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OS MAYORUNA E O EXÉRCITO BRASILEIRO

Beatriz de Almeida Matos


Antropóloga do Centro de Trabalho Indigenista

Mayoruna, mayuruna, mangeroma são termos usados desde o século XVII


pelos primeiros cronistas espanhóis que chegaram na região do rio Javari, em sua
maioria missionários jesuítas, para designar povos indígenas que habitavam as
cabeceiras dos tributários do alto curso deste rio. Esses grupos são descritos
nessa época como ferozes, de tez clara e barbados (Coutinho, 1993). Em que pese
o imaginário dos colonizadores, muito se pode aferir desses relatos, principalmente
que provavelmente seriam povos que faziam parte de um conjunto de falantes de
línguas pano, com traços de organização social e complexos mitológicos
semelhantes (Erikson, 1992).
Não há uma continuidade histórica segura entre esses mayorunas dos
cronistas e o povo indígena atualmente designado pelo Estado brasileiro como
Mayoruna. O que sabemos é que o rio Javari e as cabeceiras de seus formadores,
tanto do lado direito (no Brasil) e o esquerdo (no Peru) é um território antigo de
ocupação dos Mayoruna “de hoje” 1 .
Segundo dados históricos recolhidos e analizados por Romanoff (1984),
Coutinho (1993) e Fleck (2003), e de depoimentos trabalhados no I Módulo do
Curso Complementar de Formação de Professores Mayoruna (Matos, 2005) esse
povo habita a região desde pelo menos o início do século XX, data dos primeiros
conflitos com os não-índios que chegaram nas cabeceiras desses rios para
explorar o caucho. Antes do contato pacífico com os não-índios, eles se mudavam
com mais freqüência, alternando a moradia segundo estratégias de aproveitamento
dos recursos, ciclos rituais, conflitos com outros povos, etc (Romanoff, 1984).
Nesses conflitos eram comuns os raptos de mulheres, que eram incorporadas às
famílias através de casamento.
Na década de 1930 começa a se desenvolver na bacia do Javari a atividade
madeireira, nos mesmos moldes de aviamento que utilizava os barracões
seringueiros. A partir dessa data, a penetração madereira nas cabeceiras do
Pardo, Curuçá, Negro e Galvez irá se deparar com ataques de índios, chamados
nos relatos de Mayorunas e Mayas. Há registros de mortes dos madeireiros e
capturas de mulheres (Coutinho, 1993).
O bom dessa exploração madeireira, na década de 1950, coincide e com a
criação, nas margens do rio Javari, do pelotão de fronteira peruano Angamos

1
Os Mayoruna têm na língua indígena, como o que seria mais próximo de uma
autodenominação, a palavra Matses, que pode ser traduzida por exemplo por “gente”. Não
se trata necessariamente de um etnômio. No Peru, no entanto,o mesmo povo é designado
Matses, ou seja, lá se utiliza essa palavra como etnômio.

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(1949), e dos pelotões de fornteira brasileiros Estirão do Equador (1958), e
Palmeiras do Javari (data??). Nessa época há documentos que comprovam a
participação do exército peruano e brasileiro de correrias punitivas contra os
Mayorunas, comandadas por tenentes e acompanhadas por civis que tiveram
parentes mortos pelos índios. (Coutinho, 1993).
Em 1958 houve retaliação ao ataque aos madeireiros realizado pelos
Mayoruna no igarapé Sacudido em 31/08/58, onde 3 civis e 59 militares, que
encontraram e “derrotaram” 3 malocas indígenas, uma na região entre os igarapés
Flecheira, e Santana, e duas no rio Rio Negro. Em 1960 tropas do exército
intervêem na região, destruindo malocas. Em 1963 é realizada uma expedição
punitiva do exército brasileiro contra os Mayoruna, organizada pelo então
comandante do Grupamento de Elementos de Fronteira (GEF), com sede em
Manaus. Em 1964 ocorre o bombardeio do território indígena no Galvez por força
aérea peruana (Coutinho, 1993).
Coadunando essas informações históricas com depoimentos recolhidos
duranteo curso citado acima, sabemos que esses ataques foram realmente
sofridos pelos hoje chamados Matses ou Mayorunas, já que eles nos relataram
bonbardeios e ataques dos exércitos peruanos e brasileiros em suas malocas.
Em 1969 missionários norte-americanos do Summer Institute of Linguistics
(SIL) se instalam entre os Mayoruna (Matses) do Peru, numa comunidade
localizada no rio Galvez. Essa é a data que os índios citam para dizer desde
quando decidiram parar com os conflitos. Uma parte desse povo, que não
concordou viver sob a influência dos missionários, se mudou para o médio curso
do igarapé Lobo, tributário da margem direita do alto Javari.
Atualmente a população dos Mayoruna no Peru é de 1.314 indígenas
vivendo em 14 comunidades nos rios Galvez, Choba e Javari (Fleck, 2003). No
Brasil, segundo os censos do DSEI Javari, são 943 pessoas, vivendo em 8
comunidades, no médio Javari, alto Javari-Jaquirana, igarapé Lobo, rio Curuçá e
Pardo.
Com o processo de demarcação da Terra Indígena essa relação com o
exército começa a mudar. A participação dos Mayoruna que vivem no lado
brasileiro da fronteira na realização de expedições de reconhecimento e
delimitação da T.I., finaciadas pelo PPTAL, é um marco dessa mudança.
Hoje os Mayoruna desempenham um papel de cooperação com o exército
brasileiro na vigilância da fronteira. Eles organizam expedições de fiscalização do
território indígena por sua própria conta, com barcos, motores e gasolina da própria
comunidade. Waki (apelidado Caiçuma), liderança da aldeia Lobo,é um dos
grandes responsáveis por esse plano de vigilância, e ele e sua família mantêem
casas de apoio com roças na cabeceira do Batã e em outros pontos estratégicos.
Em meados de 2005 essa casa foi queimada, acredita ele, por invasores.
Apresentamos aqui na íntegra uma entrevista realizada com um Mayoruna que
esteve presente na última grande apreensão de madeira extraída ilegalmente da
terra indígena, no rio Javari, em janeiro de 2003, feita pelos próprios índios:

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Entrevista com André Mayoruna, vice coordenador do CIVAJA, no dia 26 de
outubro de 2005 no escritório do CTI, em Tabatinga, sobre a exploração da
madeira na fronteira.

Bom, eu, em janeiro de 2003, a gente fez a fiscalização entre 32 pessoas no alto
Jaquirana, aonde nós encontramos pra mais de 2000 toras de cedro e aguano
(mogno) que a gente prendeu. Nós subindo no alto rio Jaquirana, a gente pegou
vários invasores, peruanos, brasileiros e nós fomos até a última placa. Eu, Beto
(Eriverto Vargas, Marubo), que era responsável do PPTAL, e o Jaste que era chefe
de posto da FUNAI, e a gente como Vice-Coordenador do CIVAJA, eu
acomapanhei esse processo. Então o que que nós achamos? Quando nós
chegamos no Batã, a gente encontrou a primeira jangada que vinha descendo, 140
toras de madeira. Aí nosso pessoal indígena tomaram dos peruanos, nós
atracamos no rio. Aí os peruanos queriam tomar, mas nós deixamos mais de 15
pessoas encima da madeira, guardando, até que nós viéssemos, outra equipe
viesse até a jangada. Então nós seguimos a nossa viagem, até o rio Batã,
achamos outra jangada, prendemos essa madeira, e deixamos outro bucado, mais
5 pessoas, cuidando dessa madeira, e nós fomos até a última placa. Encontramos
várias madeiras dentro do igarapé, e a gente prendeu essa... nós expulsamos os
peruanos.
Após isso nós viemos, a gente prendeu a madeira, 140 toras. Tava eu e o Jaste,
chefe de posto, na comunidade 31. Era a última madeira que vinha descendo.
- Peruano ou brasileiro?
- Peruano.
- Mas é peruano, mestiço, branco, ou é Matses?
- Peruano mestiço. Aí a gente tomou, né? O que que aconteceu? Aí aconteceram
dos peruanos, o patrão acionou os policiais militares peruanos pra que eles
pudessem passar as madeiras na comunidade. Só que nós não deixamos passar,
nós prendemos mesmo. Os quatro policiais peruanos tavam armados, e eles não
queriam que a gente subisse encima da madeira. Mas nós, com terçado, com
machado, com flecha, nós conseguimos subir encima da madeira. Aí o peruano
disse que só com rajada matava nós. Nós não tivemos medo, naquela hora nós
éramos a polícia federal. E entre 60 Matses subimos encima da madeira, e nós
cortamos o cabo do que vinha trazendo, o rebocador, e nós conseguimos atracar
do lado do Brasil, a madeira, 140 toras.
- Quem estava querendo atirar em vocês?
- Era o militar peruano, peruano mesmo. Então a gente prendeu. Depois disso aí
nós viemos embora pra Atalaia, e acionamos a FUNAI, para que eles pudessem ir
até lá na aldeia, eles foram depois, aí foram junto com Exército, Polícia Federal,
FUNAI, próprio Gilmar (Jóia, então administrador da FUNAI de Atalaia do Norte)
tava lá, aí eu não fui, eu fiquei em Atalaia. Então aí por lá eles fizeram um acordo
com a comunidade entre o Exército, fizeram um acordo, dizendo que a madeira ia
ser trazida para Tabatinga, ia ser serrada. Metade era do exército, metade era da
comunidade. Então até hoje essa madeira não retornou nas nossas comunidades.

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Eles falavam que ia ser beneficiado Cruzeirinho, Soles, Trinta e Um e o Lobo,
fazendo escola. E não foram feitos hoje. Até hoje nosso pessoal reclama essa
madeira.
- E agora, André, hoje em dia, como é que está essa situação?
- Bom, hoje, agora em 2005, os peruanos não estão trabalhando, agora tá parado.
Nós impedimos mesmo para que eles não passassem por cima, nem passa.
- E só mais uma coisa, no Batã, teve a notícia que queimaram a casa de apoio lá,
como é que... você sabe o que aconteceu?
- Bom, acho que próprio invasores que estavam passando, eles tocaram fogo. É
verdade.
- O pessoal foi lá ver, o...
- O próprio Caiçuma, cacique da comunidade, ele sabe que foi tocado fogo, não
existe mais casa de apoio. A gente tem que reconstruir de novo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COUTINHO, Walter. Brancos e Barbudos na Amazônia: os Mayuruna na História.


Dissertação de Mestrado. Universidade Nacional de Brasília, 1993.
ERIKSON, Philipe. “Uma silgular pluralidade: a etnohistória pano”. In: CUNHA,
Maneula Carneiro. História dos Índios no Brasil. Companhia das Letras: São Paulo,
1992.
FLECK, David. A Grammar of Matses. Ph. D. Dissertation in Phylosophy,Rice
University, Huston, 2003.
MATOS, Beatriz. Relatório: I Módulo do Curso Complementar de Formação de
Professores Mayuruna. Tabatinga, 2005.
ROMANOFF, Steven A. Matses Adaptation in the Peruvian Amazon. Ph. D.
Dissertation in Phylosophy, Columbia University, 1984.

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