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Tribunal da Relação de Guimarães, Acórdão de 12

Out. 2017, Processo 840/14


Relator: Anabela Andrade Miranda Tenreiro.
Processo: 840/14
JusNet 7200/2017

O ato de constituição do direito de uso e habitação a favor dos pais da


insolvente não configura um ato prejudicial à massa insolvente, na
medida em que não diminui a satisfação dos interesses dos credores

RESOLUÇÃO DE ATOS A FAVOR DA MASSA


INSOLVENTE. ATOS DE CEDÊNCIA GRATUITA. Os
atos celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos
dois anos anteriores à data do início do processo de
insolvência são resolúveis em benefício da massa
insolvente, sem dependência de outros requisitos. No
entanto, no caso em apreço, apesar de, na escritura de
2013, se declarar a cedência gratuita aos pais da insolvente
o direito de uso e de habitação das frações, os insolventes
tiveram em vista formalizar novamente o usufruto
vitalício, já adquirido pelos pais, por usucapião. Nesta
conformidade, perante o direito de usufruto das frações, o
ato de constituição do direito de uso e habitação não se
traduz num ato prejudicial à massa insolvente na medida
em que não diminuiu a satisfação dos interesses dos
credores. Deste modo, o ato não deve ser resolvido em
benefício da massa insolvente, podendo os pais da
insolvente continuar a residir nessa casa, como sempre
fizeram desde 1987.
Disposições aplicadas
DL n.º 53/2004, de 18 de Março (Código da Insolvência
e da Recuperação de Empresas) art. 120; art. 121
DL n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966 (Código
Civil) art. 1251
Texto
I-São resolúveis, nos termos do artigo 121.º, n.o1, al. b) do CIRE, em
benefício da massa insolvente, sem dependência de outros requisitos, actos
celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à
data do início do processo de insolvência.II-O acto formal praticado pela
insolvente, no referido período temporal de dois anos antes do início do
processo de insolvência, através do qual cedeu aos autores, seus pais, o
direito de uso e habitação de bens imóveis, onde estes residem, desde
1987, na convicção de serem usufrutuários, revelou-se desnecessário, uma
vez que estes já haviam adquirido o usufruto vitalício dos mesmos, por
usucapião, razão pela qual a situação não se enquadra no regime da
resolução em benefício da massa insolvente.III-O acto de cedência gratuita
do direito de uso e habitação de bens imóveis, que constitui um minus em
relação ao direito real de usufruto, adquirido pelos autores, não configura
um acto prejudicial à massa na medida em que não diminuiu a satisfação
dos interesses dos credores.

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
Os Autores H. M. e mulher D. C. intentaram a presente acção de
impugnação da resolução em benefício da massa, ao abrigo do
disposto no artigo 125.º do CIRE contra a Massa Insolvente da
Herança L. P. e A. P..
Citada, a massa insolvente deduziu contestação, defendendo-se
também por excepção.
Foi realizada audiência prévia, onde foi concedido o direito ao
contraditório aos Autores, direito esse que estes exerceram por
escrito.
Foi julgada improcedente a excepção da caducidade do direito de
impugnar a resolução.
Objecto do litígio, fixado nos autos:O apuramento da legalidade
do acto resolutivo levado a cabo pelo Sr. Administrador da
Insolvência quanto ao acto de doação e de constituição do
direito de uso e habitação vitalício realizado a favor dos Autores
pelos Insolventes.
Proferiu-se sentença que julgou improcedente a presente acção de
impugnação de acto de resolução em benefício da massa
insolvente e, consequentemente, manteve a validade da declaração
de resolução efectuada pelo Sr. Administrador de Insolvência
relativa aos actos praticados na intitulada escritura de doação de
constituição de direito de uso e habitação.
Inconformados com a sentença, os Autores interpuseram recurso,
terminando com as seguintes
CONCLUSÕES
1- A decisão revidenda está ferida de nulidade, por omissão de
pronúncia, nos termos do disposto no art.º 615.º, n.o 1, al. d) do
CPC, por não se ter pronunciado acerca da segunda parte do
"Tema da Prova" que se destinava a apurar se "Todos acordaram
que os irmãos doariam à insolvente o direito que lhes cabia, na
condição de os Autores poderem fruir e usar das fracções até ao
fim da vida daquele que morresse em último lugar, sem qualquer
contrapartida",não a dando como não provada, nem a dando como
provada; e por não se ter pronunciado sobre o "Tema da Prova"
em que se iria apurar "Se a escritura de 8/11/2013 foi celebrada
apenas para formalizar o direito de uso e habitação", não
constando qualquer facto atinente a esta matéria nem dos factos
provados, nem dos factos não provados. Está ainda ferida de
nulidade, mas por excesso de pronúncia, nos termos do mesmo
preceito legal, por ter feito constar dos factos não provados a aI.
b), quando, analisados os Temas da Prova, não se descortina que
em algum deles esteja compreendida a necessidade/oportunidade
da prova da respectiva matéria factual.
2- Sem prejuízo do que se deixou dito quanto à nulidade por
excesso de pronúncia quanto a ter-se feito constar dos factos não
provados a sua al. b), a fundamentação dada para tal facto não ter
sido considerado provado incorre em erro de raciocínio e
certamente dá a entender uma coisa que não sucedeu, isto é, que
os familiares tenham deposto no sentido de os recorrentes
conhecerem as dificuldades financeiras da filha, na medida em
que nenhuma das testemunhas o disse. O que a Sra. Juiz fez, foi,
concluir que, como as testemunhas familiares falaram do pedido
de financiamento a respeito da renúncia ao usufruto, os
recorrentes tinham de saber das dificuldades financeiras, o que é
um erro de raciocínio, repete-se. Primeiro, porque pedir um
empréstimo bancário não significa estar-se com dificuldades
financeiras, até porque se falou que o empréstimo seria para
assuntos da empresa, depois porque o empréstimo não chegou a
realizar-se, como ficou provado, por razões que desconhecemos, e
porque de 2002 a 2013 vão muitos anos. Mais, se este raciocínio
fosse válido, e sendo o Autor um homem tão experiente,
informado e capaz, como considerou a Sra. Juiz, não teria em
2006 proposto aos outros filhos cederem a parte deles nas fracções
em causa, correndo o risco dela as fracções perder, como sucedeu.
3- Caso não se venha a entender verificarem-se as invocadas
nulidades por omissão de pronúncia, terá, então, de considerar-se
que o Tribunal a quo incorreu em erro de apreciação e valoração
dos depoimentos prestados em audiência de discussão e
julgamento, ao não ter dado como provada a matéria de facto de
parte de um dos Temas da Prova e da totalidade de outro Tema da
Prova, porquanto tal resultou de diversos depoimentos prestados
em audiência de discussão e julgamento, devendo passar a constar
da matéria de facto provada os seguintes factos:
a) Os irmãos da insolvente impuseram como condição para darem
a sua parte das fracções à insolvente os AA. poderem usar e fruir
das mesmas, sem qualquer contrapartida, até ao fim da vida do
que morresse em último lugar, como vinha sucedendo, sugerindo
a seguinte redacção, que passa por complementar um facto dado
como provado:
"Os irmãos da insolvente deram o seu acordo e combinaram que
entregariam a sua parte na nua propriedade das fracções à irmã A.
P., na condição de osM., seus pais, poderem usar e fruir das
mesmas, sem qualquer contrapartida, até ao fim da vida do que
moresse em último lugar, como vinha sucedendo." ;
b) Os AA. e os filhos estavam convencidos que as declarações
subscritas pelos insolventes e pelos dois irmãos e cônjuges da
insolvente, datadas de 30 de janeiro de 2006, onde estes
declararam que concedem de forma gratuita aos AA. o direito de
uso e habitação das fracções até à data do falecimento do último
destes, era válida e suficiente para salvaguardar o direito dos AA.
a usarem e fruirem daquelas fracções, enquanto titulares do direito
de uso e habitação,
c) Desconhecendo a necessidade de tal acto ter de ser realizado
por escritura pública e registado.
d) Só no fim do ano de 2013, quando se encontrava a preparar a
celebração de uma escritura pública tendo por objecto as ditas
fracções, a filha dos AA. A. P. ficou a saber que o direito de uso e
habitação dos pais não se encontrava totalmente
salvaguardado, e) Razão por que, na mesma ocasião, através de
escritura pública lavrada no Cartório da notária J. M., sito na
Praça ... da Cidade da Póvoa de Varzim, a filha A. P. e o marido,
em 03.11.2013, declararam ceder gratuitamente aos AA. o direito
de uso e habitação sobre as ditas fracções.
f) Com a celebração daquela escritura apenas se pretendeu
formalizar um acto que fora praticado há mais de 8 anos, tendo-se
apenas visado dar forma a um negócio há muito praticado.
4- Em face da matéria de facto aditada, outro terá de ser o
enquadramento jurídico a dar à situação dos autos, porquanto dela
decorre que, o direito de uso e habitação assim constituído através
daquela escritura em 2013 não adveio à titularidade dos
recorrentes por acaso, sem contrapartida, como um presente, e
muito menos com qualquer objectivo de prejudicar qualquer
credor, mas resultou antes da necessidade de legalizar uma
situação que se pensava estar regularizada, sendo que em troca a
insolvente já tinha recebido 2/3 da propriedade das fracções. É
tendo em mente estes pressupostos, por um lado, e, por outro, o
espírito que está na base da figura da resolução dos negócios em
benefício da massa, que mais não é evitar que o insolvente em
conluio com um terceiro subtraia bens ao seu património, em
prejuízo dos credores, que terá de se interpretar o requisito da
gratuitidade imposto no art.º 121.º, n.ol, ai b) do CIRE, devendo
fazer-se uma interpretação não literal, mas extensiva, no sentido
de não se entender tratar-se de um acto gratuito qualquer acto em
que, mesmo não tendo havido pagamento em dinheiro, tenha
havido para o insolvente outra contrapartida, e ainda mais, como é
o caso, quando a contrapartida por ele recebida pelo devedor é
superior à que ele entregou. Assim, faltando o requisito da
gratuitidade, não se verificam os pressupostos para a resolução
incondicional.
5- Por outro lado, e no que toca ao requisito temporal imposto
pelo art.º 121.º, n.o1. al. b) do CIRE, diante da matéria de facto
provada que deve ser aditada, elencada supra na conclusão 2.,
alíneas b) a f), consideramos que não se pode entender, in casu,
estar-se dentro de período temporal em referência. E assim,
porque, da figura da resolução dos negócios/actos prejudiciais à
Massa insolvente é completamente compatível com o
entendimento de que, quando, como foi o caso, o devedor e um
terceiro celebraram um determinado negócio gratuito, mais de 2
anos antes do início do processo de insolvência, mas apenas o
formalizaram posteriormente, por anteriormente desconhecerem
essa necessidade de forma especial, celebrando a competente
escritura pública no prazo de 2 anos da instauração do processo de
insolvência, o acto de disposição gratuito foi celebrado na data
anterior à da formalização. Em suma, defendemos não ter
aplicação o n.o 1, aI. b) do art.º 121.º do CIRE quando se mostra
que se visou apenas formalizar um negócio que se pensou ter
celebrado válida e regularmente há mais de 2 anos da data da
entrada do processo de insolvência.
6- Sem prescindir, mesmo em face da matéria de facto dada como
provada na decisão revidenda, sempre a acção deveria ter sido
julgada procedente, na medida em que, facilmente se constata que
a situação em análise não cabe no espírito do direito de resolução
dos negócios prejudiciais à massa, uma vez que, com este
instituto, visou-se impedir que o insolvente em conluio com um
terceiro subtraia bens ao seu património, prejudicando os credores
e, feita uma interpretação não literal, mas teleológica e racional-
na senda do que já fez em situação parecida, ainda que tratando de
outra matéria insolvencial, o STJ no seu Acordão de 6 de
Dezembro de 2016, excluindo da consideração de natureza de
subordinado o crédito detido pelo pai do insolvente, quando o
crédito, resultando de um empréstimo, fora constituído 12 anos
antes do processo de insolvência - conclui-se que não se
verificavam os pressupostos da temporalidade e gratuitidade
estabelecidos na aI. b) do n.o 1 do art.º 121.º do CIRE.
7- Ora, se o direito de uso e habitação já se tinha constituído em
2006, por contrato (independentemente do registo, pois ele não é
constitutivo, e as regras de produção de efeitos perante terceiros
previstas no art.º do CRPredial estão estabelecidas para aquisições
aos mesmos autores sobre os mesmos bens), o facto de se ter
celebrado em 8/11/2013 uma escritura pública de doação de
constituição de direito de uso e habitação e vitalícia não tem
relevância para efeitos de aplicação da al. b), do n.o 1 do art.º
121.º do CIRE, devendo considerar-se que o acto de cedência
gratuita do direito de uso e habitação é que deve relevar para
efeitos de apreciação de eventual conluio entre insolvente e
terceiro para subtração de bens ao património do insolvente, em
prejuízo dos credores, já se encontrando assim a celebração
daquele acto fora do período temporal estabelecido no citado
preceito legal.
8- Mas ainda que se entenda que o direito de uso e habitação não
foi - juridicamente¬constituído em 2006, dúvidas não podem
existir de que o acto de cedência gratuita do direito de uso e
habitação se reportou a 2006 e não a 2013, uma vez que
facilmente se vislumbra que o que se pretendeu com a escritura de
2013 foi regularizar e formalizar o direito de uso e habitação que
se quis válida e legalmente constituir em 2006, e como o que
releva é o acto de cedência gratuita do direio de uso e habitação
em si mesmo, então é certo que, no caso, não se está dentro do
período temporal estabelecido do citado preceito legal.
9- A decisão em crise, atendo-se apenas na escritura de 8/11/2013,
considerou tratar-se de um acto gratuito. No entanto, no que toca à
gratuitidade deste acto, tem de se fazer uma interpretação não
literal, mas uma interpretação teleológia e racional do normativo
em apreço, e têm de ser vistos os negócios celebrados na sua
globalidade, não nos podendo ater apenas na escritura pública de
8/11/2013, só assim se conseguindo perceber se este direito foi
"dado de graça", "oferecido", "presenteado", aos recorrentes, que
é o que significa "gratuito".
10- Vejamos, resultou provado que os recorrentes pagaram com
dinheiro seu o usufruto e a nua propriedade das fracções que
habitam e usam desde 1987, embora tenham colocado a nua
propriedade em nome dos 3 filhos; a certa altura, os recorrentes
renunciaram ao usufruto para que a filha agora insolvente pudesse
contrair um empréstimo, que não veio a concretizar-se; no ano de
2006 os filhos dos recorrentes e respectivos cônjuges declararam,
por escrito particular, ceder aos recorrentes gratuitamente o direito
de uso e habitação vitalício das fracções em referência e no
mesmo ano os recorrentes decidiram que a filha agora insolvente
deveria ficar com a totalidade da nua propriedade das fracções em
referência, para assim ficar em pé de igualdade em relação a
outras doações que já tinham feito aos irmãos, aceitando os dois
irmãos entregar a sua parte (1/3 cada) sem que a aqui insolvente
tenha pago qualquer quantia; residindo os recorrentes nas fracções
em causa há mais de 30 anos, sem pagar qualquer contrapartida a
quem quer que seja.
11- Resumindo, a insolvente recebeu 1/3 da nua propriedade
dessas fracções em 1987, paga pelos recorrentes; em 2002 ficou
com 1/3 da propriedade das fracções, pois os AA. renunciaram ao
usufruto para que ela pudesse pedir um empréstimo, sem que ela o
tivesse feito; em 2006 a insolvente recebeu 2/3 da propriedade das
fracções dos irmãos, a pedido dos AA., para que assim ficasse em
pé de igualdade com os irmãos em relação a outros bens que os
AA. já tinham dado àqueles, e os insolventes, por seu turno,
apenas, deram o direito de uso e habitação. Ou seja, não só o
direito de uso e habitação vitalício não foi constituído a favor dos
recorrentes como presente, oferecido, sem qualquer fundamento,
como o que o que os recorrentes deram à insolvente, ou o que ela
recebeu, foi muito superior.
12- Nesta conformidade, este acto de cedência vitalícia gratuita do
direito de uso e habitação, analisado dentro do enquadramento da
globalidade dos actos e negócios praticados ao longo do tempo, e
tendo sempre presente a razão de ser da figura da resolução dos
negócios prejudiciais à massa insolvente, tem de concluir-se como
não tendo sido gratuito, e como tendo sido até bastante benéfico
para os insolventes, e agora para a Massa insolvente.
13- Perante a matéria de facto provada, a Mma. Sra. Juiz deveria
ter conhecido oficiosamente do abuso do direito da Massa
insolvente exercer o direito à resolução do acto em benefício da
Massa insolvente, constituindo tal omissão do dever de pronúncia
um erro de julgamento, porquanto choca que a Massa insolvente
tenha resolvido o acto em benefício da Massa insolvente, ou possa
resolvê-lo, pois o seu exercício atinge ostensivamente os bons
costumes e a boa fé, ofendendo clamorosamente a justiça
permitir-se resolver este acto de constituição do direito de uso e
habitação gratuito e vitalício a favor destas fracções, deixando os
recorrentes, pessoas de idade avançada, sem tecto para morar,
quando foram eles que pagaram a nua propriedade das fracções e
as colocaram em nome dos filhos, também da insolvente;
adquiriram o usufruto para eles, mas acabaram por renunciar a ele,
a pedido da insolvente, que acabou por não contrair nenhum
empréstimo e ficou com as fracções sem encargos; em 2006 os
filhos e cônjuges subscreveram declaração onde declaravam ceder
gratuita e vitaliciamente o direito de uso e habitação sobre as ditas
fracções; e quando em 2006, os recorrentes, como forma de
colocarem a insolvente em pé de igualdade com os irmãos em
relação a outras doações que já lhes tinham feito, convenceram os
irmãos a doarem à insolvente os 2/3 da propriedade destas
fracções.
14- Ou seja, iniciativa dos recorrentes, e sem que a insolvente
nunca tenha pago nada, ela ficou com 1/3 da nua propriedade das
fracções, primeiro, depois, 1/3 da propriedade e mais tarde a
totalidade da propriedade, que se encontra apreendida a favor da
Massa insolvente, e agora a Massa insolvente quer resolver-lhes o
acto de constituição do direito de uso e habitação gratuito e
vitalício sobre estas fracções, que foram os recorrentes que
pagaram, os quais renunciaram ao usufruto em tempos a pedido
daquela e apenas tinham declarações subscritas pelos filhos e
cônjuges datadas de 2006 em que lhes concediam o direito de uso
e habitação sobre as fracções!?
15- Como assim, ao abrigo do instituto do abuso do direito,
previsto no artigo 334.º do Código Civil, deveria a Sra. Juiz do
Tribunal a quo ter declarado não ser lícito à Massa insolvente, na
pessoa do Sr. AI, resolver o acto em benefício da Massa
insolvente, devendo ter revogado a resolução dos actos praticados
na intitulada escritura de doação de constituição de direito de uso
e habitação.
16- A decisão revidenda violou as seguintes normas jurídicas: art.º
615.º, n.o 1, aI. d) do CPC; art.º 121.º, n.o 1, aI. b) do CIRE; art.º
334.º do CC; art.º 5.º do CRPredial; art.º 1440.º do cc.º e 608.º,
n.o 2 do cpc.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - Delimitação do Objecto do Recurso
As questões a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso,
consistem, para além da apreciação de nulidades da sentença, na
alteração da decisão sobre a matéria de facto, e na reapreciação da
resolução em benefício da massa insolvente apenas relativamente
ao direito ao uso e habitação dos bens em causa.
Das nulidades da sentença
Os Recorrentes sustentam que a sentença é nula por omissão de
pronúncia, uma vez que dos "Temas da Prova" destinados a
apurar se "Todos acordaram que os irmãos doariam à insolvente o
direito que lhes cabia, na condição de os Autores poderem fruir e
usar das fracções até ao fim da vida daquele que morresse em
último lugar, sem qualquer contrapartida" e "Se a escritura de
8/11/2013 foi celebrada apenas para formalizar o direito de uso e
habitação" não obteve resposta positiva nem negativa do tribunal.
E que se excedeu na pronúncia ao incluir, os factos da alínea d),
dando-os como não provados.
A Mma. Juíza esclareceu que apesar de, inicialmente, ter
considerado relevante a referida matéria, incluindo-a nos temas da
prova, o certo é que não estava impedida de alterar o seu
entendimento, desconsiderando-a por irrelevante para a decisão da
causa. Considerou também que não se verifica excesso de
pronúncia por ter considerado provado um facto não levado aos
temas da prova, indicando, nesse sentido, o Acórdão da Relação
de Lisboa de 23.04.2015 disponível in www.dgsi.pt.
Cumpre decidir.
A sentença é nula quando o juiz conheça de questões que não
podia tomar conhecimento-cfr. art. 615.º, n.o 1, al. d) do C.P.Civil.
A omissão ou excesso de pronúncia está directamente relacionada
com as questões que as partes tenham submetido à apreciação do
tribunal-v. art. 608.º, n.o 2 do C.P.Civil.
E as questões são apenas aquelas que contendem com a
substanciação da causa de pedir, do pedido ou das excepções, não
se confundindo com considerações, argumentos, motivos.(1)
Como bem referiu a Mma. Juíza, as apontadas nulidades (de
omissão e de excesso de pronúncia) respeitam tão só ao
julgamento incidente sobre a matéria de facto, não estando o
tribunal vinculado aos "temas da prova", quando considere um
determinado facto (irre)relevante, como sucedeu.
Não se trata, em bom rigor, de nulidades formais da sentença, mas
de discordância dos Recorrentes quanto à decisão proferida sobre
a matéria de facto.
Assim sendo, não se verifica qualquer nulidade na sentença.
*
Da modificabilidade da decisão de facto
Nos termos do artº. 662º. do Código de Processo Civil a Relação
deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os
factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento
superveniente impuserem decisão diversa. (negrito nosso)
Assim, sem prejuízo de uma valoração autónoma dos meios de
prova utilizados pelo tribunal (2) e ainda de outros que se
mostrarem pertinentes, essa operação não pode nunca olvidar
os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das
provas.
Os Recorrentes consideram que é importante, para a decisão da
causa, o aditamento da seguinte matéria factual :
a) Os irmãos da insolvente deram o seu acordo e combinaram que
entregariam a sua parte na nua propriedade das fracções à irmã A.
P., na condição de os Autores, seus pais, poderem usar e fruir das
mesmas, sem qualquer contrapartida, até ao fim da vida do que
morresse em último lugar, como vinha sucedendo;
b) Os AA. e os filhos estavam convencidos que as declarações
subscritas pelos insolventes e pelos dois irmãos e cônjuges da
insolvente, datadas de 30 de janeiro de 2006, onde estes
declararam que concedem de forma gratuita aos AA. o direito de
uso e habitação das fracções até à data do falecimento do último
destes, era válida e suficiente para salvaguardar o direito dos AA.
a usarem e fruirem daquelas fracções, enquanto titulares do direito
de uso e habitação;
c) Desconhecendo a necessidade de tal acto ter de ser realizado
por escritura pública e registado;
d) Só no fim do ano de 2013, quando se encontrava a preparar a
celebração de uma escritura pública tendo por objecto as ditas
fracções, a filha dos AA. A. P. ficou a saber que o direito de uso e
habitação dos pais não se encontrava totalmente
salvaguardado; e) Razão por que, na mesma ocasião, através de
escritura pública lavrada no Cartório da notária J. M., sito na
Praça ... da Cidade da Póvoa de Varzim, a filha A. P. e o marido,
em 03.11.2013, declararam ceder gratuitamente aos AA. o direito
de uso e habitação sobre as ditas fracções;
f) Com a celebração daquela escritura apenas se pretendeu
formalizar um acto que fora praticado há mais de 8 anos, tendo-se
apenas visado dar forma a um negócio há muito praticado.
Atendendo ao historial de factos alegados pelos Recorrentes com
o objectivo de impugnar a resolução incondicional efectuada pelo
Administrador da Insolvência, afigura-se-nos que o complexo
factual acima descrito, que pretendem aditar, revela-se importante
para se poder compreender exactamente a que título os Autores
residem na casa de habitação e as circunstâncias que antecederam
o acto que foi objecto de resolução incondicional.
Assim, com fundamento nos depoimentos conjugados das
testemunhas P. M., F. M., R. Q. e A. P., deve tal matéria ser dada
como provada.
Com efeito, e em resumo, das declarações proferidas por aquelas
testemunhas, em confronto com os documentos juntos aos autos,
resulta que: os Autores, pais da insolvente A. P., compraram as
ditas fracções para nela residirem mas decidiram que ficassem
desde logo no "nome" dos três filhos, para facilitar a partilha por
morte de ambos, reservando o usufruto vitalício desses bens. Mais
tarde, entenderam que os bens deviam ficar só no nome da filha
A. P. pois era aquela que não estava em igualdade com os irmãos,
o que foi concretizado, sempre com a condição dos Autores
permanecerem na casa onde sempre residiram desde 1984.
Quando a filha necessitou de um empréstimo bancário, em 2002,
os Autores renunciaram ao usufruto, e em 2006, o Autor, para que
ficasse assegurada a sua habitação, entregou aos filhos uma
declaração em que aqueles cediam o direito de uso e habitação,
desconhecendo a invalidade da mesma. Essa invalidade só foi
detectada pela filha A. P., através de aconselhamento de
advogado, razão pela qual foi celebrada a escritura pública, em
2013, cedendo esse direito aos seus pais, aqui Autores.
Acresce que toda a actuação dos Autores relativamente aos
imóveis, revelada pela prova testemunhal e documental, permite-
nos concluir que sempre usaram e fruiram da casa de habitação e
aparcamentos, desde 1987, na convicção absoluta de serem
usufrutuários vitalícios.
Portanto, considerando a importância para a decisão da causa dos
referidos factos instrumentais explicativos, decide-se aditá-los,
dando-os como demonstrados.
Uma nota final para a alteração a que iremos proceder apenas no
que respeita à redacção dos pontos 3 e 5 dos factos provados por
forma a fazerem sentido, em conformidade com a prova produzida
e já aceite pelas partes.

III- FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS PROVADOS
1. Por escritura celebrada em 15 de abril de 1987, junta a fls. 43 e
seguintes, cujo teor se dá aqui por reproduzido, os aqui Autores
adquiriram, pelo preço de dois milhões seiscentos e quarenta e
sete mil e quinhentos escudos, o usufruto vitalício,
designadamente, das fracções CD, CR e HQ e a Insolvente A. P. e
seus dois irmãos, R. Q. e P. M., em comum, a raiz ou mera
propriedade das mesmas fracções;
2. O pagamento respeitante à compra do usufruto e da nua
propriedade referida em 1. foi realizado pelos Autores, com
dinheiro destes;
3. No ano de 2002, a Insolvente A. P. quis contrair empréstimo
bancário, pretendendo dar de garantia os imóveis identificados em
1, tendo a entidade financiadora obstaculizado o processo pelo
facto de sobre eles incidir o usufruto a favor dos Autores;
4. Em 26 de dezembro de 2002, no Cartório Notarial, foi
celebrada escritura pública de renúncia, no âmbito da qual os aqui
Autores declararam renunciar ao usufruto que lhes pertencia
relativamente às fracções, designadamente, CD, CR e HP;
5. A escritura de renúncia ao usufruto foi celebrada apenas para
que a Insolvente A. P. conseguisse a aprovação do empréstimo,
sendo que os Autores continuaram a fruir e a usar gratuitamente
as ditas fracções como até então;
6. A Insolvente A. P. acabou por não contrair o projectado
empréstimo;
7. Os Autores pediram aos filhos e cônjuges que fizessem um
papel assegurando o direito dos Autores a viverem na casa e a
usarem as garagens e arrumos até ao fim das suas vidas, sem
qualquer pagamento/contrapartida;
8. Encontra-se junta aos autos declarações subscritas pelos
Insolventes e pelos dois irmãos e cônjuges da insolvente, datada
de 30 de janeiro de 2006, onde estes declaram que concedem de
forma gratuita aos aqui Autores o direito de uso e habitação até à
data do falecimento do último destes, relativo às fracções HP, CC,
CD e CR;
9. Os Autores, por entenderem que ao longo da vida tinham
acabado por beneficiar mais os outros dois filhos do que a
Insolvente A. P., para que esta ficasse em pé de igualdade com
por irmãos, decidiram que esta deveria ficar com a totalidade nua
propriedade das fracções;
10. Os irmãos da insolvente deram o seu acordo e combinaram
que entregariam a sua parte na nua propriedade das fracções à
irmã A. P.;
11. Em 13 de Março de 2006, por escritura de compra e venda
celebrada no Cartório sito na Avenida ... em Santo Tirso, cujo teor
se dá aqui por reproduzido, R. Q. e marido e P. M. e mulher
declararam vender à Insolvente, cada um, 1/3 indiviso das
fracções autónomas designadas pelas letras CD, CR e HP, tendo a
insolvente declarado que a fracção HP se destinava à sua
habitação própria e permanente e que já era dona da restante parte
indivisa das referidas fracções;
12. Na escritura de 13/3/2006 nada foi pago, porquanto o que foi
pretendido foi que as fracções passassem para o nome da A. P.
sem qualquer contrapartida monetária ou outros;
13. Por escritura de doação e dação em cumprimento, datada de 8
de novembro de 2013, celebrada no Cartório Notarial de J. M.,
cujo teor se dá aqui por reproduzido, os Insolventes declararam
constituir gratuitamente a favor do aqui Autores, pais da
Insolvente, o direito de uso e habitação vitalício das fracções CD,
CR e HP, pelos valores de € 4983,77, € 16.834,97 e de €
140.018,93, respectivamente;
14. Os autos de insolvência deram entrada em juízo em 17 de abril
de 2014;
15. Por sentença 09 de maio de 2014, foi declarada a insolvência
de L. P. e de A. P., após encerramento do prévio processo de
revitalização.
16. O sr. Administrador da Insolvência remeteu aos ora Autores
uma carta recepcionada por estes em 21 de julho de 2014, onde
lhes comunicou a resolução incondicional do acto de doação e do
acto de constituição do direito de uso e habitação vitalício,
invocando o disposto no artigo 121.º, n.o 1, al. b), do CIRE,
celebrado entre eles e os Insolventes, respeitante às fracções
designadas pelas letras CD, CR e HP que fazem parte do prédio
urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito em
Carvalhais, descrito na Conservatória do registo Predial sob a
ficha n. ... e inscrito na matriz urbana sob o artigo ..., alegando
que, com o referido acto, os outorgantes se haviam tentado
colocar "numa situação de superioridade em relação aos demais
credores, não traduzindo a celebração do contrato de doação outra
coisa, senão um empobrecimento do património daqueles
senhores, que se encontravam em sérias dificuldades económicas
para fazer face aos compromissos contraídos junto dos credores.
Não podem assim, pois, restar dúvidas sobre o carácter prejudicial
da doação aqui questionada relativamente aos credores da massa
insolvente em casa, pois, a doação do citado imóvel fez reduzir o
acervo patrimonial daqueles, tendo apenas beneficiado V. Exas.
em desfavor dos demais credores da insolvência. Uma vez que o
mesmo foi praticado dentro dos dois anos anteriores à data do
início do processo de insolvência apresentado em Maio de 2014".
17. Há mais de 30 anos que os Autores, ininterruptamente,
residem nas fracções em causa, onde sempre foi, e se mantém, a
casa de morada de família, sem pagar qualquer contrapartida a
quem quer que seja, pagando a electricidade, a água e o gás,
tratando, limpando e zelando pelas fracções, fazendo obras e
reparações e suportando o respectivo custo, como sempre o
fizeram, dormindo na habitação, aí tomando banho, fazendo e
tomando as sua refeições, descansando e recebendo amigos e
familiares, servindo-se dos aparcamentos e arrumos para nele
guardarem automóveis e outros haveres, pagando as quotas de
condomínio e obras nas partes comuns, participando nas
assembleias e reuniões de condomínio e arcando com os encargos
fiscais atinentes às fracções, na convicção de usufrutuários
vitalícios, tal como havia sido constituído na escritura celebrada
em 15 de abril de 1987;
18.Os irmãos da insolvente deram o seu acordo e combinaram que
entregariam a sua parte na nua propriedade das fracções à irmã A.
P., na condição de os Autores, seus pais, poderem usar e fruir das
mesmas, sem qualquer contrapartida, até ao fim da vida do que
morresse em último lugar, como vinha sucedendo.
19.Os AA. e os filhos estavam convencidos que as declarações
subscritas pelos insolventes e pelos dois irmãos e cônjuges da
insolvente, datadas de 30 de janeiro de 2006, onde estes
declararam que concedem de forma gratuita aos AA. o direito de
uso e habitação das fracções até à data do falecimento do último
destes, era válida e suficiente para salvaguardar o direito dos AA.
a usarem e fruirem daquelas fracções, enquanto titulares do direito
de uso e habitação, desconhecendo a necessidade de tal acto ter de
ser realizado por escritura pública e registado.
20.Só no fim do ano de 2013, quando se encontrava a preparar a
celebração de uma escritura pública tendo por objecto as ditas
fracções, a filha dos AA. A. P. ficou a saber que o direito de uso e
habitação dos pais não se encontrava totalmente salvaguardado.
21.Razão por que, na mesma ocasião, através de escritura pública
lavrada no Cartório da notária J. M., sito na Praça ... da Cidade da
Póvoa de Varzim, a filha A. P. e o marido, em 03.11.2013,
declararam ceder gratuitamente aos AA. o direito de uso e
habitação sobre as ditas fracções.
22.Com a celebração daquela escritura apenas se pretendeu
formalizar a ocupação das fracções a título de usufrutuários
vitalícios, tendo-se apenas visado dar forma novamente a um
acordo celebrado entre os elementos da família.
Não resultou provado que:
a) A renúncia ao usufruto de 26/12/2002 tivesse sido realizada na
condição, imposta pelos Autores ou pelos irmãos da A. P., de,
logo que fosse resolvida a questão do empréstimo, se constituísse
a favor dos Autores um direito que lhes permitisse continuar a
servir-se das fracções para ali continuarem a morada e a
guardarem os seus haveres, sem nada pagarem, até ao final dos
seus dias, sem que qualquer dos proprietários os pudesse impedir
ou impor-lhes uma data ou qualquer condição;
b) Os Autores desconhecessem que a filha e o genro estavam em
situação de insolvência, nem que não tivessem querido prejudicar
ninguém, nomeadamente, os eventuais credores da filha e do
genro.
IV- DIREITO
A questão suscitada no recurso interposto pelos impugnantes
consiste em saber se a resolução operada pelo Administrador de
insolvência se enquadra no regime legal aplicável, face à matéria
de facto apurada no processo.
O Administrador de insolvência remeteu aos Autores uma carta
através da qual lhes comunicou a resolução incondicional do acto
de doação e do acto de constituição do direito de uso e habitação
vitalício, invocando o disposto no artigo 121.º, n.o 1, al. b), do
CIRE, celebrado entre eles e os Insolventes, respeitante às
fracções designadas pelas letras CD, CR e HP que fazem parte do
prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal
sito em ....
Importa recordar que, na presente acção de impugnação da
resolução, está tão só em causa o acto de constituição do direito
de uso e habitação vitalício constituído a favor dos Autores pelos
insolventes, através da celebração da escritura, datada de
03.11.2013.
Nos termos do artigo 121.º, n.o1, al. b) do CIRE, sob a epígrafe
"Resolução incondicional" são resolúveis em benefício da massa
insolvente, sem dependência de outros requisitos, actos celebrados
pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à
data do início do processo de insolvência.
Ao referir-se a "outros requisitos", referem Luís Carvalho
Fernandes e João Labareda (3), o preceito quer significar a
desnecessidade de mais requisitos além dos que constam em cada
uma das suas alíneas, consignando uma presunção inilidível de
prejudicialidade de todos esses actos-cfr. ainda artigo 120.º, n.o 3
do CIRE.
Perante a escritura, datada de 3 de novembro de 2013, através da
qual os Insolventes declararam constituir gratuitamente a favor do
aqui Autores, pais da Insolvente, o direito de uso e habitação
vitalício das fracções CD, CR e HP, com desconhecimento de
outros factos relevantes, o Sr. Administrador de insolvência
estava vinculado pela lei a resolver esse acto em benefício da
massa insolvente, não admitindo, sequer, prova em contrário.
No entanto, o caso em apreço não deve ser encarado de forma tão
simples e linear, face à factualidade que ficou claramente
demonstrada nos autos.
Com efeito, ficou provado que, por escritura celebrada em 15 de
abril de 1987, os aqui Autores adquiriram, pelo preço de dois
milhões seiscentos e quarenta e sete mil e quinhentos escudos,
o usufruto vitalício das fracções CD, CR e HQ e a Insolvente A.
P. e seus dois irmãos, R. Q. e P. M., em comum, a raiz ou mera
propriedade das mesmas fracções, sendo que o pagamento
respeitante à compra do usufruto e da nua propriedade foi
realizado pelos Autores, com dinheiro destes.
Segundo a noção do artigo 1439.º do C.Civil "O usufruto é o
direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito
alheio, sem alterar a sua forma e substância."
É um jus in re aliena, um direito real sobre coisa alheia,um direito
real integrado pelas faculdades de uso e fruição sobre uma coisa
que, em propriedade, pertence a outrem-o nu-proprietário-, um
direito real que segundo a velha concepção de raiz romanística era
classificado como uma servidão pessoal. (4)
As notas essenciais deste direito, esclarece Pires de Lima e A.
Varela (5), são as seguintes : a) temporariedade; b) gozo pleno da
coisa; c) pode incidir sobre uma coisa ou direito; d) alheia; e) e
que não atribui ao titular a faculdade de alterar a forma ou a
substância da coisa.
Uma das vantagens frequentes do usufruto é a de possibilitar a
certas pessoas proverem à situação de necessidade de outrem, mas
conseguindo simultaneamente que os bens não saiam da família
do disponente. (6)
A única diferença essencial em relação ao proprietário é que o
usufrutuário não pode dispor da coisa.
A noção do direito de uso e habitação está prevista no artigo
1484.º, n.o 1 do C.Civil : "O direito de uso consiste na faculdade
de se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na
medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família."
Citando Pugliese, os referidos autores acrescentaram que o
usufruto é, quanto ao gozo da coisa, e a despeito da sua raiz
pessoal, "o espelho fiel da propriedade; o seu titular, desde que
respeite o destino económico da coisa, pode comportar-se
exactamente como um proprietário."
E acrescentam que o direito de uso, mais adstrito à pessoa do
titular, absorve apenas algumas das faculdades de gozo (as ligadas
à utilização imediata da coisa ou ao consumo directo dos frutos)
compreendidas na propriedade plena. (7)
Este direito de uso e de habitação constitui-se e extingue-se pelos
mesmos modos que o usufruto, à excepção da aquisição por
usucapião-cfr. artigos 1485.º e 1293.º, al. b) do C.Civil.
É um direito de natureza pessoal, intransmissível (v. art. 1488.º do
CC), e por ser confundível, quanto ao corpus, com as figuras da
propriedade e do usufruto, não pode ser adquirido por
usucapião. (8)
Portanto, diversamente do que sucede no usufruto, que concede
uma fruição e um uso globais e, em princípio, ilimitada, a nota
fundamental do direito de uso e habitação, ensinam Álvaro
moreira e Carlos Fraga (9), é o de se pautar pelas necessidades
pessoais.(sublinhado nosso)
Da leitura da factualidade apurada no processo, resulta o seguinte:
os Autores compraram as fracções aqui em causa (casa de
habitação, aparcamento e arrumos) para aí habitarem, mas
resolveram que a nua propriedade ficaria no nome dos três filhos,
assegurando, desta forma, uma partilha dos bens em vida, e
reservando para si o usufruto vitalício das mesmas.
Em 26 de dezembro de 2002, declararam renunciar ao usufruto
que lhes pertencia relativamente às fracções, apenas para
possibilitar à filha A. P. a aprovação de um empréstimo bancário,
que acabou por não contrair, sendo que os Autores continuaram a
residir e a usar gratuitamente as fracções, como até então.
Mais tarde, por entenderem que a filha A. P. estava prejudicada
em relação aos irmãos, decidiram que deveria ficar como única
proprietária das ditas fracções, o que foi concretizado por escritura
de 13 de Março de 2006.
A pedido dos Autores, os filhos subscreveram as declarações,
datadas de 30 de janeiro de 2006, concedendo, de forma gratuita
aos AA., o direito de uso e habitação das fracções até à data do
falecimento do último destes, convencidos que as mesmas eram
válidas e suficientes para salvaguardar o direito dos AA. a usarem
e fruirem daquelas fracções, enquanto titulares do direito de uso e
habitação, desconhecendo a necessidade de tal acto ter de ser
realizado por escritura pública e registado.
Ficou seguramente demonstrado que os Autores, há mais de 30
anos, que residem nas fracções em causa, onde sempre foi, e se
mantém, a casa de morada de família, sem pagar qualquer
contrapartida a quem quer que seja, pagando a electricidade, a
água e o gás, tratando, limpando e zelando pelas fracções, fazendo
obras e reparações e suportando o respectivo custo, como sempre
o fizeram, dormindo na habitação, aí tomando banho, fazendo e
tomando as sua refeições, descansando e recebendo amigos e
familiares, servindo-se dos aparcamentos e arrumos para nele
guardarem automóveis e outros haveres, pagando as quotas de
condomínio e obras nas partes comuns, participando nas
assembleias e reuniões de condomínio e arcando com os encargos
fiscais atinentes às fracções, na convicção de serem usufrutuários
vitalícios, tal como havia sido constituído na escritura celebrada
em 15 de abril de 1987, situação esta sempre aceite por todos.
Só no fim do ano de 2013, quando se encontrava a preparar a
celebração de uma escritura pública tendo por objecto as ditas
fracções, a filha dos AA. A. P. ficou a saber que o direito de uso e
habitação dos pais não se encontrava totalmente salvaguardado,
razão pela qual, na mesma ocasião, através de escritura pública, a
filha A. P. e o marido, declararam ceder gratuitamente aos AA. o
direito de uso e habitação sobre as ditas fracções, pretendendo
apenas formalizar um acto que fora praticado na aquisição das
mesmas, tendo-se apenas visado dar forma ao acordo celebrado
entre os elementos da família.
O tribunal não está vinculado à qualificação jurídica ou
denominações legais que as partes atribuem a determinados actos
que praticam no comércio jurídico.
Efectivamente, no caso em apreço, provou-se que os Autores
adquiriram inicialmente por contrato (quando as fracções foram
adquiridas), embora tenham posteriormente renunciado, mas
também através da figura da usucapiãoo usufruto vitalício dos
referidos imóveis, que utilizam, como habitação própria, há mais
de trinta anos, e que só não são proprietários das mesmas porque
quiseram antecipar, em vida, a partilha desses bens.
Com efeito, nos temos da definição legal, a usucapião consiste na
posse do direito de propriedade ou de outro direito real de gozo,
mantida por certo lapso de tempo-v. art. 1287.º do C.Civil.
Portanto, a usucapião funda-se na posse, que tem como requisitos,
de acordo com a concepção subjectiva consagrada na lei, os
elementos material (corpus) e o psicológico (animus), traduzindo-
se o primeiro nos actos materiais praticados sobre a coisa e o
segundo na intenção do possuidor se comportar como titular do
direito real correspondente aos actos praticados-v. art. 1251.º do
C.Civil.
A posse adquire-se pela prática reiterada, com publicidade, dos
actos materiais correspondentes ao exercício do direito, pela
tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior
possuidor, por constituto possessório e por inversão do título da
posse-v. art. 1263.º, als. a) a d) do C.Civil. (sublinhado nosso)
Mas a posse que releva é a que se manifesta por certo lapso de
tempo - cuja dimensão se correlaciona com a existência de boa ou
má fé, titulada ou não- desde que pública e pacífica-v. art. 1294.º
a 1297.º do C.Civil.
Não havendo dúvida de que os Autores adquiriram, por
usucapião, o usufruto dos mencionados imóveis, afigura-se-nos
que, este caso, está manifestamente excluído do âmbito de
aplicação dos artigos 120.º e 121.º do CIRE.
É que apesar de, na escritura de 2013, se declarar a cedência
gratuita aos Autores do denominado direito de uso e de
habitação das ditas fracções, na realidade, os insolventes tiveram
em vista formalizar novamente o usufruto vitalício, já adquirido
pelos Autores, por usucapião.
E sendo usufrutuários da casa de habitação, arrumos e
aparcamento, identificados nos autos, a cedência do direito de uso
e habitação é um minus desnecessário em relação ao preexistente
direito real de usufruto.
Nesta conformidade, perante o direito de usufruto das fracções, a
cedência do direito de uso e habitação não configura um acto
prejudicial à massa na medida em que não diminuiu a satisfação
dos interesses dos credores, razão pela qual o caso em apreço não
se enquadra no disposto no artigo 121.º do CIRE.
Concluindo, o acto meramente formal praticado pela insolvente,
no referido período temporal de dois anos antes do início do
processo de insolvência, através do qual cedeu aos autores, seus
pais, o direito de uso e habitação de bens imóveis, onde estes
residem, desde 1987, na convicção de serem usufrutuários,
revelou-se dispensável, uma vez que já haviam adquirido
o usufruto vitalício dos mesmos, por usucapião.
Pelas razões aduzidas, o acto em apreciação não deve ser
resolvido em benefício da massa insolvente, podendo os Autores
continuar a residir nessa casa, como sempre fizeram desde 1987.

V - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da
Relação em julgar procedente o presente recurso, e em
consequência, revogam a sentença, dando sem efeito a resolução
incondicional, em benefício da Massa Insolvente, do acto de
constituição do direito de uso e habitação sobre as fracções "HP,
"CD" e "CR" do prédio urbano constituído em regime de
propriedade horizontal sito ..., freguesia e Concelho de Santo
Tirso, descrito a Conservatória do Registo Predial sob a ficha
n.o ..., e inscrito na matriz urbana sob o art.º n.o ....
Custas pela massa insolvente, em ambas as instâncias.
Notifique e registe.
Guimarães, 12 de Outubro de 2017
(Anabela Andrade Miranda Tenreiro)
(Alexandra Rolim Mendes)
(Maria da Purificação Lopes de Carvalho)
1. cfr. Cabrita, Helena, A Fundamentação de Facto e de Direito
da Decisão Cível, Coimbra Editora, 260.
2. Cfr. Geraldes, António Santos Abrantes, Temas da Reforma do
Processo Civil, II vol., pág. 256.
3. Cfr. Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas
Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, pág. 504, nota 4.
4. Moreira, Álvaro e Fraga, Carlos, Direitos Reais, Almedina,
pág. 352-353.
5. Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª edição, pág. 457, nota 2.
6. Cfr. Ob.cit, ág. 359.
7. Cfr. ob. cit., pág. 546.
8. Cfr. ob. cit., pág. 73 e 74
9. Cfr. ob. cit., pág. 419.

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