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INTRODUGAO 0s textos reunidos aqui foram escritos entre 1975 ¢ 1988. Sua aslo parc~ ce guiada por duas I6gicas concomitantes: a ordem cronolégica da publicagao dos textos, claro, c, recortando em parte esta, a ordem possivel que poderfamos thamar de tematica, sendo que a primeira e maior oposigao de natureza teméti- ca é precisamente aquela que separa a emigragio (¢ a qualidade de emigrants), { rudo o que dela se pode dizer, da imigragio (c da condisao de imigrante) e dos jndmeros estudos que a ela foram dedicados em geral. ‘Na verdade, se a ordem cronolégica das publicag6es ¢ a ordem légica dos temas combinam em parte eparecem estreitamente dependentes uma da outra, isto se deve principalmente & propria Iogica do movimento migrat6rio, Com efeito, todo 0 itinerdrio do emigrante (emigrante de Ii...) ¢ do imigrante (Imigrante fe a um recorte em diferentes etapas que se constituem como ou aqui...) presta-st dos para a reflexio, A ordem linear se- ‘os tantos momentos e objetos privilegiat sgundo a qual se desenrola o movimento de emigragio e de imigragdo, em Gupla dimensio de fto coletivo ¢ de itinerdio individual (a trajesria & a exPe™ ‘iéncta singulares do emigrantec imigrante), comands, assim, a constituigdo dos diferentes temas, impondo-os desta forma na ordem crono-l6gica em que aparc ‘Gem e, desta mancira, comanda também a ordem eronol6gica das publicagtes £ jeualmente o desenralar do processo que determina, em fungdo das necessidades aque encontra ou que faz sugit, nfo 6 a natureza das interrogagdes como também a forma que elas adotam, além da ordem temporal que também é, neste caso, 2 [ABDELMALEK SAYAD ‘ordem de importancia ¢ a ordem de urgéncia nas quais so postas e tratadas estas interrogagdes. Assim, em suma, so trés ordens cronolégicas que se encontram encavaladas; parcialmente redundantes, estruturalmente ligadas entre si e como ‘que carregadas por uma mesma ldgica ~ a légica contida no prinefpio gerador das quesides relativas & imigragdo -, elas estio destinadas a se encontrar e a se fundir ‘numa mesma perspectiva que podemos dizer (¢ escrevet) crono-ldgica. Para comesat, teremos, em ptimeiro lugar e necessariamente, 0 estudo da emigrago propriamente dita ou, pelo menos, o estudo das condigdes sociais que ‘a engendraram, bem como 0 estudo, necessério para que a pesquisa seja com- pleta, das transformagdes destas mesmas condigdes e, correlativamente, das ttansformagées da emigragdo. Necessidade de ordem cronolégica, sem divida, ois na origem da imigragio encontramos a emigragio, ato inicial do proceso, ‘mas igualmente necessidade de ordem epistemolégica, pois o que chamamos de imigraedo, e que tratamos como tal em um lugar e em uma sociedade dados, é chamado, em outro lugar, em outra sociedade ou para outta sociedade, de emi- gragdo; como duas faces de uma mesma realidade, a emigragao fica como a outra vertente da imigragdo, na qual se prolonga ¢ sobrevive, e que continuaré acom- Panhando enquanto o imigrante, como duplo do emigrante, ndo desaparecer ou no tiver sido definitivamente esquecido como tal ~ e, mesmo assim, isto ainda nfo € absolutamente certo, pois o emigrante pode ser esquecido como tal pela sociedade de emigragtio mais facilmente e antes mesmo que tenha deixado de set chamado com 0 nome de imigrante. Em seguida, temos, mais abundantes e mais diversificados, os estudos dedicados as condigdes de existéncia na imigra- io (condigbes de vida c condigdes de trabalho principalmente), ou seja, grosso ‘modo, o estudo dos difetentes problemas sociais que foram constituidos como “os problemas da imigragiio”. F.na medida em que os contatos do imigrante com fa sociedade que o agrega a si se prolongam, se ampliam e se intensificam, ou seja, na medida em que o imigrante sai da esfera em que o restringem tradicio- nalmente 0 estatuto e a condigao que Ihe sio atribuidos, na medida em que vai ganhando novos espagos (alguns deles inéditos, como o espaco politico), che- zando a desmentir a definicdo dominante que se da dele e da imigragao, indo até © questionamento da representagdo que se tem dele que ele tem de si mesmo, © tratamento social e o tratamento cientifico, sendo que este encontra-se com freqiiéneia na dependéncia daquiele, reservados ao imigrante ¢, mais amplamente, a todo o fendmeno da imigraco, ganham em extensio e em compreensio. Produto, o mais das vezes, de uma problemética que Ihe € imposta de fora, © A qual nao € sempre facil escapar, o discurso (cientifico ou nfo) sobre o imi grante c sobre a imigragdo est condenado, para poder falar de seu objeto, a rronucAo acopliclo a toda uma série de outros objetos ou de outros problemas. Aliés, se- ria possivel falar dele de outra forma? Esté no estatuto do imigrante (estatuto a0 ‘mesmo tempo social, juridico, politico e, também, cientifico), e, por conseguin- te, na propria natureza da imigracdo, s6 poderem set nomeados, s6 poderem ser captados e tratados através dos diferentes problemas @ que se encontram asso- ciados ~ problemas que se devem entender aqui no sentido de dificuldades, dis- tGrbios, danos etc., mais do que no sentido de problemética constitufda de for- ‘ma critica em relagio a um objeto que cria necessariamente um problema ¢ que, caracteristica esta que Ihe é prOpria, existe apenas, no limite, gragas aos proble- ‘mas que coloca para a sociedade. Sem divida, a problemética verdadeira e apro- priada a este setor deveria comegar por se dar como primeiro problema, como problema prévio, o fato de que se trata de um objeto que eria um problema! ‘Trata-se sem diivida de uma banalidade, mas de uma banalidade que é im- portante lembrar, dizer que a imigragio € um “fato social completo”, tinica ca~ racteristica, aliés, em que hii concordancia na comunidade cientifica. E, a este tftulo, todo o itinerério do imigrante é, pode-se dizer, um itinerério epistemol6- ico, um itinerério que se dé, de certa forma, no cruzamento das ciéncias sociais, como um ponto de encontro de intimeras disciplinas, hist6ria, geografia, demo- grafia, economia, dircito, sociologia, psicologia e psicologia social c até mesmo das cigncias cognitivas, antropologia em suas diversas formas (social, cultural, politica, econémica, jurfdica etc.), lingifstica e sociolingifstica, ciéncia politi- ca ete. Por certo, a imigragio 6, em primeiro lugar, um deslocamento de pessoas no espago, ¢ antes de mais nada no espago fisico; nisto, encontra-sc relaciona- da, prioritariamente, com as ciéneias que buscam conhecer a populagdo e 0 es- ago, ou seja, grosso modo, a demografia © a geografia, e principalmente por- que esta, ao tratar da ocupagio dos territérios © da distribuigtio da populaglo, inclina-se a anexar aquela ~ nfo é por nada que a demografia é uma questo, em parte, dos gedgrafos ¢, em parte, dos historiadores. Mas 0 espago dos desloca- ‘mentos nfo é apenas um espago fisico, cle é também um espago qualificado em muitos sentidos, socialmente, economicamente, politicamente, culturalmente (obretudo através das duas realizagGes culturais que so a lingua e a religio) ctc. Cada uma dessas especificagdes e cada uma das variagées dessas mesmas especificagées podem ser objeto de uma ciéncia particular. 1. Sobre as miiplas dterminagBes que pesam sabe a producio em eineiassociasrelativaents imi ‘ragdo, ver nosso artigo “Tendances et courans dans les publications en sciences sociales su mini ‘ration en France depuis 1960", Current Sociology, ISA, vol. 32,3, Sage Publications, iavero 1984 12, pp. 219-308 ABDELMALEK SAYAD 16 “Fato social total”, é verdade; falar da imigracio é falar da sociedade como ‘um todo, falar dela em sua dimensio diacrénica, ou seja, numa perspectiva his- Arica (histéria demogrifica e hist6ria politica da formagio da populagdo fran- esa), ¢ também em sua extensfio sincrOnica, ou seja, do ponto de vista das es- truturas presentes da sociedade e de seu funcionamento; mas com a condiglio de info tomarmos deliberadamente o partido de mutilar esse objeto de uma de suas partes integrantes, a parte relativa 2 emigragdo. De fato, o imigrante s6 existe na sociedade que assim 0 denomina a partir do momento em que atravessa suas fronteiras e pisa seu territ6rio; o imigrante “nasce” nesse dia para a sociedade que assim o designa. Dessa forma, ela se arvora o direito de desconhecer tudo 0 que antecede esse momento ¢ esse nascimento. Esta é outra versio do etnocen- trismo: 56 se conhece 0 que se tem interesse em conhecer, entende-se apenas 0 {que se precisa entender, a necessidade cria 0 conhecimento; s6 se tem interesse intelectual por um objeto social com a condigdo de que esse interesse seja leva- do por outros interesses, com a condigio de que encontre interesses de outra espécie. Tudo acontece como se a divisio do trabalho intelectual nesse campo, a0 se conformar com a divisto do interesse que se tem por um ou outro aspecto da realidade, reproduzisse a divisio que é feita do objeto om emigragio e im sragio; & sociedade de imigragdo e 3 reflexdo interna da sociedade de imigra- {do cabe o trabalho sobre a imigragao c o trabalho de constituigio da cigneia da imigragdo: & sociedade de emigragao e & reflexHo interna a essa sociedade cabe o cuidado de encarregar-se do trabalho intelectual sobre a emigragio ~ sendo que este consiste, grosso modo, na andlise das causas “endégenas” da emigragio de seus efeitos conseqiientes, efeitos “exdgenos” desta mesma emigracdo. Esta divisio participa, ao que parece, da mesma relagdo de dominagio, da mesma dissimetria ou desigualdade nas relagbes de forga que se encontram na origem e so constitutivas do fendmeno migratério; ¢ é, sem diivida, nesse desequilfbrio de aparéncia cientifica — desequilfbrio a0 qual nto se dedica toda a atengio ne- ccessétia — que se mostra de forma mais clara a relago de forgas que se encon- tra na fonte do fendmeno da emigragdo ¢ da imigracio. E nesse contexto de completa certeza quanto & natureza fundamentalmen- te prética e profundamente interessada do conhecimento que se tem a constituir sobre a imigraglo, e também quanto & legitima redugdo desse conhecimento a0 tinico aspecto que julgamos itil conhecer, a saber, o aspecto “imigragio”, que tem suas rafzes ¢ se desenvolve 0 que se convencionou chamar de uma “proble- mética imposta”?, Quanto mais a sociedade de imigragdo inclina-se, coisa que 2. CfA. Sayad, “Le phénoméne migrate, une relation de domination ou les conditions de posibiié mopucto entendemos facilmente, a abordar o fato da imigragio durante sua realizagdo — € para ela uma questio de ordem piblica ou, em outros termos, uma necessida- de da vida pratica -, tanto mais ela € indiferente, de pleno direito segundo ela, as condigdes e as circunstincias que governam a emigragio, considerando-se totalmente estranha, de modo algum envolvida e ainda menos interessada por esse tipo de preocupagao. E quando, excepcionalmente, ela é levada a interro- zgar-se sobre 0 “nascimento” para a imigragio, ou seja, na verdade, sobre 0 nas- cimento da emigragao, cla é levada, por uma espécie de etnocentrismo de ordem totalmente prética, visio “endégena” de uma realidade que ¢ exterior e que ul- trapassa o campo de suas atribuigdes ¢ de suas competéncias, a buscar as cau- sas, a razio, o prinefpio explicativo, em suas proprias estruturas internas (suas estruturas econdmicas, o mercado de trabalho, suas estruturas demograficas, suas estruturas sociais etc). Assim, toda uma série de fatores de toda ordem so cons- titufdos como outras tantas causas suscetiveis de dar conta do recurso que foi feito aos trabalhadores estrangeiros, logo, & imigragio; esses fatores nilo sto apenas explicativos, mas, como uma coisa vale a outra, tém igualmente uma fun- ‘Gio de legitimagio, ov seja, de argumentos que devem justificar uma presenga ‘que, de outra forma, seria impenséivel, até mesmo escandalosa sob todos os pon- tos de vista, intelectual, politica, cultural, eticamente etc. Neste sentido, jé fo- ram evocados, um apés 0 outro, o déficit demografico, déficit estrutural devido a fraqueza ja antiga e constante da taxa de natalidade, ¢ agravada conjuntural- mente durante os periodos de guerra (necessidade de homens para a indiistria de guerra e para suprir as convocagdes militares) ¢ os perfodos imediatamente pos- teriores & guerra (necessidade de homens para a economia de reconstrugio e para compensar as perdas bem como as incapacidades fisicas devidas & guerra); a forte expansio econémica de determinados perfodos ¢ a estrutura do mercado de trabalho quando a oferta de emprego se torna, pelo menos em alguns setores ¢ para determinados nfveis de qualificagdo (na verdade, seria mais correto falar de subqualificagdo ou de auséneia total de qualificagio), superior & demanda local ~ ainda & preciso repensar essa distorgdo -, a elevacio global da qualida- de de vida (qualidade econémica e qualidade cultural) traduzindo-se por um afas- tamento cada vez maior e mais amplo da mio-de-obra nacional de determina- dos setores de atividades, quando ndo de setores de emprego inteiros (tarefas desagradéveis e socialmente desvalorizadas) ¢ pela progressiva redugao da jor- nada de trabalho e da duragdo da vida ativa ctc. Sem estar errado, esse modo de ‘une science de Vémigration", Maghrébins en France, émigrés on immigrés?, Annusite de V'Afsque thu Nord, Paris, CRESM-CNRS, 1983, pp. 365-406 ¢ pp, 1091-1094 ” 18 ‘explicago ganharia contudo, para ser mais completo e mais convincente, se lem= brasse que o imigrante, antes de “nascer” pata a imigragdo, ¢ primeiro um emi- _grante. Mostramos em outro texto a relagio dialética que une as duas dimensdes

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