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Carole Pateman O contrato sexual Tradugao Marta Avancini PAZ E TERRA © Carole Pateman, 1988, publicado pela Polity Press em conjunto com Blackwell Publishers ‘Traduzido do original em inglés The Sexual Concract Preparagiio Luis H. Nery Revistio da traducéio Jandyra Lobo Reviséo Rinaldo Milesi ¢ Fabio Goncalves Capa Isabel Carballo, sobre pintura de Edgar Degas, 1865 Dados Intcrnacionais de CatalogacSo na Publicaggo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Pateman, Carole O contrato sexual / Carole Pateman ; tradugao Marta Avancini: — Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1993 1, Feminismo 2. Sexo — Aspectos sociais I. Titulo. 93-0632 CDD 305.3 Indices para catdlogo sistematico: 1. Contrato sexual : Sociologia 305.3 2. Homens e mulheres : Papdis sexuais : Sociologia 305.3 3. Mulheres c homens : Papéis sexuais : Sociologia 305.3 Dircitos adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA S.A. Rua do Triunfo, 177 01212 - Sao Paulo - SP Tel.: (011) 223-6522 Rua So José, 90 - 11.° andar - cj. LLLL 20010 - Rio de Janciro - RJ Tel: (021) 221-4066 que se reserva a propricdade desta tradugao. Conselbo Editorial Antonio Candido Celso Furtado Fernando Gasparian Fernando Henrique Cardoso 1993 Impreso no Brasil / Printed in Brazil 7 O que ha de errado com a prostituicao? No patriarcado moderno existe uma variedade de meios pelos quais os homens mantém os termos do contrato sexual. O contrato de casamento ainda é fundamental para o direito pa- tiarcal, mas o casamento ¢ atualmente apenas um dos caminhos sociais, dentre os aceitaveis, para os homens terem acesso sexual aos corpos das mulheres. Ligagdes de sexo casual ¢ “viver juntos” nem de longe implicam as sangGes sociais de vinte ou trinta anos atrds, e, além dos arranjos privados, h4 um enorme e miliondrio comércio de corpos femininos. A prostituigdo é parte integrante do capitalismo. Nao se colocam mais as esposas em um leilao publico —- embora na Austrdlia, nos Estados Unidos e na Gra- Bretanha seja possivel adquirir mulheres filipinas pelo correio —, mas os homens podem comprar o acesso sexual aos corpos das roulheres no mercado capitalista. O direito patriarcal esta clara- mente corporificado na “liberdade de fazer contratos”. As prostitutas esto facilmente acessfveis, em todos os niveis do mercado, a qualquer homem que possa pagar por seus servi- gos e elas comumente sfo oferecidas como parte de transagdes cometciais, polfticas e diplomaticas. Apesar disso, o cardter pii- blico da prostituigao ¢ menos explicito do que poderia ser. Como outras formas de empreendimento capitalista, a prostituigao é encarada como um empreendimento privado, e o contrato entre 279 diente e prostituta € visto como um acordo particular entre com- prador e yvendedor. Além disso, a prostituigao € mantida em s+ gilo, apesar de sua escala industrial. Em Birmingham, uma c- dade inglesa com aproximadamente meio milhao de habitantes, cerca de 800 mulheres trabalham como prostitutas de rua, ou ems casas e hotéis, “saunas”, “casas de massagem” e “agéncias de acom- panhantes”. Quase 14 mil homens compram seus servicos a cada semana, ou seja, cerca de 17 homens para cada prostituta.” Uma demanda quase igual foi registrada nos Estados Unidos, e 0 nu- mero total de clientes por semana, em todo o pais, numa estimz tiva conservadora, é de 1500 000 homens.” Calcula-se que cerca de US$ 40 milhdes-sdo gastos por dia com a prostituigao nos Estados Unidos.’ O sigilo existe, em parte porque onde 0 ato da prostituigao em si n4o é ilegal, as atividades associadas a ele, tais como o aliciamento de homens em locais puiblicos, freqiient2- mente o séo. Grande parte do carter criminal do negécio ca prostituicao nao ¢, no entanto, o tinico motivo para o sigila. Nem todos os homens querem que se fique sabendo que eles compram esse tipo de mercadoria. Ser descoberto tendo relagdas com uma prostituta ainda pode, por exemplo, ser a ruina dos politicos. Dados empfricos demonstram que 3/4 dos clientes das prostitutas sio homens casados. Certamente, as prostitutas de Bir- mingham percebem uma diminuigSo das transagdes nos periodos de férias, quando os homens esto fora da cidade, com suas mu- lheres e filhos.* A sujeigao sexual das esposas nunca deixou de ser defer- dida, mas até bem recentemente era diffcil encontrar uma defesa incondicional da prostituicdo. Esta era encarada, por exemple, como um mal necessdrio que protegia as jovens do estupro ¢ protegia o casamento ¢ a familia dos desvarios do desejo sexual dos homens; ou como uma conseqliéncia lamentdvel da pobreza e das restrigdes sociais enfrentadas pelas mulheres que tinham de se sustentar; ou era aceita como nio sendo pior, mas mais ho- nesta até, do que a “prostitui¢do legal”, como Mary Wollstone- 280 craft chamou o casamento em 1790.’ Como prostitutas, as mu- theres comercializam abertamente seus corpos e, como trabalhadoras — mas diferentemente da esposa —, recebem por isso. Assim, para Emma Goldman, “é simplesmente uma questo do grau em que uma mulher se vende a um homem, dentro ou fora do casa- mento, ou a varios homens”.® Simone de Beauvoir encara a es- posa como “contratada pela vida toda por um homem; a prosti- tuta tem varios clientes que pagam a ela pelos seus servigos. Uma é protegida por um tinico homem contra todos os outros; a outra é defendida por todos contra a tirania exclusiva de cada um”.’ Cicely Hamilton observou, em 1909, que embora as mulheres fossem impedidas de barganhar livremente no tnico comércio legitimamente aberto a elas, o casamento, clas podiam exercer essa liberdade em seu comeércio ilegitimo; “a classe das prostitutas [...] levon ao seu resultado légico o princfpio de que as mulheres existem em virtude de um saldrio pago em troca da posse de suas pessoas”. Uma mudanga radical acontece atualmente nas discussdes sobre a prostituicio, que ¢ defendida indiscriminadamente pelos contratualistas. Os termos da defesa ilustram mais uma vez a fa- cilidade com que algumas discussdes feministas ocupam o ter reno contratualista. Muitas discussdes feministas recentes concor- dam que a prostituigio ¢ simplesmente um trabalho e que a prostituta é uma trabalhadora, como qualquer outro trabalhador assala- riado, As prostitutas deveriam, portanto, ter direitos sindicais, e as feministas freqiientemente encaminham propostas para que as trabalhadoras controlem a indiistria sexual. Argumentar dessa maneira nao € necessariamente defender a prostituigao — pode- se defender os direitos sindicais, a0 mesmo tempo em que se reivindica a abolicio do trabalho capitalista assalariado — mas, na falta de um argumento contrario, 0 que se sugere implicitamente em muitas discussdes feministas é que, se a prostituta é uma sim- ples trabalhadora, dentte outras, a conclusio adequada é que nfo hé nada de ettado com a prostituigfo. Em tiltima instincia, a discus- 281 sio deixa implicito que nao h4 nada de errado com a prostituigio que no seja errado da mesma forma em outros tipos de trabalho. Essa conclusio depende dos mesmos pressupostos da defesa contratualista da prostitui¢io. Os contratualistas argumentam que uma prostituta contrata um certo tipo de capacidade de trabalho, durante um certo perfodo, em troca de dinheiro. H4 uma troca voluntdria entre a prostituta ¢ o cliente, ¢ o contrato de prostitui- gao € exatamente como — ou ¢ um exemplo de — 0 contrato de trabalho. Da perspectiva do contrato, a prostituta detém a pro- priedade em sua pessoa e contrata parte dessa propriedade no mercado. Uma prostituta ndo vende a si mesma ou mesmo seus érg’os sexuais, como normalmente se admite, mas contrata o uso de servigas sexuais, Nao hd diferencas entre uma prostituta e qual- quer outro trabalhador ou prestador de servigos. A prostituta, como outros “individuos”, esta numa relagio de exterioridade com a propriedade em sua pessoa. A teoria do contrato, por tanto, parece dar uma resposta convincente As famosas criticas e objegSes & prostituigao, Por exemplo, para os contratualistas, a objegao de que a prostituta é desonrada ou degradada por causa de seu negécio nao apreende a natureza do que ¢ negociado. O corpo ¢ o ser da prostituta nao séo oferecidos no mercado; ela pode contratar o uso de seus servicos sem danos para ela mesma. Pode-se dizer, agora, as feministas que argumentam que a prosti- tuta € um exemplo tfpico da sujeicio das mulheres aos homens, que essa viséo € um reflexo de atitudes antiquadas em relacio ao sexo, difundidas pela propaganda masaulina e pelo antigo mundo da subordinacio feminina.” Os contratualistas proclamam até que as “pessoas tém o direito humano de se engajarem no sexo comercial”.” Os defensores da prostituic¢ao admitem que sfo necessdrias algumas mudangas na industria tal como ela existe atualmente, a fim de que um mercado propriamente livre de servicos sexuais funcione. Contudo, eles insistem que a “prostituigio segura” ¢ possivel — a expresso é de Lars Ericcson.’* A idéia de prostitui- gao segura ilustra a mudanga radical que aconteceu nas discus- 282 sées sobre a prostituicao. A defesa contratualista é agora um ar- gumento universal. A prostituigio é defendida como um comércio de que qualquer um pode participar. A liberdade de contratar ¢ a igualdade de oportunidades exigem que o contrato de prostitui- ¢Ao esteja aberto a todos e que qualquer individuo possa comprar ou vender servicos no mercado. Qualquer um que necessite de servigo sexual deve ter acesso ao mercado, seja homem ou mu- ther, jovem ou velho, preto ou branco, feio ou bonito, aleijado ou deficiente. A prostituigio funciona como um tipo de terapia — “é natural o papel da prostituta como um tipo de terapeuta”” —, ou como um tipo de servigo social ou de enfermagem (cui- dando “da higiene intima de pacientes incapacitados”).” Ninguém ser4 deixado de fora por causa de uma postura inadequada erm relagZo ao sexo. Uma corcunda ou um corcunda sempre encon- trarao um prestador de servicos.'* Uma defesa universal da prostituigio pressup6e que um prostitute pode ser de ambos os sexos. As mulheres devem ter as mesmas oportunidades que os homens de adquirir servigos se- xuais no mercado. Quem se prostitue ¢ normalmente retratado como uma mulher (“a prostituta”) ¢, de fato, a maioria dos pros- titutos constitui-se de mulheres. Entretanto, para os contratualis- tas, essa ¢ uma caracteristica acidental da prostituigio; para que a prostituigio segura fosse institufda, o status e a definicSo sexual atribufda as duas partes — o homem como comprador ¢ a mu- lher como prestadora de servicos ~— seriam substituldos pelo con- trato, por uma relacdo entre dois “individuos”. Uma pequena reflexiio sobre a histéria do contrato sexual sugere que h4 um problema fundamental na tentativa de universalizagao da prosti- tuicéo. As vezes aparecem relatos em que, em grandes cidades como Sidney, trabalham alguns prostitutos heterossesexuais — a velha figura do gigold pertence a um contexto muito diferente .-, mas eles ainda so poucos. Prostitutos homossexuais, por outro lado, nio sio incomuns, e, segundo a perspectiva do con- trato, eles n30 sao diferentes das prostitutas. A histéria do 283 contrato sexual revela que hd um bom motivo para “a prostituta™ ser uma figura feminina. A histéria € sobre relagdes heterossexuais — mas ela tam- bém fala da criacdo da fraternidade e de suas relacSes contratuais. As relagSes entre os membros da fraternidade esto fora do es- copo dessa discussio, mas, como Marilyn Frye observou, “ha uma espécie de ‘tabu do incesto’ construfdo dentro da masculini- dade normal”.” O tabu ¢ necessdrio; dentro dos vinculos da fra- ternidade existe sempre a tentacSo de transformar 2 relaco em algo mais do que camaradagem. Mas se os membros da irman- dade ampliassem seus contratos, se eles contratassem a utilizagdo sexual de corpos entre eles préprios, a competicio poderia abalar os fundamentos do contrato original. Da petspectiva do con- trato, a proibigao dessa forma especifica de exercicio da lei do direito sexual masculino é puramente arbitraria, e o fervor com que ela € mantida pelos préprios homens é incompreensivel. A histéria da criacdo origindria do patriarcado moderno ajuda a diminuir a incompreensio. Os contratualistas que defendem um individuo sexualmente neutro, universal, e a prostituigio segura nfo levaram, até onde sei, a Idgica de seus argumentos as ultimas conscqiiéncias. A der- rota final do status e a vitéria do contrato deveriam levar a elimi- nagio do casamento em favor do acordo econdmico da prostituicio generalizada, no qual os individuos participariam de contratos curtos de uso sexual, quando necessdrio. A tinica restricio legf- tima a esses contratos seria a nfo disposicgo da outra parte em tornar esses servigos disponiveis; o sexo desta parte setia irrelevante. A idade também nio consistiria numa limitagdo, mas 20 menos um con- tratualista se apoiaria no antipaternalismo verdadeiro, nesse aspecto, 6 Qualquer discussio sobre a prostitui¢io estd repleta de pro- blemas. Embora os contratualistas neguem atualmente qualquer importancia politica ao fato de a maioria dos prostitutos ser de mulheres, um grande problema é que, em outras discussdes, a prostituigao é invariavelmente encarada como um problema rela- 284 tivo & prostituta, um problema relative as mulheres. A apreensio da prostituigio como um problema relativo as mulheres esta tio profundamente assentada que € provavel que qualquer critica 4 prostituigiio provoque as acusagdes que os contratualistas con- tempordneos fazem contra as feministas; a critica da prostitui¢éo revela o desprezo pelas prostitutas. Argumentar que hd algo de errado com a prostituigao ndo implica necessariamente um julga- mento desfavoravel das mulheres que fazem esse trabalho. Quando os socialistas criticam © capitalismo e o contrato de trabalho, eles nao o fazem porque desprezam os trabalhadores, mas porque eles sio os defensores dos trabalhadores. Contudo, o recurso 4 idéia de falsa consciéncia, comum ha alguns anos, sugeria que 0 pro- blema do capitalismo era um problema com os trabalhadores. Reduzir o problema do capitalismo as deficiéncias de consciéncia dos trabathadores desvia a atengao sobre o capitalista, o outro participante do contrato de trabalho. Do mesmo modo, a supo- sigfo patriarcal de que a prostituicio seja um problema referente as mulheres garante que o outro participante do contrato de prostituigao nao seja analisado. Uma vez que a histéria do contrato sexual ¢ contada, a prostituigao pode ser encarada como um problema referente aos homens. O problema da prostituigao torna-se entfo envolvido na questao de por que os homens rei- vindicam que os corpos das mulheres sejam vendidos no mer cado capitalista. A histéria do contrato sexual também dé a res- posta; a prostituigao faz parte do exercicio da lei do direito sexual masculino, uma das maneitas pelas quais os homens tém acesso garantido aos corpos das mulheres. A critica feminista 4 prostituigao é, as vezes, rejeitada atual- mente sob a alegacdo de que as prostitutas exploram ou enganam seus clientes do sexo masculino; os homens séo apresentados como a parte que sofre os danos, e nfo as mulheres. Para se protegerem, as prostitutas freqiientemente conseguem ter 0 con- trole da transagZo com seus clientes por meio de varios artificios e artimanhas na negociagio. Entretanto, exatamente como acon- 285 tece nas discussdes sobre o casamento, que recorrem ao exemplo dos maridos benevolentes ¢ nfo conseguem diferenciar a relagZo espectfica dos cénjuges da instituiggo do casamento, o mesmo acontece nos casos especificos do contrato de prostituicio — quando a prostituta explora um cliente —, os quais devem ser diferenciados da prostituigio come instituicio social. Na estru- tura da instituigio da prostituicao, as “prostitutas” estZo subme- tidas aos “clientes”, exatamente como as “esposas” esto submeti- das aos “maridos”, na estrutura do casamento. Ha uma vasta bibliografia sobre a prostituigio, incluindo muitos relatos oficiais, ¢ j4 se dedicou bastante atenglo A psicolo- gia e 4 psicopatologia da prostituta. Em 1969, um panfleto am- plamente difundido por oficiais de justica na Gri-Bretanha fa- lava sobre a “prova de que a prostituicgo € uma manifestagic tegressiva € primitiva”; e um relato do Departamento de Imigra- 40, em 1974, afirmava que “o modo de vida de uma prostituta é uma fejeigio tao grande aos costumes sociais normais que pode ser comparado ao do viciado em drogas.”"” Também se presta muita ateng3o aos motivos pelos quais as mulheres se tornam prostitutas. As’ evidéncias sugerem que nfo hé4 nada de misteriose sobre os motivos pelos quais as mulheres se prostituem. Jn extre- mis, as mulheres podem vender seus corpos por comida, como a joven desempregada do século XIX, a quem se perguntou (a autor de Minha vida secretd): “Por que voc deixa os homens foderem vocé?” Ela respondeu que “por pies de lingiiica”, mas que também o permitiria por “tortas de carne e massas”.'* Mais genericamente, a prostituicio possibilita que as mulheres ga- nhem mais do que ganhariam na maioria dos trabalhos abertos 2 elas no capitalismo patriarcal. Entre 1870 e 1880, as mulheres, em campanha contra os Atos das Doengas Contagiosas na Asso- ciagio Nacional das Senhoras, na Gri-Bretanha, argumentavam que a prostituigdo era a industria que melhor remunerava as mu- theres pobres. Em 1980, uma pesquisa empirica mostrou que as prostitutas brit4nicas ganhavam muito mais do que a maioria das 286 | trabalhadoras, ¢ estavam na faixa de saldrios médios e altos, dentre os trabalhadores homens.” O filme americano Working Girls ilustra a atragdo que a prostituigdo exerce sobre as mulheres jo- vens de classe média com educagao superior, € que querem ga- nhar muito dinheiro em pouco tempo. As prostitutas também se relacionam o grau de independéncia e a flexibilidade que o tra- balho permite, e a relativa facilidade com que a prostituigdo pode ser combinada com o trabalho doméstico e com o cuidado das criangas. O vicio em drogas também é um importante motivo por que as mulheres se tornam prostitutas. As causas pelas quais as mulheres se prostituem sao relativa- mente simples, mas o que se qualifica de prostituiggo é menos claro. A maioria das discussées da por certo que o significado de “prostituigéo” é claro; “nés temos uma idéia do que queremos dizer com esse termo”.”° Tracar a linha entre amadoras e mulhe- res engajadas na profisséo, em nossa sociedade, nfo é sempre facil, pois perfis especificos e situados em diversos periodos histéricos acabam por ser reunidos num mesmo conglomerado. A respeito, uma das idéias mais persistentes é que a prostituigio (como o patriarcado) constitui um trago universal da vida humana em sociedade, entendimento muito bem expresso pelo cliché, “a mais antiga profissio”. O cliché ¢ usado para se referir a um largo espectro de processos culturais, abrangendo desde tempos re- motos até o presente e reunindo tudo o que se convencionou. chamar de “prostituigéo”. Assim, por exemplo, um. contratualista defensor da prostituiggo pergunta o que “a prostituigdo comercial, no sentido modemo”, desenvolveu desde 0 antigo templo da prosti- tuigdo sagrada.”* O mesmo significado social € atribuido a ativi- dades tio dispares quanto, digamos, a prostituigio religiosa na Antiga Babilénia, a venda de corpos de mulheres carentes em troca de comida para elas préprias ¢ seus filhos, a “escraviddo branca”, os bordéis para as tropas, a oferta de mulheres aos des- cobridores brancos, as maisons dabattages ou a prostituigao ma- laya, cm Nairdébi.” Nao é evidente que todas essas praticas so- 287 ciais tenham a mesma importdncia que o contrato de prostituicéo do capitalismo patriarcal. De fato, estudos recentes feitos por his- toriadoras feministas mostram que a prostituigio, no sentido contemporaneo — a forma de prostituiggo que tora possivel a defesa contratualista da prostituigao segura — ¢ um fendmeno histérico e cultural distinto, que se desenvolveu na Gri-Bretanha, nos Estados Unidos e na Austrdlia, por volta do final do sécule XTX e do final do século XX. Nao ha nada de universal na prostituigio como um grupe espectfico de trabalhadores assalariados especializados em. deter- minado tipo de tzabalho, ou na prostituigéo como uma ocupacao ou uma profissio especializada, dentro da divisio capitalista do trabalho. Até o final do século XIX, nesses tras paises, as prosti- tutas faziam parte da mio-de-obra pobre temporaria. As mulhe- res dessa classe entravam e safam da prostituicdo, como entravam e safam de outras formas de trabalho. As prostitutas no eram encaradas como um tipo especial de mulheres, nem eram isola- das dos outros trabalhadores ou de outras comunidades da classe trabalhadora; nao existia uma “profissio” especializada da prostitui- gao. Na Gra-Bretanha, por exemplo, a prostitui¢io, no sentido contemporaneo, derivou dos Atos das Doengas Contagiosas (1864, 1866, 1869). Nesses Atos, as mulheres das cidades militares po- diam ser classificadas como “prostitutas comuns” por policiais & paisana, eram submetidas obrigatoriamente a exames ginecolégi- cos por causa das doencas venéreas e, se estivessem infectadas, eram confinadas em hospitais de isolamento. Uma grande cam- panha politica, na qual as mulheres se destacaram, foi feita em reptidio aos Atos. Recusando a idéia de que a defesa da higiene publica exi- gisse a inspegio regular de marinheiros ¢ soldados, bem como das mulheres por causa das doengas venéreas, o relatério de uma Comissio Real sobre os Atos afirmava que “nfo se pode compa- rar as prostitutas e os homens que tém relagSes com elas. No Primeiro sexo, o delito ¢ cometido por dinheiro; no segundo, ¢ 288 um prazer nfio-ortodoxo de um instinto natural.”** As militantes, tais como Josephine Butler, reconheceram que havia muito mais em questéo do que as “duas medidas” da moral sexual, a tinica moral compativel com o contrato sexual. Ela argumentava que todas as mulheres estavam envolvidas nos Atos, ¢ que elas nado deveriam aceitar que a seguranga e a respeitabilidade privadas da maioria das mulheres dependessem de um “tipo de escravas’, de prostitutas disponiveis publicamente. Butler escreveu mais tarde para sua irm& que “mesmo que n&o tenhamos a solidariedade que nos faca sentir que as correntes que aprisionam nossas irmas escravizadas também nos prendem, nao podemos fugir ao fato de que somos um tinico sexo, solidaire, ¢ que, enquanto elas estive- rem presas, nés nao seremos completa ¢ verdadeiramente livres”.” Para as feministas que lutavam contra os Atos, a prostituigZo rep- resentava a mais violenta forma de dominagio sexual das mulhe- res pelos homens. Entretanto, as quest6es feministas desapareceram em meio ao movimento social puritano desenvolvido na Gré-Bretanha a par- tir de 1880, e colaborou para a aprovacdo do Ato de Emenda da Lei Criminal, em 1885, que deu a policia maior autoridade sobre as mulheres pobres. Na mesma época em que os Atos das Doen- cas Contagiosas foram revogados, mais precisamente em 1886, o carater da prostituigio j4 estava mudando e o negécio estava se “profissionalizando”. Foi dificil para as mulheres classificadas nos Atos como prostitutas de rua terem seus nomes removidos dos registros, ou, conseqtientemente, encontrarem empregos. As mu- theres normalmente alugavam quartos em bordéis ou estalagens de alta rotatividade, ditigidos por mulheres com familias para sustentar, que também aceitavam outros locatdrios, além das prosti- tutas. O Ato de 1885 deu & polfcia poderes para fechar os bor- déis, os quais foram sistematicamente fechados entre 1890 e 1914, e poderes coritra 0 aliciamento publico de homens. As prostitutas recorreram aos c4ftens pata se protegerem. A prostituicio deixou de ser controlada por mulheres e passou a ser controlada por 289 homens; como Judith Walkowitz observa, “havia entéo uma ter- ceira parte com grandes interesses no prolongamento da perma- néncia das mulheres nas ruas”,** Em Nova Gales do Sul, Austrdlia, a climinagdo da prostitui- ¢4o independente tomou um outro caminho. Diferentemente das outras colénias britanicas, a Nova Gales do Sul n&o sancionou uma legislacio contra as doengas contagiosas, nem seguiu o Ato de 1885. A legislacio foi introduzida em 1908, visando o alicize mento de homens nas ruas, a caftinagem ¢ a manutencdo de bordéis e, de acordo com Judith Allen, o objetivo da estratégia policial era a abolic&o dos aspectos mais vislveis da prdstituicio. O resultado foi a impossibilidade de as prostituras independentes continuarem a trabalhar; “o trabalho da prostituta tornow-se es- truturalmente proletarizado”.”’ As prostitutas foram forgadas a se voltarem para redes de crime organizado ou para ciftens empre- gados por esses criminosos. Uma conseqiiéncia semelhante foi provocada pelas grandes campanhas contra a prostituicao durante 2 era progressista nos Estados Unidos. Ruth Rosen sintetiza as mu- dangas, que inclufram a transfertncia do controle do negécia “das madames e das préprias prostitutas para os caftens e os sindicatos do crime organizado. [...] A partic de entao, a prostituta rara- mente trabalhava como agente independente. Além disso, ela en- frentou o aumento da violéncia, nao sé por parte da policia, mas também de seus novos ‘patrées”.* Uma vez ptofissionalizada, = prostituigéo se transformou numa importante industria capita- lista, com a mesma estrutura de outras indtistrias capitalistas, com as ptostitutas trabalhando em uma ocupacio controlada por ho- mens, Por exemplo, em Birmingham, a maioria das prostitutas tem um rufidéio — cdften — e as “saunas” e outros estabelecimen- tos do tipo geralmente pertencem a homens ou sio ditigidos por eles. Poucas prostitutas se tornam gerentes ou “fazem empreendi- mentos comerciais com outras mulheres para o beneficio muituo”” A alegacao de que a prostituiczo é uma caracterfstica uni- versal da sociedade humana nfo se apéia unicamente no cliché “a 290 mais antiga profissio do mundo”, mas também no pressuposto amplamente mantido de que a prostituigdo se origina da necessi- dade sexual natural dos homens. Existe um instinto natural (masculino) e universal que, supde-se, necessita, ¢ sempre neces- sitara, da valvula de escape fornecida pela prostituigdo. Atual- mente, quando os argumentos de que o sexe fora do casamento é imoral perderam a forga, os defensores da prostituigio freqiiente- mente a apresentam como um exemplo de “sexo sem amor”, ou de satisfagio dos desejos naturais.” O argumento, no entanto, é um non sequitur. Defensores do sexo sem amor, ¢ do que jé foi chamado de amor livre, sempre supuseram que a relagdo estivesse baseada na atragao sexual mitua entre um homem e uma mulher e envolvesse a satisfacdo fisica mtttua. O amor livre e a prostitui- ¢ao sao pélos distintos. A. prostituigao é a utilizagao do corpo de uma mulher por um homem para sua prépria satisfacio. Nao ha desejo ou satisfagdo por parte da prosticuta. A prostituigao nao ¢ uma troca ptazerosa e reciproca da utilizagao dos corpos, mas a utilizacio unilateral do corpo de uma mulher por um homem, em troca de dinheiro. Que a instituigo da prostituigdo possa ser apresentada como uma extensSo natural do instinto humano, e possa ser equiparado o sexo sem amor A venda dos corpos das mulheres no mercado capitalista, sé é possivel porque uma ques- tio importante estd presente: por que os homens reivindicam que a satisfacio de um desejo natural tome a forma de acesso puiblico aos corpos das mulhetes no mercado capitalista, em troca de dinheiro? No raciocinio que vé a prostituigao como mera expressao de um desejo natural, é inevitdvel a comparagdo entre a prostituigao e o fornecimento de alimentos. Afirmar que “todos nds precisa- mos de alimentos, portanto os alimentos tém que estar disponi- veis para nds. [...] E desde que nossos desejos sexuais sfo tio essenciais e tio fortes quanto nosso desejo por comida, isso tam- bém se aplica a eles”, nao é levantar um argumento em favor da prostituigao nem em favor de qualquer forma de relacionamento sexual.! Sem um minimo de comida — ou agua, ou habitagdo 291 — aS pessoas morrem mas, ao que eu saiba, ninguém ja morrex por ter desejos sexuais ou em conseqiiéncia deles. Também hi uma diferenca fundamental entre a necessidade humana de co mida e a necessidade de sexo, As vezes nao existe alimento dispo- nivel, mas todas as pessoas tém os meios para satisfazer seus dese- Jos sexuais a mao. Nao h4 uma necessidade natural de se envolver em relagées sexuais para aliviar aflicdes sexuais. Obviamente, tal- Vez existam restrigdes culturais & utilizacio desse meio, mas 0 que se entende por comida também é culturalmente varidyel, Em ne- nhuma sociedade 0 modelo de produgiio e de consumo dos ali- mentos, ou o modelo de relagdes entre og sexos, derivam direta- mente — sem mediag&o cultural — do fato natural de que todas os humanos sentem fome e tém instintos sexuais, A conseqiién- cia das restrigSes e proibicdes sexuais geralmente sio menos de- sastrosas do que os interditos alimentares, Outro problema em se discutir a Pprostituigao no final de século XX patriarcal ¢ que geralmente se supGe serem ébvias as atividades que se enquadram no rétulo “prostituiggo”. A prosti- tuigao faz parte atualmente de uma indiistria internacional do sexo que inclui a difuséio em massa de livros e filmes pornografi- cos, a ampla oferta de clubes de Sirip-tease e peep shows e a venda, a homens, de excursGes sexuais a patses pobres do Terceira Mundo. A exposigéo generalizada dos compos e Srgfos genitais femininos, scja em representacdo ou ao vivo, é fundamental para a industria do sexo ¢ lembra continuamente aos homens — e¢ 2s mulheres — que os homens exercem a lei patriarcal do direira sexual masculino, e de acesso aos corpos das mulheres. A histériz do contrato sexual original ajuda a classificar quais dentre a varie- dade de atividades da industria do sexo sio corretamente chama- das de “prostituicéo”. Por exemplo, a satisfagio de um simples desejo sexual nao exige que o homem tenha acesso ao corpo de uma mulher; qual ¢, entio, a importancia do fato de que entre 15% e 25% dos clientes das prostitutas de Birmingham pedirem © que é conhecido no mercado como “alivio manual”?* 292 A histéria do contrato sexual sugere que essa ultima de- manda faz parte da construgao do que significa ser homer, parte da expressio contempordnea da sexualidade masculina. A satisfa- cio dos impulsos sexuais masculinos tem que ser obtida por meio do acesso a uma mulher, mesmo se seu corpo nao for utilizado de forma direta. Seja ou nao o homem potente e queira ou néo encontrar alivio por outras formas, ele poderd exibir sua masculi- nidade ao contratar a utilizagdo do corpo de uma mulher. O contrato de prostituigéo ¢ outro exemplo de um contrato sexual “original” concreto. A exibicio modelar da masculinidade ¢ 0 engajamento no “ato sexual” (portanto, a venda des corpos dos homens para fins homossexuais n3o tem o mesmo significado social). A instituigio da prostituigdo assegura que os homens pos- sam comprar “o ato sexual” e assim exercerem seu diteito patriar- cal. As atividades que, acima de tudo, podem ser corretamente chamadas de prostituigao sio “o ato sexual” e as atividades a ele associadas, tais como “o alfvio manual” e o sexo oral (felagao), pelas quais hé uma grande demanda.” Algumas das confusdes mais comuns nas discussédes sobre a prostituigio poderiam ser evitadas se outras atividades fossem encaradas como parte da in- ctistria mais ampla do sexo. O mercado abrange uma grande demanda por “servidao e disciplina”, ou contratos imagindrios de escraviddo. A difusio comercial em massa da maioria das relagdes de forga e dos stmbolos de dominag’o ¢ uma evidéncia do poder e do génio do contrato, o qual proclama que um contrato de subordinagio é liberdade (sexual). Desde os anos 70 as prostitutas tém-se organizado nos Esta- dos Unidos, na Gra-Bretanha e na Australia — e o Comité Inter nacional dos Direitos das Prostitutas fez o Segundo Congresso Mundial das Prostitutas em 1986 — a fim de melhorar suas con- digdes de trabalho, combater a hostilidade e a violéncia, e tam- bém para pressionar em favor da descriminalizagao da prostitui- cdo. Em suma, as prostitutas esto lutando para ser reconhecidas como trabalhadoras numa ocupag’o que n&o tem garantia e pro- 293 tegZo sindical. A prostituta é uma mulher e, portanto, compar- tilha com todas as mulheres em empregos remunerados uma po- sig incerta como “trabalhador”. Mas a prostituta néo é exatamente como qualquer outra mulher que trabalha; sua posig&o é ainda mais incerta. A prostituigdo € encarada como sendo diferente das outras formas de trabalho feminino e, particularmente na extre- midade inferior do mercado, as prostitutas sao diferenciadas das outras mulheres que trabalham —- quase todo mundo ¢ capaz de visualizar “a prostituta” aliciando homens nas ruas, com suas roupas, sett comportamento e coraco de ouro caracterfsticos. As defesas contratualistas da prostituigio atribuem a nao-aceitagio da prostituta como uma trabalhadora ou prestadora de servicos a hipocrisia e as posturas distorcidas em tomo das relacGes sexuais. Certamente, a hipocrisia ¢ grande ¢ as atitudes irracionais sido abundantes em torno da questao da prostituicio, como A profis- so da sra, Warren, de George Bernard Shaw, revelou h4 algum tempo. Entretanto, a refertncia & hipoctisia é incapaz de apreender as emog6es com as quais alguns homens encaram as prostitutas. As prostitutas so assassinadas porque elas sio encaradas como fonte de sujeira e os assassinos podem se tornar famosos, como Jack, o estripador. Menos dramaticamente, as prostitutas correm todos os dias 0 risco considerdvel de sofrer danos fisicos por parte de seus clientes, especialmente se elas trabalham nas ruas. Eileen McLeod concluin que, em Birmingham, “quase sem excegao, as prostituras com quem tive contato sofreram algum tipo de violéncia fisica grave por parte de seus clientes”. As prostitu- tas ndo s4o, obviamente, as tinicas trabalhadoras que enfrentam riscos fisicos em seus trabalhos. Faz-se pouca publicidade sobre o grande ntimero de trabalhadores que so mortos ou acidentados, a cada ano, nos locais de trabalho, por causa da auséncia, da inadequagio ou da nao-aplicacio das regras de seguranga, ou pela realidade de acidentes profissionais. Esses acidentes, contudo, ndo ocorrem porque o trabalhador é uma mulher. Os contratua- listas nao esto sozinhos na negacao da importancia do fato de as 294

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