Você está na página 1de 47

J.

Krishnamurti

O CAMINHO
Primeira Parte

N em um a nuvem no céu, nem um


so p ro no ar; inexoravelm ente, o sol d er­
ra m a os raios de fogo. E estou sozinho
n o cam inho. E m redor, planícies que se
esten d em longe, até ao h orizon te. N e ­
nhum caule de erva, nenhum a flor re s ­
p ira m neste solo d esolado. Nele, tudo
está m urcho, queim ado, e fala com an­
g ú s tia d o s o fr im e n t o in e x p r im id o e
in exp rim ível dos séculos volvid os. N es­
sas vastas extensões, nem um a única
árvore à so m b ra d a qual um a florin h a
d elicad a pudesse alegrem ente d esa b ro­
char, negligenciando os raios assassinos
do sol. Até m esm o o solo se entreabre
desesperadam ente. O céu perdeu o seu
d elicad o tom de azul; adquiriu uns lai­
vos de chum bo devid o ao calor tórrid o
de todos os séculos que atravessou.
N o entanto, este céu deve ter d er­
ra m a d o um a chuva benfazeja; esta ter­
ra deve tê-la a b so rvid o , estas plantas
m ortas, estes tufos lan çados d eso rd e-

5
nadam ente p a ra ali, estes fios de erva
ressequ idos, devem ou trora ter saciado
a sede. E estão todos m ortos, neste m o ­
m ento, m ortos sem esperan ça de re n o ­
vação possível. Há quantos séculos terá
então caíd o essa bela chuva? Não sab e­
r ia d izê -lo . E stas p e d ra s esca ld a n tes
tam bém não se record a m do tem p o em
que fo ra m fe liz e s sob a chuva, assim
com o esses fios de erva ressequ idos, d o
tem p o em que estavam húm idos de or­
valho. Tudo pereceu, pereceu sem esp e­
rança. N em um som. R eina apenas um
silên cio terrível, angustiante, in terrom ­
pido, de onde em onde, p elo gem id o do
im en so s o frim e n to am biente; então, a
te r r a e s ta la e u m a p o e ir a sem v id a
redem oinha. Nenhum ser vivo respira
este ar asfixiante; tudo o que vivia ou ­
trora, sucum biu. A o lado d o cam inho, o
rio largo secou, aquele que nos p rim e i­
ros tem pos do m u ndo corria tão jovial,
levando, no seu caudal lím pido, alegria
e frescura; e o seu leito já nem se lem ­
b ra de ter arrastado ondas benfazejas
onde nadavam peixes de cores m atiza­
das. J a zem ali os delicados esqueletos
b ran cos dos peixes m ortos, hoje exp os­
tos à luz ofuscante. A s plan ícies estão
ju n cad as de todos essses vestígios das
criaturas que estavam vivas em séculos
passados, e jam a is a pulsação feliz da
vid a p o d erá voltar a fazer-se sentir aqui.
Tu do acabou, tudo se consum iu; a m o r­
te pren deu na sua garra cruel todos os
6
seres vivos, sim : todos, excepto eu.
Estou sozin h o no cam inho; não há
n in gu ém à m in h a fre n te ; ta lv e z h a ja
m uitos p eregrin o s atrás de m im ; m as
não é m eu d esejo d irig ir o m eu olhar
para trás, nem ver o h o rro r dos so fri­
m entos do passado. De cada lado desta
vereda, a vered a da m inha vida, que m e
parece interm inável, um sem blante tris­
te, um sem blante de desolação, suplica-
-me incessantem ente que m e associe à
sua m iserável v id a de quietude ilusória.
À m in h a frente, o C am inho estende-se,
légua após légua, ano após ano, século
após século, m uito branco sob a luz do
sol im placável; o cam inho sobe continu­
am ente de um a fo rm a insensível. O b ri­
lh o desta vered a que m ata sob o sol fla­
m ejante cega-me, e p rocu ro onde rep ou ­
sar os m eus olhos cansados. Mas nada
existe além deste im enso braseiro de luz
ofuscante! O sol nunca se põe; d erra m a
im placavelm en te o seu calor tórrid o. O
cam in h o não é todo igual; aqui e além
há partes tão unidas com o a su perfície
de um lago num dia calm o e sereno. Esta
v ered a é então p ro p ícia ao cam inhante,
m as subitam ente, com o um a trovoad a
contida que de repente rebentasse triun­
fante em sua ob ra de destruição, o ca­
m in h o afunda-se e torna-se im p ra ticá ­
vel aos pés já ensanguentados do p e re ­
grino. N ão saberei d izer quando voltará
a ser suave e clem ente; talvez na p ró x i­
m a v o lta ou apenas após m u itos anos
7
de torm en tos e p rovações! O cam in h o
ab ru pto não se p reocu p a nada, se cau­
sa d or ou alegria; ele está ali p ara eu o
p ercorrer penosamente, quer queira quer
não. Q u em teria traçado este cam inho
de in felicid a d e? N ão sei. E o cam in h o
n ão p od e d iz e r o seu n o m e.E x iste há
incontáveis séculos, ou m elhor: há m ilé­
nios. N inguém além de m im o p erco r­
reu; foi traçado p ara m im , p a ra eu an­
d a r n ele so zin h o . R ecen tem en te, tive
com pan h eiros, am igos, irm ãos, irm ãs,
pais, m ães, m as eles não p o d em ca m i­
nhar ju n to a m im neste cam inho fatal.
Esta vered a é com o o am ante exigente e
ciu m ento que sofresse p or a sua am ada
ter ou tros a m igos ou ou tros am antes
além dele. O cam inho é o m eu inexorável
am ante; gu a rd a ciu m osam en te o m eu
afecto e confunde todos os que q u ereri­
am acom panhar-m e ou ajudar-m e. E xi­
gente em todas as coisas, pequenas ou
gra n d es, n u n ca d e s v ia de m im o seu
olhar, cruel e fascinador. Estreita-m e com
um a fo rça que quase m e m agoa e ri com
u m a te rn u ra s ig n ific a tiv a q u a n d o os
m eus pés com eçam a sangrar. N ão con ­
sigo afastar-m e dele; ele é o m eu ú nico e
constante amor. N ão consigo d irigir o
meu Guiar para ou tro lado que não esta
longa, esta in term in ável vereda. Por v e ­
zes, ela não é nem am ena nem descor­
tês; m ostra-se indiferente ao m eu desti­
no. E steja eu afortu nado ou desditoso,
s o fre d o r ou extasiado, m ergu lh a d o na
8
t r is t e z a ou n u m e s t a d o d e p l e n i ­
tu de...nada a m ove. E la b em sabe que
não p osso deixá-la, vered a cativante, e
que não p od e separar-se do m eu “S e r”
p ro s tra d o de t r is t e z a . Som os
inseparáveis; ela não pode existir sem
m im , nem eu sem ela. Nós som os um
só, em b o ra eu seja diferente dela. Por
vezes, com o o sorriso de uma suave m a­
nhã de prim avera, a vered a convida-m e
a p erco rrê-la , e ou tras vezes, c o m o o
O ceano irritado e pérfido, engoda-m e nas
m inhas felicid ad es passageiras. Quando
caio, soergue-m e com um abraço am i­
go, fazen do-m e esquecer a am argura e
os sofrim en tos do passado, beijan do-m e
c o m o um a m ãe tern a e a m o ro sa cujo
único pensam ento é o de p roteger o seu
filho; m as m al entro num estado de in ­
consciência feliz ou m e p erco em deva­
neios, com o se tivesse b ebido longos tra­
gos na fonte da felicidade suprem a, com
um choqu e b ru sco acorda-m e do m eu
sonho feliz e efém ero e assenta-m e ru ­
dem ente de novo nos m eus pés pisados.
É cruel e encantador, o m eu am igo
solitário, m eu am ante... Se bem que m e
trate ora com a sua tiran ia habitual, ora
com um a m or sem igual, continua a ser
o m eu único com panheiro, e não desejo
nenhum outro. O sol queim a-m e e a v e ­
red a fere-m e. Os m eus passos não d ei­
xam m arcas no difícil cam inho e não v is ­
lu m b ro qu alqu er traço de ou tro ser hu­
m an o. A ssim , ven d o que sou o ú nico
9
am ante da m inha Vereda, vou na m inha
exclusividade e na m inha separatividade,
glorifican d o-m e na m inha alm a p or este
p r iv ilé g io . S o fr o m a is qu e n in g u ém ;
exulto m ais que ninguém e a m inha ob s­
tinação em am á-la é diferen te de tudo o
que o m u n do algum a vez conheceu. Na
m inha adoração, falta-m e o fôlego e ne­
nhum amante poderá oferecer-lhe os seus
sacrifícios com um entusiasm o m ais d e­
lirante que o meu. Até as suas cru eld a­
des im pelem -m e a prezá-la ainda m ais e
a sua ternura liga-m e m ais estreitam en ­
te a ela para toda a eternidade. V ivem os
um para o outro; só eu posso entrever o
seu q u erid o rosto e beijar-lhe a m ão. Ela
não tem outro am ante ou outro am igo
senão eu. Tal com o o passarito que, para
desfru tar da lib erd ad e do extenso m un­
do, se lança do ninho antes de ter exp e­
rim en tado as asas, assim eu m e p re c i­
pitei neste C am inho para desfru tar da
d oçu ra do seu amor, na solid ão e longe
de todos os olhares.
Os ventos de inum eráveis estações
fizera m -m e vo ltea r com o folh a m orta,
la n ça d a daqu i, dali, p ela s ra ja d a s de
Outono, e no entanto sem pre os m eus
passos errantes encontraram a sedu to­
ra Vereda. C om o a on da que dança no
esp len d or in fin ito e ra d ioso do Sol, as­
sim eu dancei no ím peto dos ventos d e ­
sen freados; com o o deserto que não está
lim it a d o p o r n e n h u m a c a d e ia d e
m ontanhas,assim eu fui exposto ao Sol.
10
Tais fo ra m as m inhas vidas. Nun-
c;i as delícias de um ap razível repou so
seren aram a m in h a alm a, p en etraram
até ao m eu verd a d eiro Ser, e nunca fui
recon fortado. Nunca um so rriso aqu ie­
tou a m in h a im paciência, nunca um ro s ­
to am ante m inistrou um bálsam o ao meu
coração dorido; nunca um a palavra doce
veio aliviar a m inha in dizível angústia.
N unca o a m o r de u m a m ãe, de u m a
m ulher ou de um filh o apaziguou o ar­
dor da m inha sede de amar, todos se
a p a r t a r a m de m im , e eu a to d o s
aban don ei.S em que se con doessem de
tnim, vagueei sozinho, com o um le p ro ­
so, A dor e a am argura foram as m inhas
c o m p a n h eira s etern as e in sep a rá veis.
C om o um a som bra, a m inha m ágoa se-
guia-m e, e nesta dor sem tréguas d erra ­
m ei m uitas lágrim as am argas. A spirava
frequ en tem en te à m orte e ao vazio, mas
nem tal m e era concedido. Vi m uitas v e ­
zes a face h ed ion d a da m orte que m e
d esp ed açava o coração, e acolhia de b ra­
ços abertos aquela que era o terror de
tantos hom ens, m as ela sorria-m e então
e benzia-m e. C ansado de desejar a m o r­
te, vire i os m eus olhos e os m eus passos
para os altares do am or e da adoração,
m as pou co con solo encontrei neles. M ui­
tas vezes fiqu ei m ergulhado num a a d o ­
ração m uda; mas, tal com o o perfum e
d elicad o de um a flor, a m in h a adoração
atravessava os séculos e eu continuava
sem apaziguam ento, de jo elh o s m agoa­
dos. Quantas vezes depus flores o d o rí­
feras aos pés dos íd olos venerados, sem
receb er um a benção! Quantas vezes sa­
crifiq u ei aos n u m erosos deuses de to ­
dos os países e de todas as raças, e os
deuses sem p re se con servaram m udos,
de olhos desviados de m im ! Fui m uitas
vezes o seu sacerdote nos tem p los sa­
grados, m as a m inha veste bran ca caía-
-m e dos om b ros e eu ficava nu ao sol.
Quantas vezes, com adoração, b eijei o
S a n to L ótu s d o T e m p lo , m as o lotu s
m u rch ava na m inha m ão! Quantas v e ­
zes fui pagar o m eu tributo aos altares
qu e o m u n d o tin h a e rig id o , m as d os
quais regressava silen cioso e cabisbai­
xo! Quantas cerim ónias celebrei, sem que
algum a vez as m inhas aspirações fossem
satisfeitas! C om quantos ritos m e deliciei
sem que m e tenham feito sentir alegria
ou esperança! Em quantos tem plos fui
consagrado, sem que tenha ob tid o a lí­
v io algum ! Quantos livros sagrados li, e
o C onhecim ento sem p re m e foi negado!
Quantas vid as passei em santidade! Mas
e s s a s v id a s n ã o tin h a m c la r id a d e .
Q uantas ve ze s in terrogu ei as estrelas!
Mas elas apagaram - se sem p re antes de
m e com u n icarem a sua p rofu n d a sab e­
d o ria . T an to velei, so n d a n d o o v a zio ,
procu ra n d o a luz; m as as trevas, as es­
pessas trevas continuavam a reinar. Em
m u itas vid a s, segu i d e lib e ra d a m e n te ,
tanto às cegas com o já esclarecido, as
lições d os m od estos m estres das a ld ei­
19
as recônditas; m as os seus ensinam entos
deixavam -m e ao pé da colin a solitária.
V ivi n o b rem en te e trab a lh ei afincada-
m ente. G anhei d om ín io sobre m im e le ­
vei tam bém um a vid a contida. Frequen­
tem ente, m ortifica d o e d erram an d o lá­
grim a s am argas, su plicava que a m ão
divin a m e guiasse, m as m ão nenhum a
m e guiou. Lutava ardentem ente contra
a hum anidade para obter a luz, m as p er­
d ia sim ultaneam ente a luz e a hum ani­
dade. De olhos fixos no alvo, con trolan ­
d o todas as m inhas em oções, buscan­
do a verdade, m editei; m as nada m e foi
revelado. Quantas vezes tentei afastar-
m e dos m eus irm ãos barulhentos, para
escapar aos seus pensam entos ignóbeis
e m esquinhos, às suas quezílias, às suas
paixões vãs ou grosseiras, aos seus d es­
gostos ou p equ en as m iséria s que eles
p ró p rio s haviam criad o para si m esm os,
a o seu ó d io f e r o z e à su a p ie d a d e
im berbe, aos seus afectos pu eris e à sua
com paixão inconsistente, às suas taga­
relices, à sua am izade apaixonada e ego ­
ísta, às suas querelas am argas e aos seus
rego zijo s ru idosos; à sua cólera vingati­
va, aos seus am ores insípidos, às suas
conversetas sobre os grandes problem as
p or eles ign orados e à sua ciên cia das
coisas secundárias, à sua vaidade ou ao
seu desdém , aos seus galanteios g ro s ­
seiros e à sua insolência; aos seus dese-
j o s d e a m o r e às s u a s a v e r s õ e s
injustificadas; enfim , a tudo o que era
hum ano. E eu aspirava a tudo o que é
grande, n obre e divino. M as em qualquer
sítio onde estivesse ou para onde fosse,
sem pre a hum anidade m e perseguia com
o e s p e c t á c u lo d a s s u a s a g o n ia s
in om in áveis e os seus gritos de d esesp e­
ro.
Am iúde, ia buscar retiro na solid ão
d as c la r e ir a s da flo re s ta p r o fu n d a e
aprazível, m as achava-as povoadas p e­
los m eus pensam entos e assom bradas
pela m inha m iséria. Frequentem ente, es­
trem ecia com o espectácu lo da b eleza
do m undo, na vida da suave prim avera
e do rude inverno, do sol poente, p a cífi­
co e esplên dido, dos astros cintilantes
nos céus, do d espertar da manhã, e do
sol agonizante, da terna lua de cla rid a ­
de pálida, do sol im p ied o so e das trevas
sem fundo, da relva verdejante, das fo ­
lhagens aveludadas, do tigre feroz, do
gam o manso, do h ed ion d o réptil, do e le ­
fante cheio de m ajestade, da m agnitude
das m ontanhas, dos m ares im petuosos.
Saboreei na sua plenitude as belezas que
a natureza pode dar, m as não encontrei
apaziguam ento nelas. Vagueei nos vales
som b rios e escalei os m ontes escarp a­
d o s. T u d o e x p lo r e i em v ã o e no
desolam en to.
Vezes sem conta, em inúm eras v i­
das, pratiqu ei Yoga através da privação,
da tortu ra física, da abnegação, m as não
encontrei o Deus vivo. Extingui em m im
os desejos e as falsas em oções, vivi de
14
fo r m a p u ra segu n do os p re c e ito s dos
santos livros de m uitos povos, executei
m uitas acções n obres aos olhos dos h o ­
mens, que m e cobriram de glória. N un­
ca deixei aceder o desesp ero e a tenta­
ção à m in h a alm a dolorosa; na terra, le ­
vei a cabo peregrin ações aos santos lu­
gares, m as nunca em lugar algum en ­
con trei o recon forto verd a d eiro e du ra­
d o u r o . T iv e v is õ e s n o s t e m p lo s de
N ín ive1, da B abilónia e nos tem plos sa­
gra d os da ín dia bendita. A d o rei os seus
deuses, neguei a felicidade terrena, r e ­
nunciei a m eu pai, m inha mãe, m inha
mulher, m eus filhos, oferecen do sa crifí­
cios grandes e pequenos, nobres c p u e­
ris, sacrifican do o m eu corp o e até m es­
m o a m inha alm a para que a luz m e gu i­
asse; foi-m e recu sado o contentam ento
em todas as coisas que fiz. Fui im p reg­
nado p or em anações divinas, aspirei a
ser lib erto deste m u n do de sofrim ento.
A ju d ei m uitos irm ãos, quando tanta n e­
cessid a d e tinha de ser ajudado; curei
m uitos, quando tanto precisava de ser
curado; guiei m uitos, quando tanto p re ­
cisei de ser guiado; recon fortei m uitos,
qu an do tanto precisava de ser eu p ró ­
p r io re c o n fo rta d o . M erg u lh a d o n um a
angústia inom inável, soube sorrir; estan­
do alegre, soube chorar. Ficava feliz, per­
d en d o e m iserável, ganhando, e sem pre

1Nínive. im p o rta n te c ida de da M esopotâ m ia, situada na parte


alta d o r io T ig re e fam osa p elo s seu s p a lá c io s e tem p los,
n o m ea d a m e n te o T e m p lo d e A s s u r (N. da T ra d .)

15
continuando a estim ar o m eu Deus. E,
no entanto, continuando a m in h a alm a
m ergu lhada no m aior caos, era ainda um
cego digno de piedade, rod ea d o de o b s­
cu ridade e de irreal. A pu ra luz era-m e
de n o vo recu sa d a e con tin u ava a não
obter o alívio que cura. A paz de co ra ­
ção era-m e de novo negada; não havia
p a ra m im felicidade algum a em nenhum
lado. Ficava sozinho, sem p re sozinho,
c om o o ju sto erran d o no céu. Estava só,
com igo m esm o.
Por fim , cansado de adorar e de res­
peitar, esgotado de solidão, cansado de
p rocu ra r e de aspirar à felicidade d ivi­
na, cansado dos sacrifícios e das m o rti­
ficações, cansado de p rocu rar a luz e a
verdade, cansado de ser nobre e altruís­
ta, cansado de lutar e de escalar as altu­
ras, m ergu lh ei então violen tam en te no
m u n d o m aterial, esp eran d o atingir d es­
ta fo rm a o inacessível e o im penetrável.
Torn ei-m e jo v e m e cheio de saúde, b elo
e apaixonado, livre e jovial, não pen san ­
do de fo rm a absolutam ente nenhum a no
dia de amanhã, livre e despreocu pado.
A p liqu ei-m e sistem aticam ente em diver-
tir-m e loucam ente, com egoísm o, p rocu ­
ran d o unicam ente os prazeres dos sen­
tidos e os entretenim entos m undanos.
Tom ei a resolu ção de fazer todas as ex­
p e riê n c ia s p o ssíveis n os m eio s que o
m u n d o cá em baixo p o d ia oferecer-m e.
N ad a d evia ser-m e recu sado; o p ra zer
sob eran o tornou-se o m eu único objec-
16
livo. Frequentem ente, nasci rico; d o rm ia
no c o lo da vo lu p tu o sid a d e, em b a la d o
com lisonjas. T in h a para m im a ju v e n ­
tude e a beleza. Com estes dois trunfos,
o m u n do e os seus p razeres grosseiros
ío rn avam -se-m e acessíveis. Em pouco
tem po, estava na p rim eira fila de tudo o
que era ru id oso e turbulento. R odeado
por um a juventude licenciosa, entreguei-
me aos prazeres inconfessáveis de m a­
nhã à noite e m esm o até à m adrugada.
Era o p rim e iro em todos os d ivertim en ­
tos; ninguém p od ia rivalizar com igo nas
m inhas loucuras. Os prazeres da brilhan­
te Nínive, da faustosa Babilónia, do m a ­
ravilh oso Egipto e da índia com céu de
fogo, estavam sem p re às m inhas ordens.
Por to d o o la d o eu era cum ulado de hon­
ras, lou vores e lisonjas. Bebia longos tra­
gos na fonte da alegria e da fruição. T i­
nha inú m eros escravos e servidores, e
nenhum m estre. Os m eus desejos nasci­
am com o as flores luxureantes da p ri­
m avera e eram im ediatam ente satisfei­
tos. N ada refreava as m inhas loucuras,
os m eus caprichos. Q uando m e o co rria
um a n ova fantasia de luxo, era rea liza ­
da na altura m ais favorável. O am or sob
todas as suas form as estava ao m eu al­
cance: nada era sagrado para m im . P ro ­
fanava tudo, troçan do dos deuses m ais
ven erad os e tratando com d esp rezo os
hom ens das classes inferiores. Os vinhos
m ais gen erosos e finos estavam sem pre
à m in h a disposição, apresen tados p or
17
um escravo m eu. Satu rado de todas as
delícias com que um h om em civilizad o
e fazen d o parte das nações e das raças
m ais refinadas d o glob o p o d eria sonhar,
quis então encarnar com o mulher, a fim
de p od er saborear o êxtase d elica d o de
ser am ada p o r hom ens apaixonados.
T iv e in ú m ero s a d o ra d o re s sob a
m in h a varanda, m as nunca m e sentia
satisfeita com o am or in síp id o dos que
p o r m im suspiravam . Passava a m inha
vida, languidam ente no seio do p ró p rio
amor, reclam an do sem p re m ais e m ais.
E xp erim en tei tod os os so frim en to s de
carregar um filh o no ventre e de o dar à
luz; conheci o desgosto de o perder, as
d ores e degradações da velhice, a negli­
gên cia e in d iferen ça dos m eus p rim e i­
ro s am an tes; fiq u e i a p a ixon a d a m en te
p resa a record ações do passado e lasti­
m ei o abandono de am antes há m uito
desaparecidos.
Por fim , cansada de levar um a vid a
desregrada, tornei-m e um a m ulher vir­
tu osa e obtive as delícias do am or puro.
Estou no m u n do com alegria e sem ter o
m eu coração atorm entado, com o outro-
ra, p elo rancor de sofrer pelos outros,
qu ando estava a p arir um ser inocente.
C onheci a ternura e os sorrisos in­
génuos das criancinhas que se ligam a
nós de tod o o coração, saboreei os seus
b eijos qu erid os e puros, os seus ab ra­
ços delicados e essa d oçu ra penetrou em
m im . Fui um a m u lher que am ou, um a
18
m ãe terna, g lo rio sa no seu amor.
A p ós ter feito a experiên cia da m a ­
ternidade, voltei a ser um h om em livre
u m a v e z m ais, d o m in a d o p or paixões
fo rte s e bru tais. C om o os d esejo s m e
abrasavam o coração, entreguei-m e à lu ­
xúria, esqu ecen d o a tristeza e o s o fri­
m ento, sem p ied a d e p elos m ales cuja
causa sou eu m esm o: a m in h a v id a é
u rdida p or alegrias egoístas, rica em ex­
periên cias vis e em prazeres violen tos e
o m u n d o m aterial nada p od e recusar-
me. Mas não sinto satisfação nem felici­
dade verdadeiras, e o meu coração con ­
tinua tão v a zio e d esola d o com o o d eser­
to á r id o o n d e n en h u m a c ria tu ra que
busque b eleza e alegria pode viver. D e­
pois de ter sab oread o as riquezas, tor-
nei-m e um indigente, um p obre diabo,
de casa em casa, en jeitad o e m aldito,
im u n d o, e s to ira d o , h e d io n d o a m eu s
p r ó p r io s o lh o s, v a ia d o e a p o n ta d o a
d ed o, esfo m ea d o , sem pai, n em mãe,
nem m u lher que ousasse tocar-m e; d e ­
plorável, m in ad o p or doenças conheci­
das e desconhecidas, de pés ensanguen­
tados; de om b ros cobertos p or um saco
de pano g rosseiro em guisa de rou pa nos
dias de festa, e que fa zia as vezes de capa
q u a n d o s o p ra v a o ven to, e de ca p u z
qu ando o ardor do sol m e qu eim ava sem
piedade. C om u m velh o cajado na m ão,
vagueei através das cidades faustosas e
in ósp itas de m u itos países. Os v e n d e ­
d ores perseguiam -m e com as suas p ra ­
19
gas e eu era escorraçad o a pontapés p e ­
los h om en s e m o rd id o p o r cães fu rio ­
sos. A s pessoas afastavam -se de m im e
recusavam -m e o pou co auxílio que p o ­
diam ter-m e dado. As cidades e aldeias
eram todas sem elhantes, q u ero dizer,
sem piedade, e p or todo o lado os h o­
m ens viam -m e passar, de corações e m ­
p edern idos.
Para passar a noite, abrigava-m e
em lugares d esoladores e distantes, onde
h om em ou anim al algum ousaria aven­
turar-se, afugentados p elo ar fétido que
aí se respirava. A fom e roía-m e as entra­
nhas sem cessar; tanto era torra d o pelo
calor do sol, com o tran sido p elo vento
glaciai do norte; a geada ressequia-m e;
tiritava de febre e de fraqueza.
E assim vagueei pela terra inteira
sem nunca encontrar um sorriso, uma
p a la vra fratern a, um olh ar am igo. Os
cães eram m ais felizes que eu, porqu e
os alim entavam e acariciavam e tom a­
vam conta deles; m as até m esm o os cães
ladravam à m inha passagem . Nenhum a
casa se abria para m im e os p ró p rio s
sacerdotes escorraçavam -m e dos tem plos
sagrados. As crianças, h orrorizad as com
o m eu aspecto, paravam de chorar. Mal
m e viam , as m ães cham avam os filhos
e faziam -nos entrar em casa à pressa.
Eu p a recia espalhar a peste e a in felici­
dade e obscu recer a luz do dia. As rib e i­
ras onde eu qu eria saciar a sede seca­
vam m al m e aproxim ava, as árvores r e ­
20
cusavam -m e os seus frutos, a terra tre ­
m ia sob os m eus passos, as estrelas en­
cobriam -se ao verem o meu ser desafor­
tunado e a b en d ita chuva não caía se
quer sobre m im para m e lavar das m i­
nhas im pu rezas. Desta form a, durante
n u m erosas gerações, entre m u itos p o ­
vos e m uitas nações, só e infeliz com o
um a nuvem isolad a escorraçad a pelos
vento sobre vales e colinas, vagueei, m i­
serável e abom inado. Durante séculos,
não soube o que era o bem -estar: esgo­
tado, lam entável, rep elid o com o um ani­
mal im undo, p rocu rei um abrigo, mas
ai de m im !, a solid ão e a m iséria conti­
nuavam a ser o m eu fado. Qual folh a
m orta pisada p elos pés, padeci cru el­
mente na m inha prisão de carne, pobre
e esfarrapado, sem ódio nem amor, já
indiferente ao in fortú n io com o à dor, v a ­
zio de inteligência, esfom eado e seden­
to: todas as em oções nobres que outro-
ra e m p o la va m o m eu coração haviam
m o rrid o em m im há m uito tem po.
N o entanto, se bem que d esesp e­
rando da m inha existência, fugindo dos
hom ens e cle ser alvo das zom b arias da
juventude, no m eio desta agonia e afli­
ção extrem as, nesta tortura física, estas
privações da alma, no hoi ror desta ig
n om ín ia e deste sofrim ento sem fim , con­
tinuava à procu ra da luz e da felicidade
que que m e tinham sido sem pre recusa­
das p orqu e ainda não tinha encontrado
vez nenhum a a paz interior, estivesse eu

21
m ergu lh ado num luxo desavergonhado
e chafu rdando em gozos egoístas, p r o ­
cu ran do unicam ente os p ra zeres n oci­
vos, ou então tentando levar um a vid a
nobre e pura, detestando a ign om ín ia e
p rocu ran d o a verdade em tod a a p a rte ,..
E n treta n to, que luz m a ra v ilh o s a
brilh ava então em m eu redor, m as que
p rofu n das e lúgubres trevas d en tro de
m im ! A m ava com um am or puro, eram
n obres os m eus desejos, estrem ecia ao
escutar o n om e de Deus. No entanto, nos
asilos da piedade e da inocência, nunca
encontrava a felicidade...

22
Segunda Parte

N u m e ro s a s e v a ria d a s fo ra m as
m inhas exp eriên cia s, os m eu s p en sa ­
m entos e as m inhas em oções; inúm eras,
as m inh as paixões bestiais ou nobres,
as m inhas sim patias subtis e os meus
grandes am ores, desinteressados ou ego ­
ístas. Quantos m atizes nas m inhas sa­
tisfações e nos m eus sentim entos nobres
e gloriosos! Quantas grandes inteligên­
cias ou m anhas d esp rezíveis possuí, ao
longo de séculos sem conta! Passei por
raças e nações diversas, com m últiplas
capacidades, a d qu irin d o o con h ecim en ­
to que o m u n d o p od e dar àqu ele que
procu ra e sofre.
N ão obstante, on de está essa luz
que os Sábios divisaram , dizia de m im
para m im , esssa verdade su perior a to ­
das as não-realidades; essa m isericó r­
d ia que alivia todas as m ágoas, essa paz
in terio r que traz a felicid a d e etern a à
alm a atingida pela dor e essa Sabedoria
que guia a hum anidade que sofre?

23
Por to d a a p arte on de estive, on de
qu er que tenha p ro c u ra d o às cegas, re ­
g re s s e i sem p re de m ãos va zia s e alm a
in q u ie ta . C o m o u m a c r ia n ç a in d is ­
cip lin a d a que se d istan cia da sua tão
q u e rid a m ãe, p erd i-m e nos a b ism o s do
d e s e s p e ro e do irreal, sem p re à p ro c u ­
ra da g ra n d e R ea lid a d e. L on ge d o C a­
m in h o so litá rio , parti, leva d o p o r essa
a s p ira ç ã o in v e n c ív e l e p o r essa sed e
in extin gu ível, m as a angústia qu eim ou -
-m e e regressei, cabisbaixo. N em entre
os hu m anos, em lutas uns con tra os
ou tros, nem en tre aqu eles que vivem
longe das m u ltid õ es insanas, en con trei
a legria ou satisfação.
Feliz ou in feliz aos olhos dos h o ­
m ens, h onrado ou degradado, na m ágoa
ou no prazer, sentia sem pre em m im um
va zio h o rro ro so que nada p od ia p reen ­
cher, um desejo im enso e insaciável. Can­
sado, vagueei com o um cego, p ed in d o a
todos os transeuntes o bálsam o que p o ­
dia curar o m eu coração d orid o: cada
um dava o cjue podia, com um sorriso
doce e um a benção, m as sem resolver o
p ro b lem a que m e assom brava.
O nde está essa luz, onde se en con ­
tra essa felicid a d e sem lim ites? Estou
cansado; cansado das corrid as errantes
que fiz du rante tantos sécu los. Estou
esgotado e sem força p ara continuar a
lutar e a com bater. E strem eço a cada
passo, m al consigo arrastar-m e. Perdi,
p or assim dizer, a vista de tanto ter usa­
24
d o os olhos. Tenho os cabelos brancos,
estou esgazeado e decrépito. O orgu lho
p ela vid a e a ju ven tu de abandonaram -
me. Estou d u p lam en te cu rvad o sob o
fa rd o dos séculos e o d o sofrim en to. A
b eleza de que tanto m e gabava à face do
m u n do esm oreceu e tornei-m e um ser
m on stru oso. O que se passou, o que se
criou ao longo desses longos e terríveis
anos de provação, apagou-se da m inha
m e m ó ria e a m inha indiferença por tudo
é absoluta. Neste m o m en to não tenho
desejos; nenhum a paixão m e arrebata,
nenhum afecto m e perturba; as em oções
p erd era m toda a sua influência, ou trora
om n ip oten te sob re m im . O a m or está
p ara trás de m im , p erd id o ao longe; a
em briagu ês alegre da acção está abolida
em m im ; a am b ição que excita tantos
seres hum anos ao trazer-lhes a glória, a
honra, escapuliu-se para o passado. O
orgu lho que faz cam inhar de cabeça bem
ergu ida no tum ulto das acções nobres
ou indignas, desapareceu para sem pre;
o tem or que op rim e e subjuga, está an i­
quilado; a m orte, esse terrível e im p a r­
cial com p a n h eiro de todos os hom ens,
já não m e apavora com o seu olhar a m e­
açador.
N o entanto, o d e s c o n te n ta m e n to
in terior e a aspiração ao inacessível d ei­
xam em m im um profu n d o vazio. A tin ­
girei algum a vez a plenitude da alegria e
con qu istarei algum a vez a felicidade su­
prem a?
?5
Ó Seres Poderosos, tende piedade
d o viajante solitário que vogou sobre tan­
tos m a re s revo lto s, atravessou tantas
terras e suportou tantas provações! E s­
tou sozinho, vin de em m eu auxílio, Vós
que sois todos piedade, Vós os bem -aven­
turados! V ós que eu honrei, adorei, Vós
a quem tantos sacrifícios ofertei, V ós por
qu em tanto sofri a fim de ser digno de
beijar os pés sagrados. Reconfortai-m e,
M estres da S ab ed oria, com os vo sso s
olhares de am or e de bondade. Que fiz
eu e que devo ainda fazer p ara alcançar
a glória e a gran deza? Por quanto tem p o
ainda se p rolon gará esta im p ied osa con ­
d ição? Quando, ó Mestre, p od erei con ­
tem plar a Tua beleza sagrada? Terei de
andar por m uito tem po ainda nesta ve ­
red a solitária? Terá um fim esta inter­
m inável agonia em que me consu m o de
A m o r p or T i? Porque afastaste de m im
o Teu rosto adorável? O nde está o Teu
s o rris o divin o que acalm a todos os s o ­
frim en to s? C om hu m ildade e angústia
servi os G ran d es S eres, e as p essoas
m ais despojadas deste inundo; am ei ce­
ga m en te tod a s as coisas, p eq u en a s e
grandes, e bebi em todas as fontes da
sa b ed o ria terrestre. Mas não consegui
nunca tocar os Teus pés. Tal com o um a
b ela flo r que, ao murchar, perd e o seu
perfum e, a sua b eleza e o seu encanto,
ou u m a á rvo re resseq u id a que já não
oferece som b ra ao viajante exausto, as­
sim é a m inha existência m elan cólica e
26
desolada. Tudo dei sem restrição e con ­
tinuei m iserável e sem esperança. A poiei
o aflito e guiei o cego. quando eu m esm o
estava aflito e cego. Por que não rne es ­
tendeste a Tua m ã o caritativa qu ando
vacilei? Estou cansado de im plorar, já
não tenho esperança; tudo parece estar
m orto e reina em meu red or a m aior es­
curidão. As m inhas lágrim as esgotaram -
se e no entanto continuo a g r i t a r para
que m e oiças na m inha infinita aflição...
N enhum transeun te p od e v ir em meu
auxílio no estado lam entável em que m e
encontro, posto que sou o único nesta
v e re d a lon ga, longa, que se p ro lo n g a
com o um rio p o d ero so sem com eço nem
fim . Vagueio com o um insano, sem sa­
ber para onde ir, indiferente ao que pode
acontecer-m e. Estou m irra d o até à m e ­
dula: não p o d ia estar m ais q u eim a d o
p elo sol. A bran cu ra ofuscante que me
ro d e ia é c o m o um ocea n o sem lim ite
onde m al consigo distinguir o C am inho
que conduz à felicidade suprem a. Tudo
ficou p ara trás; os m eus com panheiros,
os m eus am igos, o m eu amor. Estou d e ­
sesperadam ente só.
Ó M estre de C om paixão, vem em
m eu so co rro e conduz-m e desta p rofu n ­
da escu ridão até à luz pu ra que alguns
G randes Seres sou beram alcançar. P ro ­
cu ro o G rande L ib ertad or que há-de re s ­
gatar-m e da ro d a d o n ascim en to e da
m orte. Procu ro o Irm ão que há-de p a rti­
lhar com igo a sua sa b ed oria divina; o
27
A m a d o que m e há-de recon fortar e gui­
ar; p ro c u ro rep o u sa r a m in h a cabeça
ca n sa d a no c o ra ç ã o da m is e ric ó rd ia :
p rocu ro um refúgio na luz...
M as o C am in h o não resp o n d e ao
m eu a p elo d esesp erad o, os céus fech a ­
dos olham -m e com um a indiferen ça cru ­
el. N ão existe nenhum eco de c o m p a i­
x ão nas lam en tações lúgubres do ven ­
to. O silên cio p ro fu n d o só é in te rro m ­
p id o p e lo b a ru lh o m o n ó to n o de u m a
re s p ira ç ã o lenta e p elo d esliza r de pés
cansados. N ão há paz: m ilh a res de se ­
res in visíveis ro d o p ia m à m in h a volta
c o m o se q u isessem escarn ecer do s o fr i­
m en to d o p ob re solitário. O m om en to
de silên cio que p reced e a trovoa d a con s­
titui o m eu ú n ico alívio. S ó o en go lir
dos sécu los resp on d e às m inhas sú p li­
cas contínuas; o m eu isola m en to é c o m ­
p leto e atroz.
H á m uito que o C am inho deixou de
m e falar com o outrora, quando m e ensi­
nava a distingu ir o ju sto do injusto, o
v erd a d eiro do falso, a real d o irreal, a
gran d eza da pequenez. Agora, está m u do
com o um túm ulo. índicou-m e u m a p ar­
te do cam inho, m as o resto tenho de ser
eu p ró p rio a descobri-lo; antes de p od er
ab an don á-lo e segu ir p o r u m a ve re d a
m ais larga e m ais lum inosa. N ão pode
entrar lá sem m im , não pode acenar-m e
c o m o antigam ente. T e rá de bastar-m e
apenas a noção da sua direcção, du ran­
te lon gos p erío d o s, através de m u itas
28
tem pestades, até eu aportar na enseada
eterna.
A vered a que se oferece à m inha v is ­
ta sobe insensivelm ente, sem rigidez nem
obstáculos, com o um a serpente gigan ­
tesca cu ja cabeça e cau da não p u d es­
sem unir-se e que não pudesse m ed ir o
seu p ró p rio com prim en to: deitada sobre
a areia ardente, enfartada de carn ifici­
na, ja z a d o rm ecid a e satisfeita, em p le ­
na tran qu ilid ad e. Mas eis que, subita­
mente, o sol m e inunda com os seus ra i­
os de fogo e escorraça todos os pensa­
m entos do m eu cérebro. Tenho um úni­
co desejo: encontrar um a som b ra d elici­
osa onde p ossa deitar p or m om en tos o
meu co rp o extenuado. No entanto, um a
força irresistível im pele-m e para a fren ­
te, sem d elon gas e obriga-m e a andar
com passos hesitantes. Não consigo r e ­
sistir-lhe. E m b o ra fraco e esgotado, o b e ­
deço a este cham am ento eterno e sob e­
rano. Dou um passo, vacilo e caio, com o
o p á s s a ro rá p id o a tin gid o p e la flech a
cruel. D ebato-m e e p erco-m e na in con s­
ciência.
L e n ta m e n te , p r o s tr a d o , to r n o a
m im e olho o céu d escob erto e lu m inoso
e desejo estender-m e de novo e ficar onde
estava. M as a m esm a fo rça volta a pôr-
m e de pé e, com o outrora, sou irresisti­
velm en te obrigad o a seguir pela Vereda
in term inável.
A o longe, ergue-se um a árvore soli­
tária, cuja so m b ra d elicio sa m e d á as
boas-vindas. As suas folhas são suaves,
frescas e aveludadas, com o se o sop ro
b en fazejo da p rim a vera tivesse subita­
m ente d esp ertad o p a ra a vid a de con ­
tentam ento os seus ram os m ortos e a
sua folhagem de um verde m órb id o. A
sua som b ra é densa e protege quem pas­
sa dos ard ores do sol. Os od ores de erva
fresca e a árvore protectora parecem sor­
rir-m e e convidar-m e a partilhar a sua
em briagues. Um a m ultidão de pássaros
gorjeia, cham ando-se. S em forças, tra­
tei no entanto de aproveitar a benesse
inesperada que os deuses rne enviavam .
A p roxh n ei-m e com dificu ldade; toda a
árvore se curvou para me acolher, dan ­
do-m e um pouco da sua força vital. D es­
lizei para baixo da sua so m b ra p erfu ­
m ada e contem plei-lhe a folhagem ver­
de. O sono e o esgotam ento triunfaram
sobre m im e adorm eci, em balado pelo
su ssu rro das folhas e p elo ch ilrear dos
pássaros.
E s te s m o m e n to s d ito s o s , e s te s
m o m en to s de au sên cia total de q u a l­
q u er an gú stia ou so frim en to , d esca n ­
s a va m -m e d os m a les das n u m ero sa s
id a d es viv id a s . E s p e ra v a p e rm a n e c e r
s e m p re m ergu lh a d o n esta luz in efável,
e m b a la d o p e lo su ave m u r m ú r io das
c o is a s viva s, a p a zig u a d o a p ó s tantas
to rm en ta s in te rio re s e e x terio res. Ah,
qu e b om seria fica r etern am en te neste
d e lic io s o rep o u so !
Mas ai!, o Sol inexorável, in vejoso
da m inha felicid ad e fugidia, queim a-m e
de novo com os seus raios de fogo. Onde
está a m in h a bem -am ada á rvore? Onde
estão os pássaros chilreantes? O lho para
Iodos os lados: nem vestígios da árvore
lute lar. Estou só, m ais um a vez. T eria
sido um sonho? Teria sido a antiga ilu­
são a tom ar um a form a tangível? Teria
sido a piedade de um deus com passivo
ou o jo g o cruel de um deus m align o?
Teria sido a grande p rom essa anuncia­
da ou um a provação para sujeitar à m i­
nha paciência?
Quantas delas não tinha já eu se­
guido, essas realidades enganosas, que
sem p re me escapavam quando eu ju lga ­
va atingi-las! Desta vez, no entanto, a cre­
ditei m esm o ter escapado à sua p érfida
influência, à sua persegu ição cruel, tan­
ta sin ceridade tinha eu posto na p ro cu ­
ra do real, do durável.
A ilusão tinha-m e intrujado, então,
até m esm o neste lugar isolad o e solitá­
rio! C om um a pru d ên cia infinita, tinha
no entanto ap ren d id o a apartar o real
do irreal e agora que eu pensava ter al­
cançado essa arte suprem a, de todas a
m ais difícil, eis que tinha de retom ar a
pen osa ascensão.
Tal com o no início do Cam inho, um
novo ardor vem anim ar os m eus passos,
nasce em m im um novo entusiasm o e,
tal com o outrora, face aos sofrim en tos e
desgostos, hoje sinto-m e pleno de ardor
frente ao desconhecido, im paciente p or
31
experim en tar de novo as m inhas forças
n a V ered a in fle x ív e l. O a rd o r d a luta
tra n sp orta -m e e p a rto à con q u ista da
felicid ad e soberan a e im ortal. A Vereda
já não deve vo lta r a arrastar-m e; sem
vacilar, corro agora pelo cam inho. Já não
fico para trás; tornei-m e D ono d o C am i­
nho. J á não p reciso que m e estim u lem
para eu agir, p orqu e m e tornei eu p ró ­
p rio a acção. Quero, cam inho livrem en ­
te. A Vereda estende-se, m ilha após m i­
lha, século apos século, m ais escarp a­
da, m ais abrupta, m ais estreita que nun­
ca; serpen teia entre precipícios, deixan ­
do para trás tod o o passado.
M esm o lá ao fundo, abaixo de m im ,
estende-se o m u n do da d esolação e da
tristeza infinita onde a Ilusão, sob todas
as form as, sob todas as aparências p o s ­
síveis, rege as Forças desacorrentadas.
A esta altitu de rein a um silên cio
absoluto e acolhedor; no entanto, com o
avanço sem cessar no cam inho ab ru p ­
to, a n ova alegria m o rre ou tra vez em
m im , os m eus pés cansados tornam -se
hesitantes com o anteriorm ente e anseio
p o r reen con trar a árvore am ada que m e
tinha feito partilhar a sua som b ra ven ­
tu rosa e o canto alegre dos seus p ássa­
ros; essa árvore fantasm a tinha-m e dado
apenas um m om en to de felicidade fugaz,
é certo, m as essa alegria, p or efém era
que fosse, tinha-m e confortado. S u plico
aos deuses favoráveis que m e d evolvam
essa som bra, esse canto, esse c o m p a ­
32
n h eiro que em bale o m eu coração ator­
m entado. Sejas tu quem fores, M iragem
g lo rio sa e querida, lem bra-te do viajan ­
te cansado que p or um a hora se aninhou
nos teus braços e acolhe-o m ais um a vez
p a ra que ele esqueça e se retem p ere de
n ovo no teu rep ou so tão d elicio so com o
ilu sório.
Atende outra vez a m inha súplica e
hei-de bendizer-te p a ra sem pre! Estou
cansado, vem ajudar-m e, B eleza passa­
geira! A d orm ece-m e com os teus falsos
m u rm ú rio s, en coraja-m e com as tuas
p é rfid a s lison jas! Estou esgotad o p ela
fadiga e pelas súplicas e o p rim id o p elo
desespero.
A o longe, um ram alhete de árvores
ro d eia um a casa graciosa, com um ja r ­
d im fresco e p len o de arom as. A ssocio-
m e à alegria e aos risos de b elezas sedu­
toras. A s suas vozes suaves e a sua m ú­
sica feiticeira pacificam -m e. R egressa a
tranqu ilidade, a calm a, o com p leto es­
quecim ento. Sinto-m e feliz, p orqu e en­
con trei n esta m o ra d a a felicid a d e que
p ersegu i du rante in u m erá veis épocas:
a p r e e n d i fin a lm e n t e a r e a lid a d e .
M a s.. .estarei verdadeiram ente satisfeito?
N ão tenho tudo aqu ilo que desejei ter?
Então, p orqu ê continuar a so frer? Por­
quê continuar a lutar? H á aqui u m elixir
p a ra o cora çã o en ferm o, u m co n fo rto
p a ra o infeliz.
Quantos dias ou séculos p erm a n e­
ci nesta m o ra d a efém era?, não saberia
33
dizê- lo ; p o d erei eu algum a vez avaliar,
verdadeiram ente, os m om entos felizes ali
v ivid o s?
M as o in extin gu ível d e s e jo re to m a
v id a m a is u m a vez: d esp erto u nos r e ­
c ô n d ito s d o m eu c o ra ç ã o e tortu ra -m e.
N ão p o s s o con tin u ar p o r m a is tem p o
n esta ca sa alegre; n ão en co n trei n ela o
co n ten ta m en to que m e p ro m etia ; sob
este tecto, não há fe lic id a d e n em p az
p a ra m im . Fui fogu ete das ilu sõ es. A li-
m e n te i-m e de m e n tir a s . T in h a s id o
a tra íd o p e la lu z d a fa lsa ra zã o e, c o m o
ou trora , fiz a d o ra çõ es num te m p lo de
treva s.
Assim , após tantos m ilén ios, após
tantos esforços, enganei-m e a m im p ró ­
prio, e m ais um a vez fui vítim a dos deu ­
ses trocistas. D evia continuar a cam inhar
em frente, continuar a enfrentar o Ca­
m in h o inflexível?
U m a vez mais, eis-m e pen etran do
n u m a ir r a d ia ç ã o ofu sca n te; u m a vez
m ais, sinto ter forças pa ra retom ar a lo n ­
ga viagem . Um novo entusiasm o e esp e­
ranças novas elevam -m e; a m in h a cora­
gem renasceu. O velh o C am inho dos inú­
m eros séculos sorri-m e um a vez m ais e
p rom ete conduzir-m e até à Luz.
Pareço um a gran de árvore curvada
p o r ventos im petuosos, que se en d ireita
qu an do regressa a calm a e que, de ca­
b eça erguida, fixa de novo os céus in ­
sondáveis e d esafia o sol ofuscante. U m a
vez m ais, o orgu lho do isolam en to que
34
m e afasta dos vãos p razeres da m u lti­
dão banal faz vib ra r todo o m eu corpo.
A solid ã o na qual estou m ergu lh ad o é
com o um vento fresco vin d o da m onta­
nha. U m a vez m ais, anseio arden tem en ­
te triu n far sobre a tristeza e atingir a
libertação gloriosa. Feliz aquele que luta!

35
Terceira Parte

A ve re d a lon ga e sinuosa d esen ro ­


la-se diante de m im no cam inho d eser­
to; n ada vive, nada, para além do via ­
jan te. O m eu coração p alpita na expec­
tativa de um a n ova vitória, estou in tré­
p id o com o um conqu istador que entra
orgulhosam ente num a cidade tom ada de
assalto. A n seio p o r batalhas m ais séri­
as e d ifíceis e lam ento que elas m e fa l­
tem . Subitam ente, um a calm a solene e
grave obscurece a m inha alegria e o p ri­
m e o m eu coração. Sou com o que esm a­
g a d o p e la im e n s id ã o e p e lo s c é u s
im p ied osos; a m eus olhos já não exis­
tem n em a gló ria nem o orgulho da vitó ­
ria, e a terrível solidão oprim em -m e cada
vez m ais. M as o invencível desejo de atin­
gir o objectivo ainda persiste em m im ,
com a in d om ável vontade de vencer. Há
q u a n to s sécu lo s estou a c a m in h o ? A
m in h a m em ó ria turva recusa-se a su por­
tar esse núm ero.
A V ered a está tão ca n sad a co m o
aquele que a p ercorre, e am bos ansei-

37
am p e lo final, m as a von tade daqu ele
que condu z é tão firm e com o a d o que é
con d u zid o. De cad a la d o d o cam inho,
em in terva lo s regu lares, elevam -se as
árvores m ajestosas que balançam os ci­
m o s p ra te a d o s ao sol, e sq u ecid a s de
que, tam bém elas, foram ou trora sem e­
lhantes às plantas. Ali, m o ra m p á ssa ­
ro s de todas as espécies, de tod as as
cores, de tod os os tam anhos: os seus
cantos alegres ou queixosos ressoam nos
m eus ouvidos que, após longas épocas,
não ou viram senão o barulho m on óton o
dos m eus passos.
Estas criaturas alegres assustaram -
se com a m inha chegada, m as continu­
am a cantar olhando-m e com um a su­
p re m a in diferen ça. S ob a so m b ra que
abriga, a erva balança ao ritm o do vento
que b rin ca entre as folhas. A árvore v i­
gorosa, os pássaros encantadores, a erva
tenra, tudo m e acolhe e prom ete em b a­
lar o m eu sono. Tudo isto é tão secreto,
tão perfu m ado, tão repou sante p a ra a
m in h a vista cansada, que estou prestes
a ceder à tentação. M as eis que em m im
se evoca a lem bran ça de outras árvores,
ou tros p ássaros, ou tras som b ras, tão
acolhedores e deliciosos com o estes, m as
quão decepcionantes! Espantada, a m i­
nha bem -am ada Vereda sorri, ob servan ­
do os m eus actos e gestos p ara saber se
optarei, de novo, p ela fruição. Ah, a fre s ­
cura dessa árvore, a delícia do canto des­
ses pássaros, o suave m u rm ú rio dessas
38
folh as! Ah, deixem -m e repousar, p or um
in stan te que seja, antes de reto m a r o
m eu cam inho!
O sol está tão quente, e estou tão
cansado, e o m eu coração tão m o rtifica ­
d o p or esta longa viagem ! A som b ra fre s ­
ca n ão p o d e fa ze r-m e m a l. Ó v e r e d a
inexorável, concede-m e este segundo de
felicid ad e! H á séculos que conheço tan­
tas noites sem sono; invejas-m e ou n e­
gas-m e este m om en to de rep ou so? Não
pod es outorgar-m e este favor único e dig­
no de in teresse? Para onde se escapa­
ram o teu amor, a tua sim patia infinita?
S u plico-te que não te afastes de m im ,
m as que escutes a m inha súplica.
R ein a um profu n d o silêncio. O ven ­
to deixou de b rin car nas folhas. Os pás­
saros estão m udos, m udos com o a m o r­
te, e a gran de árvore m ergu lhada num
p ro fu n d o devaneio. A som b ra tornou-se
m ais densa, rein a a m aior calm a e um a
en orm e frescura. A erva tenra olha-m e
de fo rm a in terrogativa e procura, com
os seus pequenos pensam entos, a cau­
sa da m in h a insólita hesitação, e cada
u m a d a s su a s h a s te s s u s s u r r a u m
encorajam en to d irigid o a m im . A V ere­
da das n u m erosas experiências e do alto
conhecim ento sorri às m inhas hesitações
e às m inhas lutas; e nesse s o rriso não
há en corajam en to n em satisfação. É o
so rris o neutro da sab ed oria e do con h e­
cim ento, que m e diz: «Faz o que te p a re ­
ce bem , m as o arrepen dim en to aí está à
39
tua espreita». A m inha escolha está fe i­
ta. Tal com o a névoa matinal, suavem en­
te dissip ad a pelos p rim eiro s raios do sol
nascente, assim a bela árvore d a fruição
se v a i d e s v a n e c e n d o g ra d u a lm e n te a
m eus olhos, os pássaros cantores levan ­
tam vo o com o quando se a p roxim a um a
trovoada, e a erva verd e fica ressequ id a
sob os raios ardentes do sol. N ão su b­
siste senão um vestígio do passado: a
Vereda. Ela prolonga-se e eu sigo-a hu­
m ildem ente. A o lon go do cam inho, em
intervalos irregulares, oferecem -se á rv o ­
res que m e con vidam a saborear os seus
frutos arom áticos e saborosos e a d elei­
tar-m e com eles. Su avizariam a m inha
garganta ressequ id a e m atariam a m i­
nha sede ardente. Mas a m inha Vereda é
r ig o r o s a , e d is p e n s o -o s . M ais lon ge,
explên didos palácios, locais de p razeres
e delícias, com portas sem pre escanca­
radas, con vidan do o p eregrin o cansado
a entrar. Um século, m uitas vid a s m e
separam dessas m oradas, o viajante can­
sad o irá ser m ais um a vez vítim a dos
seus en god os? S em m e cansar da sua
h osp italid ad e enganadora, quantas v e ­
zes h esitei na entrada, p en etra n d o ali
p or vezes, saindo envergonhado, feliz por
cam inhar de novo na Vereda qu eim ad a
p elo sol. Eu entrava n essa casa de p a i­
xões violen tas e egoístas, p ra zeres g ro s ­
seiros, ignom ínias, e deleitava-m e com
tudo o que ela p od ia oferecer-m e. T a m ­
b ém frequentem ente, com passos hesi­
40
tantes, passava frente a essa residên cia
de som bras vãs, frente à da saciedade,
de felicid ad e fugidia, à da lison ja e à do
ensino em que o con h ecim en to dos fei­
tos passageiros e falsos contenta o ign o ­
ran te. Eu era a tra íd o p a ra a casa do
am or que lim ita, que é egoísta e ruim ,
que tudo esquece, salvo a si m esm o, do
am or que se apaixona, que deseja, do
am or lim itad o do pai, da m ãe, da irm ã,
do irm ã o e do filho; do am or q u e con so­
m e lentam ente e sem piedade os senti­
m entos m ais nobres, o am or que se con­
tenta com coisas m esquinhas. Tran spu s
m uitas vezes o lim iar da ign orân cia fe­
liz, o lim ia r brilh an te da lison ja vã, o
lim iar triste do ó d io negro e da astúcia
enganadora.
Q u a n ta s v e z e s s u c u m b i às te n ­
ta ç õ e s d a in t o le r â n c ia s e m p r e re n a s -
c e n te , d o p a t r io t is m o r u id o s o q u e
e n g e n d r a o ó d io p e ç o n h e n to e b e li­
c o s o , d o o r g u lh o s o lit á r io e g é lid o
q u e p e rm a n e c e in a c e s s ív e l. T in h a -m e
in s ta la d o n a e s ta la g e m d a a m iz a d e
e x c lu s iv a e c iu m e n ta - n a e s ta la g e m
d o v íc io e s c o n d id o e a tra e n te , d a fa l­
sa s a b e d o r ia , in tr a n s ig e n te com
tu d o s a lv o c o m a su a p r ó p r ia f i l o s o ­
fia m e s q u in h a - n a e s ta la g e m d o
e n s in a m e n to ta c a n h o q u e p o u c o
sa b e, m a s q u e c o n d e n a c o m a la r id o
tu d o o q u e e s tá fo r a d o seu a lc a n c e .
Penetrei nos santuários de m uitas
religiões que vivem entre as suas p a re ­
41
des acanhadas, m aculadas de su persti­
ções obscuras, adoran do falsos deuses,
sacrificando criaturas inocentes nos seus
altares, em pen h an do-se em guerras r e ­
ligiosas fúteis e orden an do perseguições
atrozes. P rocu rei a luz, vagueando em
casas obscuras, m as...ai!, m ais não fiz
que perder-m e com o um cego!
S ó a Vereda q u erid a e b on dosa m e
com preen de, sem p re que, cabisbaixo e
de coração envergonhado, regresso a ela;
acolhe-m e e p rom ete ser sem p re a m i­
nha guia e eterna amiga.
D e ca d a la d o d o lo n g o cam in h o,
p o d e m s u r g ir n u m e r o s a s te n ta ç õ e s
sem con ta, sob as fo rm a s m a is a tra ­
en tes. N ão q u e ro su cu m b ir-lh es m ais;
qu e o u tro s se d e ix e m sed u zir, eu q u e ­
ro seg u ir o m eu C a m in h o. T en h o a p e ­
nas u m d e s e jo : descan sar, b e b e r lo n ­
g o s tra g o s na n a scen te h á tan to p r o ­
m e tid a e s a c ia r a m in h a sed e n a fo n ­
te, à s o m b ra . M as m al os m eu s o lh o s
ten ta m d iv is a r ao lo n ge, são r e tid o s
p o r o b je c to s e n g a n a d o re s . S ó u m a v e z
c o n s e g u i fa la r t r a n q u ila e d e m o r a ­
d a m e n te c o m a m in h a c o m p a n h e ir a
s o litá ria , a V ered a; m as to rn o u a fic a r
m u da, s u fo c a d a p e lo b a ru lh o em r e ­
dor. S ó u m a v e z re in o u a p a z a b s o lu ­
ta, m as d e s d e en tão o s ilê n c io s a g ra ­
d o d e ix o u de se r a u d ív e l p a ra m im ,
p o r c a u s a d a lin g u a g e m p r o fa n a d a
m u ltid ã o . N o en tan to, n o m e io d o tu ­
m u lto d o m u n d o e d o fa la tó r io in c e s ­
sante, a m in h a Vereda co n tin u a a t r e i­
n ar-m e, e eu s ig o -a sem m a is su b ter­
fú g io s .
Não p o d erei d izer durante quanto
tem p o viajei no país da fantasia; no en­
tanto, um dia, num im pu lso de resolu ­
ção viril, aderi finalm ente à m inha V ere­
da. C ontinua a subir, d esesperadam en ­
te, e eu, de m em b ros quebrados, conti­
nuo a percorrê-la penosam ente, sem me
desviar dela, para regressar ao vale te­
nebroso.
Durante séculos lutei, resistin do às
inclinações e aos p razeres passageiros;
no entanto, sem pre e sem darem tréguas,
surgem diante de m im , para m e sedu zi­
rem , novas e m últiplas form a s de tenta­
ção. É certo que nunca m ais pretendo
ser vítim a delas, e apesar d is s o ... O deu­
ses cruéis, não terão nunca fim esta m i­
séria, esta d eslea ld a d e, estes d esejo s
efém eros? H á quantos séculos cam inho
nesta Vereda da justiça, cujo fim ainda
n ão se divisa? O único objectivo a atin­
gir seria, então, p ô r à p rova a m inha r e ­
sistência às p rovações? Não, não pode
ser isso, p o is ou trora, num tem p o já
m uito distante, vislu m brei o cum e da ilu­
m in a ç ã o . M as d u r a n te q u a n ta s
encarnações terei ainda que vaguear na
m ágoa e tribu lações até atingir o portal
da Felicidade? S em queixum e e sem cu­
riosidade, sou força d o a continuar du­
rante m ais um século a escalar a V ere­
da. Estou cansado, o m eu coração san­
43
gra p o r causa de toda a m iséria, todos
os sofrim en tos que suportei.
As esperanças vãs e as prom essas
falaciosas sustiveram -m e, em b ora o eter­
n o tivesse s id o o o b jecto de to d o s os
m eu s d esejos; as m in h as ap alp ad elas
cegas p ara encontrar a verd ad e tinham
sid o perseveran tes e o m eu entusiasm o
ardente e inextinguível. Não p o d ia a m i­
nha Vereda bem -am ada levar-m e até ao
cum e da m ontanha, com o sem p re m e
p rom eteu ?
A p ó s u m a es p e ra tão d o lo ro sa , a
V ered a con tin u a a con d u zir-m e p a ra a
Ilu sã o? P o rq u ê? Que fiz eu, ou então
qu e m e te re i eu e s q u e c id o de fa z e r?
Que n in h a ria s n egligen ciei, que s a c ri­
fíc io s te re i a in d a de oferecer, que m a i­
o r e s a g o n ia s t e r e i d e s u p o r t a r ? A
qu an tas p u rific a ç õ e s m ais te re i a in d a
que ser su b m etid o e qu al é a e x p e riê n ­
c ia d e m a io re s to rtu ra s qu e m e está
r e s e r v a d a antes de a tin g ir a m o ra d a
b en d ita d o C o n h ecim en to p u ro e da Fe­
lic id a d e sagrad a?
A m ãe que m e trouxe no ventre não
sab ia de certeza o qu e estava a fazer.
Ah, se soubesse, o leite com que m e ali­
m entava com tanto am or ter-se-ia tran s­
fo rm a d o em veneno, e pou par-m e-ia a
estas torturas interm ináveis. F icaria fe ­
liz se pudesse pôr- lhes cob ro à h ora do
crepúsculo; m as não será infantilidade
lam en tarm o-n os do inevitável?
A m in h a q u erid a m ãe foi irrep ro -

44
vável, e é insensato revoltar-se contra as
p rovações d a evolução. E sta luta tem de
ter fim , p o rq u e a p orta d o con h ecim en ­
to pode ser alcançada e aí b rilh a rá a Luz
que guia, a V erdade que tranquiliza, o
en sinam ento que leva à felicidade p er­
feita sem m esclas.
Ah!, j á não p o s s o g em er m ais, o
m eu c o rp o está d em a sia d o d eb ilita d o
p a ra resistir p or m ais tem po ao desgos­
to, a m inha força vai esm orecen d o p ou ­
co a pouco, tod o o m eu ser se revolta
contra este vazio cruel. Não p od eria Deus
v olver o seu olhar com passivo para o v i­
ajante solitário e esgotado?
M estre d a S a b ed o ria , ap ied a i-vos
d ele, con ced ei-lh e essa gra ça in fin ita,
ú n ica que p o d e cu rar e levar a luz ao
qu e titu b ia nas trevas. Ó vós, n oites
fresca s, o b rig a i o so l a rd en te a afas-
tar-se d a q u i e vós, nuvens so m b ria s,
e n c o b r i os seu s r a io s a b r a s a d o r e s .
O n d e estã o a m ã o fo rte qu e p o d e r ia
c o n d u zir e ap oiar-m e, a v o z que s a b e ­
r ia re c o n fo rta r e en corajar-m e, o b e ijo
q u e m e fa r ia e s q u e c e r ? Fui, e n tã o ,
a b a n d o n a d o ? L a n ç o um a p e lo s u p re ­
m o c o m a v o z agon izan te.
R esp on d e-m e apenas um silên cio
absolu to.
A m in h a q u erid a V ereda sorri-m e
piedosam en te, e p o r todo o lado, até nas
casas barulhentas, rein a a calm a inqui-
etante de um a noite em que se p erp etra ­
ria um crim e, ou na qual as queixadas
45
pesadas dos túm ulos se en treabrissem
num b o cejo forçado.
N o lim ite das m inhas forças, va ci­
lo. A proxim a-se o fim da m inha existên­
cia. N o m eu pensam ento, tenho a visão
de um céu onde rein aria a paz perfeita,
de um albergue d elicioso p ara o viajan ­
te fatigado. Durante quantos séculos ain­
da terei de suportar esta dor na m inha
m ente, esta contínua m aré de d escon ­
tentam ento, estes restos do passado p or
saldar, estes sofrim en tos no m eu corp o?
Infelizm ente!, não conseguiria prevê-lo...
T ã o longe qu an to os m eu s olh os
p od em abarcar, não d iviso senão coisas
ilusórias. N o entanto, a cada passo dado,
cresce em m im a convicção de que o tér­
m in o da longa viagem se aproxim a; tal
com o um b arco acercando-se do porto.
P ossam as d ivin d a d es que nos gu iam
im pelir-m e em d irecção ao m eu destino!
Subitam ente, a atm osfera ficou cal­
ma, sem u m a b risa com o num m o m en ­
to de esp era solene, e rein a o silêncio,
sem elhante ao que se segue a um b elo
pôr-de-sol, quando o m undo inteiro m er­
gulha num a adoração muda.
É um silêncio profundo, sem elh an ­
te ao de um a noite estrelada qu an do as
estrelas distantes en viam b eijos um as
às outras através da im ensidão. R ein a
u m a acalm ia inusitada sem elhante a um
fim de tro vo a d a bru sco; sente-se um a
im en sa paz, com o se estivéssem os no
átrio de um tem plo sagrado.
46
D en tro de m im , a d o r e a tristeza
d o p assado estão parcialm ente a d o rm e ­
cid as e, qu an d o os m eus olh os se fe ­
cham , flutua no ar um m u rm ú rio suave
e doce. Todas as coisas anim adas e ina­
n im a d a s rep o u sa m das suas lid es. O
m u n d o in te iro está m e rg u lh a d o num
s o n h o p a c ífic o . O s o l, c u jo s r a io s
a b ra s a d o re s m e q u eim a ra m im p ie d o ­
sam ente durante tantos séculos, é subi­
tam ente m isericord ioso, e cria-se em re ­
d o r um a frescu ra sem elhante à das flo ­
restas profundas. A Divindade tom ou for­
m a no m eu interior. N ão obstante, a Ve­
red a tornou-se m uito m ais escarpada, e
eu continuo a árdua ascensão. E n qu an ­
to escalo esta colina, as inum eráveis m o ­
radas da con cu piscência e das paixões
dissipam -se; as árvores verd es escassei­
am cada vez m ais e com o estou a chegar
ao cum e, as atracções do m undo desa­
p arecem de vez...
O C am inho continua a subir a d i­
reito, m as o ar tornou-se m ais fresco, a
ascensão m ais fácil. U m a força enorm e
enche o m eu ser, e avanço com um entu­
siasm o crescente.
L á longe, ao fundo, a m inha Vereda
m o s t r a - s e - m e p e lo m e io d e u m
bosqu ezinho. N ão m e atrevo a olhar para
trás nem p ara os lados, p orqu e o C am i­
nho ficou parigosam ente estreita.
T ran sp on h o esta passagem arrisca­
da com o num sonho, de olhos fixos na
v is ã o lon gín qu a, m al v e n d o p o r on de

47
ando. Estou num êxtase indizível, pois
a visã o velad a que b rilh a diante de m im
preenche a m inha alm a com um a esp e­
ran ça d e rra d e ira e im ensa. C om um a
passada ligeira, p recip ito a m inha m ar­
cha, tem en d o que a feliz visão p ossa d is­
sip ar-se e escap ar-m e co m o já tantas
vezes aconteceu...
Não há nenhum p eregrin o na m i­
nha frente, e no entanto o C am in h o é
suave, está unido e p o r assim d izer gas­
to p or m ilh ares de passos que o p erco r­
rera m durante inúm eras épocas; b rilh a
com o um espelho. É escorregadio. Subo-
-o com o em sonhos, tem en do d espertar
p a ra rea lid a d es en gan ad oras. A visã o
continua clara e torna-se m ais nítida à
m ed id a que m e a p roxim o com rapidez.
Os deuses m iserico rd io so s resp o n ­
deram finalm ente à sú plica que lhes fiz,
na m in h a solidão. A m in h a triste e lo n ­
ga od isseia chega ao fim e a etapa g lo ri­
osa está próxim a.
À frente, b em longe, abrem -se ou ­
tras vered a s e outras portas onde irei
bater de coração alegre e com m ais se­
gurança. Deste local p osso enum erar to­
dos os C am inhos que se estendem à m i­
nha frente. C onvergem todas pa ra o m es­
m o p on to, e m b o ra estejam sep arad as
p o r gran des distâncias: são n u m erosos
os p eregrin os que cam inham nessas v e ­
redas solitárias e cada um deles sente-
se orgu lh oso da sua solid ão cega e da
sua separatividade insana.
48
Tal com o eu, desviaram -se para a
sua vered a zin h a pessoal, abandonando
e rep elin d o a estrada grande.
N a sua ignorância, lutam às cegas,
c a m in h a n d o na su a p r ó p r ia som b ra ,
agarrados às suas verdadezin h as a que
ch am am obstinadam ente a G rande Ver­
d ad e. A m in h a Vereda, que m e guiou
através das regiões encrespadas de m on ­
tanhas, con tin u a d o m eu lado. D e rra ­
m an d o lágrim as de felicidade, con tem ­
p lo esses viajantes extenuados. Meu qu e­
rido, o m eu coração despedaça-se com
esta im a gem cruel, p o rq u e não p osso
descer p ara lhes dispensar a b eb id a d i­
vina, a única que p od ia estancar-lhes a
sede que os consom e.
T ê m de ser eles p ró p rio s a d esco ­
b rir a fonte eterna. Mas, ó Deus de amor,
não p o d e ria eu ao m en os tornar-lhes o
C am in h o m ais suave e aliviar-lhes os s o ­
frim en tos e a tristeza que a si m esm os
criaram com a sua in con sciên cia e in ­
d olên cia?
V in de aqui, vós que estais atribu­
la d o s, e en trai c o m ig o n o T e m p lo do
C onh ecim en to e nos oásis da im o rta li­
dade. C on tem plem os a luz eterna, a luz
que difunde a paz, a luz que purifica. A
verd a d e ra d iosa brilha, resplandecente,
e nós não p od em os continuar cegos p o r
m u ito tem po, nem continuar a cam inhar
às apalpadelas nas regiões tenebrosas.
A n ossa sede será saciada p a ra sem pre,
pois b eb erem os n a fonte da Sabedoria.

49
Sou forte, já não hesito. A centelha
d ivin a derram ou -se em m im . N um s o ­
nho lúcido, con tem plei o M estre de to ­
das as coisas e irra d io a sua alegria eter­
na. M ergulho o m eu olhar no O ceano sem
fu n do do C on hecim ento e con tem p lo to ­
dos os seus reflexos. Sou u m a p ed ra do
tem p lo Sagrado. Sou o hu m ilde tufo de
ervas ceifado e esm agado pelos pés. Sou
a árvore gran de e h irta que corteja os
céus. Sou o anim al acossado. Sou o c ri­
m in oso a m ald içoad o p o r todos. Sou o
nob re h on rad o p o r todos. Sou a triste­
za, o desespero, o p ra zer p or um a hora,
as paixões, os êxtases, o rancor am argo
e a com p aixão infinita e alternadam ente
o p ecad o e o pecador. Sou o am ante e o
p ró p rio am or verd ad eiro. Sou o p ró p rio
amor. Sou o santo, o a d orad or e o cren ­
te. Sou Deus.

Você também pode gostar