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NASCIMENTO MORAES

SELEÇÃO DE
CONTOS

SELEÇÃO GELMA
Nascimento Moraes

Uma lição proveitosa


Era D. Vitória Mendes Fragoso, esposa do Dr. Alceu de Sousa Fragoso,
por demais ciumenta. Pertencia, segundo ela mesma declarava às pessoas
de sua intimidade, ao número das mulheres que se casam por amor. Vivia
para o seu marido e não podia admitir que ele a enganasse com outras
mulheres. Havia dez anos que estava casada e felizmente ainda não lhe dera
nenhum desgosto. Sabia de sua lealdade e sinceridade para com ela. Se,
porém, algum dia, lhe chegasse ao conhecimento de que o Dr. Alceu a
enganava com outra mulher, transformar-se-ia num monstro, porque seria
capaz de tudo, até de cometer crimes.

D. Manuela Fernandes, sua vizinha e amiga, casada com um português que


não era nenhum santinho e que de vez em quando aparecia no cartaz do
escândalo ao lado de uma mulata que ele retirara da casa dos pais, ouvindo
de D. Vitória expressões tão veementes, disse-lhe, com a serenidade das
almas resignadas à sua condição:
- Já eu não penso assim. Acho que a mulher casada deve colocar-se
num plano superior, sempre que o marido se revelar mal conduzido. Sei de
todas as patifarias de meu marido, mas até hoje nunca lhe disse palavra. É
como se não acontecesse nada! A mania dele é andar com as mulatas! Pois
que ande com suas mulatas! Desceria de minha dignidade se lhe desse a
entender que sei das suas deslealdades. Respeitando-me dentro do nosso
lar, é quanto me basta!

- Pois eu lhe digo com toda franqueza que não tolerarei de meu marido uma
deslealdade! Sentir-me-ei humilhada no dia em que souber que ele prefere
outra mulher a mim! Pense bem, D. Manuela, no caso! Porque o homem
casado que procura outra mulher, humilha a sua mulher! É o mesmo que lhe
dar carta de mulher inferior, sem qualidades que o seduzam, que o prendam
a seu lado! Pense bem, D. Manuela! A mulher casada que é vítima de tal
deslealdade, deve sentir-se mal perante as outras mulheres e até perante os
homens! Veja bem! É um traste inútil!

- À primeira vista parece que a senhora tem razão, mas examine


calmamente o caso. Por que não se dizer que o homem é que não tem
atributos para conhecer e estimar as qualidades da mulher que possui?
Quantos homens há por aí grosseiros, estúpidos, mal educados, sem
sentimentos refinados e que maltratam, dão má vida às esposas porque não
estão à altura de avaliar o seu merecimento, porque não podem apreciar a
delicadeza de seus gestos? Temos na sociedade muitos exemplos que
confirmam o meu modo de ver. A Severinha, que a senhora bem conhece, é
abandonada do marido. Não é uma mulher bonita. Eu, pelo menos, não lhe
acho graça. É hoje, porém, uma mulher feliz. Encontrou, um ano depois de
desprezada, um amante que é louco por ela, o Dr. Pinto Madeira. Comprou-
lhe aquele prédio em que ela mora por 50 contos, mobiliou-o ricamente, e
trata-a com todo esmero e faz-lhe todas as vontades! E o marido amigou-se
com uma rapariga de má vida, que o trata de resto e com quem ele gasta uma
fortuna! São tantos os exemplos!

Mas D. Vitória não se convenceu nunca das razões de D. Manuela. Aliás,


na sua família havia um caso que lhe podia dar margem a profundas
reflexões. Era o de seu irmão Francisco José Mendes, que depois de dar
escândalos com diversas mulheres da vida pública, vivendo abertamente
com elas, voltara a ser bom marido, arrependido de seus erros e dos
desgostos que dera à sua santa mulher.

D. Manuela sabia desse fato, e de uma feita argumentou com ele, dizendo-
lhe:

- Se D. Alfredinha, sua cunhada, não fosse um espírito superior, teria


rolado pela sarjeta. Soube, porém, colocar-se numa atitude digna, de modo
que, depois de tantos anos, saiu vitoriosa!
D.Vitória era, enfim, uma mulher
que vivia a imaginar coisas sombrias.
Preocupava-se com o que não havia
acontecido. De si para si estava
convencida de que o marido era o
homem mais bonito de S. Luís, e por
quem todas as mulheres viviam apai-
xonadas.Impressiona-
va-se com a elegância,
com as maneiras, com a
simpatia do marido, e
não podia admitir que
as outras mulheres
fossem indiferentes ao
seu Adônis!

O Dr. Alceu
compreendia a tortura
de sua mulher e
procurava arrancar-lhe Detalhe: D. Vitória imaginando a "amante" de Dr. Alceu

do espírito essa impressão, que já era motivo de pequenas desavenças no


lar. Se, porventura, chegava à casa um quarto depois do almoço ou do
jantar, D. Vitória explodia em lamentações. Se saía à noite, por motivo de
sua profissão, D.Vitória ficava em pranto! À medida que os anos se
passavam e que o Dr. Alceu envelhecia com ela, o ciúme aumentava. Para
ela, o marido era sempre um homem capaz de apaixonar as mulheres.
Parece que não via que o marido, com os cabelos grisalhos, não era mais o
mesmo de ontem.

- Infelizmente não temos filhos, dizia-lhe o Dr. Alceu. Se os tivéssemos, não


terias ficado assim. Nem viverias a lembrar-te de mim, a todo momento!
Mas não te esqueças de que em nossa idade esses ciúmes já nos tornam
ridículos!

Mas D. Vitória não se conformava...

- A velhice não é mais uma carta de seguro, dizia ao marido. Vejo velhas que
se trajam como meninas e sei de velhos que namoram mais do que os moços!
Os tempos estão mudados. Há poucos dias lá no gabinete do nosso dentista
uma moça dizia a uma amiga: "Hoje os casados dão mais sorte do que os
solteiros, e os velhos mais do que os moços. Os casados e os velhos são mais
afeiçoados às mulheres e tudo fazem em seu benefício. Os solteiros são os
pestes! Ninguém pode confiar neles!"

E o Dr. Alceu ria até mais não poder!


E D. Vitória ficava ainda mais irritada com o seu riso!

É possível que por causa desse estado permanente de irritação, alguém se


lembrasse de escrever a D. Vitória uma carta, dizendo que seu castíssimo
marido frequentava a casa de uma mulher pública à rua das Barrocas. O
anônimo pormenorizava o caso. A mulher chamava-se Andrelina. Era um
mulataço! O Dr. Alceu dava-lhe tudo! Na despensa da mulata não faltava
nada! Os jarros da sala, de porcelana, eram um primor. O Dr. Alceu
mandara-os buscar na Bélgica!

D. Vitória ficou a ponto de perder a cabeça. Até que chegara a seu


conhecimento uma deslealdade do marido. Mandou chamar D. Manuela e
contou-lhe tudo. E ao mesmo tempo que explodia de cólera, estava
satisfeita:

- Eu não dizia à senhora? Tinha ou não tinha razão de ser ciumenta? Eu


não sabia de nada, mas uma voz dentro de mim me dizia: todo advogado é
fingido! Assim como eles enganam a justiça e provam que os criminosos são
homens de bem, assim enganam em casa as esposas!

- Seja prudente, disse-lhe


D.Manuela. Aqui no Maranhão se
fala de tudo e contra todos. Eu
também sei de muita coisa de meu
marido, mas fico certa que nem
sempre o que dizem dele é
verdadeiro! Seja prudente.
Procure tirar a limpo. Pode ser
intriga de um inimigo ou graçola
de algum amigo.
D. Vitória aceitou o alvitre da
amiga e resolveu nada falar ao
marido para não o espantar. Ia
pegá-lo com a boca na botija!
Detalhe: D. Vitória e D. Manuela

E no dia seguinte, depois que o marido saiu para o escritório, D. Vitória


preparou-se e saiu. Estava contristada e era grande o seu sofrimento. O seu
desespero era um mar revolto. Ela morava num sobrado à rua Afonso Pena,
e por isso dentro de poucos minutos estava à porta da mulata Andrelina, que
vindo do interior da casa, encontrou-se com ela no corredor.

- Quero falar-lhe.

- É já, minha senhora.


A mulata voltou sobre os passos e momentos depois lhe abria a porta
da sala.

- Pode entrar.

Andrelina era uma mulata estampada. Alta, mais gorda do que magra,
simpática, olhos grandes, cabelos crespos, rosto oval, lábios grossos.

Não sabia com quem tratava, mas inteligente, compreendeu que se tratava
de uma senhora.

D. Vitória era também uma mulher bonita, alta, elegante. Os anos não lhe
haviam estragado a pele, nem lhe haviam apagado o brilho do olhar. Estava
pálida de cólera. Trêmula. Entrou e, cansada, ofegante, sentou-se.
Relanceou o olhar pela sala e não viu os jarros bonitos comprados na
Bélgica.

- A senhora está sentindo alguma coisa?

- Não.

- Quer um copo d'água?

- Obrigada.

Andrelina, de pé, olhava-a admirada. E depois:

- Estou às suas ordens.

- Diga-me uma coisa...

- Se eu souber...

- Meu marido frequenta a sua casa? Seja franca comigo.

- A usar de franqueza, minha senhora, não sei.

- Como não sabe?!

- Se eu não sei quem é o marido da senhora!

- É o Dr. Alceu, um advogado muito conhecido.

- Advogado? Não sei o que é...

D.Vitória passou a dar os traços do marido...


- Conheço muitos homens assim...

- Mas não vem à sua casa um homem que se chama Dr. Alceu de Sousa
Fragoso?

- Minha senhora, não sei, porque da maioria dos homens que frequentam a
minha casa, eu são sei o nome...

- Não sabe?!

- Não senhora. Não me serve de nada saber o nome deles... Não os procuro.
Não vou à casa deles, não falo com eles na rua... lá um ou outro me diz como
se chama... e eu, às vezes me esqueço. São tantos nomes! E muito
embrulhados!...

- E como recebe um homem em sua casa sem saber quem é?

Andrelina riu e passando as mãos pelos cabelos crespos:

- O que me interessa é saber se eles tem dinheiro. E pelos modos eu vejo


logo. Qual é a rapariga que não conhece a cara dos prontos?

E Andrelina soltou uma risada argentina.

E depois:

- Disseram à senhora que seu marido frequenta a minha casa?

- Disseram.

- É possível... só eu perguntando. Como é o nome dele?

- Dr. Alceu.

- Dr. Alceu... Se eu não me esquecer pode ser que eu venha a saber... Se a


senhora voltar outro dia aqui... talvez lhe possa informar...

E D. Vitória encolerizada e decepcionada:

- Informará mesmo? E se for apaixonada por ele?

- Ah, minha senhora, rapariga não tem paixão. Deus me livre de me


apaixonar por um homem! E quando desconfio que algum está com jeitinho
de querer ficar, desengano logo. Eu vou perder os meus interesses por causa
de um homem? E logo quem? Homem casado! Olhe: quem se apaixona por
homem casado é mulher casada!
D. Vitória deixou a casa de Andrelina
como ninguém pode descrever! Uma hora
depois estava em casa. Atirou-se numa
cadeira de braço, como se tivesse acabado
de apanhar uma surra de corda. Doía-lhe
o corpo. A cabeça girava. Ouvia ainda as
palavras da mulata! Não conhecia o seu
marido! Nem sabia o seu nome! Do tipo
do seu marido conhecia tantos homens!
Como aquela mulher falava! Que
descaramento! Os homens para ela não
valiam nada! O que valia era o dinheiro. E
como escarnecia da paixão dos homens!
Olho da rua com os apaixonados! Os seus
interesses estavam em primeiro lugar!...

E foi por isto que D. Vitória Mendes


Fragoso se tornou, inesperadamente, um
belo exemplar de mulher casada. Nunca
mais perturbou a serenidade de seu lar
com os seus ciúmes infernais.
Detalhe: D. Vitória

FIM
MORAES, Nascimento. Contos de Valério
Santiago. 1a ed. São Luís, MA: SIOGE, 1972.

Obras de Nascimento de Moraes

1. Puxos e Repuxos (1910, polêmicas literárias);


2. Vencidos e Degenerados (1915, romance);
3. Neurose do Medo (1923, ensaio de psicologia política);
4. Contos de Valério Santiago (1972, contos)

Reproduzido do Blog A Beletrista,


de Natércia Moraes Garrido,
sob autorização da família Nascimento Moraes

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