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RESUMO: Este artigo discute as apropriações da literatura na obra A vida que ninguém
vê (2006) da jornalista Eliane Brum. As reportagens da autora são exemplos de como a narrativa
jornalística propõe desvendar o humano por meio da observação de suas ações, intenções e
percepções. Assim, a pesquisa utiliza o estudo sobre a personagem dos teóricos Antônio
Candido (1998) e E. M. Forster (1974) para mostrar que as fontes jornalísticas de Eliane Brum
comportam-se como entes ficcionais ao tornarem-se protagonistas e, ao mesmo tempo,
representarem a complexidade da natureza humana.
ABSTRACT: The reports written by journalist Eliane Brum are examples of how the narrative
journalism tries to unveil the human being by observation of its actions, intentions and
perceptions. The present work discusses the appropriation of literature in the book A vida que
ninguém vê (The Life Nobody Sees) published in 2006 by Eliane Brum. The works about the
character published by Antonio Candido (1998) and E. M. Forster (1974) were cited to suggest
that the sources used by Eliane Brum behave as fictional entities when become protagonists and,
at the same time, they represent the complexity of human nature.
1
Professora Doutora do Programa de Mestrado em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc).
Brasil.
2
Mestra em Letras, Universidade de Santa Cruz do Sul. kassianobre21.kn@gmail.com
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Este artigo é um excerto da dissertação que discutiu as apropriações de características da literatura nas
reportagens de Eliane Brum. Esta foi realizada a partir de uma pesquisa bibliográfica que contemplou a
investigação da narrativa literária com foco na personagem e o estudo da narrativa jornalística priorizando
a fonte para posterior identificação e análise de marcas textuais que evidenciassem a transformação das
fontes em personagem na produção da jornalista.
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reportagens da obra em questão. Ou seja, de fato, “os textos de Eliane Brum revelam um
fazer que prioriza a humanização, que significa trazer o ser humano para o foco dos
acontecimentos, dando voz aos personagens, mostrando sua índole, suas angústias, os
sentimentos” (FONSECA; SIMÕES, 2011, p. 11).
Com o enfoque nas pessoas e não em acontecimentos, além de informar, a
reportagem assume para si a possibilidade de fazer refletir sobre temas humanos, algo já
evidente na narrativa literária que utiliza a personagem para isso. E que se manifesta,
como afirma Candido (1998, p. 40), na relação entre o ser vivo e o ser fictício através da
personagem, que é a concretização deste. A reflexão do leitor para os temas da narrativa
literária acontece porque, por meio da personagem (Candido, 1998, p. 36) são acionados
mecanismos de identificação, projeção e transferência com os quais ele contempla a
obra e vive, ao mesmo tempo, as possibilidades humanas que a sua vida dificilmente lhe
permite viver. Por meio da literatura, portanto, o leitor descobre algo sobre ele mesmo.
E esta é a razão pela qual na ficção sempre há traços da personagem que se encaixam no
modo de ser do leitor, provocando a identificação dele com a leitura que tem em mãos.
Na perspectiva Aristotélica (1992), a identificação pode ser classificada como a
verossimilhança interna de uma obra. Na literatura, é humanizando a personagem, a
qual tem a possibilidade de se tornar verossímil através do texto do autor e, assim,
aproximar-se do real. O ente ficcional recebe caracterizações humanas para provocar
nele um sentimento de identificação. Neste sentido, a estética realista, por exemplo, foi
um dos momentos em que o autor de ficção mais investiu em personagens que
representavam ainda mais o ser humano por, frequentemente, não ser superior à média
humana nem por nascimento nem por destino, nem superior por rebeldia ou por
complexidade psicológica, mas por ser um homem qualquer, que carrega o peso das
misérias e das injustiças sociais (D’ONOFRIO, 1995, p. 95). Dessa forma, o escritor
realista pôde apresentar as mazelas da vida pública e os contrastes da vida íntima.
No jornalismo, o autor também provoca o efeito de verossimilhança ao
humanizar sua narrativa, que pela sua natureza já é de compromisso com o real. É o que
lembram Sodré e Ferrari (1986, p. 107), ao afirmarem que “não é bastante ser
verdadeira; reportagem tem que parecer verdadeira – ser verossímil. Isso exige certa
técnica na dosagem da seleção e combinação de elementos”.
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Frida e ter como nova moradia a Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Assim, Frida
se torna a cidadã mais assídua do local, e o seu trabalho é acompanhar bem de perto as
atividades dos políticos. Porém, sempre que a protagonista percebe que os vereadores
não cumprem com seus deveres públicos, ela não poupa crítica aos representantes do
poder.
No texto de Brum, Frida é apresentada como um exemplo de cidadã que
participa com assiduidade às sessões da Câmara e acompanha as ações dos vereadores.
No caso de Frida, de uma forma bem particular: “Frida entendeu que o Legislativo é a
sua casa. Interpretou o conceito de cidadania de uma forma tão radical que, mais de uma
vez, foram avistadas suas calcinhas recém-lavadas estendidas sobre as folhagens do
jardim” (BRUM, 2006, p. 91).
A situação da narrativa é descrita de forma leve, sem pré-julgamentos e
estranhezas. Além de um ponto de vista crítico do narrador em relação à opinião dos
vereadores sobre a protagonista: “Sempre que alguém não se encaixa no mundo da
maioria, é logo chamado de maluco. É o que acontece com Frida. É o que dizem dela
quando grita lá do plenário” (BRUM, 2006, p. 90). O mecanismo de identificação do
leitor com a narrativa é acionado quando o narrador afirma que todos têm o sentimento
de indignação diante do descaso com ações de interesse público. Então, pensa-se igual à
Frida, porém só se pensa:
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conversando de frente para a tribuna [...] e outra conversando de costas para a tribuna.
Prestando atenção, só a Frida” (BRUM, 2006, p. 90).
Mais adiante, o narrador afirma: “Frida cumpre expediente. Ela gostaria de ser
vereadora. [...] prepara um projeto de lei para doar malotes de dinheiro aos amigos.
Ninguém imagina onde Frida viu algo parecido” (BRUM, 2006, p. 91).
Já na reportagem “Dona Maria tem olhos brilhantes”, a história da protagonista
evoca no leitor os sentimentos universais de determinação e superação para a realização
de objetivos que parecem inacessíveis. Para o narrador, a adjetivação “olhos brilhantes”
é o que diferencia a protagonista das outras pessoas que não buscam realizar os seus
sonhos:
Você já reparou nos olhos das pessoas na rua? Muitas têm pupilas
opacas [...] esculpem a imagem de uma infelicidade crônica, venenosa
e que mata devagar. Têm olhos de seca, olhos assassinos. [...] Quando
aparece alguém de olhos brilhantes, dá vontade de parar, pedir licença
e intimar: o que você está escondendo atrás dessas pestanas? [...] Dona
Maria tem olhos brilhantes porque corre atrás do seu [sonho]. E desde
então, deu para ficar com os olhos em facho por aí, alumiando o
caminho (BRUM, 2006, p. 132).
O sonho de Maria Alícia Freitas, a dona Maria, seria, aos 55 anos de idade,
aprender a ler e escrever. Durante a infância, ela teve a primeira dificuldade: “Letras
distantes como a lua, porque a mãe garantiu que Maria era burra demais para alcançá-la.
Aos nove anos, com o peito estourando, Maria jurou: meus filhos vão estudar” (BRUM,
2006, p. 132). Dona Maria teve nove filhos e garantiu para eles o estudo antes mesmo
de realizar o seu desejo de estudar. Quando eles estavam criados, dona Maria
abandonou o segundo marido para ir atrás do seu objetivo:
Um belo dia, pouco mais de um ano atrás, ela cravou o olho no amado
e sentenciou: Eu vou pra perto da capital procurar as letras. Se tu
quiser vir comigo, tu vem porque eu te amo. Se não quiser, eu vou
sozinha. Meu sonho é maior que tudo. O amado ficou. [...] De segunda
a quinta-feira, depois de trabalhar como doméstica e babá, dona Maria
pega a trilha da escola ao anoitecer. Encara 45 minutos de caminhada
lomba acima, porque dinheiro para o ônibus não tem. Vai para dentro
do seu sonho. Vai com os olhos alumiando o caminho (BRUM, 2006,
pp. 133-134).
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Vê-se, a partir das personagens de Brum, que, ao criar uma personagem, o autor
de ficção tenta se aproximar da complexidade humana ao descrever características que
constituem o modo de ser do seu ente de ficção. Forster (1974) analisou, justamente,
este comportamento das personagens e as classificou como “plana” ou “redonda”,
conforme a sua atuação na história narrada. Segundo o autor, as personagens planas não
evoluem na narrativa, ou seja, seu comportamento não sofre mudanças significativas
para o desenrolar da história. Suas atitudes e\ou pensamentos não têm a capacidade de
surpreender o leitor. Já as personagens classificadas como redondas são definidas por
sua complexidade e possuem a capacidade de surpreender o leitor porque são dinâmicas
e não são previsíveis.
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Entrevista incluída na edição da revista Em questão, do Programa de Pós-graduação em Comunicação e
Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes,
1974.
ARISTÓTELES. A poética clássica. São Paulo: Cultrix, 1992.
BRUM, Eliane. A vida que ninguém vê. Porto Alegre: Arquipélago, 2006.
CANDIDO, Antônio. A personagem de ficção. 1998. Disponível em:
<http://f1.grp.yahoofs.com/v1/YDLETuKbyI0sR-F26NI0-iOWCiRq9H-
PvzDF2WXnCpBMwh6IUZAFTgaXepdOggQYmTewDNhnTiYz6UuIaIcpdTXfNeH_
UJTK5ytMMg/A%20personagem%20de%20ficc%80%A0%A6%E7%E3o.pdf>.
Acesso em: 14 nov. 2011.
COIMBRA, Oswaldo. O texto da reportagem impressa: um curso sobre sua estrutura.
São Paulo: Ática, 1993.
D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. São
Paulo: Ática, 1995.
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