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VOLUME III
LXXVII - MALPERTUIS
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O Duque, ao mesmo tempo que mostrava ler as cartas, não perdera uma
só palavra trocada entre a Duquesa e Branca Adriana.
Brilhou-lhe nos olhos um relâmpago quando viu que a jovem sairia no
dia seguinte só e a pé.
As horas que sucederam à conversa precedente, pareceram intermináveis
ao senhor de Chaslin.
Finalmente, chegou a noite.
O ancião não pregou olho um só momento.
A febre do amor, que intrigava o seu paroxismo, abrasava-lhe o cérebro,
e paralisava-lhe a razão.
Por instantes lutou contra o desejo furioso de confessar a Adriana a
paixão devoradora que sentia por ela.
Eram porém de curta duração estas lutas, e deixavam o senhor de
Chaslin mais que nunca resolvido a aproveitar qualquer ocasião Que se
apresentasse.
Levantado e vestido desde o romper do dia, com as luvas e o chapeu ao
seu alcance, instalou-se no seu gabinete de trabalho, do qual uma porta abria
para a escada por onde a jovem devia descer.
Atento e como o ouvido à escuta ao pé da porta mal fechada, estremecia
ao menor ruído, e parecia mais comovido que uma criança de dezesseis anos
esperando a hora do seu primeiro "rendez-vous".
Foi demorada a sua expectativa.
Finalmente, ouviu uma porta fechar-se no andar superior, depois o rugir
de um vestido de seda soou por sobre o felpudo tapete que cobria os degraus.
O Duque adivinhou a jovem, abriu repentinamente a porta no momento
preciso em que ela ia a passar, e apareceu.
*
Branca previa esta aparição.
Não deixou por isso de simular um gesto de surpresa e murmurou com
uma voz apenas distinta:
— Ah! senhor Duque, que medo me meteu!
Henrique balbuciou:
— Adriana, esperava-a.
— Esperava por mim, senhor Duque? Por quê?
— Sai...
— A senhora Duquesa teve a bondade de me dar licença...
— Preciso de lhe falar...
— O que tem a dizer-me?... Estou ouvindo.
— Não lhe posso falar aqui.
Apesar do seu diabólico aprumo, a filha de Pedro Carnot em face de um
triunfo tão pronto e tão completo, não podia dominar a sua perturbação, e
tremia quase tanto como o próprio Henrique de Chaslin.
— Mas, senhor Duque... principiou ela.
— Oh! suplico-lhe... interrompeu o velho num ímpeto de paixão, vai
nisso o meu repouso... a minha vida... a minha e sua felicidade... Deve ir à
igreja, como disse... É aí que me encontrarei com a senhora daqui a pouco...
Espere-me... Esperar-me-á?... Promete esperar-me?...
— Ordena-mo, senhor Duque?
— Não ordeno, suplico.
— É urna ordem que quer?
— Pois sim, ordeno.
— O meu dever é obedecer... esperá-lo-ei.
E Branca sem acrescentar palavra, meteu-se pelo corredor e desapareceu.
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Ao voltar da sua entrevista com a jovem, o senhor de Chaslin deparou,
como na ocasião da saída, com Mariana Gilberto sempre à espreita.
A criada viu-lhe o rosto radiante, a fisionomia triunfal, e caminhava com
uma ligeireza de adolescente.
A velha franziu o sobrolho.
— Ia apostar que ele acaba de se entender com a velhaca, disse ela
consigo.
O Duque perguntou:
— Mariana, a senhora está acordada?
— A senhora Duquesa ainda não chamou... respondeu com sequidão a
antiga ama de Helena.
Ouviu-se um toque de campainha.
Mariana deixando sem cerimônia o senhor de Chaslin, subiu
rapidamente a escada, e entrou no quarto da ama. Joana despertava.
— Que horas são, Mariana? perguntou-lhe.
— Dez horas, senhora Duquesa...
— Dormi até tarde. Abra as cortinas. O senhor Duque já saiu do seu
quarto?
— O senhor Duque! replicou a criada com um riso sardônico, há já um
bom pedaço que saiu, e até acaba de voltar para casa.
— Por que, saiu à rua? murmurou Joana um pouco surpreendida. De
carruagem?
— A pé, senhora Duquesa. Exatamente cinco minutos depois da dama de
companhia.
— Mariana, exclamou ela severamente, porque me fala da menina
Adriana, quando se trata do senhor Duque?
— Por coisa nenhuma, senhora Duquesa... disse isto como diria outra
coisa... muito simplesmente por ser verdade.
— Não gosta de Adriana, continuou a Duquesa. Desde que ela está ao
meu serviço, não perde nunca ocasião de lhe ser desagradável...
— Por acaso essa menina queixou-se de mim?
— Nem por sombras, mas a sua animosidade, Mariana, é demasiado
visível. One lhe fez a pobre rapariga? porque é essa aversão injusta?
— Injusta! exclamou a velha criada. Por acaso uma pessoa pode ser
senhora dos seus sentimentos? Pode-se por acaso estimar uma criatura que
ninguém conhecia há oito dias, mas que já dá a lei na casa?...
— Mariana, você é invejosa...
— Eu, senhora Duquesa!
— Sim, Mariana. E um ruim defeito a inveja! Peço-lhe que se emende...
Gosto da menina Adriana. E uma jovem meiga, afetuosa, encantadora sob
todos os aspectos. E orla... é pobre... Tem direito à minha mais viva
simpatia, e não lhe regateio uma afeição que ela merece...
— Oh! bem sei que a senhora Duquesa é boa e caritativa... Às vezes
aquece-se uma serpente no seio. mas quando a gente vê que é uma serpente,
já é tarde.
— Teimas! exclamou Joana de Chaslin.
— Rogo à senhora me perdoe a minha franqueza. Digo o que penso...
Tanto melhor se me enganar, mas quem viver há de ver...
— Deixei-lhe tomar maus costumes, Mariana, e não estou de humor para
discutir exclamou a Duquesa com impaciência. Retire-se e mande-me
Justina.
— A senhora Duquesa recusa os meus serviços esta manhã? balbuciou
Mariana com os olhos rasos de lágrimas.
— Recuso-os, porque me é impossível deter o curso das suas insinuações
malévolas e caluniosas.
Os soluços da mulher rebentaram.
— E é por causa dessa rapariga que me falam assim! exclamou ela com
uma voz entrecortada; a mim que sustentei com o meu leite a própria filha da
senhora Duquesa. £ o mundo às avessas! Ah! como tenho razão quando digo
que o lobo está no redil!
E continuando a soluçar, Mariana retirou-se, deixando a ama perturbada.
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LXXXIII - CONTINUAÇÃO
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Por volta das cinco horas da tarde, Mariana solicitou uma audiência que
logo lhe foi concedida.
Vinha despedir-se daquela de quem durante tanto tempo fora a fiel
criada.
Tristes despedidas em que de um lado e de outro correram lágrimas
sinceras.
Mariana teve todo o cuidado em não dizer aos criados que a sua retirada,
segundo todas as aparências, era definitiva.
Deu como pretexto vários negócios de família, que a chamavam por
alguns dias à sua terra.
A rigidez do seu caráter tornava-a pouco simpática à criadagem do
palácio de Chaslin.
Por isso, a sua ausência, quer ela fosse de longa ou de curta duração, não
inspirou pena a ninguém.
O doutor Frébault apareceu à noite.
Não prescreveu nenhum novo tratamento.
Só o que fez, depois de observar as pulsações do coração, foi receitar
para todos os dias um grânulo de digitalina.
Depois retirou-se para ir à rua Francisco I ver o principezinho, cujo
estado continuava a ser inquietador.
Branca subiu ao aposento contíguo ao la Duquesa, e deu as ordens
relativas à sua instalação, a qual devia realizar-se naquele mesmo dia.
Dali dirigiu-se ao quarto de dormir da senhora de Chaslin, certificou-se
de que todas as portas estavam bem fechadas, entrou no gabinete de toilette,
e tirou de um móvel, dentre os pequeninos objetos que enchiam metade de
um recipiente de ônix um frasquinho vazio que tinha o seguinte letreiro:
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LXXXVI - O FANTASMA
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Fernando correu para a cena, e por pouco que não perdeu a sua entrada.
Jacques Sureau confiando na palavra do artista, retirou-se com o coração
menos oprimido.
Quando seguia pelo corredor de saída, no momento de passar por
defronte do bilheteiro, viu-se obrigado a afastar-se para deixar passar um
sujeito que entrava e que olhava para ele com atenção.
Muito preocupado não levantou os olhos para o recém-chegado, e
continuou o seu caminho.
O recém-chegado não era outro senão o Barão de Fossaro.
César foi bater à porta do camarim de Fernando.
Como ninguém respondia, e a chave estava na fechadura, o Barão
entrou, fechou a porta após si, pôs o chapéu em cima de uma cadeira, e
sentou-se.
Enquanto esperava o regresso do artista, pôs-se a contemplar
distraidamente as gravuras e as fotografias que lhe ornavam as paredes, e em
seguida os diferentes objetos amontoados sobre a pequenina mesa por baixo
do espelho móvel.
Entre os frascos de carmim e alvaiade, os cosméticos e os pincéis, um
relógio atraiu-lhe a atenção.
Este relógio era um cronômetro de um preço elevado.
As iniciais F V, em diamante, enlaçavam-se sobre o esmalte da caixa; na
cadeia de ouro muito pesada, e de um precioso trabalho, pendiam berloques
de um grande valor.
Fossaro pegou no relógio e examinou-lhe sorrindo as menores
particularidades.
— Encantador! murmurou ele. Rico e do melhor gosto. Aposto que
Fernando Volnay tem notas do banco nas algibeiras. e diamantes em todos
os dedos!
O garoto deve sentir-se como o peixinho na água!
Um novo sorriso do Barão, sublinhando de um certo modo estas ultimas
palavras, indicou claramente o seu verdadeiro sentido.
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César entrou.
Era absoluta a escuridão.
O visitante noturno tirou da algibeira uma caixa de fósforos.
Acendeu um.
Este clarão fugitivo deixou-lhe ver o móvel onde estavam as duas jarras
de louça de Delft indicadas por Branca Adriana, e contendo plantas
artificiais rodeadas de musgo.
O barão aproximou-se do móvel, deixou cair o fósforo que se apagou, e
meteu os dedos no musgo de uma das jarras.
Nada achou.
Fez segunda tentativa.
Foi então mais feliz.
Sentiu entre os dedos um papel dobrado em quatro.
O senhor de Fossaro pegou no papel, introduziu-o na algibeira do colete,
e saiu do quiosque com tanto mistério e prudência como lá entrara.
Deixando o jardim, tornou a descer a alameda, e meteu-se na carruagem
que o esperava no ângulo da rua Boissy d'Anglas.
Chegando pelas três horas da madrugada a sua casa na rua de Provence,
fechou-se no gabinete de trabalho que conhecemos, tirou da algibeira o papel
misterioso, abriu-o e examinou-o.
No alto, havia estas três linhas em estilo telegráfico:
"Duque de volta".
"Tudo sossegado".
"Eis a cópia da carta do Duque à Duquesa."
Por baixo destas poucas palavras, Branca tinha efetivamente copiado a
carta de Henrique de Chaslin (datada de la Roche-sur-Loire, e que
expusemos à vista do leitor.)
Fossaro leu com profunda atenção.
Encolheu os ombros imperceptivelmente, e estendia o papel para a
chama para o destruir, quando de repente o seu rosto mudou de expressão.
Reconsiderou, e sentando-se a sua secretária, iluminada por uma
lâmpada de refletor, tornou a ler, mas, desta vez, estudando as palavras,
pesando as frases.
À medida que progredia neste trabalho mental, a sua pupila única
chispava, ao mesmo tempo que uma alegria singular lhe iluminava a
fisionomia expressiva.
— E ia eu queimar este bilhete sem o tornar a ler! murmurou. Estava
idiota! Que tolices a irreflexão faz cometer! Isto nas minhas mãos é uma
égide que me protege em caso de infelicidade, e torna impossível toda a
acusação!
"Temos aqui mais do que é preciso para fazer cair a cabeça do Duque de
Chaslin, mas a cópia não basta. Tenho precisão do próprio original, da carta
assinada!
"Tenho precisão, e obtê-la-ei."
Após este curto monólogo, César pegou numa folha de papel e numa
pena.
Em seguida, tendo o cuidado de disfarçar a letra, traçou estas poucas
palavras:
"Preciso do original da cópia remetida. Indispensável e urgente. Estar em
dia com tudo. Queimar este."
— Se Branca puder obedecer-me! Ficarei com muita força! Dobrou o
papel e fechou-o num dos compartimentos da sua carteira.
No dia seguinte entrava como na véspera no jardim, depois no pavilhão,
e ocultava o seu bilhete debaixo do musgo da jarra de velha louça de Delft.
XCI - CONTINUAÇÃO
Dez dias haviam decorrido depois dos últimos fatos que acabamos de
expor aos olhos dos nossos leitores.
Resumamos num pequeno número de linhas, antes de prosseguir na
nossa narrativa, os incidentes de alguma importância que tenham sobrevindo
durante estes dez dias.
As notícias de teatro parecem-se com as notícias políticas, espalham-se
com uma inverossímil rapidez.
A escritura de Fernando Colnay, anunciada em dois ou três jornais, era
conhecida de toda a cidade de Paris.
O ruído desta escritura aumentava o êxito dos Beijos Mortais.
Grande número de curiosos queriam ver o futuro grande ator antes da
sua estréia parisiense.
No dia seguinte levavam às nuvens a futura estrela, trabalhando deste
modo para a reputação do artista.
A peça do autor em voga, tinha obtido no Ambigu um grande sucesso de
leitura.
Os ensaios haviam principiado.
Fernando Volnay tomava magistralmente posse do seu papel, e não via
em roda de si senão cortesãos, aduladores e invejosos, estes escusado é dizê-
lo, não se mostravam menos zelosos em cumprimentar o sol nascente.
As respostas à nota inseria nos jornais do high-life pela Marquesa de la
Tour-du-Roy não se tinham feito esperar.
Lazarine, como não tinha mais que escolher, comprara e pagara de
pronto, em nome do ator, um pequeno palácio muito garrido e mobiliado
artisticamente, situado na vila Montespan, avenida d'Eylau.
Fernando Volnay, ao pôr-se à mesa com a amante, encontrara debaixo do
guardanapo os títulos de propriedade.
— Isto é muito bonito da tua parte, disse ele à Marquesa beijando-a com
expressão de vivo reconhecimento.
E acrescentou baixinho:
— Muito bonito... oh! muito bonito! mas isto era-me devido! A posse do
palacete foi imediata, porque o comediante só tinha de levar de Belleville o
seu guarda roupa.
Combinou-se que se faria o banquete de inauguração alguns dias depois,
e que a senhora de la Tour-du-Roy anunciaria, presidindo à ceia a, sua
ligação com Fernando Volnay.
O pouco, e não diremos de pudor, mas de respeito humano, que ainda
restava à viúva do Marquês Roberto, incitava-a a odiar tanto quanto lhe era
possível, o momento de se tornar pública a confissão do seu rebaixamento.
Até então ocultava-se em casa do amante, só indo à rua Murillo buscar
as suas cartas, e continuando a mandar responder às visitas, que ela estava
nas suas terras do Loiret.
O Príncipe Emanuel de Brada vinha todas as tardes receber a resposta
que a Marquesa não anunciava o regresso.
Estas respostas e o silêncio de madame de la Tour-du-Roy, a quem
sabemos que escrevera, eram para ele punhaladas.
Torturavam-no a dúvida e o ciúme.
Tornava-se num suplício a sua vida. — Quero acabar com isto! disse ele
finalmente, sentindo-se sem forças. Esta ausência de Lazarine parece uma
fuga, por conseguinte, uma ruptura... Preciso, primeiramente, uma
explicação... cm seguida, tomarei uma resolução.
E o senhor de Brada partiu para a vivenda de la Tour-du-Roy.
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Dez dias depois daquela noite em que pela primeira vez César de
Fossaro transpusera a entrada do quiosque para tirar o bilhete de Adriana, o
doutor viera mais cedo do que era costume ao palácio da rua Francisco I.
Havia quarenta e oito horas, a febre do principezinho diminuía de um
modo muito sensível.
Dissipava-se pouco a pouco a prostração.
A ajuizar pelas aparências, Heitor ia bem depressa tornar a si.
Chegava finalmente o período de reação tão ardentemente esperado pelo
doutor.
Daquele momento em diante, podia considerar-se o principezinho quase
fora de perigo.
A cura completa tornava-se quase uma questão de tempo e de paciência,
salvo o caso de uma recaída, o que era pouco provável.
Antonino Frébault, ao atravessar o vestíbulo, perguntou ao criado de
quarto como havia passado, o Príncipe, a noite.
Como recebesse resposta satisfatória, apressou-se a entrar no quarto do
doente.
Henrique não dormia. Ao ruído da porta que se abriu, e dos passos do
doutor pisando o espesso tapete, os olhos do Príncipe, velados ainda na
véspera, embaciados e sem expressão, fixaram-se no recém-chegado.
— Vitória! exclamou o médico radiante aproximando-se do leito, os
diagnósticos não me enganavam, e posso gabar-me de haver feito uma bela
cura!
Os lábios do mancebo agitavam-se.
— Olá! querido Príncipe, nem uma palavra! continuou Frébault com
vivacidade, pondo-lhe a mão na boca. Falará quando eu lhe der licença! Até
lá, caluda, se faz favor! Lembre-se de que respondo pelo amigo à faculdade,
aos amigos, e a grande número de caras lindas que tomam pelo senhor vivo
interesse! Deixe-me primeiramente verificar a intensidade das melhoras,
auscultá-lo, e levantar o curativo que tem no ferimento. Depois
conversaremos, se for possível.
Heitor Bégourde achava-se num estado de fraqueza extrema.
Havia quinze dias que não lhe chegara nenhum ruído aos ouvidos.
A voz de Antonino Frébault causava-lhe uma espécie de atordoamento.
Com o auxílio do criado de quarto e da enfermeira, o doutor procedeu
sem perda de um minuto ao sério exame que lhe parecia necessário.
Encostou o ouvido ao lado esquerdo do peito, e fez respirar <> Príncipe
por muitas vezes.
Depois disto levantou o curativo.
Descerrou-lhe os lábios um belo sorriso, e esfregou alegremente as
mãos.
Estava inteiramente cicatrizada a ferida, e na alvura da pele sobressaía
um laivo cor de rosa.
Antonino Frébault puxou uma cadeira, sentou-se à cabeceira do leito, e
disse apertando a mão do Príncipe:
— Vai tudo muito bem! Levanto as ordens que dei. Pode, pois, com a
minha autorização proferir algumas palavras, poucas, e em voz muito baixa.
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XCII - O RENASCIMENTO
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Genoveva, arrebatada pela raiva, ia por certo travar luta corpo a corpo,
com o criado de quarto fiel às ordens recebidas.
Não teve tempo.
Abriu-se a porta envidraçada, e Antonino Frébault apareceu, conduzindo
Lucília vestida com muita simplicidade, e com o rosto coberto com um véu
muito espesso.
— Parece estar furiosa, minha querida Genoveva! disse ele num tom
muito tranqüilo; que se passa?
A Toutinegra ao ver Genoveva, reconhecera imediatamente a
companheira do Príncipe no teatro de Belleville, por ocasião da primeira
representação dos Beijos Mortais.
O coração oprimiu-se-lhe, esperou, toda trêmula, a resposta que aquela
mulher ia dirigir ao médico.
A cortesã, interrompendo o movimento principiado, voltou-se para a
recém-vindo.
— Ah! chega a propósito, doutor, exclamou ela, e estimo vê-lo!
— Que tem a dizer-me, querida beldade?
— Tenho a perguntar-lhe qual é o sentido das ordens ineptas que o
doutor dá!
O doutor sorriu...
— Se fossem ineptas, seriam destituídas de senso comum, replicou, mas
creio-as muito razoáveis... Proíbo-lhe a entrada no quarto do Príncipe,
porque tenho a convicção de que a conversa fatigaria o ferido...
— Mas isso é absurdo, é insensato!
— Então, por quê?
— Bem sabe que os meus direitos são indiscutíveis! Conhece, como
Paris inteira, a minha profunda afeição pelo Príncipe. Bastante tenho
chorado esse fatal ferimento que o afastava de mim, e podia arrebatar-mo! já
tenho sofrido bastante com esta separação, e é no momento em que eu
poderia finalmente sentar-me à sua cabeceira, cuidar dele, velar sobre ele,
demonstra-lhe a minha dedicação, que o senhor me afasta como uma
estranha, a mim, que sou a melhor, a sua mais querida amiga. Repito-lhe que
é insensato!
Cada uma das palavras de Genoveva, entrava como um ferro cm brasa
no coração de Lucília.
Aquela mulher falava da sua ternura, da sua dedicação, dos seus direitos,
no momento em que a pobre Toutinegra levava ao Príncipe o seu ingênuo
amor!
Lembrou-se por um momento de se afastar sem voltar sequer a cabeça, e
fugir daquela casa onde a esperava uma tão pungente humilhação, uma tão
dolorosa ferida.
Queria por força fazê-lo. pelo menos assim o julgava; não teve forças
para isso.
Antonino Frébault não se abalou com a impetuosa tirada de Genoveva.
— Minha querida filha, respondeu, Deus me livre de duvidar das boas
intenções; o que me parece é que neste momento o seu zelo seria pernicioso,
em vez de ser útil.
— Portanto, mantém as suas ordens no que me diz respeito?
— Absolutamente.
— Então, continuou a cortesã com os dentes cerrados, o doutor promove
um rompimento entre mim e o Príncipe?
O doutor encolheu os ombros.
— Palavra, disse o doutor, parece-me, minha querida filha, que perde a
cabeça! Pois eu tenho alguma coisa com os seus pequenos negócios? Em que
me vem falar a propósito de urna ordem do médico, cuja oportunidade, só eu
sou o único a apreciar? Ah! está aí. Barão! bons dias, Barão! continuou
Frébault estendendo a mão a César. Se é paciente, e se deseja muito ver o
nosso amigo esta manhã, não se afaste. Depois da minha visita eu o
mandarei chamar...
Depois o doutor, voltando-se para Lucília, acrescentou:
— Venha menina.
Genoveva ia responder sem dúvida, mas ficou silenciosa e aterrada ao
ver Frébault pegar na mão daquela jovem vestida com simplicidade, em cuja
presença ela mal reparara, e dirigiu-se na sua companhia para o quarto do
Príncipe.
— Que significa isto? exclamou a cortesã com raiva, fecham-me a porta
a mim, a amante de Heitor, e introduzem à minha vista outra mulher no seu
quarto!
César de Fossaro não estava nem menos surpreendido, nem menos
intrigado que a sua cúmplice.
XCIV - AS DECLARAÇÕES
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XCVI - CONTINUAÇÃO
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XCVII - NOVIDADES
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Muito bem, disse Malpertuis. Mas Lucília embaraça os nossos projetos
relativamente a Castel-Vivant.
— Os embaraços fizeram-se para serem destruídos. Destruí-los-ei. Bem
sabes o que te resta a fazer. Põe mãos à obra sem perda de uma hora...
Neste momento bateram por duas vezes à porta do gabinete. Fossaro
levantou-se e dirigiu-se para a saída secreta.
— Espera, disse-lhe Malpertuis, tenho ainda que te falar. Se for cliente
quem me anunciam, mandá-lo-ei embora depressa.
— Fico aqui, por detrás da papeleira. Ninguém me pode ver, e eu posso
ouvir tudo. Bateram novamente.
— Entre! gritou o ex-advogado.
O homem de fato escuro apareceu, depois de le o cartão deu ordem para
introduzirem o visitante dentro de cinco minutos. O continuo do escritório
desapareceu.
— Quem é? perguntou Fossaro detrás da papeleira.
— Uma visita singular! O Príncipe Emanuel de Brada...
— O cavalheiro que devia esposar a Marquesa de la Tour-du-Roy!
exclamou César. Que demônio vem ele cá fazer?
— Não posso imaginar, mas ouve e saberás.
— Podes ficar certo de que seu todo ouvidos.
Passados os cinco minutos, o moço do escritório introduziu o senhor de
Brada.
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— Muito bem.
— Quero saber onde ela se oculta. Encarrega-se de me descobrir o seu
paradeiro?
— Diga-me primeiramente, senhor, qual o interesse que o leva a
solicitar-me semelhante diligência?
— O interesse da minha honra.
— Não compreendo.
— Vai compreender. Era... sou ainda o noivo da Marquesa. Um projeto
de casamento, cuja realização devia efetuar-se em breve, fora combinado
entre nós. Assiste-me o direito de saber se o procedimento da minha noiva
não a torna indigna de usar o meu nome.
— Tem razão, senhor, aceito a missão de confiança de que me encarrega.
Um fulgor de feroz alegria brilhou nos olhos encovados do Príncipe.
— Obrigado! disse. No dia em que me trouxer a informação de que
preciso, dar-lhe-ei cem mil francos.
— Cem mil francos! repetiu o ex-advogado, surpreendido da enormidade
da conta.
— E não é pagar muito caro uma certeza! replicou o senhor de Brada. É
imensa a minha fortuna, mas deve compreender que tenho pressa.
— Os meus agentes vão já pôr-se esta noite em campo.
— Conto com isso.
Estava terminada a conferência.
O Príncipe retirou-se, reconduzido até à ante-câmara por Malpertuis.
Este voltou em seguida para o seu gabinete, correu o ferrolho para se
acautelar contra qualquer surpresa, e Fossaro tornou a aparecer.
— Ouviste? perguntou-lhe o sócio.
— Não perdi uma palavra.
— Que dizes àquilo?
— Digo que apanhamos os cem mil francos.
— Sabes então onde se pode encontrar a Marquesa?
— Sim, mas ainda não é tempo de consumar a extravagância que ele
medita.
— Pareceu-te doido como a mim?
— Pelo menos está a caminho do hospital dos doidos. Isto de amor faz
grande colheita para os hospícios de alienados. Eu te direi quando deves ir
cobrar os cem mil francos que nos caem do céu. É uma gota de água!
— Esperarei... Outra coisa: Recebi um bilhete do Conde de Vergis. Está
em Berne.
— Desse lado nada urge.
— Tens-te lembrado de Marcel Laugier, ou antes de seu filho? Quando a
Marquesa veio aqui. prometi dar-lhe uma resposta no fim de um mês, bem
sabes, e o mês toca no seu termo.
— Neste momento a Marquesa não pensa no filho, afirmo-te, disse
Fossaro rindo. Tem preocupações muito mais agradáveis... Chegarei em
tempo útil. O essencial hoje é arrecadar os milhões de New York, indicar-te-
ei a marcha a seguir com Lucilia Gonthier. Escreve-lhe já para Belleville,
rua Julien Lacroix... Apenas um nome próprio... nada de nome de família...
— A carta partirá dentro de dez minutos.
César voltou. O móvel tomou novamente o seu lugar de encontro à
parede, Malpertuis sentou-se à secretária, puxou para si uma folha de papel
com a marca da casa, e as seguintes linhas impressas:
"Paris..."
Senhora
"Queira ter a bondade de vir ao meu gabinete, das às horas, para negócio
importante que lhe diz respeito.
"Com toda a consideração..."
***
"Senhora."
"Roga-se-lhe que apareça no meu gabinete, amanhã, quinta feira, das
nove da manhã às quatro da tarde, para negócio importante que lhe diz
respeito.
"'Receba, minha senhora, os meus respeitos.
"Malpertuis."
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XCIX - CONTINUAÇÃO
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"Senhor Malpertuis.
"Por esta o incumbo de tratar do processo relativo à minha herança.
Confio-lhe da maneira mais absoluta a direção deste negócio.
"Amanhã irei ao seu escritório para lhes fazer entrega dos documentos
que precisa, e iremos juntos ao seu tabelião onde assinará a procuração, sem
a qual nada poderá fazer.
"Sou com toda a consideração...
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C - UMA FORTUNA
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CI - UM GRANDE LANCE
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Persuadido de que o freguês ia preparar um grog, o criado trouxe o
recipiente pedido, uma garrafa d'água e açúcar.
O senhor de Brada deitou no copo grande todo o conteúdo da garrafa, e
engoliu de um trago.
O criado observava cheio de curiosidade o que ele fazia e dizia consigo.
— Que freguês tão exótico! Se tem o costume de tratar assim o álcool,
deve ser sujeito com a cabeça muito sólida.
Assim que bebeu, o Príncipe sentiu uma espécie de comoção elétrica.
Agitou-lhe os nervos um tremor nervoso, ao mesmo tempo que uma
vermelhidão ardente lhe purpureava as faces, mas o tremor nervoso durou
apenas um segundo, e o rosto retomou a melancólica palidez...
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CIII - INTRIGAS
— A minha querida Adriana tem vinte anos, continuou a senhora de
Chaslin. É a idade em que se decide da vida... A aparente inferioridade da
sua posição causa-me uma verdadeira mágoa.
— Não pense em tal.
— Pelo contrário. É tempo de, aos olhos de toda a gente, se tornar a filha
do Conde de Lasseny. É preciso que o seu futuro se decida.
— O meu futuro, interrompeu Branca, cobrindo de beijos uma das mãos
da Duquesa, consiste em ficar para sempre junto de si.
— Sim, conheço a sua profunda afeição, estou convencida da sua
dedicação sem limites, replicou Joana, e é por isso que vou falar como
falaria a uma filha minha... Pertence a uma família que foi outrora aliada aos
maiores nomes da França... A nobreza de Lasseny vale pela de Chaslin.
Creio que o seu coração está livre... Se assim não fosse mo diria... O meu
filho Rogério não tarda que volte para junto de nós, porque o alistamento
que ele contraiu num momento de despeito, chega ao seu termo. Vai vê-lo,
conhecê-lo, avaliá-lo. Se Deus permitir que ele a ame, e se Adriana se sentir
impelida para ele, dir-lhe-ei: Adriana, querida Adriana, quer ser minha filha?
Branca deixou-se cair de joelhos diante do leito:
— Ah! minha senhora, balbuciou com voz trêmula, ser mulher de seu
filho! Dar-lhe em voz alta esse título de mãe que lhe pertence no meu
coração, seria uma felicidade que não me atrevo a imaginar! Reflita, minha
senhora, quão pobre sou!
— E o que importa? Rogério tem riqueza suficiente para ambos!
Escrever-lhe-ei... Deixar-lhe-ei entrever vagamente os meus projetos e as
minhas esperanças... O senhor de Chaslin, a quem não quero ainda falar do
delicioso sonho que me preocupa, não poderá deixar de me aprovar. Estou
firmemente convencida de que ele me animará na minha resolução.
***
** *
***
A filha do Pedro Carnot, como grande atriz que era, conseguiu derramar
verdadeiras lágrimas, filie num instante lhe inundaram o rosto.
— Ah! balbuciou ela com uma fingida alucinação, é porventura o
momento de me interrogar, e como poderei responder-lhe quando eu mesma
ignoro o que se passa no fundo do meu coração. Não é meu rigoroso dever
lutar com todas as minhas forças? Quando me acho em presença da senhora
Duquesa, tão boa, tão terna, tão maternal para mim, deploro o fato de lhe
inspirar um sentimento criminoso... Deus sabe que não tenho culpa nenhuma
disso, e contudo faço horror a mim mesma como se fosse culpada.
— Adriana... Adriana... murmurou o Duque chegando ao paroxismo da
paixão, tenha piedade daquele a quem enlouquece, e não desejaria curar-se
da sua loucura... O meu amor consome-me. o meu instinto adverte-me que a
Duquesa pensa em nos separar, lançando-a nos braços de um marido. Para
tornar irrealizável o projeto insensato que ela concebeu, só tem um meio, um
só...
— Qual?
— Seja minha!
Branca recuou dois passos fria e altiva, com o olhar desdenhoso e
carregado de cólera.
— Se é esse o seu amor, como se exprime o seu desprezo?
O senhor de Chaslin pôs um joelho em terra com verdadeira alucinação.
— Ofendi-a, balbuciou. perdoe-me! repito-lhe que enlouqueço! O
sangue exalta-me as veias... A sua beleza embriaga-me, e faz-me perder a
razão... Perdoe-me, perdoe-me!...
O Duque estendia para Branca as mãos trêmulas.
Branca tomou-lhas apertando-as suavemente nas suas.
A este contato, Henrique estremeceu.
Por diante dos olhos perturbados, passou-lhe uma nuvem de fogo.
— Para todos os pecados há misericórdia! murmurou a jovem com um
meio sorriso. Perdôo-lhe, mas não torne a pecar! Deve levantar-se, senhor
Duque, e não esquecer que não está livre...
— Quando eu estiver livre, replicou o senhor de Chaslin com voz
abafada, a senhora será Duquesa...
E sem voltar a cabeça, afastou-se com um passo vacilante.
— Duquesa... pensava Branca que ficara só, Duquesa com este velho!
Rogério, esse é moço, esse é formoso... e também ele há de ser Duque um
dia.
***
***
***
***
Bateram devagar à porta, tão devagar que Lucilia, julgando ter ouvido
mal, levantou a cabeça e pôs o ouvido à escuta. Tornaram a bater.
— Entre quem é, disse a jovem. A porta abriu-se.
A órfã reprimiu um grito de surpresa e alegria. Em frente dela estava o
principezinho, que esfalfado por uma ascensão de cinco andares, se apoiava
à ombreira da porta.
A pobre pequena murmurou com uma voz fraca como um sopro:
— O senhor! em perigo de novamente cair doente! Que imprudência.
— Lucília! querida Lucilia! volveu Heitor pegando nas mãos que a sua
prometida lhe estendia, e levando-as aos lábios, há quatro (lias que não a via.
— Venha sentar-se depressa! Como está pálido! Tem a testa suada! Que
loucura! Como eu vou ralhar com o senhor... se tiver coragem para isso!...
— Ah! como eu a amo! (ornou Heitor... Se Lúcia...
A órfã pôs-lhe a mão na boca para o interromper, deitando um olhar para
o quarto próximo.
— Minha, tia está acolá, disse ela. Não quero que ela me ouça...
— Então ela não sabe ainda nada...
— Nada...
— Pois bem, serei eu quem lhe há de dizer tudo. Para mim, substitui a
mãe que perdeu, é a ela que eu devo pedir a sua mão.
— Heitor! Como é bom e leal o seu caráter!
— Pois é ser leal fazer o seu dever de homem de bem? É bondade querer
tornar indissolúvel os laços de amor que já nos unem? A minha pressa não
passa de egoísmo! Quero apressar o momento da minha felicidade. Ainda
hoje estarei com a sua tia, falarei com ela, obterei o seu consentimento para a
nossa próxima união. Dentro de poucos dias reunirei os meus amigos fiara
um jantar, em que me despedirei desta vida de solteiro, que abandono sem
pesar. Logo em seguida partiremos para Nice, deixando os papéis
necessários fiara os nossos banhos. Assim que voltarmos assinaremos o
contrato que havemos de encontrar já pronto. Depois, querida filha adorada,
conduzi-la-ei à "mairie" e à igreja, donde sairá Princesa de Castel-Vivant.
Convém-lhe assim, não é verdade?
— Pois lembra-se de me perguntar semelhante coisa? murmurou Lucilia
sorrindo e fazendo-se corada ao mesmo tempo.
Após um momento acrescentou:
— Permite-me que lhe faça uma pergunta?
— De certo, e não uma só, mas cem.
— Bastará uma... esta: Quanto tempo durará a nossa viagem?
— Perto de um mês.
— Muito bem, se quer tornar-me muito feliz, prometa-me uma coisa.
— Prometo-lhe já. De que se trata?
— Que me permita ser eu que fixe o dia da assinatura do contrato.
— Por quê? exclamou Heitor surpreendido.
— Nada de curiosidade, peço-lhe! É o meu segredo. Demais, o senhor
prometeu...
— E cumprirei a minha promessa. Mas não demorará a minha
felicidade?
— Não, porque seria demorar a minha...
O principezinho beijou a mão de Lucilia e continuou com ar tímido e
visível hesitação.
— Agora, minha querida, pertence-me também fazer-lhe um pedido.
Lucilia olhou para ele com muita curiosidade.
— Oh! é um pedido muito simples, acudiu o Príncipe. Vai ser minha
mulher... Entre nós tudo será comum. Sou rico, e Lucilia não é. Aceite um
adiantamento sobre a comunidade. Permita-me que lhe ofereça...
— Que me sirva da sua bolsa? interrompeu a Toutinegra; já recusei, e
torno a recusar.
— Lembre-se de que para a nossa próxima viagem terá precisão de
muitas coisas.
— Já as tenho. Veja, estou fazendo os meus preparativos. — E Lucilia
mostrava as fazendas colocadas em cima das cadeiras.
— Foi Lucilia quem comprou tudo isso? murmurou o Príncipe
estupefato.
— De certo, e causa-lhe admiração?
— Alguma, bastante até. Tinha-me dito...
— Então?
— Mas tinha algumas economias... Sem falar no armazém para onde
trabalho, que tem confiança em mim, e me fia tudo quanto quero.
— Lucilia, Lucilia... suspirou o Príncipe. É feio, é muito feio! Dir-se-ia
que capricha em não aceitar nada de mim...
— Ingrato! volveu a órfã fitando em Heitor um demorado olhar em que
se exprimia a infinita ternura que lhe transbordava do coração. Aceito o seu
amor... Dou-lhe o meu... e queixa-se!...
Absortos no seu colóquio, não tinham ouvido abrir a porta do quarto
próximo.
A tia cega, muito próxima, e com o rosto transtornado, parou no limiar
da porta.
— Lucilia, exclamou ela com uma voz agitada e quase desconhecida, tu
não estás só...
Vendo a septuagenária, o Príncipe e a Toutinegra levantaram-se com
vivacidade.
Heitor quiz dirigir-se para ela.
Lucilia deteve-o com um gesto e respondeu.
— Efetivamente, tia, não estou só...
— Quem está contigo?
— Uma pessoa de amizade.
— Uma pessoa de amizade! repetiu a cega. Não se dizem a uma simples
pessoa de amizade as palavras que acabo de ouvir... e que me assustam.
A órfã tornou-se purpúrea.
— Tia, balbuciou ela, duvida de mim? Isso seria cruel... seria injusto.
— Ouvi...
— Pois muito bem! continue a ouvir, querida tia... Ouça até ao fim, e não
continuará a ter medo.
CV - PAZ GERAL
***
No mesmo dia, por volta das sete horas, um homem de cabelos louros,
cego de um olho, com traje de operário, mãos negras, rosto queimado pela
limalha do ferro, trazendo sob o braço esquerdo um embrulho comprido,
coberto de pano verde, e que parecia pesado, apresentava-se no palácio do
príncipe Totor.
O homem trazia a tiracolo um desses sacos de couro grosso, onde os
serralheiros guardam a ferramenta.
— Que quer? perguntou-lhe o criado, a quem o guarda-portão o
mandara.
O homem respondeu com uma pronúncia italiana muito carregada,
tirando da algibeira um bilhete em cartão porcelana que deu ao criado:
— Venho da parte do senhor de Fossaro... Trago umas peças indianas
que é preciso colocar nas panóplias de um dos quartos do palácio... Deve
estar já prevenido.
— Efetivamente esperava-o havia dois dias, e vou conduzi-lo.
— Si signor.,.
O criado de quarto introduziu o operário no gabinete que já conhecemos.
— Eis as panóplias... tornou o criado: traz a ferramenta?
— No meu saco, si signor.
— Precisa de alguma coisa?
— Uma escada de tesoura, mais nada.
— Quer que o ajudem?
— Não. signor, não preciso de ninguém.
— Vou então acender as velas deste candelabro, para o alumiarem, e
deixá-lo-ei com o seu trabalho a contas.
***
***
— A vida de quem aqui vier sentar-se neste divã, está nas minhas mãos!
disse ele consigo. Nem o Príncipe, nem o doutor escapam.
O facínora tratou em seguida das outras três panóplias, e como a segunda
parte do trabalho não precisava de tantas precauções, caminhou mais
depressa que o primeiro.
Às nove horas o criado de quarto entrou no gabinete
— Então, meu rapaz, em que alturas vai isso?
— Signor, já acabei.
— Só me falta pagar-lhe. Diga quanto se lhe deve...
— Não me deve nada.
— Como assim?
— O senhor Barão pagou-me adiantado... file lá ajustará as contas com o
seu amo...
— Muito bem. Mas aceitará pelo menos um copo de vinho na cozinha?
— É impossível, signor... Vim depois do meio dia... Tenho a minha
mulher e os meus dois pequenos à minha espera para cearem... e moro no
arrabalde Antoine... Uma boa caminhada daqui até lá.
O criado de quarto não insistiu, e o operário deixou o palácio.
***
***
**
Branca não retirou a mão, que Henrique tinha tomado nas suas.
Parecendo obedecer a um impulso irresistível, murmurou:
— Oh! senhor Duque, há de obrigar-me a amá-lo.
— Há de amar-me, há de amar-me, tartamudeou o velho
apaixonadamente, atraindo e apertando contra o peito a filha de Pedro
Carnot.
Branca fez-se vermelha e baixou os olhos.
— Não, não, aqui não, suplico-lhe! Nesta casa, tão perto da Duquesa,
escutar a voz do meu coração, é um crime. Tenho vergonha de mim mesma.
— Sim, tem razão, mas essas palavras de esperança que acaba de
pronunciar, e que me embriagam, há de repeti-las noutra parte, promete-mo?
— Senhor Duque, eu também tenho que lhe falar seriamente; mas assim
como eu não quero ouvi-lo nesta casa, também não onero falar-lhe aqui.
— Que devo fazer? Bem sabe que sou seu escravo...
— Não podemos esta noite encontrar-nos fora do palácio?
— Será fácil, respondeu impetuosamente o senhor do Chaslin, a quem a
idéia de um encontro longe de toda a vigilância incendiava: será fácil, mas
onde?
— Ignoro, pertence ao senhor o designar o lugar onde me há de r
esperar.
— Então, tornou o Duque delirante, saia pela poria do jardim que deita
para a avenida Gabriel. Estarei no ângulo da rua Boissy d'Anglas com uma
carruagem. A Duquesa deixa-a livre por volta das dez e meia, venha ter
comigo às onze. Virá?
— Prometo-lho. Sairei até mais cedo, se a senhora de Chaslin
adormecer. Das dez e meia em diante espere por mim.
— Ah! como me torna feliz!
O Duque tinha os lábios trêmulos.
Um olhar de sátiro perseguindo uma ninfa, brilhava entre as suas
pálpebras meio fechadas.
A paixão sensual tornava-o assustador, e os seus braços estendiam-se
para um novo amplexo.
Branca recuou dois passos.
— Até esta noite, disse ela.
— Sim, até esta noite! Até esta noite! Mas primeiramente tome lá isto
que lhe pertence.
É o senhor de Chaslin apresentava à jovem um papel que acabava de
tirar da sua carteira.
Branca, muito admirada, perguntou:
— Que vem a ser isto?
— Um cheque de quinhentos mil francos à vista, sobre o Banco. Os
restos de que lhe falava há pouco...
— Obrigada, ser-lhe-ei reconhecida...
E a falsa Adriana metendo no seio o precioso papel, voltou para o quarto
da Duquesa, dando como adeus ao senhor de Chaslin um sorriso e estas
palavras:
— Até esta noite!
CVIII - SÓ MORRE QUEM DEUS QUER
***
***
Por volta das seis horas e meia, César Fossaro subiu para o seu coupé, e
deu ordem a Benedetto para o conduzir ao palácio do Príncipe Totor.
Não deviam ir para a mesa senão às sete e meia.
Ele, porém, tinha interesse em chegar primeiro.
Quando se apeou do trem, recomendou ao cocheiro que o viesse esperar
às dez horas e meia em ponto, não diante do palácio, mas no ângulo da rua, e
não se arredar dali sob que pretexto fosse.
Segundo o seu costume, Heitor recebeu cordialmente o Barão, a quem
tinha na conta de um dos seus melhores amigos.
— Então, querido Príncipe, disse-lhe César com o sorriso nos lábios, é
esta noite que nos vai dar a nova que nos há de causar geral admiração.
— Sim, meu querido, replicou o ex-Bégourde com os modos de
gommeux que ele agora só por intermitências ostentava, é uma notícia de
arromba, de um chic por aí além. Há de ser uma coisa obeliscal, piramidal,
de pôr tudo a uma banda, como diz o Príncipe de Chypre! O Barão há de ver,
e não há de crer!
— Bem, então deixe-me já com a cara a uma banda.
— É impossível, amizade verdadeira ter os seus privilégios.
— Reconheço isso, e em outra qualquer ocasião seria o primeiro a
prestar homenagem a esse direito, mas não quero ultimar o meu efeito com
antecipadas confidencias...
O Barão não insistiu. Frébault chegava.
— Eis o meu salvador! exclamou o Príncipe apertando-lhe as mãos.
— O seu salvador, perfeitamente! volveu Antonino. Isso dá-me sobre o
meu amigo certos direitos de que não abusarei, mas de que pretendo servir-
me. Poupe-se, querido Príncipe, poupe-se esta noite!
— E o que quer dizer com isso?
— Quero dizer que à meia noite deve estar a fazer ó ó.
— Obedecer-lhe-ei, doutor... À mesa deve ficar a meu lado para me
vigiar. O difícil é de deitar-me à meia noite...
— Então por quê?
— Depois de jantar sempre se há de armar um joguinho.
— Não ponho nisso nenhum obstáculo. Jogar-se-á sem o senhor, ora aí
está.
— Na verdade, é uma idéia... pensou o ex-Bégourde. Deitando-me à
meia noite, estarei amanhã fresco e disposto para ir muito cedo à Rua Julien
Lacroix.
E torne/u em voz muito alta:
— Barão, as suas armas indianas brilham de um modo maravilhoso nas
panóplias... Foi um presente soberbo que me fez.
— Ainda bem que lhe agrada... Dá-me licença que vá dar-lhe uma vista
de olhos?
— Bem sabe que aqui está em sua casa.
Fossaro dirigiu-se para o gabinete de fumar.
***
***
***
Branca levantou-se.
A Duquesa tivera razão falando na sua extrema palidez.
Estava lívida, e um círculo violáceo orlava-lhe as pálpebras
avermelhadas.
Neste momento, a força traía-lhe quase a vontade.
Dirigiu-se com um passo vacilante para um pequeno móvel colocado
detrás do leito.
E, quando ninguém a podia ver, em lugar de tirar do móvel o frasco que
encerrava os verdadeiros grânulos de digitalina, tirou do seio o outro frasco
idêntico, entregue por Pedro Rédon, e voltou para junto da doente.
Dando então ao rosto uma expressão obrigada de serenidade, desrolhou o
tubo de vidro, e deitou dois grânulos na colher de prata dourada que a
senhora de Chaslin estendia para ela.
Tremia-lhe a mão.
A terceira pílula escapou-lhe do frasco e rolou sobre o tapete. Branca
baixou-se rapidamente para a apanhar.
Mas de certo que a minúscula bolinha rolara para mais longe.
Com grande surpresa nada viu.
— Ah! disse a Duquesa, não procure. Para quê? Uma de mais ou de
menos, que importa?
E absorveu os dois grânulos.
Branca teve um calafrio em todo o corpo. Parecia-lhe que o chão lhe
fugia debaixo dos pés, e ia cair. Tornou a dominar os nervos, conseguindo
ocultar a terrível sensação que a dominava.
— Obrigada, querida filha, tornou a Duquesa. Dê-me um abraço e vá
dormir.
A filha de Pedro Carnot debruçou-se para o leito, e sem se fazer pálida, e
sem tremer daquela vez, ofereceu a fronte à nobre dama que acabava de
condenar e executar.
A senhora de Chaslin beijou-a repetindo:
— Vá dormir, minha filha... Eu vou concluir a carta... Até amanhã.
Branca sem responder recuou lentamente com uma rigidez de estatua,
dirigiu-se com um passo automático para a porta do gabinete, abriu-a,
fechou-a após si, e arrastou-se ao seu quarto.
Aí, os seus nervos contraídos espantosamente, dilataram-se-lhe, as forças
abandonaram-na, e caiu numa cadeira, prostrada por um desfalecimento que
foi de curta duração.
— Pronto, murmurou ela passado um instante. Dez vezes julguei que me
ia entregar! Jogava a cabeça por uma coroa de Duquesa... Ganhei a partida?
E quem, pai ou filho, me dará essa coroa? Um futuro próximo me dirá.
Agora trata-se de executar à risca as ordens de Pedro Rédon. É preciso que o
Duque não entre no palácio antes da uma hora da manhã.
Levantou-se, banhou o rosto em água fresca, olhou para a pêndula e
disse:
— Só dez e meia... É muito cedo... devo esperar ainda...
CIX - ACONTECIMENTOS
Branca fez erguer sem ruído o fecho interior da porta, depois, como lhe
recomendara Pedro Rédon, colocou os dois frascos em cima da mesa.
Tornou, em seguida, a sentar-se e esperou.
Deram onze horas no relógio.
— Estão todos deitados, murmurou a jovem, e o senhor de Chaslin
espera por mim. É tempo de me pôr a caminho.
Neste momento chegou-lhe aos ouvidos um leve ruído.
Aproximou-se da porta que dava para o corredor, pôs <> ouvido à
escuta, e ouviu passos de homem.
— É o Duque que sai pelo jardim, continuou ela. Vou ter com ele.
Branca deitou sobre os ombros uma capa de peles, e pôs na cabeça um
chapéu escuro, cujo véu de renda preta lhe formava uma máscara
impenetrável.
Depois de baixar a luz do seu candieiro, desceu pela escada de serviço,
atravessou o jardim, e achou-se dali a pouco na avenida Gabriel.
Levava consigo a chave da portinha.
A noite estava sombria.
Um espesso nevoeiro flutuando na atmosfera, tornava as trevas mais
espessas.
Os perfis das árvores dos Campos-Elyses a custo se avistavam,
parecendo fantasmas.
A filha de Pedro Carnot seguiu pelo passeio, até. ao ângulo da Rua
Boissy d'Anglas.
O senhor de Chaslin esperava-a debaixo do terraço fio Club Imperial.
Reconheceu-a, ou antes adivinhou-a na escuridão, e dirigiu-se
rapidamente ao seu encontro.
— Não me fale aqui, disse-lhe Branca em voz baixa sem parar. Vamos
mais longe. Siga-me.
Apressou o passo já rápido, e só parou debaixo das arcadas da Rua
Rivoli, onde o Duque se lhe reuniu.
A hábil comediante parecia suster-se de pé com dificuldade.
— Que tem? perguntou-lhe o velho muito inquieto, por vê-la tremer.
— Tenho medo, respondeu.
— Estando eu aqui que pode recear?
— Se alguém nos visse!
— É verdade! Não podemos conversar junto de um club onde tenho
tantos amigos. De um momento para o outro posso ser reconhecido...
— Para onde ir?
— Para um lugar seguro... Tem confiança em mim? — Se não a tivesse
estaria aqui?
O Duque apertou a mão de Branca, para lhe agradecer a resposta.
***
***
CX - A CATÁSTROFE
CXI - CONTINUAÇÃO
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Foi encontrá-la na câmara mortuária, que ela não consentia em deixar
sob nenhum pretexto.
Os criados não se fartavam de elogiar a sua dedicação e a sua gratidão.
O senhor de Logeryl dirigiu-se-lhe com respeitoso interesse:
— Menina, olhe que sucumbe a tanta fadiga! É preciso fazer-se
substituir aqui durante algumas horas, e tomar um pouco de descanso.
Branca retorquiu chorando:
— Sou mais forte do que julga, senhor. Demais, pouco importa que eu
sucumba. Não deixarei a minha benfeitora.
— Tem o coração de um anjo, pensou o substituto. Branca tornou:
— Permita-me, senhor, que lhe faça uma pergunta. O senhor de Logeryl
inclinou-se.
— Quando chegam os filhos do senhor Duque?
— Vêem ambos amanhã pela manhã, mas Rogério chega primeiro.
— Permita Deus que eles tornem a ver o rosto de sua pobre mãe.
— Duvida?
— Infelizmente duvido, porque o telegrama expedido por sua ordem,
não a encontrou sua prima em Besançon.
— O namorado de Helena retirou-se, e Branca voltou para a cabeceira da
morta.
Desde pela manhã que ela impusera a si própria um jejum voluntário, o
que, junto à ausência do sono e à intensidade das suas preocupações, dava-
lhe ao rosto pálido um caráter doloroso e trágico.
Era impossível não a julgar esmagada sob o peso de um incomensurável
pesar.
Absorvia-a uma idéia fixa.
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— Meu Deus, meu Deus! pensara Helena que ficara só. Parece-me que
tenho um mau sonho. Que quis ela dizer? Que devo eu recear? Essa Adriana
a quem minha mãe amava, saiu um monstro, um demônio. O túmulo que se
acabou de fechar oculta por acaso um crime? Preciso de o saber!
Na escada ouviu-se um rumor de passos.
O Duque, seu filho Rogério e Armando de Logeryl, transpuseram o
limiar da câmara mortuária.
Helena caiu desfalecida nos braços do pai.
À recrudescência de dor, de lágrimas, de soluços, causados por aquela
dilacerante entrevista, sucedeu, como era inevitável, um momento de
tranqüilidade.
A recordação da conversa que tivera com Mariana voltou à memória da
jovem, que acometida de um calafrio, olhou para o pai cujos olhos se
fixavam com indizível expressão de angústia no leito onde Joana estivera
morta.
Uma piedade terna e profunda apoderou-se de Helena à vista daquele
ancião prostrado pela dor, com o rosto cavado, as órbitas encovadas, as
pupilas embaciadas.
Henrique de Chaslin padecia horrivelmente.
Não podia haver dúvida a tal respeito.
A jovem afugentou do espírito as vagas suspeitas invocadas pelas
reticências da ama.
Aproximou-se do Duque sentado numa poltrona, junto da qual se
conservavam em pé, silenciosos e sombrios. Rogério e o senhor de Logeryl.
— Meu pai, disse ela com uma voz lenta e meiga, a desgraça que nos
fere, é daquelas cuja recordação nunca se apagará... Nós perdemos a nossa
mãe muito amada, mas resta-nos o pai... O pai perdeu a querida e santa
companheira da sua vida, mas restam-lhe os filhos... os seus três filhos,
porque Armando também é seu filho. Pai, deixe correr as lágrimas, mas
apegue-se à existência para nos amar como outrora... para nos amar por
muito tempo ainda...
O Senhor de Chaslin escutava enternecido as palavras da filha.
Tinha as faces inundadas de lágrimas, mas parecia-lhe que aquelas
lágrimas tinham menos amargura.
Com as mãos trêmulas puxou para si a cabeça de Helena, e beijou-a nos
lábios, na fronte, nas faces, nos cabelos.
— Querida... querida filha, balbuciou ele.
A menina de Chaslin. tomando uma atitude erecta, chamou de lado o
senhor de Logeryl, e em voz muito baixa formulou esta pergunta que já
fizera a Mariana:
— Então a minha pobre mãe estava em grande perigo havia muito
tempo?
— Não, querida Helena, respondeu o substituto, a hipertrofia do coração
não chegava ao seu último período, e nada pressagiava uma morte
fulminante...
Esta resposta, idêntica no fundo, senão na forma, à da ama. impressionou
a jovem, que continuou, mas de uma voz mais alta, olhando para o pai:
— E ela morreu de repente?
O Duque, levantando a pesada fronte, respondeu:
— De repente, sim. Foi uma mulher que entrando aqui ontem de manhã,
soltou o primeiro grito de alarma.
— E na véspera, a minha mãe já não estava incomodada?
— Não... Parecia ir até um pouco melhor... Conversou até às dez e meia
da noite com a menina de Lasseny, a quem muito amava.
Ao ouvir o nome da dama de companhia, Helena recebeu cm cheio no
coração uma espécie de choque.
Fez-se pálida, e as suas sobrancelhas contraiam-se repentinamente.
Como ninguém olhava para ela aqueles sintomas de revolta passaram
despercebidos.
CXVI - SUSPEITAS
***
***
***
Helena pegou com mão trêmula na carta que o irmão lhe dava e devorou-
a com os olhos.
Enquanto ela lia, a sua fisionomia expressiva manifestava ao mesmo
tempo o terror e a revolta.
Quando concluiu, exclamou:
— Adriana de Lasseny tua esposa! Adriana de Lasseny minha irmã! Oh!
nunca! nunca!
— Pois não compreendeste que devo obedecer ao desejo supremo da
nossa amada mãe? Entre as palavras de Mariana louca de ciúme, e as da
querida morta, por quem choramos, hesitarias tu? Hesitar seria um crime,
sabes, Helena?
— Não sei senão uma coisa: a idéia de chamar a esta mulher minha irmã,
faz-me calafrios, transtorna todo o meu ser, causa-me em suma uma
invencível repulsão! O instinto que me adverte não poderia enganar-me...
— Engana-a o instinto, querida Helena, disse o senhor de Logeryl
pegando nas mãos da noiva, terá disso a prova quando conhecer Adriana de
Lasseny, e as suas suspeitas desvanecer-se-ão sob o seu primeiro olhar,
como a neve se funde aos raios do sol.
— Minha mãe amava-a do fundo dalma, tornou Rogério; e ela pagava na
mesma moeda o amor de minha mãe. Más de também amá-la.
Dominada por uma perturbação mais fácil de compreender, que de
descrever. Helena perguntava a si própria:
— Que devo acreditar? Minha mãe estaria cega? Andaria Mariana
iludida? Onde procurar a explicação deste enigma sombrio?...
E acrescentou em voz muito alta:
— Apresente-me a menina de Lasseny...
***
***
***
***
***
***
***
Armando, muito pálido, fez-se conduzir ao palácio da justiça, e entrou
no seu gabinete.
No fim de cinco minutos, anunciavam-lhe o agente enviado pelo chefe
da polícia.
— Senhor Gaillet, disse-lhe o jovem magistrado, de todas as vezes que
tenho tratado com o senhor, só lenho tido motivos de me felicitar pelos seus
serviços.
— Agradeço ao senhor substituto a sua benevolência, murmurou Daniel
Gaillet.
— Hoje.continuou Armando, tenho precisão do senhor... O negócio de
que lhe vou falar confidencialmente, não está ainda a estas horas entregue à
justiça... não se fez nenhuma queixa, nenhuma denúncia, e talvez não haja
nunca motivo de se proceder a tal respeito.
— Compreendo muito bem. disse Daniel, trata-se de suspeitas vagas, a
respeito de um crime possível, mas não certo, e o senhor, senhor substituto,
quer conhecer o bem ou o mal fundado de tais suspeitas, antes de proceder
legalmente, e de entregar o caso à justiça.
— Isso mesmo; acrescentarei que os esclarecimentos que o senhor
obtiver serão para mim de grande valor.
Daniel Gaillt tirou da algibeira uma carteira, abriu-a e perguntou:
— Que pontos temos a esclarecer?
— Uma jovem, chamada Adriana de Lasseny, mora desde ontem num
pequeno palacete situado no boulevard Flandrin...
Daniel Gaillet repetiu:
— Adriana de Lasseny... boulevard Flandrin... Que número? perguntou.
— Ignoro.
— Será fácil de encontrar.
— É preciso saber o nome e a morada das pessoas que vierem visitar a
menina de Lasseny:
— Supõe que ela recebe muita gente?
— Segundo toda a probabilidade não deve receber ninguém, e é
justamente por isso que todas as suas visitas se tornarão suspeitas, e que é
preciso estabelecer nos arredores do palácio uma vigilância de dia e de noite.
— Compreendi, senhor substituto, e far-se-á: mas por grande que seja o
meu zelo, não poderei eu só desempenhar a tarefa... Preciso de agentes que
me substituam no meu posto de observação.
— O senhor tem carta branca... A gente que o senhor empregar para esse
serviço particular, será paga por mim.
— Para onde deverei dirigir os meus relatórios quotidianos?
— Não me mandará relatórios escritos...
— Então como há de ser?
— Dir-me-á aqui, verbalmente, o que descobrir... se alguma coisa
descobrir...
— Fica entendido.
— Proceda o mais depressa possível...
— Dentro de duas horas hei de saber a morada exata, hei de comparecer
no local, e já terei colegas prontos a servirem-me.
— Bem.
— Uma palavra mais. senhor substituto...
— Fale.
— Se a menina de Lasseny sair de casa, deverei segui-la?
— De certo!... é essencial saber aonde é que ela vai...
— Muito bem.
— Aceite isto. senhor Gaillet.peço-lhe.
E Armando tirou da algibeira uma nota de mil francos e apresentou-a ao
polícia.
— Isto é apenas adiantamento... Há de ter despesas a fazer. Girando o
dinheiro lhe faltar, previna-me.
Daniel Gaillet inclinou-se.
Fez uma continência militar, e retirou-se.
***
***
***
No dia seguinte, muito cedo. Fossaro dirigiu-se à sua casa da Rua Philipe
de Girard, donde saiu metamorfoseado em Pedro Rédon.
Um trem conduziu-o, à praça da Bastilha, e tomou a estrada ferro com
direção a Saint-Maur-les-Foussés.
Desta estação dirigiu-se pedestremente para a ponte. Atravessou-a e
encaminhou-se para o lugar onde uma extensa alameda de alamos se enxerta
em ângulo reto na estrada de Creteil.
Por esta alameda, um caminho ladeado de sebes, servia às pequenas
propriedades espalhadas nas ilhas, muito profundas naquele sítio, e apertados
entre praias cobertas de arvoredo.
As casinholas construídas nas ilhas, só são habitadas nos belos dias da
primavera ou do estio.
Assim que chegam as chuvas do outono, e as cheias do rio, a água
invade os "rez-de-chaussée", chegando por vezes aos primeiros andares.
Depois de uma caminhada de uns vinte minutos, o Barão parou defronte
de uma pequena ponte vacilante, feita de tábuas grosseiramente reunidas, e
que levavam a uma cancela fechada a cadeado.
Ali deitou um olhar em roda.
Tudo estava deserto.
Transpôs a ponte, abriu a cancela, e achou-se num jardim em que as
ervas altas e as plantas parasitas cresciam com um vigor tão luxuriante, que
as ruas tinham desaparecido sob os seus entrelaçamentos.
***
***
***
***
César abriu uma gaveta da sua secretária, pegou numa das folhas de
papel com o timbre dos Castel-Vivant, que ele roubara do gabinete de
trabalho de Heitor, e no sinete que lhe dera o ferro-velho da Rua de Lappe.
Depois, imitando a letra do Príncipe, com o seu maravilhoso talento de
falsificador, traçou as seguintes linhas:
"Menina Lucília.
"Enganam-na. Se quer saber de que natureza são os graves negócios que
forçam o senhor de Castel-Vivant a afastar-se sem a tornar a ver, não tem
mais que dirigir-se esta tarde a Creteil, ao chalet da ilha Basse. Apear-se-á
no caminho de ferro na estação de Saint-Maur-des-Fossés. Assim que
atravessar a ponte de Creteil, o primeiro transeunte que lhe aparecer, indicar-
lhe-á o caminho, porque sabe quanto o seu amor é puro e desinteressado.
Bastar-lhe-á talvez uma palavra para arrancar aquele a quem ama das garras
de uma mulher indigna, que só trata de se apoderar do título e da fortuna de
Heitor.
"Salve-o de uma perda certa. Seja corajosa até ao heroísmo. Mostre ao
Príncipe de Castel-Vivant o abismo para onde se deixa arrastar. A sua honra,
a sua própria vida, estão em perigo, porque a criatura por quem ele a atraiçoa
é capaz de todos os crimes! Ela já cometeu um infanticídio; mostrar-se-lhe-á
o meio de dar uma prova disso ao Príncipe.
"Não hesite, menina, e creia na palavra de um homem de bem, amigo do
doutor Antonino Frébault, que sabendo muito bem quanto vale, muito a
estima."
***
CXX - O INCENDIÁRIO
***
***
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Depois de ler até à última linha, Lucilia ficou imóvel durante alguns
segundos, com a boca entreaberta, os olhos espantados, e como assombrada.
De repente ergueu-se.
Estava transfigurada, febril, e dos lábios saíram-lhe estas palavras:
— Ah! não será debalde que se terá feito apelo à minha coragem, à
minha dedicação... Que me importa a vida? Quero salvar Heitor, ou pelo
menos tentar salvá-lo. Se ele sucumbir, de que me servirá viver?
Ao mesmo tempo que dizia isto, a órfã metia na algibeira as duas cartas
que acabava de receber sucessivamente, deixando, por esquecimento, ficar
em cima da mesa os sobrescritos com as armas do príncipe.
Pôs na cabeça um chapéu sombrio, embuçou-se numa capa de peles,
pegou no seu "porte-monaie", certificou-se de que a tia dormia
sossegadamente, deixou a água-furtada, desceu rapidamente a escada, e
passou sem se deter por diante da porteira que não a viu sair.
A atmosfera úmida e pesada, pressagiava a volta próxima das grandes
chuvas na bacia do Sena.
No boulevard de Belleville, Lucília olhou para o relógio da estação dos
trens.
— Nove e um quarto! murmurou. A pé não chegarei nunca....Subiu para
um trem, deu ordem para o cocheiro a conduzir à
estrada de ferro de Vincennes, e pôs-se a chorar amargamente.
As lágrimas fizeram-lhe adquirir uma tranqüilidade relativa.
Apeou-se na gare, quatorze minutos antes de principiar a venda dos
bilhetes.
Tinha pois de esperar com inexprimível angústia.
Finalmente, pode comprar o seu bilhete para Saint-Maur-les-Fossés,
donde se devia dirigir para a ponte de Creteil, segundo as informações
ministradas pela carta anônima.
Em Saint-Maur fez perguntas.
Um empregado da estação informou-a.
O céu estava como breu.
O vento soprava com lufadas violentas.
No horizonte, grandes relâmpagos rasgavam as nuvens.
Principiava a cair a chuva.
Lucilia não andava, corria.
Que lhe importava a tempestade ribombando por cima da sua cabeça?
Tratava-se da salvação de Heitor.
Era pelo menos o que ela julgava.
A sua sublime dedicação tudo lhe fazia esquecer.
Chegando à ponte de Creteil, as casas já não a abrigavam.
Ouvia os queixumes lúgubres do vento, e o ruído assustador das águas
muito volumosas, engolfando-se pelos arcos que eram agora estreitos para
elas.
Alguns fregueses mais demorados, fumavam e conversavam ainda no
café restaurante da testa da ponte.
Pela porta entreaberta saía um raio luminoso.
A órfã empurrou a porta, parou à entrada e perguntou:
— Têm a bondade de me dizer por onde devo tomar para ir ao chalet da
ilha Basse?
Os fumadores olharam uns para os outros espantados.
Foi o dono da casa quem respondeu:
— Atravessem a ponte, e tomem pela grande avenida dos alamos á sua
esquerda.
***
***
CXXII - CONTINUAÇÃO
***
***
Segundo o seu costume, a tia cega tinha-se deixado dormir até muito
tarde.
Por volta das nove horas da manhã, após uma noite de sono muito
sossegado, despertou e chamou Lucilia.
A Toutinegra, infelizmente, não podia responder-lhe.
— Saiu para algumas compras... disse a septuagenária. E esperou sem
grande impaciência.
O tempo passava.
— Enganar-me-ia eu? tornou a cega no fim de um quarto de hora. Será
por acaso noite ainda? Mas não. é impossível... Ouço andar pela casa... Está
toda a gente ainda de pé... demais, tenho o estômago a dar horas, e este é um
relógio que nunca se transtorna...
Tornou a chamar Lucilia com mais força ainda.
Como os seus brados não tivessem resultado, apoderou-se dela uma
inquietação muito natural.
Trêmula, saltou da cama. dirigiu-se com os braços estendidos para a
porta que separava o seu quarto do da sobrinha, abriu-a, e. às apalpadelas,
aproximou-se do leito que achou muito em ordem.
— A cama está feita... pensou a cega. A pequena deve ter saído esta
manhã... Mas como se demora! Não é o seu costume!! One horas são?
A anciã aproximou-se do relógio de cuco suspenso da parede, passou
muito de leve os dedos por cima do mostrador. consultou os ponteiros, e
descobriu sem custo que eram dez horas.
— Dez horas! murmurou. Porque será esta ausência tão prolongada?
Ontem à noite ela recebeu um bilhete do Príncipe. O que lhe diria a carta?
Meu Deus. se aquele homem tivesse abusado da ingenuidade de Lucilia... do
seu amor!! Os homens são capaz-es de tudo! Não. não, não quero crer.
Lucilia demora-se, não é mais nada. Daqui a cinco minutos volta...
Passaram os cinco minutos, depois outros cinco, e a final um quarto de
hora.
A septuagenária, dominada então por uma angústia indizível, voltou para
o quarto, vestiu-se à pressa, dirigiu-se para a porta da escada, abriu-a, e
gritou:
— Senhora Verdier! senhora Verdier!
— Ei-la! ei-la! respondeu a vizinha, apressando-se a abrir a porta. Que
determina, minha cara senhora? acrescentou.
A cega fê-la entrar, fechou a porta e perguntou:
— São dez horas,não é verdade?
— Por que me faz essa pergunta? Que há de novo? Vejo-a tão
alvoroçada!
— Viu hoje Lucilia? tornou a cega.
— Não vi... Não está cá?
— Não, não está. Tem a certeza de que não a ouviu sair esta manhã?
— Oh! essa certeza, tenho-a! mas isso não prova nada... podia não a ter
ouvido... Há alguma coisa que a inquieta? Supõe que sucedesse alguma
coisa?
— Não sei o que suponha... alguma coisa extraordinária se passa... tenho
medo...
— É preciso sossegar,minha querida senhora... A porteira pôde dar-nos
algumas informações... Quer que vá em baixo e a interrogue?
— Sim, sim, peço-lhe...
— Vou a correr.
E a senhora Verdier, no fundo excelente pessoa, e muito impressionada,
porque sinceramente amava a Toutinegra, correu para fora do quarto.
Passados cinco minutos entrava ofegante, depois de subir de um fôlego
os cinco andares.
— Nada! disse ela com uma voz entrecortada. A porteira tem estado toda
a manhã a trabalhar no seu cubículo, não arredou pé. Devia ter visto passar
Lucilia... Nada viu.
— Então é que a pequena não se recolheu ontem à noite! exclamou a
septuagenária com desespero.
— Não se recolheu! repetiu a senhora Verdier, levantando as mãos ao
céu. Pois ela havia de passar a noite fora de casa na véspera do casamento!
— Oh! nada de suposições injuriosas! replicou a cega. Conheço
Lucilia... tenho-a por incapaz de uma fraqueza!... A pobre pequena não
pecou, foi algum laço que lhe armaram, ou deixou-se levar pelo desespero.
— Oh! minha boa vizinha, está a assustar-me. De que laço-me fala? a
que propósito esse desespero?
— Ontem, a minha sobrinha recebeu uma carta... É preciso encontrar
essa carta, que talvez, nos mostre algum indício. Procure-a, peço-lhe.
A senhora Verdier olhou para a mesa de trabalho de Lucilia,. viu d
sobrescrito que ali deixara a jovem, e exclamou:
— Uma carta... ei-la.
— Leia, leia depressa! leia em voz muito alta! Bem vê que estou sobre
brasas!
A senhora Verdier lançou mão do sobrescrito, e com grande surpresa
sua, nada achou dentro.
— Não temos sorte! disse, o envelope está vazio!
— Mas para quem era dirigido?
— À menina Lucilia Gonthier, rua Julien Lacroix. Há um sinete
quebrado... um belo sinete de lacre vermelho com uma coroa...
— O sinete do Príncipe! murmurou a velha. Ah! bem me dizia o coração,
Lucilia foi atraída a algum laço por aquele miserável que falava de.
casamento para disfarçar os seus vergonhosos projetos!... É infame!... E não
posso ir em socorro da minha pobre menina sem defesa! Sou velha... fraca...
Estou cega e impotente! Deus é desapiedado para mim!
E a septuagenária pôs-se a soluçar contorcendo as mãos.
— Vejamos... Vejamos... tia Gonthier... disse a ex-formosa hervanária
enxugando os olhos arrasados de lágrimas. Não se apoquente tanto... Não
temos a prova de que sucedesse alguma desgraça...
A cega não escutava.
— Senhora Verdier, disse, se tivesse de permanecer nesta incerteza,
morreria dentro de uma hora. Venha comigo.
— Vizinha, que quer fazer?
— Quero ir à rua Francisco I, pedir minha filha à irmã do Príncipe de
Castel-Vivant.
— Mas é impossível.
— Impossível, por quê? A vizinha pôde levar-me muito bem até urna
carruagem, não é verdade?
— Até, se for preciso, acompanhá-la-ei a qualquer outra parte.
— Obrigado, recuso o oferecimento... não tenho necessidade de ninguém
para obrigar o Príncipe a dizer-me o que fez de Lucilia.
Venha então, visto que assim o quer absolutamente.
***
CXXIII - INVESTIGAÇÕES
***
***
"Senhor Sta-Pi."
"Espero-o no pequeno café."
"Muito urgente."
"Heitor."
***
***
Os dois separaram-se.
No dia seguinte pela manhã. Luiz. o criado de quarto veio anunciar ao
Principezinho que o senhor Estanislau Picolet, que recebera ordem de
introduzir assim que se apresentasse, esperava no gabinete de trabalho.
Heitor apressou-se a ir ter com ele.
O empregado do escritório de Malpertuis apurara muito particularmente
a sua toilette.
Parecia um empregado de tribunal com traje de domingo e dias de festa.
— Ora seja muito bem vindo.senhor Picolet... disse-lhe o Príncipe com
uma comoção fácil de compreender. Traz-me notícias?
— Só uma, senhor; venho da Morgue, e ali coisa alguma confirma o
suicídio... Demais só hoje. e depois de ter a honra de conversar com o senhor
Príncipe, é que dou princípio às minhas investigações....
***
***
Lambert ordenou:
— Salta aos remos, e remar com força rio acima, para que a corrente não
nos alague. Eu vou ao leme... Deixar-nos-emos descair sobre o salgueiro, e
quando lá chegarmos, eu me encarrego de amarrar o barco sòlidamente...
Vá...
Os barqueiros agarraram nos remos e principiaram a lutar vigorosamente
contra a corrente.
Em terra, os espectadores não respiravam, assistindo àquela luta
imponente, bem depressa coroada de êxito.
Lambert, em pé, na popa do barco, cujas violentas oscilações não lhe
faziam perder o equilíbrio, tinha numa das mãos o seu croque, e na outra a
amarra.
— Agora deixem descair o barco, disse ele no fim de alguns minutos, e
procuremos evitar o choque... Bem vejo a pobre criatura, parece que está a
olhar para nós...
Efetivamente a mulher que queriam salvar, voltara à cabeça ao ouvir o
ruído dos remos, e fixara no barco olhos espantados.
O doutor Auger seguia com o binóculo os movimentos da infeliz, cujo
rosto podia agora ver.
— É uma jovem muito nova ainda! exclamou muito comovido, quase
uma criança.
O barco de Lambert estava apenas a alguns metros de salgueiro
desarraigado que a violência das águas abalava.
A jovem, trêmula de frio, o rosto lívido, os lábios desmaiados. os cabelos
soltos e encharcados, agarrava-se aos ramos com toda a força dos dedos
contraídos.
— Atenção! disse o barqueiro. Abordemos o salgueiro de través. A
manobra foi habilmente executada, e o barco impelido pela corrente, veio
encostar a borda aos ramos copados da árvore, e ali imobilizou.
Da praia elevaram-se exclamações de imensa alegria.
— Deve um círio bento ao santo da sua devoção, minha filha, porque ei-
la salva! exclamou Lambert. Vamos, coragem, e alguma força! Pegue na
minha mão, levante-se, e salte para o barco...
O bom do homem estendia a mão à jovem, mas esta não se movia.
Parecia não ouvir, e olhava para ele com olhos embaciados e fixos.
— Dir-se-ia que não compreende nada... murmurou um dos barqueiros.
— Valha-me Deus, ela está regelada... replicou Lambert É preciso pegar
nela e transportá-la, porque julgo-a incapaz de se mexer. Vou saltar no
tronco... Está sòlidamente seguro entre os olmeiros. Demais, se houver
perigo, tanto pior... Chegar bem o barco.
O barqueiro pôs resolutamente os pés no salgueiro que não cedeu sob o
peso do corpo.
Debruçou-se, desprendeu, não sem custo, os dedos contraídos dos ramos
que enlaçaram, levantou-a brandamente, e deitou-a no barco, saltando em
seguida para junto dela.
Os espectadores soltaram vivas e bateram palmas.
O mais difícil estava feito.
O barco, entregue à corrente, chegou à praia em alguns segundos, e dez
homens puxaram-no sobre o terreno encharcado.
Lambert tornou a tomar a jovem nos braços, e depôs o leve fardo sobre
uma elevação coberta de erva, à beira do caminho.
A jovem era Lucília, comi os nossos leitores devem ter já adivinhado.
Devemos explicar porque acaso, ou antes porque milagre, a noiva do
principezinho ainda estava viva.
Fossaro julgara desembaraçar-se para sempre da órfã, atirando-a
desmaiada às ondas engrossadas do Marne.
A impressão da água gelada reanimou subitamente a pobre Toutinegra,
levada pela corrente por entre os destroços que o rio impetuoso arrastava.
A corrente levou-a para um ponto elevado do rio.
Ali agarrou-se aos ramos pendentes de um salgueiro, e assim se manteve
durante alguns segundos, transida, assustada, mais morta que viva, e
julgando-se ludibrio de um terrível sonho.
De repente o salgueiro oscilou, como uma árvore cujo tronco e atacado
pelo machado do lenhador.
A violência da corrente escavava o solo em roda das raízes.
Subitamente Lucília sentiu vacilar a árvore, e cair nas águas lodosas.
Agarrou-se com mais força aos ramos, soltando aquele grito de agonia
que Fossaro e Genoveva tinham ouvido.
O Marne transbordante arrastou a jovem e o salgueiro.
A árvore deslizava pela corrente com uma rapidez vertiginosa.
De repente parou. Dois olmeiros muito próximos um do outro, entre os
quais se arremessara como uma cunha, embaraçavam a sua doida carreira.
Sabemos o resto.
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CXXVII - DESASTRE
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O yacht corria com uma rapidez prodigiosa, fazendo espumar a água sob
a roda de proa.
Iam entrar no grande lago. isto é. no lugar mais largo e mais profundo do
Léman.
Naquele ponto a sonda denuncia profundidade de cento e cinqüenta
braças.
Uma ventania repentina abalou o yacht no seu cavername.
A chuva principiava a cair.
As ondas tornavam-se muito violentas.
— Eis a brisa... disse Marcello. E gritou para Antônio:
— Olha que levamos muito pano: é preciso ferrar os papa-figos
— Sim, senhor.
O pano foi ferrado.
O yacht não perdeu porém a sua velocidade vertiginosa. O vento
refrescava cada vez mais.
As vagas levantavam a embarcação que não perdia o equilíbrio. por ter
bastante lastro.
A chuva transformava-se em aguaceiro torrencial.
— Vai, pequeno, peço-te, para o camarote.
Ao longe avistavam-se as luzes de uma cidade, sobrepondo-se pela
encosta da montanha.
— É Lausanne, disse Antônio. Vamos aproveitar a corrente e o vento,
para descermos a Versoix.
— Tudo vai bem... estamos apenas molhados.
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CXXIX - CONTINUAÇÃO
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Dali a uma hora Marcello Laugier partia para Nyon, com uma mala cheia
de roupa e de fato, e reunia-se no hotel da Gare a Raul e a Lourenço Féral.
César de Fossaro pusera-se de observação num café próximo da "mairie"
onde não tardou que visse o oficial do estado civil, seguido de um
personagem de cabelos compridos e lisos que um dos fregueses designou
como sendo o mestre escola, fazendo as vezes de secretário do conselho.
— Vão lavrar o auto... pensou o barão. E tornou a partir para Genebra.
Dali a três dias voltava para Varsóvia.
Depois de se certificar da ausência de Marcello Aubertin, dirigiu-se à
"mairie" e pediu uma certidão do filho do Marquês, Roberto de Tour-du-Roy
e de Lazarine Leroux, viúva do Marquês.
Munido desta certidão, César voltava para Paris onde Malpertuis, tendo
chegado na véspera, aguardava impaciente.
Pôs o seu sócio ao fato do que se passara.
Malpertuis apesar de no fundo sentir sérias apreensões cumprimentou-o
com entusiasmo a respeito dos resultados obtidos.
— Temos em nosso poder toda a fortuna de Lucilia Gonthier e a
Marquesa de la Tour-du-Roy vai cumprir o seu contrato... atreveu-se em
seguida a dizer. Portanto estamos já hoje ricos... Não te parecia prudente
parar?
César encolheu os ombros.
— E havemos de abandonar os milhões do Príncipe Heitor, os milhões
do Duque de Chaslin, os milhões de Maria de Vergis e de Arnaldo de Trois
Monts! exclamou. Estás doido? Iremos até ao fim... Primeiro a Marquesa de
la Tour-du-Roy.
— Apenas está comprometida por um milhão...
— Eu encarrego-me de lhe fazer triplicar a quantia... Nesta ocasião deve
ela debater-se em meio de grandes dificuldades de dinheiro.
— Por quê?
— Como um filho de família namorado de uma dançarina, assinará tudo
quanto quiserem para receber de uma só vez uma grande quantia... Talvez
lhe compremos as propriedades da Tour-du-Roy. para onde iremos viver
como grandes fidalgos...
— E Branca?
— De hoje em diante ocupar-me-ei dela, mas estou sossegado a seu
respeito. Sempre é do meu sangue!
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Assim que a porta se fechou após eles, Genoveva levantou-se com olhos
faiscantes.
— Vai-te Príncipe imbecil! disse ela quase em voz alta num tom de raiva
espantosa. Sim, fui eu que levei a tua Lucília para o chalet da ilha Basse
onde a esperava a morte, ü teu instinto de amante não te enganou. Apanhaste
o rasto... Mas arranja provas!... Soube dominar a minha perturbação e
mentir. Fossaro ter-me-ia admirado... A tarefa era pesada, mas agora não há
nada a recear... Heitor há de ir fazer companhia a Lucília e a nós os seus
milhões. Serei rica e ficarei vingada.
Heitor e Sta-Pi, ambos sombrios, tinham subido novamente para o trem.
— Que lhe parece, senhor Picolet? perguntou o Príncipe.
— Parece-me que aquela velhaca é de grande força.
— Não está convencida da sua inocência?
— Não.
— Contudo, na sua voz havia um imutável tom de verdade.
— Nada prova senão que é hábil comediante.
— Que vai fazer?
— Procurar, procurar sem descanso, até ao dia em que tiver encontrado...
— Sta-Pi, as minhas esperanças já não são nenhumas.
— Pelo contrário, é preciso ter esperança, e contar comigo.
O principezinho abanou a cabeça e tornou:
— Aonde quer que eu o conduza?
— Atrevo-me a pedir ao senhor que me ponha no boulevard.
— Quando o tornarei a ver?
— Dentro de três dias.
Picolet apeou-se ao pé da Madalena.
Dirigiu-se a pé para o seu domicílio. Ali preparou uma pequena mala,
consultou o indicador dos caminhos de ferro, fez-se conduzir de trem à gare
de Orleans e tomou um bilhete para Amboise.
Ia explorar as ruínas do palácio de Vezelay incendiado.
***
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CXXXIV - A LOUCA
***
Voltemos a Creteil.
Conduzida pelos cuidados da jovem esposa do doutor Auger à casa de
saúde, dirigida pelo marido, Lucilia Gonthier fora colocada num quarto, e
rodeada de cuidados assíduos.
A senhora Auger tinha uma profunda simpatia pela jovem desconhecida,
a quem uma catástrofe acabava de perturbar a razão.
O "maire" de Creteil e o comissário de polícia tinham feito o seu
relatório à autoridade competente, mas este relatório apresentava um número
considerável de incidentes de toda a espécie, resultado da inundação.
Na prefeitura não se tinham preocupado com aquela jovem retirada das
águas, viva e louca.
— Talvez eu fizesse bem em falar a pessoa competente da minha nova
pensionista? disse um dia o doutor à mulher.
— Se a deixares ir embora, que será feito dela? perguntou a senhora
Auger.
— Virão buscá-la, transportá-la-ão para a enfermaria do Depósito, e daí
para um asilo de alienados.
— Aí tratá-la-ão mal, e pobre, sem família, sem amigos, servirá para as
experiências dos professores e dos internos!
— Não deixa de ser verdade.
— Admites que a luz possa brilhar um dia naquele cérebro obscurecido?
— Pelo menos creio que não é impossível.
— Porque se há de então arremessar essa criança para um desses
túmulos antecipados que se chamam casas de doidos? Ela ali nunca se
curaria, enquanto que tu eras capaz de lhe fazeres reviver a inteligência.
Então ela te dirá quem é, e terás a alegria de fazeres gente feliz. Foi Deus
quem a enviou. Conservêmo-la. Eu gosto dela.
O doutor abraçou ternamente a mulher, e respondeu:
— Nós a conservaremos, visto que a amas.
A loucura da jovem era a tal ponto silenciosa, que o médico perguntava
às vezes, se o terror, ferindo os lóbulos cerebrais, não tinha causado uma
paralisia quase completa das cordas vocais.
Teve a prova do contrário nas seguintes circunstâncias:
Vagou um quarto próximo do quarto particular de senhora Auger.
A jovem pediu ao marido que instalasse ali a louca da ilha Basse, de que
poderia ocupar-se mais assiduamente.
O Senhor Auger não resistia nunca à mulher.
Consentiu.
Numa linda manhã, a dona da casa dirigiu-se acompanhada de uma
enfermeira, à célula ocupada pela sua pensionista.
Vestiu Lucilia com o traje da casa de saúde, e fê-la descer ao jardim de
que era preciso atravessar uma parte para chegar ao ponto do edifício onde ia
habitar.
Naquele momento o doutor saindo da sua visita, veio ter com eles
acompanhado do seu ajudante.
— Conduza-a muito devagar porque ela está muito fraca, disse ele. Passe
por pé do tanque, será mais perto.
A senhora Auger seguiu o caminho indicado pelo marido.
No meio do tanque de que o doutor acabava de falar, havia uma bacia na
qual repuxo iluminado com as cores do arco íris, cada continuadamente com
um pequeno ruído monótono.
A alguns passos do tanque. Lucilia parou trêmula.
A senhora Auger procurou levá-la com brandura, dizendo-lhe:
— Venha, minha filha.
A jovem resistiu.
Os olhos fixos, o rosto aterrado, apontou para o tanque murmurando:
— Escute, escute, ouve? É a chuva que cai, a água sabe, a água vai-me
levar e engolir. Socorro! Acudam-me. salvem-me!
Depois, soltando um grito de aflição, ocultou o rosto nas mãos, para não
ver o terrível espetáculo que a sua imaginação evocava.
— Lembra-se? exclamou o doutor, é de um feliz agouro. Curar-se-á.
Mas é preciso afastá-la depressa desse jacto de água que a aterra.
Auxiliado pelo mancebo que o acompanhava, levaram-na ambos nos
braços até ao quarto que ela devia habitar dali em diante.
Ali tornou-se sombria e silenciosa.
O senhor Auger dirigiu-lhe a palavra por muitas vezes; ela pareceu não a
ouvir.
Daquele dia em diante as suas forças aumentaram rapidamente, mas
pareceu cair outra vez num mutismo absoluto.
Passava horas inteiras a olhar para o céu enevoado, onde a instantes
caíam as neves precoces do terrível inverno de 1879 a 1880.
O doutor resolveu começar sem mais demora um tratamento em que
muito confiava para chegar ao restabelecimento.
***
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CXXXV - PROVAS
***
***
Rogério ouvira.
Sem esperar o regresso de Francisco, abriu a porta e parou ò entrada.
O Duque de Chaslin dirigiu-se para ele. com o furor nos olhos, a ameaça
no gesto.
— Desde quando se atreve o senhor a desobedecer-me? exclamou.
— Desobedeço-lhe, mau grado meu, respondeu Rogério. Não esqueço,
não esquecerei nunca, o profundo respeito que lhe devo e se transgrido umas
ordens inexplicáveis, é porque preciso falar-lhe quanto antes.
— Que me quer?
— Desejaria que ninguém nos ouvisse.
— Então entre o seja conciso.
Rogério entrou na sala.
O senhor de Chaslin fechou depois a porta.
O mancebo contemplava o pai com assombro.
Mal o conhecia, tão terrível era a mudança que nele se operara havia
quatro dias.
Os dois olhos amortecidos sumiam-se no fundo das órbitas rodeadas por
um circulo azulado.
Sulcavam-lhe a fronte profundas rugas.
Tinha a barba crescida e maltratada.
No rosto mostrava, uma expressão de idiotismo.
O Duque de Chaslin parecia um homem morto pelo deboche e excessos
de toda a espécie.
Rogério sentiu comiseração.
— Meu pai, perguntou ele com uma voz afetuosa, sofre muito, não é
verdade?
— E eu queixei-me?
— Não, meu pai, mas há no seu rosto vestígios de dor...
O Duque sentou-se sem dar resposta.
Passou as mãos pela fronte, guardou silêncio por um instante como para
reunir as idéias, e disse de repente:
— O senhor entrou contra minha vontade no lugar do meu refúgio, sob
pretexto de uma comunicação importante. Explique-se, e repito-lhe, seja
conciso.
— Bem sabe, meu pai. que eu não voltarei ao regimento, tornou Rogério.
Alcancei uma licença renovável, que equivale a uma baixa definitiva.
O senhor de Chaslin fez um gesto de indiferença.
Que lhe importava aquilo?
— Quero casar, continuou o irmão de Helena.
— César! repetiu o Duque: na sua idade!
— Sou ainda muito novo, é verdade, mas conheço a vida, porque a tenho
gozado, e talvez abusado dela. Os prazeres fáceis já não têm atrativos para
mim. O meu ideal agora é tornar-me homem sério, pai de família,
conhecedor dos seus deveres e cumprindo-os. Nunca e cedo de mais para
isso. O que lhe parece, meu pai?
Henrique de Chaslin estremeceu, e deitou ao filho um olhar a furto.
Parecia recear que naquelas palavras se ocultasse algum pensamento
reservado.
Depois, baixou a fronte, e respondeu:
— Penso que tem razão. Se o senhor tem confiança em si, não posso
deixar de o aprovar... O senhor tem um grande nome... Vai entrar na posse
da parte que lhe pertence da herança materna... Portanto, pôde e deve
pretender a mão de uma jovem de velha nobreza, possuidora de uma riqueza
pelo menos igual à sua...
— Aquela a quem amo, pôde unir o seu nome ao meu, sem que me fique
mal, murmurou Rogério. Não suponho porém que ela seja rica.
O Duque mostrou-se muito surpreendido, e exclamou:
— Aquela a quem ama! O que, já a encontrou?
— Sim. meu pai.
— Depois que voltou para Paris?
Rogério fez um sinal afirmativo e acrescentou:
— Amo-a, e desposarei a jovem que minha santa mãe designou...
Por segunda vez o senhor de Chaslin levantou a cabeça e olhou par ao
filho.
— Sua mãe indicou-lhe alguma senhora? exclamou. Nunca me falou em
semelhantes projetos.
— Contudo, esta é a verdade.
— Ela escreveu-lhe a tal respeito?
— Sim, meu pai, na carta que a morte não lhe permitiu concluir, e eu
encontrei junto do leito fúnebre...
— Como é possível que eu não tivesse conhecimento dessa carta?
— Só a mim era dirigida... Vi a senhora que minha mãe me destinava...
Amei-a, porque ela é pura... Amei-a, finalmente, porque o senhor Duque foi
seu protetor, seu amigo, e ela captou as simpatias e o respeito de meu pai.
O senhor de Chaslin levantou-se repentinamente.
Pairava-lhe a angústia no coração.
Tinha as mãos trêmulas, e os olhos lampejavam-lhe.
— Quem é então a jovem, perguntou com uma voz rouca, quem é a
jovem de quem tenho sido o protetor, o amigo, e a quem sua mãe lhe
designava como mulher num escrito supremo?
— Leia, meu pai...
E Rogério estendeu para o Duque a carta por concluir, que ja mostramos
aos nossos leitores.
***
***
***
Abriu-se a porta.
Rogério largou os pulsos do pai, que se deixou cair esmagado,
aniquilado, numa cadeira.
— Armando! exclamou o mancebo, tens o rosto transtornado. Que
sucede?
— Preciso de falar ao senhor Duque... respondeu o magistrado, com uma
voz trêmula pela comoção.
— Fala! Exclamou Rogério.
— Só devo falar com ele a sós...
— A sós... repetiu o velho assustado.
— Sim, senhor Duque...
— Retiro-me, meu amigo... exclamou Rogério assustado, pressentindo
nova desgraça.
— Retira-te, disse o pai para Rogério, depois nos tornaremos a ver.
O irmão de Helena inclinou-se diante do pai e saiu. O substituto e o
Duque acharam-se em frente um do outro. Não podia ocultar a sua terrível
agitação o primeiro. O segundo, com a cabeça inclinada, os olhos vacilantes,
o lábio pendente, parecia atacado de um súbito amolecimento de cérebro.
— Senhor Duque, disse de repente Armando de Logeryl, ouve-me?
Acha-se em estado de ouvir?
O ancião enxugou a fronte molhada de suor, e balbuciou:
— Estou escutando.
O substituto principiou:
— Tinha a honra de ser parente da senhora Duquesa, principiou o
substituto; tenho também a honra de ser noivo da menina de Chaslin, que há
de ser minha mulher, assiste-me pois o dever de me preocupar com o que diz
respeito à sua família, que a minha, e de apartar dela a vergonha, se tanto for
preciso...
Nos olhos amortecidos do velho, brilhou um clarão.
— A vergonha! repetiu.
— Profiro esta palavra, e por desagradável que seja, não a retiro.
Depois desta frase proferida por um modo incisivo. Armando continuou:
— No dia em que conduzimos a senhora de Chaslin à sua última morada,
Helena que chegara de Besançon muito tarde para a cerimônia, viu-se só no
palácio, no quarto mortuário, e terríveis suspeitas lhe invadiram a alma a
respeito da morte de sua mãe. Formulou o seu pensamento em voz alta na
sua presença... eu estava presente... O senhor Duque cheio de cólera impôs-
lhe silêncio, afirmando que o crime não tinha podido transpor o limiar de
uma habitação onde o senhor Duque velava...
— O senhor, naquela dia, defendeu aquela a quem caluniavam,
balbuciou o senhor de Chaslin. Hoje, como naquele dia, repito cheio de
convicção, que o crime não pode aqui entrar.
— Que sabe o senhor Duque a esse respeito? perguntou de súbito o
jovem magistrado.
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***
Quatro homens, muito bem agasalhados, com o rosto meio oculta sob
fartos cachenês, deslizavam ao longe das paredes como sombras, andando
sem ruído.
Estes quatro homens fizeram alto junto da porta por onde Fossaro se
introduzira um pouco antes.
Havia um a quem os outros três obedeciam.
Era Daniel Gaillet.
— É aqui, disse ele.
— O que substituiu Daniel, perguntou-lhe:
— Agora que vamos fazer?
— Uma coisa muito simples, respondeu Daniel Gaillet. Eu vou escalar o
muro com um de vocês. Quando nos acharmos no jardim, iremos colocar-
nos à direita e à esquerda da entrada do chalet. Daqui a cinco minutos o
senhor baterá a esta porta.
— Há uma campainha, observou um dos agentes.
— Em vez de bater, tocará a campainha.
— E depois?
— Depois, como o nosso homem não desconfia, porque espera alguém,
virá abrir, e filá-lo-emos na passagem. Isto deve caminhar perfeitamente.
— Mas se for preciso prestar-lhe auxílio? tornou o agente subalterno.
— É exato... Abrir-lhe-emos a porta lá de dentro, mas só em caso de
necessidade deverá aparecer...
— Fica entendido...
— Sirvam-me de escada, tornou Daniel, sou o primeiro a entrar...
O polícia mais robusto cruzou as mãos no ventre e encostou-se na
parede.
Daniel serviu-se daquela escada improvisada, para subir para os ombros
do colega, e dali para o muro.
Apesar de já não ser moço, conservava, então, graças à regularidade da
sua vida, um vigor pouco comum.
Suspendeu-se pelos pulsos à aresta do muro, e deixou-se cair no jardim.
Um segundo agente seguiu o mesmo caminho, e achou-se ao pé do
inspetor.
— Meu amigo, era inútil, era inútil a sua escalada, disse o inspetor
abrindo a porta que estava apenas no trinco.
Depois, acrescentou, falando aos outros dois agentes:
— Não se mexam, e de revólver em punho!
Feita esta recomendação, Daniel e o seu companheiro, caminhando pela
neve, cuja camada pouco espessa ainda, abafava o ruído dos passos,
dirigiram-se para o chalet.
Através das águas de uma das persianas do "rez-de-chaussée"
infiltravam-se umas réstias de luz.
Os dois homens postaram-se à direita e à esquerda da porta, empunhando
cada um o seu revólver engatilhado, pronto a fazer fogo.
Imóveis e silenciosos como cariátides, esperaram.
O frio chegava ao vivo, repetimos, do negro céu caíam grandes flocos de
neve.
Daniel tinha os pés gelados, e contudo, um suor abundante umedecia-lhe
a raiz dos cabelos.
A febre escaldava-lhe o sangue.
O coração parecia querer saltar-lhe do peito.
Decorreram assim alguns minutos, depois, no relógio, ao longe, deram
dez horas.
À última badalada, respondeu o tinir da campainha, agitada por um dos
agentes.
Gaillet já não respirava.
Na chalet Pedro continuava a cismar, atiçando com mão distraída os
toros inflamados.
Ao ruído da campainha estremeceu e levantou-se rapidamente.
— É ela, murmurou com um sorriso feroz. Aí está, apesar das suas
veleidades de resistência, continuo a dominá-la. Obedece, portanto sente-se
vencida, e resigna-se a ser Duquesa. Tinha já a certeza disso.
Levantou-se e correu para a porta que abriu para sair.
Mas parou repentinamente aterrado.
Soltou um grito de raiva.
Dois homens impediam-lhe o caminho.
Apontavam-lhe os seus revólveres.
Ao mesmo tempo dizia-lhe ao ouvido uma voz sibilante:
— Tenho esperado por muito tempo, mas apanhei-te finalmente, Pedro
Carnot, e não te tornarei a largar.
***
***
***
***
"Senhor Malpertuis.
Agente de negócios,
Rua da Vitória.
Pessoal."
***
***
***
***
***
***
A tarde chegou.
Os dois amantes jantaram juntos.
Em seguida o artista acompanhou a amante à gare, viu-lhe tomar o seu
bilhete para Orleans, quiz ele próprio instalá-la no compartimento reservado
às damas.
No momento da despedida, jurou que pensaria nela constantemente, e
fez-lhe prometer que tomaria no dia seguinte sem falta.
E quando o comboio se punha em movimento, voltou para o seu coupé
murmurando:
— Até que enfim ela partiu! Estou livre, tenho a minha noite para mim!
Que sorte!
Pelas três horas da tarde, Genoveva Leinen recebera um telegrama
concebido nos seguintes termos:
"Irei cear contigo esta noite.
"Fernando."
***
O trem rodou.
Fernando silencioso, tudo corrido, procurava o meio de cortar ou pelo
menos de atenuar uma cena inevitável, em que para ele não seria o papel
brilhante.
— Lazarine, disse de repente à jovem inerte e muda, querendo pegar-lhe
na mão, Lazarine, escuta-me.
— Oh! peço-lhe, interrompeu a Marquesa com uma voz alterada tirando
a mão, peço-lhe, não me fale agora... Depois... daqui a bocado.
E desatou a chorar.
O comediante, atirando-se para o seu canto donde não se mexeu mais,
pensou:
— É escusado insistir.
***
***
***
***
"P. S. Fui esta tarde aos Campos Elyseos a casa de Tony Montel, que
acaba de receber de Inglaterra uma recua de cavalos encantadores.
"Sobretudo há uma parelha de trem que me faz andar a cabeça à roda.
Iremos vê-los juntos, e se te agradarem, hás de me dar licença para tos
oferecer."
Lazarine sorriu amargamente, amarrotou a carta e meteu-a na algibeira
do vestido.
O comediante, muito feliz por escapar à tempestade que receava, teve
todo o cuidado de não fazer perguntas a respeito da carta.
Pensava que Genoveva, por muito generosa que fosse, não lhe daria
nunca três milhões.
***
CXLVIII - O VITRÍOLO
***
No dia que se seguiu a prisão de Pedro Rédon, Daniel Gaillet fora ter
com o senhor de Logeryl conforme as ordens que recebera para lhe dar conta
de como as coisas se tinham passado, e entregar-lhe alguns papéis
apreendidos no chalet da Rua Compans, papéis aliás insignificantes.
— O homem é efetivamente quem supunha? perguntou o substituto.
— Sim, senhor. Pedro Carnot, condenado evadido do local que lhe foi
designado para residência.
— Resistiu?
— Não, senhor, parecia aterrado.
— Dirigiu-lhe algumas perguntas?
— Perguntou-me porque era que o prendia, e tive, conforme a lei, de
apresentar a ordem de prisão de que era portador.
— Não pude interrogar esse homem hoje, continuou Armando, vários
negócios tomam todo o meu tempo. Vou assinar uma ordem de extração; irá
buscar Pedro Rédon, amanhã às duas horas, à prisão da Santé, e trazê-lo-a
aqui
— Bem, senhor. No outro dia Armando chegou muito cedo ao tribunal.
O comissário de policia que na véspera à noite redigira o auto do
acontecimento do Ambigu, esperava-o, acompanhou-o ao seu gabinete, e
explicou-lhe o motivo da sua visita.
Ao ouvir proferir o nome da senhora de la Tour-du-Roy, o senhor de
Logeryl pareceu estupefato.
— Como, exclamou ele num tom de incredulidade, a Marquesa tentou
semelhante crime! É possível?
— Está infelizmente provado, e a sua culpável tentativa redundou contra
ela.
— Então ficou desfigurada?
— Tanto quanto é possível, o médico não responde pela sua,vida. Em
todo o caso, ainda que escape, parece que os olhos ficarão perdidos.
— Infeliz!
— Ah! os amores impuros são amores malditos! murmurou o substituto,
que pensava não só em Lazarine, mas no duque de Chaslin.
Passando um instante, tornou:
— E essa Genoveva Leinen, não ficou ferida?
— Só ficou com o fato queimado em algumas partes.
— E ela vai queixar-se à justiça?
— Não, senhor; mas para chegar a um conhecimento profundo da
verdade, parece-me que seria conveniente interrogá-la hoje mesmo.
— Tem razão. Vou mandar hoje a casa dela um agente para a convidar a
apresentar-se sem demora no seu gabinete. Quem é essa Genoveva?
— Uma bela pequena da alta roda. A ex-amante oficial do príncipe de
Castel-Vivant.
— A Marquesa de la Tour-du-Roy estará nos casos de passar por um
interrogatório?
— Neste momento, parece-me impossível.
— Qual é então na sua opinião o móvel do crime?
— Ciúmes de mulheres por causa de um comediante do Ambigu,
chamado Fernando Volnay.
Armando de Logeryl franziu o sobrolho.
— Sim, murmurou ele, essa grande fidalga chegou a esse ponto. O
suicídio do príncipe de Brada não a fez parar. Escândalo sobre escândalo
— A premeditação parece-lhe estabelecida?
— Indiscutivelmente, porque de manhã a Marquesa foi a casa da cocotte
pedir-lhe o amante com uma imprudência de rapariga perdida.
— Eu irei pessoalmente esta noite ao palácio da Rua Murillo, e verei se a
senhora de la Tour-du-Roy me pode responder.
O comissário de polícia retirou-se.
O senhor de Logeryl encheu os intervalos cm branco de uma ordem de
comparecimento, e mandou-a levar ao boulevard Malesherbes a Genoveva.
em seguida tratou do expediente.
Às duas horas Pedro Rédon, tirado da prisão da Santé, chegava algemado
e escoltado por Daniel Gaillet e um outro agente, à antecâmara.
O inspetor da segurança disse algumas palavras ao contínuo, o qual
entrou no gabinete e tornou a sair quase no mesmo instante, com ordem de
fazer introduzir o preso.
Fossaro estava sereno, ou pelo menos não manifestava a menor
comoção.
A um sinal de Daniel, entrou.
Armando de Logeryl pediu o processo de Pedro Carnot.
— Senhor substituto, eis aqui o homem, disse o inspetor.
O magistrado olhou para o recém-vindo.
Pedro Carnot, com a cabeça descoberta, aparecia com a sua fisionomia
natural, cabelos curtos, cor baça, órbita vazia e sanguinolenta. Uma
verdadeira cara de grilheta. de condenado fugido das galés. Tal devia ser o
miserável da menina de Lasseny!
— Deixa-me a sós com este homem, disse Armando a Gaillet, depois do
exame de um segundo.
Daniel retirou-se.
— Oh! oh! pensou o Barão, não temos secretário, e manda afastar o
agente, anuncia-se bem, tem suspeitas, mas não tem provas. Vou vê-lo fazer
jogo cerrado.
O substituto principiou:
— Chama-se Pedro Carnot?
— Sim, senhor.
— Mas o senhor usa habitualmente do nome de Pedro Rédon?
— Não é um nome falso, é o nome de minha mãe, portanto pertence-me.
O senhor de Logeryl não perdeu tempo a discutir, e continuou:
— O senhor nasceu em Paris. A sua família era respeitável, e possuía
alguns meios. Recebeu alguma instrução, e trabalhou em um escritório de
advogado?
— Sim. senhor.
— Sofreu por um crime de assassinato uma condenação a cinco anos de
trabalhos públicos?
— É verdade, senhor, mas paguei a minha dívida à justiça.
— Mas nem por isso deixa de andar evadido. A cidade de Nimes fora-
lhe designada para residência. Nunca aí apareceu.
— Concordo.
— Por onde tem andado depois que saiu das galés.
— Tenho corrido mundo.
— Esteve na Inglaterra primeiramente?
Fossaro apurou o ouvido.
O que deveria responder?
Esta inesperada pergunta ocultaria algum laço?
Seria uma conseqüência das declarações de Branca, também presa
talvez, e que segundo os seus falsos papéis de família, fora educada na
Inglaterra.
A hesitação de Fossaro foi de pequena duração; tomou a sua resolução e
respondeu:
— Passei algum tempo em Londres.
— Que fazia lá?
— Negociava em bijouterias.
— Não tinha um sócio?
— Não, senhor, trabalhava só.
— Em todo o caso conhecia um certo James Scoot?
Ao ouvir pronunciar este nome. Fossaro perdeu todas as dúvidas a
respeito dos motivos da sua prisão.
Tratava-se do crime Chaslin.
Branca, presa e interrogada, respondera por certo como lhe fora
ordenado no momento de entrar para o serviço da Duquesa.
O homem, o suposto homem que a recolhera depois da morte do Conde e
da Condessa de Lasseny, chamava-se efetivamente James Scoot, mas quem
o denunciara? Quem o interrogara! Era preciso nada comprometer, e ganhar
tempo.
César de Fossaro disse estas diversas coisas em menos de um segundo, e
concluiu:
— O mais prudente é negar tudo. Tenho probabilidades de obrigar este
substituto que se julga hábil, a dizer-me o que eu ignoro.
CXLIX - O INTERROGATÓRIO
***
***
Nada poderia dar uma idéia das angústias do Barão César de Fossaro,
quando as portas da prisão se fecharam sobre ele.
O interrogatório a que acabavam de o submeter, não pudera
completamente esclarecê-lo.
Branca atraiçoara-o?
Começava a recear isso seriamente.
Depois, que significava a presença de Fanny Vernaut (que por sua ordem
se transformara em Genoveva Leinen), no gabinete do substituto, no
momento em que este acabava de lhe falar nela?
Estariam no rasto do crime cometido no chalet na ilha Basse?
César levou as mãos à cabeça, perguntando:
— Irá tudo por terra? Se saiu são e salvo do crime de Chaslin, ficarei
irremediavelmente perdido dos lados de Lucília Gonthier? Estarei no fundo
do abismo?
Passado um instante voltou a sua força de alma.
— Por que hei de desesperar? tornou levantando a cabeça. Nada de
fraquezas! nada de desânimo! Tenho passado por transes muito mais
difíceis! Tenho-me livrado deles! Hei de também livrar-me deste.
***
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***
Helena apoderara-se avidamente da carta.
Para lha tornar a tirar, seria agora preciso despedaçar-lhe as mãos.
O senhor de Logeryl continuou:
— Esta noite, às sete horas, estarei no local designado.
— Lá me encontrará, senhor.
— Está livre.
— Por onde posso sair?
— Por onde nós entramos... conhece muito bem o caminho!
— As chaves?
— Não precisa delas... as portas estão abertas...
Fossaro não esperou que lhe repetissem que estava livre, e desapareceu
no gabinete contíguo ao quarto ocupado pela falsa Adriana. Helena lançou-
se nos braços do noivo.
— Armando... Armando... balbuciou ela, como eu sou infeliz, mas
quanto o amo!... O terrível segredo vai morrer entre nós... deixou de existir a
única prova...
E aproximando-se do candieiro, a jovem queimou e reduziu a cinzas a
carta datada de Roche sur Loire.
O ajudante do procurador soltou um prolongado suspiro, enxugou os
olhos umedecidos, depois dirigiu-se para o cordão da campainha e agitou-o.
— Que vai fazer? perguntou a menina de Chaslin.
— Explicar em voz muito alta o meu procedimento, e justificar Adriana
de Lasseny.
Helena sentiu um calafrio.
— Justificar essa infame! balbuciou.
— Assim é preciso! A senhora o disse, o monstruoso segredo deve
morrer entre nós! O próprio Rogério deve ignorar o crime de seu pai...
— Mas não duvidando da inocência dessa rapariga, vai amá-la mais que
nunca!
— Representando a justiça dos homens, fui cobarde... volveu Armando.
Esperamos tudo agora da justiça de Deus. Querida Helena, cometemos
ambos uma falta... O castigo principia...
***
***
***
***
***
***
CLIII - CONTINUAÇÃO
Maria de Vergis desejaria criar o filho.porém compreendia muito bem
que isso seria impossível.
Magdalena tinha uma sobrinha, casada havia um ano com um cultivador
dos arredores de Orleans, e que acabava de ser mãe.
A criada fiel entendera-se secretamente com a jovem, que de muito bom
grado aceitava o encargo de criar o recém-nascido.
Dias depois da instalação da Condessa nas Épines-Blanches, um homem
de uns cinqüenta anos, com aspecto de oficial reformado, condecorado, e
dizendo chamar-se Raquin, alugara uma casinha toda mobiliada na aldeia
próxima, e tratara de obter licença para caçar e para pescar.
O tenente Raquin, que não se clava de abancar quase todas as noites na
taberna a fumar no seu cachimbo e a beber de sociedade com os
camponeses, no fim de oito dias só contava amigos na aldeia.
Passava os dias a correr pelos campos, ou pelas margens do Loiret, com
uma espingarda ao ombro, ou uma linha na mão. mas coisa singular, caça e
pesca não parecia agradarem-lhe senão nos arredores do parque das Épines-
Blanches.
De tempos a tempos, depois de se cerrar a noite, introduzia-se no parque
por uma portinha cuja fechadura em mau estado só fraca resistência opunha
a um homem hábil, e espionava horas inteiras o pavilhão habitado pela
senhora de Vergis.
Duas ou três vezes por semana ia deitar na porta de Orleans cartas
dirigidas ao senhor Malpertuis, ex-advogado, rua da Victoria, em Paris.
Esta última particularidade, basta para informar os leitores de que o
suposto tenente Raquin era um agente do procurador.
Os frios chegaram.
Uma espessa camada de neve desdobrou-se como um lençol sobre o
campo, ao mesmo tempo que uma crosta de gelo cintilante cobria o Loiret.
A pesca tornava-se impraticável, mas o caçador entusiasta, muito bem
agasalhado e calçado de grandes botas, não deixou por isso de freqüentar a
margem do rio que costeava o parque e de caçar aves aquáticas.
Uma noite de frio muito intenso tornara o gelo bastante sólido para
sustentar, sem se quebrar, o peso de um homem.
No dia que se seguiu àquela noite, Raquin dirigindo-se de tarde para o
teatro das suas façanhas cinegéticas, vi de longe alguém sair do parque,
atravessar o rio por cima do gelo e dirigir-se para uma aldeia situada a uns
três quilômetros da margem esquerda do Loiret.
Curioso por índole e observador também por índole, o pseudo-tenente
tirou da bolsa um óculo de que se serviu para examinar aquele indivíduo.
— Mas espera lá, disse, é Pedro, o facto, um da Condessa! Onde
demônio vai ele tão depressa?
Pedro levava grande dianteira para que fosse possível alcançá-lo.
No fim de cinco minutos desaparecia por trás de uma elevação do
terreno.
Caía em abundância a geada.
Raquin não parecia preocupar-se com isso.
Atravessou por seu turno o rio, e foi postar-se de observação no ângulo
do parque, cujo muro ocultava a todos os olhares.
No fim de uma hora dois vultos apareceram no ponto onde Pedro cessara
de ser visível.
O óculo tornou a pôr-se em movimento.
Era o marido de Magdalena que voltava, acompanhado de um segundo
personagem.
Avançaram rapidamente, chegaram ao Loiret que atravessaram sobre o
gelo e entraram no parque.
Pedro trouxe um médico, pensou o agente de Malpertuis; no palácio
deve passar-se alguma coisa anormal.
Feita esta reflexão, dirigiu-se rapidamente para a portinha o transpôs
também a porta do parque.
Efetivamente nas Épines-Blanches passava-se alguma coisa de
extraordinário.
Dois dias antes, a senhora de Vergis. querendo tirar um livro da
biblioteca, colocado em lugar aonde não chegava, tinha subido a uma
cadeira.
Um movimento mal calculado, fizera tombar a cadeira.
Atraída pelo ruído de uma pesada queda, Magdalena foi achar a ama
estendida no tapete e desmaiada.
Os cuidados da velha criada reanimaram bem depressa a Condessa, que
se pôde levantar.
Apenas, porém, se achou de pé, sentiu dores violentas interiores, e soltou
fraco gemido.
— Meu Deus! exclamou Magdalena, que imprudência a senhora
cometeu! Bastaria uma queda dessas para ocasionar um parte antes de
tempo.
— E a criança poderia viver? perguntou Maria toda trêmula.
— Por certo, se o acidente se desse aos sete meses...
— Sete meses... murmurou a Condessa, sim, há sete meses... Quem sabe
se não seria um favor da Providência?
***
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***
***
Os dois desceram ao primeiro andar, e Daniel introduziu Sta-Pi na
repartição da numeração.
Ali se conservaram duas horas.
No fim deste tempo deixaram a prefeitura, munidos de todas as
informações de que precisava o ex-empregado de Malpertuis.
— Oh! com a fortuna! exclamou o último parando de repente no cais.
Esqueci-me de perguntar se os cocheiros guardam as folhas que lhes são
distribuídas pela manhã, e nas quais devem inscrever o lugar onde tomam o
freguês, e o lugar onde o deixam.
— Eu posso responder a isso, disse Gaillet. Todo o cocheiro é obrigado
pelos regulamentos a conservar as folhas durante três meses, para que a
polícia possa consultá-los, se lhes for preciso.
— É o que eu quero saber... Obrigado, senhor Gaillet; resta-me
agradecer-lhe, repelir-lhe, que dentro de oito dias poderá contar comigo, e
pedir-lhe que aceite de almoçar sem cerimônia num pequeno restaurante que
eu conheço na praça de Saint-Michel, onde não se cozinha muito mal.
Daniel não rejeitou.
Depois de almoçar, Picolet ficou só, e classificou as direções dos
diversos cocheiros com que tinha de falar.
Dos treze trens cujos números citamos, cinco pertenciam à Companhia
Geral, três recolhiam-se na rua de Chemin-Vert, e dois da rua Chaummant...
Os outros eram a propriedade de alugadores particulares espalhados por
muitos bairros de Paris.
Sta-Pi tomou um trem e fez-se conduzir primeiramente à rua do Chemin-
Vert.
Os cocheiros tinham principiado o seu serviço pela manhã às sete horas e
meia, e disseram-lhe que os acharia no depósito no dia seguinte às sete
horas.
Picolet partiu para a rua das Ruttes Chaummant, onde apenas obteve um
resultado negativo.
De noite visitou todas as cocheiras, mas só falou com um dos cocheiros.
e adquiriu a certeza de que aquele não conduzira Lucilia Gonthier.
CLV - UM RASTO
No dia seguinte, logo pela manhã. Picolet deu começo à sua tarefa, mas
essa tarefa levava tempo.
Durante o dia todo apenas pode falar com sete cocheiros dentre doze. e
não obteve nenhuma indicação útil.
No outro dia, às sete horas, dirigiu-se à rua Ordoner.
Era ali que se recolhia o trem que tinha o número 872.
O dono. como era também o cocheiro. ajudava um moço a pôr o trem.
Sta-Pi disse-lhe com o seu mais gracioso sorriso:
— Senhor, venho rogar-lhe que me dê uma informação.
— Se não é coisa que leva muito tempo, estou às suas ordens, retorquiu
o patrão, mas se levar muito tempo, adeus! parto, e não quero perder o dia.
— Talvez leve muito tempo.
— Então, volte esta noite.
— Pois tomo-o às horas, exclamou o falso polícia sorrindo novamente, e
pago a primeira hora por estes dez francos.
— Então, aonde é que o devo conduzir?
— É preciso ficar aqui, ouvir-me e responder-me. O senhor é quem guia
o trem n.° 872?
— Sim, senhor.
— Sempre?
— Sempre, de inverno e com mau tempo. De verão tenho um trem
descoberto, uma vitória muito chic. Aqui, com os pés sobre a neve, faz muito
frio. Logo que temos que conversar, não seria melhor entrarmos para casa?
— Com todo o gosto.
O cocheiro morava no rés-do-chão.
Na primeira casa roncava um fogão, onde a dona da casa estava
preparando a comida.
Os dois homens sentaram-se.
— Agora, disse o cocheiro, conversamos... Picolet principiou:
— No dia 24 de outubro o senhor estava com o seu trem na estação do
boulevard de Belleville das oito para a meia noite?
— Olá, meu querido senhor, está a pedir-me muito! Como quer o senhor
que me lembre do que se passou há tanto tempo...
— Consulte a sua folha desse dia, e verá que tenho a certeza do que
digo...
O cocheiro tirou de uma pasta um maço de folhas escuras, amarrotadas,
maculadas.
Consultou as datas, escolheu uma e exclamou:
— Palavra, que o senhor tem razão! Sta-Pi consultou o livrete, e tornou:
— O senhor tomou um freguês às dez horas?
— Sim, senhor, é exato.
— Aonde foi?
— Ao caminho de ferro de Vincennes.
Picolet tomava notas a lápis. Depois continuou:
— Lembra-se então da pessoa que subiu para o seu trem?
— Isso é que não.
— Procure bem.
— Posso estar a procurar dez anos, que não me servirá de nada.
— Ajudando-o um pouco, lembrando-lhe certas particularidades? A
mulher do cocheiro, imóvel ao lado do fogão, escutava.
— Procura, disse ela, talvez te lembres.
— Vejamos, no dia 24... Como estava o tempo? perguntou o cocheiro.
— Muito mau, pelas onze horas e meia desencadeou-se uma verdadeira
tempestade.
— Sim, sim, lembro-me disso, voltei aqui diretamente do caminho de
ferro de Vincennes, estava como uma sopa.
— Procure agora lembrar-se se foi um homem ou uma mulher a quem
conduziu?
— Uma mulher! repetiu o cocheiro.
— Sim, uma mulher, ou antes uma rapariga loura, muito bonita, parecia
com este retrato.
E dizendo isto, Sta-Pi tirava da sua carteira a fotografia de Lucilia, e
apresentava-a ao cocheiro.
O cocheiro olhou para ela com atenção.
— Ora espere lá, disse ele cocando na cabeça. Sim, era uma mulher, e
parece-me quando ela se apeou da carruagem e me pagou a corrida...
A mulher do cocheiro, que se debruçara para ver a fotografia,
interrompeu o marido:
— Deve ser a rapariguinha de que me falaste ao voltar, exclamou ela.
Lembra-te, dizias-me que ela tinha o ar espantado, e que parecia um pouco
doida, e que chorava, e que te deu vinte sous de gorjeta.
— Ah! sim, palavra, é isso, exclamou com vivacidade o cocheiro a quem
as suas recordações voltavam em multidão; agora tenho a certeza de que é
ela.
Sta-Pi tremia de comoção e alegria.
Finalmente, pensava ele, tenho um ponto de partida, tenho um rasto, e
acrescentou em voz alta:
— Não pôde dar-me nenhuma outra informação?
— Palavra que não, senhor, a rapariguinha entrou na gare e eu parti...
— Ia só?
— Sim, senhor.
— Ninguém a esperava?
— Não creio, porque se dirigiu logo para o lugar onde vendem os
bilhetes.
Picolet olhou para o relógio.
— Uma hora em ponto, disse ele. Agora vai conduzir-me ao caminho de
ferro de Vincennes.
— Com todo o gosto, senhor.
Vinte minutos depois, Sta-Pi apeava-se na gare e pedia um bilhete para
Saint-Mandé.
Não o seguiremos, pelo menos, neste momento.
***
***
***
***
***
Em seguida disse:
— Isto vai perfeitamente... É preciso que Jacques Sureau parta pelo
comboio de passageiros das cinco e um quarto, e Castel-Vivant pelo
comboio das sete e quarenta e cinco.
"Jacques conhece as Épines-Blanches, porque em serviço do Conde fez
ali muitas viagens. Encontrará imediatamente a porta.
"Quanto ao principezinho, conhece também a residência. Caminhará
tudo perfeitamente.
César pegou então em duas folhas de papel para cartas, sem cifra nem
coroa, e escreveu as linhas seguintes em uma das folhas, tendo o cuidado de
disfarçar a letra:
— Este pagaria bem caro o conselho que lhe dou, proferiu Fossaro ao
acabar, infelizmente não é milionário.
Meteu a carta no envelope, e sobrescritou:
Senhor Jacques Sureau
Picador
Em casa do senhor Tony Montei
Avenida dos Campos Elyseos
Feito isto, César pegou numa folha de papel, e com a mesma letra
redigiu este bilhete lacônico:
"Aquela a quem ama, que o ama, desapareceu. Alguém quer fazer cessar
os seus sofrimentos e os dela."
"O covarde raptor recebeu do Conde de Vergis autoridade para dispor do
pavilhão situado no parque das Épines-Blanches. É ali que ele encerra
Lucília, e quer constrangê-la à sua brutal paixão.
"Irritado com a sua resistência, resolveu empregar a força na falta da
persuasão.
"Hoje, à meia noite, introduzir-se-á no pátio pela portinha do muro à
esquerda, exatamente defronte dos canis.
"Esta porta nunca está fechada.
"Parta para Orleans no comboio das sete e quarenta e cinco, e salvará
Lucilia.
"Um amigo."
***
***
***
A velha estremeceu.
— Ah! tome cuidado... balbuciou. Tome cuidado! Se fosse um laço!
— Um laço! Qual! que laço? Picolet tinha razão, tudo se explica! e é
muito simples... Um certo patife amava Lucilia... Não podendo fazer-se
amar, raptou-a! Esse patife será punido esta noite, e esta noite estará Lucilia
livre. Espere amanhã por nós, senhora Gonthier... Eu parto... Resta-me.
apenas o tempo necessário para tomar o comboio. Até amanhã, e peça a Des
por mim.
Heitor voltou para o seu gabinete, ao mesmo tempo que a cega caía de
joelhos e orava. Atirou com a carta para cima da sua secretária, chamou, deu
ordem de pôr o trem, sem perda de um minuto, embuçou-se num grande
paletó forrado de peles, meteu na algibeira o dinheiro e dois revólveres, e
disse ao criado de quarto:
— Preparem o palácio para a festa, porque trarei amanhã a menina
Gonthier, a minha noiva!
Subiu para o trem e exclamou:
— Gare de Orleans!
César de Fossaro perdido entre a multidão, viu-o comprar o bilhete e
transpôs o limiar da sala de espera da primeira classe.
— Agora só me resta cruzar os braços, pensou, dirigindo-se para uma
estação de trens. A neve há de ficar vermelha esta noite no parque das
Épines-Blanches!
Retrocedamos algumas horas e voltemos a Picolet no momento em que,
completamente sem fôlego, acabava de bater à porta da casa de saúde
próxima de Creteil.
A porta abriu-se.
O ex-empregado de Malpertuis dirigiu-se para o cubículo do porteiro.
— O senhor doutor Auger? perguntou-lhe.
— O doutor não recebe ninguém neste momento... vai jantar. Volte
dentro de uma hora.
Estanislau volveu com a voz mais persuasiva:
— Peço-lhe, senhor, não deixe de prevenir o senhor doutor de que
alguém lhe pede a graça de lhe falar imediatamente... depende de uma
família inteira, e posso jurar-lhe que de um grande personagem, um Príncipe.
Sim, senhor, um verdadeiro Príncipe lhe demonstrará o seu
reconhecimento...'
O contador olhou para Picolet, perguntando se aquele desconhecido
estaria no uso de todas as suas faculdades.
O polícia nem por sombras dava ares de doido, e o porteiro
experimentando a influência da sua linguagem insinuante. resolveu-se a
responder:
— Vou prevenir o senhor doutor.
E dizendo isto dirigiu-se para o interior da casa. Um momento depois
tornava a aparecer.
— Venha daí, disse ele a Sta-Pi, o senhor Auger vai recebê-lo. Minutos
depois, Picolet apresentado ao diretor da casa de saúde, pedia desculpa da
sua insistência, e acrescentava:
— Com certeza não tomaria a liberdade de o incomodar, senhor, se não
se tratasse de uma coisa grave que traz suspensas a vida e a felicidade de
muitas pessoas.
— Explique-se, senhor, peço-lhe...
— Venho de casa do comissário de polícia de Creteil, e é ele que aqui
me manda...
— Por quê?
— Por causa de uma jovem caridosamente recolhida pelo senhor em
seguida às inundações do dia 24 de outubro... a louca da ilha Passe...
O doutor acudiu logo com vivacidade:
— O senhor faz parte da sua família!
— Não faço parte, mas conheço-a... É por causa da sua família e do seu
noivo que procuro a pobre menina. O comissário não pode dizer-me para
onde ela tinha sido levada depois de sair daqui, e venho pedir-lhe que me
diga.
— Se a pessoa que o senhor procura é realmente a jovem recolhida na
manhã de 25 de outubro, na ponta da ilha Passe, ainda aqui está.
— Aqui! exclamou Picolet no cúmulo da alegria.
— Sim, senhor, está a jantar, neste momento, junto da senhora Auger,
minha mulher.
Sta-Pi fez um gesto de espanto.
— À sua mesa... balbuciou. Mas, nesse caso, já não está doida?
— Infelizmente ainda está. apesar de se manifestar notável melhoria no
seu estado mental... A senhora Auger tomou-lhe amizade... A sua loucura
meiga e melancólica não é daquelas que repelem... Estou convencido de que
a vista das pessoas a quem ela ama bastaria para a curar.
— Se assim é, senhor, dentro de algumas horas a menina Lucilia terá
recuperado a razão... o tempo necessário para ir buscar uma carruagem, para
a levar a casa do Príncipe de Castel-Vivant, seu noivo, que a julga perdida
para sempre, e que se fina de desgosto com a idéia de não a tornar a ver.
— Essa jovem é efetivamente aquela que o senhor procura?
— Parece-me fora de dúvida. Demais é fácil averiguarmos a verdade.
— Venha, senhor.
***
CLIX - CONTINUAÇÃO
***
***
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***
E Jacques estendeu as mãos para agarrar a Condessa, que recuou como
se se aproximasse dela um réptil.
— Deixe-me! deixe-me! balbuciou procurando contornar o leito.
— Ah! escusa de se cansar. Quero possuí-la, e hei de possuí-la!... Correu
para a jovem, e agarrou-a pelo penteador com que estava vestida.
Maria recuou violentamente, mas o infame segurava-a pela roupa e não a
largava.
O penteador rasgou-se, deixando a descoberto os ombros e a garganta da
Condessa.
A vista daquelas carnes deslumbrantes, levou ao delírio a embriaguez
lúbrica e bestial que dominava Jacques Sureau.
O miserável tornou-se cor de púrpura, e os olhos injetaram-se de sangue.
Tornou a aproximar-se de Maria, que cruzava os braços sobre o peito
para o velar.
Agarrou-a pelos ombros, cujas mãos tocaram na epiderme fremente.
A Condessa quis debater-se, mas ele enlaçou-a brutalmente, e levantou-a
apesar da sua resistência e dos seus gritos...
***
***
A evidência impunha-se. Ninguém disse nada.
Passado um momento. Pedro, aterrado com o que acabava de nu vir,
murmurou:
— Não podemos deixar o corpo de meu infeliz amo estendido sobre a
neve, é preciso levá-lo para o palácio.
— Sim, volveu Arnoldo aterrado.
— Eu ajudo, disse Heitor.
— Os três homens levantaram o cadáver, e Magdalena pegou na lanterna
a fim de os alumiar.
Para chegar ao palácio, deviam passar perto do pavilhão.
Ouviram sair dali gritos desesperados.
Arnoldo e o Príncipe abandonando aos cuidados de Pedro e de
Magdalena o seu lúgubre ferido, acudiram.
A porta fechada pela banda de dentro cedeu aos seus esforços,
exatamente no momento em que o primo de Fernando Volnay levava a
Condessa nos braços para o leito.
Ao ver entrar os dois homens, largou a presa.
Maria com uma voz estrangulada, balbuciou:
— Salvem-me. salvem-me!
— Não tem mais nada a recear, exclamou Heitor apontando o seu
revólver para o patife. Se ele se mexe mato-o!
— É Jacques Sureau! exclamou o senhor de Trois-Monts, é o cocheiro
do Conde.
— É o seu assassino, ia jurá-lo, acrescentou Heitor.
— O assassino do Conde! repetiu Maria com terror, o que está dizendo?
— Infelizmente, senhora, respondeu Arnoldo, temos uma triste notícia a
dar-lhe.
— O tiro que nos alvoroçou há pouco, foi atirado sobre o Conde. A
senhora Condessa está viúva.
A senhora de Vergis deixou-se cair de joelhos, derramando sinceras
lágrimas.
Abismos insondáveis do coração feminino!
***
***
Os dois mancebos deixaram o pavilhão.
Foram ter com Pedro que velava no quarto do Conde, metamorfoseado
em capela ardente.
O senhor de Vergis estava estendido no seu leito, em roda do qual Pedro
acendera grande número de velas.
Tinha a cabeça apoiada em duas almofadas.
Haviam-lhe posto um crucifixo sobre o peito.
Apresentava no rosto uma palidez azulada.
Via-se-lhe na fronte esquerda um pequeno orifício vermelho escuro.
Deslizava-lhe um fio de sangue por trás da orelha.
— Como é que o senhor de Vergis que todos julgavam no estrangeiro,
chegou repentinamente em meio da noite, entrando por uma portinha escura
do parque? perguntou o príncipe.
— Não sei respondeu Arnoldo.
— A Condessa esperava o marido de um momento para o outro? —
Longe disso. O Conde não devia voltar senão daqui a dois ou três meses, o
muito.
Heitor compreendeu, ou antes adivinhou, e não fez mais perguntas.
***
CLXI - O ENCONTRO
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***
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***
Malpertuis pôs o chapéu, meteu debaixo do braço esquerdo uma pasta
cheia de papéis, saiu na companhia de Fernando, e tomou um trem.
Meia hora depois, os dois homens chegaram à Rua Murillo.
O ex-procurador tocou a camainha.
Um criado introduziu-o com o seu companheiro no vestíbulo, e foi
prevenir a criada de quarto.
Esta soltou um grito de surpresa, reconhecendo o comediante.
— Ah! senhor Fernando, disse ela, vem ver a senhora?
— Sim, minha filha...
— Faz muito bem, senhor Fernando! Há três dias que a senhora pode
falar, está sempre com o seu nome nos lábios, pergunta pelo senhor, chama-
o...
— Como lhe explica a minha ausência?
— Mentia, senhor, para não penalizar a minha pobre ama, e o doutor
fazia como eu... Dizíamos à senhora que lhe era proibido receber fosse quem
fosse, mas que o senhor vinha todas as manhãs sem nunca faltar.
— Anuncie-me, minha filha, disse Malpertuis.
— O senhor só?
— Sim, devo preparar a senhora Marquesa para a alegria de tornar a ver
o seu amigo.
— Então, sigam-me, senhores... Anunciarei à senhora o senhor
Malpertuis, e o senhor Volnay esperá-lo-á no gabinete...
Um instante depois, o ex-procurador entrava no quarto de Lazarine, e
aproximava-se do leito.
A infeliz tinha o rosto meio oculto pelas ligaduras e compressas.
Um dos olhos estava perdido; o outro apesar de gravemente
comprometido, permitia-lhe quase ver o que se passava no meio da
escuridão estabelecida de propósito em volta dela.
Descansava a cabeça num monte de almofadas.
Pendia-lhe fora do leito um dos braços.
— É o senhor Malpertuis? perguntou com uma voz que mal se percebia.
— Sim, senhora Marquesa. Sabendo que o doutor levantava hoje a
proibição rigorosa de receber alguém.apressei-me a vir tratar dos seus
negócios.
Lazarine suspirou.
— Dos meus negócios? suspirou ela com amargura. Para que? Estou
muito perto do túmulo, para me interessar seja pelo que for! Que me importa
agora a fortuna? Já não existe para mim nem alegria nem felicidade. Deus
amaldiçoou-me...
— Faz mal em falar assim, minha querida senhora, disse Malpertuis em
tom melífluo, o doutor tem grandes esperanças...
— Viver desfigurada, viver cega talvez, triste esperança! replicou
Lazarine amargamente.
— Resta-lhe o futuro.
— Que futuro? A perda da minha beleza despedaçou o único laço que
me prendia à vida.
— Quem lhe disse que esse laço se quebrou?
— Essa pergunta prova-me que não me compreende.
— Pelo contrário, compreendo-a maravilhosamente. Pensa em Fernando
Volnay.
— Sim, em Fernando, por quem sofro... Em Fernando, por quem Deus
me puniu... e que já não pensa em mim!
— Engana-se, afirmo-lhe.
— Se ainda me amasse, viria ver-me.
— Veio, minha senhora, mas teve de se retirar, em vista das ordens
inquebrantáveis dadas pelo doutor.
— Mas hoje deixaram de existir essas ordens... e ele não aparece...
— Talvez não tarde...
— Oh! se o senhor falasse verdade! balbuciou Lazarine com transporte.
— Seria a ventura, não é assim?
A Marquesa abanou a cabeça e respondeu:
— Ou antes o desespero...
— O desespero? Que está a dizer, minha senhora?
— Olhe para mim! Estou horrível, e Fernando só amava a minha beleza!
— Não suponha tal... Fernando é um homem de sentimento... Não
deixou nunca de a amar...
— Quem lhe disse isso?
— Ele próprio... Está disposto a realizar os projetos de união que a
senhora tinha imaginado.
— Quer ser meu marido? exclamou Lazarine.
— Sê-lo-á dentro de três dias se a senhora Marquesa quiser. Incumba-me
deste negócio, que tudo caminhará depressa...
— Ah! cale-se. balbuciou a Marquesa. Se as esperanças que dá têm de
falhar, seria uma grande crueldade...
— Se costumo falar com conhecimento de causa... retorquiu Malpertuis.
Tenho os seus papéis. Terei esta noite os de Fernando. Amanhã visitarei a
mairie do seu bairro... Convertê-lo-ei dizendo-lhe que se trata de um
casamento in extremis (o que não é exato, e depois de amanhã poderá ser a
senhora Volnay).
— Ah! senhor Malpertuis, parece-me que vou reviver!
— Há de viver, sim, minha senhora, e há de viver muito tempo para ser
feliz...
CLXII - UM CASAMENTO
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"Senhor substituto.
"Prometi edificá-los a respeito da menina de Lasseny. Leia e verá que
cumpro a minha promessa.
"Pedro Rédon."
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CLXIV - O INESPERADO
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A criada de quarto conduziu o pai e o filho a uma pequena sala que fazia
parte dos aposentos de Lazarine, deixou-os sós e entrou no quarto de dormir.
— Foi Fernando que tocou? perguntou a Marquesa.
— Não, minha senhora. É um desconhecido.
— Um desconhecido!
— Sim, acompanhado de uma criança...
— Que quer?
— Falar com a senhora.
— O nome?
— Recusa dizê-lo, mas afirma que vem da parte do senhor de Gordes, o
cunhado da senhora.
— Oh! é que me traz notícias da minha irmã, da minha querida Joana,
que não me esqueceu... que pensa em mim... que me ama. apesar das minhas
loucuras... mande entrar esse visitante.
A jovem criada de quarto saiu, e voltou no fim de um minuto,
acompanhando o homem e o pequeno.
As cortinas das janelas tinham sido levantadas.
A luz penetrava em ondas no vasto aposento cheio de flores.
O rosto dos visitantes ficou perfeitamente iluminado.
Lazarine encostada às pilhas das almofadas que a sustentavam, dirigira
para os recém-chegados um dos olhos, cuja visão não estava completamente
extinta.
De repente apoderou-se dela um tremor convulso.
Estendeu as mãos para a frente, como para repelir algum objeto de
horror, e balbuciou:
— Não, não, é impossível, é um sonho.
O recém-chegado perguntou então:
— Segundo vejo reconhece-me!
— Marcel Laugier! exclamou a Marquesa expelindo um grito de susto.
A criada de quarto que se afastava, ouviu aquele grito e apressou-se a
voltar.
O ex-tenente de hussardos voltou-se para ela e disse-lhe com uma voz
tranqüila mais imperiosa:
— Ande... a senhora Marquesa bem sabe que não tem nada a recear de
mim.
Dominada pelo tom do seu interlocutor, e como o silêncio de Lazarine
apoiasse a afirmativa que acabava de ouvir, a criada baixou a cabeça e saiu.
À senhora de la Tour-du-Roy batiam-lhe os dentes.
— Marcelo Laugier! repetiu, o senhor aqui?
— Sim, aqui. Não me esperava?
— Oh! não! cale-se, retire-se. A sua presença mete-me medo A sua voz
faz-me mal.
— Contudo ficarei, e há de me escutar, não me calarei.
— Tenha piedade!
— E a senhora teve piedade de mim! Teve piedade do seu filho? Por que
eu hei de ter piedade da senhora?
Lazarine torceu os braços e balbuciou:
— Oh! é o castigo, é o castigo.
— O castigo! replicou Marcelo, foi a senhora que o infligiu a si própria!
Quis mal, o mal recaiu sobre si! Deus é justo! Castiga-a... Vai morrer, mas
eu não quis que partisse deste mundo sem me ter visto, sem ter tornado a ver
seu filho...
— Meu filho! repetiu Lazarine louca de terror, meu filho já não existe.
Marcelo estendeu a mão para Raul e respondeu:
— Ei-lo!...
— Vivo!
— Vivo para mim, não para a senhora! Não para a senhora que o julgava
morto, tendo ordenado e pago a sua morte.
— É horroroso o que me está a dizer!
— O que a senhora fez é ainda mais horroroso! O seu filho pereceu
assassinado pelas suas ordens, e a sua certidão de óbito põe-na de posse de
uma fortuna de que Deus não lhe permitirá gozar! O seu filho está sepultado
nos abismos de Léman, mas o filho de Marcel Laugier vive para Marcel
Laugier.
— Leve-o, leve-o! exclamou Lazarine cuja voz mal se ouvia, e cuja
febre ardente se agravava com começo de delírio. Leve-o! mete-me medo.
Fernando amo-te! Marcel odeio-te! Raul, Raul, meu filho.
***
***
***
***
II - O CONFIDENTE
***
IV - INTRIGAS NA CORTE
Como já uma vez sucedeu, Satanás retirou-se muito cedo dos aposentos
de Eloa, e essa só tarde se levantou.
Como então acontecera, alguma idéia se agitava no espírito de messire
Diabo, que o não deixava esquecer-se por muito tempo nos braços amantes
da esposa.
Efetivamente, assim que de novo se achou nos seus aposentos
particulares, Satanás mandou chamar Flor de Enxofre.
O diabinho de amareladas asas compareceu logo com a rapidez de quem
não anda, voa.
— Flor de Enxofre, quero mais uma prova do teu zelo.
— Vossa majestade bem sabe que tenho até hoje dado sobejas
demonstrações, da minha dedicação pelo seu infernal serviço, volveu
hipocritamente o velhaco. Tenha vossa majestade a bondade de ordenar, que
prontamente será obedecido.
— Sabes que deu entrada nos infernos uma dama precedida de grande
fama de infernal maldade, e de satânica beleza.
— Duas qualidades que muito a recomendam ao agrado e atenção de
quem aqui tudo pode e tudo manda.
— Bem, menos palavras e mais obras.
— Ordenai, ordenai, senhor.
— Preciso de que essa criatura compareça nos meus aposentos para
verificar se ela vale o que dizem.
— Nada mais fácil.
— Mas que ninguém o saiba.
— Isso é que é um pouco difícil.
— Difícil? volveu então sua majestade carregando o gesto.
— Consta logo tudo quanto se faz nos aposentos de vossa majestade,
principalmente o que se faz para não constar.
— Então sou espiado.
— Assim parece.
— E não desconfias de quem seja o espião, meu pequeno volveu el-rei
com uma voz muito melíflua e batendo no ombro de Flor de Enxofre.
O diabinho não gostou de tantas doçuras. Já conhecia o amo à légua.
— Mau! o diabo traz-me entre dentes. Que a diaba me valha.
E em voz alta.
— Não posso desconfiar. Entretanto se vossa majestade quer que se
proceda a um inquérito...
— Não, isso é uma moda muito em uso no globo terrestre, e que não dá
lá resultado nenhum... Cá sucederia o mesmo. O que preciso é que Lazarine
aqui venha. Avia-te.
— Obedeço. Se ela não comparecer foi porque houve algum obstáculo
insuperável.
— Vem logo participá-lo. Que entre por aquela porta secreta.
E o diabo apontou para um enorme espelho de Veneza que revestia
grande porção de parede.
Flor de Enxofre ausentou-se tão rapidamente como viera.
***
V - NA ALCOVA REAL
VI - CONTRARIEDADES
***
***
IX STA-PI EM CAMPO
***
***
FIM