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Lernss Q'@ rousoress 1 2 3, A ordem do diseurso Michel Foucault Sete ligdes sobre 0 ser Jacques Maritain Aristoteles no século XX Enrico Berti ‘As razies de Aristételes Enrico Berti MICHEL FOUCAULT A ORDEM DO DISCURSO AULA INAUGURAL No COLLEGE DE FRANCE, PRONUNCIADA EM 2 DE DEZEMBRO DE 1970 ‘Tradugio: Laura Fraga de Almeida Sampaio ‘Tuolo orignal andre du dacours, Legon inaugural a College de France pronance le 2 décembre 1970 (© Francine Fruchaud e Denys Foucault, Pais ‘Publicado na rang por Editions Gallia, Pars, 1971 aicto de texto: Marcos Jose Marconlo Indicago editorial Prot Dr Salma Tanmas Mucail Edges Loyola Rua 1622 n 347 Ipiranga 4216-000 Sao Paulo, SP. Caixa Postal 42.335 (04200.070 Sao Paulo, SP Bone (O++11) 6914-1822, Fax (O11) 6163-4275 Home page ¢ vendas: ww-loyola.com.br email: loyola@ibm.net ‘dos ot direitos reserodos, Nenhursa parte desta obra pore sor eprodusida ou tranamitida por qualquer forma lou quaiequer mos (eletrnico ou macnico, ncluindo fotocspiae gravegdo) ou arquivade em qualguer sistema fou banco de dador sem permissdo eseria da Rditore. ISBN: 85.15-01359-2 58 edigao: setembro de 1999 (© EDIGOES LOYOLA, Sto Paulo, Br il, 1996 Gxt me insmua sub epic mente no discurso que devo pro- nunciar hoje, € nos que deverei pronunciar aqui, talvez durante anos. Ao invés de to- mar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo comeco possivel. Gostaria de perceber que no mo- mento de falar uma voz sem nome me pre- cedia ha muito tempo: bastaria, entao, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alo- jasse, sem ser percebido, em seus intersti- ios, como se ela me houvesse dado um sinal, mantendo-se, por um instante, sus- pensa. Nao haveria, portanto, comeco; ¢ em ‘Nota do Editor: Por motivo de horri, certas pas sagens foram encurtadas © modifcadae a leis, Ess psssgens foram aqul reproduzidas na integra, vez de ser aquele de quem parte 0 discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, ‘uma estreita lacuna, 0 ponto de seu desapa- recimento possive. Gostaria de ter atrés de mim (tendo tomado a palavra ha muito tempo, dupli- cando de antemio tudo o que vou dizer) uma voz que dissesse: “E preciso continuar, eu nao posso continuar, ¢ preciso continuar, € preciso pronunciar palavras enquanto as ha, € preciso dizé-las até que elas me en- contrem, até que me digam — estranho castigo, estranha falta, € preciso continuar, talvez ja tenha acontecido, talvez ja me te- nnham dito, talvez me tenham levado ao li- miar de minha historia, diante da porta que se abre Sobre minha historia, ew me surpre- enderia se ela se abrisse”. Existe em muita gente, penso eu, um desejo semelhante de nao ter de comecar, tum desejo de se encontrar, logo de entrada, do outro lado do discurso, sem ter de con- siderar do exterior o que ele poderia ter de singular, de terrivel, talvez de maléfico. essa aspiragdo tio comum, a instituicao res- ponde de modo ironico; pois que torna os comeces solenes, cerca-os de um circulo de atengao ¢ de silencio, e lhes impoe formas ritualizadas, como para sinalizé-los a dis tancia O deseo diz: “Eu nao queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; no queria ter de me haver com o que tem de categorico e decisivo; gostaria que fosse a0 meu redor como uma transparéncia cal- ‘ma, profunda, indefinidamente aberta, em que 05 outros respondessem a minha ex- pectativa, e de onde as verdades se elevas- sem, uma a uma; eu no teria senao de me deixar levar, nela e por ela, como um des- tro¢o feliz”. E.a instituicao responde: “Voce nao tem por que temer comecar; estamos todos ai para The mostrar que 0 discurso estd na ordem das leis; que ha muito tempo se cuida de sua aparicao; que the foi prepa- rado um lugar que o honra mas o desarma; € que, se The ocorre ter algum poder, € de nos, $6 de nés, que ele the advem” Mas pode ser que essa instituicdo € esse desejo nao sejam outta coisa sendo duas ré- plicas opostas a uma mesma inquietacao inquietacéo diante do que é 0 discurso em sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita; inquietagao diante dessa existén- cia transitoria destinada a se apagar sem dii- vida, mas segundo uma duragto que nao nos pertence; inquietagao de sentir sob essa atividade, todavia cotidiana e cinzenta, po- deres e perigos que mal se imagina; inquie- tacio de supor lutas, vitérias, ferimentos, dominacoes, servidoes, através de tantas pa- lavras cujo uso ha tanto tempo reduzi as asperidades. Mas, 0 que ha, enfim, de tao perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus dis- cursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, estd 0 perigo? Eis a hipotese que gostaria de apresen- tar esta noite, para fixar 6 lugar — ou tal- vez 0 teatro muito provisério — do traba- Tho que faco: suponho que em toda socie- dade a produgao do discurso ¢ ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada € redistribuida por certo ntimero de proce- dimentos que tem por fun¢ao conjurar seus poderes ¢ perigos, dominar seu aconteci- mento aleatorio, esquivar sua pesada e te- rivel materialidade Em uma sociedade como a nossa, co- hecemos, € certo, procedimentos de exclu- sao. O mais evidente, 0 mais familiar tam- bem, ¢ a interdicao, Sabe-se bem que nao se temo direito de dizer tudo, que nao se pode falar de tudo em qualquer circunstancia, que qualquer um, enfim, nao pode falar de qual- quer coisa. Tabu do objeto, ritual da cir cunstancia, direito privilegiado ou exclusi- vo do sujeito que fala: temas at o jogo de tés tipos de interdigdes que se cruzam, se reforcam ou se compensam, formando uma grade complexa que nao cessa de se modi- ficar. Notaria apenas que, em nossos dias, as regides onde a grade € mais cerrada, onde 95 buracos negros se multiplicam, sto as regides da sexualidade e as da politica: como se o discurso, longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a sexualida- de se desarma e a politica se pacifica, fosse tum dos lugares onde elas exercem, de modo privilegiado, alguns de seus mais temiveis poderes. Por mais que o discurso seja apa- rentemente bem pouca coisa, as interdicoes que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligagio com o desejo e com o poder. Nisto nao ha nada de espantoso, visto que 0 discurso — como a psicandlise nos mos- trou — nao € simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) 0 desejo; ¢, também, aquilo que € 0 objeto do desejo; e visto que — isto a historia nao cessa de nos ensinar — 0 discurso nao ¢ simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de domi- naga, mas aquilo por que, pelo que se luta, © poder do qual nos queremos apoderar. Existe em nossa sociedad outro prin- cipio de exclusio: ndo mais a interdicao, mas uma separacao € uma tejeicio. Penso nna oposigao razao ¢ loucura. Desde a alta Idade Média, 0 louco ¢ aquele cujo discurso io pode circular como dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula € nfo seja acolhida, nao tendo verdade 10 nem importancia, nao podendo testemunhar na justiga, nao podendo autenticar um ato ou um contrate, nao podendo nem mesmo, no sacrificio da missa, permitir a transubs- tanciacio e fazer do pao um corpo; pode ocorrer também, em contrapartida, que se Ihe atribua, por oposicao @ todas as outras, estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, 0 de pronunciar 0 futuro, 0 de cenxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros nao pode perceber. E curioso constatar que durante séculos na Europa a palavra do louco nao era ouvida, ‘ou entdo, se era ouvida, era escutada como ‘uma palavra de verdade. Ou cata no nada = rejeitada tao logo proferida; ow entao nela se decifrava uma razao ingémua ou astuciosa, uuma razo mais razodvel do que a das pes- soas razoaveis. De qualquer modo, excluida cou secretamente investda pela razdo, no sen- tido restrito, ela nao existia, Era através de stas palavras que se reconhecia a loucura do louco; elas eram o lugar onde se exercia a separacio; mas nao etam nunca recolhidas nem escutadas. Jamais, antes do fim do sécu- lo XVIII, um medico teve a idéia de saber 0 u que era dito (como era dito, por que era dito) nessa palavra que, contudo, fazia a diferenca. Todo este imenso discurso do louco retornava 40 ruido; a palavra s6 the era dada simbolica- mente, no teatro onde ele se apresentava, desarmado e reconciliado, visto que represen- tava ai o papel de verdade mascarada, Dir-se-d que, hoje, tudo isso acabou ou esté em vias de desaparecer; que a palavra do louco nao esté mais do outro lado da separacao; que ela nao é mais nula € nao- -aceita; que, a0 contrario, ela nos leva a es preita; que nds ai buscamos um sentido, ou 0 esbogo ou as ruinas de uma obra; ¢ que chegamos a surpreendé-la, essa palavra do louco, naquilo que nés mesmos articula- ‘mos, no distirbio minsculo por onde aqui- lo que dizemos nos escapa. Mas tanta aten- 0 nao prova que a velha separagio nao ‘yoga mais; basta pensar em todo o aparato de saber mediante o qual deciframos essa palavra; basta pensar em toda a rede de instituigdes que permite a alguém — médi- o, psicanalista — escutar essa palavra e que permite ao mesmo tempo ao paciente vir R trazer, ou desesperadamente reter, suas po- bres palavras; basta pensar em tudo isto para supor que a separacao, longe de estar apa- gada, se exerce de outro modo, segundo linhas distintas, por meio de novas institui- es € com efeitos que nao sto de modo algum os mesmos. E mesmo que 0 papel do medico no fosse senao prestar ouvido a uma palavra enfim livre, é sempre na ma- nutengio da cesura que a escuta se exerce. Escuta de um discurso que € investido pelo desejo, € que se cré — para sua maior exaltagao ou maior anguistia — carregado de terriveis poderes. Se € necessario o silen- cio da razao para. curar os monstros, basta que 0 silencio esteja alerta, € eis que a se- paragao permanece. Talvez seja arriscado considerar a opo- sigdo do verdadeiro € do falso como um terceiro sistema de exclusio, ao lado daque- les de que acabo de falar. Como se poderia razoavelmente comparar a forga da verdade com separagées como aquelas, separagdes que, de saida, sto arbitrarias, ou que, a0 menos, se organizam em torno de contingéncias his- B toricas; que nao sao apenas modificaveis, mas esto em perpétuo deslocamento; que sio sustentadas por todo um sistema de institui- es que as impdem e reconduzem; enfim, ue ndo se exercem sem pressio, nem sem 20 ‘menos uma parte de violencia. Certamente, se nos situamos no nivel de uma proposigao, no interior de um dis- curso, a separacio entre 0 verdadeito € 0 falso nao € nem arbitraria, nem modificavel, nem institucional, nem violenta. Mas se ros situamos em outra escala, se levanta- mos a questio de saber qual foi, qual € constantemente, através de nossos discut- sos, essa vontade de verdade que atravessout tantos séculos de nossa historia,-ow qual é, em sua forma muito geral, 0 tipo de sepa- ragdo que rege nossa vontade de saber, en- Wo € talvez algo como um sistema de ex: clusto (sistema histérico, institucionalmen- te constrangedor) que vemos desenhar-se. Separagao historicamente constituida, com certeza. Porque, ainda nos poetas gre- gos do século VI, 0 discurso verdadeiro — no sentido forte e valorizado do termo — “4 o discurso verdadeiro pelo qual se tinha res- peito € terror, aquele a0 qual era preciso submeter-se, porque ele reinava, era 0 dis- curso pronunciado por quem de direito ¢ conforme o ritual requerido; era 0 discurso que pronunciava a justiga e atribuia a cada qual sua parte; era 0 discurso que, profeti- zando o futuro, ndo somente anunciava 0 que ia se passar, mas contributa para a sua realizagio, suscitava a adesto dos homens € se tramava assim com o destino. Ora, eis, que um século mais tarde, a verdade a mais, clevada ja nao residia mais no que era 0 discurso, ou no que ele fazia, mas residia rno que ele dizia: chegou um dia em que a verdade se deslocou do ato ritualizado, efi- caz € justo, de enunciagdo, para o proprio ‘enunciado: para seu sentido, sua forma, seu objeto, sua relagdo a sua referencia, Entre Hesiodo e Plato uma certa divisio se esta- beleceu, separando 0 discurso verdadeiro € © discur8o falso; separagao nova visto que, doravante, 0 discurso verdadeito nao ¢ mais © discurso precioso € desejavel, visto que no € mais 0 discurso ligado a0 exercicio do poder. O sofista € enxotado. 15 Essa divisto historica dew sem duvida sua forma geral @ nossa vontade de saber. Mas nao cessou, contudo, de se deslocar: as ‘grandes mutagdes cientificas podem talvez ser lidas, as vezes, como consequéncias de uma descoberta, mas podem tambem ser lidas como a aparicdo de novas formas na vontade de verdade. Hé, sem duvida, uma vontade de verdade no século XIX que nao coincide nem pelas formas que poe em jogo, nem pelos dominios de objeto aos quais se dirige, nem pelas técnicas sobre as quais se pola, com a vontade de saber que caracte- riza a cultura clissica, Voltemos um pouco atras: por volta do século XVI ¢ do século XVII (na Inglaterra sobretudo), apareceu tuma vontade de saber que, antecipando-se a seus contetidos atuais, desenhava planos de objetos possiveis, observaveis, mensurd- veis, classificéveis; uma vontade de saber que impunha a0 sujeito cognoscente (e de certa forma antes de qualquer experiencia) certa_posicao, certo olhar € certa funcdo (ver, em vez de ler, verificar, em vez de co- mentar); uma vontade de saber que pres- crevia (¢ de um modo mais geral do que 16 qualquer instrumento determinado) 0 nivel téenico do qual deveriam investit-se 0s co- inhecimentos para serem verificaveis e uteis. Tudo se passa como se, a partir da grande divisio platonica, a vontade de verdade ti- vesse sua propria historia, que ndo é a das verdades que constrangem: historia dos pla- nos de objetos a conhecer, historia das fun- es e posigdes do sujeito cognoscente, his- toria dos investimentos materiais, técnicos, instrumentais do conhecimento, (Ora, essa vontade de verdade, como os ‘outros sistemas de exclusio, apoia-se sobre lum suporte institucional: € a0 mesmo tem- po reforcada € reconduzida por todo um compacto conjunto de priticas como a pe- dagogia, € claro, como o sistema dos livros, da edigdo, das biblioteca, como as socieda- des de sabios outrora, 05 laboratérios hoje. Mas ela € wmbém reconduzida, mais pro- fundamente sem duvida, pelo modo como © saber ¢ aplicado em uma sociedade, como € valotizado, distribuido, repartido e de certo modo atribuido, Recordemos aqui, apenas a Uitulo simbolico, o velho principio. grego wv ‘que a aritmética pode bem ser o assunto das cidades democraticas, pois ela ensina 2s relagdes de igualdade, mas somente a geome- tria deve ser ensinada nas oligarquias, pois demonstra as proporgoes na desigualdade Enfim, creio que essa vontade de ver- dade assim apoiada sobre um suporte ¢ uma istribuigao institucional tende a exercer sobre 0s outros discursos — estou sempre falando de nossa sociedade — uma especie de pressao ¢ como que um poder de coer- a0. Penso na maneira como a literatura ocidental teve de buscar apoio, durante sé- ‘culos, no natural, no verossimil, na sinceri- dade, na ciencia também — em suma, no discurso verdadeiro. Penso, igualmente, na ‘maneira como as priticas econdmicas, co- dificadas como preceitos ou receitas, even- twalmente como moral, procuraram, desde o século XVI, fundamentarse, racionalizar- se e justificarse a partir de uma teoria das riquezas ¢ da producto; penso ainda na maneira como um conjunto tdo prescritivo quanto o sistema penal procurou seus su- portes ou sua justificagio, primeiro, € certo, 18 em uma teoria do direito, depois, a partir do século XIX, em um saber sociologico, psicologico, médico, psiquidtrico: como se a propria palavra da lei nao pudesse mais ser autorizada, em nossa sociedade, sendo por um discurso de verdade. Dos és grandes sistemas de exclusao que atingem o discurso, a palavra proibida, segregacao da loucura e a vontade de verdade, foi do terceiro que falei mais lon- gamente. E que, ha séculos, os primeiros 1ndo cessaram de orientar-se em sua direcao; € que, cada vez mais, 0 terceiro procura reto- ma-los, por sua propria conta, para, ao mes- ‘mo tempo, modifici-los e fundamenté-los; € que, se 05 dois primeiros nao cessam de se tomar mais frageis, mais incertos na medida em que sio agora atravessados pela vontade de verdade, esta, em contrapartida, ndo cessa de se reforcar, de se tornar mais, profunda e mais incontornavel. E, contudo, € dela sem duivida que ‘menos se fala, Como se para nés a vontade de verdade ¢ suas peripécias fossem masca- radas pela propria verdade em seu desenro- Ww lar necessério. E a razao disso ¢,talvez, esta: € que se 0 discurso verdadeiro nao € mais, com efeito, desde os gregos, aquele que res- ponde ao desejo ou aquele que exerce 0 poder, na vontade de verdade, na vontade de dizer esse discurso verdadeiro, 0 que esta em jogo, sendo 0 desejo € 0 poder? O dis- ‘curso verdadeiro, que a necessidade de sua forma liberta do desejo € libera do poder, ndo pode reconhecer a vontade de verdade que 0 atravessa; e a vontade de verdade, essa que se impde a nds ha bastante tempo, € tal que a verdade que ela quer nao pode deixar de mascaré-la Assim, 36 aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza, fecundidade, for- ‘ea doce ¢ insidiosamente universal. E igno- ramos, em contrapartida, a vontade de ver~ dade, como prodigiosa maquinaria destina- da a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa historia, procuraram con- tornar essa vontade de verdade € recolocé- sla em questao contra a verdade, [4 justa- mente onde a verdade assume a tarefa de justificar a interdicao € definir a loucura; 20 todos aqueles, de Nietzsche a Artaud e a Bataille, devem agora nos servir de sinais, alvos sem duivida, para o trabalho de todo lia Existem, evidentemente, muitos outros procedimentos de controle e de delimitagao do discurso. Aqueles de que falei até agora se exercem de certo modo do exterior; fun- cionam como sistemas de exclusto; concer- rnem, sem daivida, a parte do discurso que Oe em jogo o poder e o deseo. Pode'se, creio eu, isolar outro grupo de procedimentos. Procedimentos internos, visto que sdo os discursos eles mesmos que exercem seu proprio controle; procedimen- tos que funcionam, sobretudo, a titulo de principios de classificacao, de ordenagao, de istribuicao, como se se tratasse, desta vez, de submeter outra dimensio do discurso: a do acontecimento ¢ do acaso. Em primeiro lugar, 0 comentario. Su- ponho, mas sem ter muita certeza, que nao a hha sociedade onde nao existam narrativas ‘maiores que se contam, se repetem e se fazem variar, formulas, textos, conjuntos ritualizados de discursos que se narram, conforme circunstancias bem determinadas; coisas ditas uma vez € que se conservam, porque nelas se imagina haver algo como lum segredo ou uma riqueza, Em suma, pode-se supor que hi, muito regularmente ras sociedades, uma espécie de desnivela- mento entre os discurs0s: 05 discursos que “se dizem” no correr dos dias e das trocas, que passam com o ato mesmo que 0s promunciou; e os discursos que estao na origem de certo mimero de atos novos de fala que os retomam, os transformam ou falam deles, ou seja, os discursos que, inde- finidamente, para além de sua formulacao, sdo ditos, permanecem ditos ¢ estao ainda por dizer. Nos os conhecemos em nosso sistema de cultura: sio 05 textos religiosos ou juridicos, sao também esses textos cu- riosos, quando se considera 0 seu estatuto, € que chamamos de “literarios”; em certa medida textos cientificos. 2 E certo que esse deslocamento nao € estavel, nem constante, nem absoluto. Nao ha, de um lado, a categoria dada uma vez por todas, dos discursos fundamentais ou ctiadores; ¢, de outro, a massa daqueles que Fepetem, glosam € comentam, Muitos tex- tos maiores se confundem e desaparecem, €, por vezes, comentarios vem tomar o pri- ‘meiro lugar. Mas embora seus pontos de aplicacao possam mudar, a funca0 perma- nece; € 0 principio de um deslocamento encontra-se sem cessar reposto em jogo. O desaparecimento radical desse desnivelamen- to nao pode nunca ser senio um jogo, uto- pia ou angustia. Jogo, a moda de Borges, de Jum comentario que nao sera outra coisa senao a reaparicao, palavra por palavra (mas desta vez solene ¢ esperada), daquilo que le comenta; jogo, ainda, de uma critica que falaria at€ o infinito de uma obra que nao existe. Sonho litico de um discurso que renasce em cada um de seus pontos, abso- utamente novo e inocente, e que reaparece sem cesar, em todo frescor, a partir das coisas, dos semtimentos ou dos pensamen- tos. Angtistia daquele doente de Janet para B quem 0 menor enunciado era como “pala- va de Evangelho”, encerrando inesgotaveis tesouros de sentido e merecendo ser indefi- nnidamente relancado, recomecado, comen- tado. “Quando eu penso, dizia ele logo que lia ou escutava, quando penso nesta frase que vai partir para a eternidade e que eu talvez ainda nao tenha compreendido ple- rnamente.” Mas quem nao ve que se trata af, cada vvez, de anular um dos termos da relagao, € nao de suprimir a relagio ela mesma? Rela- lo que nao cessa de se modificar através do tempo; relagdo que toma em uma- €poca dada formas multiplas € divergentes; a exegese juridica € muito diferente (¢ isto ha bastante tempo) do comentatio religioso; ‘uma mesma e tinica obra literatia pode dar lugar, simultaneamente, a tipos de discurso bem distintos: a Odisséia como texto pri- meiro ¢ repetida, na mesma época, na tra- dugto de Bérard, em infindaveis explicacdes de texto, no Ulysses de Joyce. Por ora, gostaria de me limitar a indi- car que, no que se chama globalmente um comentatio, 0 desnivel entre texto primeiro » € texto segundo desempenha dois papeis que sao solidarios. Por um lado permite cons- twuir (¢ indefinidamente) novos discursos: © fato de o texto primeiro pairar acima, sua permanéncia, seu estatuto de discurso sem- pre teatualizavel, o sentido multiplo ou oculto de que passa por ser detentor, a reticencia e a riqueza essenciais que Ihe atribusmes, tudo isso funda uma possibil dade aberta de falar. Mas, por outro lado, 0 comentario nao tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, sendo 0 de dizer enfim 0 que estava articulado silencio- samente no texto primeiro, Deve, conforme uum paradoxo que ele desloca sempre, mas a0 qual nao escapa nunca, dizer pela pri- meira vez aquilo que, entretanto, j4 havia sido dito e repetir mcansavelmente aquilo que, no entanto, nao havia jamais sido dito. A repetigao indefinida dos comentarios é twabalhada do interior pelo sonho de uma repeticao disfarcada: em sew horizonte nao ha talvez nada além daquilo que ja havia em seu ponto de partida, a simples recita- fo. O comentario conjura o acaso do discut= so fazendo-Ihe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a con- digdo de que o texto. mesmo seja dito € de certo modo realizado. A multiplicidade aber- ta, 0 acaso sto transferidos, pelo principio do comentario, daquilo que arriscaria de ser dito, para o ntimero, a forma, a mascara, a circunstancia da repetigo, O novo nao esta no que é dito, mas no acontecimento de sua volta Creio que existe outro prinetpio de rarefagao de um discurso que , até certo ponto, complementar ao primeiro. Trata-se do autor. O autor, nao entendido, € claro, como 0 individuo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas 0 autor como principio de agrupamento do discurso, como unidade € origem de suas significacdes, como foco de sua coeréncia. Esse principio ‘nao voga em toda parte nem de modo cons- tante: existem, ao nosso redor, muitos dis cursos que circulam, sem receber seu senti- do ou sua eficécia de um autor a0 qual se- riam atributdos: conversas cotidianas, logo apagadas; decretos ou contratos que pre sam de signatarios mas nao de autor, recei- 26 tas técnicas transmitidas no anonimato. Mas nos dominios em que a atribuigio a um autor € de regra— literatura, filosofia, cien- cia — ve-se bem que ela nao desempenha sempre 0 mesmo papel; na ordem do dis- ‘curso cientifico, a atribuigao a um autor era, rna Idade Media, indispensdvel, pois era um indicador de verdade. Uma proposicao era considerada como recebendo de seu autor seu valor cientifico, Desde o século XVII, esta fungao nao cessou de se enfraquecer, no discurso cientifico: 0 autor s6 funciona para dar um nome a um teorema, um efei- to, um exemplo, uma sindrome. Em con- rapartida, na ordem do discurso literario, ¢ a partir da mesma €poca, a fungao do autor indo cessou de se reforcar: todas as narrati- vvas, todos 0s poemas, todos os dramas ou comédias que se deixava circular na Idade Media no anonimato a0 menos relativo, eis que, agora, se Ihes pergunta (e exigem que respondam) de onde vém, quem os escre- vveu; pede-se que 0 autor preste contas da unidade de texto posta sob seu nome; pede- -se-Ihe que revele, ou a0 menos sustente, © 27 sentido oculto que os atravessa; pede-se-Ihe que os articule com sua vida pessoal e suas experiéncias vividas, com a historia real que os viu nascer. O autor é aquele que da a inquietante linguagem da ficcao suas uni- dades, seus nos de coeréncia, sua insergto no real Bem sei que me vio dizer: “Mas voct fala aqui do autor tal como a critica 0 rein- venta apés 0 fato consumado, quando so- breveio a morte e nao resta sendo uma massa confusa de escritos ininteligivets; é preciso, centao, repor um pouco de ordem em tudo isso; imaginar um projeto, uma coeréncia, uma tematica que se pede a consciéncia ou a vida de um autor, na verdade talvez um pouco ficticio. Mas isso nao impede que ele tenha existido, esse autor real, esse homem que irrompe em meio a todas as palavras usadas, trazendo nelas seu genio ou sua desordem”. Seria absurdo negar, ¢ claro, a existén- cia do individuo que escreve e inventa. Mas penso que — ao menos desde uma certa €poca — o individuo que se poe a escrever 28 uum texto no horizonte do qual paira uma obra possivel retoma por sua conta a fun- cao do autor: aquilo que ele escreve ¢ 0 que nao escreve, aquilo que desenha, mesmo a titulo de rascunho provisério, como esboco da obra, € 0 que deixa, vai cair como con- versas cotidianas. Todo este jogo de dife- rencas € prescrito pela fangao do autor, tal como a recebe de sua época ou tal como ele, por sua vez, a modifica. Pois embora possa modificar a imagem tradicional que se faz de um autor, seré a partir de uma nova posicto do autor que recortar, em tudo o que poderia ter dito, em tudo 0 que diz todos os dias, a todo momento, o perfil ainda trémulo de sua obra, © comentario limitava 0 acaso do dis: ccurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma da repeticao e do mesmo, O princi pio do autor limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu. Seria preciso reconhecer também no que se denomina, nao as ciéncias, mas as “disci- plinas", outro prinefpio de limitagao. Prin- 29

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