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Resumo
Palavras-chave
Correspondência:
Wanderson Ferreira Alves
Rua Caetano de Franco, Q.13, L.19
74423-450 – Goiânia – GO
e-mail: wandersonfalves@yahoo.com.br
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.2, p. 263-280, maio/ago. 2007 263
Teacher education and the theories of teacher
knowledge: contexts, doubts, and challenges
Abstract
Keywords
Contact:
Wanderson Ferreira Alves
Rua Caetano de Franco, Q.13, L.19
74423-450 – Goiânia – GO
e-mail: wandersonfalves@yahoo.com.br
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O campo da formação de professores ao cia profissional, o entendimento de que é pos-
final do século XX viu chegar novos termos e sível a produção de um conhecimento prático e
conceitos referentes aos professores, sua formação a compreensão de que o professor, ao desenvol-
e seu trabalho. Expressões como: epistemologia da ver seu trabalho, mobiliza uma pluralidade de
prática, professor-reflexivo, prática-reflexiva, pro- saberes. A assimilação dessa forma de ver e
fessor-pesquisador, saberes docentes, conhecimen- compreender o trabalho do professor não vem
tos e competências passaram a fazer parte do ocorrendo sem críticas.
vocabulário corrente da área. Apreciados ou não, Se para autores tão diversos como Tardif
esses novos termos e conceitos se incorporaram (2002), Shulman (1987) e Pimenta (2002), a
aos debates sobre a Educação e, particularmente, perspectiva que investiga os saberes dos docen-
sobre a formação dos professores. tes pode contribuir com o desenvolvimento pro-
Nos países anglo-saxônicos, os estudos fissional dos professores, no entanto, para outros,
sobre os saberes dos docentes representam uma como Arce (2001) e Duarte (2003), ela pode ser
tradição existente há algumas décadas e que ga- compreendida como um recuo no modo de se
nha impulso, a partir dos anos 1980, com o mo- conceber a formação do professor, representan-
vimento mais amplo de profissionalização do do um ajustamento ao ideário neoliberal. Vai fi-
magistério. O referido movimento de profissio- cando claro então que abordar o campo dos
nalização possui como algumas de suas caracte- saberes da docência está longe de ser algo fá-
rísticas a busca de elevação da formação profis- cil e não problemático, principalmente em um
sional do professor ao nível superior e a procura contexto em que aquilo que é novo é, muitas
por transformar a estrutura do ensino e da carrei- vezes, rapidamente abraçado ou refutado (Pi-
ra, elevando os salários e o status profissional, menta, 2002). Este trabalho procura contribuir
sendo a profissão médica tomada como modelo para o avanço desse debate.
de referência. Esses aspectos estão presentes em Diante do contexto acima delineado, o
dois grandes relatórios publicados em 1986 pelo objetivo do presente texto é analisar a recepção
Holmes Group — um grupo formado por decanos dos estudos ligados aos saberes da docência no
das universidades americanas — e pelo Carnegie campo da formação de professores no Brasil. A
Task Force on teaching a profession – grupo for- idéia central aqui é compreender, a partir da dis-
mado por autoridades do setor público, empresa- cussão com a literatura e com pesquisas recentes,
rial, sindical e educacional. Ambos os relatórios, um pouco mais como os autores estudiosos da
respectivamente Tomorrow’s teachers e A nation formação docente têm percebido a chegada des-
prepared: teachers for 21st Century, problema- ses novos modos de se ver, apreciar e investigar
tizam e apontam soluções para o avanço do o trabalho do professor. O texto a seguir está
ensino — o fortalecimento da profissão docente assim organizado: no primeiro momento, apre-
— e podem ser vistos como marcos e impul- sento uma síntese das principais tradições e con-
sionadores do movimento de profissionalização cepções teóricas que compõem o campo dos
do magistério. Uma análise da gênese e uma saberes da docência; no segundo, procuro mos-
crítica aos desdobramentos desse movimento trar como estava estruturado até os anos 1980 o
de profissionalização podem ser vistas em campo das idéias pedagógicas no Brasil e a pers-
Labaree (1992; 1995). pectiva de formação de professores que lhe era
No Brasil, é no início da década de 1990 subjacente; no terceiro, discuto as diferentes re-
que, por meio do texto pioneiro de Tardif, cepções dos estudos sobre o saber docente en-
Lessard e Lahaye (1991), os estudos que foca- tre os autores brasileiros; a seguir, analiso alguns
lizam os saberes tácitos dos professores chegam enunciados que perpassam os argumentos dos
até nós (Lüdke, 2001). Esses estudos possuem autores; finalizando, trago uma síntese do que foi
como traços comuns a valorização da experiên- observado e aponto algumas perspectivas.
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Um pouco das teorias e dagem processo-produto. São também oriundas
tradições de um campo de da psicologia, mas diferenciam-se por centrar
pesquisa sua análise nos processos cognitivos dos pro-
fessores. Essas pesquisas procuraram superar os
Os estudos sobre os saberes dos profes- problemas da abordagem comportamentalista,
sores compõem um amplo e diversificado cam- procedendo a uma minuciosa análise do pro-
po que, em âmbito internacional, vem se cons- cesso cognitivo posto em movimento pelo pro-
tituindo há varias décadas. Trata-se de um campo fessor em suas ações e seus comportamentos
que recebe contribuições das ciências humanas e no âmbito da sala de aula. Elas buscaram com-
sociais, como as abordagens provenientes do preender como os professores percebem e co-
comportamentalismo, do cognitivismo, da etno- ordenam suas ações, como aprendem e fazem
metodologia, da fenomenologia, entre outras uso de informações, transpondo-as de um con-
(Borges; Tardif, 2001; Gauthier, 1999). Um bom texto para outro. O modelo de análise é o ló-
panorama dessas pesquisas e de suas linhas de gico matemático e os saberes são vistos como
investigação pode ser visto em Borges (2003). representacionais, configurando-se como um
De acordo com Borges (2003), existem conjunto de informações, roteiros e esquemas
diversos tipos de estudos sobre os saberes do de ação que produzem orientações para a prá-
professor, alguns inclusive situados em mais de tica do sujeito2.
uma abordagem. Esses estudos incorporam As pesquisas sobre o pensamento dos
perspectivas variadas que podem ser compreen- professores são também conhecidas pela ex-
didos em: pesquisas sobre o comportamento pressão inglesa teachers’ thinking. Trata-se de
do professor; a cognição do professor; o pen- uma abordagem bastante difundida e que re-
samento do professor; pesquisas compreensi- presenta desdobramentos da psicologia
vas, interpretativas e interacionistas; e, por fim, cognitiva, mas com contribuições de diversas
pesquisas que se orientam pela sociologia do correntes das ciências sociais, como a etno-
trabalho e das profissões. Vejamos isso com metodologia. Compreende estudos que se in-
mais detalhes. teressam pelas narrativas, pesquisas do tipo
As pesquisas sobre o comportamento do psicosocial, psicanalítica, sociocrítica e socio-
professor correspondem à tradição behaviorista ou construtivista, tendo como foco central o
comportamentalista no ensino. Nela estão localiza- pensamento dos professores. Apoiada em
das as pesquisas processo-produto, caracterizadas Tochon, Borges (2003) comenta que essa
por buscar identificar o impacto da ação docente abordagem constitui um verdadeiro para-
(o processo de ensino) sobre a aprendizagem do digma, sucessor dos estudos do tipo proces-
aluno (o produto), cujo intuito era compreender o so-produto, e que se preocupa com aquilo que
comportamento dos professores eficientes1. Borges os docentes pensam, conhecem, percebem, re-
(2003) comenta que muitas críticas foram feitas a presentam a respeito de seu trabalho, a disci-
essa abordagem, principalmente por ela não levar plina que ministram e a maneira como pensam
em consideração os aspectos subjetivos das inte- e resolvem as questões ligadas ao seu fazer no
rações entre o professor e os alunos, bem como o cotidiano escolar. Os estudos sobre o pensa-
contexto da sala de aula. Ainda segundo a auto- mento dos professores deixaram o âmbito des-
ra, o conhecimento nessa abordagem é visto como critivo e se consubstanciaram em ações práti-
externo ao professor, circunscrevendo-se a proce-
dimentos de ensino, conteúdos, métodos e seus 1. Entre os autores que integram essa perspectiva está o português António
efeitos imediatos sobre os alunos. Nóvoa, cujas teorias podem ser vistas em seus trabalhos Profissão profes-
sor (1991) e Os professores e sua formação (1992 ).
As pesquisas sobre a cognição do pro- 2. Tardif (2002, 2005) e Demailly (1987) são alguns dos autores que se
fessor emergiram no quadro das críticas à abor- utilizam das contribuições da sociologia do trabalho.
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saber: a pedagogia escolanovista, a pedagogia que na escola tradicional estava centrado no pro-
tecnicista e o surgimento das pedagogias críticas, fessor, foi no escolanovismo deslocado para o
com destaque para a concepção histórico-crítica. aluno, buscando atender suas necessidades e seus
A seguir, procuro delinear, ainda que resumida- interesses. A intenção era formar um homem in-
mente, o contexto em que essas idéias pedagó- tegral por meio de uma educação adequada e
gicas emergem e como, no interior de cada uma que, apoiada na ciência, levasse em considera-
delas, a docência foi projetada. ção o desenvolvimento psicobiológico dos
educandos. Para isso, já apontava o Manifesto
O movimento escolanovista dos Pioneiros, os docentes deveriam ter sua for-
mação realizada em nível superior (Xavier, 2002).
É de um contexto marcado por mudan- Tal aspecto era de fundamental importância, pois
ças sociais, políticas e econômicas no início do “desde o início do século 19 até os anos 30, a
século XX no Brasil que emerge o movimento formação docente era restrita a escola normal a
que ficou conhecido como Escola Nova. Movi- qual preparava o docente das ‘primeiras letras’”
mento encampado pela elite intelectual brasi- (Cury, 2005, p. 4, grifos do autor).
leira que propunha conduzir o país à moderni- Enfim, no âmbito do pensamento esco-
zação por meio da Educação, o escolanovismo lanovista, o professor passa a ser aquele que
e, particularmente, o Manifesto dos Pioneiros organiza as situações em sala de aula de modo
da Educação Nova representam um marco na a permitir o aprendizado do aluno, sendo a
redefinição da Educação no Brasil e na constru- preocupação com os conteúdos uma das im-
ção da escola pública (Xavier, 2002). portantes características da escola tradicional,
No quadro das significativas mudanças deslocada para a preocupação com os meios de
que ocorriam no período, era preciso criar um ensino (Saviani, 1997).
Brasil novo, que deixasse para trás as mazelas
do passado e vislumbrasse o futuro. Nesse sen- A pedagogia tecnicista
tido, o Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova, lançado em 1932, consubstancia-se em Entre 1955 e 1961, o Brasil viveu anos de
um corpo de medidas delineadoras de um novo significativo desenvolvimento econômico. A inter-
sistema educacional, de caráter único, laico, em venção do Estado e o fluxo de capital internaci-
base científica e sob a responsabilidade do Es- onal, proveniente da instalação de indústrias de
tado. Tais proposições, contudo, lograram bens de consumo duráveis e equipamentos, favo-
efetivação conforme a correlação de forças reciam esse crescimento. Contudo, o período tam-
existentes na sociedade e, assim, se constituí- bém foi marcado pela concentração do lucro e
ram em um movimento com avanços, recuos e pela tensão entre uma política de caráter nacio-
permanências. No entanto, o saldo dos emba- nal-desenvolvimentista e um modelo econômico
tes entre renovadores e conservadores, como que contava com o investimento estrangeiro (Ri-
assinala Romanelli (2002), não foi positivo para beiro, 1986). A agudização da tensão aí gerada foi
os primeiros e expressou o modo como o po- um dos fatores mais importantes para a ocorrên-
der estava estruturado no contexto brasileiro. cia do Golpe de 1964 e demarcou uma nova fase
O escolanovismo representa uma propos- no capitalismo brasileiro: um capitalismo do tipo
ta pedagógica de caráter humanista e tem seus associado e subordinado ao grande capital.
pressupostos constituídos a partir da chegada ao O crescimento do parque industrial neces-
Brasil de idéias oriundas da Europa e dos Estados sitava de mão-de-obra qualificada e existia uma
Unidos, principalmente do educador norte-ame- demanda crescente da sociedade por mais
ricano John Dewey e sua concepção liberal de escolarização. Nesse sentido, a Educação foi sen-
educação e sociedade. Assim, o eixo do ensino do enfocada e percebida como portadora de
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possa contribuir no processo de transformação educacional como pelos programas de forma-
social. A pedagogia histórico-crítica faz uma clara ção de professores. Embora a prática pedagó-
opção em favor da classe trabalhadora e dá ên- gica em sala de aula e os saberes docentes
fase ao aprendizado do conhecimento sistemati- tenha começado, neste período, a ser investi-
zado, pois defende que a instituição escolar está gados, as pesquisas não tinham o intuito de
ligada ao problema da ciência. Outro ponto im- explicitá-los e/ou valorizá-los como formas
portante é que em oposição à neutralidade da válidas ou legítimas de saber. Ao contrário,
prática educativa, propalada pelo tecnicismo, procuravam destacar, como diriam Ezpeleta;
Saviani traz uma pedagogia com forte sentido Rockwell (1986) e Geraldi (1993), a negati-
político e que aponta na direção de uma socie- vidade da prática pedagógica, isto é, procu-
dade sem classes. Por último, cabe acrescentar ravam analisar a prática pedagógica e os
que a tarefa da pedagogia nessa perspectiva é a saberes docentes pelas suas carências ou
sistematização dos métodos e processos de ensi- confirmações em relação a um modelo teó-
no, enquanto a produção do conhecimento en- rico que os idealizava. (p. 313-314)
sinado é uma atribuição dos cientistas (Saviani,
1997). Ao professor cabe, então, organizar o Esse é um pouco do contexto em que os
processo educativo de tal modo a possibilitar ao estudos sobre os saberes dos docentes chegam
aluno a apropriação da cultura historicamente a nosso país no início dos anos 1990, com o
elaborada pela humanidade. texto do canadense Maurice Tardif (Tardif;
Acredito ter deixado claro alguns dos Lessard; Lahaye, 1991) e as obras, por aqui já
principais aspectos que caracterizam a pedago- bastante conhecidas, do português António
gia histórico-crítica e o contexto em que esta Nóvoa (1991; 1992). Entre as contribuições des-
emerge nos anos 1980. Seu ideário pedagógi- sas teorias, sem dúvida, pelo que foi exposto
co marcou e marca profundamente a Educação anteriormente, está o fornecimento de instru-
brasileira e suas contribuições permitiram a mentos teórico-conceituais e metodológicos de
constituição de importantes estudos nessa área. investigação sobre os professores, procurando
Contudo, é preciso efetuar um balanço não captar o que fazem, como pensam, no que acre-
somente de seus avanços, mas também de seus ditam, como se relacionam com o trabalho,
limites — refiro-me aos apresentados, pelo me- quais suas histórias de vida e que aspectos con-
nos, naquele determinado momento histórico. tribuem para sua constituição profissional. Um
A esse respeito, Fiorentini, Souza Júnior e Melo importante resultado de tudo isso foi um aumen-
(1998) apontam que as discussões nesse período to da percepção da complexidade do processo
privilegiaram questões sociopolíticas amplas ao de formação do professor e de seu trabalho.
passo que aquilo que o professor pensava e acre- A questão é que cada vez mais ficou cla-
ditava era pouco valorizado, sendo sua prática vista ro que formar o professor e pensar o trabalho
apenas pelas negatividades que apresentava. docente não eram exclusivamente, embora con-
tinuem sendo fundamentais, um problema de
Na década de 80, a dimensão sociopolítica fornecimento de boas teorias e bons métodos
dominaria o discurso pedagógico, sobretudo de ensino. Cada vez mais ficou claro que o pro-
as relações/determinações sociopolíticas e ide- fessor ao agir em seu trabalho não o faz somen-
ológicas da prática pedagógica. [...] Os saberes te baseando-se em conhecimentos científicos
escolares, os saberes docentes tácitos ou im- ou, em outras palavras, que em seu pensamen-
plícitos e as crenças epistemológicas, como to não existem somente conteúdos de ciência.
destaca Llinares (1996), seriam muito pouco Os estudos que investigavam os saberes dos pro-
valorizadas e raramente problematizadas ou fessores pareciam ajudar justamente no alarga-
investigadas tanto pela pesquisa acadêmica mento dessa compreensão. Entretanto, várias
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pós-graduação pretendem gradativamente re- Ao longo de todo o artigo os argumentos de
tirar a formação de professores da formação Tardif vão se somando e encadeando-se a fim
científica e acadêmica própria do campo da de conduzir à conclusão sobre a irrelevância
educação, localizando-a em um novo ‘campo’ ou até mesmo sobre o caráter prejudicial do
de conhecimento: da ‘epistemologia da práti- saber científico/teórico/acadêmico tanto na
ca’, no campo das práticas educativas ou da formação de professores como na pesquisa
práxis. Vários estudos vêm firmando essa educacional. (p. 606)
perspectiva fortalecidos pelas reformas edu-
cativas das últimas décadas, em particular O referido autor acrescenta ainda, aproxi-
aqueles que ancoram, em nosso país, nas mando-se da posição de Arce (2001), a afirmação
contribuições de Nóvoa, Schön, Zeichner, de que essa concepção teórica é uma das expres-
Gauthier, Tardif e Perrenoud. (Freitas, 2002, sões da ideologia neoliberal e pós-moderna. En-
p.148, grifos do autor) fim, para Duarte, a perspectiva que valoriza a
epistemologia da prática concorre para precarizar
Outro autor que compreende como proble- a Educação brasileira e a formação docente.
mático o conceito de epistemologia da prática é Uma perspectiva crítica, mas distinta das
Duarte (2003). Em artigo publicado na revista anteriores, é a de Libâneo (2002). Preocupado com
Educação & Sociedade, ele discute as noções de uma possível mera oscilação do pensamento peda-
conhecimento tácito e conhecimento escolar nas gógico brasileiro provocada pela penetração das
teorizações de Schön. Sua tese é que a epistemo- teorias sobre o professor-reflexivo, Libâneo delineia
logia da prática favorece a secundarização do os sentidos do termo ‘reflexividade’ e examina um
papel da teoria e, conseqüentemente, do saber possível reducionismo na interpretação do fenôme-
acadêmico na formação do professor. no educativo. Para ele, o que nomeia a noção de
reflexividade é a capacidade racional dos seres
[...] afirmei que o escolanovismo e o cons- humanos, que permite a estes pensarem sobre
trutivismo seriam concepções negativas so- si próprios. Esse atributo humano pode, no
bre o ato de ensinar. Agora estendo essa entanto, ser visto pelo menos sob duas óticas
mesma afirmação aos estudos na linha da distintas: a reflexividade de cunho neoliberal e
‘epistemologia da prática’, do ‘professor a reflexividade de cunho crítico. Ambas as no-
reflexivo’ e da ‘pedagogia das competênci- ções, alerta o autor, possuem a mesma fonte teó-
as’, pois esses estudos negam duplamente rica — a modernidade e o iluminismo —, pois o que
o ato de ensinar, ou seja, a transmissão do está em jogo é o uso da razão para a intervenção
conhecimento escolar: negam que essa humana na sociedade, embora algumas concep-
seja a tarefa do professor e negam que essa ções do professor-reflexivo incorporem aspectos
seja tarefa dos formadores de professores. próximos das abordagens pós-modernas.
(p. 620, grifos do autor) Libâneo (2002) compreende que as noções
de reflexividade acima assinaladas partilham o
Em um exercício arriscado, Duarte (2003) mesmo contexto social: o mundo contemporâneo
generaliza os limites contidos nas proposições de em que há uma crescente imbricação entre ciên-
Schön para os demais autores que, em maior ou cia e técnica, em que há uma intelectualização do
menor medida, se vinculem aos estudos relativos processo de trabalho, reestruturação da produção
à epistemologia da prática7. Assim, por exemplo, e busca por profissionais mais flexíveis. Nesse
compreende que o canadense Maurice Tardif
desvaloriza o saber acadêmico na formação de 7. Diversos autores têm apontado limites na teoria desenvolvida por Donald
Schön, problematizando seu caráter individual, pragmático e de não-obser-
professores. Comentando um artigo de Tardif, vância dos contextos instituicionais e sociais. A esse respeito, sugiro consul-
Duarte (2000) assim se pronuncia: tar Contreras (2002), Campos e Pessoa (1998) e Pimenta (2002).
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posições contrárias. Enfim, o debate sobre o pro- sibilidade de generalização das limitações contidas
fessor e seus saberes parece ser bastante acirrado. na abordagem schöniana e no pragmatismo.
Ao proceder a um balanço do que disseram Tal questão fica clara quando se faz um
os autores acima sobre as perspectivas teóricas mero exercício de comparação. Tomando como
que valorizam os saberes dos professores, é pos- exemplo um outro autor, o também norte-ameri-
sível sinalizar que, no conjunto, não há consenso cano Kenneth Zeichner, é possível perceber o
entre eles. O dissenso se manifesta, pelo menos, em quanto existem aproximações e distanciamentos
três dimensões: a epistemológica, a política e a em relação a Schön. A perspectiva de prática-refle-
profissional. A primeira se refere aos embates no xiva desenvolvida por Zeichner (1983; 1998) pro-
campo da constituição do conceito de professor- cura ultrapassar a dimensão técnica de ensino,
reflexivo e de seus fundamentos filosóficos. A se- constituir um profissional que compreenda o con-
gunda diz respeito aos seus desdobramentos e texto social mais amplo e que seja compromissado
significado político. A terceira se exprime em suas com a mudança social em direção a uma sociedade
possíveis conseqüências para a profissão docen- mais justa e igualitária. Ademais, sua filiação teó-
te. A seguir, proponho o exercício de analisar cada rico-filosófica é o reconstrucionismo social8, o que
uma dessas dimensões, buscando delinear e discu- lhe confere o sentido de perceber o ensino como
tir algumas teses que lhes são subjacentes e que uma atividade crítica (Libâneo, 2002). Enfim, o que
podem ser vistas sob a forma de enunciados. estou procurando evidenciar é a impropriedade de
generalizações em um campo tão amplo e que re-
Examinando alguns enunciados úne autores tão diversos como o campo dos estu-
dos sobre os saberes dos professores.
Dimensão epistemológica Outro aspecto importante, ainda dentro
desse enunciado, é a atribuição do impulso rece-
Enunciado : os estudos que se orientam bido pelo conceito de reflexividade às influências
pela epistemologia da prática e seus correlatos da pós-modernidade. Um argumento, na verdade,
fundam-se na filosofia pragmática deweyana e duplamente curioso. Primeiro, porque uma das crí-
no ideário da pós-modernidade, sendo porta- ticas mais comuns à pós-modernidade reside em
dores de todas as suas limitações. sua suposta desvalorização da razão humana,
Constituindo-se em uma longa tradição ponto que a idéia de reflexividade marca posição
em alguns países, notadamente nos Estados Uni- oposta ao exprimir justamente a capacidade raci-
dos da América, a filosofia de matriz pragmáti- onal humana. A reflexividade é justamente esse
ca orienta vários autores no âmbito dos estudos atributo de indivíduos e grupos humanos de pen-
sobre os saberes da docência, principalmente nas sarem sobre si próprios (Libâneo, 2002). Em segun-
discussões sobre a prática-reflexiva. Entre esses do lugar, porque existe mais de um significado de
autores, talvez o mais proeminente seja Donald reflexividade. Esta pode ser entendida como um
Schön. Aqui, com base em Smyth (1992), aponto pensar sobre os próprios atos e conteúdos da
dois aspectos: primeiro, Schön legitimou tendên- minha mente, envolvendo introspecção e for-
cias e fomentou estudos na linha da prática-refle- mando orientações teóricas para a prática; pode
xiva, mas não foi seu precursor, pois esta já esta- ser entendida, também, como uma relação direta
va presente nas teorizações de Dewey; segundo, entre minha capacidade de reflexão e as situa-
embora Schön tenha tido papel importante no ções práticas, não sendo introspecção, mas algo
impulso que tomaram os estudos sobre a reflexi- imanente à minha ação e constituído em situa-
vidade na docência, essa perspectiva teórica aca- ções que ensejem experiência (é o caso do
bou tomando muitas direções e hoje segue por di-
8. O problema da qualidade do debate no campo da Educação vem sendo
ferentes caminhos. Assim, vai se desvelando algo apontado por autores de diferentes tradições teóricas, como Becker (2003)
importante para o que nos interessa aqui: a impos- e Guiraldelli Júnior (2001).
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de trabalho. No entanto, é preciso introduzir gados à questão pedagógica, mas também em
nessa análise a lógica dialética. aspectos referentes à dimensão política e
É mesmo necessário compreender as re- epistemológica. Questões como a da raciona-
formas educacionais e o ideário da prática refle- lidade orientadora dos cursos, o currículo de
xiva do professor no contexto das profundas formação, a relação universidade-escola, a re-
transformações do capitalismo, mas isso não lação entre professores universitários e profes-
pode conduzir a um cenário determinista (Smyth, sores das escolas, as condições objetivas de tra-
1992). Devem-se evitar interpretações simplistas, balho do professor, a necessidade de formação
como as que relacionam qualquer modificação contínua em serviço, a pesquisa docente na
no processo de trabalho com o aumento da ti- escola etc. passaram ou voltaram a partir de
rania do trabalho capitalista9. É necessário que novos aportes a ser objeto de problematização.
sejamos mais cuidadosos, pois a maneira ativa Algumas dessas questões resultaram inclusive
como as pessoas agem muitas vezes desmente em propostas concretas de ação e se converte-
essas interpretações muito rígidas: as pessoas ram em inovadoras estratégias de intervenção
podem construir práticas contra-hegemônicas. pedagógica e formação docente — a título de
Assim, junto com Libâneo (2002), é possível exemplo, é possível citar o trabalho de Bracht
compreender que a prática reflexiva de cunho (2003) e sua equipe na Universidade Federal do
crítico possui o mesmo contexto de origem da Espírito Santo, onde desenvolveram um curso
prática reflexiva de cunho neoliberal, embora de especialização tendo como eixo central a
ambas sejam fundamentalmente diferentes. pesquisa-ação.
Faz-se necessário assinalar que tudo isso
Dimensão profissional não ocorreu ou ocorre sem contradições. Mui-
to do que foi produzido no campo pelos estu-
Enunciado: as teorias do saber docente diosos dessas questões foi apropriado também
podem contribuir com o desenvolvimento da pelo discurso neoliberal de governos interessa-
profissionalidade do professor e para o avanço dos em implementar reformas educacionais em
das condições de oferecimento da educação diversos países e, também, no Brasil. Como diz
escolar. Smyth (1992), o conceito de prática reflexiva
Os estudos sobre os saberes dos profes- tornou-se crescentemente institucionalizado.
sores e o conjunto de conceitos que foram sen- Contudo, de um modo geral, é possível
do construídos por autores que se aproximavam dizer que o campo de estudos dos saberes do-
dessa perspectiva trouxeram, ao que parece, centes, com suas diversas abordagens e auto-
contribuições importantes para a Educação, res, permitiu compreender melhor o desenvol-
particularmente para o campo da formação de vimento profissional docente10. Esse conceito
professores. O professor-reflexivo, o professor- aponta para a não dissociação da formação
pesquisador, a epistemologia da prática, o pro- inicial, formação contínua e condições objeti-
cesso de constituição dos saberes etc. não po- vas de trabalho nas discussões relativas aos
diam ser pensados em abstrato. Logo, a crítica docentes, seu trabalho e sua formação. Portan-
à racionalidade técnica e ao sentido do proces- to, desde já, afirmo a importância do campo de
so formativo presentes em muitos cursos de estudos que investiga os saberes docentes para
formação profissional passou a ser questiona- o processo de construção da profissionalidade
da, bem como foi colocada em pauta as con-
9. As discussões sobre essa questão no debate educacional brasileiro
dições concretas de exercício profissional. Para parecem ter sofrido significativa influência das teses bravermanianas sobre
a formação de professores, isso representou o a progressiva degradação do trabalho sob o capitalismo. A sociologia do
trabalho, todavia, produziu outras perspectivas mais matizadas. Uma aná-
entendimento de que a formação inicial e con- lise dessa questão pode ser vista em Ferretti (2004).
tínua precisava avançar em vários aspectos li- 10. A esse respeito consultar Almeida (1999).
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Freud só é válida às margens do Rio Danúbio jogar fora as ferramentas com as quais operamos
[...]” (p. 144). Contudo, no campo educativo, até então, mas observar criticamente em que
isso não significa e não pode significar uma medida outras ferramentas podem nos ser úteis.
adesão acrítica. A tradição teórica na Educação
brasileira possui sua própria trajetória, possui
11. O problema da qualidade do debate no campo da Educação vem sendo
história, com toda a força que encerra esse apontado por autores de diferentes tradições teóricas, como Becker (2003)
conceito. Disso decorre que não precisamos e Guiraldelli Júnior (2001).
Referências bibliográficas
ARCE, A. Compre o kit neoliberal para a educação infantil e ganhe grátis os dez passos para se tornar um professor reflexivo.
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Recebido em 04.04.06
Aprovado em 07.08.06
Wanderson Ferreira Alves é professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás, doutorando pela
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Formação do
Educador (GEPEFE-USP)