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Ceucto "Eovocio: Eaten Seno" a de quem nio sabe, mas a de outro homem na condigio de ser de palavra. © mestre fala aos outros “como a homens e, Por esse mesmo gesto, faz deles homens” (MI, p. 138). E que cle se coloca a si proprio como ser de palavra e, portanto, se ‘expe, espera a contrapalavra. De resto, como vimos, para que ‘o mestre chegue ao gesto justo, Aquele que o torna atento, ele precisa, ele mesmo, caminhar. Eis porque a relagio pedagogica nio pode ser vista nem como uma relagio hierirquica (como a relagio entre sibios € nio sébios) nem como uma relacio simétrica (relagio entre sujeitos principalmente idénticos a si mesmos e entre si), mas como uma relacio de dislogo entre seres de palavra, uma “pura relagio de vontade a vontade”” (MI, p. 31). Uma relagio, portanto, também de exposicio as palavras dos outros, relagio de divida, ou de carga recfproca, pela qual nos tornamos devedores de uma resposta, um gesto, uma palavra a cada vez singulares. Referéncias MASSCHELEIN, J; SIMONS,M.The Strategy of the Inclosive Edu cation Apparatus. Inclasive Education for Exclusive Pupils. Educ, Soc, (Campinas, v.24, n.82, p.281-288, abr. 2003. Disponivel em: . Acesso em:2 jun. 2014, RANCIERE, J. Ate bords du politique 2. d, Pats: La Fabrigue, 1998 RANCIERE, Le mate jgnoant Pars Fyard, 1987 (Tia, brasileira: © mest inorane Belo Horizonte: Auéntica, 2002) RANCIPRE,J Un eft sete. Courts ages ops du pele Pais: Seu, 1990, p 199-171 Ponhamo-nos a caminho ‘Tradugio de Marcelly Custodio de Souza A atengio deveria se osinico objetivo da educagao Simone Weil [Ni caminhamos para chegar terra prometida, mas porque camsinkaré, cm si mesmo, revolucionério. Subcomandante Marcos [Poa Foucault] pensar sempre sgnificon pensar sobre os limites de uma situagdo. Mas também signifcava ver. Gilles Deleuze ‘Caminhar, no sentido de dar passos, de estar em marcha, imediatamente nos faz pensar em viagens, que, por sua vez, evocam a imagem de um espfrito criativo que éxplora novas formas de ver ou abre novos horizontes. Um espirito com essas caracteristicas, andarilho e viajante, & um espirito critico, que, a0 mover-se com um determinado conjunto de pressupostos valores, 0s problematiza, Em outras palavras, nao é estranho que, em um convite a caminhar, reconhecamos um famoso t6pico do pensamento critico ocidental. Mas, talvez, valha a pena reavaliar o convite literalmente, para ver se podemos encontrar algo de seu poder revolucionario e, portanto, seu poder e-ducativo, Nisso centra-se este pequeno reconhecimen- to do territério da investigagio e-ducativa. Nao pretendemos delimité-lo, descrevé-lo ou guié-lo. Isto é simplesmente uma tentativa de encontrar um caminho e ver aonde ele nos leva. 4“ (Couch "evasion Sao" ‘ilvez, assim, 0 convite a caminhar se torne mais atraente \ Nossa exploragio resulta de dua citagSes: uma pequema obser, {afte de Michel Foucault e umn fragmento breve, mas muito bonito, de Rua de mio nica, de Walter Benjamin Vejamos | Primeito este diltimo, l| Caminhar: experimentar dominio! do caminho: A forga da estrada do campo é uma se alguém anda por la, outra sea sobrevoa de aeroplano. Assim é também « forea de um texto, tuma se alguém o 1é, outra se o trans creve. Quem voa vé apenas como a estrada se insinua através da paisagem, para ele, ela se desenrola segundo 35 meas leis que o terreno em torno, Somente quem anda pela estrada experimenta algo de seu dominio « de como, daquela mesma regio que, para o que von, é apenasa planicie desenrolad, ela fa sar, a seu comand, 2 cada uma das voltas, distincias, belvederes, clareiras, Perspectivas, assim como 0 chamado do comandante far ‘ait soldados de uma fila, Assim comanda unicamente © texto copiado a alma daquele que esti ocupado nele, fenquanto o mero leitor nunca fica conhecendo as novac Perspectivas de seu interior, tais como as abre 0 texto, sso estrada através da floresta vingem interior que sempre volta adensar-se: porque oleitor obedece 30 movimento de seu eu no livre reino aéreo do devaneio, enquanto o 1 {oPlador o faz ser comandado. A arte chinesa de copiar } livros foi, portanto, a incomparivel garantia de cultara literéria,¢ a cépia, uma chave para os enigmas da China (Benjamun, 1995, p. 16), Agu, Benjamin indica muito claramente 0 que poderia Ser a investigacio e-ducativa e, a0 mesmo tempo, deixa bem claro por que o caminhar é revolucionirio (0 fato de que cami- ‘har nao significa divigit-se a uma terra prometid), Benjamin fambém indica que a caminhada esta associada com olhar, ‘om abrir os elhos para criar uma nova visio, © que nio & nal de Masschelein Ise “autoridade” o que nesta trad } ‘0 20 portugués aparece como “doy 2 Ponhamo-nos 9 camino Pinonimo de aquisigio de uma Gnica e determinada perspec- Hiv ou visio, mas sim deslocar nosso olhar para que sejamos Ibs os que extejamos “li”, e que esse “Ii” se apresente para s6s em toda a sua gléria, nos dé ordens ¢ nos asstuma. Cami- har significa deslocar o olhar para que possamos ver de una Mancira diferente, para que possamos ver o visivel fas coisas Aistantes, mirantes, espagos abertos, perspectivas que se abrens Ro caminho sio visiveis, nio estio escondidos, no estio além aqui), e de maneira que possamos ser transformados. Nisso onsiste © caminhar: um deslocamento do olhar permitide ela experiéncia, uma submissio passiva (receber ordens do aminho) e, a0 mesmo tempo, um esbo¢o (ative) do caminho, Nio que 0 caminhar nos oferega uma perspectiva (ou lima Ieitura) melhor, ou uma compreensio mais verdadeira © completa, nem que nos permita superar os limites de noses Petspectiva. O que dé sentido ao caminhar é a possibilidade de thar para além de qualquer perspectiva, uma visio ou um olhar ue nos transforma (¢, portanto, é uma experiéncia) enquanto stamos sujeitos ao que vemos. Caminhar nos permite ver além de qualquer perspectiva, uma vez que “uma perspectiva” ests Iigada a um ponto de vista isto é, a uma “posigio subjetiva”, 4 posicio de um sujeito em relagio a um objeto ou um alvo. © importante, ao caminhar, é pér em movimento ese sueite © essa posicio. Caminhar & uma ex-posi¢io, um estar fora de osicio. Benjamin deixa claro que hi uma diferenga entre per- Sorrer um caminho a pé ou sobrevoi-lo. Ela é comparivel 4 Aiferenga entre a c6pia de um texto 4 mio e a leitura (com. Preensio) de um texto. E a diferenea reside no fato de que éles fancionam de uma maneira diferente, que seu poder (ua realidade) é diferente. Caminhar significa que o caminho nos é imposto com certa autoridade, que o caminho comanda noreo olhar ¢nos apresenta a realidade em suas diferengas. A realidade ue se abre no ato de caminhar é uma evidéncia que submete © conduz o olhar. Benjamin nio diz que a visio que temos do caminho é diferente porque hi uma perspectiva ou um ponte de vista distinto (a perspectiva dos de baixo, rene a0 solo, em, 8 Couche ovncto: Eat Semoc" comparagio com a perspectiva aérea). Isso significaria que no s6 deveriamos ser capazes de assumir a perspectiva de cima, ‘mas que deveriamos ter em conta todas as perspectivas, também a perspectiva de baixo (¢ talvez, também, poderia significar que a perspectiva de baixo tem mais valor, ou é mais humana, ‘ou mais real, ou mais verdadeira). Mas nio se trata disso. Nao se trata das diferentes perspectivas ou visOes que resultam das diferentes posigdes do sujeito (Gubjetivay). Benjamin nio se refere 4 diferenca entre uma “visio a partir de um determina do lugar” ou um ponto de vista objetivo por um lado, € um ponto de vista subjetivo, mais vivo e comprometido por outro lado. A diferenga esti na atividade em si, 6 uma diferenga entre caminhar ¢ voar, entre cépia ¢ leitura, na medida em que sio ‘maneiras diferentes de relacionar-se com © mundo (0 texto, a paisagem) e de relacionar-se com 0 presente, com o que ‘esti presente. Essa diferenga se expressa como uma diferenga de poder, como uma diferenca no efeito que a atividade tem sobre nés mesmos e sobre aquilo que nos revela. Quem voa, diz Benjamin, apenas “vé” 0 caminho, mas quem 0 percorre a pé experimenta a sua autoridade, isto 6, experimenta como algo the & mostrado, como Ihe aparece, como se faz presente, claro e, 20 mesmo tempo, submete ou dirige sua alma Sobrevoar o caminho (¢ ler como voar) relega 0 caminho a ser parte de uma superficie extensa, uma 4rea que aparece nna perspectiva de quem voa e que situa o caminho como um recorte do horizonte. O caminho parece um objeto submetido ais mesmas leis que todos os outros objetos que aparecem no horizonte diante do sujeito, ou seja, como objetos que podem compreender, explicar, determinar, ordenar ¢ identificar (em relagio com um sujeito), do mesmo modo que a realidade 4 nossa volta. Os objetos se submetem as leis (ou causas, ou mo- tivos) impostas, estabelecidas ou pressupostas pelo sujeito (sua intengo). Assim, o caminho est sujeito as leis da perspectiva de quem o sobrevoa, e nao tem nenhum poder sobre ele (aio mais do que uma superficie estendida); 0 caminho nao pode tocar quem 0 sobrevoa, ou melhor, nao pode atravessi-lo nem determinar sua rota. Quem voa tem ou adquire certo saber: “ Peckone-0t 0 caminho saber de um objeto que aparece ante um sujeito. Um objeto ibjetive) € algo que aparece desde uma perspectiva determi- la, algo que é lido (ou visto) de uma posigo que depende intencio do sujeito. ‘Mas caminhar nio significa atingir, adotar ou mudar uma spectiva (por exemplo, a perspectiva da terra prometida), hem tampouco adquirir ou modificar um conhecimento deter- minado. Tanto no caminhar, como na cépia 4 mio, existe uma telagio diferente com o presente, uma relagio em que alguém fentrega seu corpo e se aventura a seguir uma linha arbitréria, expondo-se 4 sua autoridade. Essa “autoridade do caminho” abre um novo olhar sobre nés mesmos ¢, 20 mesmo tempo, sobre longas distincias, mirantes, espagos abertos, paisagens, etc. Em suma, a autoridade do caminho nos dé uma evidéncia que transcende as perspectivas ¢ os pontos de vista. Benjamin sugere que a caminhada, como a cépia, nos liberta o olhar, abre os nossos olhos (0 que, é claro, é um tema muito antigo e bem conhecido do pensamento pedagdgico € filos6fico) ¢ desloca nosso olhar, o que nio é © mesmo que nos oferecer um olhar (novo) ou perspectiva (diferente). Tampouco nos revela uma verdade situada por trés ou além do que vemos. Abrir os olhos é olhar 0 Sbvio; &, eu diria, 0 que acontece quando ficamos atentos ou nos expomos. As- sim, tanto percorrer um caminho até o fim como copiar um texto inteiro sio modos e-ducativos de relacionar-se com o presente e de vincular-se com cle. Sio formas de investigagio e-ducativa na medida em que constituem uma espécie de pritica de investigacao centrada na atengao, ou seja, estarmos abertos para o mundo, expormo-nos (ao texto, a0 caminho), para que ele se apresente de uma forma que possa nos dar ‘ordens. Mas essas ordens nio vém de nenhum tribunal, no so leis ou princfpios definidos (que supostamente deverfamos conhecer ou aplicar), mas, sim, a manifestagio (experiéncia) de uma forga que nos coloca em movimento que nos traga © caminho. A autoridade do caminho nao nos conduz 4 terra prometida, mas podemos dizer que nos empurra. Nio nos diz aonde deverfamos ir, mas puxa-nos, fazendo-nos sair de 6 Concho “tnscio: Ere Somme ‘onde estamos (nos afasta de quem somos e do que pensamos) Ento, copiar o texto nio € compreendé-to ou re-apresen- té-lo, mas tragar um caminho através dele. £ uma atividade paradoxal: estar sob 0 comando de algo que nao nos foi dado, mas esti prestes a sé-lo, algo que seri apresentado apenas no decorrer do caminho, Copiar um texto é repeti-lo, chegar a0 final do caminho. Copiar nio consiste em re-apresentar © texto, mas deixar que se faga presente. Da mesma forma, poderfamos considerar que a caminhada é 0 estudo detalha- do do presente, porém um estudo que nio nos oferece uma visio geral (uma representagio de um todo), mas que traga um caminho, Caminhar é, a0 mesmo tempo, percorrer um caminho e permitir que 0 caminho submeta a alma. Poderi- amos dizer que a caminhada é uma atividade fisica que move ou desloca o olhar (ou seja, faz com que ele abandone a sua osigao, a ex-pée).20 longo de uma linha arbitritia, a0 longo de um caminho que jé existe e que, ao mesmo tempo, traca-se novamente; um caminho em dire¢io a um novo olhar (mas sem orientac3o ou destino). ‘Caminhar nio significa adotar um “meta (literalmente: ‘para além do’) ponto de vista”, mas estabelecer uma distincia a partir da qual a nossa prépria alma se decomponha, se dissolva, por dentro. E uma pritica em que arriscamos nossa propria “subjetivagio", nossa propria alma, através de uma relaciio dife- Fente com o presente, Por isso, Foucault afirmava que a critica é uma questio de atitude. Trata-se de uma atitude a respeito do presente, que nio o julga, nfo o leva ante um tribunal (como, por exemplo, o tribunal da razio), nem o compreende ou o incerpreta desde uma perspectiva particular. A critica nio avalia © presente a partir do horizonte da terra prometida. E, antes, uma atitude, uma ex-posigio ao presente, que implica tanto a suspensio do julgamento como um embarcar fisicamente em algo que possa nos des-atar, ¢ também possa nos liberar no sentido de permitir-nos outras experiéncias. Neste sentido, a investigacio e-ducativa nio aspira a ter ideias ou conhecimentos, nem a tornar-nos mais conscientes através de certa tomada de consciéncia, mas é, antes, um modo 46 Porkame-ot 0 caninho Ainvestigacio que abre um espago existencial e-ducativo: ‘espago concreto de liberdade pritica. Em outras palavras, Westigagio e-ducativa cria um espaco de possivel transfor. iio do eu que implica uma liberagio (uma “e-ducagio”) olhar, ¢ que, neste sentido, é também esclarecedora. Nessa tigacio, o saber nio esti dirigido a compreender (melhor), a esculpir, isto é, a fazer uma incisio ou uma inscrigéo eta No corpo que transforme o que somos e como vive- ‘mos. Essa investigacio diferencia-se por sua preocupagio com © Presence, © com a nossa relagio com ele; uma preocupacio €Mm estar presente no presente, que € outra maneira de dizer ue sua principal preocupagio é prestar atengio, Estar atento uma atitude-limite cujo objetivo nio é delimitar o presente (mediante o julgamento), mas expor as préprias limitacdes ¢ €xpor-se a clas. Assim, caminhar é um exercicio que envolve Jima atitude-limite que pode nos mudar, nio aumentando, Porém, a conscientizagio, mas sim a aten¢io. B isso nos leva @ uma breve citagio de Foucault sobre o exercfcio da critica. Caminhar e tornar-se atento Em uma breve resposta a uma carta de leitores publicada Ro jornal francés Le Marin, Michel Foucault escreveu que est de acordo com Maurice Blanchot “em que a critica comeca com a atenio, a presenga e a generosidade" (FoucAULt, 1979, P. 15). Tal como a observacio de Benjamin sobre caminhar, esta nota de Foucaule também fornece uma base frutifera para a ideia da investigagio e-ducativa, Como jé foi mencionado, a investigagio e-ducativa pode ser descrita como a arte de abrir 0s olhos (para liberar e mobilizaro olhar), como a arte da apre- sentagdo, do fazer presente. Isso significa que nao se trata da arte da representagio, da tomada de consciéncia ou da reflexdo critica que, afinal, sempre gera conhecimentos, ideias, formas de compreensio e perspectivas. Trata-se de deixar para trés a soberania do julgamento (evar o presente ao tribunal com suas leis e relacioné-lo com uma visio determinada, projetando-o contra um horizonte) e de recuperar a soberania de um olhar tT 7 Conse anchor Some dizer, faz com que algo seja “evidente”. Assim, a investigagio e-duca~ que apresenta algo, que 0 mostra, que, por assi tiva e-duca o olhar ¢ 0 torna atento: & um exercicio sobre a atengio e sobre estar atento. Estar atento é, em certo sentido, estar aberto ao mundo. Significa estar presente no presente, estar ali de modo que o presente possa ser apresentado a mim (tornar-se visivel, vir a mim e fazer com que eu 0 veja) ¢, a0 mesmo tempo, estar (lf) de modo que eu fique ex-posto diante do presente e possa me transformar, contagiar, ou e-ducar-me, ‘e que, de alguma forma, o meu olhar seja libertado (pela auto- ridade do presente). Essa é a atengo que permite a experiéncia. Estar atento é 0 contririo de estar ausente. Em ingles, © verbo to attend ¢ uma palavra com muitos usos. Tem a ver com 0 cuidar (cuidar de um paciente, consertar uma limpada, atender s visitas, com assistir (ir missa, a uma reuniio), com estar li, com o escutar, com respeitar o outro, Estar ausente significa “niio estat”; significa estar preso ao horizonte de expectativas, projegSes, perspectivas, visdes, opinides, imagens e sonhos {que nos pertencem, que compdem a nossa intengao, ¢ que nos constituem como sujeitos perante nossos objetos (objetivos) Poderiamos dizer que a atitude de um sujeito (ambém de um sujeito do conhecimento) é a atitude de alguém que tem um ‘objeto (ou um objetivo). Contudo, estar atento, prestar aten- 40 significa no estar preso a uma intengio, um projeto, uma perspectiva, uma visio ou uma imagem (que sempre nos dio tum objeto ¢ encerram o presente em uma representagio). A atengio nao nos oferece qualquer perspectiva, mas se abre a0 que Ihe € apresentado como evidéncia, Atencio é a auséncia de intengio. Trata-se de suprimir o julgamento e implica também uma espécie de espera. Se a critica, para Foucault, &a atengio, também é, de alguma forma, uma arte da espera. Em francés attendre & também esperar. E, de acordo com Rossellini, para que © cinema possa capturar algo do real é essencial saber esperar, ter paciéncia, Estar atento implica a neutralizagio da vontade de sub- meter-se a um regime de verdade (¢ seus tribunais) e implica também o esgotamento da energia com a qual o sujeito (também 48 Ponhomo-no 2 camino ‘tujeito do conhecimento) se projeta no objeto, Essa forma atengio implica uma maneira de estar presente, na qual 0 lito se coloca em movimento e adia qualquer expectativa de cio, Nesse sentido, a atengao é sempre generosa. Como gereveu Simone Weil (1999), a atengio é a forma mais escassa "a0 mesmo tempo, a mais pura de generosidade. A necessidade de uma pedagogia pobre "A fome aguca meus olhos” Rocinante, em Dom Quixote de La Mancha, de M. de Cervantes Saavedra, A investigagio e-ducativa, essa que nos faz abrir nossos olhos © nos separa de nés mesmos, abrindo-nos um espaco possivel de transformagio, nao se sujeita a um método nem ‘obedece as regras e procedimentos compartilhados por uma determinada comunidade (comunidade cientifica, ou comu- nnidade de seres racionais, ou daqueles que se submetem aos acordos da fala comunicativa). Nio requer uma metodologia rica, mas implica uma pedagogia pobre que possa nos ajudar a estar atentos e nos proporcione a pritica de um ethas ow atitude, tem ver das normas de uma profissio, os padres de cédigos de uma instituigio, as leis de um reino, as hist6rias ¢ id de uma mente “no livre espago aéreo do sonho” (Benjamin) Por isso, o convite a caminhar nao € a mesma coisa que exigir obediéncia a certas normas, procedimentos ou leis como, por exemplo, as de um método que funciona como um tribunal, como garantia para alcancar respostas validas, ou, também, aquilo que Habermas chama recorrentemente de as condigdes da razio comunicativa ou as condigdes do didlogo, A investigagZo e-ducativa requer uma pedagogia pobre, uma arte pobre: a arte da espera, do movimento, do “estar pre- sente”. Uma arte tio pobre é, em certo sentido, cega (no tem nenhum destino, nenhum objetivo, nao vai a lugar nenhum, nem se preocupa com nada “mais além”, nfo aspira a nenhuma terra prometida). Em certo sentido, também & surda (no pode ” neko “oes: Boca ¢ So0o" ouvir interpelages, nem serve is leis) e muda (no tem ligdes a dar, ensinamentos a oferecet). Tampouco oferece nenhuma possibilidade de identificagao (pode-se dizer que a posigio do sujeito — de educador ou aprendiz, professor ou aluuno ~ esti vvazia), nem qualquer conforto. Uma pedagogia pobre convida a sair pelo mundo, a se expor, ou seja, a colocar-se em uma “posi¢ao” débil e incémo- da, e fornece recursos ¢ apoio para fizé-lo, Em minha opinio, oferece meios para a experiéncia (em vez de explicagdes, in- terpretacies, justificativas, representagdes, hist6rias, critérios, etc.), meios para tornar-se atento. A atencio, segundo Weil, & que mais importa na educagio. Mas trata-se de meios po~ bres, insuficientes, defeituosos, carentes de significagio (como caminhar ou copiar), meios que nao remetem a qualquer fina- lidade. Portanto, sio meios puros, pistas que nio levam a lugar nenhum e que, portanto, podem nos levar a qualquer lugar: uma espécie de passe-partout, Uma pedagogia pobre oferece meios que nos tornam atentos, que suprimem ou desabilitam (mesmo que tempo- rariamente) a nossa vontade de nos submeter a um regime de verdade ou procurar uma vantagem ou beneficio. Uma pedagogia pobre nao promete beneficios. Nao hi nada a ga~ nhar, nenhuma ligio a aprender. Mas, em certo sentido, uma pedagogia pobre é generosa: da tempo e espago, 0 tempo € 0 espago da experiéncia. ‘Uma pedagogia pobre nio vigia, nem supervisiona ou controla. Nao guarda nenhum reino (0 reino da ciéncia, da racionalidade, da moral, da humanidade, etc). No impoe condigdes de acesso, Simplesmente convida a caminhar, a sair pelo mundo, a copiar o texto, ou seja, a se ex-por. Caminhar significa literalmente deixar para tras © conforto de casa entrar no mundo entendido como um lugar que nao pertence a ninguém, que nio tem porta de acesso que necessite ser vigiada, Para entrar no mundo basta se esforcar (caminhar, copiar). © que é neces esgotar a energia da projecao ¢ da apropriagio (que cria con- tinuamente sua prépria ordem ow o seu proprio “lar”). Mas € jo € a vontade de se mover e de 50 Porhomo-nes a camino ‘esforgo concreto que disciplina 0 corpo € o espirito, no a normalizacio eo posicionamento, mas, justamente, para fraquecimento de qualquer posigo. Caminhar e copiar fatividades que exigem grande disciplina fisica, sio priticas ativas que resultam na experiéncia e na exposi¢ao. Mas wolvem depor o conforto de uma posigio (essa posi¢io que di uma orientagio, uma boa intencio, uma consciéncia, im saber, uma explicagio, uma historia). | Uma pedagogia pobre é uma pedagogia que diz: “Olhe! NNio deixarei sua atengio vacilar, nio deixarci que se distraia, Olhe! Nio busque ou espere emogdes, histérias, explicagdes. ‘Olhe!”, Uma pedagogia pobre forga o olhar, mas para fazé-lo ‘nfo impde nenhuma perspectiva, nem a “motiva” ou Ihe dé ra~ Bes, mas simplesmente oferece trajetos como linhas arbitririas (caminhos, as linhas de um texto). Uma pedagogia pobre oferece as ncisdes, as linhas que atraem, prendem, mobilizam ¢ desviam 6 olhar. Mas essa linhas nfo fixam o olhar nem o determinam oferecendo-Ihe uma perspectiva, Essa pedagogia nio apresenta nenhum horizonte, nio oferece tradig6es nem representagdes, ‘mas desenha uma linha como um corte, como a abertura de uma incisio, Essa linha nio tem a intenco de mostrar nenhuma cena rem qualquer representaco, mas faz uma incisdo através da qual 6 visivel se mostra por si mesmo, como um passe-partout: algo {que pode ser utilizado em todas as circunstincias ¢, a0 mesmo tempo, é uma moldura (de cartio, madeira, ete) para demarcar lum retrato ou uma imagem. Por conseguinte, a incisio nao € nem uma representagio nem uma reflexio. © que aparece, ou € revelado, a0 longo dessa linha arbitriria, nio é um mundo desfigurado e ca6tico que precise de uma perspectiva certa, uma visio correta, uma descrigio fiel ou uma explicagio convincente. A linha € uma abertura praticada no mundo e se abre sobre este Entio, percorrer uma linha arbitriria nio requer um destino ou ‘uma orientagio que poderiam dar-lhe um sentido. Atravessar ‘uma linha arbitriria , simplesmente, uma abertura ao mundo. Caminhar ao longo dessa linha é caminhar sem um programa, sem objetivo, mas, sim, com uma carga, com uma responsabili- dade: o que ha para ver, ouvir, pensar? 5 Couche Eeuscto: Enea S000" ‘Uma pedagogia pobre fornece meios para atingir 0 estado vulnerivel ¢ desconfortivel da ex-posigio. Quando sai dessa ex-posicio, o olhar muda novamente, volta a se relacionar com objetos (¢ metas), ¢ obtém conhecimento no lugar da experiéncia, (Nao duvido do valor do conhecimento, mas a investigago e-ducativa no busca conhecimentos que levem 4 compreensio, senio um corte, uma abertura, que traga a possibilidade de autotransformacio). Uma pedagogia pobre fornece os meios para perder a posicio, de modo que a alma possa submeter-se ao caminho percorrido a pé ou a0 texto «que se copia. Copiar, como caminhar, é seguir um trajeto sem ‘mapas, sem a orientagio de ideias ou (hip6)teses que dirigem quem Ié ou voa. ‘Uma pedagogia com essas caracteristicas apresenta 0 mun- do, oferece a “evidéncia” do mundo: Nio o evidente como aquilo que simplesmente existe (ab- soluta ou empiricamente..), maso que é evidente porque aparece quando alguém olha. [| [Isto] esti longe de uma visio que somente visa (que s6 olha “para ver"): evidente se impde potenciando o olhar. [..] A evidéncia tem sem- pre um ponto cego no centro de sua propria obviedade: assim se impde ao olho. O ponto cego no rouba a visio do olho; a0 contririo, abre 0 olhar e a forca, obriga-o a olhar (Nancy; Kranostam, 2001, p. 18) Essa pressio sobre o olhar éa que exerce a pedagogia pobre, {que empurra e puxa. E 0 ponto cego seria a linha (arbitraria) que se abre para o olhar. Uma pedagogia pobre refere-se & necessidade de olhar e usar os olhos;& evidéncia que se da um olhar mobi- lizado, um olhar que presta atengio a0 mundo e a sua verdade. Porém se trata de uma verdade que nio trata da realidade, nem do mundo, mas que provém dela, Portanto, nao é uma verdade {que se encontra nas ideias, nas teses, nas representagdes ou nos conhecimentos, mas na experiéncia, Uma pedagogia pobre tenta recriara realidade (que nao é ébvia), trata de fazé-Ia real, de fazé-la presente, para que possamos olhi-lae prestar atengio a ela, Uma pedagogia pobre no captura nem dirige o olhar, mas requer sua Porhame-ns cain fio, 0 mobiliza e estimula, tirando-o, arrastando-o para que Ser seduzido e tocado pelo evidente. E 0 evidente nio é 0 simplesmente existe, mas o que “aparece” quando o olhar ta aten¢o no presente em ver. de julga-lo. Caminhar implica a possibilidade de uma transformacio, 0, © sujeito do caminhar é o sujeito da experiéncia e, im, em certo sentido, nio nenhum sujeito (com objetos ‘objetivos). Em outras palavras, o sujeito da experiéneia e da iglo é um sujeito de um tipo especial, extraordindrio. Nao 46 niio se submete ao tribunal da investigacio cientifica, da fala comunicativa, e do didlogo com vista a um acordo, mas & ‘oagido pelo presente, ¢ se deixa conduzir por ele. Benjamin disse que quem caminha, como quem copia, nio se submete “gos movimentos de seu eu no livre espago aéreo do devaneio” {ss0 € 0 que faz 0 leitor que compreende e interpreta: ouvir as ‘ordens de seu eu). Nesse sentido, o olhar daquele que caminha é libertado do “eu”, nio & mais subjetivo ou privado, mesmo que seja, sem diivida, pessoal (e ligado a um corpo), e, portanto, implique ou envolva “a nossa alma” Isso é precisamente 0 que esti em jogo na investigacio e-ducativa: a abertura de um espago existencial, de um espaco de liberdade pritica: a nossa alma. Referéncias BENJAMIN, W. Rua de mio (nica. In: Rua de mao vnica. Traducio de Rubens Rodrigues Torres Filho. 5. ed. Sio Paulo: Brasiliense, 1995. p, 9-69, (Cobras escolhidas 1) FOUCAULT, M. Michel Foucault ot ran, Le Matin 647,26 mar. 1979, p15. (Réponse & C. et} Broyelle,“A quoi révent les philoso phe". Le Matin, n, 646,24 mat, 1979, p. 13). In: FOUCAULT, M. Dis et Ets No. Pris: Gallimard, 1994 . 762. NANCY,}. Li KIAROSTAMI,A. L'idence d fl /"The Evidence of Film, Brussel: Yves Gevaert, 2001. WEIL, S. Correspondance avec Joe Bousquet, L'ige d’homme, Lau- sanne, 1982. In: Eu, sous la direction de Florence de Lussy. 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