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O QUE JESUS DISSE? | O QUE JESUS NAO DISSE? | © que foi mudado ao longo di ona Bilstia — originais. «gesguveaan oa SAR Um livro para leigos, tedlogos, historiadaresi. @ |rstigio ‘ill > éXSSIC SASa{ INDO NYWYHY ‘C Lavg e BART D. EHRMAN ridade em Biblia do mundo O QUE JESUS DISSE? O QUE JESUS NAO DISSE? QUEM MUDOU A BIBLIA E POR QUE objetivo sera nao ser repetitivo. Colocar livros e autores que ainda ndo estéo disponibilizados. Deixemos a preguia de lado. Como diria 0 filosofo, "escaneio e publico no 4shared; logo existo" Como dizem, alguns autores pesquisam anos, e merecem uma gratificagéo por tal zelo para com o conhecimento. Aqui va minha gratificagao: MUITO OBRIGADO! Vou ler seu exemplar como forma de gratidéo por seu incrivel trabalho. "Ndo terho ouro nem prata, mas tudo que tenho te dou": Muito obrigadol!!. A gratificagdo pecuniaria deixe pra depois, visto que os homens para pensar sua existéncia devem estar com as necessidades materiais satisfeitas, vocés néo precisam do dinheiro. Isso é€ um elemento acessdrio a existéncia! Ao comprar um livro, o autor recebe da editora uma micharia que nao daria nem para sobreviver. Ou seja, baixem, leiam e nao paguem nada! Essa sera sua forma de gratificagao! Bart D, EHRMAN O QUE JESUS DISSE? oO QUE Jesus NAO DISSE? 0 1097 5 Uae ete Watrance! Quem mudou a Biblia e por qué he fan, Lv’ Tradugao Marcos MARCIONILO @Prestigio Ane x Who Changed the Ble and Why AGOES S.A. 1URO PUBLICAQOES SA Aleandes Co » Paiva Gb Semionovas Olina 08) 2-820 — Fax (21) 3882-8212 8313 ra Bruce Metzger SUMARIO AGRADECIMENTOS 9 inrropugso IT — a rrr——OSON_C 3 vexros 00 novo sestanento 8 I awosca nas onions LTT 5 omscivars Que raven a DIFERENGA 137 FOLOGICAMENTE MoTIVADAS T6T 6 aurenacors rextvals 7 os muspos socints o Texto 187 Conclusdo: MUDANGAS NAS ESCRITURAS 217 ixpice 229 AGRADECIMENTOS Devo ageadecer especiales ores, que leram 0 meu manusc ¢ ¢ defenderam) mudancas: Imes, do Bethel College, em Minnesota; Jef University; Michael ker, da Loyola Marymount University, € minha es cialista em Idade Média da Duke University, © mundo acadi lugar mais feliz se todos os autores tivessem leitores como eles. “Tenho de agradecer também aos editores da Harper San Franci Loudon, porter estimulado e assum sposa, Sarak Becky Dediquei este livro a meu mentor ¢ “Pai-Doutor”, Bruce M. Metz ime ensinou tudo nesse campo e continua a ser inspiragao em meu tral INTRODUCAO | alvez mais do que qual. 10, 0 assunto de: trinea anos, des los do Novo Testamento. Pe yando eu ainda era um jovem adulto ¢ ini fato de esse assunto ter feito lever comegar com um relato ¢ continuam a ser, tio importan: java os meus parte de mim por todo esse tempo pessoal de por que esses dad tes para mim. O livro versa sobre os antigos manuscritos do Novo Testamento € as srengas encontradas neles, as ¢, as veres, a alterara di re os copistas que reproduziram as Es: © Isso pod ‘como chave para a autobiografia de algué sobre essas coisas. no se tem muito cont Antes de exp 1s do Novo Testamen- lectual em mim, na compreensao de mim mesmo, vivo, em minha visio de Deus e da smo. Nasci e cresci em um tempo ¢ lugar conservadores — a area central dos Estados Unidos da América, em meados da década de 1950. Minha é familia normal, di mente religiosos. Comegan- jo nada teve de extraordindii membros que iam & igteja sem ser especi JESUS DISSE? do pelo ano em que ev estava na S* série, estivamos envolvidos com a igreja episcopal em Lawrence, Arkansas, uma igreja d tor sabio temo, que por acaso era nosso vizinho e ‘meus amigos (e com quem fiz algumas travessuras ma no médio — algo envolvendo charutos). Como a maioria das igrejas epis- copais, a nossa era socialmente respeitavel e socialmente responsivel se levava a sério a liturgia da igreja, e as Escrituras faziam parte dessa turgia. Mas a Biblia nao era abertamente ressaltada: estava dos guias para a fé e a pritica reli como um sa, a0 lado da tradigao da igreja e do bom senso. Nés realmente nao falévamos muito sobre a Biblia, nem liamos muito, nem mesmo nas aulas da escola dominical, que se foca- vam mais em questdes praticas e sociais e em como viver no mundo. A Biblia tinha um lugar de honra em nossa casa, por causa especi mente de mame, que de vez em quando lia a Biblia ¢ procurava se cer ficar de que suas histérias € ensinamentos éticos fossem bem entendidos or nds (sem se prender muito as suas “doutrinas”). Até minha época de segunda fase do ensino fundames a Bib livro misterioso um tanto quanto importante para a religiio, mas certa- mente no como algo a ser aprendido e dominado. Eu a considerava um tipo de antigiiidade, de algum modo estreitamente vinculado a Deus, & Igreja € a0 seu culto. Mesmo assim, eu no via razio alguma para ‘em carter privado ou como estudo, I,acho q eu As coisas mudaram drasticamente para mim quando passei para a 6s rie do ensino fundamental. Foi nessa época que fiz a experiéncia de “nas- cer de novo” num ambiente muito diferente do que reinava na igreja de ‘minha comunidade, Eu era um menino comum — um bom estudante, in- teressado ¢ empenhado nos esportes escolares, mas que nao se destacava em nenhum deles; interessado ¢ empenhado na vida social, mas que nao fa ia parte do alto escaléo da elite dos mais populates da escola, Lembro que sentia uma espécie de vazio interior que nada parecia capaz. de preencher, ue nio saia muito com meus amigos (nés jé tinhamos comecado a beber socialmente nas festas), que namorava (comecava a entrar no mysterium tremenduon do mundo do sexo), que estudava (eu dava duro ¢ tirava boas notas, mas n que trabalhava (eu era vendedor por- ta.a porta de uma firma que comercializava productos para venezianas), € ue ia & igreja (eu era acélito © muito piedoso — estava presente nas ma- thas de todos os domingos, no importa o que tivesse acorrido nas noies o era nenbum erin INTRODUGAO, 1 de sébado). Havia uma espécie de solidio associada ao fato de eu ser um joven adolescente, mas, naturalmente, eu nao entendia que isso dece lescente. Eu sempre achava que faltava algo. smecei ¢ freqitentar as reunides do clube Campus Life Youth for Christ. E casas dos garotos —a primeira a qual cu fai era uma festa no quintal de um garoto muito popular, o que me vou a pensar que o grupo devia ser legal. O lider do grupo era um rapaz de uns vinte e poucos anos chamado Bruce, que fazia aquele tipo de coisa profissionalmente — organizava clubes Youth for Christ localmente, ten- tava convencer garotos que cursavam o fundamental a “nascer de novo” a se dedicar a estudos biblicos mais sérios, a encontros de oragio ¢ coi- sas assim. Bruce era uma personalidade absolutainente cativante — mais jovem que nossos pais, mas mais velho ¢ mais experiente que nbs —, com ‘uma mensagem poderosa, segundo a qual o vazio interior que sentfamos {nds éramos adolescentes!, todos nds sentiamos um vacuo) era ¢: pela auséncia de Cristo em nossos coragdes. Bastava-nos pedir a C ‘que entrasse cele viria e nos cobriria com a alegria ea felicidade que s6 0s de ser um Nessa época, “salvos” viciam a conhecer. Bruce era capaz de citar a Biblia espontaneamente, ¢ o fazia com mui- ta constincia, Diante de meu respeito ¢ de minha ignoréncia da Bibl tudo me soava altamente persuasivo. Tudo era bem diferente daquilo que ev aprendera na igre, que implicava um ritual estabelecido havia m to tempo € que parecia muito mais voltado para adultos ja bem instala- dos na vida do que para criangas desejosas de diversio e de aventura, ue se sentiam vazias por dentro. reara abreviae ainda mas essa historia jé cesumida, por fim cooheci Bruce, aceit sagem de salvago, aceitei Jesus em meu coragio fiz, de boa-fé, a experiéncia de nascer de novo. Eu nascera factualmente ‘quinze anos antes, mas agora se tratava de uma experiéncia nova ¢ exci tante para mim e que mie fez dar inicio & jornada de uma vida de f€ que passou por grandes reviravoltas ¢ foi dar num beco sem saida que, de fato, demonstrou ser um novo caminho, que venbo seguindo faz mais de trinta anos. Aqueles denzre nés que fizeram experiéncias de nove nascimento con- ideravamse cristius “de verdade” — em oposiso aqueles que simples- mente iam a igreja por obrigagao, que nio conheciam verdadeiramente Cristo em seus corayes e que simplesmente se deixavam levar por im- ‘4 (0 QUE HSU DISSE? pulsos sem nenhum contetido real ses outros Um dos modos de nos diferenciar des- < compromisso com o estudo da Biblia e com a ora sao, Especi om o estudo da Biblia. O préprio Bruce era um homem da ele freqitentara 0 Moody Bible Institute de Chi podia dar uma resposta tirada da Bi ia para q) Iquer pergunta que se pudesse imaginar (¢ que nenhum de nés jamais imaginaria). Logo, asseia ter inveja de sta capacidade de citar as Fscrituras e comecei a es tudar a Biblia, a aprender alguns textos, a entender a sua importincia ¢ até mesmo a decorar os versiculos. Bruce me convenceu a tentar me tornar um ctistio “sério” car por inteiro a fé crista. Isso significava estudar as Escrituras et integral no Moody Bible Institute, 0 qu uma drastica mudanga de estilo de vida. e dedi- periodo aria \ » Moody, havia um “cédigo” de ética que os estudantes tinham de assinar ao entrar: nada de heber, fumar, dangar, jogar cartas, nada de cinema. E Biblia na veig. Costumavamos di: ter que no “Moody Bible Ins entre outras coisas, im blia era 0 nosso segundo nome”, Acho que eu 0 encarava como uma espécie de acampamento cris tarizado, Pelo sim, pelo no, resolvi nao usar meias medidas no que dizia Fespeito & minha fé: matriculei-me no Moody, entrei e la permaneci até o segundo semestre de 1973. A experiéncia no Moody foi intensa. Decidi me formar em teologia a, 0 que significava encarar muito estado biblico ¢ varios cursos de teologia sistematica, Ensinava-se uma s6 perspectiva em todos esses cur- s0s, subscrita por todos os professores (eles todos assinavam um termo de compromisso) ¢ por todos os estudantes (nds também o assinavamo: a Biblia é a palavra infalivel de Deus. Ela ndo contém etros. E completa- mente inspirada e é, em todos os seus termos, “inspiracdo verbal plena”, Todos os cursos que fiz pressupunham e ensinavam essa perspectiy Gualquer outra era considerada desviante e até mesmo herética. Acho ue alguém pode chamar isso de lavagem cerebral. Para mim, era um grande passo avante, que me afastava da timida visio da Biblia vera na qualidade de um episcopaliano em processo de so. ‘minba primeira juventude, Aquilo era cris verdadeiramente comprometidos. nismo intransigente, para os Contudo, havia um problema dbvio com a afirmacao de a Biblia ter sido verbalmente inspirada — em todas as suas palavras. No Moody, mos num dos primeiros cursos do curriculo que na realidade INTRODUGAO, 1s inhamos ci nao tinhamos os esctitos originais do Novo Testamento. pias desses escritos, feitas anos mais tarde — em muitos casos, muitos € muitos anos mais tarde. Além do mais, nenhuma das c6pias era. comp! nte.exata, visto que os copistas que as produziram, introduziram sdangalem algumas passagens, inadvertida clou intencionalmente. To- lo, em ver de realmente ter a3 pala- ia, © que kemos dos os copistas o fizeram. Desse m vtas inspiradas dos autografos (sto é, os siofC5piad\ ios autégrafos xepletas de erros. Por isso, uma das tarefas mais prementes era averiguar o que os originais da Biblia diziam, em face spirados e de no os termos mais. das circunstancias de eles sere Devo dizer que muitos de meus colegas no Moody nao consideravam. essa tarefa assim to significativa ou interessante. Eles se contentavam com a afirmacao de que 0s aut6grafos tinham sido inspirados, dando de ia dos autégea- subsist ‘ombros, mais ou menos, a0 problema da n fos. Para mim, porém, tratava-se de um problema muito atraente. Trata- va-se das proprias palavras da escritura que Deus inspirara. Claro que precisamos saber o que essas palavras eram se quisermos saber como Ele as comunicou a nés, visto que as palavtas aurénticas eram Suas palavras, misturadas com algumas outras (aquelas que tinham sido despercebida ou intencionalmente criadas pelos copistas) que nio nos ajudam muito se quisermos conhecer as palavras Dele Foi isso que acendeu 0 meu interesse pelos manuscritos do Novo Tes- tamento, ali pelos meus dezoito anos. No Moody, aprendi os rudimentos a s ca textual * um termo téc- de uma area de pesquisa conhecida como grit nico para a ciéncia gne busca restaurar.as palaveas “originais” de um texto a partir dos manuscritas.quc-as alteraram. Mas eu ainda nao esta- ‘va equipado para me lancar a esse estudo: primeiro, presisava aprender sgrego, 2 lingua original do Novo Testamento, ¢ provavelmente outras iguas antigas, como hebraico (a lingua do Antigo Testament cristo) ¢ latim, sem falar nas modérnas linguas européias, como alemio ¢ frap- \dores disseram acerca des Gs, para poder verificar 0 que outros pesqui Se assunto, Era um longo caminho a percorret. Ao término do meu trignio no Moody (era uma graduagao de tres anos), tive um bom aproveitamento em meus cursos ¢ me encontrava mais decidido que nunca a me tornar um pesquisador cristio. Na época, eu tinha idéia de que havia muitos pesquisadores altamente capacitados entre os evangélicos cristéos, mas nao muitos evangélicos entre os alta: 16 © QUE JESUS Diss mente gabaritados pesquisadores (seculares). [Por essa razio, eu queria me tornar uma “voz” evangélica em circulos seculares pela aqui itulos académicos que me permitissem dar aulas em instituigdes leigas sem abrir mao de meus ¢ matricular em uma destacada faculdade evangélica. Escolhi o Wheaton College, nos arredores de Chicago. No Moody, tinham-me avisado que eu teria dificuldade para achar lista era o Moody: o Wheaton s6 recebe cristios evangélicos e é a alma ‘mater de Billy Graham, por exemplo. No principio, eu o achei um pou- tériae isso de cebiam 0 que realmente importava? Decidi me formar em literatura inglesa no Wheaton, visto que a leitu- 1a fora sempre uma de minhas paixdes, e dado que cu sabia que para abrir camino nos circulos eruditos eu precisaria me tornar versado em ‘outra drca de erudigao além da Biblia. Também me comprometi a apren- der grego. Foi, entéo, durante o meu primeiro semestre no Wheaton, que conheci © De, Gerald Hawthorne, meu professor de grego, pessoa que vir ria a ter uma grande influéncia em minha vida como pesquisador, mestre €, por fim, amigo. Hawthorne, como a maioria dos meus professores no ‘Wheaton, era um cristo evangélico comprometido. Mas nao tinha medo de questionar a prépria fé, Na época, tomei essa sua atitude como sinal de fraqueza (na realidade, eu pensava ter quase todas as respostas para as Perguntas que ele fazia); no fim, passei a consideri-la um comprometi- mento real com a verdade, propria de alguém desejoso de se abrir 3 hips tese de que as préprias posigdes tém de ser revistas & luz do conhecimento acumulado ¢ da experiéneia de vida. Aprender grego foi urna experiéncia impressionante para mim, No de- correr do curso fui demonstrando facilidade no aprendizado dos rudimen- tos da lingua e estava sempre disposto a aprender mais. Contudo, num nivel mais avancado, a experiéncia de aprender grego se tornou win pouco ‘perturbadora para mim, por causa da minha visio das Escrituras. Logo co- Imecei a ver que o sentido, completo ¢ as nuances do texto grego do Novo ‘Testamento s6 podem ser plenamente apreendidos quando ele € lido e es 0st0. Os estudantes discutiat iragao verbal das Fscrituras. perspectiva crista, mas mesmo assim... seri que 7 tudado na lingua original (o mesmo pode ser dito do Antigo Testamento, como vim a descobrir posteriormente, quando aprendi hebraico). Entio ppensei: mais uma razao para aprender bem a lingua. Ao mesmo tempo, co- mecei a questionar minha compreensio das Escrituras como verbalmente inspiradas por Deus. Se 0 sentido completo dos termos das Escrituras s6 pode ser apreendido quando eles sto estudados em grego (e em hebraico), isso nao significa que a maioria dos cristaos, que no Iéem rnunca terdo completo acesso ao que Deus lhes quer comunicar? E isso néo torna a doutrina da inspiragdo uma doutrina exclusiva da elite académica, ‘que detém habilidades intelectuais ¢ disponibilidade para aprender linguas c estudar os textos, lendo-os no original? De que serve dizer que ay pala-| vyras so inspiradas por Deus se a maioria das pessoas nao tem 0 menor acesso a essas palavras, mas apenas a versdes mais ou menos canhestras{ dessas palavras para uma lingua, como portugués, por exemplo, que nada tem a ver com as palavras 0 ‘Meus questionamentos iam ficando cada vez mais complexos quanto mais eu pensava nos manuscritos que transmitiam as palavras. Quanto manuscritos que pre~ ica textual, que mais eu estudava grego, mais me interessava pel servam para nds 0 Novo Testamento e pela ciéncia da c supostamente pode ajudar-nos a reconstruir o que eram as palavras ori inais do Novo Testamento. Eu sempre voltava a meu questionamento bisico: de que nos vale dizer que a é a palavra infalivel de Deus se, de fato, ndo temos as palavras que Deus inspirou de modo infalivel, mas, apenas as palavras copiadas pelos copistas — algumas vezes corretamen- te, mas ourras (mnitas outrast) incorretamente? De que vale dizer que os aucégrafos (isto €, 0s originais) foram inspirados? N6s nao temios 0s or ginais! © que temos sAo.c6pias.civadas.de ettos, ¢ a vasta maioria delas 10 centirias retiradas dos originais e diferentes deles, evidentemente, em milhares de modos. Essas diividas me afetaram ¢ me levaram a mergulhar, cada vez lia realmente era. Eu me forme: mais, em busca de entender 0 que a em Wheaton em dois anos ¢ decidi, sob a orientago do professor Jeff Siker, diz que a leitura do Novo Testamento em grego é como ver uma figuea em quatro cores, ao pasto que l-lo traduzido 6 como ver a mesma gravura «em preto-e-branco: vocé pode chegar ao ponto, mas perde as nuances. 18 0 QUE JESUS DISSE? Hawthorne, especi a textual do Novo Testamento. Fui estudar com o maior especialista do mundo no assunto, um pes quisador chamado Bruce M. Metzger, que ensinava no Sem logico de Princeton, ‘evangélicos me avisaram que eu no de- Princeton, porque, segundo me disseram, eu dade em encontrar cristéos “verdadeiros” li. Afinal de con- tas, Princeton era um semindrio presbiteriano, um solo nao exatamente Contudo, meus estudos de liceratura in- lesa, filosofia e historia — para nio falar do grego — tinham ampliado significativamente meus horizontes, Eu estava apaixonado pelo cones’ || mento, em todos os seus campos, sacro ou secular, Se aprender a “verda- de” significasse no mais me identificar com os cristios renascidos que jeu conhecera no ensino fundamental, que assim fosse- Meu interesse eta avangar em minha busca da verdade, onde. quer, que ela me levasse, na confianga de que toda yerdade que cu aprendesse nio era menos verda- de por scr inesperada.ou.impossivel de enquadrar nos pequenos escani- nhos fornecidos por minha experiencia evangélica Quando cheguei a0 Seminario Teolégico de Princeton, imediatamen- te me matriculei no primeiro ano do curso de exegese (interpretacio! braica ¢ grega, e preenchi minha grade curricular com 0 maximo de discip! desafio académi- £0 pessoal. O desafio académico era completamente bem-vindo, mas 0s desafios pessoais que encarei eram emocionalmente penosos. Como men- cionei, ja em Wheaton, eu comegara.a.questionar alguns dos aspectos fundamentais de meu compromisso com a Biblia. como palavra infalivel de Deus. Esse compromisso sofreu um sério baque diante de meus por- menorizados estudos em Princeton, Resisti a todas as tentacdes de mudar ‘© meu ponto de vista e conheci muitos amigos que, assim como eu, pro- vinba joras e estavam tentando “man- ter a £6" (um jeito engragado de falar — olhando as coisas agora porque, afinal de contas, estavamos todos fazendo um curso de teologia Mas meus estudas comecaram a me transforma. Uma reviravolta aconteceu no segundo semestre, em um curso que eu seguia ¢ que era dado por um professor respeitado c virtuoso, chamado Guillen Story, Era um curso sobre a exegese do Evangelho de Marcos, a (€ até hoje}, meu Evangelho favorito. Para seguir esse curso, preci- via ir para 0 Semingrio d teria di fértil para cristaos “renasci as do curso. Pensei que essas aulas seriam de escolas evangélicas conservs : asropycao % Wake wale Ekg (oO) decorara todo 0 vocabulrio grego desse Fvangelho uma semana antes de semestre comesar); precisivamos registrar num caderno exegético nos- sas reflexes sobre a interpretagao das principais passagens; discutimos os problemas de fia de final de curso tha. Escothi uma pa: pelos fariseus porque seus di comeram gros no Sabado. Jesus quer mostrar aos fariseus que “o Sabaw do foi feito para.os humanos, nio os humanos para o Sébadc do-thes 0 que fizera o grande Rei Davi quando cle e seus homens tiveram fome, como eles entraram no Templo “quando Abiatay era 0 st dore” e comeram o pio da proposi¢ao, que s6 os sacerdotes podiam co- mer. Um dos célebres problemas da passagem é quando se exam passagem do Antigo Testamento que Jesus esta citando (1 Samuel 21,1 [vé-se que Davi nao fe nada disso quando Abiatar era o sumo saccrdote# mas, de faro, quando 0 pai de Abiavar, A ‘erpretacio do texto ¢ tivemos de escrever uma monogra- bre um ponto interpretativo crucial, de livre esco- ygem de Marcos 2, quando Jesus € confrontado ulos, ao atravessar um campo de trigo, lembran- Em minha monografia para o professor Story, desenvolvi um longo ¢ icado argumento para provar que, embora Marcos indique que 0 fato se deu “quando Abiatar era 0 sumo sacerdote”, isso nao significa realmente que Abiatar fosse o sumo sacerdote, mas que 0 fato ocorreu numa parte das Escrituras que tem Abiatar como uma das figuras princi- pais. Meu argumento baseava-se no sentido dos termos gregos envolvi- dos ¢ era meio enrolado. Eu estava seguro de que 0 professor Story receberia bem o argumento, porque eu sabia que ele era um bom pesqui sador cristo, que obviamente (a meu ver) jamais pensatia que pudesse haver algo semelhante a um erro gem Mas, no final do meu trabalho, ele fez um comentario de uma linha que, por algum motivo, me aringiu profundamente. Ele escreveu: “Talver Marcos simplesmente te _aha errady”. Passei a pensar sobre isso, ponderando todo o trabalho que me dera por aquilo no papel, entendendo que eu dera uma grande volta em rorno do problema ¢ que minha solugao era, de fato, bascante forga- da. Por fim, conelui: “E... talvez Marcos tenhaerrada”. Uma vez admitido isso, as comportas se abriram. Porque se podia ha- ver um errinho insignificante em Marcos 2, provavelmente haveria erros comy no na Bil a ee » quando Jesus diz mais tarde e uma das palavras das Esc turas, do que estaria s das Es- ras? Em alguns trechos, como veremos, simplesmente no temos’ eza deo texto original ter sido reconstruido com exatidao. E bem jel saber.o que-as palavras da Biblia quecem dizer se nfo sabemos nem \esmo que palavras so essas! €, Talvez esses erros se apliquem a antes. Por exemplo, quando Mar mdia depois da ceia pascal (Marcos 1 da inspi para Deus reservar as pal ja uma diferenca. Qu quandoPauladiz que, sminho de Damasco, .queles que eram apéstolos antes del enquanto o livzo dos. Atos dos. Apéstalos diz que foi a crmos as palavras deve seguramente demons fez av deixar Damasco (Atos 9,26 u povo tivesse suas. rivesse dado as pala: cria razdo para pensar que teria feito 0 ipo coincidiram com problemas que eu estava en- essas palavras. estudos mais aprofundados dos manuscritos gregos Em suma, meus estudos do Novo Testam do Novo Testamento que haviam sobrevivido. Uma coisa é dizer que-os sas dos manuscritos que o cont yoriginais foram inspicadas, mas a verdade é que niio temas os originais, {Entao, dizer que eles foram inspirados nao me serve de grande coisa, a indo ser que eu possa reconstruir os originais. sia dos cristdos, cm toda a hist cia, ndo teve acesso aos ori fazendo de sua inspiraga frentando em me C0 grego e minhas pesqui-’- a repensar radicalmente 0 —a comegar de minha passando por sar aos meus tempos de isso, a_vasta maio- iN mesmo _as c6pias das cOpias dos originais, ou as cdpias j ‘das cépias das copias das originais, (O que temos sio cépias feitas mais anos copiaram, e alteraram, os textos das es humanos escreverdom ro humano do comego.ao fim. E foi escrita por difere anos, em diferentes épocas e em divers desses autores sem diivida se para dizer o que disseram, mas tinham suas préprias uas prdprias crencas, seus 's pontos de vista, suas ” suas proprias compreen- bes, suas préprias teologias. Tais perspectivas, crengas, pontos de vista, * cos depois. E sodas elas\fereii7umas das auras em silases de paseo gens. Veremos depois neste livro que essas cépias diferem umas das outras lugares para atender a Talves seja mais facil falar comparativamen pirados por De nossos manuscritos que palavras vo Testamento, perspectivas, Muitas dessas diferencas sio absolutamente secundsiias ¢ insignifi- prOprias necessidades, seus proprios de Boa parte delas simplesmente nos mostra awe 6s antigos copistas ba ttn a pte an 0 QUE JESUS DISSE? necessidades, desejos, compreensdes e teologias deram forma a tudo 0 que cles disseram. Por todas essas razdes € que esses escritores diferem uum do outro. Entre outras coisas, isso significava que Marcos nao disse a mesma coisa que Lucas porque nao quis dar a entender © mesmo que Lucas. Jodo é diferente de Mateus — eles no sto os mesmos. Paulo é di- ferente dos Atos dos Apéstolos. E Tiago € diferente de Paulo, Cada autor 6 um autor humano e precisa ser lido por aquilo que ele (supondo que se trate sempre de autores homens) tem a dizer, sem pressupor que aquil que ele diz € 0 mesmo — 2 — ou consistente com aquilo ‘que qualquer outro autor tenha a dizer. A Biblia, feitas todas as contas, é um livro inteiramente humas Essa era uma perspectiva inédita para mim, obviamente em tudo dis- tinta da visio que eu tinha quando era um cristo evangélico — e que no € a visdo da majoria dos evangélicos de hoje. Dou um exemplo da di- ferenga que minha mudanga de perspectiva traz para a compreensio da Biblia. Quando eu estava no Moody Bible Institute, um dos livros mais populares no campus era a copia mimeografada da visio apocaliptica de Hal Lindsay para © nosso futuro, The late great planet earth. O livto de Lindsay era popular nao s6 no Moody: de fato, era o best-seller de nio- ficgio (sem falar na Biblia ¢ usando a categoria de “nio-ficgio” de modo bastante amplo) em lingua inglesa nos anos 1970. Lindsay, como todos 16s no Moody, acreditava que a Biblia era absolutamente infal cada uma de suas palavras, de modo que vocé podia ler 0 Novo Testa. mento ¢ saber nao s6 0 que Deus queria que voce vivesse ¢ cresse, mas até mesmo o que o préprio Deus planejava fazer no futuro e como o fa: ria, O mundo se encaminhava para uma crise apocaliptica de propargdes, catastrficas, ¢ as palavras infal cis das Escrituras podiam ser lidas para demonstrar 0 que, como ¢ quando isso viria a acontecer. Fiquei particularmente chocado com o “quando”. Lindsay parabola da figueira como uma indicagao de Jesus de para diamos esperar 0 futuro Armagedon. Os discipulos de Jesus querem sa- ber quando vira o “fim”, ¢ Jesus responde: Aprendei da figueira esta pardbola: quando os seus ramos ficam ten- 108 e suas folhas comecam a brotar, sabeis que o vero se aproxima, As- sim também vés, quando virdes todas essas coisas, sabei que [0 Filho do Homem] esta préximo, as vossas portas. Em verdade, eu vos digo: esta geragao ndo passard sem que tudo isso acontega (Mateus 24,32-34). INTRODUCAO, 23 © que essa parabola significa? Lindsay, pensando tratar-se de wma pa- proprio Deus, interpreta sua mensagem indicando que, igueira” ¢ freqiientemente usada como uma imagem da na- gio de Israel. O que significaria nessa passagem fazer folhas brotarem? a nagio, depois de permanecer dormindo durante uma estagao (0 verno), voltaria & vida. E quando Israel voltow a vida? Em 1948, quando volton a ser uma nagio soberana. Jesus indica que o fim vird no decurso da geragao dentro da qu blia? Quarenta anos. is ai o ensinamento divinamente inspirado vindo dircramente da boca de Jesus: o fim do mundo deveria ocomer nalgum momento antes de 1988, quazenta anos depois da-reemergéncia de Israel, Essa mensagem foi completamente avassaladora para nés. Pode pare- ‘cer bizarra agora — visto que 1988 veio c se foi, sem Armagedon — sso ocorrer. E quanto dura uma geragio na Bi- mas, no entanto, hé milhées de cristos que ainda acreditam que a Biblia pode set lida literalmente, como completamente inspirada em suas predi- «Ses do que aconteceré em breve para levar a historia, tal como a conhe- cemos, a seu fim, Prova disso é a loucura atual em torno da série escrita por Timothy LaHaye e Jerry Jenkins, Deixados para_trds, outra visio apocaliptica de nosso futuro baseada em uma leitura literal da oo ‘que ja vendeu mais de sessenta milhdes de c6pias até agora, £ uma mudanga radical da leitura da para nossa fé, vida e fucuco vé-la como um livro humano, com muitos pontos de vista umanos, muitos dos quais diferem entre si, com nenhum vel de como devemos viver. Essa foi a mudanga que acabou acontecendo em meu pensamento ¢ com a qual estou agora completamente comprometido, Naturalmente, muitos cristios nunca defenderam essa visio literal da Biblia em primeiro lugar ¢, para eles, uma visio como essa deve parecer completamente unilateral ja como um documento deles fornecendo uma orientagao inf ¢ descontextualizada (para nao dizer bizarra ¢ estranha as questoes de fé). Contudo, ha muitas pessoas por af que ainda véem a Biblia desse modo. De vez em quando, vejo um adesivo no qual se pode ler: “Deus disse, eu acredito e esta resolvido”, Meu comentario sempre & € seen _ndo tiver dito? Ese o livro que vocé toma por transmissor das palavras de Devs conriver so palavras humanas? E se a Biblia nao der uma respos- ta a toda prova para as questées dos tempos modernos — aborto, ditei- tos das mulheres, direitos dos homossexuais, supremacia religiosa, democracia ocidental, ¢ assim por diante? Ese nés mesmos tivermos de 24 © QUE JESUS DISSE? descobrir como viver € como acreditar por nés mesmos, sem olhar para a Biblia como um falso idolo, ou um oréculo que nos dé uma linha de ‘comunicagao direta com 0 Todo-poderoso? Ha raz6es muito claras para pensar que, de fato, a Biblia nao é 0 tipo de guia infalivel para nossas vi- das; entre outras coisas, como venho adiantando, em muitos lugares, nds Joomo especalistas ov apenas co comuns) nem mesmo conhe- a realmente exam, a pessoal mudou radicalmente depois dessa des- coberta, levando-me a percorrer trajetos muito distintos daqueles que eu fizera na minha juventude, Continuo a apreciar a Biblia e as muitas ¢ va- riadas mensagens que ela contém. Do mesmo modo, vim a apreciar ou- tros esc stios, da mesma época ou de um pouco mais tarde, escritos de figuras menos conhecidas como Indcio de Antio- quia, Clemente de Roma, Barnabé de Alexandria. Também vim a apre- escritos de pessoas de outras crencas, mais ou menos da mesma €poca, como os excritos de Flavio Josefo, Luciano de Samosata ¢ Plutar 99. Todos esses autores esto rentando entender o mundo ¢ o seu proprio lugar nele, e todos tém ensinamentos valiosos a nos transmnitir. £ impor. tante saber o que foram as palavras desses autores, de modo a poder ver, a partir do que eles tinham a dizer e de seus julgamentos, o que podemos pensar e como podemos viver & luz dessas palavras. Isso me faz retornar a0 meu interesse pelos manuscritos do Novo Testamento ¢ pelo estudo desses mesmos manuscritos no campo conhe- cido como critica textual. Estou convicto de que a critica textual € um campo de estudos intrigante, atraente e de real importancia nio s6 para (8 especialistas, mas para toda pessoa interessada na Bit fundamentalista, um fundamentalista em recuperagio, alguém que ja- mais seria um fundamentalista na vida, ou simplesmente alguém com um remoto interesse na todo modo, 0 qu ressados no cristianismo, na acreditam na Biblia como sabem de critica textual. E ficil saber por qué. A despeito do fato de a critica textual ser uma area de estudos que vem sendo cada vez mais pesquisada ja ha mais de trezentos anos, ha pouquissimos livrgs a res- Peito escritos para um piblico leigo — ou seja, para quem nao sabe nada disso, para quem nao sabe grego e as ourras linguas necessérias 108 dos primeiro: ia (seja um ia como fendmeno cultural e histérico). De na € que muitos ia e em estudos jtores — mesmo os inte- licos; tanto os que falivel como os que no acreditam — nada INTRODUGAO, 25 para um estudo profundo, para quem nem mesmo entende que ha um “problema” com o texto, mas que ficaria muito intrigado e disposto a saber que problemas so esses e quais instrumentos 0s pesquisadores criaram para lidar com eles. Este 6 0 tipo de livro que é — que eu saiba — o primeiro em seu ge nero. Ele foi escrito para pessoas que nao sabem nada de critica textual, mas que gostariam de aprender algo sobre como os copistas foram mu- dando as Escrituras e sobre como podemos reconhecer onde eles fizeram, alteragdes. Foi escrito com base em meus trinta anos de reflexao sobre tema ¢ em minha perspectiva atual, que passou por muitas transforma ges radicais acerea do meu préprio modo de ver a Biblia. Foi escrito para todo aquele que tiver interesse: em ver como chegamos ao que o Novo Testamento 6 hi ‘© em descobrir que, em algumas instincias, nem chegamos a imagi- nar quais eram as palavras ori ‘* cm constatar que essas palavras por vezes mudaram de modo mui- to interessante; ‘© em-concluir que devemos, pela implementacdo de alguns métodos de anslise rigorosa, reconstruir o que as palavras originais eram na realidade, De muitas formas, este é um livro muito pessoal para mim, o resulta- do final de uma longa jornada, Talvez, para outros, possa vir a fazer par- te da jornada que eles mesmos iniciam. 2. O livra que chega mais perto disso é PARKER, David C. The living text of the ‘gospels. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. 1 OS INICIOS DAS ESCRITURAS CRISTAS P-- examinar as c6pias do Novo Testament que possuimos, preci- samos comegar bem do inicio, por uma das caracteristicas incomuns do ctistianismo no mundo greco-romano: seu carater de vro”. Realmente, para entender essa caracteristica do samos remontar ao seu inicio, ou seja, & religido da qual brotou: 0 judaismo. O cariter de religido do livro do cristianismo fora, de certo ‘modo, antecipado e prefigurado pelo judaismo, a primeira religio do li- veo da civilizagao ocidental. iGo do li- istianismo preci- O juDAisMO COMO UMA RELIGIAO DO LIVRO. (© judafsmo, do qual provém 0 cristianismo, é uma eeligido incomum no ‘mundo romano, embora nao fosse, de modo algum, a tnica. Assim como os adeptos de qualquer uma das outras (centenas de) religides da regio do Mediterrineo, os judeus reconheciam a existéncia de um reino divino habitado por seres sobre-humanos (anjos, arcanjos, principados, potes- tades)s praticavam a adoragao de uma divindade por meio do sacrificio de animais e da oferenda de outros produtos alimentares; afirmavam que as (© QUE JESUS DISst? havia um lugar sagrado especial onde o ser divino habitava na Terra (0 Templo, em Jerusalém) e era ld que os sacrificios deviam ser feitos. Eles oravam a esse Deus pelas necessidades pessoais e coletivas. Contavam historias sobre como esse Deus interagira com os seres humanos ¢ ante- cipavam seu auxilio aos seres humanos no presente. Por todas essas ca- racteristicas, o judaismo era “familiar” aos adoradores de outros deuscs no Império Romano. ‘Mas, de algum modo, 0 judaismo era diferente. Todas as outras reli- gides no Império Romano eram politefstas — reconheciam ¢ adoravam muitos deuses, de todas as extragdes e para todas as fungdes: grandes deuses do Estado, deuses menores de varias localidades, deuses que con- trolavam diferentes aspectos do nascimento, vida e morte dos humanos. judafsmo, por seu lado, era monotefsta. Os judeus insistiam em ado- rar apenas 0 Deus tinico de seus ancestrais; © Deus que, afirmavam eles, ctiou ¢ controlava este mundo ¢, sozinho, provia todas as necessidades de seu povo. Segundo a tradigao judaica, esse Deus tinico e poderoso chamara Israel para ser o seu povo especial ¢ prometera protegé-lo e de- fendé-lo em troca de sua absoluta devocdo a ele, s6 a ele. O povo judeu, acreditava-se, tinha uma “alianga” com esse Deus, um acordo de ser uni- camente dele e ele unicamente seu. Sé6 esse Deus devia ser adorado ¢ obe- decido; por isso, havia um dnico Templo, diferentemente das religides politeistas da época, nas quais, por exemplo, poderia haver niio importa juantos templos a um deus como Zeus. Na realidade,s judeus podiam adorar a Deus onde quer que vivessem, mas s6 podiam realizar suas obri- sagdes religiosas de sacrificio a Deus no Templo, em Jerusalém. Em ou- tros lugares, porém, eles podiam se reunir em “sinagogas” para orar € discutir as tradigdes ancestrais que estavam no centro de sua religiaio, Essas tradigdes implicavam historias sobre a interagao de Deus com 108 ancestrais do povo de Israel — os patriarcas e as matriarcas da fé, tais como Abraio, Sara, Isaac, Raquel, Jacé, Rebeca, José, Moisés, Davi en- tte outros —¢ instrugdes detathadas a respeito de como esse povo devia prestar culto e viver. Uma das coisas que tornavam 0 judaismo Gnico em ‘meio as religides do Império Romano era que essas instrucdes, além das outras tradigdes ancestrais, tinham sido escritas em livros sagrados. Para pessoas modernas, intimamente familiarizadas com algumas das mais destacadas religides ocidentais (0 judaismo, o cristianismo, o isla- mismo), pode ser dificil imaginar, mas os livgos nao representavam vir- a Neds ws testa Tour ben tpl. ‘OS INICIOS DAS ESCRITURAS CRISTAS, 29 -nhum papel nas religides politeistas do antigo mundo ci: ar os tualmente dental. Essas religides dedicavam-se quase exclusivamente a h deuses por meio de atos rituais de sacrificio. Nao hayia doutrinas a aprender, explicadas em livros, ¢ praticamente nao havia principios éti- cos a ser seguidos registrados em livros. Isso nio significa que os adeptos fas no tivessem crengas em seus deuses ou no tivessem ética, mas crengas e éticas — por mais que isso soe estranho a ouvidos modernos — nao desempenhavam papel algum na r propriamente dita. Tratava-se de um dominio da filosofia pessoal, e as fi- losofias, claro, podiam estar nos livros. Visto que as proprias religides antigas ndo exigiam conjuntos particulares de “retas doutrinas” ou, em sua maioria, de “cédigos éticos”, os livros nfo desempenhavam fungio de destaque em seu sei. $6 0 judaismo insistia em leis, costumes. tradigdes ancestrais —e de- fendia que eles fossem registrados em livros sagrados, que gozavam, por- tanto, do status de “escritura” para o povo judeu. Durante o periodo que estamos estudando — o século I da era cbitfum,' quando os livros do Novo Testamento estavam sendo escritos —, judeus dispersos pelo Impé- rio Romano entendiam particularmente que Deus dera diregao a seu povo nos escritos de Moisés, coletivamente chamados de Torab, termo que significa literalmente algo como Y1ei? ou “orientagdo”. A Torah con- siste em cinco livros, algumas vezes chamados de Pentateuco (0s “cinco rolos”), 0 inicio da Biblia judaica (o Antigo Testamento cristo): Géne- sis, Exodo, Levitico, Niimeros e Deuteronémio. latos da criagio do mundo, do chamado a Israel para ser 0 pov Deus, as hist6rias dos patriarcas e das matriarcas de Israel, o envoh mento de Deus com eles e, 0 mais importante (e mais extenso): as leis que Deus entregou a Moisés para indicar como seu povo devia adoré-lo e se comportar um com 0 outro ¢ em comunidade. Eram as leis sagradas, que deviam ser aprendidas, discutidas e seguidas — e que, para isso, foram das varias re .e encontram 0s re- escritas em um conjunto de livros. 1, Atualmente os pesquisadores usam “era comum” (abreviadamente E.C.) em vez da |A.D. ou “no ano do Senhor”; em portugués, D.C. ou lepois de Cristo"), porque “era comum” ¢ mais nclusivo de todas as formas de fi. to Os judeus tinham outros livros, que eram também muito importantes para sua vida religiosa, como por exemplo os livros dos profetas (como Isaias, Jeremias e Amés), os poéticos (Salmos) ¢ os histéricos (como Josué ¢ Samuel). Por fim, algum tempo. depois-da inicia do cristianisma, uma sé- rie desses livros hebraicos — vinte e dois deles — passor da cénon sagrado das Escritueas, a Biblia judaica atual, accita_ pelos tistdios como a primeira parte do cinon cristia,o Antigo Testamento,? Esses breves fatos sobre os judeus ¢ seus textos escritos sio importan- tes porque definem o cendrio para o cristianismo, que é também, desde seus inicios, uma religiio “do livro”. O cristianismo naturalmente come- ou com Jesus, que era um rabi (mestre) judeu que aceitava a autoridade da Torah e, possivelmente, outros livros sagrados judaicos, e que ensina- va a prépria interpretagao desses livros aos seus discipulos,’ Assim como ‘outros rabis de seu tempo, Jesus afirmava que Deus poderia ser encontra- do nos textos sagrados, especialmente na Lei de Moisés. El as Escri- turas, estudava-as, interpretava-as, era adepto delas ¢ as ensinava. Seus seguidores cram, desde o i judeus que tinham os livros de sua pro- pria tradigao em alta conta. Por isso, 4 desde os primeiros cristianismo, os adeptos dessa nova religiio, os seguidores de Jesus, eram em tudo diferentes no Império Romano: a semelhanga dos judeus antes deles, mas diferentemente de quase todos os demais, situavam a autori dade sagrada nos livros sagrados. Assim, desde o seu inicio, o cristianis- mo foi uma religido do mle Dounce ch om a 2. Para um esbogo da formagdo do canon judaico das Es James. "Canon, Hel dictionary. New Yo 3. Aashamar Jess derbi no quero dizer qu el vet lguma pogo epecial no interior d judaismo, mas qe era simplemente um mest jae, Evidenemente era apenas um meste aves ele possa ser entendido cota umn “profeta" Pass ona discos mais aprofundeds, ve ERHMAN, Bar D. Jesus apoclptsprophe ofthe new milesion, Nova lore: Oxford Univer Pros 1398, 2 A AS ESCRITURAS CRISTAS. 3 O CRISTIANISMO, UMA RELIGIAO DO LIVRO Como veremos dentro em pouco, a importancia dos livros para o cristia~ nismo primitive no significa que todos os cristos pudessem ler. Bem ao contrari | dos cristdos, assim como a_maior parte da popula |s20 do império (incluindo os judeus'), era analfabeta. Mas isso nio sig- nifica que os livros desempenhassem um papel menor na religido. De fato, eles eram centralmente importantes e, em muitos aspectos, funda- mentais para a vida dos cristos em suas comunidades. As primeiras Cartas cristas ‘A primeira coisa a notar é que muitos diferentes tipos de escritos eram importantes para as florescentes comunidades cristas do século I depois da morte de Jesus. Os primeiros indicios das comunidades que temos nos vvém das cartas que os lideres cristaos escreveram. O apéstolo Paulo é nosso mais antigo e melhor exemplo. Paulo fundou igrejas por todo 0 Mediterraneo oriental, principalmente em centros urbanos, evidentemen- te convencendo pagios (isto é, adeptos de algumas religides politefstas do império) de que o Deus judeu era o tinico que merecia ser adorado, € de que Jesus era seu Filho, que morrera pelos pecados do mundo € que em breve voltaria para fazer o julgamento da Terra (1 Tessalonicenses 1,9- ~ 10). Nao se sabe exatamente em que medida Paulo usou as Escrituras. (isto 6, os escritos da Biblia judaica) para tentar persuadir seus poter convertidos da verdade de sua mensagem, mas em uim dos resumos-cha- ve de sua pregacao, ele indica que o que ele pregava era que “Cristo mor- reu, segundo as escrituras... € que ele ressuscitou, segundo as escrituras” (1 Corintios 15,3-4). Claro que Paulo correlacionava os fatos da morte ¢ da ressurreigao de Cristo com sua interpretacdo das passagens-chave da Biblia judaica, que ele, como um judeu erudito, obviamente podia ler por si mesmo e que interpretava para seus ouvintes numa tentativa, freqtien- temente bem-sucedida, de converté-los. Depois de Paulo ter convertido determinado néimero de pessoas em dada localidade, ele ia para outro lugar tentar, geralmente com sucesso, converter mais pessoas. Mas as vezes (freqiientemente, talvez?) chegavam 0s ouvidos dele noticias de uma ou outra das comunidades de crentes que ele estabelecera e, as vezes (freqiientemente, talvez?), essas noticias a © QUE JESUS DISSE? nfo eram nada boas: membros da comunidade que tinham comegado a se comportar mal, problemas de imoralidade que surgiam, “falsos mes- tres” que apareciam ensinando nogdes contrarias 4s dele, alguns mem- bros da comunidade que se alinhavam a falsas doutrinas, e assim por diante. Ao se inteirar dessas noticias, Paulo escrevia uma carta para a co- munidade, na qual abordava esses problemas. Tais cartas eram muito im- portantes para a vida da comunidade e algumas delas, por fim, passaram a ter o status de Escrituras{Tred@jdas cartas escritas sob o nome de Pau- lo estdo incluidas no Novo Testamento| Podemos fazer idéia de quo imporcantes eram essas cartas nos estgios iniciais do movimento cristo a partir do primeiro escgito cristio que pos- suimos, & primeira carta de Paulo aos Tessalonicense¢; geralmente datada de 49 £.c' cerca de vinte anos apés a morte de Jesus e vinte anos antes dos re- latos evangélicos sobre sua vida. Paulo conclui essa sua carta dizendo: “Sau- dai todos os irmios ¢ irmas com 9 ésculo santo. Eu vos conjuro insistentemente em nome do Senhor: que esta carta seja lida por todos os ir- ios e irmas” (1 Tessalonicenses 5,26-27). Nao se trata de uma carta cir- ccunstancial, a ser lida simplesmente por quem quer que estivesse mais ou ‘menos interessado. © apéstolo insiste em que ela deve ser lida e aceita como uma declaragio de autoridade da parte dele, 0 fundador da comunidade. ‘As cartas circularam pelas comunidades cristas desde os tempos mais antigos. Elas uniam comunidades que viviam em diferentes paises; indica ‘vam em qué os cristaos deviam crer e como se esperava que se comportas- sem, Eram para ser lidas para a comunidade, em vor alta, por ocasidio das reunides comunitdtias — visto que, como jé se disse, a maioria dos cris- ‘Hos, como muitos outros, nao seria capaz de ler as cartas por si mesma Algumas dessas cartas vieram a ser incluidas no Novo Testamento. De fato, o Novo Testamento se constitui, em grande parte, de cartas escritas por Paulo ¢ outros lideres cristios As comunidades cristas (por exemplo, os corintios, os galatas) e mesmo para alguns individuos (por exemplo, Filé- mon). Além disso, as cartas que sobreviveram — hé vinte e uma delas no Novo Testamento — sio apenas uma pequena fragio das que foram escri- tas, No que diz respeito exclusivamente «Paul, podemos afirmar que ele ‘escreveu muito mais cartas do que as que lhe sio atribuidas no Novo Testa- 4, Para essa abroviatura ver nota I IRAS CRISTAS 33 mento. Fm certa ocasido, ele menciona outras cartas que nao sobreviveram. Em 1 Corintios 5,9, por exemplo, ele menciona uma carta que escrevera a teriormente aos corintios (algum tempo antes da Primeira Carta aos Cori tios). E menciona outra carta que alguns corintios enviaram para ele (1 Corintios 7,1). Em algum outro ponto, ele faz referéncia a cartas que alguns de seus oponentes possuiam (2 Corintios 3,1). Nenhuma delas sobreviveu. Por muito tempo, os pesquisadores suspeitaram que as cartas encot tradas no Novo Testamento sob 0 nome de Paulo tinham sido, de fato, escritas mais tarde por seguidores d ta tiver fundamento, ela confere ainda mais fundamento a importancia das cartas para o movimento cristdo primitivo: a fim de ganhar a aten- do para determinado ponto de vista, alguém escreveria uma carta em , sob pseudénimo. nome do apéstolo, na convicgéo de que isso conferiria ao escrito toda a cas é Colossen- autoridade, Uma dessas cartas pretensamente pseudos ses, que ressalta a importincia das cartas e menciona uma outra, que nio sobreviveu: “E quando tiverdes lido esta epistola, vos assegureis de que cla seja lida na igreja dos Laodicenses ¢ que vos Laodicéia” (Colossenses 4,16). Evidentemente, Paulo —em pessoa ou al- guém escrevendo em seu nome — escreveu uma carta a cidade préxima de Laodicéia. Essa carta também se perdeu.* Afirmo que as cartas eram muito importantes para a vida das pri- meiras comunidades cristas. Elas eram documentos escritos que orien- tavam tais comunidades tanto em sua fé como em sua pratica. Uniam as igrejas, Ajudavam a distinguir o cristianismo das outras muitas reli- gides espalhadas pelo império, dado que as varias comunidades eristis, is a carta escrita a 3" 20s Colossenses, aos Ef Tessalonicenses ¢, especialmente, as tr cartas “pastoral Para entender as dividas dos pesguisadores sobre se essas cartas eram realmente de Paulo, ver: EHRMAN, Bart D. The New Testament: « historical introduction to the carly Christian writings. 3. ed. Nova lorque: Oxford University Press, 2004, cap. 23 6, Posteriormente, s Laodicenses. Ainda possuimos u © Novo Testamento Apécrfo. Teata-se de uma espécie de pastiche de frases paulinas € de cléusulas reunidas para soar como uma das cartas de Pa inttulada Aos Laodicenses foi evidentemente foriada por Marcido, um “herege” do sécalo I le 1 € 2 Timéteo € Tito varias cartas foradas reivindicando ser a carta aos elas, geralmente incluida naquele que se chama ‘Outra carta io subsist, 44 (0 QUE JESUS DISSE? icadas por essa literatura comum que circulava entre elas (Colos- senses 4,16), estavam aderindo as instrucdes que se encontravam em. documentos escritos ou “livros E nao eram s6 as cartas que eram importantes para essas comunida- des. De fato, havia um espectro extraordinariamente amplo de literatura sendo produzido, disseminado, lido e seguido pelos primeiros cristaos, algo bem distinto de tudo 0 que o mundo romano pagio havia visto até entio, Em vez de descrever aqui pormenorizadamente toda essa literatu- +a, vou simplesmente mencionar alguns exemplos dos géneros de livros, que estavam sendo escritos e distribuidos. Os primeiros Evangelbos Os cristdos estavam, naturalmente, interessados em saber mais sobre a vida, os ensinamentos, a morte ¢ a ressurreigao de seu Senhor. Por isso, ‘numerosos Evangelhos foram escritos para registrar as tradigdes associa- plamente_usados — os de Mateus, Marcos, Lucas e Joao no Novo ‘Testamento —, mas muitos qutros foram escritas. Ainda temos alguns: desses outros: por exemplo, Evangelhos supostamente escritos por Filipe, discipulo de Jesus; por seu irmio, Judas Tomé; e por sua companheira, Maria Madalena. Outros Evangelhos, inclusive alguns dos mais primit: vos, se perderam. Sabemos disso, por exemplo, por meio do Evangelho de Lucas, cujo autor indica que, para escrever 0 proprio relato, ele con- sultou “muitos” escritos precedentes (Lucas 1,1) que, obviamente, no sobreviveram. Um desses relatos primitivos pode ter sido a fonte que os pesquisadores designaram como Q, provavelmente um relato escrito, principalmente dos ditos de Jesus, usado tanto por Lucas como por Ma- teus para muitos dos scus caracterfsticos ensinamentos de Jesus (por exemplo, a Oragio do Senhor e as Bem-aventurangas)” 7. Embora © obviamente nio mais exista, ha boas razées para pensar que se trata de tum documento real — mesmo que no possamos conhecer com toda a certeza 0 Seu cconteiido completo. Ver: EHRMAN, Bart D. The New Testament, op. cit, cap. 6. 0 rome Q é uma abreviatura da palavra alema Quelle, que significa “fonte” (ou sei a fonte para a maior parte do material dos ditos de Jesus presente em Mateus e em Lucas) {C1OS DAS ESCRITURAS CRISTAS 35 ‘A vida de Jesus, como vimos, foi interpretada por Paulo e outros mais 8 luz das Escrituras judaicas. Esses livros também — tanto Pentateuco como outros escritos judeus, como os Profetas ¢ 0s S: amplo uso entre os cristios, que os examinavam para ver 0 vam sobre o designio de Deus, especialmente no modo como ele se priu em Cristo. Cépias da Biblia judaica, geralmente em traducio para.ol grego (a chamada Septuaginta), eram entio de facil acesso nas prime comunidades cristas como fontes de estudo.e de reflexio. mos — eram de Os primeiros Atos dos Apéstolos Nao 6 a vida de Jesus, mas também a vida de seus primeiros seguidores era do interesse das crescentes comunidades cristas dos séculos I € Il Diante disso, nao surpreende ver que relatos dos apéstolos — suas aven- turas e faganhas missionérias especialmente apés a morte e ressurreigio de Jesus — ocuparam um lugar de destaque para os cristios interessados em sal sobre sua religido. Por fim, um desses relatos, os Atos dos Apéstolos, veio a ser incorporado ao Novo Testamento. Mas muitos ou- fos relatos foram escritos, principalmente sobre apéstolos individuais, como os que se encontram nos Atos de Paulo, nos Atos de Pedro e nos Atos de Tomé. Outros Atos 86 sobreviveram sob a forma de fragmentos ou foram completamente perdidos. or mi Apocalipses cristéios Como ja mencionei, Panld!(juntamente com outros apéstolos) ensinava ue Jesus estava perto de yoltar dos céus para fazer o julgamento da Ter- 1a. O fim iminente de todas as coisas era uma fonte de fascinagao cons- tante para os primeiros cristios, que de modo geral esperavam que Deus logo interviria nos assuntos do mundo para destruir as forgas do mal ¢ estabelecer seu reino, com Jesus a frente, aqui na Terra. Alguns autores cristios produziram relatos do que se passaria por ocasiio desse fim c: taclismico do mundo, tal como 0 conhecemos. Havia precedentes judeus desse tipo de literatura “apocaliptica”. Por exemplo, 9 liveo de Dani na Biblia judaica, ow o livro de I Henoc, nos Apécrifos judeus. Por fim, Adenere todos os apocalipses cristias, um veio a ser incluido no Nave Tes: tamento: 0 Apocalipse de Joao. Outros, inclusive 0 Apocalipse de Pedro 4 1ras muito populares em varias c as, foram s primeiros séculos da gee. Regras eclesidsticas , especialmente se a igreja fosse As igrejas a0 Tee oc passaram a ser a apontavam como as igrejas deviam ser orga~ oY pizadas.e esteuturadas. As assim chamadas regras eclesidsticas foram se Te II, mas jé por-volta - Logo, logo, cle teria numerosas seqiiéncias. Apologias cristas 7es as comunidades cristas enfrenta A medida que se estabeleciam, as pagiios, que viam a nova fé como estavam comprometidos com mesmo modo com OS INICIOS DAS ESCRITURAS ISTAS 37 fim, as perseguigdes se tornaram “o io que pregava u m Jo perigosa, representava a verdade tiltima em sua ado- As apologias foram importantes para os tinham de encarar a perseguicio. trado no periodo do Novo Testa: (3,15: “Estejais preparados para fazer ie vos pede para prestar contas da espe os dos Apéstolos, no qi © outros apéstolos se defendem de acusagdes levantadas contra si. Por volta da segur nar uma forma | Paulo pular de literatura crista Martirologios cristaos Mais ou menos na mesma época em que as apologias comegaram a ser es- 7). Posteriormente, no 8) comegam a surgir. O pri- icarpo, um destacado lider cristo que ser- viu como bispo A igreja de Esmirna, na Asia Menor, durante quase toda a primeira metade do s -arpo encontra-se em uma carta produzida por membros de sua igreja escrita para outra co- manic depois, relatos de outros martires comegaram a aparecer. |. O relato da morte de am muito populares entre os cristaos, porque infundiam coragem *s que também eram perseguidos por causa da fé e orientavam so- frentar as ameacas extremas de prisio, tortura e morte. Tratados anti-heréticos Os problemas que os cristios deparavam nao se limitavam a ameacas ex ternas de perseguicao. Desde os primeiros tempos, eles estavam conscien- tes de que uma variedade de interpretacdes da “verdade” da reli existia dentro de suas préprias fileiras. © apéstolo Paulo ja se levantava contra os “falsos mestres” — por exemplo, em sua carta aos Galatas. Ao ler 0s relatos que subsistiram, podemos ver claramente que esses oponen: tes no eram s6 de fora. Eram cristdos que entendiam a rel 8 conviegdes comegaram a se (esse € 0 sentido iteral de {ortodoxia”) e a se opor aos que defendiam falsos ensinamen- 08 tornaram-se um trago fundamental do sta primitiva. Notavel & que até mesmo grupos. chamados de “falsos mestres” escreveram tratados contra “fal tres", de modo que o grupo que estabeleceu, de uma vez por todas, aqui Jo em que os cristéos deviam acreditar (os responsiveis, por exemplo, pelos ctedos que chegaram até no: as vezes € desautorizado por cristios que defendiam posigdes no fim decretadas como falsas. Isso é 0 que aprendemos com descobertas relativamente recentes da literatura “heré- tica”, na qual os chamados hereges defendem que sua visio é a correta, € que a visio dos lideres eclesidsticos “ortodoxos” é que é a falsa.* 0 e Segudo tratado dde- documentos préximo a aldeia de Nag Hammadi, no Egito. Para as tradi ROBINSON, James M. (Org). The Nag Hammadi Francisco: HarperSanFrancisco, 1988, p, 362-378, rary in English. 3. ed. 8 O° Mb 9y errgcnra tae © (0S INICIOS DAS FSCRITURAS CRISTAS, 39 Os primeiros comentarios cristaos Grande parte do debate sobre a reta e a falsa crenga implica a interpreta- ‘so dos textos cristdos, inclusive do Antigo Testamento, que 0s eri reivindicavam como parte de sua propria Biblia. Mais uma vez, isso mos- tra a centralidade dos textos para a vida das primeiras comunidades cris- ts, Mais tarde, os autores cristdos comegaram a esctever interpretacdes desses textos, ndo necessariamente com o propésito declarado de refutar falsas interpretacdes (apesar de que isso quase sempre estava em mira também), mas is vezes simplesmente para desvelar 0 sentido desses tex- tos e mostrar sua relevancia para a vida e a pratica cristas. F interessan- ‘0 comentirio cristo sobre cada texto, das Escrituras de| te que o prime mentari que temos.conhecimento proveio de um_assim chamado_herege, um! gnéstico do século Il que se chamava Heraclido e que escreveu. um co-? mentério a0 Evangelho de Joao, Por fim, comentarios, glosas interpreta-| tivas, exposigoes praticas e fRomiliag aos textos passaram a ser comuns centre as comunidades crits dos séculos Ill e 1V. Sincetizei os diferentes tipos de escritos que foram importantes para a vida das primeiras igeejas cristas. Espero que assim se possa ver que 0 fe- rnémeno da escrita foi da maior importancia para essas igeejas € 0s eris- tos a elas ligados. Os'livros| foram, desde 0 principio, 0 coragio da’ religido cristi — diferentemente de outras religides do império, Os livros voltavam a narrar as historias de Jesus ¢ de seus apéstolos, que os cris- tos contavam e recontavam; proviam aos cristios orientagio sobre em que crer e como viver suas vidas; uniam comunidades geograficamente apartadas em uma igreja universal; davam forgas aos cristdos nos tempos de perseguicio e Ihes forneciam modelos de fidelidade a imitar em face da tortura e da morte; transmitiam no apenas bons conselhos, mas a reta doutrina, exortando contra os falsos ensinamentos de outros e ur- gindo a aceitacio das crengas ortodoxas; permitiam aos cristos conhe- 49, A palavra “gnéstico” vem do termo grego gnosis, ue significa “conhecimenta”. gosticismo se aplica a um grupo de religides surgidas do século Il em diante que enfatizava a importincia de receber o conhecimento secreco para salvarse do mal: 0 mundo material 40 (© QUE JESUS DISSE? cer 0 verdadeiro sentido de outros escritos, orientando 0 pensar, 0 ado- rar, 0 comportar-se. Os livros foram absolutamente centrais para a vida dos primeiros cristaos. A FORMAGAO DO CANON CRISTAO Por fim, alguns dos nas leitura important livros cristdos passaram a ser considerados nao ape- mas posigio oficial para as crengas e as praticas dos cristaos. Eles vieram a configurar as Escrituras. Os inicios de um canon cristao A formagio do canon cristo das Escrituras foi um longo e intricado pro- ccesso. Nao precisamos descer a todos os detalhes aqui." Como ja men- cionei, de algum modo, os eristaos comegaram com um c4non no qual 0 fundador de sua rel jo era um mestre judeu que aceitava a Torah como eseritura autorizada vinda de Deus ¢ que ensinava a seus seguidores a in- terpretagio dessa mesma Torah. Os primeios cristdos eram seguidores de Jests que aceitavam os livros da Biblia judaica (que ainda nao fora es- tabelecida, de uma vez por todas, como um “canon”) como sua propria uindo nosso mais antigo autor, Paulo, as “escrituras” apontavam para a Biblia judaica, a coletanea de livros que Deus dera a seu povo e que predizia a vinda do Messias, Jesus. escritura. Para os escritores do Novo Testamento, in Contudo, logo depois, os cristdos passaram a aceitar outros escritos a0 lado das Escrituras judaicas. Essa aceitacdo pode ter tido origem no ensino autorizado do préprio Jesus, & medida que seus seguidores toma- ra uma discusso completa, ver: EHRMAN, Bart D, Lost christianities: the bates "ipture and the faiths we never knew. Nova lorque: Oxford University Press, 2003, cap. 2, Mais informagies sobre todo © processo, ver: GAMBLE, Harry. The New Testament canon: its making and meaning. Filadélia: Fortress Press, 1985, Para 0 ppadrio academicamente autorizado, ver: METZGER, Bruce M. The canton of the New Testament: its origin, development and significance. Oxford: Clarendon Press, 1987. ‘OS INICIOS DAS FSCRITURAS CRISTAS. an ram a sua interpretagao das escrituras como dotada da mesma autorid: de conferida as palavras das préprias escrituras. Jesus pode ter estimu do essa compreensio pelo modo como parafraseava alguns de seus censinamentos. No Sermao da Montanha, por exemplo, vé:se Jesus ¢x: pondo leis dadas por Deus a Moisés ¢ depois dando sua prépria ¢ mais ‘radical interpretagio delas,indicando que a sua interpretacao é a autor da. Isso fica patente nas assim chamadas Antiteses registradas em Mateus, capitulo 5. Jesus diz: “Ouvistes que foi dito: ‘Nao cometereis homicidio’ [um dos Dez Mandamentos}, eu, porém, vos digo: todo aquele que se en- iz0”. O que Jesus diz, erpretagao da lei, surge como tao autorizado quanto a propria lei, Ora, Jesus diz: *Ouvistes que foi dito: ‘Nao cometeras adultério’ [ou- tro entre os Dez Mandamentos}. Mas eu vos digo: todo aquele que olhar colerizar contra seu irmio ou irma esta sujeito a em sua para uma mulher com pensamento de luxciria em seu coragao jé cometeu ério com Em algun Escrituras contrariam as proprias leis das Escrituras. Por exemplo, Jesus ‘Ouvistes que foi di deve dar-the um atestado de com efeito, essas interpretagdes autorizadas das ‘todo aquele que se divorciar de sua mulher w6rcio’ Jum preceito expresso em Deutero- todo aquele q por algum motivo além de imoralidade sexual leva-a a cometer adultério, e todo aquele que se casa com uma mulher divorciada comete adultério”. E distinguir como se pode seguir 0 mandamento de Moisés de dar um atestado de divércio se, de fato, o divércio nao é uma opga0. Em todo caso, os ensinamentos de Jesus deviam ser considerados tao autorizados quanto os pronunciamentos de Moisés — ou seja, tanto quan- t0 0s ensinamentos da propria Torah. Posteriormente, isso vai se tornando cada vez mais claro no periodo do Novo Testamento, no livro de 1 Timé- co, atribuido a Paulo, mas freqiientemente considerado pelos especialistas como tendo sido escrito, em nome de Pau “Timéteo 5,18, 0 autor urge seus leitores a pagar aqueles que servem de mi#~ némio 24,1], mas ex vos se divorcia de sua mulher nistros no meio deles e fundamenta sua exortaciio citando “as escrituras”. (© que se deve norar 6 que ele cita, ento, duas passé contra na Torah (“Nao amordacards o boi que pisoteia”, Deuteronémio 25,4) e outra que se encontra nos labios de Jesus (“Um operdrio é digno de seu salério”, Lucas 10,7). Dé a impressio de que, para esse autor, as pala- ens, uma que se e! vras de Jesus jd esto no mesmo nivel das Escrituras, a (© QUE JESUS DISSE? E nao 56 os ensinamentos de Jesus so considerados escrituristicos por essa segunda ou terceira geracio de cristdos. Os escritos dos seus apéstolos também o eram. Temos demonstraao disso no siltimo Novo Testamento a ser escrito, 2 Pedro, um livro que muitos crit addos acreditam nao ter sido realmente escrito por Pedro, mas sob mo, por um de seus seguidores. Em 2 Pedro 3, 0 autor faz refe- a falsos mestres que deturpam o sentido das cartas de Paulo para levé-las a dizer 0 que elas nao querem dizer: “assim como o fazem com o restante das escrituras” (2 Pedro 3,16). Conelui-se que, aqui, as cartas de Paulo esto sendo consideradas escrituras. Logo depois do perfodo neotestamentério, alguns escritos dios pas- sam a ser citados como textos dotados de autoridade sobre a vida ¢ as crengas da Igreja. Um exemplo excelent a carta escrita por Policarpo}0 -arpo conselhos, particularmente quanto a um caso sres manifestamente implicado em alguma es de ma gestfo financeira dentro da Igreja (possivelmente desvio de dinhei- ro). A carta de Policarpo aos Filipenses, que ainda sobrevive, é intrigante por uma série de raz6es, especialmente por sua propensao a citar antigos escritos dos cristaos. Em apenas catarze breves capftulos, Policarpo cita mais de cem passagens retiradas desses escritos antigos, declarando sua. autoridade sobre a situaco que os filipenses estavam enfrentanda (em contraste com apenas doze citagdes.das escrituras judaicas), A determina- da altura, ele parece classificar a Epistola de Paulo aos Efésios como escri- tura. Mais freqientemente, ele simplesmente cita ou alude a escritos anteriores, declarando sua posigio de autoridade sobre a comunidade."* O papel da liturgia crista na formagao do céinon Sabemos que, algum tempo antes da carta de Policarpo, os cristdos ou- viam as Escrituras judaicas serem lidas durante seus cultos de adoracio. © autor de 1 Timéteo, por exemplo, exorta a que o destinatirio da car- 11, Para uma tradugdo recente da carta de Policarpo, ver: FHRMAN, Bact D, The Apostolic Fathers. Cambridge: Harvard ss, 2003. v. 1, (Loeb Class Library) versity (0S INICIOS DAS ESCRITURAS CRISTAS 43 leitura [piiblica], & exortagao € a0 ensino” (4,13). Como vimos, no caso da carta aos Colossenses, parece que as car- tas escritas por cristas também eram lidas para.as comunidades eu das, E também sabemos.que, em.meados do século Il grande parte dos, / cultos cristaos de adoracio implicavam a leitura pablica das Escrituras, Por exemplo, em uma muito discutida passagem dos escritos do apo ta ¢ intelectual cristo Jus to da Igreja implicava em sua cidade natal, Roma: No dia chamado do sol [Domingo], todos aqueles que vivern nas ci- dades ou no campo retinem-se em um s6 lugar e Iéem as membrias dos apéstolos ov os escritos dos profetas, tanto quanto o permita 0 tempo: trazem pio e vino: depois, quando o leitor para, 5 presideritaidstrui oralmente e exorta 4 imitagao dessas boas coisas (I Apol., 67). 6" "* irgico de alguns textos cristiios — por exemplo, “as memérias dos apdstolos”, que eram geralmente enten- Ihes mais alta posigao diante da maioria dos cristios, de modo que passaram a ser considcrados, tanto ino Martir, remos um vislumbre do que o cul ‘Tem-se a impressio de que uso didas como os Evangelhos — confer textos dota- quanto as Escrituras judaicas dos de autoridade. 1s escritos e os proferas” O papel de Marciao na formagéo do canon Podemos tragar a formagio do cénon cristao das Escrituras ainda com mais precisio a partir das provas subsistentes. Ao mesmo tempo que Jus- tino escrevia em meados do século II, outro cristo proeminente também estava ativo em Roma: o filésofo-mestre Marcio, posteriormente decla- rado herege.”” Marcido é uma figura, sob muitos aspectos, intrigante. El viera da Asia Menor para Roma depois de ter feito fortuna, certamente, no ramo da construgio naval. Depois de ter chegado a Roma, fez. uma enorme doacio a Igreja romana, provavelmente, em parte, pata obter 0 m Roma, empenhando muito seu favor. Durante cinco anos permaneceu de seu tempo na busca da compreensio da fé crista e desenvolvendo mui- tos dos pormenores dela em seus muitos escritos. Mas, como veremos, a 12, Para maiores informages Lost chrstianities, 1¢ Marcio ¢ seus escrtos, ver: EHRMAN, Bart D. 8. 44 © QUE pESUS DISS parte influente de sua produgio literaria nao foi o que ele escreveu, ¢ sim 0 que editou, Marcio foi o primeiro cristo que conhecemos a ter |produzido um “canon” real das Escrituras — ou seja, uma selecao de li- fires que, segundo ele, constituiam a lista dos textos sagrados da fél, Para compreender bem essa tentativa inicial de estabelecer 0 canon, precisamos conhecer um pouco 0 ensinamento proprio de Marci dedicara completamente 8 vida e aos ensinamentos do apdstolo Paulo, a ferdadeiro” apdstolo desde os primérdios da cartas, tais como a carta aos Romanos ¢ a car- e mantém de pé diante de Deus quem recebeu a fé em Cristo, no quem cumpre 4 critas pela Marcio apropriou-se dessa diferenciagao entre a lei dos judeus ea fé em Cristo para chegar Aquilo que considerava sua cone sho légica: a de que bi iaMistinggFabsoluta entre a ei, de um lado, ¢ “o evangelho, de outro, De fato, a lei ¢ 0 evangelho eram tio distintos que tos dois seguramente nio poderiam provir do mesmo Deus (Mar gou entlo A conclusao de que o Deus de Jesus (¢ de Paulo) nao era, portan- 10,,0 Deus do Antigo Testamento, Para ele, de fato, havia dois deuses tos: o Deus dos judeus, que criou o mundo, escotheu Israel para ser he- mundo para salvar 0 povo da Marcio acreditava que essa era a autocompreensio de da pelo préprio Paulo e, portanto, naturalmente, seu cinon incluia as d cartas de Paulo as quais teve acesso (todas as que figuram no Novo Tes: tamento, exceto as epistolas pastorais de 1 e 2 Timéteo e Tito} que Paulo as vezes se referia a um Evangelho em seu canon, uma versio do que hoje é 0 Evangelho de Lu- ido. © cénon de Marcio consistia em onze livros: nio havia nele o Antigo Testamento, apenas um Evangelho e as dez Epi las. Mas nao s6 isso: Marcio estava convicto de que falsos crentes, que nao tinham a sua mesma compreensio da fé, tinham transmitido esses os por meio de cépias, acrescentando aqui trechos e partes em vista de acomodar as suas proprias crengas, inclusive a *falsa” nogdo de que o Deus do Antigo Testan © Deus de Jesus. Por isso, * os onze livros de seu canon editando as referéncias a0 Deus do Antigo Testamento, ou a criagio como obra do verdadeiro ido. e visto Marcio incluiu um cas. E isso era 0 era tambéi Marcio “corr Deus, ou a Lei como algo que devesse ser se Siilaveds die nibe cove rye coda (OS INICIOS DAS ESCRITURAS CRISTAS 45 Como veremos,a tentativa de Marcio de fazer com que considerava sagrados se tornassem mais conformes a0 seu meio de mudangas nao era sem precedentes, Tanto antes como dep. os copistas dos primérdios do cristianisma, de vez em quando, mudayam { 1s textos para forgé-los a dizer o que eles achavam que tinham de dizer les textos O cénon “ortodoxo” depois de Marcido Muitos pesquisadores estao a Marcio que outros cristaos passaram a se dedicar wictos de que é exatamente em oposi contornas do que viriaa se tornar 0 cénon do Novo Testamento. F.de se ita, Justino poderia falar muito vagamente da “meméria dos apéstolos” sem indicar quais desses livros (provavel (08 nas igrejas ou por qué, a0 passo que cerca de trinta anos depois, outro escritor cristo, tam- notar que na época de Marciao propriamen wente os Evangelhos) eram ac bem em oposi¢ao a Marcio, assumiu uma atitude de muito maior auto- ridade, Era [zengy, 0 bispo de Lido da Galia (a Franga moderna), que escreve uma obra em cinco tomos contra hereges como Marcifo ¢ 0: gnésticos ¢ que mantinha idéias muito claras sobre quais livros deviam ser listados entre os Evangelhos candnicos. Numa passagem freqiientemente citada de sua obra Contra as here*” sias [Adversus haereses}, Iren outros “hereges” tinham concluido equivocadamente que s6.um-ou.ou- tro dos Evangelhas devia ser accito.como.escritura: 0s cristaos judeus, que defendiam a validade continua da lei, usavam apenas Mateus; a guns grupos que sustentavam que Jesus nao era realmente o Cristo s6 accitavam 0 Evangelho de Marcos; Marcio ¢ seus seguidores aceitavam ‘0s chamados valen- tinianos s6 aceitava Joao. Todos esses grupos labutavam em erro, con- tudo, porque 5 nao é possivel que os Evangelhos possam ser mais nem menos em miime- 10 do que sao. Poi mos, quatro ventos principais, enquanto a Igreja esté dispersa pelo é adequado apenas (uma versio de) Lucas ¢ um grupo de gnést dado que hd quatro regides do mundo em que vive mundo e 0 fundamento e a base da Igreja é 0 Evangelho... que ela deva ter quatro colunas (Contra as heresias, 3.11.7). Em outras palavras, quatro cantos da terra, quatro ventos, quatro co- lunas e, necessariamente, portanto, quatro Evangelhos. Lucas ¢ Joao eram os cerca dos contornos do non persistiram por varios sécu- ios em geral estavam interessados em saber que li- , de modo a poderem saber que livros de adoragao e, relativamente a isso, em que intago do que erer e de como proceder. incia, ser considera- s de problema; os debates 8, por vezes, asperos. Hoje, muitos cristios podem so Testamento simy surgiu um dia, logo nada mais distante da verdadel Tendo isso < deviam ser lidos em se livros se poderia apés a morte de Jesus... podemos identificar a primeira vez em que um cristo listou os vinte ¢ sete livros de nosso Nox preendente que possa parecer, esse ‘éulo IV] mais ou menos trezentos anos depois que os livros do Novo Tes- tamento tinham sido escritos. O autor foi um poderoso bispo de Alexan- _ Atanasic — nem mais, nem menos. Por mais sur- o escrevia na segunda metade do escreveu sua carta [selho acerca de quais livros deviam ser relaciona nossos vinte ¢ sete livros, com € a primeira instncia que chegou a0 rando que esse nosso conjunto de livros era a Essa * ept6prio Atanisio resolve a questo dua. vex por todas. Os leas eae ia ilkima e final, sem que se passassem centenas de anos dep Os LEITORES DOS ESCRITOS CRISTAOS Na segdo anterior, nossa discussio se concentrou na canonizagao das es- crituras. Mas, como vimos, muitt estavam sendo escritos dos no Novo Testamento. Havia outros evangelhos, epistolas e apoc Ff er” f OS DAS ESCRITURAS CRISTAS 47 ses; havia registros de perseguigdes, atas de martirio, apo trugdes eclesiais, ataques aos hereges, cartas de exortagio sigdes das escrituras — toda uma gama de definir 0 cristianismo, levando-o a se tornar a re ria de grande valia, a essa altura de nossa discussio, fazer uma pe basica sobre toda essa literatura: quem eram, realmente, 0s seus le ‘No mundo moderno, essa pareceria uma pergunta muito esq certos autores esto escrevendo livros para os cristios, ento 0s qui riam esses livros seriam, é 0 que se depreende, os cristos. Mas quando a pergunta se aplica ao mundo antigo, ela tem um alcance especial porque, ‘no mundo antigo, a maioria das pessoas no sabia Jer+~ O letramento é parte integrante da vida para nés que vivemos not ci) “dente modero. Lemos o tempo todo, todo dia. Lemos jornais e revistas, ivros de todos os tipos — biografias, romances, textos praticos, auto ajuda, livros de dieta, religiosos, filos6ficos, histéria, meméria, e por Mas nossa crita tem muito pou- inhecemos por letramento univ com o advento-da Revolugdo nagies divisaram beneficio econdmica e de cada um que se decidiram a investir recursos macig ra de todos — especial- » ‘mente tempo, dinheiro e recursos humanos — requeridos para assegurar que todos recebessem alfab Nas sociedades nao-indus- ti dos para outras coisas, € a alfabetizagao nao teria auxiliado nem a economia nem o bem-estar da sociedade como um todo. Como conseqiiéncia disso, a ey derno, quase todas as sociedades apresentavam apenas uma pequena mi- noria da populacio capaz de Jere escreve Isso se aplica até mesmo as sociedades ai 08 recursos eram priori igas que estimulavam a lei- ros séculos cristdos, O melhor e mais influente es- ‘| () In oh danctint Press, 1989. aon Te 48 tudo sobre o letramento nos tempos antigos, feito pelo professor da Uni- versidade de Columbia, Wi cris, indica que nos tempos e lugares mais propicios — por exemplo, Atenas a altura do periodo classico do século V A.t.c, —, as taxas de alfabetizacéo raramente atingiam de 10a {5% Ma populacao. Transpondo os ntimeros, isso significa que, nas me- Ihores condicées, de 85 a 90% da populacdo nao podia ler ou escrever. No século I cristo, na época do Império Romano, as taxas de alfabeti- zasio podem ter sido mais irtisorias ainda."* Conseqiientemente, mesmo definir o que sign ‘na uma questo complicada. Muitas pessoas que podem ler sao incapa- zes de redigit uma sentenga, por exemplo. Eo que significa ler? As pessoas podem ser consideradas alfabetizadas se entendem o sentido das tirinhas humoristicas, mas nao 0 do editorial de um jornal? As pessoas podem afirmar que s4o capazes de escrever se sabem assinar 0 nome, ‘mas ndo conseguem copiar uma pagina de texto? problema da definicao do que é letramento se torna ainda mais pronunciado quando voltamos ao mundo antigo, onde os proprios an- tigos tinham dificuldade de definir o que significa ser_alfabetizado. Um dos exemplos mais famosos vem do Egito, no século Il cristo. Em qua- se toda a Antigitidade, mesmo que a maioria das pessoas fosse incapaz de escrever, havia “leitores” e “escritores” locais que ofereciam seus ser: vigos e eram contratados por pessoas que precisavam fechar negécios que exigiam lidar com textos escritos: recibos de impostos, contratos le- icengas, cartas pessoais e assim por diante. No Egito, havia f nirios piblicos locais aos quais se confiava a rarefa de supervisionar algumas rotinas governamentais que exigiam a escrita. Essas nomeagdes para escribas locais (ou das aldeias) geralmente nao eram disputadas: assim como para tantos postos administrativos “oficiais”, as pessoas que os assumiam tinham de pagar pela nomeagao. Dito de outro modo, esses empregos eram ocupados pelos mais ricos da sociedade porque granjeavam uma espécie de status, mas pressupunham o dispéndio de fundos pessoais para poder ser ocupados. ler € escrever se tor- \cio- 14, Pata as taxas de alfabetizagio entee os judeus Catherine, Jewish literacy in Ro Antigiidade, ver: HEZSER, ns MoheiSiebeck, 2001. (OS INICIOS DAS ESCRITURAS CRISTAS. 4 ir letramento en} O exemplo que ilustra a dificuldade de det escriba egipcio chamado Petaus, proveniente da aldeia de Kara ‘Alto Egito. Como geralmente ocorria, Petaus foi designado para dese’ penhar fungdes administrativas em outra aldeia, Ptolemais Hormou, onde lhe apresentaram um panorama das quest6es financeiras e agra No ano 184 £.c., Petaus precisou dar resposta a algumas queixas contra outro escriba local, originario de Prolemais Hormou, um homem chama- do Tschyrion, que fora nomeado para assumir em outra localidade as fungées de escriba. Os aldedes sob a jurisdi¢ao de Ischyrion estavam irri- tados pelo fato de cle ndo poder cumprir suas fungd vam eles, era “analfabeto”. Para dirimir a disputa, Petaus argumentou que Ischyrion nao era de todo analfabeto, porque realmente assinara 0 proprio nome numa série de documentos off para Petaus, “letramento” significava simplesmente a capacidade de al- guém assinar 0 proprio nome. (© proprio Petaus teve alguma dificuldade para fazer um pouco mais, visto que, acusa- is. Em outros termos, ‘que assinar 0 nome. Ao que tudo indica, temos o rascunho de um papi- ro no qual cle teria praticado a sua escrita, no qual escreveu, doze vezes, as palavras (em grego) que tinha de escrever na assinatura de documen- tos oficiais: “Eu, Petaus, copista do lugar, examine isso”. O estranho que ele copiou as palavras corretamente nas primeiras quatro vezes, mas, nna quinta, deixou de fora a primeira letra da palavra final e nas sete ve- zes subseqiientes continuou a deixar a letra de fora, 0 que demonstra que cle nao estava escrevendo palavras que sabia como escrever, mas que es- tava simplesmente copiando a linha anterior. Evidentem: guia ler palavras tio simples que estava inscrevendo na pagina. E olhem que era ele o escriba oficial loc: Se nds dade, quantas pessoas podiam re diziam? centagem nao seria muito alta, Hé razdes para pensar que, nas cor te, nio conse- da Antigii mente ler textos ¢ entender 0 que eles screvemos Petaus no rol das pessoas “letrad: E impossivel chegar a um mimero exato, mas parece que a por- 15, Ver discuss em: HAINES-EITZEN, Kim. Guardians of letters: literacy, power, ‘and the transmitters of early Christian literature. Nova lorque: Oxford University Press, 2000. p. 27-28. Ver também os artigos de H. C. Youtie que ela cita a bethe 50 (0 QUE JESUS DISSE? dades cristas, as taxas podiam ser_ainda mais baixas do que na papula- gio geral. Isso porque se constata que 0s cristios, especialmente nos pri mérdios do movimento, provinham em sua maioria das classes menos letradas e mais baixas. Naturalmente, houve excecdes como 0 apéstolo Paulo e os outros autores cujas obras consti que eram, obviamente, escritores habilidosos; mas em sua maioria, os } tho de ginal de nenhum dos Evangelhos. Foi acrescentada por copistas pastriores. ‘Como sabemos disso? Na realidade, pesquisadores que estudam a tra- dligio manuscrta nao tém shividas sobre esse caso particular. Mais adiante neste livro examinaremos com maior profundidade os tipos de evidéneia ae 08 pesquisadoresapresentampara fazer avaiages desse tipo, De mo- ay, crude mod mento, posso simplesmente indicar uns poucos fatos biisicos ‘monstraram convincentes para quase todos os pesquisac t6ria no se enc nssos mais antigos manuscritos do Evangelho de Joio;" seu estilo de escrita é mu daquele que é encontrado no restante de Joo (incluindo os relatos vam imediatamente antes ¢ depois); ¢ ela inclui um grande nsimero de ter mos e frases que sao, por outro lado, estranhas.ao Evangelho, A con inevitavel: essa passage! vio faz parte doEvangelha] mo, entao, ela foi acrescentada? Ha numerosas teorias acerca dis- res de tendéncias: a tra em. so. Muitos pesquisadores pensam que provavelmente se tratava de um relato bem conhecido que circulava na tradigao oral sobre Jesus, que a certa altura foi acrescentado & margem de algum manuscrito, A partir a marginal devia ser parte do texto e a inseriu imediatamente depois da narrativa que acaba em Jodo 7,52. Deve-se notar que outros copi rentes pontos do Novo Testamento — alguns deles depois de Joao 21,25, igum copista ou alguém achou que as inseriram 0 relato em dife~ 1, € outros, 0 que € bem interessante, depois de Lucas 21,38. Em todo caso, quem quer que tenha es Io’0. E isso naturalmente deixa os leitores em um dilema: se essa historia, ~ io fazia original e ser considerada parte da Bi- 2 Nem todos responderdo a essa pergunta do mesmo modo, mas para ‘a maioria dos criticos textuais a resposta é[fiaa] por exem io foi Os doze iiltimos versiculos de Marcos © segundo exemplo que examinaremos pode nao ser tao fa leitor epis6dico da Biblia, mas teve grande influéncia na hist6ria da inter- pretacao bibl Jemas semelhantes para o especialista em tradicZo textual do Novo Testamento, Nosso exemn gelho de Marcos e se refere a seu término, No relato de Marcos, é-nos dito que Jesus é crucificado e depois sepul- tado por José de Arimatéia na véspera do Sabado (15,42-47). No dia pos- terior ao Sébado, Maria Madalena ¢ duas outras mulheres voltaram a0 ae suscita pr » provem do Evan- 18, Posteriormente veremos como alguns manuscritos podem ser def “melhores” que outros. | demonstrar q nulo para ungir 0 corpo (16,1-2). Ao chegar, descobrem que a peda foi rolada da boca do timulo. Ao entrar no timulo, véem um jovem com uma ttinica branca, que thes diz: “Nao se assustem! Vocés esto bus- cando Jesus Nazareno, que foi crucil — véem o lugar onde o depuseram: $ 0s precede na Gal las as mulheres fogem do t ‘como Ihes tinha dito’ dizem a ninguém, “pois estavam amedrontadas” (16,4-8} Depois disso, vém os iiltimos doze versiculos de Marcos em muitas tradugdes s modernas, versiculos que dio seqiiéncia a histéria Diz-se que o proprio Jesus aparece a Maria Madalena, que vai ¢ conta 0s disefpulos, mas eles nao acreditam nela (ve entio, aparece a dois outros (versiculos 12-14) e, por fim, aos onze discipulos (0s Doze, excluindo Judas Iscariotes) que estavam reunidos a mesa. Jesus 0s repreende por nao terem acreditado e Ihes ord mundo e proclamar seu evangelho “a toda a criagio”. Aqueles que acreditarem € forem batizados “serao salvos”, mas aqueles que no acreditarem € néo forem batizados “sero condenados”. E quando vém, entio, os dois mais intrigantes versiculos dessa passagem: E esses so os sinais que acompanhardo aqueles que créem: expulsa- novas linguas; pegardo serpentes com as midos e, se beberem algum veneno, ele nao lhes causaré mal im- 17-18). Depois disso, Jesus € elevado aos c&us e sentado a di disci rao deménios em meu nome; falara Pordo as maos aos doentes ¢ os curarao (versi 's vo pelo mundo proclamando o evangelho, co: suas palavras sendo confirmadas pelos sinais que as acompanhavam (versiculos 19-20). Euma passagem fica, ‘passagens usadas pelos cristios pentecostais para mostrar que os seguido- res de Jesus sero capazes de falar em! re em seus cultos de adoragio; ¢ € a principal passagem usada pelos grupos de “manipuladores apalaches de cobras”, que até hoje pegam cobras vene- | nosas com as préprias mios para provar sua f6 nas palavras de Jesus, para fazendo isso nao serio atingidos por nenhum mal. im problema, Mais uma ver, a passagem nio é parte original ~do Evangelho de Marco Foi acrescentada por um copista tardio. De certo modo, esse problema textual é mais disputado que a passa- gem da mulher flagrada em adultério, porque sem esses versiculos finais sgn fla Etna n ant sriosa, tocante e poderosa. E uma das linguas*{ desconhecidas, como ocor- sm STAS DOS ESCRITOS CRISTAC Marcos tem, um fim muito diferente fica que os pesquisadores se inclinem a aceitar esses versic veremos/O: 1s para considerd-los como um acrés quase indiscutivei] Mas os pesquisadores debarem qual era r fim genuino de Marcos, diante do fato de que o fi uitas tradugies verndculas (embora geralmente marcadas como inawt nal. ticas) e nos m ritos gregos tardios nao € o orig A prova de queesses versict melhante em género a prova para a p rério,e mais uma ver nao necessito descer a parmenares aqui,/Os versiculos esto ausentes de dois de nossos mais antigos e melhores manuscritos do Evangelho de Marcos, além de ausente de outros importantes testemunhos; estilo de excrta é diferente do estilo que encontramos em todo o restante de Marcos; a transigao entre essa passagem e a anterior é de dificil entendi- mento (por exemplo, Maria Madalena é apresentada no versiculo 9 como se ainda nao tivesse sido mencionada, mesmo tendo ela sido discutida nos versiculos anteriores; hi mais um problema com o grego que faz a transigao ainda mais complicada):¢ hé_um grande mimero de palavras ¢ frases na passagem que nio so encontragas em nenhum outro lugar em Marcos. F suma, as evidéncias slo suficientes para convencer quase todos os pesquisa- dores textuais de que esses versiculos sig um acréscimo a Mare Sem eles, porém, o relato acaba muito abruptamente. Atengao ao que sulos so excluidos: diz-se as mulheres para li os encon- os nio estavam acontece quando esses ver informar os diseipulos que Jesus os precedera na Gi trard; mas clas, as mulheres, desertam do tiimulo e nada dizem a nin- guém, “pois estavam amedrontadas”. F aqui onde o Evangelho acaba. Obviamente, os copistas pensavam que o fim era abrupto demai As mulheres nio dizerem nada a ninguém? Fntdo, 0s discipulos nunca souberam da ressurreigio? E nem mesmo Jesus apareceu a eles? Como poderia ser esse o fim? Para resolver o problema, os copistas acrescen- saram um fim. as os doze versie de todos esses fi ‘Testament. 2. ed, Nova lorque: United Bible Society, 1994, p. 0 QUE JESUS DISSE? Alguns pesquisadores concordam com os copistas ¢ consideram que Marcos 16,8 é muito abrupto para set um final de evangelho. Como jé |do Evangelho de Marcos, uma em que Jesus realmente encontrava 0s dis- de algum modo se perdeu e que todas as nossas cépias do Evangelho remontam a esse manuscrito truncado, sem a iltima possivel, na opi- igo de outros pesquisadores, que Marcos tenha decidido cone Evangelho em 16,18", que é certamente um fim chocante. Os discfpulos nunca saheriam a verdade sobre a ressurreigio de Jesus porque as mulhe- Essa explicagio € plenamente possivel. Assim coi res nada Ihes teriam contado. Uma razio para considerar que era desse modo que Marcos fechava seu Evangelho é que esse fim est em concor- dancia com outros motivos espalhados pelo texto. Estudiosos de Marcos sempre perceberam que, nesse Evangelho, os discipulos nunca “se ligam” (diferentemente do que se passa em outros Evangelhos). Repetidas vezes se diz que eles nao entendem Jesus (6,51-52; 8,21), ¢ quando Jesus Ihes diz, em varias ocasides, que deve softer e morrer, eles claramente no che- gam a compreender suas palaveas (8,31-33; 9,30-325 10,33-40). Talver, de fato, cles nunca tenham chegado a entender (8 diferenga dos leitores de Marcos, que podem entender quem Jesus realmente é desde o principio) “Também é interessante notar que em todo o Marcos, quando alguém vem a entender algo sobre Jesus, o proprio Jesus ordena que essa pessoa silen: fea pessoa ignore a ordem ¢ espalhe a boa nova (por exemplo, 1,43-45). Suprema ironia i cle — mesmo que freqiienteme Iheres que foram ao tmulo que nao se calem, mas falem, elas também ig noram a ordem—e silenciam! Em summa, Marcos pode muito bem ter tido a leitores com esse fim abrupto — um modo habil de fazer o leitor parat, ngio de instruir seus tomar félego e perguntar: 0 qué?! Como assim?! 20. Ver: FARMAN, Bart D. The New Testament, op. cl p. 5, especialmente p. 79-80. CONCLUSAO, As passagens acima discutidas representam ape de lugares nos quais os manuscritos do Novo Testame dos por copistas. Em ambos os exemplos, estamos lidando com mos feitos por copistas ao texto, acréscimos de extensio consi Embora a maioria das passagens nao seja da mesma magnitude, h tas mudangas significativas (e muitas mais insignificantes) em nossos ma nuscritos do Novo Testamento. Nos capftulos seguintes, veremos como (8 pesquisadores comegaram a descobrir essas mudangas e como desen- volveram métodos para definir qual é a forma mais antiga do texto (ou 6 texto “original”); veremos especialmente mais exemplos de onde esse texto foi alterado — e de como essas alteragées afetaram as nossas tra dugies vernéculas da Biblia. Eu gostaria de encerrar este capitulo simplesmente com uma observa- 40 sobre uma ironia particularmente acentuada que, parece, descobri- mos. Como vimos no capitulo 1, desde o principio, 0 cristianismo é uma religido do livro que enfatizou alguns textos como escritura autorizada. Contudo, como vimos neste capitulo, na verdade, no temos tais textos autorizados. (Quer dizer, 0 cri ‘ianismo é uma religido textualmente orientada cujos textos fundamentais foram mudados ¢ que s6 sobrevi- vem em cépias que diferem de uma para outra, em certos momentos, de icatival A tarefa da critica textual ¢ tentar.re- -cuperar_a forma mais antiga desses textos. um modo altamente ‘Obviamente, trata-se de uma tarefa crucialy-dado que néo podemos interpretar as lavras do Novo Testamento se nao sabemos que pala vras eram. Acima de tudo, como espero ter deixado claro, conhecer as palavras é importante no apenas para aqueles que consideram as pala- vvras divinamente inspiradas. £ importante para todo aquele que consid ra 0 Novo Testamento um livro importante. E seguramente todo aquele {que se interessa pela histéria, sociedade e cultura da civilizagéo ocidental acha isso, porque 0 Novo Testamento é, quando menos, um grandioso artefato cultural, um livro reverenciado por milhdes ¢ que constitui 0 fundamento da maior religido do mundo hoj 3 TEXTOS DO Py isco: aneenren oA, Wa NOVO TESTAMENTO VRERO-AD hak SePigiew BanNiara| Edigées, manuscritos e diferencas ver nota 8 do capitulo 2 Be HSU DISS Antes que isso ocorresse, no decorrer dos primeiros séculos do cris nnismo, 08 textos cristios eram copiados em qualquer situacio onde tives sem sido escritos ou encontrados. E visto que 0s textos eram copiados Iocalmente, nao é de surpreender que localidades diferentes desenvolves- sem diferentes tipos de tradigao textual. Iso significa que os manuscritos ‘em Roma apresentavam muitos dos mesmos erros, porque eram em sua maioria documentos “internos”, copiados um do outro; nao eram muito influenciados pelos manuscritos que estavam sendo copiados na Palesti na; os textos da Palestina tinham caracteristicas prOprias, que eram dis. tintas das que se encontravam em um lugar como Alexandria do Egito. Além do mais, nos primeiros séculos da Igreja, alguns locais tinham co pistas melhores que outros. Pesquisadores modernos até reconheceram que os copistas de Alexandria — que era 0 maior centro intelectual do icularmente escrupulosos, mesmo nos primei- xxandria uma forma muito pura do texto dos tivos esctitos cristaos foi preservada, década apés década, por co- mundo antigo — eram pa ros séculos, e que em 4 pr pistas cristdos dedicados ¢ relativamente capazes. COPISTAS CRISTAOS PROFISSIONAIS Quando foi que a igreja langou mio de copistas profissionais para copiar seus textos? Hé bons motivos para achar que isso deve ter ocorrido em m momento perto do inicio do século IV. Até entdo, o cristianismo cera uma religido pequena, minoritéria no Império Romano, freqiiente- mente antagonizada, algumas vezes perseguida, Mas uma mudanca cata- -clismica se deu quando 0 imperador de Roma, Constantino, converteu-se “A fé por volta de{$12 r.q] De uma hora para outra, o cristianismo deixou de ser uma religido de_périas.sociais, perseguida tanto.pela plehe loca} como pelas autoridades imperiais, para desempenhar wun papel de desta- _que na cena religiosa do império. Nao s6 as perseguigdes foram suspen~ ‘sas, como favorecimentos comecaram a verter sobre a igreja, estimulados. pelo poder maximo do mundo ocidental. O resultado foram{conversbes em magsil a medida que se tornaya uma coisa normal s¢r.u m scguidor de Cristo num tempo em que o proprio imperador proclamava publicamen- te sua adesdo ao cristianismo. apace pe Cremenyrn — Slits High lice condi ali EXTOS DO NOVO THSTAMENTO 83 Mais e mais pessoas de alto nivel de farmagio ingelectual se converte- ram a fé. Naturalmente, elas eram mais capacitadas a copiar os textos dt tradigio crista. Ha razdes para supor que, por essa época, brotar; -scriptoria™ cristaos nas grandes reas urbanas.* Um seriptorium gar dedicado & cépia profissional de manuscritos. Temos informagio de scriptoria cristaos funcionando nos inicios do século IV. Em 33 imperador Constantino, querendo que Biblias magnificas fossem_dispo nibilizadas para as grandes igrejas que mandara.construir, escreveu uma requisicio ao bispo de Cesaréia, Eusébio,’ para que ele produzisse cin- 4s expensas imperiais. Eusébio tratou essa requisiga0 com toda a pompa e respeito que ela merecia e se empenhou em atendé-la. E claro que um empreendimento dessa magnitude exigia um seriptoriuon profissional, sem falar nos materiais necessérios para fazer cépias exube- rantes das escrituras cristis. Estamos jé em um tempo completamente di plesmente so ciente para fazer uma c6pia do texto, A partir do século IV, as c6pias das escrituras comecaram a ser fei tas por prof jsso naturalmente reduziu significativamente o niimero de erros q) as décadas viravam séculos, a cOpia das escrituras gregas se tornou en- cargo de monges que trabathavam em éreas especificas dos mosteiros, que dedicavam seus dias a copiar os textos sagrados cuidadosa e cons- cientemente, Essa p uu durante a Idade Média, até a épo- de apenas um século ou dois antes, quando as igrejas locais sim- ariam que um de seus membros arrumasse tempo sufi- ” avam nos textos. Por fim, medida que ma bil joteca. Os sript ', 0 scriptoriun era uma tico era 0 armarius, que p crial de trabalho pars ava o processo, Rubricas ei rea inexistincia de indicio de seriptoria nos prime tardians of letters, op. cit p. 89-91 100 padre da historia eck 9 erezentos anos da igreia ica por cau- Disse ay montante de nossos textos gregos subsistentes provém das penas desses copistas cristiios medievais que viveram e trabalharam no Oriente (por exemplo, em reas que atualmente sio Turquia € Grécia) conhecido Por esse motivo, os manuscritos gregos, do sulo XVII em diante, as vezes so classificados como manuscritos Como jé falamos, todo aq go manuscrita do Novo Testamento do texto tendem a ser muito semethantes umas As outras, mesmo que as cépias mais antigas variem significativamente entre si e em relagao a forma do texto encontravel nessas c6pias tardias. A essa altura, os mo- ca da invencdo da imprensa de tipos méveis no século XV. O grande Je que tenha familiaridade com a tradi- be que essas c6pias bizantinas tivos para isso j4 devem estar claros: isso tem a ver com quem copiava 0s textos (profissionais) ¢ onde trabalhavam (numa drea relativamente iguraria grave erro pensar que porque os m3- to extensamente tim com o outro, t0s- riginaig’y do nitada). Contudo, co nuscritos tardios concordai nam-se doravante_testemunhas superiores. aos. texto: medievais conseguiam os textos que copiavam de modo tio profissio- nal? Eles os conseguiam dos textos antigos, cépia de textos ainda mais primitivos. Portanto, os textos que esto mais préximos, em sermos de forma, dos originais talvez sejam, muito inesperadamente, as c6pias ‘mais variantes e amadoristicas ¢ nao as.c6pias profissionais padroniza- das dos tempos posterior A VULGATA LATINA As praticas de copia que venho sintetizando dizem respeito principal: mente a parte oriental do Império Romano, onde 0 grego era, ¢ cont nua sendo, a lingua principal. Contudo, no demorou muito ¢ cristdos das regides nao-falantes do grego passaram a querer ter 05 textos sa- grados em suas proprias gua de grande porgio da area ocidental do Império Romano; o si era falado na Siria; o copta, no Egito. Em cada uma dessas regides, os livros do Novo Testamento vieram a ser traduzidos para as linguas ver- TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO aS naculas, em determinado momento do final do século II, Posteriormen- te, esses textos traduzidos foram, por sua vez, copiados por copistas em suas regides.* Foram particularmente importantes para a histéria do texto as tra- ices para o latim, porque grande parte dos cristios no Ocidente tinha 6 latim como su: Mas logo comecacam a surgit proble- © essas.traducies destoavam abertamente uma da. outra. O problema se IV cristo, quando o papa Damaso en- de uma tradugas que pudesse ser aceita por todos os cristdos latino-falantes,.m Roma e alhures, como um texto of proprio Jers resolver pesso. ‘Goes latinas disponiveis e a0 comparar seu texto com manuscritos gre- 40s superiores aos quais tinha acesso, Jerdnimo eriow uma nova edigao dos Evangelhos em latim. Pode ser que ele, ou algum de seus discipulos, seja também respons: Testamento en Essa forma da Biblia em latim — a traducdo de Jer conhecida como a Bil |= comum) da cristandade latino-falan- te, Bla foi a Biblia da lareia ocidena intimeras vezes. Foi 1¢ 08 cristdos leram, os pesquisadores pes ogos usaram durante séculos, até o periodo moderno. Hoje ha aprowimadamente duas vezes mais cOpias da Vulgata latina do“ ‘que manuscritos gregos do Novo Testamento pela nova edigao dos outros livros do Novo —se tornow la mesma copiada e recopiada quisaram e os 4 Para um panorama dessas antigas “verses” (isto é tradugdes) do Novo Testamen- «0, ver: METZGER, Bruce M.; EHRMAN, Bart D. Text of the New Testament, op. cap. 2, segi0 ’ara as versbes latinas do Novo Testamento, incluindo a obra de Jeronimo, ver METZGER, Bruce Muy EHRMAN, Bart D. Text of the New Testament, op. cit. cap. 2,segi0 2. No (© QUE JESUS DISSE? ‘A PRIMEIRA EDIGAO IMPRESSA DO Novo TESTAMENTO GREGO Como jé foi dito aqui, o texto do Novo Testamento foi copiado de for- ma razoavelmente padronizada no decorrer da Idade Média, tanto no Oriente (o texto bizantino) como no Ocidente (a Vulgata latina). $6.com a invengio da imprensa no século XV, com Johannes Gutenberg {1400- 1468) é que tudo mudou em termos de reprodugio de livras em geral e dos livros da Biblia em particular, Ao imprimir livros com tipos méveis, podia-se garantir que toda pagina seria completamente semelhante a sem variagao de espécie alguma na seqiiéncia das pa- toda outra pagi lavras. Foi-se a época em que cada copista poderia produzic diferentes cépias do mesmo texto por meio de alreragdes acidentais ¢ intencionai Estar impresso era como ser gravado em pedra. Além disso, podiam-se fazer livros mais rapidamente: nao havia mais necessidade de copiat le tra por letra. Como conseqiiéncia disso, os livros passaram a ser mais ba “ratos, Poucos acontecimentos tiveram w mundo moderno quanto a invengao da imprensa. © outro acontecimen- te se aproxima dessa invengao (e que pode vir a ultrapassé-la em im- impacto tio revolucionério to portncia) é o advento do computador pessoal. [A primeira grande obra a ser impressa na maquina de imprimir de Gutenberg foi uma m (Vulgata) latinaj que de- ‘morou de 1450 a 1456 para ser produzidal* Na metade do século seguin- ‘te, cerca de cingiienta edigdes da Vulgata foram produzidas por varias casas impressoras da Europa. Pode causar estranheza a auséncia de im- pulso para produzir uma c6pia do Novo Testamento grego nesses primei- ros anos da imprensa. Mas 0 motivo disso nao é dificil de ser descoberto: 6 aquele que jd mencionamos. Pesquisadores em_ toda a Europa — cluindo pesquisadores da Biblia — estavam acostumados havia quase mil ‘anos a pensar que a Vulgata de Jerdnimo era a Biblia, da Igecja {assim como algumas igeejas modernas de fala inglesa considera que.a King James Version éa “verdadeira” Biblia). A Biblia geega era tida como es- ica edigao da 6, Para maioresinformagises sobre essa e outras edigBes impressas discutidas nas pagi- nas seguintes, ver: METZGER, Bruce M.; EHRMAN, Bart D. Text of the New Testa- Tee ee we ‘TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO 87 tranha a teologia ¢ ao aprendizada; no Ocidente latino, ela era conside: rada como prépria dos cristdos ortodoxos gregos, considerados cismati na cos que tinham desertado da verdadeira igreja. Poucos pesquisa Eu ta, y pa Ocidental eram capazes de ler grego. Desse modo, a primeita vis yguém tinha interesse em imprimir a Biblia grega. © primeito pesquisador ocidental a conceber a idéia de produzir uma versio do Novo Testamento grego foi um cardeal espanhol chamado Xi- isneros (1437-1517). Sob sua lideranga, um grupo de pesquisa dores, inclusive um que se chamava Diego Lopez de Zuaiga (Stunica), assumiu uma edigo da Biblia em varios tomos. Tratava-se de uma edicio polighota, isto é, que reproduzia o texto da Biblia em varias linguas, Desse modo, 0 Antigo Testamento estava representado pelo original hebraico, a Vulgata latina e a Septuaginta grega lado a lado, dispostos em colunas. (A posigao de pri la por esses editores & Vulgata pode ser vista «em seus comentirios sobre essa organizagao do texto jé no prefic comparavam a Cristo — representado pela Vulgata — sendo crucificado entee dois c menes de, inosos, com os falsos judeus representados pelo texto he- braico e os gregos cisméticos representados pela Septuaginta, A obra foi impressa em uma cidade chamada Alcala, cujo nome lati- no € Complutum. Por esse motivo, a edigao de Ximenes é conhecida como a Poliglota Complutense. O volume do Novo Testamento foi o pri- meiro a ser impresso (volume 5, completado em 1514). Ele continha texto grego ¢ incluia um glossédrio grego com equivalentes latinos. Mas nao havia plano de publicar esse volume separadamente — todos os seis volumes (o sexto incluia uma gramatica hebraica e um di auxiliar na leitura dos volumes 1-4) deviam ser pul te, ¢ isso levou um tempo considerdvel. A obra toda foi concluida, ao que parece, por volta de 1517; mas como era uma produgio catélica, neces- sitava da aprovagdo do papa, Ledo X, antes de poder ser publicada. A aprovagio foi finalmente obtida em 1520, mas por conta de outras com- plicagées, o livro nao foi distribuido até o ano de 1522, cerca de cinco anos depois da morte do proprio Ximenes de ‘Como vimos, nessa época, havia centenas de manuscritos gregos (isto é, c6pias feitas 4 mao) disponiveis para as igrejas cristas ¢ os pesquisado- res no Oriente. Como foi, entio, que Stunica e seus companheiros edito- res decidiram quais desses manuscritas usar e, antes disso, quais eram_os manuscritos que realmente eram acessiveis a eles? Infelizmente, essas si0 ” teem gon upiee | nario, para icados conjuntamen- Coma vo ake an RR (© QUE JESUS DISSE? perguntas que os pesquisadores nunca foram capazes de responder com seguranga. Na dedicatoria da obra, Ximenes de Cisneros exprime sua gratidio ao papa Leao X pelas c6pias gregas “da Biblioteca Apostélica” que o papa Ihe teria emprestado. Desse modo, os manusctitos que servi ram para a edi¢o podem ter provindo do acervo vaticano, Contudo, al- ‘guns especialistas suspeitam que foram usados manuscritos localmente disponiveis. Cerca de duzentos ¢ cingiienta anos depois da produgio da Complutum, um erudito dinamarqués chamado[Moldenhawa visitou econdmicos ¢ para tentar eluci- Alcala para vistoriar seus recursos bi dar essa questo, mas nao conseguiu encontrar nenhum manuscrita do ca tinha de ter tido alguns manuscritos em algum moment investigagdes, até que um bibliotecério ao final Ihe disse que a bil teca realmente tivera antigos manuscritos gregos do Novo Testamento, ‘mas que em 1749 todos tinham sido vendidos a um fabricante de rojées, chamado Toryo “como pergaminhos intiteis” (mas adequados para fa~ bricar fogos de arti Fstudiosos posteriores tentaram desacreditar esse relato.’ Mas ele de- ‘monstra, pelo menos, que o estudo dos manuscritos gregos do Novo Tes- tamento nao esta reservado apenas a génios, A PRIMEIRA EDIGAO PUBLICADA DO Novo TESTAMENTO GREGO Embora a Poliglota Complutense tenha sido a primeira edigéo impressa do Novo Testamento grego, ela no foi a primeira, versio publicada, somo vimos, a Complutum foi impressa por volta de 1514, mas s6 vei a lume realmente em 1522. Entre essas duas datas, um pesquisador ho- landés empreendedor, o intelectual humanista[Desidério Frasmo] produ- ziu e publicou uma edigio. do. Novo Testamento, grego, passando a 0 elato informative eny: TREGELLES, Samuel P. An account of the Greek New Testament. Londres: Samuel Bagster & Sons, 1854, 7.Ner,especi the printed tex pdt, i “4 waa Robyn pocttenn vee Dpteban ge TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO. 89 merecer a honra de ter editado a assim chamada editio princeps (= pri- meira edigo publicada). Erasmo estudou o Novo Testamento, juntamen- te com outras grandes obras da Antigitidade, sem regularidade, durante muitos anos ¢, a certo ponto, pensou em juntar tudo e imprimir uma edi- 40, Mas s6 quando visitou Basiléia, em agosto de 1514, foi conve! por um editor chamado Johann Froben a seguir em frente. Tanto Erasmo como Froben sabiam que a Poliglota Complutense es- tava em preparagao e por isso se apressaram a publicar um texto grego 0 mais rapidamente possivel, embora outras obrigag6es impedissem Eras- mo de assumir para valer a tarefa antes de julho de 1515. Nessa época, cle foi a Basiléia em busca de manuscritos utilizaveis, que pudesse usar como base para seu texto. Nao descobriu uma grande fartura de manus- ctitos, mas o que encontrou foi o suficiente para a tarefa. No mais das, vezes, ele se fiou em um punhado de manuscritos medievais tardios, que rabiscou como se estivesse editando e corrigindo uma c6pia manuscrita para o impressor; 0 impressor tomou os manuscritos com essas emendas e fez a matriz diretamente deles. ‘Tudo indica que Erasmo baseou-se principalmente em apenas um.ma- _nuscrito do século XII para os Evangelhos ¢ e lo XIl, para_o livro_dos Atos ¢ as Epistolas — embora pudesse ter consultado virios outros manuscritos e feito corregdes a partir de suas leituras, Para o livro do Apocalipse, teve de tomar emprestado um ma- nuserito de seu amigo, o humanista alemio Johannes Reuchlin. Infeliz~ mente, esse manuscrito apresentava passagens quase impossiveis de ler e, ainda por cima, nao tinha a dltima pagina, que devia conter os seis ver- siculos finais do livro. Em sua pressa de concluir o trabalho, nessas pas- sagens, Erasmo simplesmente lancou mao da Vulgata latina e retraduziu © texto latina para o grego, gerando com essa atitude al losas tex- twais que hoje ndo se encontram em nenhum manuscrito grego subsisten- te. Ea deldé, como veremos, a edigdo do Novo Testamento grego que, para todos os propésitos priticos, foi usada pelos tradutores da Biblia King James quase um século mais tarde. A impressio da edicio de Erasmo teve inicio em outubro de 1515 € foi concluida apenas cinco meses depois. A edigdo inclui, lado a lado, 0 texto grego coligido as pressas e uma versio revisada da Vulgata latina (a partir da segunda edigio, em todas as edigdes posteriores, Erasmo in- cluiu sua propria tradugio latina do texto em lugar da Vulgara, para ‘outro, também do sécu- 90 (© QUE JESUS DISSE? grande consternagio de muitos tedlogos da época, que ainda consideravam a Vulgata “a” Biblia da Igreja). O livro era bastante volumoso, com quase mil paginas. Mesmo assim, como o proprio Erasmo disse mais tarde, ele, “em ver de ser editado, saiu precipitadamente” (sua frase em latim & prae- cipitatum verius quam editur) £ importante reconhecer que a edigdo de Erasmo foi a editio princeps do Novo Testamento grego nao apenas porque representa um ponto hi t6rico importante, mas acima de tudo porque, @ medida que a hist6ria do texto se desenvolveu, as ediies de Erasmo (ele fez cinco, todas ba- seadas, em siltima instancia, na primeira edicdo feita as pressas) corna- ram-se a forma-padrdo do texto grego que passou a ser publicado pelos impressores europeus ocidentais durante mais de trezentos anos. Seg ram-se numerosas edigdes gregas, produzidas por impressores cujos no- ‘mes siio bem conhecidos pelos pesquisadores do assunto: Stephanus (Robert Estienne), Teodoro Beza, Boaventura ¢ Abraio Elzevir. Cont do, todos esses textos, de um modo ou de outro baseados nos textos de seus predecessores, remontam ao texto de Erasmo, com todas as suas fa Ihas, por ter sido feito a partir de uns poucos manuscritos (por vezes, dois ow até mesmo um — ou, em partes do Apocalipse, nenhum!) que foram produzidos relativamente tarde no periodo medieval, Os impressores, em sua maioria, nio foram atrés de novos.manuscritos que pudessem ser _mais antigos e melhores, para estabelecer seus textos. Em vez disso, sim- plesmente imprimiram e reimprimiram 0 mesmo texto, fazendo apenas ajustes menores. Algumas dessas edigdes so, seguramente, importantes. Por exemplo, ‘a terceira edicdo de Stephanus, de 1550, se destaca por ser_a primeira edigdo a incluir notas para documentar diferengas entre alguns dos ma- scritos consultados; sua quarta edi¢ao (1551) pode ser considerada iportante, por ser a primeira edigio do Novo Testamento ir o texto em_versiculos. Até entio, o texto fora impresso culos. Hé uma gregoad “todo junto, sem nenhuma indicagao de divisio em ver anedota divertida associada ao modo como Stephanus fez 0 seu trabalho cao. Seu filho contou mais tarde que ele se decidira pela divisio em versiculos (em grande parte seguida pelas tradugdes modernas) en- quanto viajava a cavalo. Sem diivida, ele quis dizer que seu pai “traba- Ihava durante o traj rnimeros de versiculos noite, nas hospedarias em que parava. Mas vis- Yetinds, 10” — ou seja, que ele introduzia no texto os eed on win queen o bik Bile Wehbe OO COPE ( SCRBP UBL ) TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO o to que o filho de Stephanus diz literalmente que o pai fez essas mudangas, “no lombo do cavalo”, alguns observadores tendenciosos sugeriram que cle realmente fez sua obra em transito, de modo que a cada vez. que seu cavalo dava_um solavanco,a pena de Stephanus pulava, senda esse @ mo- fivo da seqiiéncia tipica dos versiculos-que hoje encontcamos em.nossas, tradugdes do Novo Testamento. © ponto mais abrangente a que me r . contudo, & que todas essas edigdes posteriores — inclusive a de Stephanus — remontam, em iiltima a editio princeps de Erasmo, por sua ver baseada em alguns ‘manuscritos gregos mais ou menos tardios e nao necessariamente confia- veis — aqueles que ele por acaso encontrou em Basiléia e um que tomou emprestado de seu amigo Reuchlin. Nao ha motivo para pensar que ¢s- ses manuscritos, particularmente, apresentassem um ; dade, Tratava-se simplesmente daqueles de que ele pode langar mao. isso tudo se depreende que esses manuscritona@eram de qualida- de superior, poral lima instancia, foram produzidos mais ou me- ¢ com anos depois dos. originais }0 que Erasmo usou para os Evangelhos continha tanto a nar~ ativa da mulher flagrada em adultério quanto o: de Marcos, passagens que originalmente nao faziam parte dos Evangelhos, como aprendemos no capftulo anterior. via, contudo, uma passagem-c tos-fonte de Erasmo niio-c que os pesquisadores chamaram de 0 paréntese joar manuscritos da Valgata l sregos, uma passagem que logos cristaos, dado que & explicitamente a doutrina da Trindade, segundo a qual ha trés pessoas na divindade, com todas as trés constituindo um s6 Deus. Na V pas: sagem é lida assim: Ha trés que conduzem o testemunho nos céus: 0 Pai, 0 Verbo e 0 Es- irito e esses trés so umm; e hd trés que conduzem o testemunbo na terra, 0 Espirito, a dgua e 0 sangue, ¢ esses trés sao um. Trata-se de uma passagem misteriosa, mas inequivoca em seu apoio is da igreja sobre 0 “Deus trino Sem esse versiculo, a doutrina da Trindade deve ser inferida de uma série de passagens combinadas para mostrar que Cristo € Deus, assim como instan Por exemplo, © principal imos doze versicu- ‘aos ensinamentos tradici ‘Mas Erasmo ndo a achou em se ¢ se Ié: “Pois ha trés que dio esses trés SA0 u onde Eles nao figuravam no manuseri nienhum dos demais que ele consultou, xou de fora de sua primeira edi¢io do Foi isso, mais do q |quer outra coisa, que tirou do sério os t26- logos. de seu. tem »-de-adulteraro texte, numa ina da Trindade ¢ de desvalorizar o seu co= ca, um dos editores-chefes da P desacreditar Erasmo ¢ insistir em que, em edigies f a seu lugar correto. lar dos fatos, Erasmo — provavel de descuido — concordou em inserir 0 vers de seu Novo Testamento grego, sob uma condigao: versarios prod encontrado (ach. e em um mo- em uma futura ue seus ad- idesse ser 1s latinos nao era o bastante). Dessa le foi produzi- -se um manuscrito grego. Na re asiio. Parece que alguém copi shegou A passagem em questao, traduziu paréntese joanino em sua forma - © manuscrito providenciado para Erasmo ¢ra, em outtas ras, uma producio do século.XVL, feita sab encomenda. ‘Nao obstante suas apreensées, Erasmo manteve a palavra € sanino na prOxima e em todas as edigdes de seu Novo Testa sea base paca as edigtes do Novo Testamento grego.que-eram, i €p: sm tempos segunda as preferdncias de Stepha. Essas edigdes estabeleceram_a forma do texto seproduzidas de tempos — da King James, de 1622 em diante, lo XX — incluem a mulher flagrada e1 10s doze versiculos de Marcos ¢ 0 paréntese j onsciéneia dos leitores da Biblia por mero acaso por causa dos manuscritos.a que Erasmo por acaso teve.acesso « en que foi rita. sob encomenda para ele [As varias edigdes gregas dos sée que, por fim, os impressores comeca uuniversalmente aceito por todos os pesquis mento grego —¢ realmente eram, dado citada constatagio a seus as palavras “exto-que €aceito par todos’ Textus Receptus (abreviadamente TR), usada pela critica textual para se re- ferir & forma do texto grego baseada, no nos manuscritos mais antigos e 1s na forma do texto originalmente pul impressores durante mais de trezentos quisadores do texto. Test seados reimpresso segundo o costume. forma textual inferior do Textus Re: cepis que se tornou-a base das traducdes inglesas mais antigas, incuindo a Biblia King James ¢ qutras edigdes aré quase-o final da sécula XIX. srego devia ser estab nossos mais antigos O APARATO CRITICO DE MILL PARA 0 Novo TESTAMENTO GREGO 1¢ tinham acesso as edigdes impressas du- , 0 texto do Novo Testamento grego, entio, I de contas, quase todas as e 4 (© QUE JESUS DISSE? 1am praticamente 0 mesmo texto. De quando em vez, porém, os pes: quisadores se dedicavam a descobrir e a divulgar que os.manusctitos gre- ‘gos apresentavam variagio em telagdo ao texto habitualmente impresso. Vimos q\ ia edigo de 1550, incluiu notas & margem para identificar lugares de variagao entre varios manuscritos que exami nara (catorze ao todo). Algum tempo depois, no século XVI, pesquisa- dores ingleses, como Brian Walton e John Fel quais se levavam mais a sério as variagdes entre os manuscritos subsis- tentes aos quais se tinha acesso. Mas qi ta da enormidade do problema da variagio textual, até a publicacao pioneia, ‘em[1707] de um dos classicos no campo da cr tamento, um livro que teve o efeito de um cata transmissio do Novo Testamento grego, abrir ‘garam os pesquisadores a encarar com m dos manuscritos do Novo Testamento,’ Trata-se da edigao do Novo Testamento grego de John Mill, membro do Queens College, Oxford. Mill investiu t anos de trabalho arduo para reunir os materiais para sua edi¢ao. O texto que ele imprimiu foi simplesmente a edigao de 1550 de Stephanus. Mas 0 que.chamou a.aten- sao na publicagao de Mill nao foi o texto. que ele usou, mas as glosas va- riantes desse texto que ele citava no aparato critico. Mill reve acesso as ‘glosas de cerca defeem manuscritos gregos do Novo Testament} Além disso, examinou cuidadosamente os escritos dos padres da Igreja primi- tiva para ver como eles citavam o texto — na hipétese de alguém poder reconstruit 0s manuscritos utilizados por esses padres pelo exame de citagdes. Além do mais, mesmo ndo podendo ler muitas das.outras lin- guas antigas, a excegao do latim, ele uso uma edigao antiga publicada por Walton para ver onde as antigas versGes em linguas como o siriaco e © copta diferiam do grego. Com base nesse intenso esforgo de trinta riais, Mill pul res de variagio entre todos os mate Stephanus, em publicaram edig6es nas se ninguém se dew textual do Novo Tes- smo sobre o estudo da lo as comportas que for de a situagao textual s seri a seu texto com aparato mae’ TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO 95 Mill isolava cerca de trinta mil lugares de variagao entre os testemunhos subsistentes, trinta mil lugares onde manuscritos diversos, citagdes pa- tristicas (= dos padres da Igreja) ¢ verses liam de modo diferente passa- gens do Novo Testamento. Mill nao foi exaustivo em sua apresentagao dos dados que coli verdade, encontrara muito mais que trinta mil lugares de variacac ndo citou tudo o que descobrira, deixando de lado variagdes como {que envolvem mudangas da ordem dos termos na frase. Também deixou de lado os lugares que notou serem capazes de afastar 0 publico leitor da complacéncia na qual se encontrava, baseada na constante republicagao do Textus Receptus e na suposigao de que se tinha no TR 0 grego “or nal” do Novo Testamento. Atualmente, o status de texto original foi lan- cado em aberta disputa. Se alguém nao sabe quais s4o as palavras originais, do Novo Testamento grego, como pode usar tais palavras para decidir qual 0 ensinamento e doutrina cristios corretos? A CONTROVERSIA CRIADA PELO APARATO CRITICO DE MILL (© impacto da publicagao de Mill foi imediatamente sentido, embora ele mesmo nao tenha vivido para ver o drama se desenrolat. Ele morreu, vi tima de derrame, apenas a duas semanas de sua grande obra ser publica- da, Apesar disso, sua morte repentina (atribuida por um observador 20 fato de Mill “ter bebido café demais”!) nao impediu os detratores de par- ticem para o ataque. O ataque mais mordaz veio trés anos mais tarde, em um volume bastante erudito de um controversista chamado Daniel ‘Whitby, que, em 1770, publicou um conjunto de notas sobre a interpre- tagio do Novo Testamento, ao qual acrescentou um apéndice de cem pa- ‘ginas, no qual examinava, em pormenor, as variantes citadas por Mill em seu aparato, Whitby era um tedlogo protestan basica era a de que ainda que Deus no sivesse evitado que os eetos gras- sassem nas c6pias que-os.copistas fizeram do Novo Testamento, ele nun ‘ca permitiria que 0 texto, se tornasse to corrompido (isto é, alterado) a ponto de nao poder atingir adequadamente sua inten¢ao e designio divi- inos. Por isso, ele lamenta: “Portanto, OFENDE-ME € me aborrece ter en- 96 (0 QUE JESUS DISSE? contrado tanta coisa nos prolegdmenos de Mill que parece capaz. de tra zer inseguranga ao padrao da fé, on pelo menos dar a outros muitos bons, motivos para duvidar”."” Whitby chega a sugerie que os pesquisadores catélicos romanos — ‘aos quais chama “os papistas” — ficariam todos muito felizes se passas sem a poder provar, com base na inseguranga dos fundamentos do texto grego do Novo Testamento, que as escrituras nao eram autoridade sufi ciente para a fé — isto é que a autoridade da igreja é superior. Nas pala- vas dele: “Morinus [um pesquisador catélico] defende a depreciagao do ‘Texto Grego, o que tornaria a autoridade do Texto Grego incerta a par- tir da multiplicidade de variantes que ele encontrou no Testamento gre- go de R. Stephens [= Stephanus]; que vit6ria no alcangardo entio os papistas sobre o mesmo texto quando virem as variantes quadruplicadas por Mill, depois do tanto que ele suou em trinta anos de trabalho?" Whitby segue argumentando que, de fato, 0 texto do Novo Testamento é seguro, dado que raramente alguma variante citada por Mill diz respei- to maioria das variantes de Mill ndo tem declaragdo de autenticidade. Whitby parecia querer que sua refutagao provocasse efeito sem que ninguém realmente a lesse, porque se tratava de cem paginas irgidas, densas, desagradaveis, de argumentacao cerrada, que tenta chegar ao ob- jetivo simplesmente pela massa acumulada de sua refutagao, A defesa de Whitby bem que poderia ter atingido 0 alvo se nao tives- se passado a ser usada por aqueles que usavam as trinta mil passagens de variagdo de Mill exatamente para o propésito que Whitby temia, para defender que nao se podia confiar no texto da escritura porque ele era, em si, muito incerto. Destaque entre aqueles que defendiam essa posigio teve o defsta inglés Anthony Collins, amigo ¢ seguidor de John Locke, pensamento. A obra era um produto tipico do pensamento deista de ini cios do século XVII: defendia a primazia da logica ¢ da demonstragao artigo de fé ou a uma questo de conduta e afirma que a grande 10, Enfase de Whitby, apud FOX, Adam, fohn Mill and Richard Bentley: a study of textual erticism ofthe New Testament, 1675-1729. Oxford: Blackwell, 1954, p. 106 11, Ibidem, p. 106. XTO$ DO NOVO TESTAMENT 97 sobre a revelacio (presente, por exemplo, na Biblia) e a possibilidade do milagre. Na seco 2 da obra, que trata de “questées re observa, em meio a muitas outras coisas, que até mesmo 10 6, Mill) “reconheceu e trabalhou para provar que o Texto da Es panfleto de Collins, que se tornou muito lido e exerceu grande in- fluéncia, provocou certo ntimero de respostas pontuais, muitas delas sas e penosas, algumas outras eruditas e indignadas. Compreensivelmente, seu. mais significative resultado foi ter envolvido na disputa um especial ta de grande reputacao internacional, o mestre.do Trinity College, de Cam- bridge, Richard Bentley.) Bentley é renomado por sua obra sobre autores ssicos como Homero, Horacio e Teréncio. Em uma réplica tanto a Whitby como a Collins, escrita sob o pseudénimo de Fileléutero Lipsiense (que significa algo como “o amante da liberdade que vem de Leipzig [Lip- sia” — uma alusio bvia ao apelo de Collins ao “livre-pensamento”), Bentley chama a atengZo para 0 ponto dbvio de que as variantes que Mill acumulou nao tornariam inseguros os fundamentos da fé protestante, vis- to que tais variantes existiam mesmo antes de Mi as inventou; apenas chamou a atencao sobre elas. (Sle formos dar crédito nao apenas a esse douto Autor {Collins}, mas a um Doutor, por propria conta, ainda mais douto [Whitby], Ele [Mill] la- butou todo esse tempo, para provar que o Texto das Escrituras é precé- rio... Mas exatamente contra que seu Whithyus tanto ataca e grita? A Labuta do Doutor, diz ele, torna todo o texto precirio; e expoe tanto a Re- forma aos Papistas, como a propria Religio aos Ateistas. Deus nos livre! Esperamos coisas melhores, Certamente essas Leituras Variantes existiam antes em varios Exemplares; Dr. Mill nao as fex e cunhou, apenas as exi- biu a nossa Visio. Se, portanto, a Religiao era verdadeira antes, mesmo com a existéncia de tais Leifuras Variantes, ela continuard a ser verdadeina e, conseqiientemente, ainda estaré a salvo, embora todos as vejart. Conte- ‘mos com isso; nenbuma Verdade, nenbuma matéria de Costume conve- nientemente exposta pode chegar a subverter a verdadeira Religiao.” té-las notado, Ele no 12. urstexsis, Phileleutherus. Remarks upon a late discourse of free thinking. 7. ed. Londres: W. Thurbourn, 1737. p. 93-94. Bentley, um especialista nas tradigdes textuais dos classicos, continua, explicando que é claro que se pode esperar encontrar uma multiplicida~ de de variantes textuais sempre que se descobre um grande niimero de manuscritos. Se houvesse apenas um manuscrito de uma obra, nao have- ria variantes textuais. Contudo, assim que um segunde manuscrito €o- calizado, ele diferira do primeiro em varias passagens. Isso, porém, nao é ruim, visto que as verses variantes mostrario onde o primeira manus- “sfito preservou um erro. Acrescente um terceiro manuscrito, e vocé en- contrara versdes variantes adicionais, mas também passagens adicionais, como resultado, onde o texto original é preservado (isto é onde os dois Primeiros manuscritos concordam em um erro). E assim por diante — \quanto mais manuscritos forem descobertos, mais verses variante Jambém quanto mais semelhancas forem descobertas entre essas verses «> \feariantes, mais provavel seréalguém descobrir 0 texto original. Portan- to, as trinta mil variantes descobertas por Mill nfo depreciam a integri- dade do Novo ‘Testamento; elas simplesmente fornecem os dados de que 'os pesquisadores necessitam para tcabalhar no estabelecimenta do texto, uum texto que é muito mais amplamente documentado do que qualquer | outro do mundo antigo} Como veremos no préximo capitulo, essa controvérsia gerada pela publicagao de Mill, por fim, levara Bentley a dedicar todas as suas pode rosas habilidades intelectuais ao problema do estabelecimento do mais antigo texto do Novo Testamento ao qual se pode ter acesso. Mas antes de nos embrenhar nessa discussio, talvez devamos dar um passo atris ¢ relacio a espantosa descoberta de Mill de trinta mil variantes na tradigo manuscrita do Novo Testamento. Nossa sITUACAO ATUAL Enquanto Mill tomou conhecimento ou examinou cerca de cem manus- ctitos geegos para descobrir suas trinta ntes, hoje temos conhe- cimento de muitas, muitas mais. Os siltimos célculos indicam que mais de cinco mil e setecentos manuscritos gregos foram descobertos ¢ catalo- _gados. E quinhentas e setenta vezes mais do que os cem manuscritos que ‘Mill conhecia em 1707. Esses cinco mil ¢ setecentos incluem de tudo, ees Ly desde o menor dos fragmentos de manuscritos — do tamanho d to de crédito — até produces bem maiores ¢ excelentes, presen em sua totalidade. Alguns deles contém apenas um livro do Nove ‘Testa- ‘mento; outros contém uma pequena colecao (por exemple fos quatro. Nove ‘o lado, ha muitos manuscritos das vicias Evangelhos ou as cartas de Paul verses (= ttadugGes) primitivas do Noyo Testamento. Esses manuscritos se distribuem no tempo do inicio do século II (um fragmento pequeno chamado P*, que registra varios versiculos de Joo 18), até o século XVI." O tamanho deles varia muito: alguns sao peque- nas e6pias que caberiam na palma da mao, como uma cépia copta do Evangelho de Mateus, chamada e6dice Scheide, que mede 11x13,7 c timetros; outros sao c6pias muito maiores ¢ impressionantes, dentre as poucos sdo os que contém quais podemos citar 0 jd mencionado Cédice Sinaitico, que mede 38,1x34,2 centimetros e ocupa um bom espago quando completamente aberto, Alguns desses manuscritos so baratos, c6pias produzidas as pressas; alguns chegam até a ser copiados em paginas usadas (quando um documento foi apagado ¢ 0 texto do Novo Testamento foi escrito por sobre as paginas apagada incluindo algumas escritas em per ou de ouro. 1m geral, os pesquisadores falam de Guatta tipos de manuscritos qutros sio c6pias magnificas e caras, inhos parpura com tinta de prata 0 que saibamos, ainda ct esses de7, todos agora tém falhas los os processadores de texto disponiveis. iad cate ipo de superficie dos too (© QUE JESUS DISSE? a) Os mais antigos so os manuscritos papyrus, escritos em material manufaturado do junco de papiro, um material de escrita valoriza- do, mas barato e eficiente no mundo antigo; eles datam de uma Epoca que vai do século Il ao século VIL. b) Os manuseritos finciaiS)(= caixa alta) sao feitos de pergaminho (= pele de animais, as vezes, chamado de v letras grandes, semelhantes a nossas maitisculas, que eram usadas; cles datam, em sua maioria, de uma época que vai do século IV ao, século IX. ) Manuscritos Zrintisculo€{caixa baixa) também sao feitos em per gaminho, mas sio escritos em letras menores, freqiientemente combinadas (sem que a pena seja levantada da pagina) com algo {que se assemelha ao equivalente grego da escrita cursiva; esses da- te. 4) Lecionarios geralmente se apresentam em forma miniscula, mas ‘em vez de consistir em livros do Novo Testamento, contém, numa iradas do Novo Testamento para sm cada dia santo (como os tam do século IX em dit ordem estabelecida, “leitura ser usadas semanalmente leciondrios usados hoje nas imento de cerca de dez ‘Alem desses manuscritos gregos, temos conk 0s da Vulgata latina, sem falar nos mai tos de outras orgiana, a da I $6 teve acesso a Igreja Eslava, e assim por diante (lembremos que M pucas das verses antigas e apenas por meio de suas tradugdes latinas). mo, temos os escritos de padres da Igreja como Clemente > Emacrés > ~ Alexandria, Origenes ¢ Atandsio, entre os grcgos; Tertuliano, Jeronimo tre os latinos — todos com citagoes dos textos do Novo 3S passagens, o que possi evem ter sido os manuscritos (atualmente perdidos em sua maioria) que util ‘Com tamanha profusio de indicios, qual sera o total de variantes arualmente conhecidas? Os pesquisadores fazem estimativas muito dis- ir 0 que cordantes — alguns falam de duzentas mil variantes conhecidas, outros {f° dio de trezentas. smi), alguns falam de quatrocentas mil, au mais! Mas nao se or” tem certeza, porque, apesar dos impressionantes avangos da informati- a, ainda no houve quem! Losec saat Talvez, como eu he hpdh | TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO ror ja melhor falar em termos comparativos. Ha m. entre os nossos manuscritos que palaveas no Novo Testam Tiros DE MUDANGAS EM NOSSOS MANUSCRITOS Se € problematico falar da quantidade de mudangas que ainda persiste, que dizer dos tipos de mudangas encontraveis nesses manuscritos? Ge mente, os pesquisadores hoje distinguem mudangas que parccem fer sido insetidas acidentalmente por causa de erros dos copistas ¢ alteragdes in- tencionalmente feitas, com premeditacao. Essas nao sio, evidentemente, fronteiras inflexiveis e fixas, mas mesmo assim parecem ser bem apro- priada ber, deixow de fora uma palavra enquanto copiava um texto (uma mudanga acidental), mas é dificil compreender como os daze dltimos ver’ siculos de Marcos poderiam ser.acrescentados por causa.de um escarre- gio da pena. Por isso, parece bastante proveitoso encerrar este capitulo com alguns exemplos desses dois tipos de mudanga. Comecarei indicando alguns ti pos de variantes “acidentais 1alquer pessoa pode compreender que um copista, sem perce- Mudancas acidentais Deslizamentos acidentais da pena"* eram, sem diivida, potencializados pelo fato de os manuscritos gregos serem todos redigidos em seriptuo 40, na maioria dos casos, ou até mesmo sem es- ica que/palavras muito semelhantes en pela outra} Por exemplo, continua — sem pontu: pagoentre as palavras. Isso si tre si eram frequentemente tomadas um Corintios 5,8, Paulo diz a seus Cristo, 0 cordeiro pase 1 itores que eles deviam tomar parte do que nao deviam comer 0 “fermento velho, © A iltima palavra, perversidade, i, ver: METZGER, Bruce M.; EHR Testament, 7, oma wilt ae Lae. con WA pode nao ser ki muito grande, mas o chocante é que em alguns manuscri- tos subsistentes Paulo exorta explicitamente no contra a perversidade cem geral, mas contra Esse tipo de erro de ortografia se tornou ainda mais constante pelo fato dle os copistas As vezes abreviarem determinadas palavras para ga- = nhar tempo ou espago. A palavra grega para “e”, por exemplo, é Raiye alguns copistas simplesmente escreviam a letra inicial, kj com um tipo de perninha no fim para abreviaturas muito comuns en vicio sexual em particular, ndicar que se tratava de uma abreviagao. Outras am o que os pesquisadores chamaram de nomina sacra (= nomes sagrado: Cristo, Senhor, Jesus ¢ Espirito, que vinham abreviadas ou porque ocor- riam muito freqiientemente ou para mostrar que clas deviam ser objeto \de atencio especial. Por vezes, essas varias abreviaturas levaxamn.copistas posteriores a uma espécie de confusio, porque eles confundiam uma abreviatnra com outra ou tomayam.uma abreviatura por uma palavea inteira} Por exemplo, em Romanos 12,11, Paulo exorta seu vir ao Senhor”. Mas a palavra Senhor, KURIOW, geralmente era abrevia ‘nos manuscritos como KW (com uma alguns copistas antigos a entendé-la como abreviatura de KaIRW, que sig: nifica “tempo”. Desse modo, nesses manuscritos, Paulo exorta seus lei- tores a “servirem ao tempo” De modo semelhante, em 1 Corintios 12,13, Paulo mostra que todos foram, em Cristo, e todos “beberam de um 36 Espirito”. A palavra Espirito (pNcuma) fora abreviada como PMI, que também poderia ser —e foi — mal-entendida por alguns copistas como ‘um grupo de palavras como Deus, tor a “ser- ha em cima}, 0 que levou tatizados em um s6 corp ‘0 termo grego para “bebida” (roma); desse modo, Paulo surge nesse tex- to indicando que todos “beberam da mesma bebida” Um tipo muito comum de erro nos manuscritos gregos ocorria quan- do duas linhas do texto que se estava copiando ‘mas letras ou as mesmas palavras. Um copista copiava a primeira linha do texto e depois, quando seu olho voltava para a pagina, caia nas mes- ‘mas palaveas, mas na linha de baixo, em ver de ca ra de copiar; cle continuava a copiar dali e, cor as palavras ou linhas do trecho que ignorara. Esse tipo de erro é chama- do de periblesjs (um “pulo do olho”) provocado por homoeoteleuton (os cabavam com as mes- 1a que acaba- lo disso, saltava 9 resu TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO 103 “mesmos fins”). Digo a meus alunos que eles s6 podem dizer que passa- ram pelo ensino superior quando puderem falar inteligentemente sobre periblesis provocadas por homoeoteleuton. O texto de Lucas 12,8-9 € um bom exemplo de como isso O texto é 0 seguinte: "Todo aquele que me confessa diante dos humanos, o filho do homem confessaré perante os anjos de Deus *Mas todo aquele que me nega diante dos bumanos serdo negados perante 0s anjos de Dew Nosso mais antigo papiro manuscrito da passagem deixa de fora todo o versiculo 9; € nao é dificil perceber como o erro foi cometido. O copista copiou as palavras “perante os anjos de Deus” no versiculo 8 ¢ quando seu olho voltou a pagina, caiu sobre as mesmas palavras do versiculo 9 e pen- sou que fossem as palavras que acabara de copiar — dessa forma, ele avan- ‘sou para copiar o versiculo 10, deixando de fora o versiculo 9 inteiro. Em algumas ocasides, esse tipo de erro pode ter conseqiiéncias ainda mais desastrosas para o sentido de um texto. Em Joao 17,15, por exem- plo, Jesus diz em sua oracao a Deus acerca de seus seguidores: Nao peco que os guardeis do mundo, mas que os guardeis do maligno, Em um de nossos melhores manuscritos (0 Cédice Vaticano, do sécu- lo 1V), as palavras “mundo... do” esto omitidas, de modo a fazer Jesus enunciar a infeliz oragio “no pego que os guardeis do maligno”! Por vezes, erros acidentais sio cometidos nao porque as palavras pare- gam semelhantes, mas porque soant semelhantes, Isso deve ter acontecido, por exemplo, quando um copista copiava um texto que Ihe estivesse sen- do ditado — quando um copista lia um manuscrito ¢ um ou mais copis- tas copiavam as palavras em novos manuscritos, como as vezes acontecia nos scriptoria posteriores ao século LV. Se duas palavras eram homéfonas, © copista que estivesse copiando podia, sem perceber, optar pela palavra errada em sua cépia, especialmente se ela fizesse sentido [errado). Isso pa- rece ter ocorrido, por exemplo, em Apocalipse 1,5, onde o autor ora Aquele que “nos livrou de nossos pecados”. O termo grego para “livrou” (LUsaNTI) soa exatamente como 0 termo para “lavou” (yUSANTI). Por- tanto, nao é de surpreender que em certo ntimero de manuscritos medie- vais 0 autor ore aquele que “nos lavou de nossos pecados”. ‘Temos outro exemplo na carta de Paulo aos Romanos, onde Paulo afirma que “visto que fomos justificados pela fé, temos paz. com Deus” Mas foi isso mesmo o que ele disse? O termo grego para ‘uma afirmagio de fato, soa exatamente como o termo para fa-nos ter a paz”, uma exortacio. Por isso, em expressivo niime- ro de manuscritos, incluindo alguns dos mais antigos, Paulo nao afirma outros que ele e seus seguidores tém paz. com Deus, ee s taasiea a buscar a paz. Essa 6 uma passagem cujo sentido correto os pesquisado- res textuais tém dificuldade em deci Em outros casos, hi menos ambigitidade, porque a mudanga textual, mesmo sendo compreensivel, realmente nao faz sentido. Isso acontece muito, quase sempre por uma ou outra das razGes que vimos discutindo. Exemplo disso, Joao 5,394 onde Jesus diz a seus adversarios para “pers- crutar as escrituras... porque elas dao testemunho de mim”. Em um m: nuscrito antigo, o verbo final foi mudado para outro que soa parecido, ‘mas que nao faz sentido algum no contexto. Nesse manuscrito, Jesus fala para “perscrutar as escrituras. + porque elas esto pecando contra mim! Um segundo exemplo ve do livro do Apocalipse, quando o profeta tem uma visio do trono de Deus, em torno do qual “havia um arco-iris que parecia uma esmeralda” (4,3). Em alguns de nossos manuscritos primiti- vvos, ha uma mudanca pela qual, por mais estranho que parega, é-nos dito que em tomno do trono “havia sacerdotes que pareciam uma esmeralda!” Dentre os muitos milhares de erros acidentais inteodu: ‘manuscritos, provavelmente mais esquisito seja 0 que ocorre em um ma- ruscrito miniisculo dos quatro Evangelhos oficialmente numerado como © 109, produzido no século IV." Seu erro peculiar ocorre em Lucas, capi- tulo 3, na narrativa da genealogia de Jesus. O copista estava, claramente, copiando um manuscrito que trazia a genealogia em duas colunas. Por al- gum motivo, ele nao copiou uma coluna por vez, mas foi copiando de uma e de outra, Como resultado, os nomes da genealogia sao jogados de- sordenadamente, com muitas pessoas sendo classificadas como filhas do pai errado. Pior ainda, a segunda coluna do texto que o copista estava co- idos em nossos 17. Quem tiver interesse em ver como os pesquisadores debatem acerea das virrudes de uma leitura ou de outea deve vers METZGER, Bruce M.A textual commentary, op. ct. 18. Devo esse exemplo, assim como varios dos exemplos anteriores, a Brace get. Ver: METZGER, Bruce M.; FHRMAN, Bart D. Text of the New Testament, op. cit, p. 259. RIS ABO, CP COTA MULAFEA YE SEU ERE +7) DON 2s CourTibRSseM WA Elin Prctone TEXTOS DO NOVO TESTAMENT ros piando nao tinha muitas linhas, nem mesmo a primeir cépia que o copista fez, 0 pai da raga humana (isto é 0 cionado) nio é Deus, mas uma igraelita chamado Fares; e 0 priprio Deus aparece como sendo filho de homem chamado Aram! Mudangas intencionais De certo modo, as mudangas que vimos antes si mais fceis de localizar € de climinar quando se esta tentando estabelecer a fo do texto. Mudangas inten tamente porque (evidentemente) feitas de propésito, essas mudangas idem.a fazer sentido, E dado que fazem sentido, sempre havera criticas que defendem, que elas fazem 0 melhor sentido ~ ou sci, sio otiginais. E se trata de uma disputa entre pesquisadores que acham que o texto fo alterado ¢ outros que acham que nfo foi. Todos sabem que 0 texto foi amudado; a_verdadeira questo] € qual variante representa a_alteracio ¢ qual representa a forma mais primitiva do texto a que se pode remontar. E aqui que os pesquisadores, por vezes, nao chegam a acordo. Em um notavel mimero de ocasies — na re idade, na maioria delas — 0s pesquisadores discordam abertamente, Talvez nos seja stil exami- nar uma série de tipos de mudangas intencionais que se pode encontrar is podem nos dar as razdes pelas quais os copistas fizeram as alteragdes. Em algumas ocasides, os copistas mudaram seus textos porque pensa*™ yam que eles contivessem umferto factual’ Esse parece ser 0 caso em nossos manuscritos, visto que Y ciozinho de Marcos, onde o autor introduz seu Evangelho dizendo: “Assim como esté escrito em Isafas, 0 profeta, ‘eis que estou enviando um mensageiro diante de vossa face... Aplaincis os seus caminhos’”. O Problema é que o inicio da citagdo ndo é de IsaiaEla representa umgy~ combinacao de uma passagem de Exodo 23,20 e uma de Malaquias 3,1 Os copistas, reconhecendo a dificuldade, mudaram o texto, levando-o dizer: “Assim como esti escrito nos profetas...". E assim deixava de exis- © problema de atribuigao equivocada da citacao. Mas ha pouca razéo pos escreveu nte: a atribuicio aaias, é encontrada cm noséos mais primitives ¢ melhores manuscritos. 1H ocorréncias em que 0 “erro” que o copista tentou corrigir era nao factual, mas de interpre ». Um célebre exemplo provém de Mateus para duvidar Flee ee eee a 106 0 QUE JESUS DISSE? 24,36, onde Jesus esta predizendo o fim dos tempos ¢ diz. que “acerca da- quele dia ¢ hora, ninguém sabe — nem os anjos nos céus, nem mesmo 0 Filho, s6 0 Pai”. Os copistas acharam essa passagem dificil: 0 Filho de Deus, o proprio Jesus, nao sabe quando vird o fim? Como pode set isso? Ele no é onisciente? Para resolver o problema, alguns copistas simples- mente modificaram o texto, eliminando as palayras “nem mesmo o Fi 10”. Afinal, os anjos podem ser ignorantes. O Filho de Deus, jamais.” Em outros casos, 0s copistas mudaram 0 texto ndo porque achassem que ele continha um erro, mas porque queriam prevenir um mal-entendi- mento dele. Exemplo disso € Mateus 17,12-13, onde Jesus identifica Jodo Batista como Elias, 0 profeta que vird no fim dos tempos: digo que Elias jé veio, e eles ndo 0 reconheceram, mas fize- “Bu v ram a ele tudo 0 que quiseram. Assim também o Filho do Homem vai so- rer por eles.” Entao os discipulos compreenderam que ele estava Ihes falando de Joao Batista. © problema latente é que, a depender da leitura, 0 texto poderia ser interpretado como dizendo nao que Joao Batista era Flias, mas 0 Filho do Homem. Os copistas sabiam perfeitamente que esse nao era 0 caso. Por isso, alguns deles deram novo arranjo ao texto, passando a frase “seus discipulos compreenderam que ele estava Ihes falando de Joao Ba- tista” para antes da afirmativa sobre o Filho do Homem. ‘As veres, os copistas mudavam o texto por razdes mais patentemente teoldgicas, para se assegurar de que o texto nao seria usado por “here- “ges”, ou para garantir que ele diria © que.os copistas supunham que ele tinha de dizer, Hé numerosos casos desse tipo de mudanga, que examina- remos mais detidamente em um capitulo posterior. Por enquanto, indica- rei simplesmente alguns ripidos exemplos, No século Il, havia eristaos que acreditavam firmemente que a salva- cio teazida por Cristo era algo de completamente novo, superior a tudo ‘mais que o mundo tivesse um dia visto e certamente superior & reli smo. Alguns ctistios chegaram até mesmo. insistir.que.o judaismo, a velha religido dos judeus, fora completamente superada pelo aparecimento de Cristo. Para alguns copis- laismo, da qual emergira o cristi 19, Para aprofundar a discussdo dessa variante, ver p. 213-214. TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO. 107 tas dessa crenga, a parabola que Jesus conta sobre o vinho.novo em axlres velhos poderia parecer problematica ‘Ninguém poe vinho novo em odres velbos... Mas 0 vink ser posto em odres novos. E nenhum daqueles que beber do vin desejard 0 novo, porque dix: “O velho é melhor” (Lucas 5,38-39). Como poderia Jesus ter indicado que o velho é melhor que & Nao é a salvagdo que ele traz. superior a tudo o que o judaismo (ou quial quer outra religido) tinha a oferecer? Os copistas que consideraram 0 naram a lima sentenca. de modo / _gue Jesus j4 nao dizia nada acerca do velho ser melhor que.0 novo. Por vezes, os copistas alteraram_o préprio texto para garantit que a doutrina que defendiam fosse devidamente priorizada. Podemos ver isso, por exemplo, no relato da genealogia de Jesus no Evangelho de Mateus, {que comega com o pai dos judeus, Abrado, traga a ascendéncia de Jesus de pai para filho, em sentido decrescente, até “Jacé, que era o pai de José, o esposo de Maria, de quem nasceu Jesus, que € chamado 0 Cristo” (Ma- teus 1,16). Pelo que se depreende, a genealogia ja trata Jesus como um caso excepcional, visto que nao se diz ser ele copistas, contudo, isso ainda nao era suficiente. Por isso, eles mudaram 0 texto, que passou a dizer: “Jaco, que era o pai de José, com o qual tendo contraido noivado a Virgem Maria, deu a luz Jesus, que € chamado 0 Cristo”. Desse modo, José nao é nem mesmo chamado esposo de Maria, 10 de José”. Para alguns ‘mas apenas seu noivo, e dela se afirma claramente que é uma virgem — ponto importantissimo para muitos dos copistas primitivos 7 Houve ocasides em que os copistas modificaram seus textos no por™” causa da teologia, mas por razdes litargicas} Visto que a tradigao ascéti- ‘a se firmou no cristianismo primitivo, nao é de surpreender que ela tam- bém tenha impacto sobre as mudangas que os copistas impunham ao texto. Por exemplo, em Marcos 9, quando Jesus expulsa um deménio {que seus discipulos tinham sido incapazes de fazer se mexer, cle Ihes diz: “Esse tipo 86 sai por meio da oracao” (Marcos 9,29}. Copistas posterio- res fizeram o acréscimo apropriado, na perspectiva de suas préprias pré- ticas, de modo que agora Jesus ensina: “Esse tipo oragao ¢ do jejum”. Uma das mais célebres alteragies litirgicas do texto se encontra na versio de naturalmente, e é essa forma mateana, mais extensa, que era, ¢ , mais 86 sai por meio da+— ucas do pai-nosso. A oragao também se encontra em Mateus, Miter k “08 8 shor sd nlyten > VAS SAE 108 0 familiar aos cristaos.® Em comparago, a versio de Lucas soa desespera- damente truncada: Pai, santificado seja vosso nome. Vena 0 vosso Reino, Dai-nos, cada dia, nosso pao cotidiano. E perdoai nossos pecados, assim como nds per- doamos os nossos devedores. E nao nos leveis a tentagao (Lucas 11,2-4). ida de Lucas acrescentando as petigdes conhecidas da passagem paralela em Mateus 6,9-13, de modo que agora, como em Mateus, a oragio diz: Pai nosso que estais nos céus, santificado seja vosso nome. Venha 0 Os copistas resolveram o problema da versio abre\ vosso reino e seja feita a vossa vontade, na terra como no céu. Dai-nos, cada dia, nosso pao cotidiano. F perdoai nossas dividas, assim como nos perdoamos os nossos devedores. E ndo nos. leveis a tentagio, mas livrai- nos do maligno, A tendéncia dos copistas a “harm far” passagens nos Evangelhos 1a narrativa seja cont esti por toda parte. Onde quer q Evangelhos diferentes, um copista on outro parece surgit para assegurar que os relatos estejam em perfeita harmonia, eliminando diferengas a golpes de pena. {Bs vezes, os copistas eram influenciados nao por passagens paral as por Traigoes fais sobre Jesus e por tradigdes sobre ele que eram ccontadas ¢ que circulavam a época. J4 vimos isso em grandes casos, no epis6 ério e no dos di Jos de Marcos. Em casos menores, também poclemos ver como as tradi des orais afetaram os textos escritos dos Evangelhos. Um exemplo notavel é a memoravel narrativa de Joao 5: Jesus curando um paralitico 10s doze versicu: as margens da piscina de Betzata. E-nos dito no inicio da narrativa que uitas pessoas — paraliticos, cegos, coxos e im da piscina e que Jesus escolheu um homem, que ali estava havia trinta € ito anos esperando para ser curado, Quando Jesus pergunta ao homem se gostaria de ser curado, o homem responde que nao ha ninguém que possa jogé-lo na piscina, de modo que “quando a agua se agit jaziam a be alguém sempre chega 4 agua antes del sdo TexTOs DO st 109 por ssem, mas a tradigao oral corrigiti a culos 3-4 encontrado em nossos manuscritos posteriores. A que “um anjo, de tempos em tempos, desc a piscina e agitava, © primeiro que descesse depois que a dgua fosse agitada seria ct ‘Um toque de beleza em uma historia j4 bastante intrigante. CONCLUSAO Poderiamos ficar por quase todo o sempre falando de passagens esp cas nas quais 0s textos do Novo Testamento vieram a ser alterados, acidental no as centenas, mas aos milhares. Os exemplos dados séo suficientes para demonstrar o ponto geral, contudo: ha muitas diferengas entre nos- sos manuscritos, diferencas criadas por copistas que reproduziam seus textos sagrados. Nos primeiros séculos cristaos, 08 copistas eram amado- res e, como tais, mais in mais propensos a alter: dos posteriores, que, a partir do século IV, comecaram a ser prof E importante ver que tipos de mudanga, tanto acidentais como inten- fica mais facil delimitar as mudangas ¢ eliminar parte do esforgo de adivinhagao ntencionalmente. Como eu disse, os exemplos se contam nados a alterar 0s textos que copiavam — ou los acidentalmente — que os copistas dos perio- s, 08 copistas foram capazes de fazer, porque, a partit implicado na tentativa de determinar qual forma do texto representa 1a forma pri tante ver como 0s pesquisadores modernos projetaram métodos para fa~ tuma alteragio ¢ qual representa iva. Também é impor- zer esse tipo de determinagio. No préximo capitulo, tragaremos as linhas dessa hist6ri a comecar do tempo de John Mill ¢ vindo até a atualida de, vendo que métodos foram desenvolvidos para a reconstrugao do tex- to do Novo Testamento ¢ para o reconhecimento das formas pelas quais ele foi mudado em seu processo de transmissio. variantes textuasentee os testemunhos que atestam essa forma mais lon Porshe 4 A BUSCA DAS ORIGENS Métodos e descobertas 1 a sua edigdo do Novo Testa- s trinta mil Iugares de variagdes entre 605 testemunhos subsistentes, alguns (poucos) pesquisadores reconheceram ue havia um problema com o texto do Novo Testamento, Jé no sée © critico pagio Celso afirmava que 0s cristaios mudavam o texto a b ‘omo vimos, bem antes de ‘mento grego, com a anot pra- sem embriagados numa rodada de bebidas seu adversé- rio, Origenes, fala do “grande” numero de diferengas entre os manuscritos dos Evangelhos; mais de cem anos depois, cupado com as variedades dos manu: mo de produzir uma traducio-pa zer, como se e papa Damaso estava tio preo- tinos que encarregou Jeroni: io; e © proprio Jerdnimo teve de im e grego, para decidir qual texto ele pensava ter sido originalmente redigido pelos autores. Contudo, o problema segue latente durante toda a [dade Média e assim ia até o século XVI, quando comparar numerosas c6pias do texto, em os comegaram a enfrenté- lo com seriedade.' Enquanto Mill compilava os dados para sua edicio re- ia era entendida ¢ tratada na idle Ages. Oxtord ae (© QUE JESUS DISSE? cial de 1707, outro pesquisador vinha trabalhando com afinco no problema do texto do Novo Testamento; esse pesquisador nao era inglés, era francés e nao era protestante, mas catélico. Além disso, sua perspecti vva era exatamente aquela que muitos protestante sultaria de uma rigorosa analise do texto do Novo Testamento, a saber, que as distintas variagSes na tradiga0 mostravam que a f€ cristi precisava se basear exclusivamente na escritura (a doutrina da Reforma Protestante Ja sola scriptura), dado que 0 texto era instavel e nao de todo confivel.. Em ver disso, de acordo com sua perspectiva, os catélicos estavam certos a0 defender que a fé requeria a tradigéo apostélica preservada na igeeja (catélica). © autor francés que desenvolveu esses pensamentos em uma sé- rie de importantes publicagées foi Richard Simon (1638-1712) igleses temiam que re- RICHARD SIMON Embora Simon fosse principalmente um hebraista, ele trabalhou na tra- digo textual tanto do Antigo como do Novo Testamento, Seu magistr estudo, Umia historia critica do texto do Novo Testamento, foi publica- do em 1689, enquanto Mill ainda estava labutando para descobrir va- riantes na tradigéo textual. Mill teve acesso a essa obra, Na discussio de abertura de sua edigéo de 1707, reconhece sua erudi¢ao e importancia para as pesquisas que estava desenvolvendo, mesmo discordando das conclusdes teolégicas a que ela chega. O livro de Sis 10 A descoberta de toda versio varian- te acessivel, mas a discussao das diferengas textuais na tradigio, em vis- ta de mostrar a incerteza do texto em certas passagens ¢ a defender, por a latina, tida ainda como o texto oficial pe- m conhece em profundidade os pro- blemas textuais fundamentais. Ele discute longamente, por exemplo, mn € dedicado veves, a superioridade da los tedlogos catélicos. Simon tam| varios daqueles que ja examinamos antes: a mulher flagrada em adulté- rio, os doze versiculos finais de Marcos ¢ 0 paréntese joanino (que afi ma explicitamente a doutrina da Trindade). Ao longo de sua discussio, cle se dedica a mostrar que foi JerGnimo quem proveu a igreja de um tex- to que poderia ser usado como base da reflexao teolégica. Ele diz no pre- ficio a parte I de sua obra: [A BUSCA DAS ORIGENS 13 Sao Jerénimo fez 4 Igreja nao pequena Obra, ao Corrigir ¢ Rever as antigas Copias Latinas, segundo as mais estritas Regras da Critica. F.0 que pretendemos demonstrar nesta obra, e que os mais antigos Exempla res Gregos do Novo Testamento nao sao os melhores, visto qui seguiram as Cépias Latinas e Sao Jeronimo os consideron degenc ponto de necessitarem de uma Altera¢ao.* Isso esta no nticleo de um argumento engenhoso, com 0 qual depara- 's mais antigos manuscritos gregos sao inconfidveis por- que sao precisamente cépias degeneradas que Jerdnimo teve de revisar com vistas a estabelecer o texto superior; as c6pias gregas produzidas a tes da época de Jeronimo e que ainda subsistem, mesmo sendo nossas c pias mais primitivas, ndo merecem confianga. Apesar de toda a sua engenhosidade, o argumento nunca alcangou tunanimidade entre os criticos textuais. Com efeito, trata-se de uma sim- ples declaragio de que os nossos mais antigos manuscritos subsistentes remos de nov niio merecem crédito, mas a revisio deles sim. Em que, entio, Jerénimo fundamentou a revisio de seu texto? Nos manuscritos primitivos. Até ele confia que seria u tradigZo textual nos primeiros séculos. no registro primitivo do texto. Para que nds nao repitamos 0 passo de gigante ao contrario — apesar da diversidade da aso, Simon defende que todos De todo modo, dando seqiiéncia a seu 0s manuscritos incorporam alteragdes textuais, especialmente os gregos (aqui devemos ter mais polémica contra os “cismaticos gregos” da Igre- ja “verdadeis Nao haveria nessa época nenbuma Copia, nem mesmo do Novo Tes} tamento, seja Grega, Latina, Siriaca ou Ardbica, que pudesse ser verda’ deiramente chamada de auténtica, porque ndo existe nenhuma, em qualquer Lingua em que tenba sido escrita, que esteja absolutament isenta de Acréscimos. Devo também admitir que os Copistas Gregos to: ‘maram grandes liberdades ao escrever suas Cépias, como 0 provaremos| em outro lugar." 2. SIMON, Richard. A ertical histor Taylor, 1689. Prefico. 3. Tbidem, parte 1, p. 65. Testament, Londres: R text of the Net \ 4g (© QUE JESUS DISSE? A orientagao teologica de Simon para poder fazer essas observacdes se esclarece no decorrer de seu longo tratado. A certa altura, ele pergun- ta retor YE possivel... que Deus tenba dado a sua igreja Livros que lhe sirvam de Regra e que tenha, ao mesmo tempo, permitido que o primeiro Origi- nal desses Livros tenha se perdido desde o inicio da Religiao Cristaz' Obviamente, sua resposta é nao. As Escrituras provéem fundamento para a fé, mas, em tiltima instdncia, ndo sdo propriamente os livros que importam (dado que eles foram, afinal de contas, alterados com o tem- po), mas a interpretagao desses livros, tal qual se encontra na tradigao apostélica transmitida por meio da igreja (catélica), ~ Apesar de as Escritura Fé se funda, essa Regra ndo 6 suficiente em si mesma; é necessdrio conbe- cer, além dela, 0 que sao as Tradicdes Apostolicas; e nds sé podemos laprendé-las das Igrejas Apostélicas, que preservaram o verdadeiro Senti- [do das Escrituras.* ~~ As conclusdes antiprotestantes de Simon tornam-se ainda mais claras re a qual nossa em outros de seus escritos. Por exemplo, em uma obra dedicada aos “principais comentadores do Novo Testamento”, ele diz sem rodeios: As grandes mudangas que ocorreram nos manuscritos da Biblia... vis- 0 que os primeiros originais estavam perdidos, destroem completamen- te 0 principio dos Protestantes.... que consultam apenas os mesmos ‘manuscritos da Biblia na forma em que se apresentam hoje. Se a verda- de da religido nao estivesse viva na Igreja, nao seria seguro procurd-la agora nos livros que foram submetidos a tantas mudancas € que em tan- tas matérias estiveram dependentes do arbitrio dos copistas. Esse tipo de ataque intelectualmente vigoroso a forma protestante de compreender as Escrituras foi levado muito a sério nos ambientes académi- cos. Quando a edigo de Mill foi publicada, em 1707, os pesquisadores protestantes da Biblia foram levados pela natureza dos materiais que ele 4. Tbidem, parte 1, p. 30-31 S.tbidem, parte 1, p. 31 6, Citado em: KUMMEL, Georg Werner. The New Testament: the history of the inves tigation of its problems. Nashville: Abingdon Press, 1972. p. 41. BUSCA DAS ORIGENS, 115 apresentava a reconsiderar e a defender a sua propria Eles naturalmente nao podiam simplesmente se desembaragar da sola scriptura. Para eles, as palavras da Biblia continuavam a tra autoridade do Verbo de Deus. Mas como entrar em acordi Uma solugio foi desenvolver métodos de critica textual que permi aos pesquisadores modemnos reconstruir os termos originais, de modo que ‘0 fundamento da fé pudesse, outra vez, provar-se seguro, Era essa a o taco teolégica que estava por tras de todo o esforgo feito, principalmente na Inglaterra ena Alemanha, de estabelecer métodos competentes ¢ confia- veis para reconstruir as palavras originais do Novo Testamento a partir de suas muitas c6pias coalhadas de erro que subsistiram. RICHARD BENTLEY Como vimos, Richard Bentley, 0 College, Cambridge, voltou seu da tradigao textual do Novo Testamento em resposta as reagdes negat vas decorrentes da publicagao do Novo Testamento grego de Mill, com jsico pesquisador e mestre do Trinity tclecto renomado para os problemas ida colegio de variagao textual entre os manuscritos.” A resposta de Bentley ao deista Collins, Una réplica a um Tratado de livre-pensa- ‘mento, tornou-se muito popular e teve oito edigdes, Sua visio geral era de que trinta mil variagdes no Novo Testamento grego ainda eram pou- ‘cas para uma tradi¢ao textual dotada de tamanha riqueza de materiais € de que Mill nao devia ser acusado de minar a verdade da reli visto que ndo inventara as passagens variantes, mas simplesmente as trouxera & tona, Por fim, o préprio Bentley passou a se interessar pelo trabalho com a tradigao textual do Novo Testamento e, uma vez que se direcionou para isso, concluiu que de fato poderia fazer significativos progressos no esta ido crista, 7? a mais completa biografia ver: MONK, James Henry. The life of Richard Be: D.D. Londres: Rivington, 1833. 2 vols, imento do texto original na maioria das passagens em que existia Em uma carta de 1716 a um patrono, o arcebispo Wake, expds a premissa de uma nova edigao do Testamento grego que variagao textu propunhat ele seria capaz, por meio de uma cuidadosa andlise, de restau- rar o texto do Novo Testamento ao estado em que se encontrava no tem- po do Concilio de Nicéia (inicio do século IV), que teria sido a forma do texto promulgada nos séculos anteriores pelo grande pesquisador textual da Antigiiidade, Origenes, muitos séculos antes de a grande maioria das variagdes textu ca de Bentley) vir corromper a tradi¢ao. Bentley nao era nem remotamente dado a falsa modéstia. Como ele mesmo diz.em sua carta: Creio ser capaz (0 que alguns acham impossivel) de chegar a uma edi- «io do Testamento grego exatanrente como ele estava consignado nos (era a eri melhores exemplares ao tempo do Concilio de Nicéia; de modo que nao haja diferenca em vinte palavras, nem mesmo em uma particula... de ‘modo que o livro que hoje, em seu atual estagio de manipulacao, é dado como 0 mais incerto, pode ter um testemunho de certeza acima de quais- quer outros livros: para que doravante se ponha fim a todas as Ligoes Variantes [isto é, verses variantes]." © método Bentley de proceder era muito direto. Ele decidira cotejar {isto € comparar em pormenor) o texto do mais importante manuscrito laterra, o Cédice Alexandrino, de prin- lo V, com as mais antigas cépias da Vulgata latina a que ti- sgrego do Novo Testamento na l ipios do nha acesso. E 0 que encontrou foi uma ampla gama de notéveis ntes, pelas nuscritos concordavam, quase sempre entre si, mas contra a maior parte dos manuscritos gregos transcritos na Idade Média. As concordancias se estendiam a tépicos como a ordem das palavras, onde varios manuscritos diferiam. Bentley es- ina como 0 Novo coincidéncias entre va ais esses m: tava convicto de que podia editar tanto a Vul Testamento grego para chegar as mais antigas formas desses textos, de modo a possivelmente sanar todas as dkividas acerca de qual seria a ver- sdo mais primitiva, As trinta mil passagens de variagao de Mill se torna- ‘ancia para aqueles que defendiam a riam, com isso, uma quase-irre 8. Citado em: MONK, Life of Bentley, 1:398, Amusca nave Kans 1 autoridade do texto. A légica subjacente ao método era si . Jeronimo usou os m: tar seu texto, entdo, pela comparagio dos mais antigos ara deten 1s do Novo Testamento grego (para averiguar qi usados por Jerdnimo), poder-se-ia determinar como eram os me ores manuscritos geegos di aro texto original de Jerénimo) com os mai 80, dado que 0 texto de Jerd Origenes, poder-se-ia ter certeza de que esse seri 3s séculos do cristianismo. nos primei Dessa forma, Bentley esboga aquela que para ele era a conclusio inevitavel: Ao tomar dois mil erros da Vulgata do papa e a mesma quantidade do bapa protestante Stephanus listo é, a edigao de Stephanus — 0 TR], pos- so fazer uma edigao em colunas, sem usar livro algum com menos de no- vecentos anos, que concordard tdo exatamente palavra por palavra e, 0 que mais me causou admiracao, seqiténcia por seqiiéncia, que nem duas recortes podem concordar melhor.” Aplicar mais tempo ao cotejo de manuscritos e ao exame dos cotejos feitos por outros s6 aumentou a confianga de Bentley na prépria capa o, de fazé-lo bem feito e de uma vez por todas. Em 1720, ele publicou um panfleto intitulado Propostas para a impressao, destinado a angariar ap. projeto pela adesio de contribu tes monetirios. Nessas Propostas, ele ex} propoe re- ‘marcas nem autor acredita ter restaurado (a excecao de bem poucos lugares) 0 verdadeiro exemplar de Origenes... F ele esta seguro de que os Mss. Gre- g0 € Latino, por sua muitua assisténcia, fixam 0 texto original em sua ‘mais absoluta precisao, de um modo que nao se poderia aleangar no caso de nenbum outro autor cléssico: e que fora de um labirinto de trinta mil verses variantes, essa multiplicidade de paginas de nossas atuais melho- res edicdes, todas concedem igual crédito @ ofensa de muitas pessoas ry] (0 QUE JESUS DISSE? boas: essa indicagao conduz e nos liberta, visto que dificilmente haveré duzentas dentre esses milhares que merecem uma consideragiio minima.” Reduzir as variantes realmente importantes das trinta mil apontadas por Mill a meras duzentas ¢ claramente um grande avango. Contudo, nem todos esto convencidos de que Bentley pudesse corresponder a to- das as expectativas. Em um tratado anénimo, escrito em resposta as Pro- posigdes (aquele era um tempo de controversistas e pantletistas), que discutia 0 panfleto paragrafo a pardgrafo. Bentley foi ata programa, Seu adversario anénimo disse que ele nao tinha nem materiais apropriados para a obra que assumi Bentley coi que, co seus (autoproclamad is talentos ¢ respondeu a altura. Inf mente, confundiu seu adversério, que era na verdade um pesquisador de Cambridge chamado Conyers Middleton, com outro, John Colbatch, ¢ es ccreveu uma réplica Ibatch e, como era o costume da Epoca, insultando-o. Fsses panfletos controvers im belo meio para comparar com nossos préprios dias de polémicas sutis; nfo havia nada de nas queixas pessoais daqueles tempos. Bent! samos desse pardgrafo para ter exemplo da maior m: déncia que algum escrevinhador provindo das trevas jogou sobre o papel” E no decorrer de sua réplica, ele fornece um elenco de insultos, chamando Colbatch (que, na verdade, nada teve a ver com o pantleto em questo} de cabega de repolho, inseto, verme, larva de mosca, gentalha, corrosivo, rato, cio rosnador, ladrio ignorante e charlatio."" Ah! Tempos bons aqueles. Assim que alertaram Bentley sobre a real identidade de seu adversério, le se sentiu um pouco embaracado por ter latido para a Ar- vore errada, mas continuou sua autodefesa, ¢ 0s dois lados da discussio tro- caram mais que uma saraivada de pedras em sua correspondéncia. Essas apologias, obviamente, dificultaram a obra propriamente dita, assim como iderou Ito a ustica, nomeand observa que “no preci- 10. Proposals for printing a new edition of the Greek New Testament and St. Hieroms Latin version. Londres, 1721, p. 3: MONK, James Henry. The 12. Ibidem. p. 136 13. tbidem, p. 135-137. bs p. 130-133 of Richard Bentley, D.D., op. A BUSCA DAS ORIGENS 119 outros fatores, incluindo as pesadas obrigagées de Bentley como d sua faculdade em Cambridge, seus outros projetos de pesquisa alg cidentes desanimadores, que incluem seu fracasso em obter uma isenciio de impostos para 0 papel que queria usar na edigo. No fim, seu propésito de imprimir 0 Novo Testamento grego, com o texto nao dos manuscritos gre {805 corrompidos posteriormente (como os que estavam na base do Textus Receptus), mas do texto mais antigo que se pudesse restaurar, deu em nada. Depois de sua morte, seu sobrinho foi forgado a devolver as quantias que Bentley recebera como contribuigo, pondo um ponto final ao assunto. JOHANN ALBRECHT BENGEL Da Franga (Simon) a Inglaterra (Mill, Bentley) € agora a Alemanha, os problemas textuais do Novo Testamento ocupavam os principais pest sadores biblicos da época nos grandes centros cristios europeus. Johann Albrecht Bengel (1687-1752) era um piedoso pastor e professor luterano, que desde muito cedo se viu profundamente perturbado pela presenga de to expressivo conjunto de variantes textuais na tradigo manuscrita do Novo Testamento. Ble ficou particularmente desconcertado, a0s 20 anos de idade, diante da publicagao da edigao de Mill com suas trinta mil pas- sagens de variagdo. Tais passagens eram consideradas 0 maior desafio para a fé de Bengel, toda baseada nas antigas palavras das Es cessas palavras no eram seguras, que dizer da fé baseada nelas? Bengel investiu grande parte de sua carreira académica trabalhando nesse problema e, como veremos, fez um significative progresso na bus- a de sua solugio. Mas, antes de tudo, precisamos examinar a aborda- gem de Bengel & Bibl ‘Os compromissos religiosos de Bengel permeavam toda a sua vida e todos os seus pensamentos. Pode-se fazer facilmente idéia da seriedade com que ele abordava a propria fé pelo titulo da aula inaugural que pro- icuras, Se 14. Para uma biografia completa, ver: BURK, John C. E.A memoir ofthe life and wri- tings of Jobn Albert Bengel, Londres: R. Gladding, 1842. 120 © QUE JESUS DISSE? feriu quando foi indicado como assistente em um novo seminério reo! em Denkendorf: 1a ad veram eruditionem perveniendi ne per studium pietatis”. (A busca diligente da piedade é método is Seguro de atingir 0 sélido saber). Bengel era um intérprete do texto bi

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