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5 Livros de Poesia
de
Maria Toscano
Coimbra | 2017
Título: Ciclo da Prata. 5 Livros de Poesia de Maria Toscano
Autor: Maria Toscano
© 2017 Maria Toscano e Terra Ocre, Lda.
direitos reservados por Terra Ocre – unip. lda
Apartado 10032
3031-601 Coimbra
palimage@palimage.pt
www.palimage.pt
Data de edição: Dezembro de 2017
ISBN: 978-989-703-190-8
Depósito Legal n.º 434452/17
Execução Gráfica: Liberis.
Maria Toscano
porto de prata.
Livro Primeiro.
venho oferecer-te o poema aguado e liso
povoado de horizontes de sul e sol
recheado de correntes vagas e ondas
alagado de parcimoniosos oceanos
no ir e vir do sal e das marés.
oceanos aquosos de heróis e piratas
hipnotizados por cabelos sorrisos
e os lábios carnudos de morango e azul
de encantadoras deusas e heroínas.
9
trago um fado de luz e sal prateado no côncavo mais doce de meu
peito./
10
sobre a amplidão prateada do oceano, arranca sobe e plana.
precioso./
este fado sabe bem como urge iluminar o pó das horas e a rotação
dos astros./
11
– ao ponto de nos erguermos fundidos mas sós
à hora certa da despedida./
o fado que me cativa e vem comigo comove-se com a inocência
que somos./
12
janela de maré
13
pelos incertos passos onde a hesitação
vai buscar embalo certo e acalento.
– pois só se dá à vida o que de vida se habite
e o habitáculo do vivente respira corajoso.
14
na desencruzilhada dos nós em certos laços
degeneram ou derivam suas feridas.
15
da impossibilidade da morte para as âncoras
1.
sabemos ambos da impossibilidade da morte para as âncoras.
16
num horizonte onde ainda sobrevive esse beijo inocente na hora
azul
pelos seres reservados e luminosos
«que se vão da lei da morte libertando».
2.
sabemos ambos da impossibilidade da morte para as âncoras.
17
assim confirmam a mutabilidade dos viventes
a transitoriedade dos desejos e a intemporal sede do movimento.
as âncoras, discretas no seu peso fundido, deslizam avançam e
permanecem
com os pés de barro crispado e os dedos a apontar aos céus,
encandeadas pelo brilho do sol-pôr, quando é o caso de haver sol,
ou
sob a estaladiça aura da lua, ou sob o esplendente luar de brancos
espelhismos.
3.
por entre algas rochedos e asas fluorescentes
voar ao encontro da raiz do mundo.
buscar-lhe o pulso, o pulsar, o timbre
contornar os impulsos, atiçar o risco
e desaguar, liquidamente, à beira do melhor que há em ti.
por entre algas rochedos e asas exuberantes
alinhar os caracóis morenos e a franja revoltada
18
na seca e evaporada linha de iodo, algas, azul e sal
que o mesmo é dizer: por dentro do fogo incendiar o amor sem
[fim.
4.
de raras raízes, as âncoras ensinam a esperar no fogo que acende o
amor.
de cabelos lisos avermelhados ou acobreados pela espera
escoram a nossa linha de doces sais,
um horizonte onde ainda sobrevive
esse beijo inocente
na hora azul.
na seca e evaporada linha de iodo, algas, azul e sal
que o mesmo é dizer: por dentro do fogo, incendiar o fervor sem
fim.
assim o amor – como ambos sabemos – o amor e as âncoras
esses seres reservados e luminosos
«que se vão da lei da morte libertando».
5.
do rodopio das ondas sabem as âncoras e as marés.
distintas e, mesmo, opostas, precisam umas das outras
19
quanto a parada fila de pedras num cais.
às âncoras cabe a dança fugidia e exigente desde a superfície,
frouxa,
até à sublime profundidade dos escuros fundos
surpreendentes nos corpos em movimento de cores e luz.
20
firmemente erectas em cada gancho e cabo castanho
avermelhado pelos rubores da intimidade com o mar.
21
Oferenda
22
acata a mão dos amigos a embalar teu jogo
teu momento de transição entre o chão e o ar
tua oportunidade de redenção, e emoção
tão ansiada mas temida por tua sombra
pois tua sombra te encaminha tantas vezes
ainda que não seja esse o lado que mais anseias.
Por isso mesmo toma esse sorriso sincero
arrepia-te sem dó, grita e esbraceja
enquanto o tempo ainda te é favorável ou leal
enquanto a marca de água te deixa o rosto liso
e os cabelos pestanejam, luminosos,
por entre ambas as mãos forçadas na tua nuca
– amparo que ainda não tens porque não estás.
Toma o sorriso, a alegria, os lábios e o encantamento.
E que o zunido da mágoa abrande a pouco pouco
até à hora da tua redenção no amor, ámen.
23
para quem se amar
“Só sabemos, seguramente, de uma amizade ou de um amor,
o que temos pelos outros.
De que os outros nos amem nunca poderemos estar certos.
E é por isso, talvez, que a grande amizade e o grande amor
são aqueles que dão sem pedir, que fazem e não esperam ser feitos;
que são sempre voz activa, não passiva.”
Agostinho da Silva, Sete Cartas a um Jovem Filósofo.
24
a surpresa da comoção. a inaudita e rubra face aliada do coração
ali, descaradamente, a negarem ordens da mente
e a libertarem-se, de vez, do espelho frio e inseguro
na sua imagem muda e voraz.
1.
o mar liberta-nos quando nos cativa.
2.
escuto a tua onda, mar.
escuto-a desde o remoinho distante
a erguer-se metodicamente
a aproximar-se da superfície dos dias e desta noite
agora ventos, outrora amena
noite de inverno bem situada e viva.
29
escuto a tua onda, mar.
30
poema em estilo passadista a condizer com a matéria em causa
1.
que faço agora, ó mar, com os meus mortos
em cada ida à terra da sepultura,
em cada oxigénio durante a visita,
em cada instante fragmentado de memórias,
em cada vestígio, saudade, e sei lá que mais?
que lhes digo?, caso me acariciem o ombro
que lhes posso relatar que eles não saibam já?
que lhes contar dos actuais ventos contrários
rondando a europa, acossando a humanidade?
que rendas de bilros invento para a brancura
dos dentes dos contínuos povos famintos?
mãos rugosas de temperança, agora apeadas
do circuito de criar belezas ou produzir vida,
mãos acusadas de ser reles sua paga e improdutiva,
enxovalhadas com o apelido da incompetência e
da preguiça – imagina!, tão robustas mãos! –
com que palavras as situo assim e explico?
quais os códigos para delimitar o vazio
da dignidade de quem persevera e trabalha?
com que etiquetas embelezo a etiqueta
da vingança destes poderosos corroendo
a caminhada das lutas e o sol brilhante
as conquistas de nome, voz, e lugar?
31
como evitar que os meus queridos mortos leais
percebam o cinzentismo, agora vigilante?
a quem convoco com urgência e confiança
para apoiar-me neste piquete da esperança?
neste insistir e resistir onde fervilha a vida
e, desse modo, se adia o fracasso e a derrota
da História e seus eméritos combatentes
de digna partilha, de mãos honradas
da alegria de honrar nome, lugar e a hora
onde nascer é abrir um novo caminho
onde o único destino que se herda e antecipa
é o de fazer, abrir e refazer caminhos novos?
2.
que faço agora, ó mar, com os meus mortos
vivos na memória e no exemplo de resistir?
como lhes abro os braços sem vacilar?
como lhes ouço as falas sem nostalgia?
como lhes sigo os passos sem hesitar
novas passadas e direcções originais?
como, dos limites superados, não transparecer
o espanto com a similitude de hoje em dia?
como respirar sem sentir a poluição baça?
como cantar sem assumir a rouquidão que fica
entalada entre o absurdo e a impotência
tão presentes no arco-íris da actualidade?
32
pouso as pálpebras. em silêncio, inspiro / e recobro forças nas
lições da sua memória:
haja instantes destes em nome da liberdade.
possa o tempo suportar nossa passagem: a minha e a do fado de
luz e sal prateado
no côncavo mais doce de meu peito onde se aloja o sempre terno
coração.
33
regresso ao mar
que o teu pulso incita e alimenta.
desse mar de estranhas madrugadas por morrer
madrugadas alvas e iluminadas pelo arco e a flecha
do deus mais amoroso de que há notícia,
tão amoroso que dedica a sua eternidade a unir e reunir
os seres que ainda não descobriram a cristalina divindade que os
habita,
aí pelo mesmo rio por onde desagua a serenidade e a compaixão.
amor, chama-se, mas com maiúscula,
letra raramente empregue nos desdobráveis da propaganda
a esmifrar-se na mutação de cada ser num yô-yô sem graça
formatado e hegemonizado pelo corte de cabelo e a pose da
[mão.
34
o rugido ou o sinuoso silvo do encantamento com que me
[ brinda
amorosa, a tua mão de navegante. pois é de um regresso à pátria
mais dorida e antiga que se trata. é de um encontro com a mais
[ velha
e fresca memória de todos nós, meu amor de pulsos suaves e
[firmes
como firme e suave sopra a maré habitada pelo amor.
regresso, portanto, à pátria,
com todas as letras e figuras herdadas
com todas as palavras e frases aprendidas estudadas e a fluir.
regresso à minha pátria amada, esta que é a orla do oceano
que o teu pulso incita e alimenta «até à hora da nossa morte,
ámen.»
35
“Nasço amanhã, não chorem por mim ...”
Zé Manél (Fotógrafo)
Nasço amanhã, não chorem por mim durante esta passagem meio
ansiosa e ternurenta como sofrida, insuportável maravilhosa e
indizível.
36
Nasço amanhã na crina loura do cavalo islandês castanho e roxo.
Nasço amanhã nesta terra de fogo e gelo e pedra pomes, onde a
lava se lava nas águas dos mares para se secar ao frio a seguir – lava
a devir terra.
Nasço amanhã por deuses e deusas desejada e gerada, pois sou o
lado mais antigo e o mais eterno lugar.
37
Nasço amanhã; portanto, não desisto – que a fraqueza ou a força são
armas arrogantes dos que se reduzem ao que distorcidamente lhes
sinalizam os sentidos ou a razão que é um sentido mais enganador
por se alcandorar à perfeição imbatível.
38
entre as colunas da casa interior/
e as bordas do oceano mais atlântico/
corre este rio que amo e vem de longe/
e fala ao rubro e usa flores no cabelo/
e salera como nenhum amante sabe/
a menos que sejamos nós os dois, meu amor./
meu amor encantado pela maior voz /
que nem o fado agora rasgado alcança/.
meu amor iluminando o caos da passagem/
alumbrando os passos da antiga espera /
‘é preciso perder... acreditar’ canta o vento/
‘a noite sempre se tornará dia’/
neste cais do caos aberto ao que será/
a escrita por minha mão na tua/
a sílaba salteada entre o canto/
que amanho guardo e às vezes solto/
e um dia irei depor em teu peito/
como um dia já depus sal puríssimo/
conservado pelo espanto de meus olhos, /
sal de cristais levíssimos e apurados/
no ninho da utopia que me habita/
e, a uns, parece tontice ou desacato/
mas aos seres, como tu, amos da fala/
39
se configura na dobra da coragem/
que me ergue de cada armadilha, queda/
e me aligeira a dor e o traço das rugas/
sem outro mistério outro que este segredo/
que é tratar a vida com amor e alegria./
40
já falei de marés vagas pontões/
da borda musgosa das ondas
da maravilhosa incerteza da partida/
antes do regresso das algas dos troncos despojos /
e restos e sonhos e outros detritos como o lixo /
mais grave que é o que não se viveu./
já. já falei da solidão do farol, /
necessária e inerente ao cumprimento da serena fidelidade/
acompanhada pelo que importa e se espera pois se sabe que
voltará./
já falei do cais, dos cais e dos guindastes. e do embarque./
dos soldados morrendo de medo abraçados às noivas antes da
[comissão no, dito, ultramar/
41
depositado na minha boca e /
recordado para sempre por minhas mãos /
quando aqui venho à janela das marés /
nesta casa da voz /
gritar, despedaçada /
pela tua partida sem glórias nem farda /
meu amor tão antigo e sempre novo
que me morre ainda, devagar, neste vagar que é o amar.
42
Bendições
43
mãos de prata.
Livro Terceiro.
a faina do suor e da mão
47
depois da fogueira de teu peito solto faúlhas da rebentação.
não fora a tua paciente mão
que outra arrojada loucura,
que outra insensatez nesta baía
sem samba do fado português?
48
oferendas incondicionais
49
um dia ainda vou escrever o devido poema
sobre o cortejo das traineiras frente a essa janela.
50
direi do estandarte festivo em cada safra prateada.
51
o meu coração
52
reconhecer que é e sente o que elas já não admitem?
sim, fica assim apertadinho, o meu coração de homem.
e bate acelerado.
e fica encarniçado.
e bombeia depressa.
e sofre de espasmos.
e regurgita até ficar rente à boca.
e foge pela barriga das pernas.
e escorre pelas costas abaixo.
o meu coração de homem bom e forte fica, assim, apertadinho,
sempre que sinto e sei que sou forte porque sou bom
porque a minha força está no que sou capaz de sentir
mesmo que o não admita a mim nem a mais ninguém.
53
dos guindastes, esses actos amorosos
“O auto-conhecimento é filho de actos amorosos”
Helena Blavatsky.
1.
por mais que mude a direcção do olhar
é sempre da imensidão do azul – o horizonte.
54
quando alcançar a perfeição não teremos mais este laço,
meu amor, pois já seremos só um,
meu amor iluminado quando ri, alucinado quando sofre,
sempre infante e fugaz como a fragilidade faz.
55
2.
agora, os braços trabalham em turnos durante noite e dia,/
56
matérias materiais e elementos
que os humanos não aguentam às costas,
nem nos rins nem aos ombros e nem sequer
na memória lembrança ou na imaginação/
motivos, agora, para os turnos de braços em toda a noite e em
todo o dia/
57
Pousar a meia vida
58
entrega
59
no rosto o riso o sorriso e a ruga aliados da rama a balançar lá
[ fora,
trago.
nas mãos? nada trago – chego ciosa e confiante das tuas. mãos.
60
porque
61
tudo desde sempre te habita, meu ocluso amor,/
nessa imensa dimensão que é teu franco pulso/
teu pulsar continuada e certeiramente/
encadeado com os elos do coração/.
62
em uníssono e em segredo, saudosos/
da chispa de outrora que nos coube, amansar agora,/
ou traduzir noutra veia ou desafio fogoso/
noutros timbres e repercussões audíveis/
enquanto enterramos, literalmente, dentro da terra/
reminiscências do fogo da consumação/
dos corpos pois, sabendo que somos um/
63
desaparecem ao contacto da saliva/
guardadora da fala e da palavra./
64
mel de prata.
Livro Quarto.
há uma chuva de mel, uma rasa maré dourada, digo, de prata
dourada, pois todo o sal
aqui se converte à prata e mais nenhum outro travo sobrevive
2015.
67
bica
organicisticamente
naturalmente
caeiramente
68
abraça-me
69
devagar, pousando por mais tempo o brilho e o carinho dos teus
nos meus olhos.
abraça-me em silêncio, já agora, suspendendo a voz o tom
o canto e a espera entre falas – abraça-me com o silêncio,
envolve-me no silêncio
durante toda a madrugada até ao altar mais alto da luz,
rente à linha do oceano morno e dócil
nesta costa portuguesa pois, noutra costa, dinamarquesa
este oceano tem poiso para a sua rebeldia e insensatez.
abraça-me com a insensatez e o imprevisto, com o inesperado e
o inadiável, o mais temido e desejado de todos os contos ou
histórias ou, mesmo, vidas: abraça-me com a ternura imensa
de teus sonhos
teus pensamentos e desejos ocultos à espera da estação
das colheitas que demora e magoa nessa espera.
assim, depois de tantos amplexos saciados, consinto, por fim
que me abraces com teu braço preciso e tenso
e, repara, até admito o leve roçar dos meus por teus lábios
carnudos destemidos e tão sós.
70
culturas do mel
71
as culturas do mel rejuvenescem com a idade e alcançam seus
melhores brotos
na esquina da vida a meio caminho entre o passado e o futuro
derramando-se na colheita gourmet conhecida por mel de prata.
72
memória azul em mãos de veludo ou mel de prata
1.
trazias-me no ar, assim, ao de leve, enlevada desde as pestanas ao
arrepio na nuca e nos ombros
trazias-me, fazias-me estar sentir e sonhar azul
um azul musgoso, macio, táctil à vista
como nunca o céu que amo o conseguiria
pois o céu que amo eleva-me para o cosmos e este azul enraíza-me
no meu corpo e no corpo da terra.
e pulsas.
aluviões de tons sombras reflexos claridade aqui e ali
espreitando, claridade aqui e ali deleitando-se com as tuas mãos
a desenhar da luz ao perfil, da sombra ao volume – pulsas.
73
em carne e sangue
até ao serenar da respiração.
e ainda há o cheiro.
74
mas há o cheiro. para além dos clarões
ficou comigo o odor de mãos napa lápis e homem.
2.
as mãos tremiam, húmidas, ao contacto do ar
da tua boca.
as mãos desfaziam rugas num morno bálsamo ou leite
morno leito de anos sem amos
leito do amor.
as mãos libertavam vapores e bolhinhas estranhas
raras doces e mornas
alongando uma curvatura afastando um pé alisando uma ruga
disfarçada de risco escondido
75
3.
as nossas bocas morriam com falta de ar.
4.
ah mas era enlevada desde as pestanas ao arrepio na nuca e nos
ombros
que tu me trazias.
eu, o veludo.
tuas, as mãos.
76
5.
perguntar as horas à tua mão às tuas mãos, dos segundos dos
instantes das subdivisões dos tempos em minutos imensos pelas
tuas mãos. perguntar sem fala sem ruídos outros que o dos
batimentos nas tuas mãos.
melhor do que perguntar, saber.
melhor do que perguntar, sentir.
as horas nas tuas mãos.
nas tuas morenas mãos de veludo pousadas em meu coração.
77
dar a mais bondosa, a mais carinhosa mão.
estender os dedos de mel, frutos do bosque, luares azuis
e
dourados
poisos do astro diurno no friso do anoitecer.
e partir na volta de uma maré, até que a maré os regresse aos dois.
78
guardar as mãos
1.
guarda a minha mão, terno amor, guarda,
no mais doce mel de prata do teu coração.
2.
primeiro, fechada dentro do lenço carmim de rosas brancas
e rosadas
lenço onde o meu sonho já repouso junto de ombros, húmidos
da noite
fria de um inverno de que te não disse nada, ainda, nem direi
porque falar do inverno em pleno estio é desconcertante
e nós habitamos o pólo apolíneo sem restrições outras
que a batida de cada um dos nossos fogosos corações.
79
olho-te e vejo-te, à distância. só. monumentalmente só.
e por isso digo: leva no lenço das rosas a minha mão morena,
amor,
primeiro, leva-a amor, resguardada pelos espinhos no lenço
carmim
até poderes pousar a invernia nalgum patamar desta passagem
gélida, às vezes, torrencialmente gélida e monumentalmente só.
80
e nós habitamos o pólo apolíneo sem restrições outras
que a batida de cada um dos nossos fogosos corações.
81
enfim, podíamos explicar o peito, o dorso, a cinta mesmo
os ombros
os membros mais frenéticos e os mais recônditos,
até pousarmos nas tuas mãos ou nos teus pés.
82
é uma assombrosa maneira de cumprimentar o cosmos/
atiçando sinais de luz e claridade /
em forma de arco pois dessa forma se forma cada abraço/
cada laço a envolver um desejo, o céu e o seu ensejo /
de trazer à terra o magma poderoso dos deuses /
o ensejo de ser-se, por fim, deus em causa própria ./
até logo, minha amorosa e incandescente mão. /
até logo, mãos de quem escolhi para nos atearmos em nossos
fogos sagrados.
83
há uma névoa a ligar teu pulso a meus dedos a unir meus dedos a
teu pulso a juntar esta mão, até há pouco minha, a essa mão, até
há pouco tua.
há um raso laivo a maresia, uma brisa ou bruma cálida, vagabun
deando pelo verão, anunciando a lua cheia e o fulgor da brasa do
sol, digo, dos sóis que são nossos corações, abrasados de mel.
84
podia fechar os olhos e reconheceria o teu doce enlace com ar com
oxigénio entre as polpas dos nossos dedos.
há uma descoberta, um sentimento de alerta e curiosidade intensas,
um misto de distância objectiva e fusão irracional sem travão.
85
sal de prata.
Livro Quinto.
Escrevo, finalmente, com mão de luz.
89
Metáfora da prata
90
da silenciosa vaga branca
91
do amor incondicional:
– maré onde vogamos sem vertigem nem hesitação.
92
todo o meu rosto se ilumina no gozo do olhar luminoso
no poderoso gesto de ver
silencioso vagaroso
modo de respirar e sorver delicadamente a mudança da maré
onde vogamos sem vertigem nem hesitação.
93
o exercício de libertar
o exercício de libertar
é de fina dificuldade e estável desequilíbrio
é de forte exigência e equilíbrio instável.
94
antitética na saída e sintética à chegada
devido à timidez de grandes eventos e multidões.
95
uma semana é muito na adulação do horizonte./
96
muita imagem alagada pelo novo/
muita folhagem roçada pelo ar atrevido./
muita vida refeita a irromper do colo da mão./
97
da redenção pelo sal
existo eu / suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias.
Natália Correia
98
pois nunca vi nem senti esse tão tristonho e arrasador modo
menor
de esventrar a alegria e de adiar saborear a verdade a luz.
trago tenho e guardo uma palavra, nem sei bem o seu nome mas
é ela
a mais luminosa e extremosa carícia infanta e duradoura.
dou-ta. ainda. pois ainda persisto no vão da subida,
onde todos encaram a escada atroz da desilusão.
tudo isso e uma mágoa sem perdão que tem de ser coada, existe.
99
E existo eu suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias.
100
que fala, aqui e agora, na hora da morte do Poeta?
101
a morte do sal
Espelho
Que rompam as águas / é de um corpo que falo.
É de um rio que falo;/ desta margem onde soam ainda,
leves, / umas sandálias de oiro e de ternura.
Aqui moram as palavras;/ (...)
Aqui conheci o desejo / mais sombrio, / mais luminoso;
a boca / onde nasce o sol, / onde nasce a lua.
(...)
E tudo era água, / água, / desejo só
de um pequeno charco de luz.
Um corpo amei;/ um corpo, um rio / (...)
Quem não amou / assim? Quem não amou?
Quem?/ Quem não amou / está morto.
(...).
Eugénio de Andrade
1.
a redenção da vida exige longos caudais de água doce.
2.
pede, a pulsação da vida, a ilimitude das fronteiras.
102
3.
pode, a redenção da vida, assumir o curso incontrolável das cheias
rumo seguro da libertação de apneias da ternura
vãs promessas, hesitações de ar e muros desencantados.
4.
esse é o sentido das cheias invernosas ou de estio
– repare-se da indiferença face à temperatura ambiente
já que o importante é o fluxo aguado, o mover em torrente
já que o vital é o derrame abundante do líquido vital.
5.
a salvação da vida está nas gotinhas de água doce
irmanadas nos ribeiros e rios do planeta.
103
6.
toda a foz é foz de rios.
na morte do sal
toda a foz consagra a vida.
7.
que morra o sal! – é desde as asas que falo.
I – Editadas
Romance
2012 Da viagem das casas. Grácio editor.
II – Por editar