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e-scrita ISSN 2177-6288

V. 5 – 2014.1 – Fabiana Quatrin Piccinin; Kassia Nobre dos Santos

ELIANE BRUM E AS PERSONAGENS COMPLEXAS DA OBRA A


VIDA QUE NINGUÉM VÊ

Fabiana Quatrin Piccinin1


Kassia Nobre dos Santos2

RESUMO: Este artigo discute as apropriações da literatura na obra A vida que ninguém
vê (2006) da jornalista Eliane Brum. As reportagens da autora são exemplos de como a narrativa
jornalística propõe desvendar o humano por meio da observação de suas ações, intenções e
percepções. Assim, a pesquisa utiliza o estudo sobre a personagem dos teóricos Antônio
Candido (1998) e E. M. Forster (1974) para mostrar que as fontes jornalísticas de Eliane Brum
comportam-se como entes ficcionais ao tornarem-se protagonistas e, ao mesmo tempo,
representarem a complexidade da natureza humana.

Palavras-chave: jornalismo; literatura; jornalismo humanizado.

Eliane Brum and the complex characters in A vida que ninguém vê

ABSTRACT: The reports written by journalist Eliane Brum are examples of how the narrative
journalism tries to unveil the human being by observation of its actions, intentions and
perceptions. The present work discusses the appropriation of literature in the book A vida que
ninguém vê (The Life Nobody Sees) published in 2006 by Eliane Brum. The works about the
character published by Antonio Candido (1998) and E. M. Forster (1974) were cited to suggest
that the sources used by Eliane Brum behave as fictional entities when become protagonists and,
at the same time, they represent the complexity of human nature.

Keywords: narrative journalism, literary journalism, humanized journalism literature.

REPORTAGEM: A NARRATIVA HUMANIZADA

Aquilo que se narra está intimamente ligado à personagem devido ao fato de a


narrativa literária tratar das ações, intenções e percepções humanas. Assim, na

1
Professora Doutora do Programa de Mestrado em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc).
Brasil.
2
Mestra em Letras, Universidade de Santa Cruz do Sul. kassianobre21.kn@gmail.com

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construção de uma narrativa, a presença das personagens é fundamental em virtude de


os leitores identificarem-se com elas a partir da representação do elenco que,
inconscientemente, todos carregam dentro de si.
O tensionamento apresentado neste artigo3 se dá a partir de semelhante ação que
acontece quando são observados os indivíduos descritos nas narrativas jornalísticas.
Para tanto, o presente trabalho analisa reportagens do livro A vida que ninguém vê
(2006) da jornalista Eliane Brum, como exemplos de narrativas que, assim como na
literatura, são capazes de desvendar o humano.
O pressuposto de que as fontes comportam-se como personagens é observado a
partir dos preceitos literários apontados por Antônio Candido (1998) e E. M. Forster
(1974). O posicionamento de Candido (1998) mostra que a personagem causa o “efeito
do real” na narrativa ao provocar o mecanismo de identificação e projeção do leitor no
texto. Já a análise de Forster destaca os níveis de complexificação da personagem
através da construção de figuras “planas” ou “redondas”. Segundo o autor, personagens
planas e redondas se diferenciam devido aos seus comportamentos no desenrolar da
narrativa. Ou seja, as planas costumam ter atitudes previsíveis e não surpreendem o
leitor. Ao contrário das redondas que são dinâmicas e suas ações se modificam ao longo
da trama.
Assim, as perspectivas dos teóricos da literatura podem ser identificadas em
narrativas jornalísticas, principalmente, quando observada a construção de grandes
reportagens que se utilizam de recursos da literatura. Isto porque, segundo Sodré e
Ferrari (1986), este tipo de texto assumiria a perspectiva de representação da figura
humana ao apresentar o foco no “quem”, entre as perguntas clássicas do jornalismo:
quem, o quê, como, quando, onde e por quê, evidenciando o seu essencial que é o
interesse humano.
Eliane Brum bem representou esta evidência ao relatar mais do que
acontecimentos, focando nas singularidades de histórias de vida de pessoas nas

3
Este artigo é um excerto da dissertação que discutiu as apropriações de características da literatura nas
reportagens de Eliane Brum. Esta foi realizada a partir de uma pesquisa bibliográfica que contemplou a
investigação da narrativa literária com foco na personagem e o estudo da narrativa jornalística priorizando
a fonte para posterior identificação e análise de marcas textuais que evidenciassem a transformação das
fontes em personagem na produção da jornalista.

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reportagens da obra em questão. Ou seja, de fato, “os textos de Eliane Brum revelam um
fazer que prioriza a humanização, que significa trazer o ser humano para o foco dos
acontecimentos, dando voz aos personagens, mostrando sua índole, suas angústias, os
sentimentos” (FONSECA; SIMÕES, 2011, p. 11).
Com o enfoque nas pessoas e não em acontecimentos, além de informar, a
reportagem assume para si a possibilidade de fazer refletir sobre temas humanos, algo já
evidente na narrativa literária que utiliza a personagem para isso. E que se manifesta,
como afirma Candido (1998, p. 40), na relação entre o ser vivo e o ser fictício através da
personagem, que é a concretização deste. A reflexão do leitor para os temas da narrativa
literária acontece porque, por meio da personagem (Candido, 1998, p. 36) são acionados
mecanismos de identificação, projeção e transferência com os quais ele contempla a
obra e vive, ao mesmo tempo, as possibilidades humanas que a sua vida dificilmente lhe
permite viver. Por meio da literatura, portanto, o leitor descobre algo sobre ele mesmo.
E esta é a razão pela qual na ficção sempre há traços da personagem que se encaixam no
modo de ser do leitor, provocando a identificação dele com a leitura que tem em mãos.
Na perspectiva Aristotélica (1992), a identificação pode ser classificada como a
verossimilhança interna de uma obra. Na literatura, é humanizando a personagem, a
qual tem a possibilidade de se tornar verossímil através do texto do autor e, assim,
aproximar-se do real. O ente ficcional recebe caracterizações humanas para provocar
nele um sentimento de identificação. Neste sentido, a estética realista, por exemplo, foi
um dos momentos em que o autor de ficção mais investiu em personagens que
representavam ainda mais o ser humano por, frequentemente, não ser superior à média
humana nem por nascimento nem por destino, nem superior por rebeldia ou por
complexidade psicológica, mas por ser um homem qualquer, que carrega o peso das
misérias e das injustiças sociais (D’ONOFRIO, 1995, p. 95). Dessa forma, o escritor
realista pôde apresentar as mazelas da vida pública e os contrastes da vida íntima.
No jornalismo, o autor também provoca o efeito de verossimilhança ao
humanizar sua narrativa, que pela sua natureza já é de compromisso com o real. É o que
lembram Sodré e Ferrari (1986, p. 107), ao afirmarem que “não é bastante ser
verdadeira; reportagem tem que parecer verdadeira – ser verossímil. Isso exige certa
técnica na dosagem da seleção e combinação de elementos”.

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TODOS NÓS SOMOS UMA FRIDA E UMA DONA MARIA

Eliane Brum se tornou a jornalista mais premiada do Brasil4, e alguns dos


adjetivos a ela referidos dizem respeito à qualidade textual, à preocupação estética com
que escreve suas narrativas do cotidiano e à criação de uma narrativa humana, que fala
sobre pessoas, e não sobre fatos. Brum trabalhou durante 11 anos como repórter do
jornal Zero Hora, em Porto Alegre, e dez como repórter especial da Revista Época, em
São Paulo. Publicou três livros-reportagens: Coluna Prestes: o avesso da lenda (1994);
A vida que ninguém vê (2006) e O olho da rua (2008), além do primeiro romance, Uma
duas (2011).

As vinte e três reportagens5 reunidas na obra analisada foram, inicialmente,


publicadas aos sábados durante o ano de 1999 na coluna “A vida que ninguém vê” do
jornal gaúcho. Todas as histórias foram ambientadas no estado do Rio Grande do Sul. O
objetivo do espaço era apresentar textos de pessoas comuns e situações ordinárias. Após
a coluna, as reportagens foram publicadas no formato livro em 2006. A obra venceu o
Prêmio Jabuti de 2007, como melhor livro-reportagem.
Nos textos de Eliane Brum, as fontes são humanizadas e, por isso, as suas
histórias de vida aproximam ainda mais o leitor pelo mecanismo de identificação, citado
por Candido (1998). Esta característica foi evidenciada nas reportagens de “Frida...” e
“Dona Maria tem olhos brilhantes”, que serão analisadas a seguir. A reportagem
“Frida...” conta a história de Nilsa Lydia Hartmann, que sofre de esquizofrenia, e que,
após ser costureira, mãe de seis filhos e casar-se com um marceneiro, decidiu criar a
4
Pesquisa aponta Eliane Brum como a jornalista mais premiada do Brasil. Disponível em:
<http://www.jornalistasecia.com.br/edicoes/jornalistasecia826.pdf?__akacao=692220&__akcnt=seqTeste
&__akvkey=7ce3&utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=Jornalistas%26Cia+--
+Edi%E7%E3o+826+(assinantes)>. Acesso em: 07 jan. 2013.
5
Das vinte e três reportagens, a dissertação analisou doze, o que representa a metade da produção.
Constata-se que todas as reportagens do livro poderiam ser utilizadas na pesquisa para compor o perfil
desejado, cujo objetivo é identificar marcas textuais da literatura que demonstram a fonte adquirindo pela
narrativa o status de personagem. Entretanto, para fins de operacionalização do trabalho, escolheram-se
doze reportagens que garantissem a amostragem e que evidenciassem melhor os indicadores textuais.
Neste artigo, foram selecionadas quatro reportagens “Frida...”, “Dona Maria tem olhos brilhantes”, “O
Sapo” e “O velhinho dos comerciais”, porque elas evidenciaram o efeito do real e a complexificação da
personagem na narrativa, temas abordados no presente trabalho.

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Frida e ter como nova moradia a Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Assim, Frida
se torna a cidadã mais assídua do local, e o seu trabalho é acompanhar bem de perto as
atividades dos políticos. Porém, sempre que a protagonista percebe que os vereadores
não cumprem com seus deveres públicos, ela não poupa crítica aos representantes do
poder.
No texto de Brum, Frida é apresentada como um exemplo de cidadã que
participa com assiduidade às sessões da Câmara e acompanha as ações dos vereadores.
No caso de Frida, de uma forma bem particular: “Frida entendeu que o Legislativo é a
sua casa. Interpretou o conceito de cidadania de uma forma tão radical que, mais de uma
vez, foram avistadas suas calcinhas recém-lavadas estendidas sobre as folhagens do
jardim” (BRUM, 2006, p. 91).
A situação da narrativa é descrita de forma leve, sem pré-julgamentos e
estranhezas. Além de um ponto de vista crítico do narrador em relação à opinião dos
vereadores sobre a protagonista: “Sempre que alguém não se encaixa no mundo da
maioria, é logo chamado de maluco. É o que acontece com Frida. É o que dizem dela
quando grita lá do plenário” (BRUM, 2006, p. 90). O mecanismo de identificação do
leitor com a narrativa é acionado quando o narrador afirma que todos têm o sentimento
de indignação diante do descaso com ações de interesse público. Então, pensa-se igual à
Frida, porém só se pensa:

Frida olha para os vereadores da Câmara de Porto Alegre. E não


acredita no que vê. Nem no que ouve. Contrai o olho doente, caído, e
aperta as bochechas com as mãos. Grita, com forte sotaque alemão: -
Não aguento mais. Mas que coisa horrível! Só fazem projetos que não
prestam. [...] Frida é assim. Aos 68 anos, diz o que muitos apenas
pensam (BRUM, 2006, p. 90).

Brum mostra, em sua narrativa, que havendo a identificação com a protagonista,


o comportamento “estranho” seria, então, dos vereadores que não cumprem com o
esperado pela sociedade. Durante toda a narrativa, há marcas deste posicionamento
crítico do narrador: “Porque uma sessão da Câmara, com exceção dos projetos
polêmicos, é um sono só. Tem sempre alguém discursando para ninguém, uma turma

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conversando de frente para a tribuna [...] e outra conversando de costas para a tribuna.
Prestando atenção, só a Frida” (BRUM, 2006, p. 90).
Mais adiante, o narrador afirma: “Frida cumpre expediente. Ela gostaria de ser
vereadora. [...] prepara um projeto de lei para doar malotes de dinheiro aos amigos.
Ninguém imagina onde Frida viu algo parecido” (BRUM, 2006, p. 91).
Já na reportagem “Dona Maria tem olhos brilhantes”, a história da protagonista
evoca no leitor os sentimentos universais de determinação e superação para a realização
de objetivos que parecem inacessíveis. Para o narrador, a adjetivação “olhos brilhantes”
é o que diferencia a protagonista das outras pessoas que não buscam realizar os seus
sonhos:

Você já reparou nos olhos das pessoas na rua? Muitas têm pupilas
opacas [...] esculpem a imagem de uma infelicidade crônica, venenosa
e que mata devagar. Têm olhos de seca, olhos assassinos. [...] Quando
aparece alguém de olhos brilhantes, dá vontade de parar, pedir licença
e intimar: o que você está escondendo atrás dessas pestanas? [...] Dona
Maria tem olhos brilhantes porque corre atrás do seu [sonho]. E desde
então, deu para ficar com os olhos em facho por aí, alumiando o
caminho (BRUM, 2006, p. 132).

O sonho de Maria Alícia Freitas, a dona Maria, seria, aos 55 anos de idade,
aprender a ler e escrever. Durante a infância, ela teve a primeira dificuldade: “Letras
distantes como a lua, porque a mãe garantiu que Maria era burra demais para alcançá-la.
Aos nove anos, com o peito estourando, Maria jurou: meus filhos vão estudar” (BRUM,
2006, p. 132). Dona Maria teve nove filhos e garantiu para eles o estudo antes mesmo
de realizar o seu desejo de estudar. Quando eles estavam criados, dona Maria
abandonou o segundo marido para ir atrás do seu objetivo:

Um belo dia, pouco mais de um ano atrás, ela cravou o olho no amado
e sentenciou: Eu vou pra perto da capital procurar as letras. Se tu
quiser vir comigo, tu vem porque eu te amo. Se não quiser, eu vou
sozinha. Meu sonho é maior que tudo. O amado ficou. [...] De segunda
a quinta-feira, depois de trabalhar como doméstica e babá, dona Maria
pega a trilha da escola ao anoitecer. Encara 45 minutos de caminhada
lomba acima, porque dinheiro para o ônibus não tem. Vai para dentro
do seu sonho. Vai com os olhos alumiando o caminho (BRUM, 2006,
pp. 133-134).

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Além da temática universal, os recursos literários utilizados na reportagem


aproximam ainda mais o leitor da narrativa, já que, assim, são acionados os mecanismos
de identificação indicados por Candido (1998). Como a presença de caracterização
moral da fonte: “Dona Maria, que ainda nem era dona, era pobre. De bens, não de
espírito” (BRUM, 2006, p. 132). O uso de diálogos entre a repórter e a fonte também é
utilizado para complementar o entendimento do leitor sobre a pessoa da narrativa. No
caso de Dona Maria, a transcrição de sua fala na reportagem revelou a beleza e a
simplicidade [caracterizações morais] da protagonista:

E afinal, o que é ler? [Brum pergunta] É assim. Eu achava que letra


era letra. Era como uma toalha de mesa. Não tinha vida. Esses dias
tava no colégio, olhei e descobri que as letras têm vida. Eu leio e elas
conversam comigo, me dizem o que eu preciso. Contam coisa que eu
nem imaginava. Tipo “M” de Maria, né? É só um “M”, mas quando
junta tudo, a Maria fala comigo. A Maria fica viva (BRUM, 2006, p.
136).

Além de o diálogo representar a fala transcrita da fonte, o que provoca no leitor


a sensação de estar presente na cena descrita. Por meio das falas da protagonista, o texto
de Brum transmite uma maior veracidade da narrativa e, assim, o processo de
identificação do leitor se concretiza, num processo similar ao que acontece na literatura.

UMA REPRESENTATIVIDADE COMPLEXA

Vê-se, a partir das personagens de Brum, que, ao criar uma personagem, o autor
de ficção tenta se aproximar da complexidade humana ao descrever características que
constituem o modo de ser do seu ente de ficção. Forster (1974) analisou, justamente,
este comportamento das personagens e as classificou como “plana” ou “redonda”,
conforme a sua atuação na história narrada. Segundo o autor, as personagens planas não
evoluem na narrativa, ou seja, seu comportamento não sofre mudanças significativas
para o desenrolar da história. Suas atitudes e\ou pensamentos não têm a capacidade de
surpreender o leitor. Já as personagens classificadas como redondas são definidas por
sua complexidade e possuem a capacidade de surpreender o leitor porque são dinâmicas
e não são previsíveis.

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Coimbra (1993) utilizou-se da classificação de Forster para analisar as figuras


humanas presentes em reportagens. O autor identificou marcas textuais na narrativa
jornalística que evidenciassem a densidade psicológica da fonte. Assim, a figura plana
seria aquela construída em torno de uma única ideia ou qualidade. Isto é, com pouco
aprofundamento psicológico. “Depois de caracterizada pela primeira vez, ela sempre
reincide nos mesmos gestos e comportamentos, repete tiques verbais, diz as mesmas
coisas. Enfim, torna-se pouco densa, previsível” (COIMBRA, 1993, p. 73). Para a
construção de uma fonte plana, o jornalista se utiliza de uma única visão de seu
entrevistado, que pode ser, por exemplo, o lado pitoresco, inusitado.
Já para a construção da figura redonda nos textos jornalísticos, segundo
Coimbra (1993), o jornalista elabora uma personagem bem marcada, dinâmica e
multifacetada, garantindo uma maior densidade. “Um dos principais fatores de sua
configuração [...] é a revelação gradual dos seus traumas, vacilações e obsessões”
(COIMBRA, 1993, p. 73).
Assim, para a representação das nuanças complexas da figura humana e, assim, a
compreensão de seus conceitos, seus valores, comportamentos e história de vida, torna-
se necessária a construção ao molde da personagem redonda. É o que acontece com as
fontes das reportagens de Eliane Brum na obra A vida que ninguém vê, que não são
reduzidas em apenas uma característica, são, portanto, complexas.

A COMPLEXIDADE DE SAPO E DO VELHINHO DOS COMERCIAIS

Ao ler a reportagem “O Sapo”, o leitor não terá opiniões definitivas sobre o


pedinte das ruas de Porto Alegre. Esta foi a intenção de Brum ao descrever diferentes
facetas de uma mesma pessoa, deixando, assim, que o leitor escolha qual deva construir.
Sapo, na verdade, se chama Alverindo e é um pedinte da Rua da Praia, no centro de
Porto Alegre, há 30 anos. O nome Sapo deve-se à ausência de forças nas pernas, que o
faz rastejar pelo chão. A narrativa é construída através de uma conversa entre a repórter
e o pedinte. “E há mais de uma década nos cruzávamos na Rua da Praia. Minha cabeça
no alto, a dele no rés-do-chão. [...] Só dias atrás tive a coragem de me agachar e nivelar
nossos olhares” (BRUM, 2006, p. 60).

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Construir textos “abertos” à interpretação, sem formatar um julgamento para o


leitor é uma característica de Eliane Brum, como afirma Ijuim:

Quem acompanha o trabalho de Eliane Brum percebe sua postura


sempre respeitosa diante das fontes e do público. Esta lhe tem
assegurado tratar de qualquer tema sem prejulgamentos, sem
preconceitos, sem correr qualquer risco de estereotipar ou cair em
generalizações apressadas. Em seu percurso no jornalismo transparece
suas marcas de visão de mundo – abertura de mente e de espírito para
compreender a complexidade da vida (IJUIM, 2012, p. 133).

Compreender a complexidade da vida e a de suas fontes é o que faz um simples


pedinte, como Sapo, transformar-se em um protagonista de uma narrativa. No texto,
Sapo ultrapassa o conceito de pedinte utilizado pelo senso comum e, consequentemente,
pelo jornalismo. Assim, ele é apresentado como uma pessoa que trabalha, sustenta uma
família e ainda reflete sobre temas existenciais: “O mundo é [bom], as pessoas é que
não prestam” (BRUM, 2006, p. 63).
Para isso, Eliane evita reduzir suas fontes a padrões. Tenta entendê-las para,
enfim, interpretá-las. Porém, suas interpretações não são fechadas e definidas para
permitir que o leitor interprete também, como acontece na literatura e nas personagens
redondas de Forster (1974). Brum comenta em uma entrevista6 sobre a possibilidade de
uma leitura ampla no jornalismo:

Tu tiveste o privilégio de ir para um mundo que ele [leitor] não foi,


seja esse mundo uma pessoa ou uma realidade. Informação, eu
considero textura, cheiro, gesto, silêncio, tudo que ele consiga ver. E
um ver amplo - tudo aquilo que tu viste - e escutar tudo o que tu
escutaste. E, aí, ele faz suas próprias escolhas e não as tuas. Tu não
estás dizendo para ele: ‘Você tem que ver isso’. Não. Então ele pode ir
por vários caminhos, os caminhos dele. A matéria, assim como a
entrevista, acontece no meio, entre você e aquela pessoa. Acho que a
leitura também tem que acontecer em algum lugar no meio. É claro
que são pessoas, que eu estou naquele texto e o leitor também vai estar
naquele texto. Ele também vai fazer a sua leitura a partir do seu
mundo. Na verdade, são várias... É a mesma história, mas são várias.
Elas vão se recriando também na leitura. (MARIANO, 2011, p. 309).

6
Entrevista incluída na edição da revista Em questão, do Programa de Pós-graduação em Comunicação e
Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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A partir do diálogo da repórter com a fonte, conhecemos o Sapo, um pedinte que


sustenta mulher e filhos e até guarda dinheiro no banco: “Sapo deposita ainda dinheiro
no banco, para os dias em que a laje da Rua da Praia ameaça virar lápide, tão gelada
está. Quanto ganha é um segredo que prometi guardar” (BRUM, 2006, p. 62).
Ao mesmo tempo, o leitor conhece também o Sapo, pedinte, que não tem pena
de si mesmo, e que gosta do mundo em que vive. A repórter pergunta: “O senhor tem
pena de estar aqui, deitado na rua?” [Sapo responde:] “Tenho pena dos cegos. [...] Deus
me tirou as pernas, mas me deu um ganha-pão” (BRUM, 2006, p. 62).
A impressão é de que os diálogos contidos na reportagem reproduzem fielmente
a fala do entrevistado. Segundo Tom Wolfe (2005, p. 54), isso ajuda a estabelecer e a
definir com mais eficiência a pessoa que fala. Medina (1986, p. 8) afirma que o uso do
diálogo permite que o leitor construa sua própria interpretação da figura humana através
da pluralidade de vozes (fonte de informação-repórter-receptor) para compor
reportagens que tratam das questões humanas.
Por meio do diálogo da narrativa de “O Sapo”, a fonte ganha outras feições, em
que afloram traços de sua personalidade para revelar seus comportamentos e valores.
Algo que geralmente é encontrado na narrativa literária e não é comum no texto
jornalístico. Através de um diálogo aberto com Sapo, a repórter consegue extrair de sua
fonte caracterizações morais e até psicológicas. Em um trecho, Sapo explica: “Sou o
tipo mais esquisito do mundo. Sou namorador. Meu único defeito é gostar de mulher”
(BRUM, 2006, p. 60), o que caracteriza uma descrição moral.
Mais adiante, o narrador comenta: “Sapo ainda conta que seu sonho é ganhar
uma cadeira de rodas. Mas com motor, que é para ele conseguir subir as lombadas que
hoje escala de quatro, feito bicho. Descubro assim que Sapo quer deixar de ser sapo”
(BRUM, 2006, p. 63). O trecho acima sinaliza uma descrição psicológica ao relatar
sobre o sonho da fonte de não ser mais sapo. Para Forster (1974, p. 35), é papel do
romancista incluir sonhos, alegrias e meditações de suas personagens para expressar a
natureza humana. No jornalismo, também é possível incluir sonhos, como fez Brum.
Porém, a conversa com a fonte deverá ser aprofundada, para que o repórter possa captar
gestos e falas que representem estas marcas subjetivas.

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Um olhar diferente para Sapo permite ao leitor se despir da figura típica de um


pedinte como uma vítima social sem perspectivas. Conhecer o Sapo na visão de Brum é
se identificar com ele. Como o Sapo que afirma ser preguiçoso, mas que precisa
trabalhar para sustentar a família. Como o Sapo que bebe nos finais de semana e que faz
reflexões sobre a vida. A crítica presente no texto é justamente para o olhar já
direcionado e resistente que muitos têm sobre pessoas como Sapo. Esta visão é
desconstruída através da narrativa de Brum.
Assim, Sapo teria características da personagem redonda porque sua construção
o apresenta de maneira não linear na narrativa. Ou seja, apresenta variações de
comportamento, que o tornam dinâmico e nada previsível para o leitor.
Para uma fonte tornar-se “redonda”, é necessário, como observou Maia (2005),
que o jornalista reconheça que existem fontes que fogem da visão dualista do certo ou
do errado e levantar questões diferentes das que estão em pauta. Outro protagonista de
Brum também teria características de uma personagem redonda. Na reportagem “O doce
velhinho dos comerciais”, o narrador em terceira pessoa conta a história de David
Dubin, um senhor de idade que é conhecido por sua participação em comerciais de
televisão de estabelecimentos de Porto Alegre. Por trás da imagem de um velhinho da
TV, David carrega as marcas de um sobrevivente do holocausto.
No início da narrativa, David é caracterizado como um senhor de aparência
serena e tranquila: “Você já o viu. O doce velhinho dos comerciais. Cabelos de neve,
barba de merengue e olhos azuis faiscantes. Um sorriso que parece refletir a paz que a
humanidade sonha para o terceiro milênio” (BRUM, 2006, p. 140). Em seguida, David
aparece na narrativa como uma vítima do holocausto: “Você já o viu. Estava esquálido,
as costelas esticavam a pele cinzenta. Foi torturado, arrastado pelo chão. Estava nu”
(BRUM, 2006, p. 140).
O narrador, assim, apresenta a pessoa David Dubin, que é, ao mesmo tempo, a
representação em comerciais de um idoso feliz e uma vítima do holocausto. David,
como todo ser humano, é complexo, e a narrativa contempla isso quando o narrador se
aprofunda sobre as facetas que o compõem. Sendo assim, David é uma personagem
redonda. “Esse é o mistério. Que David Dubin seja ao mesmo tempo aparência e
sentença. Que seja ao mesmo tempo o doce velhinho dos comerciais e uma vítima

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destroçada do holocausto. [...] Esse é o paradoxo de David Dubin” (BRUM, 2006, p.


140).
Assim como na reportagem “O Sapo”, a crítica da narrativa de “O doce velhinho
dos comerciais” está em o leitor não se apropriar de apenas uma característica do
protagonista para compor o seu perfil, buscando a verossimilhança da complexidade
humana. Então, como na vida e na literatura, as pessoas são complexas e possuem
diversas facetas que não são identificáveis com um olhar raso sobre elas. Assim, devido
à complexidade de David, o leitor poderá se identificar com ele e sua história.
Para a construção deste tipo de protagonista, ou seja, personagens redondas
como na literatura, é preciso captar elementos que possibilitem a construção profunda
da fonte ao contemplar não apenas falas, mas sentimentos, pensamentos etc. Brum
destaca a escuta no momento da conversa entre jornalista e fonte:

Escutar é estar aberto para o espanto, é estar aberto para se


surpreender. É tu te despir. Eu acho que cada reportagem, cada
entrevista te exige isso: é tu te despir daquilo que tu és, dos teus
preconceitos, da tua visão de mundo e chegar o mais vazia para aquele
momento e conseguir realmente escutar com todos os sentidos o que
aquela pessoa está dizendo. [...] Quando a pessoa fala, ela fala também
com o seu corpo, fala com o seu olhar, fala com os seus gestos, fala
com um monte de coisas. A realidade é complexa. E quando ela para
de falar, ela não parou de dizer. Ela continua dizendo com o seu
silêncio. Ela continua dizendo quando ela hesita. Ela continua dizendo
quando ela gagueja. Ela continua dizendo quando ela não consegue
falar. Essa escuta que é o nosso trabalho. A gente não está só
escutando palavras, a gente está escutando toda a complexidade desse
momento. Eu acho que isso é que faz a diferença (MARIANO, 2011,
p. 302).

O método de trabalho da jornalista permite o aprofundamento de detalhes sobre


a pessoa da narrativa, possibilitando ao narrador compor um perfil complexo e dinâmico
do entrevistado e, consequentemente, torná-lo uma personagem redonda. A
caracterização de uma personagem redonda, seja na literatura ou no jornalismo, revela
no texto a natureza humana e a sua complexidade. Com isso, as personagens não serão
definidas em padrões fechados.
Pode-se destacar também que a forma de observar a realidade de Brum para
compor os textos jornalísticos assemelha-se ao romancista que recolhe os elementos do

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seu romance mediante o estudo e a observação direta e intencional da realidade, de


modo a conhecer com exatidão as condições de trabalho, os anseios e os dramas das
suas personagens (AGUIAR E SILVA, 1974, p. 239). E, portanto, concedendo um
status diferente à fonte, não mais restrita a esta, mas na condição de personagem.
A possibilidade de reflexão sobre temas humanos a partir da personagem já é
feita pela literatura, mas ganha espaço também no jornalismo. Pode-se afirmar que o
jornalista, que já é um observador da realidade, poderá adquirir um status de analista da
natureza humana ao ter como inspiração o trabalho do romancista. Para tal, será
necessária a construção de uma narrativa com aprofundamento nos temas e na psique da
fonte/personagem sem comprometer a objetividade/precisão necessária ao texto
jornalístico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1974.
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Acesso em: 14 nov. 2011.
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Paulo: Ática, 1995.

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mergulho nas histórias de vida do livro “A vida que ninguém vê”. In: Sociedade
Brasileira de Estudos Interdisciplinares de Comunicação, 16, 2011, São Paulo.
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FORSTER, E. M. Aspectos do romance. Porto Alegre: Globo, 1974.

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jornalística. Disponível em: <http://www.martamaia.pro.br/pesquisas_historal.asp.>.
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Questão, UFRGS, n.1, 2011.

MEDINA, Cremilda. Entrevista: O diálogo possível. São Paulo: Ática, 1986.


SODRÉ, Muniz; FERRARI, Maria Helena. Técnica de reportagem: notas sobre a
narrativa jornalística. São Paulo: Summus, 1986.
WOLFE, Tom. Radical chique e o novo jornalismo. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.

Recebido em 27 de agosto de 2013.


Aceito em 27 de outubro de 2013.

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