimagéo poética da violencia e da opressio poderia ceder espago a sublimacio pottica da paz ¢ da liberdade, configurando-se como trilha sonora de uma pequena utopia democritica que comecava a se ampliar na classe média ¢ nos setores populares, como sea volta da democracia politica fosse a redencéo de todos os males econd- micos e sociais do Brasil O inicio da saida de cena MPB como movimento central da industria fonogréfica, coincidentemente, deu-se a partir de 1982, justamente quando © processo de abertura politica experimentava os seus limites. Nao havia, obviamente, relagao causal entre os dois processos -politico e fonogrifico— mas, sem duivida, havia uma sinergia de ordem sociocultural, com rupturas € mutagées nas identidades e subculturas juvenis, cada vez mais voltadas para o consumo de pop-rock, em detrimento da MPB, embora esta também dialogasse com as tendéncias internacionalizadas. Apds o chamado vero do rock, em 1982, ¢ estouro da banda Blitz em faixas de consumo antes ocupadas pela MPB, a indkistria percebeu o potencial do novo género, cujo processo de afirmacao no mercado se consolidaria em 1985. Dois fatores estéo por trds dessa guinada na cena musical brasileira a) Adequacio da faixa etéria dos consumidores de discos no Brasil: Apesar da preferéncia estudantil pela MPB, o comprador de discos brasileiro, nos anos 70, ainda tinha mais de 30 anos, para atingir a média no mercado mundial que era de 13 a 25 anos (Dias, 2000: 82)? 58 Humania del Sur Hamania del Sr. No 9, N° 16. Enero-Tusio, 2014, Mateos Napolitano A formapie da Misica Popular Brasileira (MPB)e sua nujesria hitérica (1965-1982)... pp. 51-63. b) O rock adequava-se melhor & conjuntura de crise econdmica que afctava a indtistria fonogréfica, no inicio dos anos 80. O produto-rock tinha um baixo custo de produgio, dez vezes menos, em média, em relacéo & MPB (Dias, 2000: 85). Apesar disso, a MPB, ainda alavancada pela demanda de arte politiza- daapés.a censura, manteve ndo apenas o seu prestigio cultural, como também a rclativa importancia comercial no mercado fonografico. No final de 1988, em pleno auge do rock brasileiro, as classes B e C ainda representavam 60 ¢ 65% do mercado, com forte penetragéo do género MPB nestes segmentos. © papel da miisica popular na resisténcia & ditadura, seja no seu periodo inicial, nos “anos de chumbo” ow no perfodo de abertura, teve a peculiatidade de aliar consumo cultural de massa 4 expressio de valores politicos, principalmente através de letras que conciliavam a tradigio lirica das emogées subjetivas com a expressio épica dos desejos coletivos. Diferente do cinema e do teatro, pélos importantes na cultura de oposicéo ao regime, que optaram (bem como foram impelidos pelo mercado), nas suas expresses mais criticas e criativas, pelo isolamento das demandas do grande piiblico ¢ do chamado “gosto médio”, a misica popular assumiu sua vocasio de cultura de massa, mesmo no seu segmento mais critico e criativo. 4, MPB, resisténcia e mercado Havia uma relacéo atavica entre a miisica popular urbana eo mercado de bens culturais, cujo processo foi potencializado pela eclosio da Bossa Nova, na medida em que se passou a vislumbrar a constituiggo de um im- portante produto cultural direcionado para um novo piiblico consumidor, normalmente conhecido como “classes médias” com razoavel nivel escolar, econémico e intelectual, fruto das mudangas do capitalismo brasileiro desde meados dos anos 1950, na diresio de uma industrializagio acelerada bascada na oferta de bens de consumo durdveis, Essa mudanca do “lugar” social da produséo/distribuigao/consumo da cansao acirrow a relagao tensa ¢ ambigitidade entre 0 miisico ¢ 0 mercado, num jogo de aproximasao/ distanciamento que nao foi externo ao processo de constituicio da moderna indistria cultural brasileira (Ortiz, 1988). ‘Uma répida andlise do mercado fonogréfico brasileiro nos permite situar melhor a MPB, como movimento musical especifico, dentro das es- eruturas de mercado e entender a aparente ambigitidade da insercio social de um tipo de cansao de heranga nacionalista e critica, ao mesmo tempo, produto fundamental para a consolidagio e para o crescimento do mercado comandado por multinacionais, num processo cultural semelhante a outros Humania del Sur 59 Humana del Sur, Revista de Esadios Latinosmericanos, Asians y Asiticos ‘Universidad de Las Andes, Mérida, Afo 9, N° 16, Enero-Junio, 2014, ISSN: 1856-6812, ISSN Elect: 2264-8810 paises (Flichy, 1991). Beneficiada pela modernizacio capitalista patrocinada pelo regime, a indiistria fonogréfica brasileira tinha na cangéo de esquerda seu principal produto, 2 medida que era um tipo de miisica consumida pelo segmento com maior poder aquisitivo, as classes médias escolarizadas. A consolidagio da era do long playing de 33 rotagdes por minuto (LP), aliada a estabilizacao do cast de compositores foi paralela, do ponto de vista sociocultural, a consolidagéo da miisica popular como sistema e da MPB como movimento (Napolitano, 2001). A MPB desempenhava um papel importante neste mercado, pois atraia 0 consumidor jovem (tendéncia mundial), aglutinava um cast nacional e fornecia parimetros 3s gravadoras para a manutengio de mercado ao longo prazo. Neste sentido, a MPB nio foi meramente uma concess4o da indtistria ao “bom gosto”, como reza certa meméria social do periodo, mas um produto fundamental para sua consolidagéo. O que nao diminui sua importincia politica, mas complica o olhar de quem deseja conhecer o periodo A importincia da MPB para o mercado fonografico brasileiro, 0 6° maior mercado do mundo em 1979, apoiava-se na relacéo complementar, embora tensa, entre “artistas de marketing” ¢ “artistas de catélogo” (a MPB fornecia quadros para este tiltimo tipo). Em 1977, foram 47 milhées de uni- dades vendidas, j4 em 1979 foram 64.104 mil unidades vendidas (40.624 de miisica nacional). A proporgao de vendas , ¢ 65% 2 80% de mtisica nacional contra 20 a 35% de mitisica estrangeira, era uma constante desde o final dos anos 60, e tinha tudo a ver com a afirmagao da MPB com o carr-chefe do mercado. Os artistas de catélogo absorviam maior investimento em producéo. Desta légica deriva o fato dos LPs de MPB eram mais luxuosos ¢ bem produzidos, em todos os sentidos (gravacao, mixagem, arranjos, arte da capa, etc.) e 0s “artistas de marketing” recebiam maior investimento em promogao (Dias, 2000). Além disso, destaco que os produtos dos “artistas de catélogo” tinham maior valor agregado, assim mesmo vendendo menos do que os géneros ¢ artistas mais populares, davam maiores lucros para as gtavadoras. Uma prova da importancia da MPB para o sistema comercial- fonografico da musica no Brasil, foi a presenca de um clenco estavel de compositores ligados ao género para todas as principais gravadoras multi- nacionais que atuavam no Brasil. A MPB, a partir da segunda metade dos anos 1960 até o inicio 1970, poderia ser considerada um monopélio da Polygram/Philips, multinacional holandesa, gracas 4 acuidade comercial e sociocultural de André Midani, um dos mais importante empresérios da época (Midani, 2008). Em 1973, a Phonogram/ Philips tinha cerca de 80% 60 Humania del Sur Hamania del Sr. No 9, N° 16. Enero-Tusio, 2014, Mateos Napolitano A formapie da Misica Popular Brasileira (MPB)e sua nujesria hitérica (1965-1982)... pp. 51-63. do cast da MPB, Com a crise do petréleo, em 1973, cujos efeitos foram imediatos na érca fonografica na medida em que o produto cra uma das matérias primas para fabricagao do disco de vinil, houve uma reorganizacéo do mercado, Enquanto a Philips demitia uma série de artistas de MPB com menor vendagem (Jards Macalé, Luiz Melodia, Fagner), outras gravadoras iniciavam um proceso de contratagao de compositores ligados ao género, processo este que se consolida por volta de 1975: Aentrada da WEA (1975) e da Ariola (1979) agitaram o mercado em torno da disputa de contratos de “monstros sagrados” da MPB, como eram chamados os artistas que surgiram e se consagraram no contexto dos festivais da cancéo, A WEA, quando abriu seu escritério no Brasil em julho de 1976, pretendia ganhar cerca de 8% do mercado com langamentos de LPs de artistas brasileiros: “sucesso de vendas de um artista nacional, quando ocorria, era sempre muito maior do que o sucesso de qualquer langamento internacional dado que o artista brasileiro contava com uma faixa mais profunda de piblico” (Morelli, 1991: 52). Entre 1978/1980, a gravadora conseguit contratar Elis Regina, Gilberto Gil e Ney Matogrosso. A alema Ariola, por sua vez, tirou Chico Buarque da Phonogram, causando muito rumor na imprensa da época. © arrefecimento da censura, que foi particularmente acitrada entre 1970 e 1977, acabou por estimular a demanda por mtisica popular politizada, principalmente nos segmentos médios da sociedade. A MPB beneficiou-se desta demanda, pois era sinénimo de miisica engajada e so- fisticada, a um s6 tempo. A MPB talvez tenha sido 0 produto mais eficaz na tealizagéo de uma identidade cultural nos termos do nacional-popular, na medida em que conseguiu construir uma linguagem poético-musical que articulou o “particular” (folclore, géneros musicais locais) ao “universal” (jazz, miisica erudita, rock), no ambito utdpico da nacéo, pensada como termo médio no espaco (a sintese ~ainda que assimétrica— das caracteristicas regionais agregadoras da brasilidade), no tempo (a sintese entre a tradigao ea ruptura) € no conjunto de sua sociedade civil (o conjunto das classes sociais). Este “termo médio”, como vimos, nao esteve isento de tensdes ¢ conflitos nem foi produto de um consenso entre artistas ¢ intelectuais, sobretudo quando se inseria nas estruturas de um mercado altamente industrializado, O mesmo autoritarismo do regime militar que cerceava as liberdades publicas, 4 medida que era modernizante do ponto de vista econémico, néo pode conter por muito tempo os efeitos sociais, culturais e politicos de um processo estrutural que ele mesmo incentivava, como, por exemplo, a Humania del Sur 61 Humana del Sur, Revista de Esadios Latinosmericanos, Asians y Asiticos ‘Universidad de Las Andes, Mérida, Afo 9, N° 16, Enero-Junio, 2014, ISSN: 1856-6812, ISSN Elect: 2264-8810 expansio do ensino superior ¢ da classe média intelectualizada consumidora de arte de esquerda. Desta contradigio, nascett o Brasil contemporanco, do qual a MPB é testemunho involuntétio e sintoma cultural, ainda que a utopia que a caracterizava, “a revolugéo nacional-democratica anti-imperialista” tenha sido derrotada politicamente com o golpe de 1964. Se nio fez a tal revolucio, ajudou a construir uma memoria social que, contraditoriamente, fez triunfar uma visio critica do perfodo do regime militar, derrotando na batalha cultural, os setores autoritarios que tinham triunfado na batalha politica. Notas 1 Acensura prévia as artes ¢ diversées puiblicas foi reorganizada no Brasil a partir de 1969, com a edigao de novas leis, como o Decreto 1077, ea centralizagao no Servigo de Censura as Diversbes Publicas do Departamento de Policia Federal J Ministério da Justiga. Ver GARCIA, Miliandre (2008). “Ou vocés mudam ou acabam” teatro e censura na ditadura militar (1964-1985)/ Miliandre Garcia. = Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS. 2 OLPChico Canta foi pensado, originalmente, para ser a trilha sonora da peca Calabar~o elogio da traigao, de Chico ¢ Ruy Guerra. O texto revia a imagem do portugués Domingos Fernandes Calabar, incorporado como traidor da patria na histéria oficial brasileira, pois aliara-se aos holandeses na ocupacio do Nordeste brasileiro, entre 1630 ¢ 1654, Nao apenas algumas cangées, mas a pega, foi proibida pela censura, sendo liberada somente em 1979. 3 Conforme declaragao de André Midani apud DIAS, Marcia Tosta (2000). Os donos da voz. Indistria fonogréfica brasileira ¢ mundializagao da cultura, Sao Paulo, Boitempo Editorial, p. 82. Referencias Napolitano, Marcos (2001). Seguindo a cangio. Engajemento politico e industria cultural na MPB (1959-1969). Sao Paulo, Annablume/FAPESP (disponivel em scribd.com) Garcia, Walter (1999). Bim Bom: a contradigao sem conflitos de Jodo Gilberto. Sao Paulo, Paz e Terra. Stroud, Sean (2000). “Miisica é para o povo cantar”: Culture, Politics and the Brazilian song festivals 1965-72”, Latin American Music Review, vol. 21: Number 2: Fall/Winter, p. 87-117, Homem De Mello, Zuza (2004). A era dos festivais: uma pardbola. Sio Paulo, Editora 34, 2004 62° Humania del Sur Hamania del Sr. No 9, N° 16. Enero-Tusio, 2014, Mateos Napolitano A formapie da Misica Popular Brasileira (MPB)e sua nujesria hitérica (1965-1982)... pp. 51-63. Villaga, Mariana. Polifonia tropical. Experimentalismo ¢ engajamento na misica popular (Brasile Cuba, 1967-1972). Sao Paulo, Humanitas/ Histéria Social-USP Favaretto, Celso (1995). Tropicdlia. Alegoria, Alegria. Cotia, Atelié Editorial, 2ed). Ridenti, Marcelo (2010). O fantasma da revolusao brasileira. Sao Paulo, Editora ‘UNESP, Ventura, Zuenit (1988). 1968: 0 ano que ndo acabou. Rio de Janeito, Nova Fronteira Napolitano, Marcos (2004). “MPB sob suspeita: a cena musical vista sob a ética dos servigos de vigilincia’. Revista Brasileira de Histéria, 24/47 (disponivel no site scielo.com) Morelli, Rita (1991). Industria fonogréfica. Campinas, Ed. Unicamp. Dias, Marcia Tosta (2000). Os donos da voz. Indistria fonogrdfica brasileira ¢ mundializagéo da cultura, Sio Paulo, Boitempo Editorial. Ortiz, Renato (1988). A moderna tradiséo brasileira, Sao Paulo, Brasiliense. Flichy, Patrice (1991). Les industries de limaginaire. Grenoble, PUG Midani, André (2008). Misica, fdolos e poder. Do vinil ao download. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. Humania del Sur 63

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