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Coletineas da ANPEPP u O uso da versdo de sentido na formagdo e pesquisa em psicologia ‘Mauro Martins Amatuzzi Pontificia Universidade Catélica de Campinas Resumo Parte de uma preccupardo com a busca de camihos para pesquisas de ‘ipo qualittvo, sea no eentexto scadémico da pés-araduario,sejanocontexto da pritica profisional. Propée-se a examinartcoricamente um tipo de relato do vivido que vert senda usado como instrumento pritico tanto na formag3o ‘como na pesquisa, denominedo Versio de Senti¢e (VS), Diz novamente em ‘que consiste, canta umm povco de sua historia, ¢ busca uma jusifictiva para seusso. A VS é uma fala expresiva da experiéncia imediata da pessoa, diate de um encontro reeém-temninada. Quando registra por eesrite é Urs texto breve, escrito livre ¢ espantaneamente, ¢ como tal tem sido usada em super. visdes,anilises de priticas,e desrigdes de processes. experénicia mosirou ue este tipo de relato,principelmente quando lida e discutido mum grupo, tem tum poder muito grande deevocardo éo ocorridoe de presemlficar30 do vivido, permitindo assim um acesso ao seu sentido, Mostrou também que aprender fazer versies de sentido equivale » uma aprendizagem de como lidar com ads vivides em relagdes bumanas. A base para esse poder da VS pode se encontrar nz natureza simbélica da lingkagers, Quanto mais auténtiea uma fala, tanto mais ela rene o que estava disperso,curaprindo-se como simbolo. -E quagto menos auténtica, maior a protabilidade do surgimento de elementos simbdlieos inadvertidos no diseurso. Quanto mais autentiea for a produgdo desses relatos espontincos, tanto mais cles poderso ser usades na formagio € 1a pesquisa, como uma via de acesso 20 sentido vivido. Apresentagao Tenho trabalhado hi algum tempo com Versdes de Sentida (VS), como instrumento 2condmico e de uso fic, no acompanhamento reflexivo de atendimen:os terapéuticos, de atividades educativas ¢ docentes, ¢ de trabalhos com grupos. A experiéncia se espalhou, e hoje muitos colegas a praticam em atividades de formag3o e supervisio, ¢ 2 Coletineas da ANPEPP comeca também a ser usada em pesquisa, Contudo também nio faitam 08 opositores, argumentando que o termo € em si contraditério, ou que a VS niio pode servir como forma de acesso a0 processo vivido. A experigncia de quem ja lidou com esse tipo de relato do vivido, centretanto, fala a favor de sua fecundidade para a formagao e pesquisa, tanto no campo clinico como no educative ou de assessoria a grupos. ‘© que me proponho aqui é: 1) redizer o que é exatamente uma VS, 2) contar um poueo de sua histéria, fundamentando-a em uma histéria anterior, e 3) buscar uma justifieativa teérica para seu uso. Gostaria de ter como pano de fundo 0 conjunto de desafios cencontrados em uma iniciagao cientifica no campo de uma abordagem qualitativa, seja quanto & pesquisa, seja quatito A pritica profissional. Nao vejo porque uma iniciago, para ser cientifica, deva comecar pelo mamuseio de tabelas, frequéncias e testes estatisticos, quando o que se visa é um aprendizado de penetraco de significados. Nao vejo porque, também, esse aprendizado deva ser separado de uma iniciago & pritica de atendimentos ou de uma experiéncia de envolvimento com proces+ 508 grupais. Entendemos por versio de sentido um relato livre, que no tem a pretensio de ser um registro objetivo do que aconteceu, mas sim de set uma reagdo viva a isso, escrito ou falado imediatamente apés 0 ocorrido, ¢ como uma palavra primeira. Consiste numa fala expressiva da experiencia imediata de seu autor, diante de um encontrorecém-ter- minado, ‘Compreendendo a VS a partir de sua historia Tudo comecou com 0 convite, feito a alguns colegas rec mados, para uma pesquisa em agio a respeito do desenvolvimento pessoal, Isso se faria através de um grupo em que discutiriamos semanalmente nossas experiéncias em atendimento psicologico ou psicoterapia. Combinamos que essas discussdes seriam feitas nao a partir do relato da sesso, mas a partir de um relato condensado do que, pera o terapeuta, tinha sido o essencial do encontro terapéutico. Houve basi- camente dois motives para isso. Um, bastante trivial. Estivamos todos cansados de fazer relatorios mecénicos de sesso, como era ex estagios. E 0 outro motivo se referia a questio do sentido. O que “fazia Coletineas da ANPEPP. 13 sentido” estarmos conversendo? E antes disso: o que “fazia realmente sentido” para nés estar escrevendo logo apés um atendimento? A resposta parecia ser: o que de primeiro nos vinha & mente, agora, com © distanciamento da presenga face a face do cliente, e antes que nos tivéssemos envolvido em uma nova atividade. E mais: algo que nos desse uma viséo de conjunto do que acabara de acontecer ali. Escrever isso foi experimentado como significativo. Fazendo isso, ¢ discutindo nossos atendimentos a partir de tais relatos, algumas coisas foram ficando mais claras. O que fazia sentido registrar era diferente daquilo que escreviamos quando, de meméria, tentavamos reproduzir a seqtiéncia dos fatos de forma neutra. O que fazia sentido registrar era 0 sentido vivo, presente no préprio ato de escrever. E era esse sentido que expressava methor o andamento do proceso. Foi isso que nos levou a formulaso de que o “sentido que interessa" é sempre presente. Um registro mecdnico nao o pode captar, pois ele s6 contém o passado. E sé através de nosso presente que podemos estabelecer contato vivo com o sentido de um encontro. E é ocontato vivo que ¢ util na formacio. ‘Mas isso equivale a dizer também que, se eu quiserterum sentido vivo do sentido vivido numa sesso terapéutica, este sentido vivo s6 poder ser uma versao atualizada no presente, do sentido vivido 1. 0 resto sera tudo meméria apenas, ou esquecimento. O tinico acesso possivel a0 sentido vivo de um encontro se dé através de verses atuais dele, no vivido de quem o reatualiza, ‘Aquele grupo de colegas, naqueles anos de 1989/90 na USP, havia realizado uma exploragao em agdo da experiéncia do sentido. E. isso foi publicado em 1991 em um artigo que teve por titulo: “O sentido-que-faz-sentido: uma pesquisa fenomenolégica no proceso terapéutico” (Amatuzzi, Solymos, Ando, Bruscagin & Costabile, 1991). Gostaria de prolongar hoje aquelas reflexdes para fazer face 2 algumas objegdes que surgiram depois, em encontros com outros colegas. E principalmente a duas delas: 1) o sentido nio tem versio (e portanto a VS nos distancia do sentido vivo), e, 2) a VS ndo nos da dcesso ao que de fato aconteccu (¢ portanto ndo serve como instrumento cientifico de pesquisa). A V& é uma verso do sentido vivido de um encontro, através do sentido vivido logo depois (e por isso mais facilmente sur- preendido), Mas ela poder ser também apenas meméria, se nio for 4 Coleténeas da ANPEPP atualizada em outro diélogo vivo. Isso também foi experimentado naquele grupo. Ao inves de a sesso ser trazida ao grupo como um. objeto a ser analisado (através de um relatério), era lida a VS, € a ela reagiamos com comentarios livres, inclusive o préprio terapeuta. Esses comentarios foram se revetando ser de dois tipos, quando mais tteis. ‘No que diz respeito a0 terapeuta (autor da VS) foi interessante constatar 0 poder de evocaedo que a VS tinha, Era como um registro condensado do vivid, e que permitia & pessoa ndo apenas lembrar-se de detalhes do ocorrido, mas também falar disso de forma viva, atual, como pela primeira vez, explicitando detalhes do vivido. E pot parte dos outros membros do grupo constatamos que os raciocinios ou interpretasoes causais ndo ajudavam muito, pelo menos no primeiro momento. Mais valia simplesmente dizer, de forma simples e presente, o que se tinha ouvido a partir da leitura da VS, e a reago que isso havia provocado em si, A partir dai se iniciava um didlogo que eumpria aquilo que, com Buber, poderiamos chamar de “presentificagio” do sentido ou dos significados vividos (agora em novo contexto interlocucional). $6 quando isso estivesse realizado, é que outras formas de considerasao ou raciocinio se faziam dteis no acompanhamento reflexivo da ex- periéncia. Em um outro grupo posterior, tratando-se de uma experigncia didética (desta vez na PUCCAMP, em 1995), constatamos que aq) que para o autor da VS podia inicialmente parecer sem sentido se tido para terceitos, para os outros que ouviam de fato transmitia muito exatamente a qualidade do vivido, mesmo que no houvesse ali infor- ‘mages sobre o empirico do que tinha acontecido. Isso aconteceu mais ou menos assim. Numa sala de aula do curso de pés-graduagdo em psicologia clinica, alguns alunos estavam trabalhando com versées de sentido para acompanhar experiéncias semanais de atendimento linico, educativo ou de assessoria a grupos. Haviamos feito um rapido “treino” para escrever VSs no comego do curso. Quando um determi- nado aluno foi ler sua VS pela primeira vez, ele hesitava muito, e, com muitas explicagdes, dizia que ndo via sentido em ler aquilo para outras pessoas. Por fim foi pedido que ele a lesse assim mesmo, e, scm ‘comentarios, ouvisse 0 que os colegas tinham a dizer a cerca do que tinham ouvido, Ao final dessas falas dos eolegas, 0 primeiro declarou estarrecido que eles tinham dito o essencial daquele encontro, mesmo sem saber nada de seu enredo. Pessoalmente comecei a pensar que uma VS bem feita é uma espécie de radiografia fenomenologica de um encontro. Coletaneas da ANPEPP 15 Até agora pretendo estar afirmando que: 1) Uma VS é uma forma de contato vivocom o sentido de um encontro, 2) O sentido para o qual aponta uma VS se torna atual quando ela é colocada num contexto de interlocugio pre- sente. 3) Ela tem o poder de transportar o vivido de forma conden- sada. Ela evoca lembrancas e desdobramentos de sentido em seU autor, € passa para os ouvintes um sentido essencial, ‘mesmo quando nao passa detalhes fatuais. Mas outras coisas também pudemos constatar naquele primeiro grupo. Vejamo-las. 4) Uma VS pode ser re-eserita pelo seu autor sem que ela deixe de'ser uma VS, Verificamos que o seu autor pode ‘tomé-la atual, ¢ nesse ato poderd haver novas explicitagdes ‘ou desdobramentos de sentido. Em suma, pode haver verses de versies de sentido, Isso é importante do ponto de vista da pesquisa. No fundo.o método qualitativo de pesquisa consiste em te-eserever sucessivamente a mesma coisa (ou fazer sucessivas leituras) até que se chegue a uma depuracao do significado que se procura. E quando ¢ o préprio sujeito que faz isso (sozinho ou em interlocugao), nio seria de estzanhar que se actescentassem eventualmente significados novos do mesmo vivido. 5) Mas poderia ser uma VS re-escrita por outra pessoa? Poderiamos talvez dizer que a transcrigao feita por um pesquisador seria t30 mais apropriada quanto mais cle tivesse participado da re-eriagio do sentido através deum grupo de interlocugio, na medida do possivel com a pre- ssenga do autor, Peemanece vilido, no entanto, que re-escrever (ou transcrever) é fazer uma outra verso do mesmo sentido, a partir do atual ponto de vista de quem o faz. © O trabatho com VSs em grupo (ou numa dupla) pode ser equivalente a unia supervisio. Isso também foi constatado por membros de grupo de trabalho com VS, ¢ que, por outro lado, estavam em supervisio com outra pessoa. O que se dizia & que a discussao no grupo estava sendo mais significativa do que aquela que a pessoa tinha em sua supervisio. Foi por causa disso também que muitos colegas passaram ausar a VS 16 Coletineas da ANPEPP como método de supervisdo, e alguns chegaram a levar trabalhos em congressos sobre essa experiéncia. 7) Posteriormente a esse grupo, que durou aproximadamente um ‘ano, o trabalho prosseguiu de outras formas. Uma das formas ‘mais significativas foi o trabalho com seqiiéncias inteiras. A conclusio foi que, a partir da andlise de séries de VSs, referentes a um mesmo processo, é possivel descrever, de 1am ponto de vista mais fenomenoldgico, a esse mesmo Processo. As versdcs de sentido, sesso por sesso, olhadas ‘em conjunto depois de terminado o processo, possibilitam uma visio mais condensada do todo, e ao mesmo tempo rica em detalhes experienciais (embora ndo em detalhes fatuais). Um trabalho nesse sentido ja foi publicado (Amatuzzi, 1993), € outros esto em andamento, Uma questao importante que aqui se coloca € de se saber se é possivel descrever um processo do qual participaram pelo menos duas pessoas, a partir das VSs de apenas uma delas. Se entendemos por proceso a seqiiéncia de fatos ocorridos, objetivamente considerados, ¢ envolvendo todas as pessoas em relar30, ento certamente que a descrigdo feita a partir de VSs seria muito parcial. Mas se processo se referir nfo 2 fatos objetivos, ¢ sim & seqiiéncia de significados vividos de encontro para encontro, e se esses significados forem entendidos como sendo do encontro, ¢ nfio de cada patticipante em separado, entfio podemios hipotetizar que a série de Vss nos dé acesso ao desenino do processo. Cada VS sera aqui realmente apenas uma Versio” do sentido do encontro, ¢ é como tal que ela deve ser analisada, E claro que significado ou sentido do encontro é um conceito de dificil apreensdo. O que é isso na prética? No entanto ¢ ele que mais interessa na avaliag’o de um proceso: o que cada encontro possibilitou emrelagdo aum movimento de conjunto, ¢ como esses elos se articulam a cadeia. E no caso de um processo terapéutico, sera principalmente © significado que o encontro teve para 9 cliente que iri definir seu sentido. Ora, 0 terapeuta como tal é uma pessoa voltada para isso, e ¢ esse papel que cle faz suas versdes de sentido. Elas podem ser, Portanto, aqui de particular relevancia. Mais pesquisa seria aqui necessério, envolvendo comparati- vamenie VSs de terapcutas e de clientes (ou de todos os participates do grupo), sem divide, E jé existe um projeto de mestrado nessa direoZo, No entanto eu ousaria dizer, teoricamente, que a natureza das Coleténeas da ANPEPP. a coisas aqui em jogo ¢ tal que as VSs de um participante apenas podem nos darum razcével acess0 20 sentide do processo como um todo, desde que sejam lidas sob esse ponto de vista, 8) Hé uma outra conclusio a que pudemos chegar, no entanto, que toma relativas todas as anteriores. E que a VS é uma coisa que se vai aprendendo a fazer, assim como se aprende a chegar a uma fala auténtica a partit de um hébito anterior de falas inauténticas, mecanizadas, ¢ s6 indiretamente ex- pressivas. Nao basta uma simples instrugo para que a pessoa esteja pronta para escrever uma VS. E comum que elacomece fazendo relatos de observago neutra, ou mesmo elaboragSes. logicas a respeito do ocorrido. E s6 pouco a pouco que a VS. vai se aproximando de uma fala expressiva da experiéncia imediata, ‘Nossa histéria com esse instrumento pode nos dizer algumas coisas aqui. Uma primeira é que justamente ir aprendendo a fezer VSs é ir aprendendo a lidar de forma viva com o significado das coisas, ¢ consegilentemente, ir aprendendo a relagao psicolégica. Isso parece importante no aspecto pedagbgico da formagio. Em segundo lugar, se deve dizer que a VS no ¢ tao Varidvel em seu valor expressivo quanto o seria 4 fala direta na presenca do cliente, Crecuo no qual ela ¢feita sob o clima do encontto, mas sem a presenga do interlocutor) permite mais facilmente seu cardter expressivo. Além disso ela € passivel de “corregBes” no grupo de acompanhamento reflexivo (supervisdo). Efinalmente, é importante dizer que uma boa andlise de qualquer documento deve levar em contaas carateristicas de seu valor heuristico. Pré-historia e ontras abordagens Rogers, em 1951, em seu “Psicoterapia Centrada no Cliente”, utilizow-se também de relatos livres do préprio cliente para ilustrar 0 processo. Segundo ele, foi espontaneamente que uma determinada cliente escreveu apés cada sesso. No fim do processo de 8 sessdes 0 terapeuta recebeu todos esses escritos que scrviram, entdo, para mostrar como as coisas se passaram “aos olhos do cliente”. Eis como cle apresenta 0s manuscritos: Depois desta primeira entrevista, ela (a cliente) escreveus, de farma bastante completa, suas impressies, € mostrou © relato ao consetheira antes do segundo 18 Coleténeas da ANPEPP encontro. O conselheiro a incentivou a continuar reali zando esses informes pessoais depois de cada entrevista, ‘para incrementar nosso conhecimento da terapia. Disse a cla que quanto mais sincero fosse o informe, impli- cando afirmacées positivas ou negativas, mais valioso seria 0 registro, Nao se voltou a mencionar o informe nas entrevistas seguintes, ¢ 0 conselheiro s6 os recebeu a0 final dos contatos terapéuticos. - O relato é exten- Samente auto-explicativo, mesmo que a qutora 0 inter- rompa por momentos com comentarios, (Rogers, 1972/1951,p.88-89) A cliente fez algo que algo que se aproxima um pouco de nossas VSs, © que foi utilizado depois num estudo de carter eminentemente qualitative. Algumnas expressdes chamam aateng4o: informes pessoais, Sinceros, para incrementar nasso conhecimento. Infelizmente essas sessdes no foram gravadas para que se pudesse comparar os informes escritas com as gravages, e evidenciar assim no s6 0 que a gravagao tem a mais, mas também o que os informes tém a mais, e que no poderia munca ser gravado. Bastante cedo também nos Estados Unidos 0 videoteipe foi utilizado come instrumento e técnica a servigo da terapia, Um dos usos consistiu em recapitular a sesso, com sua ajuda, junto com o terapeuta ou 0 cliente, permitindo novos insights sobre a relagfo. Isso era uma técnica de supervisdo, a Interpersonal Process Recall (IPR), surgida na década de 1970. Segundo um comentério de Bemard & Gooyear, em seu livro sobre a supervisio (1992,p.26), embora 0 método pareca ‘comportamental, cle tem também um aspecto fenomenolégico, pois assuiite que as proprias pessoas sdo os melhores intérpretes de suas experiéncias. Eles dizem também que paradoxalmente tal técnica per- mitia um acesso mais livre ao vivide do que o da propria sessio, pois diante do video o terapeuta permitia mais facilmente que os insights emergissem de dentro de si mesmo. Ele fala de uma re-experienciagso da sesso diante do video. E o resultado presumivel, podemos deduzir, € que os comentarios assim feitos apés a sesso, como distanciamento docontato imediato, mencionavam sentimentos ou lembrangas vividas 14, mas no verbalizadas, ¢ que, portanto, ndo apareciam na grava © mesmo pode ser constatado com o uso de questionrios aplicados a clientes ¢ terapeutas logo apés a sesso. As perguntas mencionadas em estudos como os de Heppner, Rosemberg & ‘Hedgespeth (1992) ou de Stiles, Reynolds, Hardy, Rees, Barkham & ‘Shapiro (1994) ¢ que j4 constituem instrumentos padronizados visam Coletineas dn ANPEPP ww colher dos clientes ou dos terapeutas, imediatamente apés a sesso ¢ ji ndo na presenga um do outro, seus sentimentos, pensamentos ou avaliagOes acerca do encontro recém-terminado. § claro que as res- postas continham dados muitas vezes diferentes dos que apareciam nas gravagdes. AVS segue esse mesmo espirito, s¢ que ela é feita de formamais livre, nfo padronizada, ea partir daquilo que a prépria pessoa considera importante, Tentativa de definigio Como produsio, uma VS é a fala, 0 mais auténtica posstvel, que toma como referéncia intencional um encontro vivido, pronun- ciada logo apés sua ocorréncia, Fala auténtica: é importante que seja uma fala expressiva da experiéncia imediata, fala primeira, original, espontinea, ¢ nZio necessariamente um raciocinio, teorizagdo, cumpri- mento de instrugées ou relatério. Referéncia intencional: esta fala é expressiva da experiéneia imediata, dante de um encontzo. A situagao: uma relacdo interpessoal, uma aula assistida, um grupo, ou mesmo qualquer encontro com um objeto significativo. Esta fala é pronunciada Jogo apds a ocorréncia do encontro, ¢ terido-o como referéncia. A situacdo interlocucional que define o encontro jé nao € exatamente a mesma; 0 sujeita ndo esta pressionado pela necessidade da resposta, € nesse sentido est mais livre para um acesso a sua experiéncia imediata. ‘Como produto, a VS seré um texto expressivo da experiéncia imediata, escrito ou gravado por iniciativa da propria pessoa, ou solici- tado por urn interlocutor. A rigor poderia ser qualquer tipo de produgo simbélica. Como poderfamos solicitar uma VS de um cliente, de um supervisionando, de um auxiliar de pesquisa, ou de um participante de gnupo? Uma possivel maneira simples seria pedir a ele que “logo apés a atividade em questdo, escreva, o mais espontinea e sinceramente possivel, baseando-se em seus proprios sentimentos neste momento, o que The parece ter sido o essencial deste encontro que acabou de acontecer”. Ou: “esereva livremente acerea do acabou de acontecer”, ouainda: “escreva como vocé esta, diante desse encontro que termina”. E importante que o proprio autor experiencie a significdncia do que ele estd escrevendo ou falando. Qualquer tentativa de “instrugo” deve ser apenas 0 comego de um processo em direcao a um texto ou depoimento 20 Coletineas da ANPEPP cada vez mais expressivo da experiéncia imediata ante o encontro, € que seja ao mesmo tempo significativo para para quem escreve. ‘A um texto assim produzido, nés o denominamos uma “versio de sentido” porque ele pode ser um indicador indireto (mas o mais direto que podemos dispor) do sentido do encontro. Ele ¢ uma versio do sentido do encontro, tal como ele existe no presente da experiéncia dessa pessoa, E é quando utilizada dessa forma que uma VS pode ser um instrumento util em pesquisa e formagao. Podemos entio falar de versdes de sentido como método. Con- siste essencialmente em versar e conversar sobre o sentido até que se chegue a uma presentificacdo dele suficiente em rela¢do ao que esperado daquela atividade, Versar e conversat: fazer versbes de sentido, ¢ “‘con-versar” a parti delas fazendo novas verses. Presenti- ficagdo: palavra de estilo buberiano, que quer dizer, aqui, explicitar experiencialmente os significados, isto ¢, nfo apenas dizé-los con tualmente, mas torni-los presentes vivencialmente, Se se trata do acompanhamento critico de uma experiéncia (supervisio, por exem- plo), a presentificagao esperada é aquela que torna o sujeito mais bem preparado e disponivel para o préximo encontro. Se se trata de pesquisa, a presentificago esperada é aquela que atende, em linguagem cicn- tifica, a um objetivo ou intengao de conhecimento (ainda que esse objetivo faga parte de uma ago). Para uma fandamentagio teérica Podemos buscar uma justificativa tedrica para a versio de sen- ‘ido em uma fenomenologia da linguagem inspirada em Martin Buber ¢ Maurice Merleau-Ponty. Em dois artigos reuni alguns elementos que preparam essa tarefa (Amatuzzi, 1991 e 1992). Mas agora querosugerir em que direcées podemos desenvolver essa fundamentagio, Para além dos elementos simbélicos do discurso, a fala, como ato, éum sfmbolo. Quer isso dizer que nao apenas elacontém elementos. que, advertida ou inadvertidamente, remefem a outras coisas (elemen- tos simbdlicos), mas que em simesma ela “redne”, pde junto uma série de coisas que antes estavam separadas, ¢ 0 faz intencionalmente (sim- bolo). Quanto mais a fala se cumpre como simbolo, menos importantes sero seus elementos simbélicos. Quanto mais ela exerce sua fun¢3o simbélica, menos aparecem elementos simbélicas inadvertidos. ‘A afirmasao, como ato, reine sujeito e predicado, permitindo tum conhecimento maior, A designacao reine sujeito e objeto num Coletaneas da ANPEPP. 2 mesmo mundo de significados; sem ela 0 objeto permaneceria total- ‘mente estranho e ndo integrado ao mundo de significados do sujeito. O aniincio reine 0 ouvinte eo arauto com aquilo que ¢ anunciado, ¢ que se faz, $6 entio, intencionalmente presente aos dois. Um pedido reine a pessoa a quem ele se dirige com uma caréncia solicitante do sujeito, antes ignorada. Mas hé outras coisas que so postas juntas a0 mesmo tempo nesses atos todos. No pedido, por exemplo, acaréncia do sujeito ‘podia até nfo ser ignorada, mas a outra pessoa aguardava que a primeira © manifestasse para que elas duas se reunissem num vinculo de provimento ou subordinago. O proprio pronunciamento do pedido para quem o faz. implica o reconhecimento de uma caréncia e de uma necessidade do outro, ou seja, implica a decisdo que assim seja. Isto é, € um ato que reime no sujeito uma série de coisas em seu mundo interior. E assim por diante. Em varios niveis a fala retine, e poderiamos dizer que ela pée junto esses niveis também. E por isso, alias, que ela teva adiante a experiéncia, desdobrando significados. § isso também que significa estar em proceso. Pensando em nosso problema que ¢ a fundamentagao da verso de sentido, podemos dizer que. fala, como ato, pée junto, retine, coisas em 3 niveis, Em primeiro lugar e basicamente, ela pe junto pessoas. A fala permite o recanhecimento das pessoas em rela¢do a um projetd. Quando falo e sou ouvido, minha fala me dé a conhecer naquelas intenBes que constituem meu existir nesse momento: ¢ isso ¢ compartilhado em uma Telago. Ao mesmo tempo, pois, que retine pessoas no reconhecimento da identidade, revela essa propria identidade no Ambito da interlocugao (as vezes até para o proprio falante sua fala tem essa fung0 reveladora, {sto é, reunidora de niveis diferentes de idemtidade). No caso de uma WS, como potencialmente ouvida por outras pessoas (ou pelo menos pelo seu proprio autor), cla o da a conhecer, em maior ou menor profundidade, tornando disponivel seu existir em relago ao projeto envolvido pelo encontro. No caso de um terapeuta, ela ajuda a tomné-lo mais disponivel pata o préximo encontrona medida em que foi ouvida por alguém (¢ compreendida), ou ao menos promun- ciada conscientemente por seu autor. Em supetvis8o, pois, a VS “waz” seu autor, tra2, seu projeto, di-o a conhecer nesse novo contexto de interlocugdo. E esta é justamente uma das finalidades da supervisio. Interessante lembrar ue o distanciamento calculado no qual é feita a VS facilita o aparecimento de aspectos até entio mais ou menos escondidos do projeto. 2 Coletineas da ANPEPP. Em segundo lugar a palavra também p6e junto passado, pre- sente e futuro, Ela torna atual 0 projeto a partir de suas raizes no passado, e langando-o em diregao ao futuro, Bla cumpre uma atuali- zagdo, ¢ tanto mais quanto mais compromete o falante. Daf porque uma VS precisa ser escrita como fala auténtica, que compromete o falante como numa tomada de posigao. Quando fazemos uma VS trazemos para o presente um vivido, atribuimos-lhe significado transformando-o de certa forma, e por isso disponibilizando nossa pessoa em relago 20 futuro. Como texto lido pelo autor, ela tem o poder de resgatar 0 todo do vivido, trazendo-o para a possibilidade de uma nova re-experien- ciagdo. E esse poder sera tanto maior quanto mais apropriado e facil tador for o contexto dialdgico dessa re-atualizagao. Também em termos de espaco a fala auténtica reime. Quanto mais genuina, mais ela pord junto intencionalmente o li ¢ o aqui. B é interessante notar que se no for auténtica, isto é, se ndo estiver exercendo plenamente sua fingao simbélica como ato de fala, entio ela © fara indiretamente pelos elementos simbdlicos nela contidos inadver- tidamente. E 0 que acontece, por exemplo, quando, através de uma fala, estou tomando posi¢o em uma situagdo atual, mas sem permitir que tudo quenisso esté implicado se faca presente (sc retma). Meus modelos de relacionamento aprendidos em outras relacdes, por exemplo, tendem a se fazer presentes nesta. Mas se ndo me dou conta disso (isto €, se isso ndo é significado de alguma forma por mim), minha tomada de posigdo perde cm autonomia, ¢ 05 relacionamentos anteriores tendema a se fazer presentes inadvertidamente através de elementos simbélicos da fala (no mais das vezes somente decifraveis por peritos). ‘Uma VS “traz” para 0 novo contexto de interlocuedo (0 aqui) 0 vivido anterior (no 1a). E no é raro vermos uma verdadeira reedica0 das mesmas relagies vividas l4, entre essas pessoas aqui. Em suma, o poder da VS se fimdamenta no poder da fala. Quanto mais auténtica ela for, tanto mais poder direto ela terd (isto €, aquele que decotre de sua fungao simbélica come ato), e menos poder indireto (isto & aquele que decorre de seus elementos simbélicos inadvertides). Prine{pios gerals para o uso da versio de sentido © que resulta disso tudo para a andlise de VSs para fins de pesquisa? © contexto ideal para sua “interpretaco” (compreensio do sentido que ela transporta) & 0 de uma interlocugo onde ela e seu autor Coletineas da ANPEPP 2B se fazem presentes. E nessa nova interlocusdo que se reedita 0 sentido, mesmo quando implicando novas falas mais explicitas. E isso que acontece em supervisio, ¢ ¢ isso que pode também acontecer em pesquisa. E preciso que se aceite entretanto a figura do “parceiro” de pesquisa, Nesse novo contexto se “versa e conversa", {tendo a mesma Teferéncia intencional) até se chegar & explicitagao pretendida, ‘Um outro ponto importante é que a VS pode ser “lida” em dois niveis. Ela transmite primeiro a vivéneia de seu autor. Mas num segundo nivel, ela transmite 0 sentido da relarao vivenciada pela pessoa. E nesse segundo nivel que ela merece, mais apropriadamente, onome de “versdo”: ela seré uma verso do sentido da relacdo, ouseja, a versio desta pessoa. A leitura que se faz depende do nivel em que 0 Pesquisador se coloca, o que por sua vez depende do objetivo da pesquisa. Se nos colocarmos na perspectiva de Buber (1982/1953), 0 sentido” de uma relagfo nao se encontra propriament: em nenhum dos participantes. Em cada um, segundo ele, existe apenas o “acompa- nhamento secreto da propria conversaco”, que scu aspecto subjetivo ou psicolégico. O sentido de uma relacio “encontra-se somente neste encamnado jogo entre os dois, neste seu Entre” (p.139). De nosso ponto de vista, isso aponta para o fato de que o sentido deve ser buscado numa leitura do segundo tipo acima citado, ¢ ela mesma inserida num contexto relacional, Finalmente, quando se busca 0 sentido de processos, deve-se trabalhar com séries de VSs. las permitem um olhar de sintese muito mais imedisto e rapido do que o que se poderia obter a partir de gravacdes. E 0 que resulta disso tudo pata o uso de VSs na formacdo ¢ na iniciagao cientifica? E conviegdo minha que, apesar de as expticagdes serem aqui dificeis (por que se referem a algo no convencional em pesquisa), se se quet iniciar alguém a uma abotdagem do sentido, ¢ preciso comegar fazendo exatamente isso, e ndo outra coisa. E preciso que a atividade de iniciagdo seja de mesma natureza que a pretendida, e nao diferente. O que pode diferir aqui, para uma iniciagdo, seria o caréter de menor isco, digamos assim, da atividade pedagogica. Ora, é exatamente isso que as VSs como método possibilitam. Antes de se atender um cliente, por exemplo, pode-se iniciar fazendo versées de sentido da propria situacdo grupal de formacdo: ejé estaremos lidando comalgodamesma natureza do que aquilo que ira acontecer no atendimento, E @ conversa 24 Coletineas da ANPEPP gue ocorre depois nas sessdes de acompanhamento equivale a um “treinamento” de lida com significados. Coisa andloga se pode dizer a propésito da iniciagao cientifica, quando se trata de pesquisa qualitativa ‘ou fenomenolégica. Em nossa experiéncia pudemos perceber a fecundidade do uso de VSs para uma abordagem do sentido, tanto na formagao como na pesquisa. Referéneias Bibliogréficas AMATUZZI, Mauro; SOLYMOS, Gisela; ANDO, Cristiane; BRUS- CAGIN, Cléulia & COSTABILE, Cléudia. O sentide-que-faz-sen- tido: uma pesquisa fenomenolégica no processo terapéutico. Psicologia: Teoria e Pesquisa (UNB), 7(1)p.1-12, jan-abr. 1991. AMATUZZI, Mauro, Psicoterpia como hermenéutica existencial. 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