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[166-tiensrse Societe "| sven nos nao rte arin Pcs 167] \10-40) CLEUSA RIOS PINHEIRO PASSOS: Universidade de Si0 Paulo Resumo Palavras-chave ‘artigo stinks pects ds conuenas entre Crea Cla Mednine Terr Pacenale. Polen. eta Iinha de pesquisa Penal: depne-secoma recurso derertarasingladte do confluencas:agon litera preservndo as marcas do “outa saber”- Agua istics eta tesjetoria se estentrd tanto na busea de limites © Meatabealee esteico. Ao tratar de Capicu, a propésito de urna “lebre” levantada por Peregrino, afirma: “A descrigao dos olhos, do que fazem e do que dizem ¢ elemento especialmente de ordem psicologica (..] ¢ a contt- rua citagdo e descrigto deles na obra de Machado de Assis nto me patece provar nenbumna peculisridade temperamental, como € 0 caso de preocupacdo pelos bracos.|.. necessirio, portanto, sclecionar ue é lugar comum e 0 que ¢ excepeionalidade na caracterizagso do olhar™’ Mais feliz que Peregrino Jr, em 1947, Augusto Meyer produz dois artigos preciosos para nosso fio, "Da Sensualidade na obra de Machado" e "Capitu"™. Ao tratar do priteizo, declara literalmente: “Para o psicanalista, quantos meandros pré-freudianos perdidos, como isco de molde, no labitinto caprichoso dessa obra... Quase todas marcavam o rumo certo de umma intuicdo, transformada mais tarde era matéria de estudo psicologlco|...”. Na conclusio do segundo ensaio = *Capitu’ =, Meyer pontua a propésito do autor “um dos seus ach dos essencials em matéria de psicologia: a duplicidade que se ‘automatiza e se torna mais espontinea do que premeditada, quase reflexiva e inconsciente, como as atitudes condicionadas & reagdo defensiva’. Conforme se observa, a terminologia da Psicanalise adentra disctetamente a Critica literdtia, num ensalsta que integra diversas A leitura de Freud af se revela como algo jé disseminado e fun- damental para a interpretacao de certas facetas do texto literati. Fntretanto, 0 pensamento freudiano € ainda recente e polémica no FrOprio meio “psiquidtrico", justificando, em parte, a oscilagio entre vances e recuos de alguns pesquisadores. A sensibilidade de Meyer representa os primelros, oponde-se, por exemaplo, 2 Héleio Pereita da Ssvae seu Machado de Assis (A megalamania), escrito entre 1948/1049°, de: fendendo a ideia segundo a qual a pobreza do autor o faz meter-se “na rele de alguma personagem abastada’ Centtando-se em Bras Cubas, personagem na qual a megaloma- ria de Machado se evidenciaria intensa, algumas linhas sio dedicadas com o intento expresso de “identifier @ autor através da obra -xachado de Asa, ero por Mato de Andee, ati entre ensiorunidsem se ‘Aspects da teratura braslira (a ed), Sto Pel, Marne Fontes INL IMEC, 1972, peei0e "0s dots texas de Meyer podem ser encontadorem se A sombna da etn, io de Sani, Jos Olympo, 1947, p 37-46 (opel) e 51-61 Cosegundo) © Tvemos ceo pena 32 cdi dolina de Hc eri, Rio de Jane, El Brae eurusamoe soe es ar Pact «475 10-40] a Bentinho, simbolo da “infancia confortavel, mimada e, sobretudo, bem edueada” que 0 mestigo, filko de lavadeira e de um pintor de paredes, gostaria de ter vivido. Na esteira da critica, Hélcio Pereira Feconhece a importancia de seguir 0 rastro psicolégico - embora de ‘maneirs irelevante ~ j& que procura demonstrar a obra de Machado como super compensagao psiceldgica de sua epilepsia, gagucita, recalques da alma etc. valendo-se de elementos da teoria freudiana fetomados ott contestados por Allred Adler. Conforme se ve, se ha uunanimidade em relagio as confluéncias entre Critica e Psicandlise, € necessarto pereeber graus de adequacao e coeréncia no objeto litersrio ‘scothido, ator determinante para que o “rastto” a perseguir no tome a ‘obra reflexo de desejos pessoais ou de outros coahecimentos, nem obs- ‘curega‘o conjunto de sua eriagao, pena de sentidos a merecerem olha- res diversificadas, A Psicanilise “ dia-de-semana” Na década de 1960, Dante Moreira Leite parte de um dos recursos utlizados por lteratos mais recenes, no preficio de sua obra Psicolo gia ¢ literatura (1964)", esclarecendo que evita jargoes, 20 advert: “escrevinalinguagem que uma peronagem de Guimaraes Rosa deno- tminos “ala de pobre, inguagem deem diade-semana (“Famigerado"/ Primeias extras), Nese lio, alen de um ensalo dedicado a Freud, © eritico discute aspectos de Dom Casmurro, Detendo-se em sua renomada ambighidade, trata os climes de Bentinho cota um *pro- cesso de projecdoe asinala que nafiecto machadiana a escola afetiva 56 € adequada quando existe uma semelhanea fandarnental nas carac- teristicas psicoligica” Em tal directo, evtando igualmente jargoes ¢ artculando ee rentos estéicos, filoscfics e soeas, Antonio Candido mostra leiti- 11 de Freud, em “Esquema de Machado de Assis publicado em Vari- 0 eseritos (1968)". No artigo, nao apenas o psicanaista ¢literalmen- te ctado, enquanto possvel apoio tedrco, para a apreensio do enig- ma de um conto (‘Singular ocorrexcias Historias sm data), mas tam bem sio levantadas questoes reveladoras de encontros importantes entre prost machadiana ea Psicanaise,conforme se pode ler. “Se a fantasia funciona como realidade, «¢ ndo conseguimos agirseno mu- tlando © nosso proprio eu, (.] se estamos condenados a nao atingit © que nos parece valioso ~ qual adiferenga entre 0 bein © © mah 0 justo €0 Injusta, 0 cent e o etrads? Nio basta dizer que af se colocamn problemas étcos. Ha tam: bem o que a Psicandlise acentua com insistencia. Em outros termes, a realidade psiquica equivale a realdade referencal e, ainda, ¢ preciso m fala de pobre, linguagem de em " CL Palo eeeratra 28, Sh Pas, Cia. EA, Nacional, 1967. " Ensaio condo ax ob Vision exrta, StoPaslo, Dua Cidade, 1970,p 13-32 [176-tincareeSosadse o4gko comenonaria aceitar tanto 0s limites pessoais (a eastragao), como a impossibilida- de de realizagao de nossos desejos. Aliés, sto sinda de Candido as palavras que ~ como "a mo e a luva' ~ encaixam questdes criticas 20 pensamento psicanalitico: “dentro do univers machadiano, nao im- porta muito que 2 convicgto de Bento seja falsa ou verdadeira, por- que a consequéncia ¢ exatamente a mesma nos dots easos: imaginria fou real, ela destrdi 2 sua casa e a sua vida”. A pergunta da primeira parte do pardgrafo se explicta na interpretagio textual do romance, porém permela a obra de Machado, segundo o ensaista. Ora, quem 4 propée e articula as relagdes sublinhadas constitui um dos nossos Imalores erticas Iterarios euja formagio sociologica ¢ largamente re- conhecida. Por fim, detenbo-me em Alfredo Bosl — outro estudloso a tncor- porar a teoriafreudiana de modo hibil e sub-repticio em seu discus, Dois textos chamam a ateng#o, “Uma figura machadiana” (1978), centrado em Memorial de Aires, € “O enigma do olhar” (1997)" em Dom Casmuro. Em ambos, ctiam-se importantes relagbes entee 0 estético € 0 fis social e psicanalitico, verbalizando-se, literalmente, nogdes da Psicanalise. Dentre elas, os "instntos de vida e morte", 0 desejo, a su- blimacdo, “o tom melancolico, que tem muito a ver com 0 eros frustea- ddo como entenderam os moralistas medievais e barrocos atando a sen- sualidade & wisteza". A semethanca de varias passagens, a citada tam- ‘bem pode evocar Freud, sempre atento 20 elemento cultural e seus desdobramentos no tempo. Af, “tom e frustragio lembram as refle- xbes do psicanalista sobre o luto ¢ a melancolia no que concerne a perdas afetivas Particularmente, enfocando a configuragio de Bentinho,o ensaista reforca 2 posicao de Antonio Candido, concordando com a ldeia de [pouco importar se atuam “imaginério ou realidade” nas desconfiangas ddo narradow/protagonista. Assinalando 0 “tom de malogro e esvazia. ‘mento” da meméria que fltra 0 contar e nlo esconde a fragilidade exis- tencial vivida, Bosi escolhe, talvez, a mals pungente e amarga das con- fissbes de Bento amadurecido: alto eu mesmo, e esta lacuna & tuda” — frase lapidar que poucos tem a coragem de proferir (até mesmo num divi.) ~ torna-se intensa na literatura, ja que comporta a diferenca nite 0 dizer e 0 escrever, evelando nao um sujeito que aflora no m0 mento da fala (& semelhanga da andlise pessoal na prética), mas um sujeito e seu esvaecimento, determinados pela palavra criativa que, no caso, permanecers Com frrqnéneia, as Incunae a preencher constituem, imaginari- amente, os pontos de engano de nossos desejos, 0 reconhecimento seco da "falta", desprovido de cenas imaginarias, num contexto (0 de 0s dos attigos de Alfedo Bost encontram-e em eu Machado de Aris, O niga do clhar (ope sfrapblcado ancerionmenteeosegundo apueca pela prime vez esa eigo) St Pate, Aca, 1999. Jara nose. sos bea ne Pc 179 10-20 Bentinho) no qual “antes da separagio definitiva advinhase um ulti ‘mo sopro de sentimento reprimido do amante", envolvendo sutiimen- te 0 universo da Psicanalise, sem a presen;a explicta de sua tertnino- logia. Recalque, desejo,logro, falta e, em especial, a percepgto diluida, das distingdes entre realidade material e psiquica estabelecemn as co- nnexdes fundamentais que, de alguma fora, contribuem para o perfil de nossa linha de pesquisa, Paralelamente, continuam a surgir véslos estudos que, embora Incorporem dados importantes no intuite de respeitar particularida- des literitias, nao abandonam questdes da Psicanalise ainda contesté- veis pela Critica Iteriris. Em geral, bon trabalhos de mestrado ow doutoredo, ainda no publicados, obedecem a certas tras teoticas que, por vezes, no alcancam dialogar apropriadamente com o texto literatio, porém apresentam expressivas intuigdes litersrias a serem resgatadss. © problema esta em obter a mediadora conciliasio dos ‘campos de conhecimento, respeitando os elos entre a invencdo litera- nia, seus valores contextuais e marcas da tradigio a que se vincula, sua singular elaboracdo verbal e os aspectos psicanaliicos — transfi- gurados nesse jogo artistico ~ escapando a solucoes perigosas € c6- ‘modas, tals como diagndsticos, complexes, modelos identificatsrios pre-estabelecidos, explicagbes e jargoes, que invader, descaracterizam © literario, acabando por levar & perda do deslocamento dos saberes nna literatura. Tal destizamento {a2 dela algo irredutivel”, resistente a discursos cristalizados, provindos ~ ¢ bor insistir - ndo 6 da Psica- nilse, mas de qualquer area que a cerque. Ainda assim nfo se pode ignorar 0 valor historico de estudos, conczmnentes a um modo de let caja diregao busca relagdes em maior conformidade com 0 objeto literario escolhido™. " Chsbre questo, Roland Barthes, m Aula (Sto Pal, Calin, 1978, (tad de Lela Parone Mout) * A gusa deep, cto doe, poruepublieadoseolads,eecicamentparaaports Ago cress qua sabemos, era quand pase olsaniano feuds (Os tabalhos basa fcaiat vinclas entre Cris esis Petenisedevendo respi suamuureze contexco (estado dowtondoprovindo daSemitiene Paco legis). Oprimeite, Dom Casmurroscturae dar ena em teraturae pecan ede Vlad Monte (So Paulo, HaeckerCesPuo apes, 1997), moster sensi liad eri comudo dada quase meade dese tetoateatalacantanc concep ‘obras questo da esrtura ide do romana, core que em sempe cons dae ‘eats com total do romance = de rts forme compavel com propor da ‘tor O segundo, Frade Machado de Asse una interad ent penclie erate rode neo, Maud Ed, 2001 de Lae Alero Pde Fre eora cpg om lngusger eaves elatvcae, as veesse dean pregnar plo olka do akan, dando marge sconuoversas Vejse, por exemplo, a passgen erm ue rec ot “modelos dentfcatrios” parents que scoram, 2m oda aera, 2 "pte da “fieaiadesmarinoiiseaescolhahomosienal namin” eth por Escobst fue vai provocr [seu] cme pojeine ~aepecto baste poles per a exc acacia 10-40) 478-Lirsur Soe cogie contnonann fa [Jawsanes mcs Creatine Pca 179 Houve ste aqui uma selegao algo premeditada de leitores rachadianas que visavam integrar diferentes enfoques. Cabe lembrar que & Critica hteriria brasileira teve uma trajet6ria particular, obser vando-se a auséncia de nomes significativos que, baseados na patolo ia, psleabiografia, pscocritica, fossem além delas. Nossa critica pare- ‘ce no ter solidficado um viés continuo e sistematico que sublinbasse Interseecoes ertre 2 Psicandlise ¢ outras correntes. Penso especifica € comparativamente no caso francés, mencionando Marie Bonaparte, Laforgue, Laplinche, Charles Mauron, autores representativos das ver tentes citadas, ¢, mais, nos que nao ignoraramn esses caminkos, potém os ultrapasseram ou os reelaboraram, a saber, Bachelard, Barthes, Starobinski Jean Pierre Richard, Derrida, Ricoeur, Jean Bellemin Noel Uma hipotese pode ser aventada para a questao brasileira, a partir da reuniio de virios aspectos: no inicio, no ambito da Psicané- lise, € intensa, no Rio ¢ em Sao Paulo, « tendencia Kleiniana; no fim da década de 19¢0, Bion ¢ Winnicott ganham espago €, nos anos 70, Jacques Lacan, presenga forte no Colégio Freudiano do Rio de Jane to, Em Recife, Porto Alegre, Campinas fundam-se associagées ligedas a ideias lacanianas; Sao Paulo, lugar marcante nesse conjunto, aglatina ‘igualmente inimeros grupos de estudos, compostos de intelecouais de diferentes lina, despreocupacos (ow nao) com institucionalizacbes*. Ja foram assinaldes (x. nota 9) os sérios entraves enfrentados para a ace tacdo da Psicandlise no Brasil como pratica clinica fato que, guardadas as devides proporcies, se estende as conexdes tedicas aqul propostas. (Ora, retetamos, no campo da Critica literitia, um vies de peso foio textual e,>aralelamente, nossas pesqulsas — bastante tributarias da critica francesa se ancoram, no que diz respeito a Psicandlise, na cor rente estabelecida por Jacques Lacan que rele Freud, apoisdo em linguisticas (Saussure, Jakobson),filésofos (Kant, Heidegger), antrops- logos (Lévy-Strauss), surtealistas (Bataille) e escritores de epocas di- versas (Sofocls, Shakespeare, Poe, Claudel ete), sugerindo a insis- tencla de tithes culturais abrangentes e responsivels por um sistema de representacio fundado na linguagem — aspecta que constitu avan- 0s para o literiio e reafirma uma das marcas freudianas: as relagdes entre a Psicanslise e a Cultura”, Denire muitos, nba de euniber = desvinclads de “centros ou atsciages"— das ) e da arte. Dessa forma, 0 sociol6- s1c0, © politico e o cultural tout court se revestem de outros dados, que vio além do localismo e repropoem © Machado de preocupacoes amplas. Conforme se nots nas primeiras passagens de Dom Casmurro, as falas do agregado ~ talvez impostas por sew servilismo a familia — atuam em Bentinho Inversamente ao previsto: nao suscitam nele duvi- das pre-concebidas a respeito ds companheira; muito ao contrétio, acordam uma emoga0, coma todas as letas “nova e doce”. Insuspeitada Até entio, a emogdo sobrevém "fela boca de José Dias” e deforma 0 discurso ouvido, desfazendo-The a tonalidade em fungio do desejo. Guardadas as devidas diferencas, o equivoco pode opera tanto ‘ma interpretagio psicanalitiea, quanto na construgaa estetica, No ro- mance, mesmo os dites cristalizales podem genhar “duplo sentido’ pois subimissos 20 Simbdlico: 0 agregado atinge seus ouvintes nao apenas no que quet, mas no que the escapa. Bentinho rearticula sua fala-cliche, txmando.a renovadora, singular e intima. Acsnala-se a 0 jogo -sub-tepticio da Psicandlise: na fala eotidiana, banal e preconceituosa, algo pode despontar como “verdade”. Para a mae, 2 escuta leva a urgéncia dolorosa do voto; para o filho, a de livrar-se do desejoalheio e reencon- tar 0 proprio. Mais tarde, ja no seminario, uma pitada de veneno ~ 0 ciume ~ se instaura, depois de uma resposta-chavio da mesmo José Dias a respelto de Capit: Sobre tis elos nos quits a matea da Hiss ganhs fora maior ~ Inpastara € Realm (So Paul, Cn das Letras, 191) de John Gledeon 4A poeta evened de ‘Dom Cesar" ensao condo em Duasmenins (Si Palo, Cia das Leta, 197) de Roberto Schwars. Als, val resliar qi, no primeira leo,» palava de Jose Dias ‘amber ganhairmporanciaenfcada sab out prisms Tem andado alegre, como sempre tains Ail erquanto no pegs slgumperatadsvsnhnca que ease corel) Desatento ¢ imprevidente, tal comentario faz oscar a forga de Eros; de novo a fala do agregado se interrompe, “morde", desestrutura € inquiets Bentinho. A passagem repete, As avessas, a cena da descober- 1 do amor. Revelase a0 jovem um sentimento cruel e desconhecida, puro ime, leitor de [suas] entranhas. Por outro lado, a fala sustenta devaneios © sonhos: a amada jé teria um namorado. Um sono (ou “metades” dele) © incomoda excessivamente; restos diumos, produtos da conver perturbadora, engendram as imagens de tm “peralta” junto a Capita e, em seguida, 0 equivoco se esclarece: 0 “rival” era apenas um entregadot da lista de premios de loteria,cujo bilhetesafta em branco, Na segunda parte do sonho, fica apenas a amiga e ele toma-the as mios, porem acorda #6, Dupla ironia: bilhete branco e solidio, Para além da realizacio, onirica do desejo, da presenca de restos diurmos ou da negacio do devaneio — procedimentos largamente reconhecidos pelos leitores de Psicandlise ~ interessa, aqui, 2 rede significante instaurada por Jose Dias, que age na faccao pessoal do jovem apaixonacdo, gracas 2 ex- pressoes veiculadoras de comportamentos pré-concebidos ou “verda deiros”. Restos misteriosos da trama, pars sempre perdidos, [esse ponto a releitura de Freud contribul, de maneira exem plar, na apreensio do literétio. Para o leitor, Bentinko se constituiré Sob os efeitos de uma simbolizagso impossvel, ciando ilusées a par- tir do verbo de Jose Dias e submetendo-se a um né pstquico ~o cidmé = jamais esclarecido. A incerteza sobre a traigdo posterior de Capitu com Escobar persistiré; todavia, as passagens cltadas preparam as davidas e uma faceta do romance. Sublinho bem, uma faceta: 0 da possibilidade da criagio fantasmatica do citime, ancorade, ra palavta-liche, na alusio ao drama shakesperiano de lago, centrado ham tcigico logro, além de em devancios e sonhos divididos. [Nos capitulos seguintes, uma série de acontecimentos condu em Bentinho & convicgao do adulterio de Capitu-esposa, destruindo- se a idéia romantica do primeiro amor ¢ o final harmonico do pat ‘Todavia, insstimos, 0 alvo aqui é o papel de José Dias (recorte breve mente rastreado no conjunto da narrativa), porque a personagem re. produz, em seus ditos, parte do conservadorismo patriarcal ~ suporte da adverténcia efetuada no capitulo "A dentineia” e espécie de repre- sentagio do universo a ser repetida por Bento, incluindo dados pst- {uicos, Assim, atribuir-se o fim solitario éo protagonista apenas a in- corparacao desse mesmo conservadorisma € ignorar a outra face da ‘moeda: © amor ai reveledo, primeizo elo da cadeia que se estenderd ao citime despertado no sernindrio e aos plans de sair dali Como se verifica, a ambivalencia de iraigio pode ser condensada textualmente nessa cena. A frieza, aironia eas damas “caprichosas", daz ‘lumas linhas da obra, no f2zem Bentinho esquecer Capitu, objeto fun- [r2-tinaresocete cto comnonsrna damental das memorias, escritas com 0 intento falhado de “[..] tar as duss pontas da vida, e restaurar a velhice na adolescéncia". A es- ppantosa indiferenca final nto di conta do esquecimento ¢ 08 primel= ros capitulos trazem um lrismo ainda presente no narrador. Dissimulado, conta ter como intencao inicial escrever uma *His- teria dos suburbios". Aparentemente, essa intencio fracassa, porque mascara o desejo de reconstituir sus historia pessoal, de recobrat a célebre tarde da “demuincia" ¢ a “doce” descoberta do’ amor ~ evoca- ‘20 que, dentre outras melhores, nunca se Ihe apagou do espsrio, Rememorar € reconstruie o vivido & sua maneira, confessando, literal- ‘mente, novos fracessos: [1 Pot, cenhor no consegu resmpor qu fo nemo qe fa. Em ado seo ‘Watoe igual afisionomia ferent Se sme falase os oto, ua howeek fonsolese rns ou menos das pesous que perde mss fa eu mes, eta tacana eda De fato, pouco importa a polémica da existencia ou néo do adul- tério. Imposstvel ~felizmentel = resolvé-ta; no entanto, observar a pre- senca de um "saber" que se distancia da leitura sociologica sem a elim\- nat, oferecendo outra perspectiva a partir das mesmas caractersticas de ‘uma personagem, significa nova contribuigto e, sinda mais, tespeito & amplitude da obra que permanece, exatamente, por tornar os modos de leitura ~ as “linguagens criticas" - equivalentes, desde que adequa dos ao objeto, Em nosso caso, tal validade continua a ser determinada pelos componentes singulares de cada obra, Sem duivida, a leitura do critico dependers também de seus de- sejos, valores culturais ¢ ideologicos, fundamentals a0 desconcerto provocado pelo contato inicial com a palavra diferenciadora do autor TTodavia, nas lelturas subsequentes, o Simbslico pode dar conta das produgdes imaginirias suscitadas pelo iterdrio, relancando a experien- ia incorporada em nova rede, na qual e encontram, retomando Lacai, um saber uma verdade deslizantes, pois representatives de um lugar 0 da fala (mats volitil e fugaz) ~ e, eu acrescentaria, © da escrita iqualmente passivel de reflexdes incessantes e inovadoras, Reltera- ‘mos, as marcas desse “novo” aporte ja se apresentam no polémico legado freudiano, fundamental para a cultura, desde o final do século XIX Por sua vez, 0 critico deve perceber que, pacalelamente aos limi- ts internos, ha os externas, tals como a impossbilidade de se fazer historia litersria via manancial psleanalitico. A meu ver, af se impoem as fronteiras de um enfoque cujo alvo sejao aleance do literati, pelo vies de conhecimento “fora’ de sua esfera. Logo, justficase a expressio “modos de leitura” e, neles, 0 sistema sutl de relagdes com aspectos da Psicanalise. Ao refletir sobre os vinculos entre Are e Psicanalise, Paul Ricoeur destaca os cuidados de Freud em delimitar sua érea, conside- rando que, entre 0s fendmenos da cultura, ela diz respeito a “economia risa ters Prtanioe «485, do desejo € das resistencias”. A licdo enfoca a idéia de limite e sua Tuncto de estabelecer a validade interna de uraa teoria, Fiel 8 propria linha de pensamento, o mestre vienense vai além de sua especificidade para nos legar uma forma de thar adotada em, ruitas de suas sistematizagoes: as convergenclas entre diferentes sa beres, reconhecendo a arte como fonte de conhecimento, nem sem. pre acessivel para a ciencia, porque vinculada aos “mistétios da alma” 0 persistentes na fiegdo desafiante do “bruxo" do Cosme Velho. Freud e Machado, cada qual de seu campo e lugar, contribuem tanto para complexos didlogos na vasta tradigfo do saber ocidental quanto para maneiras de ler ¢ interpretar textos e existéncla, validanda as Confluencias mats do que qualquer trabalho tesrico dedicado & ques-

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