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EDUARDO ARENS ASIA RAEMN OR. NOS TEMPOS DE Jj POST ee eC Ee ha eee Coy Nees SURE MO eeLa ans e CMa escritores se dirigem a comunidades que viviam dentro de coordenadas socioeconémicas, politicas e religiosas es- pecificas. Neste livro o autor reconstréi 0 contexto social, eco- némico, politico e religioso necessario para compreender o nascimento, o desenvolvimento e a expansao das comu- nidades cristas pela Asia Menor no primeiro século da nossa era. Sem levar em conta esse contexto, os escritos dos primciros missiondrios cristaos correm o risco de ser mal interpretados. Este livro, portanto, é excelente ajuda para a compreensio dos escritos de Paulo, Lucas ¢ Joao. EDUARDO ARENS nasceu em Dresden (Alemanha) e educou-se no Peru. Doutorou-se em Leologia em Friburge (Suica) e fez estudos de pés-graduagao em Biblia na Ecole Biblique Archéologique Francaise de Jerusalém e na Fa- CRORE LD Sd Ferre eve ears Coin oer eee eres Pe a Lima (Peru) e membro da Studiorum Novi Testamenti Societas e da Catholic pele eral Beatccereren ren 9 8 I 738 Superiov de Estudos Leoldgic biblioteca de estudos biblicos erent Dados Internacionais de Catalogagaa na Publicagao (CIP) (CAmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Arens, Eduardo ‘Asia Menor nos tempos de Paulo, Lucas @ Joao : aspectos sociais e econémicos para a compreenso do Novo Testamento / Friuardo Arens ; {tradugao Jodo Rezende Costa]. — Sho Paulo : Paulus. 1997. — (Biblioteca de estudos biblicos) Titulo original; Asia Menor en tiempos de Pablo, Lucas y Juan. Bibliografia. ISBN 85-349-0977-6 1. Biblia, N, T. — Histéria de acontecimentns contamporAneos 2. Biblia. N. T. - Joao — Critica e interpretagao 3. Biblia. N. T. Lucas ~ Critica ¢ interpretacao 4. Biblia, N, T. Paulo — Critica e interpretagao {. Titulo. II. Série, 97-0821 CD0-225.85 indices para cataloge sistematic 1. Novo Testamente : Asia Menor : Contexto econdmico : Historia de fatos contemporaneos 225,95 2. Novo Testamento : Asia Menor : Contexto social : Hist6ria de fatos contemporaneos 225.95 BIBLIOTECA DE ESTUDOS BiBLICOS + Biblia: AT — Inirodugau aos escritos e aos métodes de estudo, ||. W. Wolff + Os partidos religiosos hebraicos na época neotestamentaria, K. Schubert + Segundo as Eserituras: Estrutura fundamental do NT, C. H. Dodd + Jesus @ as estruturas de seu tempo, E. Morin + Chave para a Biblia, W. J. Harrington + Biblia, palavra de Deus — Curso de introdugdo a Sagrada Escritura, V. Mannucci + Paulo, a Lei e 0 pova judeu, E. P, Sanders + As origens cristas a partir da muther — Uma nova hermenéutica, E. 8. Fiorenza + Evangetho, figuras e simboios, J. Mateos ¢ F. Camacho + Jesus @ a sociedade de seu tempo, J. Mateos e F. Camacho. + Autopia de Jesus, J. Mateos + Libertando Pauio — A justica de Deus e a politica do apéstolo, M. Elliott + Asia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e Jodo, E. Arens EDUARDO ARENS ASIA MENOR NOS TEMPOS DE PAULO, LUCAS E JOAO Aspectos sociais e econémicos para a compreensao do Novo Testamento PAULUS a ll 33. 43 43 46 52 55 69 75 79 82 84 88 92 95 96 99 107 109 112 116 123 INDICE Prélogo Apresentacaa Introdugdo DESCRICAQ DAS CONDICOES SOCIOECONOMICAS NUMA CIDADE “TiPICA” DA ASIA MENOR NA SEGUNDA METADE DO SECULO PRIMEIRO DEPOIS DE CRISTO Primeira Parte DESCRICAO OASPECTO SOCIAL . Classes sociais? . Estruturagéo da sociedade greco-romana . A aristocracia A administracao local Os escravos Os libertos . A familia. As mulheres . Os pobres . Os camponeses 10. Cidaddos e estrangeiros 11. O exército 12. A educagado O ASPECTO ECONOMICO Recursos naturais na Asia Menor ocidental A vida nas cidades . O sistema e o desenvolvimento econémico Ocupacées e industrias . O munde comercial . Rendimentos e tributes EXCURSO: ROMANIZACAO OU HELENIZACAO? COINAAR ONE Oakey 129 129 135 187 142 146 149 152 157 158 160 163 165 168 170 176 185 185 187 190 192 193 194 199 207 209 Segunda Parte RELACOES RICOS E POBRES. 1. Quem era o pobre? 2. A“honra” do pobre 38. O rico perante o pobre 4. O Estado e os pobres 5. Associacées 6. Filantropia 7. Caridade judaica OS JUDEUS NA DIASPORA 1. Migragoes judaicas 2. Privilégios imperiais 3. As comunidades judaicas 4. Asociedade judaica 5. Judeus: ricos ou pobres? 6. A atracdo judaica e seus prosélitos 7. Manifestagies antijudaicas A VISAO SOCIAL DAS FILOSOFIAS E RELIGIOES 1. Ocinismo 2. O estoicismo 3. O epicurismo 4. O neoplatonismo 5. O neopitagorismo 6. Religides BIBLIOGRAFIA REFERENCIAS: PRINCIPAIS TESTEMUNHOS DQ PRIMEIRO SECULO. IMPERADORES ROMANOS, EQUIVALENCIAS MO- NETARIAS ABREVIATURAS Titulo original ; ‘Asia Menor en tiempos de Pablo, Lucas y Juan ~ Aspectos sociales y econémicos para la camprensién del Nuevo Testamento © Eduardo Arens, 1995 Tradugao Jodo Aezende Costa Revisan H. Datbosco © PAULUS — 1996 Rua Francisco Cruz, 229 0417-091 Sao Paulo (Rrasil) Fax (011) 570-3627 Tel. (011) 575-7362 http://www. paulus,org.br direditorial@paulus.org.br ISBN 85-349- 977-6 ISBN 84-8005-022-5 (ed. original) PROLOGO Este estudo baseia-se em duas convivgées basicas: os textos biblicos originaram-se em época e situagées histéricas concretas, e seus escritores dirigiram-se a comunidades que viviam dentro de coordenadas sociceconémicas, politicas e religiosas determi- nadas. Ao compor 0 escritor seu texto, fé-lo em seu tempo e em seu mundo, tendo presente uma comunidade especifica desse tempo e desse mundv. Assim, por exemplo, se se quiser compreender o que um autor como Lucas quis comunicar a seu auditério (a comuni- dade para a qual escreveu) acerca de pobreza e riqueza, sera ne- cessdrio tomar consciéncia de que nao tratou em seu evangelho desses temas por lhe terem ocorrido espontaneamente ou por té- los considerado de interesse teolégico. Fé-lo antes porque cer- respondiam a uma situacao concreta: havia nessa comunidade um conflito relacionado com as diferengas socioeconémicas entre seus membros.’ Para comecar a compreender, portanto, a mensa- gem de Lucas sobre a relagdo do homem com os bens materiais, serd necessdrio familiarizar-se com as condigées socioeconémicas do mundo em que viviaim os membros da comunidade de Teéfilo, para os quais Lucas escreveu sua obra.” } Em sua resenha do liven de H. Moxnes, The economy of the kingdom, D. Hamm concluiu dizendo que “precisamos com urgéncia de estudos rigorosos sobre o contexte cul- tural da tratagdo de pobres e ricos em Lucas” (Theol. Studies 51[1991] 173). A essa justa exigéncia responde, pelo menos em parte, a presente estudo. 2 Vejam-se a esse respeito algumas obras que moslram clarameute a importancia do estuda socioeconémico para a compreensao de Lucas, como Ph. F. Esler, Community and gospel in Luke-Acts, Cambridge. 1987: J. H. Neyrey (org), The social world of Luke- Acts, Peabody, 1991; H. Moxnes, The economy of the kingdom, Filadélfia, 1988; mais brevemente, K, Aguirre, Del movimiento de Jestis a la iglesia cristiana, Bilbao, 1987, cap. VI. 5 Para entender as condigdes humauas eu que vivia uma co- munidade em determinado momento histdrico, faz-se necessdrio conhecer suficientemente os diversos estratos sociais da época bem como os diversos niveis econdmicos, suas causas, possibilidades e conseqiiéncias. Existiam a aristocracia e 0 povo ou vulgo; homens e mulheres; uns eram livres, outros libertos, e o resto, escravos. Quais foram as condigées de vida e os diversos estratos sociais nas comunidades de Paulo, Tedfilo e Joao (todas elas na Asia Me- nor)? O objetivo desse estudo é responder a essa e outras pergun- tas conexas, esbogando as condigées sociais e econdémicas da Asia Menor durante a segunda metade do séc. 1 d.C., com 0 fito de aju- dar a compreender melhor certus aspectos dos escritos de Lucas e Jodo, assim como das cartas de Paulo (e deuteropaulinas)." Uma generosa bolsa de estudos, concedida pela fundagao ca- tAlica Stinendienwerk Lateinamerika-Deutschland, deu-me a opor- tunidade de levar a cabo na Universidade de Taibingen durante meu ano sabatico (1988/1989) a pesquisa que constitui o nucleo desse livro. E justo, pois, que expresse gratidao para com os mem- bros do “curatorium” da mencionada fundagao, de modo particu- lar ao professor Peter Hiinermann, seu presidente, que de mais a mais me animou em repetidas ocasides a levar avante esse proje- to. Também devo expressar gratidao para com as pessoas que nao deixaram de me brindar com seu apoio (que se estente até hoje) durante minha estada na Alemanha: a secretaria da fundagao, senhora Maria Below, o padre Tomas Begovic, que me ofereceu alojamento e amizade no calor de seu “lar”. O professor Martin Hengel, reconhecido erudito nesse campo de estudos, deu-me va- liosas orientagdes e sugestées. Foi ele que mc animou a publicar esse trabalho. Se nao o fiz antes foi pela Calla de Lempou para the dar forma final e por ainda nao ter contado com 0 apoio necessa- * Dou por suposte que a comunidade de Jodo morava em Efeso, como afirma a tradi- gao. Estou, de mais a mais, convencido de que Lucas escreveu para uma comunidade de eristéos que também se encontrava na Asia Menor, quer em Eteso, quer perto dessa cidade, Nao subemos se Lucas escreveu # partir dai iesmo ow a partir de outro lugar como, por exemplo, Roma. Mas compreende-se melhor o fato de que em seu evangelho e nos Atos se dirjja a Teéfilo, se se aceita que Lucas e Teéfilo viviam em lugares diversos e distantes. 6 rio para que viesse 4 luz. Nesse sentido, minha gratidao se esteu- de a um grande amigo e companheiro de estudos em Jerusalém, Jesus Peléez del Rosal, que possibilitou sua publicacdo. Por fim, nao teria chegado esse trabalho a seu termo, se nado fossem as oportunidades e as facilidades que, com sacrificio de sua parte, me proporcionaram meus irm4os maristas do Peru (a auséncia de um membro da familia faz com que a carga de trabalho recaia sobre os demais, que mais pesa quando esses séo poucos). A todos eles meus agradecimentos. APRESENTACAO As analogias entre as grandes cidades sul-americanas e as metrépoles da Asia Menor na época do império romano talvez sejam maiores do que possamos imaginar. A Asia Menor era en- tao provincia florescente: nessa regido foram executadas constru- gécs grandiosas ec, relativamente aos agitados séculos anteriores das monarquias helenisticas e a brutal dominagao do império, a “pax romana” trouxe consigo tranqitilidade e cerla seguranga ju- ridica. A burguesia acomodada das cidades vivia relativamente satisfeita, apresentando, porém, ao mesmo tempo grandes som- bras. Os simples agricultores dos grandes latifiindios da Frigia, Bitinia ou Galacia nao passavam em geral de arrendatarios semi- livres na época. Quando, fugindo da pobreza no campo, chegavam As grandes cidades, careciam nelas de todo direito civil e com fre- qiiéncia se deparavam com o desprezo e a rejeigao da populagao urbana. . Inclusive cidades como Efeso, Esmirna ou Pérgamo tinham em seus arrabaldes bairros marginais de simples chogas de bar- ro, nas quais morava uma populagdo que s6 podia sobreviver a duras penas, ainda que os magistrados das cidades e os governa- dores das provincias romanas sempre se empenhassem em evitar grandes tensées sociais e, pelo menos de vez em quando, ofereces- sem po e espetdaculas nao s6 em Roma, mas também na Asia Menor. No entanto, a “paz romana” nao péde impedir que surgissem disputas entre as cidades e, dentro delas, tensées e perseguigées religiosas contra certas minorias; um bandoleirismo em elevagdo tornava inseguras amplas regides da provincia, e o florescimento 9 das cidades muitas vezes era sé aparente e fugaz. Cresceu nesse ambiente, a partir da missao de Paulo, a comunidade crista na Asia Menor com mais forca do que em qualquer outra provincia do império romano. Houve assim, desde a época de Domiciano e Trajano c depois sobretudo sob Marco Aurélio, fortes persegui- ges contra os cristéos. Mas, apesar da opressao oficial e das inces- santes hostilidades, amplas regides da Asia Menor na segunda metade do século III eram como que um pais “cristAo” O livro do professor Eduardo Arens surgiu em Lima, e af, de onde o autor descreve acontecimentos histéricos ocorridos hé quase dois mil anos, ele jamais perdeu de vista o presente. U seu livro é em conseqiiéncia ao mesmo tempo histérico e atual, Da testemu- nho da pregacao, da vida comunitdria e das tribulagées dos pri- meiros cristéos na época em que ali cresceu a fé crista, e relaciona esses falus com a exposi¢ao de seu fundo social e econémico, em que também 0 judaismo, a religido-mae do cristianismo, desem- penha papel essencial. Este livro quer ao mesmo tempo interpelar o leitor a respcito de nosso cristianisme, pondy de manifestu cou se vivia a fé na- quele tempo e como se deveria viver hoje. E livro que nasceu de muitas tribulagdes e que por isso pode nao sé instruir os cristaos atribulados, mas também fortalecé-los em sua fé. Martin Hengel 10 INTRODUCAO Aprendemos a ler a Biblia na América Latina em estreita correlagao vor as realidades humanas em que estamos imersos. Muitas dessas realidades, sobretudo as de ordem social e econd- mica, que se acham inseparavelmente unidas, séo muito duras para quem n4o se isola em mundo protegido — inclusive literal- mente com muros e protecgées de janelas — da dura realidade de pobreza e miséria, de marginalizagao e abandono. B um mundo que “invadiu” nossas grandes cidades, nossos parques, nao excluin- do as caleadas e vias piblicas. Por isso se fala desde algum tempo de uma leitura da Biblia “a partir dos pobres”, ou seja, levanda seriamente em conta essa realidade socioeconémica em que nos achamos imersos como ponto fixo de referéncia, e dialogando a partir dela com a Biblia. Trata-se de um circulo hermenéutico pragmatien. Talvez a mais eanhecido expositor dessa maneira de ler a Biblia scja Carlos Mesters.* Esse modo de ler — compreender e interpretar — a Biblia, que tem como ponto de partida uma série de pressupostos e um contex- to humano muito diverso do que tém muitos estudiosos, professo- res, inclusive clérigos o progadores da Palavra, produziu (como era de esperar) as mais variadas reagées. Atacaram-no alguns com maior ou menor paixao. Nele viram outros um desafio; de fato, ndo poucos repensaram seu enfoque e apreciagao da Biblia, particular- mente de acordo com suas experiéncias proprias ou comunitdrias.® *Veja-se C. Mesters, Flor sin defensa, Bogota, 1984, ondeo autor discute essa maneira “popular” de ler a Biblia. * Veja-se os fundamentos tedricos expostos pur C. Mesters, v.c.; iunbén 5. Croatto, Hlernvenéutica biblica, Buenos Aires, 1985; E.Arens, “La Biblia es para todos”, em P, Thai a1 OS TEXTOS BIBLICOS E SEU CONTEXTO HISTORICO Para compreender o que esta em jogo, é preciso ter presentes algumas observagoes: 1. Como ja indiquei, foram escritos os textos biblicos em con- texto histérico, em circunstAncias e condicionamentos muito con- cretos e em didlogo cui eles. E mais: muitos textos biblicos foram redigidos tendo precisamente em conta essas condigées politicas, sociais, econdmicas e religiosas, com a finalidade de oferecer orientacées diretas ou indiretas a seus destinatarios, ajudé-los a viver sua fé nas circunstancias em que se achavaim. O exemplo mais claro disso sao as cartas de Paulo, mas outro tanto sucedeu com nossos quatro evangelhos. 2. A “inspiracdo divina” n&o isolou absolutamente o autor humano de seus condicionamentos histéricos, sociais e culturais. 3. Os escritos bfblicus foram palavra imediata de Deus para os destinatarios imediatos e diretos dos escritos em questao: a comunidade de Lucas, os cristéos de Corinto, Filémon etc. Para nds sia Palavra mediada de Deus, isto 6, néo comoe ccus primei ros destinatdrios. Daf a importancia da exegese e da hermenéutica. A origem e a natureza dos escritos biblicos 6 algo sobre o que foi e continua sendo preciso refletir, deixando de lado dogmatismos infundados e levando seriamente em conta muitas aspectos antes ignorados, como os que precisamente reoultam dos catudos sécio- cconémices acerca do bergo dos textos biblicus, entre outros. Os escritos biblicos e sua inspiragao nao se materializaram em escri- tério de uma torre de marfim construida em remota ilha do Medi- terraneo.® Deve-ee compreender, nessa linha a reflexdo € observayau, a tao discutida Teulogia da libertagao, que tenta fazer sério esforco para dar resposta cristé a situagdes de grandes injusticas socioeco- némicas. Foram precisamente as condigdes de vida de grande parte Hop —E, Arens (org.), El quehacer teolégico desde el Pert, Lima, 1986, 73-94. Um estudo que avalis partindo da Europa esse enfoque é oferecido em C. Rowland — M. Corner, Liberating exegesis, Louisville, 1Y89. $d. D. G. Dunn oferece umu transpurente exposi¢ao dos pontos mencionados em The living word, Londres, 1987. 80 dos Po 12 da populagéo mergujhada na pobreza, no abandong, na impolén- cia, na exploragdo, na discriminagdo e na opressao, que desperta- ram as consciéncias dos que eram sensiveis a essa realidade no continente latino-americano para buscar uma resposta crista enraizada na Biblia. Dessas condigées falaram claramente os bis- pos latino-americanos, reunidos primeiro em Medellin (1968) e dez anos depois em Puebla, e de novo, ainda mais timidamente (por razdes conhecidas), na reuniao de Sao Domingos (1992). Foi- se forjando de cara a essa realidad a Toologia da libertagéo como ensaio de reflexdo e orientacao cristé que se foi polindo gragas as criticas recebidas. Essa linha de reflexéo nao cessara enquanto existirem as condicdes socioeconémicas que a produziram, ou seja, enquanto nado houver “libertagao” de situagées desumanizantes, coulrdria @ vontade salvifica integral de Deus. Trata-se de tarefa profética — perseguida e difamada como o foi em tempos biblicos — que nao pode terminar, pois o verdadeiro discipulo de Cristo nao para de segui-lo “por onde quer que va”, adotando sua mesma opgao preferencial onde ha pobres, cegos, paraliticos, prostitutas, criangas abandonadas..., vude ainda udo se implantou o reino de Deus. Pois bem, um dos tracgos da Teologia da libertagao é preci- samente sua sélida ancoragem na Biblia, resultado de leituras que levam seriamente em conta as situacdes e condigées de vida concretas daqueles remotos tempos (b{blicos) para perceber e ex- pressar suas analogias com nosso proprio tempo.” A exegese na Europa Na Europa, a dura realidade da pobreza e miséria que existe no chamado Terceiro Mundo fica muito distante. Ver filmes sobre harracos e favelas, ou escutar conferéncias sobre a pobreza no mundo, nao encurta a distancia que separa da realidade mesma, que sd se poderd compreender em toda sua crueza quando é vista de perto. Nao estranha, pois, que os estudos biblicos na Europa sé excepcionalmente levem em conta as dimensées politicas, sociais e econémicas nas quais viveram os autores (e os que os precede- * Vejam-se, por exemplo, os estudos reunidos em N. K. Gutwald, The Bible und liberation: political and social hermeneutics, Maryknoll, 1983. 18 Tam) e suas respectivas comunidades. Esses estudos ainda se con- centram primordialmente no texto como tal e poe a acentuacdo nos aspectos teolégicos (ética, cristologia, escatologia ete.). Mas felizmente pouco a pouco a exegese européia — e mais a esta- dunidensc — vai se livrando da camisa de forga do métoda histé- ricu-critico, mais preocupado pelo passado do que pelo futuro do texto, ainda que essa libertacdo se traduza para muitos em con- centracdo nas dimensies lingit 8 & camunicativas do texto. Inclusive o conesito de contexto ou situagao vital (Sitz im Leben) permanece vago e imprecisu pura a maioria. Seguindo as pegadas de seus melhores expoentes, M. Dibelius e R. Bultmann, o con- texto vital continua reduzido ao Ambito religioso (catequese, parénese, apologética, pregagao etc.) dentro da comunidade que supostamente dcu origem e forma aos textos estudadus. A hermenéutica na Europa é dominada pela filosofia e linguistica; é altamente intelectual e idealista. Uma anedota ilustraré o que se disse. Pouco depois de minha chegada a Tiibingen, no comeca de meu ano sabatico, o professor Walter Gross (da cdtedra do An- tigo Tcotamento) me indicou que “na Alemanha wav lid sensibili- dade para us aspectos sociais e econémicos entre os estudantes e os eruditos”. Kissa frase me chamou a atencdo e inclusive me pa- receu exagerada, pois lera os estudos de G. Theissen. Poucos dias depois, porém, tive que dar a razdo ao professor Gross. Um co- nhecido professor daquela universidade, a quem pedira que me assessorasse inicialmente em meu projeto de pesquisa sobre a realidade socioeconémica da comunidade de Lucas, depois de lon- ga conversa resumiu sua apreciagaa dizendo que “o fundo social e econémico do texto do Novo Testamento é secundario e pode ser ignorado porque é€ icrelevante. Ao invés, sao primordiais as ra- zoes teologicas que motivaram Lucas a sublinhar a importancia do desprendimento e repartigdo das riquezas”. Minha surpresa e desengano foram enormes. Nao pude evitar recordar o que uns dias antes ouvira dizer o professor Ernst Kasemann numa cunfe- réucia: “Muilos alemaes vivem em esquizofrenia: falam de cristia- nismo idealista, vivendo ao mesmo tempo uma vida que qualifi- cam de realista, mas ambos estao desligadas.” Isso vale nao sé para a Alemanha. ac Aspectos sociais e econdémicos no estudo da Biblia A consideragéo dos aspectos sociais e econdmicos, além dos politicos e histéricos, nos estudos sobre o Antigo Testamento, esté se ampliando, sobretudo quando se trata dos profetas, dada a na- tureza dos temas tocados na maioria de seus escritos. Quando, po- rém, se trata do Novo Testamento, por alguma raz4o misteriosa, 0 que se observa é uma intensa concentragdo nos textos mesmos e em sua histéria (especialmente literaria e redacional), em sua men- sagem teologica e em suas derivagoes éticas. Segundo o texto que se estuda, podem-se incluir consideragdes tomadas da realidade politica e histérica. Mas os aspectos sociais e econémicos costumam briJhar pela auséncia. Na realidade, a maioria dos cristaos enten- de o Novo Testamento da mesma maneira que os judeus ortodoxos entendem o Antigo: desligado das circunstancias humanas em que se forjaram e cresceram os textos. Em outras palavras, os cristéos nao temos reparos em estudar o Antigo Testamento da perspectiva socioeconémica e politica, além da religiosa, mas nao estamos dis- postos a tomar essas mesmas perspectivas seriamente ao se tratar do Novo Testamento. Basta rever os comentérios biblicos. O que na realidade estA aqui em jogo 6 a maneira concreta de ver e avaliar escritos como os cvangelhos c os Atos dos Apéstolos, o papel desem- penhado por seus escritures ¢ sua relagau comm as respectivas co- munidades, assim como certos conceitos basicos como os relativos a inspiracao, & autoridade da Biblia e 4 sua qualidade de Palavra de Deus. Estamos tocando nos pressupostos operativos dos estudio- sos da Biblia, e nao poucos deles inconscientemente 840 mais fun- damentalistas do que admitiriam ser. Estudos sobre as condigées socioecondmicas da Palestina e da Asia Menor Acrescente-se a tudo que se observou mais uma coisa: ainda que tenhamos estudos excelentes e minuciosos sobre as condigdes sucivecuudmivas oa Palestina do século I d.C.,* todavia (pelo que * Por exemplo, os estudos de Joaquim Jeremias, de Emil Schirer, ¢ 03 que aparccem rounidos em Compendia rerum Iudaicarum (Assen, 1974ss) 15 sei) nao se fez estudo semelhante sobre a Asia Menor com refe- réncia ao cristianismo nessa regiao, ou sobre os escritos do Novo Testamento relacionados com essa importante parte do Império Romano. Uma das pnssiveis razées que explicariam esse vazio é que — apesar de tantos cstudos — ainda nao nos desprendemos suficientemente da prioridade absoluta que realmente outorga- mos ao Jesus histérico, o palestino. Nao tomamos com a serieda- de com que deveriamos, e com o peso normative que sua cano- nicidade exige, o Jesus dos evangelhos, o Jesus pregado depois dos acontecimentos em torno do ano 30 na Palestina. E nao fal- tam os que pensam ingenuamente que o judaismo conhecido pe- jos evangelistas era idéntico ao judaismo que Jesus conheceu na Palestina.® No mundo de fala inglesa, particularmente nos Estadus Uui- dos, foram realizados estudos acerca das condigées sociais e eco- némicas das comunidades nas quais vieram & luz alguns dos es- critos biblicos. Na Europa, porém, muitas vezes se rontinua a ver os evangelistas como tedlogos de universidades. Nao surpreende que com freqiiéncia exegetas, professures e biblidfilos projetem seu préprio mundo no mundo dos evangelistas. Como ja indiquei, o método exegético predominante é 0 método histérico-critico, ain- da que alguns de seus pressupostos estejam sendo questionados, e os estudos lingitisticos de diversa indole tenham ganhado terre- no, A exegese continua, purém, seido uma espécie de trabalho de arqueologia, em busca das origens dos textos e da reconstrucdo de sua evolucdo ideoldgica e literdria. Trata dos textos como os arquedlogos tratam no Oriente préximo de um tell ou jazida ar- queolégica. Prova clara disso é que, nos estudos sobre o tema da pubreza vu riqueza no Evangelho de Lucas, so ocasionalmente se leva em conta a dimensao socioeconémica, ao passo que se coloca énfase no aspecto teolégico, coma se a pobreza nao fosse realidade e problema de cardter econdmico, c como se Lucas tivesse escrito * As adverténcias de P. S. Alexander (“Rabbinic Juddaism and the New Testament”, em ZNW 74 (1983) 237-246) devem ser levadas seriamente ein conta, Compare-se, por cxcmplo, o estudo de E. Sanders, Jesus and Judaism (Filadélfia, 1985) com os estudos de J. Jeremias e a mancira come recorrem A literatura judaica. 16 sobre uma pobreza espiritual ou ascética e nao subre una pobre- za cruamente material.” O pressuposto com que freqiientemente se léem certos escri- tos biblicos estA muito distante da realidade que os gerou. Costu- ma-se supor que foram escritos devido a preocupa¢ées doutrinais. Todavia, a realidade é que muitas passagens, inclusive escritos inteiros, foram elaborados em vista de alguma situag¢ao concreta, de alguma preocupaedo humana imediata, social, politica ou eco- némica, que exigia resposta ou orientagéo para os crentes. Obecr- va-se um exemplo dessa falta de sensibilidade humana no livro influente de H. Conzelmann, O meio do tempo: para o autor, o evangelista (Lucas) “fixa a posic¢ao histérico-salvifica da Igreja, dai deduzindo as normas para sua atitude para com 0 mundo”. Quem estiver cousciente dos pressupostos mentais e dos diversos fatores que influenciaram 0 evangelista, assim como das causas e razées de seu comportamento, notard que os evangelhos sao pro- duto de uma relagio dialogal entre determinada realidade e a mentalidade vigentc; que os comportamentos que refletem e mes- mo seus discursus sau respustas a siluagdes ¢ condicionamentos concretos. Significa, para os evangelistas, que seus escritos foram produto desse didlogo entre essa realidade em que estavam imersos ou que conheciam bem (que amitide foi a causa on raza pela qual escreveram, por exemplo, no que diz respcito ac uso ¢ abuso das riquezas numa comunidade integrada por pobres e ri- cos) e sua fé crista. A realidade “mundana” que viviam. influen- ciou sua compreensdo e apreciacdo do acontecimento Jesus Cristo. do conceito de salvagéo ete. Ao mesmo tempo, seu compromisso com Cristo e sua misséo influenciaram sobre sua compreensao e apreciacao do mundo em que viviam. Por isso, com uma aprecia- go muito diferente da que expressou Conzelmann acerca da rela- ¢4o do evangelista com 0 mundo, Ph. F. Esler pade afirmar com ra- z4o que os “fatores sociais e politicos foram significativos na moti- * Por exemplo, H.-J. Degenhardt, Lukas Evangelist der Armen, Stuttgart, 1965; W. E. Pilgrim, Good news to the poor, Minneapolis, 1981; D. P. Seccambe, Possessions and the poor in Luke-Acts, Linz, 1982; F. W. Horn, Gaube und Handetn in der Uheologre des Lukas, Gdttingen, 1983. Mas vejam-se os estudos mencionados na n. 2. " Die Mitte der Zeit, Tubingen, 1964, 117. 17 vagao da teologia lucana; em outras palavras, Lucas deu forma as tradigées evangélicas que estavam 4 sua disposigaéo como respos- ta a pressées sociais e politicas experimentadas por sua comuni- dade”. Ao se falar da relagdo evangelista-comunidade, costuma-se fazer de maneira muito abstrata. O termo “comunidade” costuma esconder uma totalidade amorfa, vista e definida desde o ponto de vista religioso. Em outras palavras, n4o se costuma destacar — pelo menos de manoira suficientemente clara c conseqiiente — a dimens&o humana da comunidade em questao, ou seja, o fato de que os cristaos (pessoas reais, nao ficticias) que constituiam a comunidade de Efeso, por exemplo, viviam em momento politica concreto, em determinada geografia, no seio de estruturas sociais © em niveis econémicos delimitados etc. Se se entender “cuuuni- dade” em seu sentido integral, encarnada e nao abstraida de seu mundo real, entao a interagdo evangelista-comunidade sera mui- to mais acertadamente compreendida, e se entenderd o préprio evangelho dentro do marco da interago entre o evangelista, sua comunidade e o mundo concrete onde viviai e se moviam e escre- vera. E, como 0 evangelista de fato escreveu respondendo a rea- lidades concretas e imediatas — como 0 indica Lucas nas primei- ras linhas de seu evangelho (1,1-4, esp. v. 4) —, 6 indispensavel que nao se percam de vista as rclagécs mencionadas, para com- preender que a compusigav du lextu biblico era motivada pela co- munidade-realidade, que exigia resposta orientadora da parte do evangelista-tedlogo. OS METODOS DE ESTUDO DOS EVANGELHOS Voltcmos aos métodos de estudo dos evangelhos. A critica redacivual busca destacar a contribuigdo particular do escritor: sua teologia, suas preocupacées, inquietudes e interesses, que se deduzem dos retoques feitas na material que ele herdou e do ma- terial que lhe é préprio, assim como da estrutura que deu & sua 2 Community and gospel in Luke-Acts, 2. 18 obra. O fato mesmo de ter admitido o material que incluiu, tendo tido a liberdade de omitir 0 que nao convinha ou era desnecessa- rio para seu propésito, é em si indicativo da relacdo evangelista- ecomunidade: ele escreveu para essa comunidade, nao para outra, tendo presentes suas necessidades concretas (de orientagao, apoio, corregao). A propésito, é ai que se deve situar bem a inspiracdo biblica: nesse aqui e agora concretos. A Formgeschichte ou critica das formas interessa-se pelo tipo de situagdo que deu origem ao uso de determinada forma literé ria, ou seja, a chamada “situayaée ou cuntexto vital” (Siz im Leben). Assim 0 expressou RK. Bultmann, 0 exegeta mais influente em nosso século: “A compreensdao precisa da critica das formas baseia-se na opi- niao de que a literatura pela qual uma cumuuidade, inclusive a primitiva comunidade crista, Lumou forma, brota de condigées e nevessidades muito cuncretas da vida, da qual se furja um estilo bem definido, com formas e calegorias bem especificas... O Sitz im Leben nao é, porém, um acontecimento hisléricu particu- lar, mas uma situacao tipica ou ocupagao na vida de uma comu- nidade.”"* Todavia, a situagdo vital, sobre a qual, a partir de Bultmann em diante, se concentrou a atengao, foi quase exclusivamente a interna 4 comunidade mesma (e essa entendida desde seu aspec- to religioso): pregagao, pardnese, eatequese, polémicas ete. Ou soja, o que se buscava determinar era a situagao na vida religiosa, to- talmente separada do conjunto de situagdes mais amplas que em grande medida determinaram o estilo de vida das pessoas que viviam na grande comunidade humana de Ffeso, Roma ou Antio- quia." A palavra “vida” (Leber) foi inconscicntementc reduzida a dimensao religiosa, numa espécie de docetismo, devido 4 concen- tragdo quase obsessiva sobre a teologia e a fé expressas nos tex- tos; o que acarretou o esquecimento da vida real subjacente a essa teologia e fé, vida que em grande medida deu aos textos a forma e » The history of the synoptic tradition, Oxford, 1968, 4. ‘4 [sso ja tinha observado também G. Theissen em seus Estudios de sociologia del cristianismo primitivo, 14. 19 a acentuagdo que possuem. Esse aspecto é muito claro nos estu- dos exegéticos de Bultmann, especialmente em sua interpretacéo existencialista (heideggeriana) que justamente foi criticada por Dorothee Sille como falta du realism e de cousciéncia social.* ‘Toda a atengao se concentrava no proprio texto, isolado do contex- to ao qual respondia, e no autor do texto, o homem, igualmente isolado da contexta em que vivia humanamente. Como acertada- mente afirmou J. Z. Smith, “temos sido cativados por uma descrigdéo de um Sitz im Leben que carece de ‘assento’ concreto (isto é, ndo-teolégico) e sd oferece a mais abstrata compreensao de ‘vida’ ”.! O método de estudo exegético que se impés, chamado “histé- rien-critien”, eam todos os grandes acertos que tem, concentrou a atengdo no estudo literdrio do texto e numa visdo critica da su- pusla histéria narrada pelo mesmo, entendida como historia fatual, ou seja, 0 que sucedeu realmente. E certo que havia interesse em conhecer o contexto politico e os costumes da época. Mas, uma ver mais, estes foram tratados como dados sem importancia c igno rou-se a dimensao social e mais ainda a econémica. Como ja indi- quei, é verdade que alguns estudiosos mostraram interesse por esses aspectos em seus estudos sobre o Antigo Testamento, ou sobre 0 mundo de Jesus de Nazaré, na linha de J. Jeremias. Mas, com algumas notdveis execgdcs, néo sc tomou cm consideragao séria o mundo real no qual viveram vs autores dos escritos neotestamentdrios e as comunidades para as quais escreveram. E, quando se busca a razdo ou causa pela qual se escreveu o que lemos neste ou naquele texto biblico, pensa-se quase exclusiva- mentc (cxceto quando é demais ébvic) em termos teuldgicus ¢ em alguma situagéo vital religiosa da vida interna da comunidade (esta também entendida em termos religiosos). Ou seja, os enfo- ques agora considerados como classiens pela maioria dissociaram inconscientemente texto, comunidade c mundo. Essa dissociagéo € mais dbvia ainda va exegese estruturalista, que se interessa ® D. Sélle, Teologia politica, Salamanca, 1969. ‘©The social description”, £9, 20 unica e exclusivamente pelo texto em seu estado atual, isolado de todo contexto que nao seja o literdrio,"” Duas observagées adicionais. Por um lado, antes de sc redi- gir o primeiro dos escritos que constituem u Nuvu Teslamento, 0 cristianismo existiu como realidade vivencial. Nao foram os escri- tos do Novo Testamento que deram inicialmente forma a0 cristia- nismo, mas ao contrario. De mais a mais, os escritos do Novo Tes- tamento foram compostos a partir de um presente e para um pre- seule, a partir de uu crislianismo real e concreto e para comuni- dades concretas.'* O acontecimento Jesus Cristo foi atualizado, de modo que se testemunhava hoje o Jesus de ontem, nao camo alguém que falou e agiu no passado, mas falando e agindo no pre- sentc... o aqui e agora do redator e de seu auditério. Nao um Je- sus da recordagéo, mas um Jesus vivo aqui e agora. Por outro lado, os estudos realizados a partir da perspectiva da comunica- cdo manifestaram que a relacdo emissar-receptor implica levar a sério o mundo real de cada um deles, incluindo 0 socioeconémico em que viviam. De fato, os estudus linyiiistico-comunicatives dos textos biblicos foram se aproximando pouco a pouco dos estudos sociolégicos dos mesmos. Em certos meios se saiu da leitura ex- clusivamente intertextnal para fixar a atencdo numa leitura his- t6rico-sociolégica, além da teolégica, que considera o texto como um testermunho da {é vivida de forma concreta em momentos, lu- gares, circunstancias e condicionamentos concretos. Além das razées mencionadas, ha outras pelas quais nao se prestou a devida atengao a dimensao socioeconémica da situagio vital que foi parte integral da formagao dos textus biblicos. Os estudos bfblicos foram dominados particularmente pelas posigdes e opinides dos eruditos alemdes, herdeiros de uma visao idealista da realidade que ainda perdura. Com efeito, foram as diferentes * A literatura sobre esse enfoque é vasta e facil de encontrar. Vaja-se a critica, por exciuplu, eur W. Egger, Mezhodentehre 2um Neuen Testament, Friburgo, 1987, 30, n. 4. notério quo o método cstruturalista de interpretagao de textos comeyuu v se deseuvolveu particularmente na Franca qnase ao mesmo tempo que surgia outro enfoquo, um enfoque antes socioldgico, desenvolvido em outro continente: os Estados Unidos. ' Veja-se particularmente a coleténea de estudos de H. Frankenmille, Biblische Handlungsweisungen, Mainz, 1983. ai correntes filoséficas que marcaram em grande medida o rumo para os estudos humanisticos em geral; uma determinada filosofia sem- pre foi o pressuposto com que se operou. Nao farei a histéria dos vaivens da exegese bfblica ou das ciéncias afins, mas cabe desta- car a grande influéncia que durante varias décadas ao longo do segundo terco de nosso século exerceu a leitura e interpretacdo existencialista, proposta e praticada por R. Bultmann e seus dis- cipulos: trata-se de leitura individualista, que se concentra em minha decisao de fé e em minha obediéncia a Palavra de Deus dirigida a mim, entendida como relagao vertical, que ignora (ou ao menos minimiza) as dimensées horizontais da vida. Conse- qientemente, essa leitura deixa de lado toda preocupagao pelas dimensées concretas da vida humana, como a politica e a socioeconémica; apesar de seu discurso acerca da importancia do Sitz im Leben dos textos, ignora as implicacées sociais da Palavra de Neus (a justifiengda pelo. fé era o conceita central; nenhuma palavra se dizia sobre justiga social). Acresce a isso outro fator: a iucumpreenusao da natureza dos proprios evangelhos, que se desdobrou paulatinamente em torno da discussao sobre o Je- sus histérico em meados do século. Enquanto os evangelhos foram tomados como histérias de Jesus, e enquanta toda a aten- go sc concentrava nos textos cm si mesmos, nao sc prestou atengao av mundo do evangelista. Quando muilo v inleresse se fixou na patria de Jesus de Nazaré e no mundo de sao Paulo. Era de pouco interesse conhecer as condicées socioeconémicas de uma comunidade em relagao com determinado evangelho, enquanto nao se reconhecesse que esse constituia um testemu- nho da fé vivida num aqui e agora concretos, dentro de uma comunidade humana mais englobante, e na trama de uma série de condicionamentos. O terceiro fator que explica a falta de interesse pelas di- mensdes sociais e econémicas foi — e continua sendo em alto grau — a excessiva preocupacao de corte fundamentalista pela historicidade dos relatos na Biblia, que foi acompanhado pela febre pelos descobrimentos arqueolégicos, para sustentar a tese da total veracidade (inerr4ncia) e, portanto, confiabilidade da Biblia. Esse fator esta irmanado com uma concepgaéo ingénua da 22 Biblia como “a Palavra de Deus para mim” em sentido estrito, de tal modo que néo tem nenhuma importancia conhecer 0 mun- do em que um dia foi hamanamente formulada nem (0 que ain da é mais grave) as eveuluais siluayoes pulilicas, suciais, econd- micas e afins, que puderam determiné-la. Segundo isso, a inspi- ragao biblica seria uma espécie de pocdo magica que protege o escritor sagrado de todo contagio histérico e cultural que pudes- se distorcer o carater absoluto dessa Palavra de Deus. Esse enfoque sustenta que sua palavra no foi historicamente encar- nada nem condicionada; trata-se de pressuposto filoséfico, e nao teolégico. O ESTUDO DA REALIDADE SOCIAL BE ECONOMICA DO MUNDO DO NOVO TESTAMENTO Com essa falta de interesse de conhecer a situagao real e con- creta em que viveram tanto o autor biblico como sua comunidade, nda se podiam esperar estudos sacioldgicos (e menos ainda econd- micos) dessc mundo. Nao havia razdo aparente que levasse a fazé- los, a nao ser a curiosidade arqueolégica. E nao se superara isso enquanto se estiver exclusivamente preocupado pela imediata validez da mensagem do texto como tal.'® Nao 6 de estranhar que nos diciondrios © enciclopédias da Biblia se busquem em vo seccdes dedicadas a conceitos e reali- dades socioldgicas: familia, mae, diarista, pobreza, escravidao, cidadania, profissées, aristocracia, associagées etc. Inclusive em publicagées dedicadas A apresentagao do meio ambiente da Bi- blia ou dos infcios do cristianismo, néo passam de umas poucas paginas as dedicadas ao aspecto social e econémico. Assim, EF. Lohse, em seu livro Umwelt des Neuen Testaments (Gottingen, 1980, 5? ed.), mal Ihe dedica espaco. A mesma coisa acontece no livro informativo de S, Freyne, The world of the New Testament 19 Uma simples mas ampla apresentagin das diversas angulos a partir dos quais se interpreta hoje a Biblia encontra-se em V. Hochgrebe — H. Meesmann (orgs.), Warum. versteht ihr meine Bibel nicht?, Friburgo, 1989. Cf. também a revista Concifium, nm. 158 (1980), 23 (Wilmington, 1980), e a secgao que J. Giblet dedicou ao mundo helenistico e romano na famosa Infroducdo critica ao Novo Testa- mento (Barcelona, 1986), editada por A. George o P. Grelot (me- aus de duas pdginas). Na mais recente ¢ ampla Ind:uduydu uo Novo Testamento “no marco da historia das religides e das cultu- ras no tempo helenistico e romano” (Salamanca, 1989), escrita por H. Koester, apesar de sen enfoque e subtitulo, surpreende quc mal dedique ao aspecto sociocconémico umas quantas pince- ladas nas quais se mesclain tragos de diferentes tempus e luga- res. Koester 6 muito mais extenso no que se refere ao periodo helenistico anterior ao cristianismo (um par de séculos), dando a impressao de que nao houve diferencas para com os séculos ante- riores. Um pouco mais amplo é J. Leipoldt e W. Grundmann (eds.), em O mundo do Novo Testamento, vol. I (Madri, 1973), que, toda- via, fica mais no mundo das idéias que no das realidades sociais. Obras como as deJ. Finegan, The Archeology of the New Testament. The Mediterranean world of the early Christian apostles (Boulder- Londres, 1981) concentram-se nos restos arqueoldgicos e dados histéricos, mas nao oferecem dados sobre a situagao social e eco- némica que se desprende desses vestigios. Apesar de seus titulos, estudos como os de E. Lohmeyer, Soziale Fragen im Urchristentum (Leipzig, 1921) e de J. Leipoldt, Der soziale Gedanhen in der altchristilichen Kirche, (Leipzig, 1952), uéo passam de oferla de umas poucas pinceladas sobre a realidade social, ficando presos uma vez mais no mundo das idéais daquela época sem descer a erua realidade da vida nesse tempo. Foram basicamente duas correntes de pensamento social que levaram os estudiosos a interessar-se seriamente pela realidade social e econémica da antiguidade em relagao com os estudos bi- blicos. Uma foi a corrente socialista do primeiro terco de nosso século na Europa (E. Troeltsch, L. Ragaz, K. Kautsky, H. Freissig); a outra surgiu quase ao mesmo tempo entre um grupo de estu- diosos que constituiu o que se chamou de “Escola de Chicago” (S. J. Case, S. Matthews, F. Grant, L. Wallis). Certo namero de estadunidenses a partir da década de sessenta retomau a fia da “Escola de Chicago” (J. G. Gager, H. C. Kee, A. Malherbe, W. A. Meeks, N. K. Gottwald), aos quais se deve acrescentar os nomes 24 de G. Theissen na Alemanha e E, A. Judge na Australia.” Obser- vando-se as épocas em que surgiram estudos sociolégicos relati- vos A Biblia, cair-se-A em conta de que enincidem com momentos em que houve grande preocupagao de ordem social. Uma vez mais, a situayau wu vide delerminou a concenLragao da alengao na rea- lidade que exigia urgente resposta nesse momento. Um dos problemas que venho observando em minhas leitu- ras 6 o descuide que se sente para com as coordenadas espacio- temporais da informagao manejada. Assim, com toda tranquili- dade se fala da escravidao “na antiguidade” como se tivessem sido iguais as condigdes em que viviam os escravos em Roma, Atenas e Alexandria, ou nos tempos da Republica e do Principado. K ilustrativa disso a Harper’s encyclopedia of Bible life (ed. revista, Nova York, 1978), yue divide sua ubra Lema licammenle assim: “How the people of the Bible (=?) lived/worked/etc.” nivelando todos os momentos como se as condigdes de vida sob Salomao tivessem sido iguais as condigées sob os persas ou os gregos. Em resumo, fala-se do “povo da Biblia”, nos “tempos biblicos”, como se fossem blocos uniformes e monoliticos. Pelo que expusemos até aqui, ha de ficar claro que nao sé se justifica mas também é necessdrio procurar conhecer o melhor pos- sivel as condigées sociais e econémicas relacionadas com o mundo dos diversos autores biblicos. Para poder compreender o alcance e os possiveis limites daquilo que determinado autor biblico (ou a tradicao de que foi herdeiro) expés, e ainda para compreender o que quis dizer e a razAo pela qual a disse (aquila a que respondia), € nceessdrio conhcecr scu mundo conercto, humang, real, que é 0 que em boa medida determinou sua visa dv mundy, seu horizonte conceitual acerca do mundo em que viviam ele e aqueles com quem se comunicava. Recordemos que a inspiracdo divina nao subtraiuo autor desse mundo, mas que se deu nele e para ele, como Jesus Cristo que se encarnou num mundo concreto. Esses velhos textos foram Palavra de Deus imediata e viva nesse mundo em que foram compostos e ao qual se dirigiram; para que o sejam para nos é preciso * Uma boa sintese se encontrara na coletanea de artigos reunidos por W. A. Meeks em Zur Suzivlogie des Urchristentums, Muuique, 1979 (euin bitslingrafia). 25 comegar por compreendé-los em seu mundo. Do contrario, corre- mos 0 risco de interpretd-los mal, de projetar nossa visio da mun- do como sc fosse idéntica 4 dos autores dos textos. Repetidas vezes se vbjeluu que um estudo, seja social, seja sociologico, da Biblia é “redutor”, que marginaliza o elemento da Revelacao e descarta 0 sobrenatural para reduzir tudo a causas e conseqiténcias de ordem sociolégica ¢ antropolégica. Isso é certo se nos limitarmos a esse enfoque, como se observa nas publica- goes dos autores socialistas e liberais sobre as origens do cristia- nismo. Mas igualmente “redutor” seria o estudo que se limitasse ao enfoque teolégico. Como se advertiu repetidas vezes, nao levar em conta as dimensées humanas das crigens do cristianismo c dos escritos neolestamentarivs equivale a cair numa espécie de docetismo.*! Sempre que um estudo da Hiblia se concentrar no mundo das idéias (teologia) e se esquecer das realidades mate- riais e afetivas, dissociando 0 espiritual do material, corre risco de cair no dualismo. Em outras palavras: uma leitura e interpre- tagao integral da Biblia deve levar em conta tanto seu aspecto teoldégico como seu aspecto humano (que é insepardvel do aspecto social, do econémico e do politico). Para se poder compreender e interpretar corretamente um texto, é preciso situa-lo na trama de seus diversos contextos.”” Infelizmente, o estudo sociologico, assim como 0 estudo sécio- histérico, da Biblia, sobretudo do Novo Testamento, passou com freqiiéncia pela suspeita de ser herético, sendo, portanto, dene- grido ou simplesmentc ignorado. Observa-se isso onde ainda sub- sislem restos du idealismo filoséfico, como na exegese alemé, ou onde 0 preconceito teolégico e dogmatico é dominante. Em ultima instancia, tudo dependera do conceito que se tenha da prépria Biblia. Se ela é definida pondo énfase em sua condicdo de Palavra de Deus, acentuar-se-Ao seus aspectos teolégicos e se falaré dos diversos “sentidos” mais que literais no texto biblico. Se se consi- 2 Cf R. Aguirre, “El métado ancioligien”, 330, e WA. Meeks, Primeres cristianos, 22. » Neste sentido fizeram-se repetidas adverténcias. Cf., por exemplo, A. Malherbe. Social aspects, 11-20; J. Gager, Kingdom and community, 3-9, W. A. Meeks, Primeros cristianos, 10ss, ¢ ja antes K. A. Judge, Social pattern, 7-10. 26 dera a Palavra de Deus em palavras de homens, dependera do que se entender por “homens”; se forem vistos como individuos ou como corpo social, em abstrato ou em sua situagdo e condiciona- ientos histéricos, O enfoque sociolégico ou o sécio-histérico no estudo da Bi- pblia, incluida a dimenso econémica, nao significa necessariamente que se menospreze ou inclusive que se descarte a contribuigdo histérico-critica da exegese tradicional. Trata-se, ao invés, antes de um complements da exegese historivu-critica, yue busca dar justo valor ao aspecto social do “historico”. O enfoque socielégico da Biblia nao significa a fortiori que se ignorem seus aspectos teolagiens ou que se considerem esses se- eundérios. Ac contrério, foi a execssiva concentragaéo no aspecto teoldgico que conduziu a um idealism yue se desinleressuu pelo mundo real em que o homem como ser humano tem que viver, ou seja, do mundo social. Esse procedimente desligou 0 homem do mundo concreto em que vive e se move, e é contrario ao que se lé tanto no Antigo como no Novo Testamento, c nao menos a ativida de de Jesus, que se orientava inteiramente para o homer inte- gral, a tim de conduzi-lo a Deus mediante o amor ao proximo preci- samente por amor a Deus. Jesus deixou como tinico mandato o amor ao préximo, inseparavel do amor de Deus e expressao da autenticidade do mesmo. A atitude idealista perante a Biblia faz com que se ignorem aspectos referentes a justica social e que, sobretudo no chamado Primeiro Mundo, a atengao se concentre quase obsessivamente nos aspectos teolégicos, entendidos como mundo das idéias. A ig- norancia da dimensao socia! inerente aos textos biblicos fez com que estes servissem (e ainda servem em setores conservadores e fundamentalistas) de “6pio do povo” e que se intelectualizassem, e assim se reduziu também a exegese biblica a uma espécie de aventura intelectual desligada das realidades sociais ¢ afctivas, para ndo dizer que a prépria fé se converteu para muitos em ideo- logia, como se observa em certos grupos hoje, particularmente da “direita” conservadora (\). A prcocupacao social jé estava claramente presente nos pro- fetas, que, para surpresa minha, recvebe na Alemanha muito me- 27 nos atencao do que em outras partes do Antigo Testamento, como o Pentateuco ¢ os escritos sapienciais. Encontra-se também em Jesus: em sua marcada opgao preferencial pelos pobres e margi- nalizados, vidvas e indefesos, em todo seu projetu de uriar um mundo de irm4os sem barreiras, em sua apresentagao do “reina- do de Deus” ao alcance dos homens ja desde agora. Prolongou-se essa preocupacdo na igreja nascente, como testemunham os es- critos neotestamentarios, que nao pretendcram (nem sequer Ro- mauus € Hebreus) ser braladus Leolégicus, mas orientagoes para a vida cristé naquele mundo concreto em que viviam, com todas suas vicissitudes. O mesmo se observa em bom nimero de escri- tos dos Padres da Igreja. Ao se refletir sobre a origem do cristianismo, costuma-se fa- zer infelizmente dentro da matriz da historia das idéias, ou seja, enfoca-se sua origem teolégica (por exemplo, o papel do Espirito Santo) e teleolégica (por exemplo, no esquema “histéria da salva- ¢4o”), mas poucas vezes se insere seu cardter de movimento so- cial. E é notério que se costuma conceder puuca importancia aos evangelhos ao se estudarem a origem e a evolugéo da igreja; a concentracaéo costuma estar nos Atos dos Apéstolos e nas cartas, especialmente as paulinas. F, quando se recorre aos evangelhos, costuma ser para buscar uma suposta intengéo fundadora (da igre- ja) da parte de Jesus de Nazaré, destacando textos sobre o prima- do de Pedro, por exemplo, como se Jesus se tivesse proposto fun- dar uma nova “seita”. Com justa razdo R. Scroggs punha sobre 0 tapete uma série de perguntas que s4o com efeito dasafios: “Nao se deveria dar mais peso ao material sindtico (por exemplo, o marcado protesto contra as riquezas), ainda que ndo reflita o mes- mo contexto urbano helenistico das cartas paulinas? Os sinéticos certamente falam para setores importantes da igreja do século I e em sua forma final ndo refletem necessariamente apenas um mar- co rural”. 28 “The cocial interpretation”, 170, Em scu artigo “Social identity”, B.A. Judge retu- mou essas perguntas de Sernggs @ respondeu com uma adverténcia: “Esea objesan baceia se no pressuposto de que os contetidos dos evangelhos foram configurados pelos interesses das comunidades para as quais foram compostos. Por isso, se os evangelhos condenam a riqueza, isso supde uma comunidade que néo a tem. Mas basta recordar Séneca para Tecoulwver u capacidude dos acomodados e instrufdos de admirar as eriticas da filosofia 28 Em seu livro Os primeiros cristdos urbanos, W, A. Meeks as- sinala: “Até ha pouco tempo, os arquedlogos classicos creram mais razoa- vel a recuperacao de monumentos famosos e mais rentavel o desco- brimento de mosaicos do que as escavacdes sistematicas de bairros residenciais ou industriais, e os historiadores politicos e militares da antiguidade foram muito mais numerosos que os historiadores sociais. Por isso nos falta um quadro, nao ja geral, mas detalhado, da vida citadina das provincias do século |, onde poder inserir nos- sas escassas pecas soltas cristas. Possuimos apenas uma série de fatos aleatorios e de descrigdes fragmentarias, a que podemos acres- centar uns poucos detalhes” (p. 54). Pois bem, as paginas que seguem apontam precisamente nes- sa direcdo. O enfoque e o interesse deste estudo saa primardial- mente histérico-descritivos, e nAo sociolégicos. E estudo de pes- quisa histérica acerca das condigées sociais e da situagdo econ6- mica, que praticamente se limita a coletar dados e situd-los correspondentemente na trama da vida de entéo. Como resulta- do, apresento “o quadra da vida” das eidades da Asia Menor no século I, no qual deveriam se encaixar “nossas pcgas soltas” do cristianismo primitivo. Iusislu: esle estudo nao é sociolégico, ou seja, nao pretende analisar as causas subjacentes das estruturas dessa sociedade mencicnada e os dinamismos que explicam os diversns fendmenos sociais, suas interrelagées e tensdos, ainda que no final de contas nos interesse determinar as causas ime- diatas que moveram autores como Lucas a escrever com tanta insisténcia sobre a relacdo pobreza-riqueza, que é uma relacao de cardter socioeconémico.™* enquanto estavam comodamente a ealvo de suas conseqiténcias. Néo se teria que admitir também a possibilidade que o compilador evangélien fosse severamante eriticn perante 0 uso da riqueza entre aqueles para os qucis escreveu (cf. a carta de Tiago)?” (p. 208; 0 italico é meu), Estou de acerdo com a segunda metade da resposta de Judge (exceto com a pseudodefinigao do evangelista como “compilador”), mas ndo com a primeira: a condena- s40 da riquesn udu mecessuriumence wean que ser v resultado de uma suposta condigao de pobreza da comunidade; no poderia ser, por exemplo, devido a invcjas ou impoténcia ou ressentimento, ou inclusive vinganca? * Ainda que este estudo se proponha ser fundamentalmente de carater histérico e nao sociolégico, ndo significa que néo se interpretem certos dados. Isso é inevitavel e disso estou consciente. oda historia é uma interpretagdo de fatos e dados. Uma boa discusséo 29 As fontes a que recorri, como se podera observar na biblio- grafia e nas notas an pé da pagina, foram substancialmente os numerosos estudos ja rcalizados por diversos especialistas e eru- ditos sobre os aspectos que nus inleressam e¢ deulro dus limites em que nos movemos: as condicdes socioeconémicas na Asia Me- nor e na segunda metade do século I d.C. Apoio-me, pois, funda- mentalmente nos trabalhos de outros autores que merecem mi- nha confianga e contribuem com o que dificilmente poderia obter dentro de meus limites de tempo e conhecimentos. Também me baseio nos dados arqueolégicos pertinentes e nos escritos de auto- res da épaca Este nao é cstudo sociolégico no sentido estrito do termo. Nao recorro a modelos sucioldgicus para inlerpretar as condigoes so- ciais e econdmicas e sua influéncia sobre a vida das pessoas. Nao recorro a modelos ou teorias sociolégicas porque, entre outras ra- z6es, tenho reparo a respeito. Por um lado, os modelos sociolégi- cos sdo construgées ocidentais e modernas, estruturas conccituais baseadas em observacées e deducées, mas realizadas no Ocidente de hoje, em relacéo com culturas e idiossincrasias de hoje, com a supasigdo de que “enquanto o homem for homem’”, as “leis sociais” devem ter sido sempre andJogas as nossas. Ou seja, passa-se & indugav quase a fortiori.2* Os pressupostos (Vorverstdndnisse) fi- los6ficos, antropoldgicos e outros sao inevitaveis e se entretecem com os modelos sociolégicos.* Por outro lado, os modelos e as teo- rias sociolégicas costumam universalizar-se, pelo que nfo levam devidamente em conta as particularidades de determinada época e sociedade. Nao sé isso, mas também ndo pedem levar em conta as particularidades da personalidade e idiossincrasia dos indivi- duos deste mundo, muito diferente do nosso. Nos modelos sociolé- gicos costuma-se partir de situagées idilicas, como os problemas dus manuais de fisica. Essa maneira de proceder, colocando as da relagao e das diferengas entre historia e sociclogia, aplicada aos tempus bfblivus, encon- trar-se-4 no artigo de R. Aguirre, “El método socioldgico”, 313-324. Cf. B.A Judge, “The social identity of the first Christians”; B.4. Malina, “The social sciences and the biblical interpretation”, e C. S. Rodd, “On applying a sociological theory to biblical studies”, em Journaé for the study of the Old Testament 19 (1981) 95-106. 28 Cf, W. A. Meeks, Primeros cristianos, 16, e K. R. Bradley, Slaves, 13. 30 pessoas ou a sociedade em molde preestabelecido (ainda que seja por dedugao), é freqiiente. Esse mesmo fendmeno observa-se hoje, por exemplo, quando, a partir de um decreto, se quer regular a vida para todo mundo e se espera a imesina imaneira de reagir em qualquer sociedade, seja na Asia, seja na Europa, como se se tra- tasse de robés. Uma tltima e quase supérflua observacao. Este trabalho con- centra-se num tempo c numa regiao concretos: a Asia Menor, em sua coslu ucidental (egéia), na segunda metade do séc. I d.C. Pois bem, a tentagdo de projetar a informacao (abundante) que possui- mos sobre as condicées sociais e econémicas vigentes no Fgita on em Roma em particular é muito grande e a ela sucumbiram, a meu ver, muitos estudiosos. Nada nos permite supor que as con- digodes de vida fossem idénticas ai e na Asia Menor. 'l'udo pelo contrario. A Asia Menor era regiao marcadamente diferente de Roma ou do Egito por seu carater e idiossincrasia; a Asia Menor estava muito mais perte da Grécia. Isso ficard claro ao se estudar a situagéo geoyrdafica e as condigdes naturais da regiao. Um estu- do de sua historia (que nao é nosso tema) o ilustra de sobra. Mas, como é natural, encontrar-se-40 muitos tracos comuns entre cer- tas instituigdes e situagdes da Asia Menor e de outras partes do império, particularmente da Grécia. Também é grande a tenta- ao de projetar o que conhecemos acerca de uma época sobre ou- tra, por exemplo, da Grécia classica sobre o tempo que nos ocupa, como se a passagem do tempo nao tivesse acarretado mudanecas significativas. Um giro importante sob muitos aspectos se deu a partir do Principado romany, a partir de Julio César, e ainda mais claramente a partir do imperador Augusto; meio século depois ja se fazia manifesto: a pax romana, as facilidades que deram lugar a grande mobilidade das povoagées, novas influéncias culturais e idcolégicas, expansdes comerciais... A Asia Menor nao era Roma, Atenas ou Alexandria, nem a segunda metade do século I d.C. era igual ao século anterior ou ao posterior. 31 DESCRICAO DAS CONDICOES SOCIOECONOMICAS NUMA CIDADE “TIPICA” DA ASIA MENOR NA SEGUNDA METADE DO SECULO PRIMEIRO DEPOIS DE CRISTO Este titulo exige varios esclarecimentos. Em primeiro lugar, trata-se de descrigdo. Portanto, ndo me deterei em pormenores e particularidades, que se poderao achar nas obras viladas nas no- tas ao pé da pagina, que por essa razdo sao bastante numerosas. Em contraste com muitos dos estudos eruditos sobre a situagdo socioeconémica (e politica, entre outras) da antiguidade, o leitor deste estudo nao encontrara exemplos concretos deste ou daquele aspecto da vida de entao. Os exemplos sao préprios de um mo- mento ou de um lugar especificos, e nao se podem transferir glo- balmente a outro momento e/ou lugar porque costumam ilustrar 9 que do era comum, 0 que era diferente do ordinario (e por isso chamou a atengdo), ainda que, por isso, sejam até certo ponto ilustrativos. De mais a mais, com base em alguns exemplos, nao se pode nem se deve generalizar, tendéncia que com freqiiéncia ocerre cm muitos cstudos. As descrigdes, que constituem o tema desse estudo, so préprias do que se poderia considerar como uma situagéo “comum” ou um costume normal, sao 0 resultado de um Pprocesso dedutivo sustentado por intimeros testemunhos. O lei- tor também nao encontrardé abundantes citacdes de fontes litera- rias daquela época que apdiem minhas afirmagées. Isso obedece ao simples fato de que, por um lado, trata-se de descrigées breves, sucintas, nao de um estudv dedicado a demonstrar 0 que outros ja puseram em evidéncia com todo o luxo de detalhes. E, por outro Jado, confio nos trabalhos minuciosos que muitos autores publi- caram. A eles remeterei com freqiiéncia o leitor interessado nos fundamentos eruditos de minhas afirmagées. Apoio-me, pois, em muitos c importantes estudos. 33 Essas paginas nao passam de esbogo, pois estou consciente das limitagées de toda visao panor4mica como esta e de que a situagao e os costumes nem sempre eram idénticos numa cidade e em outra, num tempo e em outro. Com efeito, as condigées de vida eram diferentes em muitos aspectos na costa ocidental da Asia Menor e na zona central, na cidade de Efeso e na regiao da Galdcia, por cxemplo, como o cram também na Galiléia e na Judéia, ou nos tempus de Herudes Mayuo e nos tempos dos procu- radores romanos mais tarde, apesar de sequer se ter transcorrido um século. Obviamente, em muitos aspectos sociais e econdmicos nado se detectavam grandes diferengas, como podera comprovar qualquer que conhega as condigées de vida nas diversas partes do império romano. Em outras palavras, nem todos os aspectos da vida eram sempre e em todas as partes idénticos.' Fstudarei aqui o aspecto socioeconémico. A situagao politica foi, com cfcito, bastante estavel, sem grandes perturhagies politi- cas (ou militares) durante o século I d.C. O que sem divida aju- dou o livre intercAambio em todo o império. O aspecto religioso desempenhou por sua vez indubitavelmente papel importante nessa época, tendo sido uma das grandes realidades com que se confrontou a nova religiao que era o cristianismo. O aspecto reli gioso, assim como o politico, foi estudado com freqiiéncia; nao as- sim 0 aspecto socioeconémico, bastante ignorado na exegese (es- pecialmente neotestamentdria), apesar de ter tido muito mais relevancia que a que se lhe reconhecia, pois determinava a vida cotidiana das pessoas de maneira direta e imediata — ontem as- sim como hoje — e foi muitas vezes fator determinante na expan- sdo e formacao do cristianismo. Os aspectos social e econédmico estavam tao intimamente relacionados (assim como hoje) que de ordinério os mencionarei como se tratassc de uma sé realidade. 1W. A. Meeks (o.c., 33s) chama acertadamente a atencdo para o fato de que as cidades do império romano oriental eram semelhantes em muitos aspectos, ¢ de que muttos costu- mes, 4 organizagao e a arte, por exemplo, se asseimelhavain bastante, syja eu Tarsu, seja em Alexandria ou em Corinto. Is20, obviomente, nao signifiea que cram idénticas em tudo, pais cada cidade preservava snas pecnliaridades. D.C. Verner (The household, 43) frisou com razdo que “nao se pode dar por concedidg que o que era verdade da sociedade romana também o fosse de cidades como Pérgamo e Efeso”. 34 Era sobretudo nesses campos, o social e 0 econémico, além do pro- priamente religiaso, onde as atitudes do cristianismo, e a ética em geral, tinham que sc definir claramente, como é facil perceber nos escritos do Novo Testamento. Estou consciente também de que, em sentido estrito, nao exis- te “uma cidade tfpica”, sobretudo quando se trata de uma regio como a Asia Menor, com tantas diferengas devidas a sua histéria e a existéncia de uma multiplicidade de pequenos reinos, diversi- dade de racas e variedade de idiossincrasias. No entanto, como teremos ocasiao de observar mais adiante, as diferentes cidades da Asia Menor assemelhavam-se muito umas As outras conforme se avangava ao longo do séc. I de nossa era, particularmente a0 longo da costa, desde os tempos de Augusto, e mais ainda depois. Havia notavel unidade politica (dominagao romana, precedida por tendéncias unificadoras na corrente cultural helenistica), que acar- retava crescente unificagan econémica e decrescente diferencia- go cultural, tal como os trabalhos arqucoldgicos ¢ os estudos lite- rarios e afins puseram em evidéuvia. Os padrées socioeconémicos eram semeihantes em quase todas as cidades da Asia Menor, e mais além. Sendo assim, as estruturas sociais, as condigées de vida e os costumes, que vou descrever, correspondem mais ou menos 4s das cidades onde viviam muitas das comunidades paulinas, ¢ as de Lucas, Teofilo e Joao. Desde muito tempo ficou demonstrado que essas eram comunidades urbanas, estabelecidas em cidades, e nao em povoados, aldeias ou vilas, ou no campo. As grandes cidades eram em sua maioria costeiras por 6bvi- as razées de cardter econémice (Corinto, Efeso, Tarso, Atenas etc. Visto que o intercAmbio, sobretudo por razées comerciais, era muito facil nesse tempo, paulatinamente as grandes cidades chegaram a compartilhar de muitos tragos que as assemelhavam umas as outras. Nao creio que, se um morador de uma dessas cidades do mundo oriental do impériv rumano, ¢ mais ainda da costa na Asia Menor, fosse a outra cidade da regido, sentiria que entrava em mundo que lhe fosse estranho: a configuracao e os tipos dos edifi- cios, a organizacdo e a administracdo, as estruturas socioeco- némicas e a maioria dos costumes eram basicamente i iguais as de sua cidade de origem, ainda que obviamente nao idénticas. B cla- 35 ro que, dependendo de para onde fosse, podia encontrar-se com outro idioma (além do comum a todos, 0 grego) e com outras divin- dades, além dos costumes e das celebragées proprios do lugar. H4 um esclarecimento importante a fazer, sobre 0 gual cha- maram a atengao varios estudiosos: 0 significado ea extensao da realidade que se designava com 0 termo polis, que traduzimos por “cidade”. Quando na antiguidade se falava de polis, tratava-se de um territério que constituia uma unidade politica com exlensao geogréfica limitada, dentro da qual se incluta a regido dedicada a agricultura e ao pastoreio (o campo), assim como 08 povoados ¢ as aldeias que estavam unidos ao centro politico-administrativo.? Em extensdo, uma polis costumava ser mais que uma cidade, endo se opunha ao campo, mas a cidade e o campo estavam unidos quanto ao aspecto administrative e econdmico. Todos os. povoados que estavam politica e administrativamente unidos, assim como 0s campos que lhes pertenciam, constituiam juntos uma. polis. Apolis tinha um centro administrativo, onde residiam os magistrados e estavam os edificios em torno dos quais se expressava a unidade dos cidadaos. Esse centro era chamado pelos romanos de urbs. Mas a polis nao se limitava a cssa “cidade”. Rara era a polis cons- tituida por um so povo, e mais ainda a que nao contasse com ter- ritério dedicado A agricultura e ao pastoreio. Para ser qualificada como polis, era necessdrio que tivesse um. minimo de auto-sufi- ciéncia econémica e de autonomia politica, eondigdo que os impe- radores romanos respeitaram durante varios séculos em quase todos os seus territérios. Devia contar, de mais a mais, com um governo formado por gente da polis, e seus habitantes deviam demonstrar claro senso de identidade e de orgulho por “sua cida- de”. Uma polis evidenciava sua categoria em suas edificagées e atividades. Logicamente, seus habitantes procuravam oembeleza- lac levar a cabo atividades espetaculares. Por isso Pausanias pode dizer que um povo que “nao tem edificios governamentais, nem teatro, nem agordé, nem 4gua que corra para 1ma fonte... ({e onde) a gente vive emi chogas”, nado se pode chamar de polis (X, 4.1). 2 Veja-se M. A. Finley, “Ancient city"; A. H. M. Jones, Roman economy, 4; D. Norr, “Herrschaftsstruktur”, 4. 36 Apesar de na antiguidade o termo polis incluir em sua cono- tac&o extenséo mais ampla que nosso termo “cidade”, concentrar- me-ei na prépria metrépole, ou seja, empregarei o termo “cidade” em ecu sentido modcrno, e em contraste com o campo. Sua carac- terizagav ucupar-nos-4 mais adiante. As descrigdes que seguem se limitam a Asia Menor, predomi- nantemente a regiao da costa ocidental (veja-se 9 mapa na pagi- na 98), na segunda metade do séc. I d.C.: trata-sc do mundo das comunidades para as quais Paulu, Lucas e Joao escreveram. Por- tanto, tratarei de evitar a tentagao de projetar a situacdo propria de outro periodo politico ou de outra realidade cultural sobre este. Assim, por exempla, 6 conhecido que as condigées de vida e os costumes na cidade de Roma eram claramente distintos dos que se davai nv lesle. Seria erroneo, pois, transferir para a Asia Menor 0 que sabemos do trato que se dava em Roma aos escravos, por exemplo. Igualmente erréneo seria projetar ao tempo dos impera- dores Flavios 0 que conhecemos sobre as condigées de vida cm tempo de Pompeu um século antes. Ainda que a vida de outrora decorresse em ritmo muitissimo mais lento que a nossa, ou seja, os costumes e a idiossincrasia sofriam menos mutagdes que as * Isso deixou claramente entrever W. Elliger em Paulus in. Griechenland, estudo de quatro cidades representativas: Filipos, Tessalénica, Atenas e Corinto. Em minhas leitu- Tas observei que amide se nivelam os diversos periodos ou tempos histéricos: passa-se alegremente de um seculu vu elupa 4 outro, em admiravel desordem, pensando talvez ingenuamente que todos eram mais ou menos iguais, que néo ocorriara maiores mudan- as sociais. Nem todos os estudos publieados distingnem elaramente o tempo da Grécia classica (Platao como representante para muitos) do helénico do século IV em diante, eda influéneia do império romano. Passa-se facilmente de Séerates para Platao e para Séneca; ede Roma para Antioquia e Alexandria. No séc. 1 d.C., por exemplo, a situagéo social ¢ 6 nivel eountmicu udu ers iguitis nos Lempos de Julio César aos do pertodo dos imperado- res Flavios (que 6 0 que noe concerne), ¢ depois no dos Antoninos. Foi tarefa nossa deter- minar nos diversos estudos especializados 0 qne cnrrespande propriamente ao perfodo que ‘os concerne ou dele se aproxima. O problema é o mesmo que se costuma observar nos estudos baseados nos escritos judaicos: aspectos proprios do judaismo rabinico posterior ao ano de 70 d.C. se transpSem e se projetam levianamente para a segunda metade do mesmo século cumo se praticumente nao tivesse havido mudanga alguma depois da des- truigao do Jorusalém ¢ da grande disperséo, Ou se tomam teatos da Misliul umu se automaticamente fossem testemunhos indiscutiveis de costumes de pelo menos um século antes, para ndo mencionar qualquer dos Talmudes. Sobre isso, cf. as acertadas observa- goes de G. Vermes, “Jewish literature and New Testament exegesis: reflexions on Methodology”, em Journal of Jewish Studies $3 (1982, FS Y. Yadin) 361-376, que mutatis mutandis se pudem aplicar em grande medida ao estudo que nos ocupa. 37 nossas de hoje; quando os meios de comunicagao social nos poem quase de imediato em contato com o resto do mundo, isso nado explica que ndo houvessc mudangas. Pensar que mal havia mu- dancas nas condigoes e modos de vida naqueles tempos €, a meu ver, suposicao intundada. Com efeito, determianados acontecimen- tos politicos, com seus mtltiplos impactos, podiam produzir mu- dangas notéveis na maneira de viver e, em conseqiiéncia, de pen- sar. Tais foram, por exemplo, a destruigéo de Jerusalém no ano de 70 d.U. para o judaismo, a dominagéo romana um séculu aules em todo o leste — como o tinham sido trés séculos antes as con- quistas de Alexandre Magno — e 0 inicio do governo dos impera- dores romanos, comegando por Augusto (no tempo em que nasceu Jesus de Nazaré). Meu enfoque é primordialmente pragmatico, ou seja, concen- trar-me-ei na descricdo das condigées de vida naquele tempo, de acordo com a informagdo que nos proporcionaram os restos ar- quevlégicos descobertes e os testemunhos litcrarios da época que se conservaram. Com isso quero advertir que nav é minha inten- do levar a cabo uma avaliacao sistemdtica daquele mundo. Tra- ta-se de uma histéria social (e econémica), e no de um estudo sociolégico da histéria, como ja antecipei na introdugao. Para terminar, devo dizer algo sobre as fontes literdrias. Es- tas séo muito vagas e parcas no que se refere ao nosso tema: pou- cas se referem diretamente as condicées socioeconémicas das cida- des da Asia Menor e arredores durante a segunda metade do séc. 1d.C. E preciso ler entre linhas ou extrapolar e avaliar cuidado- samente as diversas alusées que se podem encontrar.‘ A maioria das obras literérias foram, de mais a mais, escritas por intele- ctuais, filésofos ou personagens estranhos aos cendrios aos quais 4 Entre as fontes mencionadas por S. Benko em seu artigo “The sources of Roman history between 31 B. C. —A.D, 138”, em S. Benko e J. J. O'Rourke, The catacombs and the Colosseum, 27-34, 6 preciso destacar concretamente Técito, Flavio Josefo, Filon de Alexandria (para 0 Egito), Estrabao, Div Crisdstuuy © Pliniv, Jovem. Mais cautclose- mente, por ser posteriores ao tempo que nos ocupa, langam algo de luz Luciano de Samosata, Filéstrato o os satiricos Moreial ¢ Juvenal (ainda que se concentrem em Roma). Com certe- za, a esses testemunhos se devem acrescentar os dos papiros encontrados, ainda que a gran- de maioria provenha do Egito e se refira naturalmente & vida nessa parte do mundo. Mais proveitosas sio as inscrigées, inclusive a numismatica. 38 se referiam. Nav sav lestemunhos da imensa maioria, do “povo” (plebs), e menos ainda dos amplos setores indigentes da popula- 40, dos “sem-voz”, por exemple. Falavam antes — como nao dei- xou de ser certo na histéria universal — das grandes persona- gens, dos potentados, de governantes e generais.* Por razées de clareza, concentrar-me-ei sucessivamente nos dois aspectos que nos interessam: num primeiro momento, o enfoque serd predominantemente social e, num segundo, ecand- mico. __ * Devo advertir que € muito freydente encontrar estudes subre diversus aspectus dt vida no império romano bascados fundamentalmente om informagae obtida de papiros do Egito, como se a reslidade sociaecanémira ¢ as enstumes no Fiita tivessem sido as mesmas de outras partes do império. Isso obedece, pelo menos em parte, ao fata de possuirmos grande quantidade de papiros achados no Egito, gracas ao clima seco da regiao, que nos permitiu formar uma idéia bastante clara das condigées da vida af, ao passo que (infeliz- mnie) ndo possuimos nem sequer a vigésima parte desse material para tudo o que cobre a Ania Menor. Por isso conheecios muito sobre Alexandria ¢ Oxirinco, gragas avs papiros achasins, preringiasima fnnte de infarmagaa de primeira mo, mas naa tamos nada paraci, do Para o Oriente. R. MacMullen, um dos mais destacados estudiosos das condicées sacio- econdmicas no império romano, em seu estudo sobre o campesinato (“Peasants”, 253s, 260s), lamentava em tom triste a escassez desse tipo de informagao sobre a vida em outras partes do império, uma vez que os papiros provem de diversos estratos sociais e represen- tam produtos das mais diversas facetas da vida. 39 PRIMEIRA PARTE DESCRICAO O ASPECTO SOCIAL 1. CLASSES SOCIAIS? Advertiu-se muitas vezes que o termo “classe” no é acertado quando se emprega para referir-se a classificagdes ou cataloga- gées sociais da antiguidade.* O termo “classe” usa-se hoje predominantemente para referir- se ao nivel econémico, como o entendia Karl Marx, que dividiu a humanidade em duas classes opostas, a operaria (proletariado) ea capitalista (burguesia). Hoje falamos de “classe média” para deno- tar uma posigdo econdmica intermédia. As catalogagées sociais no mundo greco-romano® nao correspondiam a fatores econémicos, ou seja, a um estado de pobreza, de riqueza ou intermédio entre am- bos, se bem que a partir du séc. I tenha sido esta uma consideragao cada vez mais influente. Ainda que um escravo e um homem livre trabalhassem ambos para um mesmo senhor, nem por isso ambos pertenciam ao que hoje chamamos de “a classe operdria”. Portan- to, é anacrénico, e até mesmo erréneo, identificar as catalogagoes sociais de outrora com as nossas, ja que os critérios para fazé-lo eram diversos. Depois de tudo, somos nés que catalogamos as pes- 2 conhecido sociélogo da historia antiga E. A. Judge escreveu em seu artigo “The early Christians as a scholastic community”, em Journal of religious history 1 (1960), que a “teoria das classes sociais é anacrénica, quando aplicada & sociedade da era primitiva crista” (p. 7). M, I. Finley discute amplamente o prahlema am Ancient economy, 35-61, revendo os termos e conceitos de ordem, classe e “status”, para recomendar 0 emprego desse ultimo. Mais sucintamente, e na linha de Finley, veja-se W. A. Meeks, Primeros eristianos, Y6-100 (trad, bras. Paulus). ® Q termo “greco-romano” é uma simplificagéio, como tantas outras, do que na realida- de constitufa um mundo complexo. Emprega-se primordialmente para referir-se 4 parte oriental do império romano, onde predominow a cultura de raiz grega. 43 soas, e somos catalogados por elas.* Em certos paises, como nos que constituem a América Latina, a “classe social” implica um aspecto racial e um renome (linhagem) adquirido pela familia: a aristocra- cia é gente de sobrcnomes altissonantes, de linhagem, gente de posses e (em sua maioria) de raga branca. “Classe” 6, de mais a mais, categoria rigida, que definitiva- mente se poderia considerar como correspondente as cataloga- g6es sociais em Roma, onde as separagées e inclusive oposigées de categorias sociais eram nitidas. Em Ruma e, por extensav, entre os romanos, existiam ordines que, mais que categorias sociais, eram categorias juridicas claramente definidas para catalogar a “aristoeracia”. Destacavam-se 0 ordo senatorius e 0 ordo equester, mas néo sc falava de um ordo plebis, por exemplo. Resta por de- monstrar que a categoria de ordines existia no mundo n4éo-roma- no, ou seja, fora da cidade de Roma e arredores, e da sociedade de enraizamento propriamente dito romano. Surge naturalmente a pergunta: que termo e, com isso, que categoria utilizar para designar as classificagdes sociais de um mundo mais grego que romano, diferente, em conceitos, critérios e avaliacdes, do nosso? Isso é mais que questéo de etiquetas; para isso 6 preciso levar em conta os critérios que se usavam para as catalogagées sociais. Ficam descartadas as categorias de “classe” e “ordines”. Foram propostos, entre outros, os termos status ou estamento (Finley, Meeks) e “niveis” (Alféldy).* Poderiamos falar de categorias, posigdes ou estamentos sociais. Em todo caso, fica claro que se devem respeitar os critérios daqueles tempos, e que sec tratava fundamentalmente de posigées dentro de sua escala. Mas o que determinava que alguém fizesse parte do nfvel ou estamento que chamamos de aristocracia, e que outro fosse cata- logado como “pobre”? + £ curioso, se bem que compreensivel, se nos situarmos em plano nitidamente ideold- gico para julgar e catulugur us diversus estauentus de wna suciedade, que nos estuds publicadee por autores marxiatna, ¢ cocialistas em geral, ae elnaaifique ¢ ac julgue a socic dade de outrora projetando critérios de catalogacao maderna, sem respeitar a idiossincrasia do tempo histérico estudado. Observa-se isso jd no titulo do volumose livro de G. E. M. de Ste. Croix, The class struggle in ancient Greek world, e no de J. Gagé, Les classes sociales dans 'Empire Romain, por exemplo. “Cf. n. 1 acims; G, Alfldy, Suziuigeschichte, I, 124, propoe falar de Schichten: niveis. 44 Sabemos de imediato que na antiguidade greco-romana o fato econémico ndo era o fator determinante da posigao (estamento ou nivel) social em que se situava uma pessoa. Na realidade, nascia- se numa categoria ou posigdéo sucial: v nivel da fauilia eo que se nascia determinava — pelo menos em principio — a posigao so- cial da pessoa. Era este o critério mais importante. Certamente, essa posic¢ao implicava também determinado nivel econdmico; se a pessoa cra aristocrata, por exemplo, ela era rica, dotada de po- der e influéncias, considerada pelos do mesmo nfvel (que eram os que fixavam precisamente as diferencas) como pessoa de éxito. A posicao social expressava-se por determinade estilo de vida e ex- pandia-se num circulo de pessoas dessa mesma posigéo social, A condigao social da familia, em que nascera a pessoa, era em muitos casos o fator decisivo para a catalogacao social. Mas havia outros fatores que, direta ou indiretamente, podiam in- fluenciar posteriormente na avaliagao social da pessoa: sua edu- cagdo, sua ocupagao, scus éxitos ¢ succssos, sua origcm étnica, sua cidadauia ev, especialmente, seu grau (vu privagao) de liber- dade. Portanto, devemos ter cuidado em julgar de modo simplista as categorias sociais de outrora, definindo-as de maneira demasia- do estrita.’ Abundam os exemplos de pessoas cultas que eram es- eravos ou libertos (por exemplo, Epiteto, Livio) e que, portanto, eram socialmente mais bem consideradas do que os escravos in- cultos; prova disso é que nao eram vendidas, mas tratadas com admiravel respeito e com freqiiéncia encarregadas da educacdéo dos filhos da familia de seus senhores. Por outra parte, nem todos os ricos formavam parte da aristocracia, nem todos os aristucra- tas eram ricos (se bem que o fossem em geral e se apoiassem mu- tuamente), Abundavam os exemplos de escravos que eram mais ricos que muitos livres, como veremos. No esquema romano, nao faltavam ex-escravos que eram mais ricos que pessoas do ordo se- natorial e nem por isse tinham acesso a um ordo superior (sena- dores ou eqiiestres). Nem todos os ricos eram cidadéos romanos. Nem os estrangeiros ricos tinham os mesmos direitos que os po- bres nascidos nessa mesma cidade. Em muitas cidades ge discri- ° Vejam-se as atinadas observagdes recolhidas por W. A. Meeks, Primeros eristianos, 99s. 45 minavam os judeus por razées diversas, étnicas e religiosas. As mulheres ocupavam, particularmente na Asia Menor, posigéo so- cial inferior aos homens de sua casa. Esse fato revela que os privi- iégios e direitus estavam relaviunadus fundamentalmente com a posicéo social da pessoa e com determinados aspectos socio- politicos: os de um aristocrata eram diferentes dos de um plebeu, como os de um cidadao diferiam dos de um estrangeiro residente. 2. ESTRUTURACAO DA SOCIEDADE GRECO-ROMANA Para comegar, é preciso tomar consciéncia de que as cidades da Asia Menor eram predominantemente helénicas, ou seja, cul- turalmente — e em hoa prapnredn tamhém etnicamente — resul- tado da simbiosc da cultura popular grega que, a partir de seu grande apostolo, Alexandre Magno, euraizou-se ¢ adquiriu carta de cidadania em todo o império de Alexandre, ao lado das cultu- ras “indigenas”, que em boa medida implicavam aspectos orien- tais, especialmente relativos 4 mistica. Os romanos respeitaram as culturas de outros povos, inclusive suas estruturas sociais e administrativas, e limitaram-se a supervisionar a boa ordem da cidade e, sobretudo, 0 pagamento dos impostos exigidos.® Portan- to, ndo devemos projetar as caracteristicas da saciedade romana tipificadas em Roma 0 om cortos enclaves coloniais, para o grosso da populagao da Asia Menor.’ Digo “o grosso da populagao”, por- que a aristocracia, como quase sempre aconteceu, procurava amol- dar-se ao mundo de seus “senhores”, neste caso ao dos romanos. Mas na sociedade nitidamente helénica da Asia Menor, as posi- § Pode se ver a esse reepeito A. H. M. Jones, The Greek city, caps. IV, VIII e XI, onde se pormenoriza o fato de a colonizagao romana da Asia Menor ter introduzide mudancas politico-administrativas, mas nao culturais e acarretado maior fluxo e afluéncia econémi- cos. A mudanga cultural, coma veremos mais tarde, foi em sentido inverso: do Oriente para Koma. A maioria dos habitantes da Asia Menor continuaram sendo helénicos orien- tis. Cf. tumbem A. D, Macru, “The cities of Asiz Miner", 600-063. 7 Nao poaso chamar suficientemente a atengéo para a tontagio de projetar o préprio de uma cultira, de im tempo eon Ingar, a outrala. Devido a abundancia dos testemunhos literdrios acerca da vida em Roma, é grande a tentacao de generalizar os tragos e condi- ¢des de vida dessa cidade e de seus arredores a toda a amplidao do império romano, assim como é tentador projetar anacronicamente o préprio de um tempo a outro. 46 goes ou estamentos sociais eram notoriamente menos rigidos e nao estavam tao claramente marcados como na sociedade pro- priamente romana. Estamentos ou niveis Da mesnia forma que na grande maiora das sociedades hu- manas, também na Asia Menor a sociedade era piramidal: na cipula da piramide, a aristocracia, e na larga hase, 0 conjunto do “proletariado”; os honordveis e os humildes. A aristocracia (honestiores) era composta pelas familias tra- dicionais, que em geral eram ricas e, de uma ou de outra manei- ra, se movimentavam nas esferas do poder: a familia imperial, os senadores, os eqiiestres e os deeurides, segundo o esquema social romano, assim como as familias honordvcis da cidade. Em conjunto, néo chegavam a somar duis por cento da populacdo global.* O “proletariado” (humiliores) era constituido por todos os que nao pertenciam & aristocracia e precisavam trabalhar para vi- ver.° Nos niveis “inferiores” da aristocracia existia uma série de diferenciagoes desde diversos pontos de vista, segundo 0 fator des- tacado. De fato, a liberdade era condicionamento social muito maior outrora que hoje. Ser livre era muito mais importante que sor rico ou pobre. Assim, os naecidoe livres ostavam socialmente acima dos libertos, ex-escravos agora livres, e, naturalmente, dus proprios escravos.*° Outro fator importante era a cidadania: os cidadaos do lugar onde residiam estavam sociopoliticamente aci- ma dos estrangeiras. E os cidaddos romanos tinham cota¢ao ain- *G. Alfeldy (Sozialgeschichte 1, 124) calculou que a ctipula da pirdunide social wav somava em todo 9 império romano mais que duzentas mil pessoas, o que nao representa ria sequer um por cento do total da populacdo. Mas Alfildy, da mesma forma que outros estudiosos, néo leva em conta as familias nobres das cidades das provincias romanas. Caso raro é a familia de Herodes na Judéia, por exemplo. Segundo Dunean-Jones (The economy, 2848), os decurides no norte da Africa constituiam mais ou menos dois por cento da populayav. * Emprego o termo “proletariado” de propésito, pois se trata da mancira como eram considerados pela aristocracia todos os que tiaham que trabalhar para poder viver, fassem ricos comerciantes ou simples pedreiros. Em Roma, falava-se da plebs em tom de desprezo. 1 Segundo W. A. Meeks (Primeros cristianos, 40s), era essa uma distingdo social fun- damental. Sao Paulo amitide se refere a 1380 em suas cartas. AT da muito maior." 'lalvez se devesse incluir uma diferenciagao adicional, da qual falaremos logo, entre os cidadaos (plebs urba- na) e os camponeses (plebs rustica). O certo é que a riqueza nao determinava por si mesma a posigdo social, mas se esperava que a posi¢ao social ocupada se expressasse em simbolos externos do grau de bem-estar com o qual se associava. As diferencas nos ni- veis inferiores nao eram marcadas, mas simiosas, como se terd obscrvado. Podia-se ser cseravo c rico, liberto ¢ pobre, livre ¢ endi- vidado até a dependéncia total, mendivo e cidaday, rivo e estran- geiro. G. Alféldy sintetizou as caracteristicas proprias dos niveis superiores: distinguem-se por serem 1) ricos; 2) livres; 3) honor4veis; e 4) por formarem parte das esferas do poder (exer- cendo ou sendo elegiveis para exercer fungoes administrativas). Os niveis inferiores, ao invés, geralmente 1) ndo possuiam rique- zas; 2) dependiam de outros ou trahalhavam para eles; e 3) néo ocupavam postos administratives municipais nem eram candida- tos a eles,” Quem udu era admitidy pela aristocracia tradicional como membro de seu mesmo nivel, ou seja, quem nao era reco- nhecido como “honordvel”, nao podia chegar a formar parte dos estratos “superiores” dentro da sociedade greco-romana. Em ou- tras palavras, existia 0 que chamariamos de esnobismo discri- minat6rio. A discriminagao j4 se manifestava no simples fato de nem todos serem admitidos em todos os lugares ptiblicos. Se bem que ninguém estivesse excluido da agora, dos templos e outros lugares publicos, os “pobres” nao eram admitidos nos gindsios, por exemplo."* Os aristocratas nao formavam parte das associagées ou grémios (collegia, thiasioi). Nao cabe duvida que a posigdo so- cial tinha peso especifico de grande importancia na aceitagao ena valorizacao de uma pessoa naquela sociedade. JA se chserva isso * Na opiniao de A. Burford (Craftsmen, 18), era essa a distingdo social mais importan- te. Com certeza, depende de quem o vé assim » coum yue fins, j4 que nav esuonde verte at de superioridade ¢ corto espirito de dominagao. Retornaremos ao tema da cidadania. + Soziaigeschiehte, II, 94; ef. também R. MaeMullen. Social relations, 888s. CEH. Giilzow, “Soziale Gegeberheiten”, 189-192. Apenas no culto oficial é que os diversos niveis sociais ficavam unidos, mas ndo ocorria isso no resto de sua vide religiosa, se bem que venerassem as mesmas divindades. 48 na maneira de usar os titulos honorificos — inclusive os nomes das pessoas'4 —, como testemunham as inscrigdes nos monumen- tos e a literatura da époea. A posicao social era determinante na avaliagéio da prépria pessoa e de seus direitos (e, eventualmente, de seus privilégios).’° Mas, com a instauracao do Principado e a extensdo de uma visaéo mais pragmatica da vida, os critérios para marcar os estamentos foram mudando de peso; os de tradigao ce- diam a favor de outros como a educagao e a riqueza. As estratificagdes € catalogaydes suciais provinham dus que constituiam parte das tradicionais familias de linhagem — que ostentavam o poder — e faziam-se em comparacao com elas pré- prias.'° A aristocracia em particular era muito zelosa de sua posi- gao social. As pessoas cram tratadas segundo a posigao social que ucupavaiu U escravo nao era tratado da mesma maneira que 0 senador, nem o homem igual 4 mulher, nem o nascido livre igual ao liberto. Nao se deve esquecer que a posicao social era mais que etiqueta ou roupagem: significava privilégios e direitos, poder e influéncias, mais que obrigagées e deveres, que diminufam ou aumentavam segundo o lugar que se ocupava na pirdmide social. Evidenciava-se isso nos foros legal e juridico (por exemplo, no to- cante ao matriménio, ou nos tribunais), no trato recebida nas ce- lebragies ptiblicas” etc. Ai se sabia quem cra “honoravel” c quem “vulgar”, e os primeiros faziam sentir a diferenga aos outros. 34 Veja-ce @ esse respeito as observagéce mais amplas de J. P. D. V, Balsdon, Romans and aliens, cap. 8. "© Expressou-o magistralmente A. Burford: “O artesao nao nascia artesio, mas cida- dao, filho de escravo, imigrante ou extrangeiro total. Como qualquer outro membro da comunidade, estava sujeito a todos os preconceitos ou pressdes psicolégicas que a socieda- de excrce subre as preovupuyves du individue quant a se pertence ou nao a determinado grupo conereto no seio da comunidade..., A natureza de seus dircitos ou deveres..., a seu papel na comunidade, ao reconhecimento que pode esperar e As pnsighes a que pode aspi- rar" (Craftsmen, 28). 1 E fato que as estratificagdes sociais quase sempre foram estabelecidas pelos niveis dominantes da sociedade. Sao eles 08 que discriminam os que, por algum critério de ava- liagao, néo lhes su aveiliveis, seja por sua origem étnica, por sua religiao, por seu poder eeonémioo ou por cua educagéo ete. Na antiguidade que nos ecupa, como jé destaquei, eatalogava-se em relagdo com a pertenga familiar ase gran de liberdade o “honorabilidade” ¢, na prética também em boa medida, em relacdo com seu poder econémico. 1G. Theissen (Estudios de sociologfa, cap. 8) pensa que era este o problema central a que se referiu Paulo em 1Uor 11,17-34: 0 aristoeratico dono da casa discriminava (social- Inente) us irmdus de estamentos inferiores. 49 Mobilidade social A posic¢ao social, em que nascera a pessoa, nao era necessa- riamonte infranquedvel. Com efoito, com certa freqiiéneia certas pessuas ambiciosas e afastadas de qualquer idéia fatalista logra- vam “subir” na escala social. No entanto, sé com a passagem das geragdes seriam aceitas como iguais pelos que pertenciam ao ni- vel social a que tinham conseguido ascender. O nivel social em que nascera a pessoa tinha geralmente em si mesmo peso dema- siado para que fosse ignorado. E preciso, portanto, distinguir en- tre nivel ou posicao social herdada, e outra adquirida. A mudangca de nivel ou posicao social costumava ser com res- peito ao herdado, no qual nascera a pessoa. O mais saliente era o relacivuady cow a liberdade: de escravo para livre, ou vice-versa. Havia livres que eram tomados como escravos em guerras ou por piratas e vendidos em outros lugares, e escravos que eram liber- tados ou compravam sua liherdade, ¢ libertos que huseavam me- Thorar sua posigéo econémica c com isso a social. Alguns compra- vam a cidadania; inclusive nao faltavam os que lograram compar o decurionato (postos administrativos). Sobre os escravos voltaremos a falar em seguida. Também davam-se mudangas devidas a razées de indole econémica: ricos que perdiam sua fortuna por alguma desgraga; pobres que com sua habilidade conseguiam fazer uma boa fortuna. Os gestos em beneficio do povo costumavam ser re- compensados com honras, inclusive com posigGes sociais. Em geral sé depois de muito tempo se podia passar de um nivel social a outro, pclo menos sob algum aspecto, por exemplo, em fungdo da rigueza adquirida e da assuciagéo com pessoas de uma escala social “superior” até fazer parte de seu mundo. O 1m- perador, e também as autoridades locais, sabiam premiar os que os serviam, facilitando-lhes o acesso em niveis de poder. O favori- tismo e a influéncia nunca cessaram de funcionar. A aceitagao por parte dos membros de um estrato social dife- rente era indispensavel: por mais dinheiro que tivesse uma pes- soa, enquanto no fosse aceita pelos que determinavam as fun- gécs e os postos administrativos, ndo tcria accsso a nenhum de les. Um “aristocrata” empobrecido, que nao podia exteriorizar sua 50 posigao social, ndo era considerado como socialmente igual por outro que se mantinha rieo.!8 Sabemos que, na raiz da crescente “mobilidade social”, so- bretudo nas pruvincias romanas nos inicios do séc. II a.U., ja se contava com crescente nimero de decurides que provinham de familias que em algum momento tinham sido escravas; e inclusi- ve j4 nem todos os senadores eram nascidos na Itélia.!? Os exem- plos que conhecemos apontam claraimente um fato nada surpre- endente: a maioria dos que escalaram os niveis sociais consegui- ram-no gracas ao poder de seu dinheiro, comecando com os escra- vos que compravam sua liherdade. Km outras palavras, o fator familiar (nascimento) foi pouco a pouco cedendo ao peso do falor econémico na deterininagao da posigdo social, o empenho e a as- tucia de muitos ambictosos por poder levaram-nos a conseguir suas metas, “escalando na sociedade”. Os eriticas da sociedade dessa época (Marcial, Juvenal, Petrénio, Dio Criséstomo) nao ocultaram seu mal-estar perante as mudanyas freqiientes de posicao social; ironicamente, alguns des- ses criticos fizeram o mesmo. Expressavam os ressentimentos dos que se consideravam zelosos guardifes de sua elevada posigdo so- cial: 0 que (supostamente) era proibido por nascimento, familia e posigéo social, foi sendo adquirido por pessoas que na realidade eram tanto ou mais educadas, ricas, habeis ou inteligentes, que os membros dos estamentos aos quais tinham logrado escalar. Entre os “honordveis” havia, pois, receio inconsciente de serem supcera- dos, inclusive suplantados, por esses habeis novos chegadus.* Este é fato bastante familiar na América latina. A historia se repete. **Temos un clury exemplo de mobilidade socia) na denominada “pardbola do filho Prédigo”, relatada em Le 15. De aristrocrata, o filho que se fui passu a nivel social infe- rior: inka que trabalhar (enidando de porcos) para poder se alimentar. Por nao encontrar aceitagdo social da parte de quem o contratou, pianeja retorner A casa paterna, mas dis- Posto a ser considerado no mesmo nivel social que os diaristas de seu pai (mischioi}: note- 8€ que se rebaixa ainda mais, a ser um servo ou escravo (doulos). O ressentimento social Spat wee mu pessoa do irmao: como pode o pai receber como igual quem se tinha rebaixade malgastando sua fortuna a ponto de ter que traballinr? © Veja-se mais pormenorizadamente, com exempios coneretos, o catude de K. Hopkins, “Elite mobility”. P. R. C. Weaver frisou este fendmeno na sein da familia imperial em seu estudo “Social mobility". * W. A. Meeks, Primeros cristianos, 46. 51 3. AARISTOCRACIA® A aristocracia era formada pelas familias do imperador e dos senadores, pelos eqitestres decuriées, muitos dos quais ocupa- vam cargos administrativos importantes. A essas categorias so- ciais romanas é preciso acrescentar a nobreza local nas provin- cias romanas e sua propria aristocracia. Em principio, eram to- dos ricas, como deles se esperava. Como sempre, a aristocracia cra minoria na populagéo. R. MacMullen calculou que, de uma populagav aproximada de cin- qienta milhées de habitantes nos territérios que constituiam 0 império romano pelos fins do séc. I d.C., a ordem (ordo) senatorial ocupava aproximadamente a milésima parte de um por cento, visto que a maioria de seus membros vivia em Roma e arredores.” A ordem eqiiestre era formada por aproximadamente um décimo de um por cento da populacao, o que, segundo J. Gagé, nao represen- tava mais que umas dezenas de milhares de pessoas." Ao ordo senatorial, o mais alto na escala social romana, per- lencia os seuadures ¢ os weiubros de suas familias. Nau se ra tava, pois, de nobreza em sentido estrito, mas de aristocracia, que como tal se instaurou junto com a figura do imperador romano em fins do séc. 1 d.C. (a partir de Augusto), e doravante se firmou e se estendeu. Anteriormente, pelos fins da Republica, a nobreza (nobilis) era constituida aproximadamente de uma duzia de fa- milias de larga tradicao, junto dos patricios. Posteriormente a nobreza foi reduzida a minima express4o: a maioria morreu, quer nos diversos conflitos e guerras durante as ultimas décadas da Republica, ou entao simplesmente assassinada como poten- cial usurpadora do poder central. A partir de Augusto, o Senado contava com seiscentos membros, aos quais o imperador deu tal importancia, que muitos deles comegaram a comportar-se como se tivessem pertencido desde sempre a familias do mais alto ga- 4 Termo sociolégico que cm grogo significa “poderio dos melhores”. # o tormo que, a men ver, designa melhor « grupo de privilegiados qnie canstituia as estratas “siperiares” da sociedade. ® Roman social relations, 88. #! Social classes, 41. 52 barito social. Sua riqueza contribuin a esse ar de superioridade. A fortima de um senador, segundo R. MacMuilen, era equivalen- te a duzentas e cingiienta mil vezes o soldo de um dia de um assa- lariado, ou pelo menos 0 duplo do de um eqiiestre.”* Em fins do séc. 1 d.C. ja havia senadores que vinham de familias no italia- nas, de lugares tao distantes como a Espanha e a Africa, Isso obedecia tanto as nomcagées imperiais como a influéacia social e econémica, O ordo equestre (equites) era formado em sua maioria pelos residentes na Peninsula Italica, que se dedicavam ao comércio ou ocupavam postos administrativos conjuntamente com os decurides. Eqiiestre cra na realidade titulo honorifico,?* equivalente a “cava- leiro” (o knight da Idade Média), concedido pelo imperador a determinados individuos; portanto, nao era hereditérin. M. Rostovtzeff descreveu-o como uma “aristocracia de oficiais buro- cratas”.** Muitos dos eqiicstres eram militares ou tinham servi- do no exército imperial, e eram portanto excelentes candidatos para ocupar postos administrativos, tanto por sua experiéncia como por sua lealdade a Roma. Seu ntimero creseeu consideravel- mente no tempo dos imperadores Flavios (69 a 96 d.C.). Muitos deles tinham sido honrados pelo imperador euguanto formavam parte dos decuriées. Nao poucos eqiiestres foram honrados com a posi¢ao de senadores. A partir de Vespasiano houve um fluxo so- cial ascendente de decurides a eqiiestres e destes a senadores. Em geral, eram pessoas muito ricas; néo poucos deles precisa- mente compraram essa posigéo. Sua fortuna era pelo menos um tergo da de um senador (pelo menos cem mil den4rios). Mas se podia chegar a ser eqiiestre gracas ao imperador cama prémio por alguma faganha ou notdvel servigo militar. Seu atrativo radicava *R. MacMullen, Roman social relations, 89. Mais adiante nos deteremos na situagao econdmica, sobre a qual se podem encontrar abundantes cifras no estudo de R. Thinean dones, Economy, 173. Sobre a ordem senatorial, veja-se em particular J. Gagé, Les classes souiudes, cap. II e G. Alfoldy, Sozralgeschichte, 1, 101-106. B. Levick estudou por sua vez 0 influx de senadores ¢ eqiiestres pruvenientes da Asia Menor, a partir de fins do séc. 1d.C em sua abra Roman colonies, cap, IX. ® Originalmente se dava aos ricos que iam & guerra montados a cavalo. * Social and economic history, 185. Sobre os eniiestres, veja-se mais amplamente J Gage, Les classes sociales, cap. Ill e G. Alfoldy, Sozialgeschichte, 11, 295-302. 53 nas possibilidades que abria: posigdes de poder administrativo e econémico. Os decuriGes eram os membros dos conselhos e da magistra- tura de uma cidade; eram ricos e com frequéncia se viam cobertos de honras por seus sucessos. Costumavam ser donos de terra e grandes comerciantes. Geralmente eram os ricos da cidade e cons- tituiam ao mesmo tempo ume. cspécic de aristocracia local. Da mesma forma que “eqiestre”, decurio era Litulo honorifico nao hereditario que designava uma posigdo de lideranca, concreta- mente na administragao local. Mas, diversamente do eqiiestre, 0 que aspirava a decurido podia comprar essa honra com daagées em favor de sua cidade, especialmente na forma de construgées ou de reformas, ou assumindo os gastos das celebragées religio- sas, esportivas e artisticas em favor do povo. Costumavam ser mais de uma centena de pessoas, dependendo o seu numero do tamanho e da importancia da cidade. Como conselho local, os decurises, junto com outros membros da administragéo munici- pal, decidiam na cidade sobre questoes financeiras, alimenticias, arquiteténicas e semelhantes. A eles se deviam em grande medi- da o desenvolvimento e o esplendor de suas cidades.” Eram achegados aos decurides 08 que ocupavam cargos ofi- ciais de magistratura romana: cénsules e procénsules, procura- dores, prefeitos e governadores. No Novo ‘lestamento mencionam- se alguns deles: Péncio Pilatos, Félix e Festo na Judéia, Quirino na Siria, Galido na Acaia. Uma observacao: os altos postos administrativos, assim como as altas esferas sociais, geralmente eram aliados de Roma em seus diversos aspectos legais, inclusive no aspecto religioso; assu- mia-se a religido oficial ramana, além da pessoal, o que tornava pouco provavel sua convers&o ao cristianismo. Nao estranha, pois, que durante os primeiros séculos tenham sido excepcionais as conversées de pessoas pertencentes a esses estratos. 2! Para mais pormenores, ef. J. Gagé, Les classes sociales, 51ss, ¢ G. Alfeldy, Sozialgeschichte, 1, 109-113. 0 aspecta juridico e legal foi estudado por W. Langhammer, Die rechtliche und soziale Stellung der Magistratus Municipales und der Decuriones, Weisbaden, 1973. 54 Por um lado, a pertenga a aristocracia conferia ares de no- breza. Dio Criséstomo criticava sua busca de honras, de aplauso e adulagéo, que para muitos aristocratas nao tinha limites, mesmo que para tanto tivessem que investir muito dinheiro em doacées e favoritismos. A desonra ou a perda da boa fama era verdadeira desgraga que podia levar até ao suicidio.22 A arqueologia desco- briu milhares de monumentos e de construgées que esses aristo- cratas edificaram pura perenizar seus nomes e ostentar seu pode- rio: estatuas, editicios ptiblicos diversos, inclusive templos, biblio- tecas e teatros, além de mausoléus. Por outro lado, pertencer A aristocracia geralmente significava ser rico. E a busca do cons- tante incremento de riqueza era uma das conhecidas caracteristi- cas, que ia de maos dadas com a ostentagdo; ontem da mesma for- ma que hoje.” Arrogancia e despotismo, soberba e ostentagio, ca- racterizavam a maioria dos membros da aristocracia desse toem- po, quer fosse a grega, qucr a romana.” 4. AADMINISTRACAU LOUAL Para comegar, é preciso ter em conta as diferentes classes de cidades que havia no império romano. Roma e Fgito constituiam classes A parte. As mais privilegiadas eram as colénias, formadas a partir de vcteranos do Exércity, come Fili ipos, Iconio e Listra na Asia Menor. Sua fidelidade a Roma era inquestionavel ¢ estavam isentas de impostos. Seguiam-nas os chamados municipia, cujos habitantes receberam o privilégio da cidadania romana (como Tarso e Efeso) e gozavam de autonomia relativa. E depois, as vu- tras cidades, cuja auloridade maxima era a romana e estavam inteiramente sujeitas ao pagamento de impostos. No Oriente as * Cf. Dio Criséstomo, Or LXVT % GE. M, de Ste. Croix (Class Struggle, 426) afirmou que “a classe governamental romana estava tao inteiramente dedicada a propriedade como os mais conscientes de ri- queza dos gregos”. A mportancia das riquezas foi com freqiténcia enfatizada e sua aquisi- $40 ou aumento viu-se conv um dos maiores objetivos da vida, segundo o atesta, por exem- lo, Cicero, De off. 23; Pro Caesar, 65-75, que contrasta cui us rellexdes de Dio Criséstomo, Or, LXXIX. e outros ios; mais adiante vamos nos deter nesse ponto. ® Cf. a respeito R. MacMullen, Social Relations, 104-120, @ as arerbas eriticas de alguns estéicos, por exemplo, de Epiteto, em Disc. IV, 7. 55 cidades estavam estruturadas e seguiam basicamente o modelo tradicional que tinham assumido desde o tempo dos gregos. Ti- nham seu conselho (bou/é) e suas assembléias. Trataremos sé des- sas cidades, visto que a organizagao politica do império e as dele- gagoes governamentais nao constituem nosso tema.*! A aristocracia local das cidades no império romano, integra- da em sua maioria pelos decurides, procurava estar em boas rela- goes, inclusive amigaveis, com as autoridades romanas, nao pou- cas vezes por interesses pessoais, quer para proteger sua posigao socioeconémica ou para incrementar seus beneficios. Por outro lado, o governo municipal na Asia Menor estava em geral em poder da aristocracia local, que agia como “clientcs” de Roma. Essa politi- ca se revelava benéfica para Roma, que desse modo angariava a boa vontade dos estamentos mais habeis e respeitados das cidades. Como bem afirmou G. W. Bowersock, “mal era segredo que Roma Jevava a cabo uma politica de estimulo as aristocracias das cidades do leste e de apoio ao estabelecimento de oligarquias”.** Ao longo do séc. I d.C., foi politica dos imperadores respeitar as tradicionais estruturas administrativas das cidades do impé- rio, de modo muito particular na Asia Menor, tentando assim ga- nhar a boa vontade de todos os stiditos, com o que evitavam even- tuais sublevagées e teusées desnecessdérias. De Auguslu em diau- te, os imperadores estiveram empenhados em manter a paz no império. Sua politica administrativa foi acertada neste sentido e benéfica para todos. Se no inicio Roma tomou as rédeas da administragao dos ter- ritérios conquistados, sobretudo pela forga militar, pouco a pouco foi cedendo a administracdo a pessoas nativas de confianca. A quase independéncia administrativa geralmente se fazia prece- der por um recenseamento (como o que conheccmos pela mengiio de Lucas em relacdo com o nascimento de Jesus: 2,1ss), que se faziam fundamentalmente para fins tributarios. O que mais inte- 3 Veja-se pontualmente A. H. M. Jones, The cifies of Eastern Roman provinces, ¢ D. Mazgie, Roman rule in Asia Minor. ® Augustus, 101: “Os provincianos mais ricos tiham muito a ganhar com a dominagéo romana; abriam-se-lhes novos caminhos de favor e progresso”, 56 ressava a Roma de suas provincias e colénias era 0 aspecta ecana- mico, j4 que os gastos, inclusive os caprichos imperiais, eram pos- siveis gragas aos tributos desses territérios. Roma (na verdade quase exclusivamente a farnilia dos imperadores) alimentava-se de suas provincias., O governo das provincias romanas configu- rou-se segundo 0 conhecido esquema “patrao-cliente”. Roma fala- va da “tutela” de suas provincias: como bom patrao, comprome- tia-se a cuidar delas e protegé-las, assegurando-lhes a paz, que para os ricos em particular signiticava bonanga. Em troca, Roma esperava das provincias fidelitas, ou seja, fidelidade e servigo que sencialmente se traduziam no pagamento dos impostos exigi- dos. Mas, no Oriente, e logo depois na Asia Menor, a administra- gao local seguia em grande medida os tragos de sua propria idiossincrasia helenistica, que em geral se herdava da Grécia, com seu conhecido espfrito democratico.™ Para angariar a cooperagdo ativa dos individuos ricos das ci- dades, que em geral eram também os que oslentavam poderes po- liticos locais, Roma procurava trataé-los como delegados de seus concidadaos, convidando-os a vir a Roma com certa freqiiéncia. Oferecia-Ihes an mesmo tempo a possibilidade de incrementar seus beneficios pessoais. Roma queria que 0 governo local fosse maneja- do por pessoas de confianga, aliadas, como os reis vassalos ou clien- tes (por exemplo, os Herodes da Palestina), mas com duas condi- ges essenciais: que assegurassem a paz e que (inseparavelmente) pagassem seus impostos. Ou seja, a parte da tributdria, sua politi ca nao foi de imposigao, mas de busca de colaboragao a parlir das Ppréprias cidades; essas deveriam autogovernar-se, mas permane- cendo sujeitas a Roma. A soberania romana era representada na pessoa de um delegado pessoal do imperador, cuja posic¢ao depen- dia da posigdo da cidade c da circunscrigéo a qual se destinava. Em principio, us imperadores procuravam enviar pessoas idéneas que estivessem suficientemente familiarizadas com aquela ® D. Norr, “Herrschaftsstruktur’”, 9s. * Para mais permenores, ainda que em grande parte ce detenha na Grécia cléssica, cf. V. Ehrenberg, The Greek state, Londres, 1969. Embora antigo, ainda contém mnitos dadas valiosos 0 estudo de F. Abbott e A. C. Johnson, Municipal administration in the Roman empire, Princeton, 1926. 57 parte do mundo a qual iam como delegados imperiais; mas nem sempre foi assim, pois abundam os casos de delegados ineptos e ignorantes das peculiaridades da vida na Asia Menor, que tinham ubtide o encargo por influéncia de outros ou em recompensa por algum favor.* Km poucas palavras, a politica administrativa ro- mana regia-se na pratica pelo favoritismo, particularmente em beneficio de pessoas ricas, e guiava-se por interesses cconémicos. Nao é segredo que os delegados poienciais du imperador am- bicionassem 0 cargo por interesses pessoais, ¢ néo “por amor & patria”.**O que era certo no sé do representante romano e seus adjuntos, mas tamhém dos nativos que ocupavam postos admi- nistrativos, 0 que cra compreensivel. Os cargos municipais e as fungdes administrativas de uma cidade eram em sua maioria ad honorem, assumiam-se para ser adulado, louvado e aplaudido; esse era seu pagamento! Nao s6 nao se recebia saldrio, mas era necessario ter dinheiro suficiente, pois com o cargo se espcrava que o funcion4rio gastasse dinheiro em doagdes, quer para cons- trugées, reformas de edificios ou ornamentagao, ou para celebra- g6es diversas (recorde-se 0 que se disse sobre os decurides). E 0 funcionario 0 fazia com gosto, para provocar assim a reacdo da adulagao e Jouvor por parte do povo, inclusive de Roma, e ter a satisfagdo pessoal que issu acarretava num mundo que vivia pre- cisamente da “honra”. Testemunha-se isso em numerosissimas inscric¢des que se encontram por toda parte na Asia Menor.” Nos municipios n4o havia verbas para gastos administrati- vos. Razdo pela qual, para ocupar cargos, se fazia logicamente necessdrio contar com sdlido respaldo econdémico, Portanto, é cer- to o juizo de A. D. Macro: “O critério fundamental para ostentar cargos elevados nas cidades gregas no tempo do imperium romano nao era a demonstrada efi- ciéncia cm fungées administrativas, mas a capacidade e dispouibi- 9 Fo1 0 caso, por exemplo, dos procuradores na Judéia a partir de Floro (64-66), Mais auiphauente, G. W. Bowersock, Augustus, caps. II e VII. 8 W. Downey, History of Antioch, 167, cita Veleio Patéreulo, que declurava que o lega- do romano na Antioquia, P. Quintilius Varus (designado om 6 ou 7 a.C.), “entrou ne rica Provincia como pobre, mas dela saiu como rico deixando a provincia pobre” (ii, 117 9) * Cf J. Gagé, Les classes sociales. 167; M. I. Finley, Ancient economy, 151-154; R. Duncan dones, Economy, 80-88, eA. R. Hands, Charities, caps. Il ¢ IV. 58 lidade de gastar dinheiro. E os que tinham dinheiro eram os aristo- cratas”.* De fato, a administracdo estava quase exclusivamonte nas méAos dos ricos, que em geral cram donos de grande parte das terras, ou seja, eram os latifundiarios. Nao é habitual encontrar epitdfios que mencionem um artesdo, um comerciante ou um pro- fissional, que tivesse ocupado algum posto ou cargo municipal.5# O governo das eidades estava om méoe de um conaclho (boulé), uma espécie de senado, cujos membros eram eleilos pelo povo, que se inclinava pelos que ofereciam mais beneficios para a ci- dade (ou seja, pelos ricos).“”O recolhimento de impostos, o fator mais importante para Roma, estava sah a supervisdo do delegado romano, que podia (e costumava) delegé-lo por sua vez, beneficiat- do-se com isso (como conhecemos pelus evangelhos), Nao 6 necessdrio deter-se a ponderar o poder das autorida- des romanas nas cidades. Era ébvio em todo momento: sua vanta- de era lei, j4 que representava o imperador. E, como é conhecido, 9 poder costumava ir de maéos dadas com a ambigau. Mas no s6 98 governantes romanos esLavam empenhados em enriquecer-se, até a ponto de ser “avis rara” o governante que nao fosse explora- dor, mas também se assumia essa mesma atitude pela aristocra- cia local que neupava postos administrativos, Os impostos eram recarrogados; 0s subornos ¢ extursdes eral freqiientes e as leis costumavaus se fazer (por eles) de tal modo que os favorecessem. Dio Crisostomo relata que Tibério teve que advertir a Emilio Recto, prefeito do Egito: “Quero que minhas ovelhas sejam tosquiadas, nfio rapadas”.4! Antes de estudar as funles de riqueza, as atividades econé- micas ¢ outras facetas conexas, convém ter idéia suficientemente clara das condicdes de vida dos estamentos sociais “inferiores” (humiliores). Nestes se fazia clara diferenciagdo entre os que nas- © “The eities of Asia Minor”, 684. "A, HLM. Juues, Ruman economy, 41s. AH. M. Jonos, o.c., 1-84, descreve o funcionamenty da administragao local em ter- mos claros e precisos, camo costuma fazer em seus estudos. © Or LVU, 10. Mais amplamente, G. E. M. de Ste. Croix, Clos struggle, 3635; K. Hopkins, Conquerors and slaves, 41-47 (ainda que se limite a época de Augusto). 59 ceram livres (ingenui); os que naéo nasceram assim, mas que de algum forma obtiveram a liherdade (Libertini), e os escravos. Essa cra a ordem descendente de posigao ou nivel social. Os nascidos livres —-e entre estes estavam em primeiro lugar os nascidos de pais livres, em contraste com os que tinham nascido de pais que tinham sido escravos e depois obtiveram a liberdade — A margem de sua situagao econémica, tinham certas vantagens, pelo menos psicolégicas, sobre os libertos, os escravus e os eslrangeirus (peregrini), especialmente em sua qualidade de cidadéos. Vio Criséstomo o expressou claramente: “A liberdade é a maior das béngaos, ao passo que a escravidao é 0 mais vergonhoso e miser4- vel dos estados”.? 5. OS ESCRAVOS A escravidao é a condigdo social sobre a qual mais se escre- veu e sobre a qual so mais freqiientes os preconceitos. A adver- téncia que fiz no comego aplica-se particularmonte aqui: nao se deve projetar ou universalizar o que se sabe (o que é bastante) sobre a escravidao em Roma a outras partes do império romano. Alexandria, Antioquia, Efeso, Corinto e Atenas com certeza nao eram Roma. Eseravo (doulos, servue) cra toda pessoa desprovida de liber- dade, cujos direitos e trabalho estavam inlegralmente em maos de outrem, que era seu senhor e amo (kyrios, dominus), cuja pro- priedade era. Nessa definicdo geral entram vdrios tipos de pes- soas: 0 fisicamente escravo, que 6 aquele a quem automaticamen- tc associamos o termo “escravo”, mas também aquele que assu- inia livremente trabalhos de servidao para poder sobreviver, assim. como as pessoas que pagavam suas dividas submeteado-se ao re- gime de trabalho em favor de seu credor. A esses pndemos chamar antes de “servos”. A pessoa era escrava por ter nascido de mae 2 Or XIV, 1. Certamente, nesse discurso, assim como no seguinte, Dio argumenta que a liberdade, de que muitos falam e se ufanam, nem sempre é verdadeira liberdade, pois so escravos de muitas coisas. Dio fala como estdico. Seu enfoque é andlogo ao de Paulo, por exemplo. Yeja-se, com mais amplidao, Or. LXXX. 60 escrava, por ter sido feita prisioneira (em guerras ou por piratas), ou por necessidade pessoal. Grande ntimero de escravos provinha da parte oriental do império. Os fisicurmente escravos eram considerados na antiguidade propriedade de seus amos. Segundo a legislacdo romana, os es- cravos eran a0 mesmo tempo pessoas e enisas. Fram tratados como coisas (res); portanto, legalmente, cram considerados sob 0 regime “das coisas” como propriedude do amo. Mas eram tratados também como pessoas, visto que seus juramentos eram conside- rados validos, viviam sob a autoridade de outrem da mesma for- ma que os filhos da casa, ¢ estavam sujeitos ao Direito penal. Mas os escravos nado tinham dircitos dentro da legislagao romana; seu matriménio nao tinha valor legal, mas de costume (contubernium) e seus filhos passavam a ser propriedade do senhor.* Nao sabe- mos até que ponto se aplicava de fato a legislacia romana na Asia Menor; cahe duvidar disso, como se verd mais adiante. A cscravidéo justificava-se filosoficamente como parte da lei natural." Para que pudesse existir a aristocracia, argumentava- Se, era necessario que os deuses provessem os aristocratas de quem os servisse. Os escravos, por sua parte, cresciam imbuidos desse modo de pensar, resignados com o destino que se supunha que a deusa Fortuna lhes preparara. Ei outras palavras, de um lado como de outro, a escravidao foi considerada (durante muitissimos séculos) como condicao natural, parte integrante da vida e de suas leis intrinsecas. Prova disso 6 que, por um lado, entre as corren- tes de pensamento que de uma ou de outra maneira advogavam a liberdade do humem, como o eram os estéicos e os cristaos, ndo se defendia a aboligdo da escravidao, mas apenas se falava de liber- dade “espiritual” ou interior. E, por outro lado, essa atitude men- tal explica por que nao havia revoltas ou sublevacées de escravos; *° Expoem-se pormenorizaciamente as condigées legais dos escravos no direito romano ue obra clissica do professor M. Klasen, Das rémische Privatrecht, I, especialmente pp. 284-206. Vejarou lambens o estudo classico, de W. Buckland, Ihe Homan law of slavery, Cambridge, 1908, ¢ o mais recente de C. Boulvert e M. Morabito, “Le druit de Pesclavage sous le Haut Empire", com abndante bibliografia. “‘ Este enfoque néo mudou ainda hoje em algumas partes do mundo, e & tipicn de cettas mentes burguesas. Vejam-se as observagies de G. E. M. de Ste. Croix, Class struggle, +418, 61 acontecimentos como a revolta do legendario Espartaco em Roma, na década de 70 a.C., ndo se repetiram. As condigées de vida dos escravos na Asia Menor eram em geral melhores do que costumamos imaginar:“* muito melhores que a dos negros levados para trabalhar no sul dos Estados Uni- dos. A imagem de que eram freqiientemente agoitados, acorren- tados, torturados ou mesmo executados por qualquer capricho vem de projecdo ingénua de uma realidade alheia 4 época e & regiao peuprafica yue uus vcupam. Cerlamente se maltratavam os escravos, eram objeto de abusos e espancamentos, mas isso estava longe de ser 0 trato que comumente se |hes dava. Se confiar- mos nos testemunhos que possufmos, pode-se afirmar que no Oriente os escravos cram tratados muito melhor do que no Ocidente e por conseguinte melhor que em Roma, de vide cunsta que v bra- to despético de escravos era muito mais comum que em outras partes,*® Sendo o escravo “um instrumento com alma”,"’ parte integrante de tudo o que era da casa, costumava ser tratado com considcra- ¢ao e humanismo, n4o necessariamente por razOes humanas, mas primerdialmente utilitarias, que redundavam em seu bem-estar. Tinham um minimo de direitos (nao perante a lei, mas por forca do costume): alimentagdo, vestes, matriménio, um minimo de vida familiar, inclusive certas posses e poupangas (apophora, peculium) com o consentimento de seu senhor, que nao poucas vezes serviam 4S A bibliografia sobre a situagae dos escraves na antiguidade ¢ simplesmente enorme. Veja-se, por exemplo, a coligida por J. Vogt e outros, Bibliographie zur antiken Sklaverei, Bochum, 1971, que se pode atualizar com a proporcionada por F. Laub, Die Begegnung des frihen Christentums mit der antiken Sklaverei, 110-115. De todos os estudos, cabe desta- car 0 ja classico de W. Westermann, The slave system in Greek and Roman Antiquity. Oferece uma colegao de textos It. Wiedermann, Greek and Roman slavery: a sourcebook, Baltimore, 1981. ** Sobre tudo isso vejam-se as informagies ¢ observagdes bem fundadas de W. L. Westermann, 0.¢., 102-105; 5. Scott Bartchy, Mallon chresai, 67-82, e os textos citados em T. Wiedermann, o.¢. * Aristoteles, Pol. 1253b; ef. Et. Nic. viii, 11. [gual opiniéo expressou Varrdo, Agric., i, 7 (6 “win inst: wueatu avbiculadu”), 8 Limitar-me-ei a falar dos ascravoz residentes nas cidades, pois o estudo se concentra na vida urbana. Portanto, nao falarei das condigdes dos escravos no campo. que em geral eram mais diffceis do que na cidade, nem dos escravos nas minas, que era os que mais sofriam em sua escravidao; devido as condigdes e ao trato que af recebiam, geralmente morriam jovens. 62 para comprar sua liberdade; tinham também direito de participar de associagées de carater filosdfico-religioso ou artesanal. Um escravo era propriedade valiosa e titil, e por isso dele se cuidava para que pudeseo render oz frutos que dele se cepera vam.**Os maus tratos, como € ébvio, eram contraproducentes, uma vez que depois nao 86 o escravo se ressentia, mas também dimi- nuija sua capacidade de trabalho: um escravo morto era um escra- vo perdido. Nao poucos escravos ganharam a confianga de seus senhores e foram colocados em posigées de confianca, como supervisores ou come administradores, inclusive sobre outros escravos, como 0 ilus- tram, por exemplo, as pardbolas e comparacées de Jesus em Mt 24, 45ss; Le 19, 11ss.5! Havia escravos aos quais seu amo permitia trabalhar por conta propria parte do tempu, deutru das premis- sas da propriedade de seu senhor. Entre os escravos havia gente culta, mestres e filésofos, poetas e artistas. Estes eram especial- mente apreciados nas casas de seus amos, até an ponto de se en- earregarem alguns da supervisdo da conduta c cducagao dos fi- hus da familia, aluando como “pedagugos”. Os escravos de extra- ¢ao ou formagao grega eram altamente cotados em Roma, da mes- mo forma come o era a cultura grega. Os escravos gregos eram utilizados como secretérios ou mesmo como mestres. As escravas podiam servir de nutrizes. Ou seja, segundo seu grau de cultura e qualidades humanas, os escravos podiam ser integrados na vida familiar de seus senhores em nivel insuspeitado.” Em principio, o senhor tinha direito sobre o corpo de seus escravos. Nao faltaram casos de senhores terem escravas como + Em meados do século 1 d.C., o famoso Columella, em sua obra De re rustica, dé ume série de recomendagées sobre a maneira de tratar os escravos no tocante a roupa, habita- eo, vida familiar, saiide etc,, mas ndo o faz por sentimentos humanistas, mas para que, sendo assim tratados, trabalhassem mais, “ Castigos, como a flagelagéo, eram excepcionais, se nos cieixarmos guiar por Juvenal, Sat. 6, 474595 14, 60s (falando de Roma), e'Técito, An. XVI, 19.4. Mais pormenorizadamente veja.so K. R. Bradley, Slaves and masters, 118-137. Todavia, ¢ indubitavel quo oeorriam maus tratos. a julgar pelo ntimero de fugas de escravos. 0 cristianismo exortava insisten- temente aos escravos convertidos que obedecessem a seus amos: 1Cor 7,218; Ef 6,5; Cl 3,22; Tt 2,9; 1Pd 2,18. * Para mais pormenores, ef. J. Vogt, Ancient slavery, cap. VIL. © Ib, cap. Ve 63 amantes; inclusive de quem tivesse filhos de alguma escrava. Se bem que nao constitufsse unido legal, o “matriménio” entre escra- vos era permitido, sem significar que fosse indissoliivel.®* As ve- zes se chogava ao matriménio entre um homem livre c uma co- crava. Dos testemunhos que nos chegaram, s4o exvepciunais os casos da venda de um casal de escravos; mais ainda de uma fami- lia, S4o abundantes, ao invés, o caso da venda de algum membro de uma “familia”, especialmente de filhos de escravos, As vezes com sua mae.5+ Os mais ardentes defensores do trato humanitaric dos escra- vos foram os fildsofos estéicos. Segundo eles, os escravos eram escravos sé externa e fisicamente, mas interiormente eram pes- soas livres e, sendo tao humanos como os outros homens, com demonstrada igualdade v inclusive superivridade de capavidades, deveriam ter igualdade de direitos. Essa visao assemelha-se em boa medida ao modo de entender a escraviddo por parte dos cris- tdas, por exemplo, de Paulo, Todavia, ninguém advogou sua abo- ligao. Os escravos cram considcrados em pé de igualdade com os néo-escravus ei assuciagoes (thisiol, collegia), especialmente nas de carter religioso, entre as quais se contava o cristianismo.® Muitos escravos, a partir do séc. I d.C., eram filhos de escra- vas que tinham sido livres e educados, de forma que a educagdo se “© Cf. H. Gulzow, Sklaveret, 110-114, e W. L. Westermann, Slave system, 11/-119. 4K OR. Bradley, Slave and masters, cap. I. A documentagao papirolégica du Egitu ude atasta nenhima venda de casais cu familias de eseravos, mas sim de mulheres com ceus filhos. ® Frisou-o repetidas vezes o influente Séneca, por exemplo, em Ep. 31, 47, 77; De Ben. ili, 21. Mais detalhadamente, ef. E. Elorduy, Die Sozialphilosophie der Stoa, Leipzig, 1936 (partes Le IT}, ed, Vogt, “Wege zur Mensehlichkeit”. A mado de exemplo, valha a citagdo da carta n. 47 de Sénsca (a Lucilio), “Soube cum satisfagau pelus yue estiveram cuntige que vives familiarmente com tous eseravos. Isso se encaixa em tua sabedoria e em teu oncino. Sao escravos. Mais ainda, séo pessoas. Sdo escravos, mais ainda sio companheiros. S40 escravos, mais ainda humildes amigos. Sao escravos, mais ainda co-escravos, se se pensa que a fortuna pode favorecer iguaimente a uns e outros. Por isso me rio dos que conside- ram vergonhoso tomar refeigdes com o préprio escravo. De outro lado, 0 provérbio: ‘tens tantos inimigos quantos escravos’, manifesta a mesma arrogdncia, Nav sdu nossus iniini- gos, mas nés § que os lovamos a eorom...” Temos um estudo sintético, mas bem informado, sobre o trato dos escravos na fmbi- to do cristianismo nascente na obra de F. Laub, Die Begegnung des friihen Christentums mit der antiken Sklaverei, além de estudos mais amplos como os de H. Gtilzow, Christentum und Sklaverei, 5. Scott Bartchy, Mallon chrestai, e B. Grimm, Untersuchungen, cap. 4. Quanto as associagées, veja-se adiante. 64 passava de uma geracdo a outra de escravos. Alguns amos ofere- ciam educacao a seus escravos, particularmente se eram joveneo davam sinais de alguma habilidade proveitosa, ainda que se con- vedesse essa educacao da parte do senhor para fins egoistas, para que se lhe tornasse mais Util o escravo.>’ A educacao de um escra- vo costumava-se considerar investimenta que aumentava seu va- lor econémico. De fato, no mercado se fazia diferenga entre um escravo educado e um sem instrucau. A issu se deve acrescentar a simples observacgao de que nao poucos escravos adquiriram edu- cacdo pelo trato com pessoas educadas e pelo tipo de trabalho a que se dedicavam, inclusive por orgulho pessoal (autodidatas). C. A. Forbes destaca um decreto ilustrative do imperador Domiciano: “Considerei necessério frear por meio de medidas rigorosas a ava- reza dos médicos e mestres, cuja profissdo, que se deveria transmi- tir somente a limitado ntimere de jovens nascidos livres, estd sen- do descaradamente vendida a conservos camareiros, que estdo sen- do admitidos a uma formagdo profissional, nao por sentimentos humanitarios, mas com a finalidade de aumentar os ganhos de seus senhores. Portanto, quem ganhar dinheiro da instrucao de escra- vos deverd ser privado da imunidade outorgada por meu deifieada pai, e considerado como se estivesse praticando sua profissaia em cidade estrangeira”.* Nao sabemos até que ponto tudo isso era certo quanto a Asia Menor, embora haja razéee para pensar que inclusive seria me- lhor sob muitos aspectos, dada a inclinagdu humanitaria do pen- samento e da cultura gregos que predominavam na regido, como € bem conhecido. Do exposto se deduz que, no sée. I, as condigées de vida dos eseravoo na Asia Mcnor eram bastante mais humanas du que se cosluina imaginar. Eram, com efeito, nao poucas vezes muito mais vantajosas do que as de alguns homens livres que se achavam * Podem ver-se a respeito os estudos de C. A. Forbes, “Education and training of slaves”, eS, Mohler, “Slave education”. Suetonto, em suas Vidas de los gramdticos destacou uma série de escravos que obtiveram repuluda educagdy, ainda que na realidade se tratasse {obviamente) de excegdes, Marcial, X, 62, indicou que um bom namero de escravos estudava taquigrafia, pois de fate muitos eram usados como seeratirios. Nao se encontraram teste- munhos de escravos advogacbs e atletas, profissées consideradas como as mais nobres. * “Education and training slaves”, 348s. 65 carregados de dividas ou inclusive viviam com a preocupacao da sobrevivéncia. Por isso nao estranha, por exemplo, que familias pobres abandonassem os filhos com a esperanga de que fossem recolhidos e educados como escravos, ou os vendessem como tais e até mesmo se vendessem a si préprios como escravos. $6 se compreende isso no caso de que a condigdo de escravo oferecesse vantagens de que um pobre ndo podia gozar em sua condigée de livre. Além de ter o sustento assegurado, o escravo aprendia mui- tas vezes uma profissao ou arte que lhe poderia ser muito util.” Para um senhor, a posse de um escravo dessa espécie obviamente era vantajosa, na medida em que representava para ele forga de trabalho e producdo e, portanto, era uma fonte de comodidades. Talvez agora se compreenda melhor por que ndo havia suble- vag6es ou revoltas de escravos. Suas condigées de vida — em con- traste com as dos tempos de Graco e de Espartaco — eram em geral muito humanas, e muitos dos escravos se achavam integra- dos nas familias com as quais viviam,"! até ao ponto de sua fideli- dade primeira ser para com essa familia (cujo nome, de mais a mais, levava), antes que para com outros de sua mesma condicao social. Além dissa, sabiam-se mais afortunados que muitos livres, pois suas necessidades materiais cram em geral cobcrias satisfa- toriamente, tinham ali sua propria familia e podiam movimen- tar-se com suficiente liberdade. Mas seria exagerado e incorreto afirmar que eram essas as condicées e a situacao de vida de todos %® CE Dio Criséstomo, Or: XV, 22s, © Em seu Dise. 1V.1.37, Epiteto desereveu os beneficios da vida da escravidao: casa, alimentagao ete. 1 Pense-se, por exemple, no sentido e aleance da expressiio encontrada no Novo Testa- mento, de que se batizou tal pessoa “com (toda) sua casa” At 11,14; 16,15.32; 18,8; 1Cor 1,16; 16,15; Rm 16,10; Jo 4,53. Mais detalhadamente, veja-se G. Delling, “Zur Taufe von ‘Hausern’ im Urehristentum”, em NovT 8 (1965) 293-307. O termo “eseravo” (doutos), ainda que denote submissao e dependéncia, no era termo desprezivo e pejorativo na literatura crista, ® Razao adicional que expliea por que nao houve levantamentos de escravos é fate de que muitos eram estrangetros e que nao se associavam clandestinamente; nao havia o que chamamos de “consciéncia de classe” nem, como jé se indicou antes, consciéncia de que a eseravidao era situagdo contréria & dignidade humana. O que tornava a escravidao inde- sejavel para o que podia ter um nivel humano de vida era a privagao da liberdade; como vimos, para muitos isso era um problema e para autros muito relativo, e até mesmo podia ser bom prego a ser pago em troca das vantagens materiais que lhe poderia significar. 66 os escravos. Naa 6 em vio que se ouvia falar de escravos fugidos da casa de seus senhores; e quando um escravo era vendido tinha que se assegurar de que nao tinha a tendéncia de fugir. E preciso distinguir entre os escravos destinados ao servico doméstico ou a trabalhos em relacdo direta com a casa, e os desti- nados ao trabalho no campo. Esses ultimos geralmente viviam ali ¢, ainda que o trabalho fosse duro, a vida no campo contava com miaiores beneficios e maior liberdade, quase como a vida dos colo- nos. Depois de seu vasto e pormenorizado estudo, T. R. S. Broughton péde afirmar que “mal ha evidéncia de que houvesse escravos destinados & agricultura na Asia Menur durante o pe- riodo romano”. Cui efeito, no campo em geral trabalhavam pe- Ges e camponeses assalariados, gente livre. De mais a mais, os latifundidrios geralmente arrendavam suas terras. Os escravos encontravam-se predominantemente nos scrvigos e trabalhos do- mésticos, seja como jardineiros, serventes, cozinheiros, mensa- geiros, empregados em algum trabalho artesanal ou em alguma profissao que conheciam.“ Se se pode falar de niveis sociais entre escravos, os mais bem tratadas eram os dedicados & administra- gao; no outro pélo, os mais desprezados eram os destinadus a tra- balhar nas minas, onde as cundigdes e as expectativas de sobrevi- véncia eram as mais baixas. E dificil determinar a proporgao de escravns na populacgao de uma cidade em tempo determinado, pois, por um lado, infeliz- mente no possuimos nem referéncias nem dadus precisos, e, por outro, sabemus que variava muito de uma cidade a outra. A pro- porgao mais alta de escravos no impéro romano se encontrava em Roma, pois ai residiam os grandes ricos. No Egito, ao invés, no ° “Roman Asia Minor”, 690. ‘ara mais pormenores, vejam-se J. Guyé, Les classes sociales, cap. IV; ‘I. R. S. Broughton, “Roman Asia Minor’, 88980 e pacaiss, W. Le Westermann, ‘Shave aystem, Bie L. Macqueron, Le travail des hommes libres, 189-165 © passim. Obviamente, as cscravas (mulheres) eram preferentemente designadas para trabalhos da lar. Se a escas eamamos 0s filhos e uma parte dos escravos varées, nao restariam muitos escravos para o campo. No campo achamos eseravos ocupando postos de confianga de seus senhores, seja como vigioe, ecja como administradores. A issu se referiu Jesus em algumas de suas parabolas. ___ @ Segundo Tacito, Ant. XIV, 438, Pedanio Segundo, um dos hoiuens usais ricos da Ita. lia em meados do séc. 1d.C,, possufa uns 400 escraves. E segundo Plinia, N. H., 38, 135, tal de Isidoro possufa, no ano 8 d.C. em Roma, 4.116 escravos. Na opiniao de muitns, mais da 67 séc. 1 d.C., era consideravelmente baixa: abaixo de dez por cen- to. Segundo o erudito W. L. Westermann, que dedicou quase toda sua vida ao estudo da escravidao na antiguidade, “nas cidades da Asia Menor, em contraste com os povoados, as aldeias e as regioes rurais, o total da populacao de escravos entre os séculos I e II d.C. poderia ter sido aproximadamente um terco da totalidade de resi- dentes”.*7 A mesma porcentagem se calculou para Corinto, e para Efeso.** Ao passo que em Roma houve nu séc. I crescente demanda de escravos; os dados, que foi possivel coligir, indicam que, em outras partes do império, a tendéncia era inversa, ou seja, houve diminuig&o constante do nimero de escravos.”° Em toda casa rica havia escravos. E quase um simbolo de status como o é 0 automével hoje. A riqueza era mostrada nao s6 pelos banquetes oferecidos e os momumentos construidos, mas também pelo niimero de escraves que se possuia. Onde havia gran- metade da populacao de Roma eram escravos nos tempos de Augusto, Plinio, o Jovem, que era homem rico, segundo seu préprio testemunho, possuia (no comego do séc. I d.C.) uns 500 escravos. © Segundo W, L. Westermann, Sfave system, 120s, nu Eyilu “a purcentugen de vscra- vos que se tinham nas aldeias era muito baixa” (n. 3: “De um a dois por cento nos lugares pequenos, de sete por cento na cidade de Ptalamen Hormas”). * Op. cit., 127. Para esse calculo, Westermann apéia-se num dos poucos testemunhos que possuimos, que é do médico Galeno sobre sua cidade, Pérgamo. Parece-me demasiado alta a porcentagem de escravos estimados para toda a Asia Menor. De um lado, sob 0 terma de “escravos (dou/ot)” podiam estar compreendidos servidores nao-escravos, peque- hos arluséus ¢ uperarius. A cifa absoluta que dava Galeno era de quatro mil escravos € citenta mil aduitos livres, aos quais ce deveria acrescentar meninos ¢ outros segmentos marginalizados da populacao. 5 Essa é a conclusao do estudo de S. Scott Barthchy, Mallon chrestai, 58s, que acres- centa que “a vida de eseravo foi ou tinha sido experiéncia de dois tergos da populagao de Corinto no séc. I d.C.”. Isso indicaria que de fato nem todo esse tergo era de escravos. Corinto, assim como Pergamo, era outra das cidades caracterizadas pela presengu de muitus rieas, Em todo caso, numa e noutra cidade, a porcentagem era elevada, Isso o indicam tanto os restos arqueolégicos dessac cidades como as referéneias literdrias, entre as quais secontam as de Paulo em 1Cor 1.11.16; 7.21. ® Cf. Dunean-Jones, Economy, 260s. Efeso também era uma das cidades ricas. Na realidade, trata-se da situagao existente na séc. I d.C. Dado que o niimero de escravos ia diminuindo, cabe deduzir que no sée. | tinha sido maior. ~~ CI. W. L. Westermann, Slave sysrem, 100s. Isso obedecia fundumentaluenle x re- 26es econémicas: os escravos eram caros, ¢ a oferta tinha deerescido porque as fontes de eecravos (as guerras, a pirataria e os seqiiestros) tinham-se reduzido consideravelmente ‘Uma das dltimas fontes de escravos fora a guerra da Judéia, que terminou com a destrui- cho de Jerusalém no ano de 70. Segundo Flavio Josefo, BJ, VI,9.3 0 ntimero de judeus vendidos como escravos fai de 97.000. 68 des aristocratas ricos, costumava haver elevada porcentagem de escravos.”* Como é de supor, os escravos (ou seus pais) provinham de alguma regio distanto, ondo por alguma razao (geralmente como resultado de guerras) tinham sido capturados para ser logo ven- didos em outras regides. Logicamente, neste caso nao eram cida- daos do lugar onde viviam como escravos. Eventualmente podi- am obter a cidadania local — mas nao a cidadania romana — em fungdo da vontade do seu senhor na hora de sua libertagév. A origem tao variada dos escravos explica em grande medida por que se {foi forjando em diferentes regides do império romano uma nova identidade cultural, resultado de paulatina simbiose com culturas fordneas. Na Asia Menor a influéncia foi predominante- mente oriental, das longinquas regides asidlicas, cum seu esoteris- mo e sua mistica. Em Roma predominou a influéncia grega. 6. OS LIBERTOS Distingia-se na antiguidade, social e juridicamente, entre escravos c livres (Jiberi). Entre esses tltimos havia por sua vez uma clara distingéo de muito peso: entre os nascidos livres (ngenui) e os nascidos escravos e que obtiveram sua liberdade, ou seja, os libertos (Jiberti). O filho de um liberto era ingenuus/ livre se nasceu quando seu pai jd tinha obtido a liberdade; do contrario, era considerado filhe de escravo. O escravo podia obter a liberdade e, em conseqiéncia, passar legalmente a outro nivel social de maior consideracdo e aceitacao, seja camn resultado de um gesto de gratidéo de seu senhor (manumisséo) ou pela compra de sua liberdade (redengéo).” A manumiss4o ou libertagéo costumava-se obter mediante declaragao feita pelo amo perante o magistrado de que desejava 11 Quanto az pregoe doz occravon, voja eo W. L. Wentormann, o.c., 1000, ¢ A. H. M. Jones, “Slavery”, 9s, Uma lista completa de pregos de escravos na Itilia pode-se encontrar no Apéndice 10 de Duncan-Jones, Economy, 3488s. Na segunda metade do séc. I d.C., um escravo custava em Roma entre 300 e 1.200 dendrios, o até mesmo mais. # Para mais pormenores, vejam-se A, M. Duff, Hreemen, cap. Ul, e 8. Scott Bartchy, Mallon chresui, 88-96; K. Hopkins, Conquerors and slaves, caps. IL e HI. 69 que seu escravo fosse reconhecido livre e inscrito como cidadao li- vre. Essa era a manumisséo vindicativa. Podia-se obter também por vontade testamentdria do amo: 4 morte do senhor o escravo obteria cua libertagéo. Era o modo mais antigo de outorgar a liber- dade a um escravo. As razdes que levavam a libertagao de escravos eram muito variadas; a mais freqiiente era a gratidao. Para ser valida, toda libertacao devia ser ratificada por um magistrado. Oescravo geralmente contava com a esperanga de algum dia ser liberto, mais ainda se antes gozara de liberdade. Esse profun- do desejo de libertacdo muitas vezes o levava a angariar-se a gra- tidao de seu senhor lisonjeando-o e dedicando-se com esmero a seu servigo, ou a ser assiduo poupador, guardando a parte o pro- duto de ganhos (peculium) devidos a sua habilidade, a vendas, a Wabalhos extras vu servigus especiais, com u cousentimento de seu senhor. K. Hopkins calculou que o prego médio que um escra- vo pagava para obter a liberdade era aproximadamente o equiva- lente a trés anos de sustento de uma familia humilde (cerea de 400 dracmas). O prego combinado com o senhor costumava scr proximo do que pagara no momento de sua compra, de maneira que o senhor recuperava 0 capital investido e pudesse eventual- mente adquirir outro escravo."3 O interesse era mituo: 0 escravo adquiria sua liberdade, e o senhor recuperava seu investimento ou podia comprar outre escravo mais jovem e, portanto, mais efi- ciente; com a velhice, naturalmente, o rendimento diminuia ao mesmo tempo que aumentavam as enfermidades. Do que se disse se deduz que o eserava que camprava sua liberdade tinha sufi- cientes entradas que lhe permitiam acumular a soma estipulada, o que o tornava de fato mais ricv que muitos campuneses. O numero de libertos cresceu rapidamente nos primeiros sé- culos de nossa era. Com efeito, 0 grosso da populacao, a plebe, era formada pela mescla de libertos e de nativos do lugar nascidos livres.” Pelos fins do séc. I, o historiador Tacito apontou em seus % Conquerors and slaves, 168 (ef. p. 147). * Veja-se especialmente J. Gagé, Les classes sociales, eap. IV. Quanto A proporgao de Hibertos, A. M. Duff, Freemen, 199s, dé a exagerada cifra de 80 por cento para Roma. Segundo S, Scott Bartchy, Matlon chresai, 58, dots tergos de Corinto eram ou tinham sido estravus nu sé, 1.6, 70 Annales (XIII,27) que grande parte da nobreza romana descendia de libertos. Como é de supor, as autoridades romanas emitiram uma sé- rio do lois quo regulamentavam o concernente acs escravos, in clusive sua eventual libertagdo. Entre as mais importantes, que datam do imperador Augusto, figura a Lex Fufia Caninia, que proibia a libertacdo de escravos para além de determinada por- centagem (se se possuiam até dez escravos, nao se podia libertar mais da mctade; se até trinta, néo mais de um tergo; se até cem, nav mais de um quarto, e se até quinhentos, nao mais de um quin- to, mas nunca mais que um total de cem escravos). ‘lentava-se evitar que houvesse demasiado nimero de libertos. Segundo a Lex Aelia Sensia, nao se podia libertar um escravo menor de trin- ta anos. BDaseando-se nas inscrigdes encontradas, G. Alfuldy pide determinar que no curso dos primeiros séculos de nossa era, na Italia e no Ocidente houve diminui¢ao constante do nimero de escravos maiores de trinta anos de idade.” Par falta de informa- gao, nao sabemos se as atitudes perante a libertagao de cscravos foraw as wesmas no Oriente. Mas udu sugere que da Grécia para o Oriente era-se menos liberal nesse aspecto e havia mais resis- téncia a libertar escravos. A libertacao podia ser absoluta ou condicional. Obtinha-se a libertagdo condicional ou por soma inferior 4 que representaria a libertacaéo absoluta, ou por simples favor do senhor, mas sempre sob a condicdo de ficar de alguma maneira a seu servicgo. O que significava viver na casa do seu senhor trabalhando com ele, mas com a liberdade de movimento que a condigao de livre Ihe outor- gava, ou viver independente com o compromisso de servir a seu senhor quando fosse necessario, por exemplo, no caso de o escra- M. Klasen apresenta a legislacao romana em seu estudo Das rémische Privatrecht, I, 293-299, Veja-se também G. Alfoldy, “Die Frailassung von Sklaven”. 8 “Dic Freilassung von Sklaven”, 111s; na Itélia 27 por cente cram livres na idede de vinte anas @ 58,7 por canta na idade de trinta, segundo os dadne abtidos de insarighos funerarias nos trés primerios séculos d. C., com crescente tendéncia a libertar escravos nos diltimos séculos, Na Espanha eram-no 18,3 por cento e 42,5 por cento, respectivamen- te, enquanto nas regides do Dandiio a cifra era de 12 por cento e 38,7 por cento, respecti- vamente, Com mais de trinta anos, eram escravos ainda 15 por cento na Italia, 29 por cento na Espanha e 7,4 por cento na regio do Daniibio. 7

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