Você está na página 1de 549

XAVIER DE MONTÉPIN

OS FANTOCHES DE MADAME DIABO

VOLUME III
LXXVII - MALPERTUIS

O Conde de Vergis recebera à noite a carta de Malpertuis, que um moço


de recados lhe trouxera.
Este bilhete, apesar do seu laconismo, ou talvez por isso mesmo, causou-
lhe uma profunda comoção.
Teriam os agentes secretos do ex-advogado sido bem sucedidos, nas suas
pesquisas?
Iria finalmente respirar desafogadamente, livre do terrível ciúme que o
sufocava?
Como sabemos, o escritório de Malpertuis abria logo às nove horas.
O senhor de Vergis saiu a pé de casa, subiu para um trem de praça na
estação mais próxima, deu ordem para o conduzirem à rua da Vitória, e
mandou o seu bilhete ao guarda-portão.
Malpertuis estava tratando de negócios.
Recebia os relatórios dos seus subordinados, e entre outros o daquele a
quem encarregara das pesquisas relativas à filha da comediante Amélia
Gonthier.
Bijou não estava mais adiantado que no primeiro dia. Não descobrira
nada.
O ex-advogado ralhou com ele muito seriamente, ordenou-lhe que
tornasse a empreender o inquérito tão mal conduzido, concedeu--lhe um
lapso de quinze dias, e declarou-lhe que no fim deste tempo, em caso de
insucesso, ele cessaria de fazer parte da polícia do escritório.
Depois de haver recebido esta advertência, Bijou saiu de cabeça baixa e
Malpertuis deu ordem para introduzirem o Conde de Vergis.

***

O Conde esperava com impaciência febril.


Quando o homem de sobrecasaca escura o veio buscar, a impaciência
metamorfoseou-se repentinamente em angústia.
Detrás da porta prestes a abrir-se, iria ele achar a confirmação das suas
dúvidas, ou a asserção de que a carta anônima mentira?
Iria encontrar o repouso ou o desespero?
Foi tremendo, com o rosto pálido, o coração opresso, que ele transpôs a
porta do gabinete.
Malpertuis tratou de se levantar da sua poltrona, e deu com deferência
alguns passos ao encontro do senhor de Vergis.
Tinha o sorriso nos lábios.
O sorriso pareceu de feliz agouro para o Conde, cuja fisionomia se
desanuviou durante um segundo.
— Recebi ontem à noite a sua carta, disse, e tratei logo de vir...
Malpertuis indicou uma poltrona junto dele, e disse com um novo
sorriso:
— Queira sentar-se, senhor Conde.
O recém-chegado tornou:
— Adivinha de certo facilmente, que tenho pressa de saber o que me vai
dizer... A alegria ou o suplício dos últimos anos que me restam a viver
dependerão das suas palavras. Não me faça padecer, peço-lhe... Quis saber,
quero ainda... Fale depressa!
— Dê-se ao incômodo de se sentar, repetiu Malpertuis. Tenho muito que
conversar com o senhor.
— Isso não é uma resposta. Que devo recear? que posso esperar?
— Compreendo a sua pressa, senhor Conde, e desejaria satisfazê-lo
quanto antes; mas é essencial que me conceda o favor de me deixar explicar.
O senhor de Vergis não podia insistir em face da resolução do seu
interlocutor.
Instalou-se na poltrona designada, e esperou. Malpertuis principiou:
— Logo no dia que se seguiu à nossa primeira entrevista, pus os meus
mais hábeis agentes em campo.
— E conseguiu saber...
— Não soube coisa alguma que confirme a denúncia da carta anônima...
Não há nada até hoje que possa afugentar a tranqüilidade da sua alma...
— Têm a certeza de que os seus homens investigaram
conscienciosamente?
— Quer ter a prova disso?
— De certo!
— Tê-la-á completa, suponho, se lhe disser quem foram durante uma
semana, os visitantes do seu palácio, o que fez a senhora Condessa, o que o
senhor mesmo fez... e vou dizer-lhe tudo isto...
— É impossível, murmurou o Conde com um gesto de incredulidade.
— Impossível? Será! volveu Malpertuis sorrindo. Mas se eu lhe disser o
que prometo, far-me-á a honra de me conceder para o futuro uma confiança
sem reserva, e de seguir cegamente os meus conselhos?
O senhor de Vergis fez um gesto afirmativo. Malpertuis continuou,
deitando os olhos para um papel colocado diante dele:
— O senhor Conde recebeu, ou antes a senhora Condessa, os seguintes
homens: os senhores de Valville e de Simiers, o Visconde de Chauzy, o
Barão de Fossaro, o Conde de Villelieu, o Marquês de Samper, o Conde
d'Illiers, o senhor de Marvaise, o Conde de Hornoy... Será verdade?
— É verdade, replicou o senhor de Vergis muito surpreendido, mas o
senhor esquece-se de alguém...
— Não me esqueço de ninguém... Quer falar do Barão Arnaldo de Trois
Monts... Ia nomeá-lo... Foi a sua casa três vezes no espaço de oito dias, mas
foi mais por sua causa do que por causa da senhora Condessa. Será verdade?
— É verdade.
— Por ocasião da sua primeira visita, depois de haver passado alguns
momentos no salão, subiu ao seu gabinete a fim de pôr em ordem algumas
notas relativas à sua viagem à Itália, notas de que lhe pedia comunicação.
Será ainda verdade?
— É... murmurou o Conde, estupefato por ver que tão íntima
particularidade era conhecida de Malpertuis.
Este continuou:
— O senhor Conde sente pelo senhor de Trois-Monts uma afeição séria e
a sua presença agrada-lhe, mas a senhora de Vergis esta longe de partilhar a
simpatia que lhe inspira, e a frieza do seu acolhimento afugenta do palácio
esse cavalheiro verdadeiramente perfeito. Bem vê que tenho muito boas
informações.
O rosto do Conde cada vez mostrava maior espanto.. Ainda não é tudo...
continuou o ex-advogado. O senhor foi ontem ao ministério dos negócios
estrangeiros entregar ao ministro, a seu pedido, as provas de parte de uma
grande obra que dentro de poucas semanas deve aparecer, e sua excelência
partilhando todas as idéias do senhor Conde quis encarregá-lo de uma
missão na Suíça perto do conselho federal. O senhor Conde declina essa
honra.
O senhor de Vergis não podia acreditar o que ouvia.
— Mas, exclamou, como é que sabe?
— Pouco importa como é que sei, interrompeu Malpertuis, o essencial é
que eu saiba... Poderia acrescentar numerosas informações, mas para quê?
No que lhe diz respeito, a prova está dada. Passemos à senhora Condessa...
Em contrário dos seus hábitos poucas vezes saiu esta semana... Ontem, após
uma curta visita à Viscondessa de Ernesty, rua de Vaugirard, entrou em
Saint-Sulpice onde rezou durante alguns minutos. Tendo partido da avenida
de Villars às quatro horas, voltava para ali às seis menos um quarto. Julga,
senhor Conde, que os meus agentes desempenham conscienciosamente o seu
mandado?
— É prodigioso, convenho! replicou o senhor de Vergis; mas para obter
tais resultados, é preciso que tenha informadores dentro de minha casa...
— Por outras palavras, supõe que algum dos seus criados está comprado
por mim?
— Francamente suponho.
— Afirmo-lhe o contrário... Seria má polícia. Nenhum dos seus criados
suspeita do inquérito a que estou procedendo, e que até ao presente, repito-
lhe, não ministrou dado algum contra a senhora Condessa.
— A carta anônima mentiu?
— Por que não?
— precisava do nome do miserável que a escreveu... Quero vingar-me
dos tormentos que o miserável me infligiu. Dá-me esse nome? Sabe, supõe
alguma coisa?
O ex-advogado tomou nesse momento uma fisionomia misteriosa.
— É possível que eu esteja num rasto... disse ele proferindo as suas
palavras uma a uma, mas sigo o princípio de não falar nunca, senão com
muito fundamento, e portanto não me é possível dar hic et nunc uma
resposta afirmativa. Demais não posso nada sem o senhor.
— Sem mim! repetiu o Conde cujo espanto tomava inauditas proporções.
— Sim.
— Não compreendo...
— Eu vou explicar-me... A carta anônima que tão infeliz o tornou é o
fruto de uma odiosa colaboração.
— Como?
— O inimigo covarde, o perverso denunciante, não teve sequer a
coragem da sua infâmia. Ditava em quanto uma mão que era paga segurava
na pena.
— Tem a certeza disso?
— Tenho.
— Pôde então dar-me o nome de um dos seus cúmplices?
— Não os conheço, mas havemos de vir a conhecê-los. É para isso que
tenho precisão do senhor.
— Para isso farei seja preciso o que for! Seguirei a senda seja ela qual
for!
— Escute-me, pois, senhor Conde e tome nota do meu raciocínio. Tenho
o costume de proceder por deduções lógicas que me conduzem noventa e
nove vezes sobre cem, a uma certeza absoluta até certo ponto matemático. O
caluniador não pôde ser senão um homem loucamente apaixonado pela
Condessa, namorado sem esperança.
— Qual o seu fim?
— O mais simples do mundo. Inspirar-lhe suspeitas infundadas, levá-lo a
atos de ciúme e de violência que fizessem da senhora de Vergis uma mártir,
a reduzissem ao desespero e a levassem fatalmente a deplorar a sua união
com o senhor Conde. Obtido este resultado, a ternura transformada em ódio,
o paraíso metamorfoseado em inferno o covarde apresentar-se-ia como um
consolador chegado a propósito para enxugar as lágrimas que o Conde
fizesse correr... Ah! este patife conhece as mulheres. Sabe que se muitas
fraquejam por amor, o nome das que cedem por despeito ou por vingança é
muito maior.
— É verdade? murmurou o senhor de Vergis.
— O miserável em questão, vendo falhar os cálculos que baseava na
carta infame, conserva-se trevas onde nenhum indício nos. revela a sua
presença... tornou Malpertuis; é preciso obrigá-lo, a sair das trevas, é preciso
constrangê-lo a denunciar-se.
— Como? perguntou o velho gentil-homem com vivacidade.
— Deixando-lhe crer que conseguiu o que pretendia, proporcionando-lhe
a ocasião esperada... Um pouco de paciência, senhor Conde, vai
compreender... A sua casa está montada com a grandeza própria de uma
grande fortuna. Tem muitos criados... Pois considere como indiscutível que
o seu correspondente anônimo tem espias entre os seus criados e sabe
minuciosamente tudo quanto se passa na, avenida de Villars.
— Um dos meus criados está por conta dele? exclamou o senhor de
Vergis.
— Afirmo-o.
— Porei tudo na rua.
— Ia aconselhar-lhe que fizesse isso, mas não basta. É preciso persuadir
ao miserável que pela sua infâmia cavou um abismo entre o senhor Conde e
a Condessa, e é chegada a hora de se desmascarar.
— Para isso que devo fazer?
— Aceitar a missão oferecida pelo ministro.
— E que eu recusei?
— Exatamente.
— Pensa em semelhante coisa, senhor Malpertuis? Afastar-me! Deixar a
Condessa exposta às tentativas de um homem capaz de tudo!
— Tanto penso nisto, que reclamo a sua ausência, a fim de que este
homem tenha o campo livre.
— Mas se ele, aproveitando-se da inexperiência da senhora de Vergis a
atraísse a algum laço!
— Oh! quanto a isso não há nada que recear. Respondo por tudo... A
senhora de Vergis será bem guardada. Para sem inquietação, e deixe a
Condessa só.
— Aqui, em Paris?
— Em Paris, ou em qualquer outra parte, pouco importa. O que é
necessário é que ela esteja só, e não pareça estar vigiada...
Minha mulher falava-me ontem em se instalar nas Épines Blanches, uma
vivenda que possuo no Loiret, se eu aceitasse a missão do ministro.
— Pois seja nas Épines Blanches, se fantasia da senhora lhe dá para
vilegiatura em pleno inverno. A vigilância no campo tornar-se-á mais fácil.
— Talvez tenha receio. Tomar-se-ão medidas nesse sentido... Não
haverá suspeitas...
— O homem que pretendemos conhecer, atrever-se-á a vir encontrar a
Condessa na sua solidão?
— A solidão dar-lhe-á ousadia, e não lhe faltarão pretextos para cair aos
pés de uma mulher que ele poderá julgar abandonada, em conseqüência de
alguma cena conjugal não menos injusta que veemente. Os namorados
loucos são impacientes, e o nosso homem há de denunciar-se muito
depressa.
— Se eu me contentasse com fingir uma ausência?...
— Isso já está fora de moda! um velho ardil que já não pega. É preciso
partir a valer... é preciso que os jornais anunciem a sua chegada a Berne... Só
assim conseguiremos alguma coisa...
O senhor de Vergis apoiou o rosto pálido entre as mãos contraídas, e
pareceu, durante um instante, entregar-se a profundas reflexões.
No fim de alguns segundos, levantou a cabeça, e fixou em Malpertuis
um olhar de tão estranha expressão, que o associado do Barão César de
Fossaro, custou-lhe a suportar aquele olhar sem desviar os olhos.
— Senhor, proferiu o Conde com uma voz abafada, não me diz toda a
verdade...
O ex-advogado julgando descoberto o segredo da sua diplomacia,
estremeceu.

LXXVIII - UMA BOA NOVA

A comoção de Malpertuis foi de curta duração.


— Como, não lhe digo toda a verdade! exclamou ele fazendo boa cara.
— Não, retorquiu o Conde.
— Dúvida da minha lealdade? — De modo nenhum.
— Julga a senhora de Vergis culpada, sem contudo ter a prova disso, e
aconselha-me que parta para armar um laço, não ao covarde autor da carta
anônima, mas ao verdadeiro amante da Condessa, para o obrigar a trair-se na
minha ausência. Adivinhei ou não?
Malpertuis ficou aliviado; — o marido seguia trilho errado.
— Está enganado, juro-lhe! replicou Malpertuis sem hesitar; creio que a
Condessa não está culpada, e é a sua inocência que eu quero provar-lhe
entregando-lhe o caluniador.
— E consegui-lo-á?
— Se o senhor consentir em se afastar, afirmo-lhe que sim. O que arrisca
em seguir os meus conselhos? A sua existência já não é tolerável; é preciso
que se faça a luz, para o senhor Conde poder readquirir a paz. Parta sem
receio, no dia em que eu tiver conseguido o que pretendo, mandar-lhe-ei
dizer por um telegrama, e voltará para Paris com a alma aliviada do grande
peso que a oprime.
Tem talvez razão, murmurou o senhor de Vergis com uma voz alterada,
depois de refletir durante alguns segundos.
— Tenho razão com toda a certeza...
— Muito bem, visto que assim é preciso para me subtrair ao suplício que
estou sofrendo, não hesito, partirei...
— Quando?
— Dentro de dois dias já não estarei em Paris.
— Felicito-o por tão acertada resolução... É uma garantia do bom
resultado das nossas diligências. Mas sossegue, e saiba dissimular...
Qualquer palavra imprudente. fazendo supor que a sua retirada, oculta algum
laço, seria bastante para nos comprometer...
— Mostrar-me-ei plácido, serei mudo, e o meu rosto não me trairá.
— É o que se precisa. Mas antes de se retirar diga-me duas coisas...
— Quais?
— A residência escolhida pela senhora Condessa, e o lugar aonde
poderei dirigir-lhe os meus telegramas, se for preciso fazer-lhe qualquer
participação.
— Amanhã será informado do que pretende.

***

O senhor de Vergis retirou-se com a alma opressa, mas pondo no rosto


uma máscara impenetrável, como acabava de o prometer a Malpertuis.
Apenas, quando atravessava o escritório, lhe deslizaram pelo rosto duas
lágrimas.
Enxugou-as, e todos os sintomas exteriores das comoções que o
transtornavam desapareceram.
Esperava o trem alugado às horas.
— Para o ministério dos negócios estrangeiros, disse ele ao co-cheiro.
Um continuo levou o bilhete do Conde ao secretário particular do
ministro.
Sua excelência não recebia, mas fez uma exceção em favor do senhor de
Vergis, deu ordem para imediatamente o introduzirem, e acolheu-o com
estas palavras:
— A noite é boa conselheira. Vem por acaso dizer-me, meu querido
Conde, que hoje aceita o que ontem rejeitava? Dar-me-ia por muito feliz.
— Sua excelência enche-me de favores, e a sua perspicácia não o
engana. Venho, efetivamente, pôr-me à disposição de vossa excelência.
Adivinha-se o seguimento da conversa.
Depois de dois minutos de audiência, o senhor de Vergeis deixava o
gabinete do ministro, e voltava apara a avenida de Villars.
Chegou a hora do almoço.
A Condessa estendida numa chaise-longue na saleta onde habitualmente
se conservava pela manhã, entregava-se a negros pensamentos, cuja natureza
nos parece indicar.
Quando o marido transpunha a porta da saleta, afugentou as nuvens de
tristeza que lhe velavam o rosto pálido, e chamou aos lábios um sorriso.
Ao vê-la, tão castamente formosa, dirigir para ele os grandes olhos
cismadores, o Conde experimentou um ligeiro alívio.
— Este rosto angélico não pode enganar, pensou ele; Maria está
inocente, a carta anônima mentiu.
A senhora de Vergis estendeu a mão ao marido, e disse-lhe:
— Acabo de ouvir entrar o trem. Já saiu esta manhã?
— Sim, minha querida, replicou o velho fidalgo, e foi por sua causa...
— Por minha causa! repetiu Maria muito surpreendida. O senhor de
Vergis ia responder.
O criado de quarto interrompeu a conversa, anunciando o almoço.
— Daqui a pouco explicar-lhe-ei tudo, tornou o ancião oferecendo o
braço à Condessa para a conduzir à sala de jantar.
A jovem não pudera subtrair-se a uma pequena inquietação.
Vendo porém o marido sossegado e quase alegre, tranqüilizou-se e foi
interrogá-lo; um olhar do Conde fez-lhe compreender que ele não desejava
falar diante do criado.
A refeição durou apenas quarenta minutos.
— Servirá o café na estufa, ordenou a Condessa. Quando se achou a sós
com o senhor de Vergis, exclamou:
— Sou filha de Eva a loura, por conseguinte curiosa. O Conde tem-me
intrigado o mais que é possível. Explique-se depressa, peço-lhe!
— Que me disse ontem a propósito da minha recusa da missão... de que
o ministro dos negócios estrangeiros queria encarregar-me? perguntou o
senhor de Vergis.
— Agradeci-lhe o fato de haver sacrificado sem hesitação as horas a que
tem direito ao desejo de não me deixar, balbuciou Maria, cujas inquietações
renasciam.
— Sim, replicou o Conde. Mas censurava-me ao mesmo tempo por
recusar uma honra de que a senhora teria orgulho por causa do nome que me
pertence e que partilhei com a senhora.
De certo, pois que a glória do marido constitui para a mulher uma
auréola... Cifro o meu orgulho em o ver engrandecer-se.
E tanto compreendi isso, que por amor da senhora aceitei hoje o que
ontem recusava.
Ao ouvir estas palavras, a senhora de Vergis recebeu em cheio no
coração uma comoção violenta.
Pareceu-lhe que o seu futuro sombrio se rasgava subitamente,
aparecendo um canto de céu azul.
Invadiu-lhe a alma uma alegria imensa, mas compreendendo que para se
comprometer, tinha de ocultar essa alegria, conseguir conservar-se
impassível.
O Conde observava-a as ocultas; procurava ler-lhe no rosto o efeito
produzido por aquela nova inesperada.
A senhora de Vergis fingiu-se surpreendida.
— Não sei se o compreendo bem, meu amigo, disse ela, mas duvido, tão
singular me parece o que me anuncia! Aceitou efetivamente a sua missão na
Suíça?
— Bem me compreende, querida filha, aceitei.
— Mas por quê?
— Pelo motivo que há pouco lhe expliquei... Refleti muito esta noite.
Disse comigo que em troca da sua mocidade, devia-me um nome brilhante, e
não hesitei mais...
— Portanto, está tomada a sua resolução?...
— Irrevogavelmente...
— Não tentarei pois combatê-la...
— Ser-me-á penosa a sua deliberação, mas viverei da sua recordação,
esperarei do senhor Conde extensas cartas, e escrever-lhe-ei todos os dias.
— Promete-mo, minha querida? murmurou o Conde, em quem a atitude
tão correta de Maria cada vez dissipava mais absolutamente as suspeitas.
— Será para mim uma alegria, a minha única alegria...
— A sua única alegria...
— A sua única alegria? Verdade, verdade?
— Não acredita?
— Não, não acredito, não quero acreditar...
E o Conde de Vergis, puxando a si a sua jovem esposa, pôs-lhe os lábios
na fronte.
Apesar da sua força de vontade, a Condessa estremeceu toda sob o beijo
do marido.
— Quando parte? perguntou ela com voz trêmula.
— Depois da manhã. — Tão depressa!
— Assim é preciso. De hoje em diante vou dar princípio aos meus
preparativos.
— Será muito demorada a sua ausência?
— Não lhe poderei designar um prazo exato... Há de durar talvez muitos
meses, como ontem lhe dizia.
— É a salvação! pensou Maria. O senhor de Vergis tornou:
— Resta-nos tratar de uma questão muito importante. Tem tenção de se
conservar em Paris durante a minha residência em Berne?
— Isso é que não! Quase já não sou mulher de sociedade, e os prazeres
que o meu amigo não partilha, não tem para mim valor algum. Irei viver nas
Épines Blanches.
— Não a assusta uma tal solidão em pleno inverno?
De modo algum... Atrai-me pelo contrário... Fechar-me-ei como uma
reclusa...
— Mas o tédio?
— Não tenho medo dele... Terei os livros da biblioteca, os jornais que
me chegarem de Paris... e as suas cartas...
— Leva os trens e as criadas?
— Para quê? Madalena, a minha velha ama, e Pedro, seu marido, guarda
da quinta, farão muito bem o meu serviço com Lucette, a filha do
jardineiro... A caleche do campo e os dois cavalos que lá tem aposentados,
bastarão para os meus passeios... Sairei mui pouco porque não me darei com
a vizinhança.
— Não leva a sua criada de quarto? Maria abanou a cabeça.
— Não levo ninguém! respondeu.

***

O senhor de Vergis lembrou-se das palavras de Malpertuis.


Segundo o ex-advogado, o caluniador anônimo devia ter espias na
avenida de Vallars.
Nunca se poderia apresentar melhor ocasião de fazer uma limpeza geral
quanto a criadagem.
O Conde aproveitou-a. Nesse caso, disse ele com vivacidade, de que
serve deixar em Paris uns dez criados que nada tendo que fazer tomarão
costumes impossíveis? Tenho grandes desejos de confiar a guarda do palácio
ao guarda-portão em quem tenho absoluta confiança, de pôr os cavalos como
pensionistas no Tattersall, e despedir toda a gente, com exceção do meu
criado de quarto, que levarei comigo. Aprova?
— Absolutamente.
— É portanto negócio resolvido.
— Acode-me uma idéia, e submeto-lha, volveu Maria. Não desejaria que
os seus amigos e as minhas amigas de Paris, sabendo que eu estou nas
Épines Blanches, tivessem a idéia de me irem ver... Não poderia eu já partir
amanhã, anunciando que vou a Nice ou a Menton?
— Pode ser.
— O senhor por-se-ia a caminho no dia seguinte, deixando em Paris o
seu criado de quarto, que viria ter conosco depois de haver despedido os
criados, e fechado o palácio... Desse modo ninguém se lembrava de se
ocupar de mim. Vê nisto algum obstáculo?
— Nenhum, respondeu o Conde perguntando a si próprio que motivo
levaria a esposa a ocultar assim os seus vestígios. A final, poderia ser um
capricho de rapariga, gostando muito de isolamento momentâneo. Não havia
nada de suspeito em suma.
Após um momento, tornou:
— Não se esqueça de prevenir Magdalena da sua ida, para que Pedro a
venha buscar de carruagem à gare, e prepararem o aposento que há de
ocupar.
— Vou escrever imediatamente, e deitarei eu mesmo a carta no correio,
indo fazer algumas compras.
— Vá, minha querida filha.
O senhor de Vergis tornou a colar os lábios na fronte de Maria, que saiu
da estufa sorrindo.
O velho seguiu-a com os olhos.
O seu olhar tornou-se sombrio; a sua fronte enrugou-se.
— Será a alma de um anjo, ou o coração de um demônio que se oculta
naquele rosto encantador? murmurou. Esta dúvida esmaga-me, e fará da
minha viagem um suplício. Mas é preciso partir! Lutar sem descanso contra
as minhas suspeitas, tornar-me-ia louco. Quero saber e viver feliz, ou morrer
vingado!
A senhora de Vergis tendo voltado para o seu quarto, deixou-se cair
numa cadeira, aniquilada pela luta que travara no seu íntimo.
Estranhos ruídos lhe ecoavam no cérebro; sufocavam-na os saltos
desordenados do seu coração.
— Pôs as mãos e balbuciou:
— Meu Deus, tivestes piedade de mim... Socorrestes-me no meio da
minha imensa aflição. Ele parte! estou salva... Poderá nascer meu filho!...
Um pouco restabelecida da sua comoção esmagadora, sentou-se à sua
pequenina secretária de laça vermelha, e escreveu a Magdalena, a sua velha
ama, a mulher do guarda das Épines Blanches.
Depois, em Outra folha de papel, e com uma letra disfarçada, traçou as
linhas seguintes:
"Volveu a esperança.
"Amanhã estarei em Paris. Espere uma carta minha... Nada receie por
mim... Ame-me..."

LXXIX - AMORES SÉRIOS

A senhora de Vergis dobrou o papel que acabava de escrever, sem lhe


dar a forma de uma carta, meteu-o, como na véspera, no seio, e chamou pela
criada de quarto.
— Julieta, disse-lhe ela, chame o criado de quarto, e que ele a ajude a
pôr lá embaixo duas grandes malas...
— A senhora Condessa vai fazer uma viagem! exclamou a criada muito
espantada.
— Sim, minha filha...
— E a senhora Condessa leva-me? Maria abanou a cabeça e respondeu:
— Não, não terei necessidade de ninguém... Parto amanhã para Nice,
onde o senhor Conde virá ter comigo depois de amanhã. Trate dos meus
preparativos...
— A menina Julieta fez beicinho, mas não, replicou, e tratou de obedecer
às ordens que lhe davam.
A jovem saiu a pé, tomou um trem de praça, fez-se conduzir a Saint-
Sulpice, entregou um bilhete com a palavra Remember, em casa do guarda-
portão da Rua Ferou, meteu o bilhete no lugar que sabemos, fez diferentes
compras, e voltou para a avenida de Villars.
Será preciso afirmar que César Fossaro espreitava a Condessa?
Assim que ela deixou a igreja, leu antes do seu destinatário a missiva
dirigida ao senhor de Trois-Monts, pô-la no lugar que ela ocupava e retirou-
se.
A retirada da senhora de Vergis teve lugar no dia seguinte.
As bagagens haviam sido levadas com antecedência à gare, e
depositadas.
O próprio Conde foi quem as registrou, para que ninguém conhecesse o
verdadeiro destino na viagem de Maria.
Ao saber repentinamente da viagem da Condessa, Jacques Sureau ficou
como que prostrado no primeiro momento, mas fez diligência para recuperar
o sangue frio, e disse para se tranqüilizar:
— Será curta a sua ausência. Voltará. Tornarei a vê-la...
— Sabemos que o dia seguinte lhe reservava segundo golpe, mais
"terrível que o primeiro.
As despedidas do senhor de Vergis e da Condessa foram comoventes.
Maria não pôde reter as lágrimas ao abraçar aquele velho cujo grande
coração, altas qualidades, absoluta dedicação, ela conhecia, e a quem a troco
da sua infinita ternura, ela levava a mentira, a traição, a vergonha.
O Conde, como não pudesse ler na alma da mulher adúltera, atribuiu
naturalmente ao pesar da separação as lágrimas que o remorso fazia correr, e
essas lágrimas proporcionaram-lhe alívio.

***

Deixemos por pouco tempo o senhor de Vergis e Maria, e roguemos aos


nossos leitores que nos acompanhem ao palácio de Chaslin.
Branca Adriana, como sabemos, captara imediatamente a confiança e a
afeição da Duquesa, e à medida que os dias decorriam, aumentava o seu
domínio, tomando, ao mesmo tempo, sobre o senhor de Chaslin um terrível
ascendente.
O Duque Henrique já não tinha ilusões a respeito da natureza dos
sentimentos que experimentava.
Sabia que uma paixão ardente, impetuosa, pela jovem dama da Duquesa
se lhe apossara da alma.
Não tentava uma luta impossível consigo mesma, e sem calcular nada,
dominado, vencido, escravo, entregava-se à sua paixão com amarga
voluptuosidade.
A jovem desempenhava o seu papel como comediante primo cartello, e
não se afastava da linha de conduta tão habitualmente traçada pelo seu amo
Pedro Redon.
Deliciava-se imenso naquele meio que lhe lisonjeava os gostos, as
aspirações, os desejos.
Parecia-lhe que já não poderia viver fora daquela atmosfera aristocrática.
Acreditando no seu futuro, firmemente convencida de que as promessas
do cego se realizariam, e que lhe estavam reservados os mais altos destinos,
estudava tudo, observava tudo, e preparava-se para corretamente
desempenhar o papel de grande dama.
Um só ponto sombrio maculava as radiantes miragens em que o seu
espírito se comprazia.
O ponto sombrio era a desconfiança, cada vez menos oculta, o ódio cada
vez mais irascível de Mariana Gilberto.
Branca Adriana sentia fito nela o olhar desconfiado e hostil da velha ama
de Helena, e por humilde que parecesse a condição da sua inimiga, não
podia, de quando em quando, subtrair-se a uma inquietação vaga e
indefinida.
No momento em que tornamos a transpor o limiar do palácio, o Duque, a
Duquesa, e a jovem, acabavam de deixar a sala de jantar depois da refeição
da manhã, e estavam reunidos ao pé do figão da sala pequena.
— Minha querida Adriana, disse a senhora de Chaslin, tenho um projeto
que quero apresentar-lhe. Se ele tiver a sua aprovação, não perderemos um
momento em realizá-lo.
— A minha aprovação, senhora? repetiu Branca com um gesto de
admiração. Qualquer que seja esse projeto, o meu dever e a minha alegria
consistirão em aprová-lo. Contanto que ele não consinta em afastar-me do pé
de si, acrescentou, cravando na fidalga um olhar repassado de ternura.
— Não se trata de a afastar, minha amiga, retorquiu a Duquesa com
vivacidade, mas pelo contrário aproximá-la ainda mais.
— De que se trata? perguntou o Duque.
— Desejo, respondeu a senhora de Chaslin. dar à nossa querida Adriana
o quarto contíguo aos meus aposentos, cujo quarto de dormir comunica com
o gabinete de toilette por uma porta que se pode deixar aberta.
O Duque franziu as sobrancelhas.
Por motivos ainda mal definidos no seu espírito, o projeto de sua mulher
causava-lhe uma viva contrariedade.
Como, porém não podia levantar uma objeção, guardou silêncio.
— Mas, minha senhora, exclamou Branca com uma expressão de terror,
Mariana Gilberto dorme todas as noites no gabinete de que a senhora fala, a
fim de poder acudir ao primeiro chamado.
— Isso pouco importa... Mariana voltará para o seu antigo quarto. Vou já
preveni-la.
— Oh! minha senhora, minha senhora... murmurou com uma voz agitada
e suplicante, não faça isso, rogo-lhe.
— Então, por quê?
— Mariana Gilberto, constrangida a abandonar por minha causa o posto
de confiança que recebeu da senhora de Chaslin, experimentaria uma
profunda irritação, cuja primeira vítima seria eu.
— A senhora vítima de Mariana! exclamou a Duquesa com assombro.
Que está a dizer? Mariana tem um mau caráter, não ignoro. A sua posição de
ama da minha filha confere-lhe certos privilégios de que ela às vezes abusa.
Pode ter ciúmes da afeição que eu lhe dedico, Branca, mas no fundo não é
má, e creio-a incapaz dei faltar às atenções que lhes são devidas, e das quais
não pode afastar-se por causa da situação que a senhora ocupa junto de mim.
Branca baixou a cabeça sem responder.
— Terá por acaso motivo de queixa contra ela? perguntou a Duquesa.
— Nunca, minha senhora... balbuciou a jovem com uma hesitação muito
pronunciada.
— Isto é, não a quer acusar! interrompeu o senhor de Chaslin, exaltado
contra sua vontade.
— Fale claramente, minha querida Adriana, peço-lhe. disse a doente.
Pertence-me saber. Mariana ofendeu-a?
— Não se atreveria a insultar-me, sabendo que estou protegida pela
senhora, replicou Branca, mas a malevolência dos seus olhares, certas
palavras proferidas na minha presença, e que não podiam senão dirigir-se a
mim, provam-me até a evidência, que ela é minha inimiga. Se a senhora
Duquesa insistisse no seu projeto, o seu ódio sempre crescente, tornar-se-ia
implacável. Havia de procurar todas as ocasiões de me prejudicar. Acabaria
por me deitar a perder no espírito da senhora Duquesa.
— Não receie isso, minha filha, ninguém no mundo conseguiria
semelhante coisa.
— Bem sei, senhora, quão boa é, e sou-lhe profundamente reconhecida,
mas de joelhos lhe peço que não faça as coisas precipitadamente, e sem
preparar Mariana Gilberto para uma mudança, que havia de lhe causar tanto
desgosto, como a mim me havia de causar alegria.
— Talvez tenha razão, minha querida Adriana, volveu a senhora de
Chaslin depois de refletir por alguns segundos; não precipitarei as coisas... A
pobre Mariana tem a cabeça um pouco fraca... o excesso da sua dedicação
enlouquece-a. Devemos ter muita indulgência com ela. Compreendendo isto,
dá-me uma nova prova da bondade do seu coração...
O Duque escutava sem nada dizer, mas o fulgor sombrio do seu olhar, e
a alteração do seu rosto, manifestavam uma irritação profunda.

***

A conversa foi interrompida pela entrada do criado de quarto, que trazia


na bandeja de prata muitas cartas.
O senhor de Chaslin pegou nelas, leu os sobrescritos, e disse a Branca
Adriana:
— Minha querida filha, aqui está uma carta que é para você.
— Para mim? exclamou a jovem fingindo-se surpreendida.
— Exatamente, uma carta de Paris... carta comercial, suponho, se nos
regularmos pelas dimensões do envelope, e pelo caráter da letra...
Branca pegou na missiva que lhe dava o Duque, e dispunha-se a guardá-
la.
O Duque de Chaslin observou porém:
— Essa carta é talvez importante; lê-a já.
— A senhora Duquesa dá licença?
— Não só dou licença, como exijo.
A filha de Pedro Redon rasgou o envelope tratou logo de ver a
assinatura, e não pôde subtrair-se a uma certa impressão ao notar junto do
nome de Malpertuis uma cruz.
Era a cruz um sinal convencionado entre ela e o cego, sinal cuja
significação misteriosa nenhum olhar podia supor.
Apesar de ter sido muito sutil o movimento da jovem, a senhora de
Chaslin reparou nele.
— É alguma nova má, minha flor? perguntou.
— Não, minha senhora, respondeu Branca, é uma carta comercial como
o senhor Duque adivinhou. O senhor Malpertuis, com quem o doutor
Frébault se pôs em relações por minha causa, pede-me que vá amanhã pela
manhã ao escritório, se a senhora Duquesa me autorizar a isso, para se
regular a questão dos meus honorários que se lhe devem.
— Autorizo-a com todo o gosto, disse Joana de Chaslin; mandarei pôr o
coupé ao seu serviço amanhã, antes do almoço.
— Pedirei à senhora Duquesa licença para ir a pé... volveu Branca.
Daqui à Rua da Victoria a caminhada não é longa... Um pouco de exercício
não me há de fazer mal... A Magdalena fica-me no caminho. Entrarei lá. Não
sou ingrata, e tenho tantas ações de: graças a dar a Deus, que para aqui me
trouxe...
— Poderá, minha querida filha, fazer o que quiser...

***

O Duque, ao mesmo tempo que mostrava ler as cartas, não perdera uma
só palavra trocada entre a Duquesa e Branca Adriana.
Brilhou-lhe nos olhos um relâmpago quando viu que a jovem sairia no
dia seguinte só e a pé.
As horas que sucederam à conversa precedente, pareceram intermináveis
ao senhor de Chaslin.
Finalmente, chegou a noite.
O ancião não pregou olho um só momento.
A febre do amor, que intrigava o seu paroxismo, abrasava-lhe o cérebro,
e paralisava-lhe a razão.
Por instantes lutou contra o desejo furioso de confessar a Adriana a
paixão devoradora que sentia por ela.
Eram porém de curta duração estas lutas, e deixavam o senhor de
Chaslin mais que nunca resolvido a aproveitar qualquer ocasião Que se
apresentasse.
Levantado e vestido desde o romper do dia, com as luvas e o chapeu ao
seu alcance, instalou-se no seu gabinete de trabalho, do qual uma porta abria
para a escada por onde a jovem devia descer.
Atento e como o ouvido à escuta ao pé da porta mal fechada, estremecia
ao menor ruído, e parecia mais comovido que uma criança de dezesseis anos
esperando a hora do seu primeiro "rendez-vous".
Foi demorada a sua expectativa.
Finalmente, ouviu uma porta fechar-se no andar superior, depois o rugir
de um vestido de seda soou por sobre o felpudo tapete que cobria os degraus.
O Duque adivinhou a jovem, abriu repentinamente a porta no momento
preciso em que ela ia a passar, e apareceu.
*
Branca previa esta aparição.
Não deixou por isso de simular um gesto de surpresa e murmurou com
uma voz apenas distinta:
— Ah! senhor Duque, que medo me meteu!
Henrique balbuciou:
— Adriana, esperava-a.
— Esperava por mim, senhor Duque? Por quê?
— Sai...
— A senhora Duquesa teve a bondade de me dar licença...
— Preciso de lhe falar...
— O que tem a dizer-me?... Estou ouvindo.
— Não lhe posso falar aqui.
Apesar do seu diabólico aprumo, a filha de Pedro Carnot em face de um
triunfo tão pronto e tão completo, não podia dominar a sua perturbação, e
tremia quase tanto como o próprio Henrique de Chaslin.
— Mas, senhor Duque... principiou ela.
— Oh! suplico-lhe... interrompeu o velho num ímpeto de paixão, vai
nisso o meu repouso... a minha vida... a minha e sua felicidade... Deve ir à
igreja, como disse... É aí que me encontrarei com a senhora daqui a pouco...
Espere-me... Esperar-me-á?... Promete esperar-me?...
— Ordena-mo, senhor Duque?
— Não ordeno, suplico.
— É urna ordem que quer?
— Pois sim, ordeno.
— O meu dever é obedecer... esperá-lo-ei.
E Branca sem acrescentar palavra, meteu-se pelo corredor e desapareceu.

LXXX - A PRIMEIRA ENTREVISTA

O senhor de Chaslin ficou só, louco de esperança, ébrio de felicidade, e


fechou, por um instante, após si, a porta do gabinete.
Davam nove horas no momento em que Branca atravessava o vestíbulo
do palácio.
Aí encontrou Mariana Gilberto.
A criada vendo a jovem vestida e prestes a sair, lançou-lhe um olhar em
que se liam a sua desconfiança e o seu ódio.
Branca cruzou o seu olhar com o dela, parou e disse-lhe num tom
delicado que parecia irônico:
— Peço-lhe que previna a senhora Duquesa de que eu aproveito a
licença que ela teve a bondade de me dar ontem, e que. eu estarei de volta
antes do almoço.
Mariana retorquiu brutalmente:
— Não tenho nada com o que a senhora faz. Não tenho obrigação de me
encarregar dos seus recados... A senhora deu-lhe licença para sair...
Perfeitamente. Se a senhora não voltasse seria melhor...
A falsa Adriana acolheu estas palavras com um sorriso de desdém, abriu
a porta envidraçada, desceu os degraus do vestíbulo, e atravessou o pátio de
entrada.
Mariana Gilberto viu-a afastar-se e murmurou:
— Sim, sim, a senhora Duquesa embeiçando-se com esta Adriana deu
entrada ao diabo. Esta sujeita toma uns ares de madona com que eu não me
deixo iludir!! É bonita de truz! O senhor Duque não tem olhos senão para
ela, e sei muito bem em que isto irá dar se não me meter de permeio. E hei
de meter, que é a minha obrigação. Helena foi criada aos meus peitos...
Pertenço à família!!
Este monólogo foi interrompido por um incidente que Mariana estava
longe de esperar.

***

O senhor de Chaslin, de luvas, chapéu na cabeça, apareceu no vestíbulo.


A ama de Helena olhou para ele com ares espantados.
— O senhor Duque sai! balbuciou ela. — Sim, Mariana, volveu o velho.
— Tão cedo, e a pé?
— É como vê.
E o senhor de Chaslin, muito contrariado com este encontro inoportuno,
abriu por seu turno a porta envidraçada e desceu os degraus. Marina abaixou
a cabeça, dizendo baixinho:
— Como eu tinha razão em imaginar que esta Adriana era o diabo!
Enfeitiçou-o! É atrás dela que ele vai, ia pôr as mãos no fogo! Ah! minha
pobre ama, nem sequer a deixarão morrer em paz!
O Duque, depois de haver transposto o portão monumental, dirigiu-se
para os lados do Elyseu, a fim de transviar os curiosos, se pôs acaso o
espiassem.
Não tardou porém a voltar pela de Aguesseau e Rua de la Suresne.
Branca, saindo do palácio, apressou o passo.
Sabendo que o Duque ia segui-la, queria ganhar alguma dianteira.
Chegou rapidamente à Rua Royale, subiu os degraus da Magdalena,
entrou na igreja, e deitou em roda um olhar perscrutador.
Um homem de pé, junto da pia da água benta, molhou os dedos, e
ofereceu-lhe água santa.
A jovem levantou os olhos para o homem, o reconhecem o rosto pálido e
o olho único de Pedro Rédon.
— O Duque vem atrás de mim... disse-lhe ela em voz baixa.
— Que te quer ele?
— Falar-me em particular.
— Está apaixonado de amores?
— Bravo, minha filha, és muito forte! Também eu tenho de te falar...
Cedo o lugar ao Duque... Quando o deixares, vem ter comigo.
— Aonde?
— Aqui...
— Está dito...
— César, Barão de Fossaro, que por uma hora se tornara Pedro Rédon, o
cego de um olho, desapareceu entre os fiéis que faziam as suas orações nas
teias, e Branca, ajoelhou-se junto de um pilar, à entrada da nave.

***

No fim de menos de dez minutos, o senhor de Chaslin penetrara na


igreja.
Descobriu logo aquela a quem procurava.
O rosto oculto nas mãos orava, ou pelo menos parecia orar com fervor.
O Duque aproximou-se lentamente, e ajoelhou numa cadeira próxima da
sua.
Com o seu instinto de filha de Eva, Branca, que não o podia ver,
adivinhara que ele se aproximava.
Sem fazer um movimento esperou.
O Duque estava trêmulo.
Este grande fidalgo, educado nos principais da sua raça, habituado desde
a infância a respeitar as coisas santas, não dissimulava a si próprio que ia
cometer uma ação odiosa, ímpia e sacrílega, proferindo num lugar sagrado
palavras de amor adúltero.
Mas a paixão conduz os homens ao abismo.
Foi porém de pouca dura a sua hesitação.
Fez calar a consciência, abafou os remorsos, e inclinou-se para a. jovem.
— Adriana, murmurou ele com uma voz que parecia um sopro. Branca
afastou as mãos, voltou-se para ele, e interrogou-o com o olhar.
— Cumpriu a sua promessa, e agradeço-lho do fundo dalma, tornou o
velho.
Mas não posso falar-lhe aqui. Saia da igreja, que eu a seguirei.
A falsa Adriana levantou-se silenciosamente e dirigiu-se para: uma porta
de saída.
O senhor de Chaslin caminhava atrás dela, a distância de uns quatro ou
cinco passos.
Quando a jovem se achou fora da igreja, por baixo da colunata,
aproximou-se dela.
— Dê-me o braço, disse.
— O meu braço, eu! murmurou Branca.
— Peço-lho.
Branca pareceu hesitar.
O Duque já não era senhor de si. Agarrou-lhe na mão, enfiou-lhe o braço
no seu, fez-lhe descer rapidamente os degraus, levou-a até a estação dos
trens que fica num dos lados da Magdalena, abriu a portinhola de um trem e
murmurou:
— Suba!
Branca mostrou outra vez hesitar.
— Ah! continuou o Duque, peço-lho. Que receia? Não tem a certeza do
meu respeito? Após cinco minutos de conversa reconduzi-la-ei ao lugar onde
estamos.
A jovem pareceu dominada por esta voz suplicante, e subiu para o trem.
— Siga o boulevard Malesherbes a passo... disso o Duque ao cocheiro.
Depois, com uma agilidade de rapaz, saltou para o trem, cuja portinhola
fechou sobre si.
O veículo pôs-se em movimento.
Pedro Redon, em pé, a vinte passos da estação, não perdera nenhum dos
pormenores que acabamos de descrever.
Inscreveu na agenda o número da carruagem, depois acendeu um
charuto, e principiou a passear de um lado para o outro com ar distraído.
Assim que se viu junto de Branca, em contato com o seu corpo flexível,
e respirando-lhe o bafo perfumado, o Duque sentiu uma comoção tão
profunda, tão fulminante, que tudo se tornou confusão no seu cérebro.
Batia-lhe o coração violentamente, e no caos dos seus pensamentos
apenas distinguia uma sensação de intensa felicidade, de imensa embriaguez.
O seu rosto tornara-se de um vermelho sombrio, os seus olhos
cintilavam, os seus lábios articulavam palavras sem nexo.
Branca tinha ouvido dizer que era assim que a apoplexia principiava
muitas vezes.
Teve medo, e apressou-se a ser a primeira a tomar a palavra:
— Senhor Duque, disse, obedeci-lhe... Era o meu dever, pois que se
tratava, segundo me afirmou, do seu repouso, da sua felicidade, da sua vida.
Como havia eu de recusar ouvi-lo? Mas a minha situação neste momento
não é por isso menos comprometedora. Suplico-lhe que abrevie uma
entrevista cujo fim não adivinho, e que me arrependo de haver concedido.
Que tem a dizer-me?
— As palavras de Branca produziram um efeito súbito, e afastaram
como por magia os sintomas assustadores que indicamos, mas não
dissiparam a embriaguez amorosa do velho.
— O que tenho a dizer-lhe? replicou ele com uma exaltação delirante,
agarrando nas mãos da jovem. Pois ainda não adivinhou, ainda não
compreendeu?
— Não, senhor Conde, não compreendi, não adivinhei.
— Pois bem, saiba, porque, nenhum poder humano seria capaz de hoje
em diante de me constranger a guardar o meu segredo... tenho a dizer-lhe
que a amo!...
Branca fez um movimento esplêndido, que as maiores comediantes da
nossa época poderiam invejar-lhe.
Soltou repentinamente as mãos, e deitando-se para trás com um terror
fingido, balbuciou com voz estrangulada:
— Não é verdade, não é possível! Não, senhor Duque, o senhor não me
ama!
— Amo-a com todas as forças da minha alma, com todo o vigor do meu
coração! tornou Henrique de Chaslin. Quereria inventar palavras para lhe
pintar este amor que me domina, que me avassala, cave transforma a minha
vida, e faz do meu inverno um estio flamejante! Dominou-me ao primeiro
olhar... Assim que a vi tornei-me seu escravo. De hoje em diante... pertenço-
lhe, pertenço só a senhora. Além da senhora, o mundo já não existe para
mim! Em troca desta ternura sem reserva, sem limites, infinita, só lhe peço
uma pouca de esperança. Amar-me-á um dia?
A filha de Pedro Carnot ouvira com um aparente terror vibrar nos
ouvidos este fluxo apaixonado.
No fundo experimentava uma feroz alegria.
Aquele homem, aquele ancião, dizia a verdade.
Era um escravo, uma coisa sua. Tinha-o seguro por uma cadeia
impossível de quebrar, e cujos anéis cada vez se soldariam mais fortemente.
O futuro que o cego predissera cessara de ser uma miragem longínqua,
para em breve se tornar uma realidade palpável.
A coroa ducal! milhões! Esse sonho, que parecia insensato, bem
depressa deixaria de ser um sonho!
Branca, em êxtase, mas conservando no rosto uma expressão de
desvario, conservava-se calada.
Henrique de Chaslin sentiu o coração oprimir-se-lhe.
— Não me responde, Adriana? perguntou cheio de angústia.
— Que posso responder-lhe, senhor Duque? balbuciou a criatura infernal
com uma perturbação maravilhosamente fingida. Pela primeira vez na minha
vida acabo de sofrer uma ofensa, e foi o senhor que ma infligiu.
— O meu amor uma ofensa! exclamou.
— Não tem o direito de me amar, bem sabe!
— Por acaso uma pessoa é senhora do seu amor?
— É senhora de se calar! retorquiu a jovem com altivez. Se eu não
ocupasse no palácio uma situação modesta, se eu lhe inspirasse uma estima
verdadeira, não me faria semelhante confissão, porque ela é um insulto. Pois
bem, senhor Duque, por pouco que eu valha a seus olhos, sei o que valho.
Tenho o respeito de mim mesma e o culto do caminho reto. Estou pronta a
deixar, com o coração oprimido, mas a cabeça erguida, uma casa que eu
amava, e onde esperava viver feliz! Nada espere de mim. Não conte nem
com as surpresas da minha inexperiência, nem com os arrastamentos da
minha vaidade! Não serei nunca sua amante...
— Que palavra acaba de proferir?balbuciou o senhor de Chaslin, cujo
desnorteamento em presença desta atitude é mais fácil de compreender que
de descrever. Quem lhe fala em ser minha amante?
— Pois seria outra coisa se lhe desse ouvidos? A senhora Duquesa vive.
e é de joelhos que peço a Deus lhe prolongue a existência.
— Adriana... disse o Duque com uma voz abafada, trêmulo por efeito do
sentimento da infâmia que praticava. Joana está condenada, bem o sabe. A
ciência nada pode em favor dela. Para a salvar seria preciso um milagre, e o
milagre não se fará. No dia em que eu me vir livre, será Duquesa.
Branca estremeceu de alegria, ao mesmo tempo que um calafrio lhe
passava pelas carnes.
Tão monstruosa era a promessa feita pelo velho sobre um túmulo ainda
não aberto, que a filha de Pedro Redon não podia, ouvindo-a, deixar de se
sentir aterrada.
— E agora, concluiu o senhor de Chaslin, agora, já não ignora que
destino lhe preparo.
A falsa Adriana chamou aos lábios um sorriso embriagador, e olhando
para o Duque com olhos velados, murmurou:
— Não posso proibir-lhe a esperança.
— Não ma proibir é pouco. Permita-ma?
— Senhor Duque, o dia em que Deus o deixar livre, interrogarei o meu
coração e responder-lhe-ei...
Eram vagas estas palavras, mas o tom em que foram proferidas não
deixava que elas fossem desanimadoras.
O senhor de Chaslin, embriagado pela esperança, quis novamente pegar
nas mãos de Branca para as apertar contra o coração e contra os lábios.
A jovem soltou-as brandamente.
— Agora, disse, dê ordem ao cocheiro para voltar para trás. Pela sua
honra, e pela minha, senhor Duque, é preciso que ninguém possa suspeitar a
conversa que acaba de haver entre nós.

LXXXI - NOVAS COMPLICAÇÕES

— Obedeço, murmurou o senhor de Chaslin apoiando os lábios ardentes


na mão descalça que Branca lhe abandonou durante um segundo. Aonde
quer que a conduza?
— É prudente deixar-me aqui, respondeu a jovem.
— Quer?
— Peço-lho.
— Obedeço.
O Duque fez parar a carruagem e apeou-se.
— Aonde vai? perguntou.
— A Rua da Victoria. O cocheiro ouvira.
Virou de rédea, deixando na calçada da Rua o velho amoroso, ébrio de
felicidade, delirante de esperança.
Depois do trem percorrer uma distância de uns cem metros, Branca
baixou o vidro dianteiro e deu ordem para voltar para a Magdalena.
Cinco minutos depois o cavalo parava junto da grade.
— Branca ia apear-se,
Pedro Carnot apareceu à portinhola.
— Fica, disse, conversaremos no trem. E acrescentou dirigindo-se ao
cocheiro:
— Siga para a Rua Royale, e suba para os Campos Elysios. Tomou lugar
ao lado de Branca, e disse:
— Dispomos de pouco tempo. Poupemos as palavras. Que se passa no
palácio?
— A Duquesa trata-me como sua própria filha.
— E o Duque?
— Adora-me. Acabo de ter a prova indiscutível. — Como?
Branca narrou resumidamente o que se passara entre ela e o Duque.
— Bravo! exclamou o zarolho. Bonito trabalho... Assim que morrer a
Duquesa, tomaras o seu lugar... Entre nós e o êxito não vejo obstáculo. Só
receava uma coisa, que a senhora de Chaslin tivesse ciúmes.
— Não tem, pode vir a tê-los. Bastaria abrir os olhos. O Duque sem o
saber compromete-se a cada momento, e tenho no palácio uma inimiga.
— Então quem?
— A antiga ama de Helena, que se tornou criada de quarto e governante.
O ódio que me tem, torna-a muito perspicaz. Tenho a certeza de que
adivinhou tudo.
— Pode tornar-se perigosa, é preciso portanto perdê-la no espírito do
senhor de Chaslin, e constrangê-la a deixar a casa.
— Será difícil. A sua influência sobre a Duquesa é grande. Se ela fala,
tudo se compromete.
— Terá ela tempo de falar? a senhora de Chaslin vai morrer.
— Está certo disso?
— Estou. O doutor Frébault já não tem esperanças.
— Disse-lho?
— Disse ao Barão de Fossaro, um meu amigo íntimo, um outro eu. Outra
coisa: A Duquesa escreve muitas vezes ao filho e à filha?
— Escreveu-lhes para lhes anunciar a minha entrada para o palácio, e
fazer de mim o mais pomposo elogio.
— Vou fazer-te uma recomendação de alta importância. Se a senhora de
Chaslin declinar muito rapidamente, e sentindo o seu fim Próximo, mandar
chamar os filhos, será conveniente suprimir as cartas.
— Nada mais fácil... a correspondência da Duquesa passa pelas minhas
mãos.
— Podes ler as cartas que ela recebe?
— Muito facilmente... Repito-lhe que a sua confiança em mim; não tem
limites.
— Aproveita-a, e se a filha e o filho anunciarem a sua vinda, previne-me
imediatamente... escrevendo para Malpertuis.
— Fica combinado.
— Que remédios toma a doente?
— Não são muitos. Algumas tisanas, e grânulos de digitalina, contidos
em pequenos frascos de vidro.
— Preciso um desses frascos, e dois ou três grânulos.
— Tê-los-á.
— Fazes idéia exata das disposições interiores do palácio?
— Faço. Tracei o plano topográfico que me pediu, e trago-lho. Branca
tirou da algibeira uma carteira, e pegou numa folha de papel coberta de
linhas, de algarismos, indicações, e deu-a a Fossaro, acrescentando:
— Isto não está talvez absolutamente correto, mas está exato e creio que
muito claro.
Depois de examinar atentamente o plano, perguntou:
— O quarto da Duquesa fica no primeiro andar, no fim de uma galeria,
não é verdade?
— Fica.
— Chega-se a esta galeria de dois modos, pela escada principal e por
uma escada de serviço que vai ter ao jardim, não é verdade?
— Exato, mas a escada de serviço dá ingresso a um gabinete ocupado de
noite por Mariana Gilberto de que há pouco lhe falava, e o gabinete
comunica com o quarto de dormir da Duquesa.
— Seria preciso substituir essa Mariana no gabinete em questão.
— Tem interesse nisso?
— Muito.
— Daqui a alguns dias ter-se-á conseguido o que deseja.
— Bem. Sabes que existe no fundo do jardim uma porta que deita para
os Campos-Elyseos?
— Perfeitamente.
— Podes obter uma chave dessa porta, e também da que leva à. escada
de serviço?
— Seria muito difícil e muito comprometedor. — Quem tem essas
chaves?
— Mariana Gilberto, na sua qualidade de governante.
— Há duplicatas de chaves?
— Ignoro-o, e não entrevejo, confesso, nenhum meio de me apoderar
delas.
— Pois preciso delas e obtê-las-ei. — De que modo?
O zarolho tirou do bolso uma caixinha de prata, que os nossos leitores já
conhecem.
— Vês isto? disse ele abrindo-a e mostrando o conteúdo a Branca.
—Sim, replicou ela, é cera de modelar.
— Sabes o que vem a ser tirar um molde?
A jovem respondeu afirmativamente, depois acrescentou:
— Quer o molde das duas fechaduras?
— Não, mas das duas chaves...
— Farei o que puder, e espero sair-me bem. Fossaro fechou a caixinha e
deu-lha.
— Mais nada? perguntou ela.
— Mais nada. Vais regressar ao palácio de Chaslin. Lembro-te que
espero ter depois de amanhã os moldes, o frasco e os grânulos de digitalina.
— Tê-los-á.
— Uma pergunta mais: Quantos grânulos absorve a Duquesa por dia?
— Três. Um pela manhã, e dois à noite.
— A que horas?
— Às nove da manhã, e às nove e dez horas da noite. A senhora de
Chaslin não adormece geralmente antes da meia-noite.
— É bom sabê-lo. Por hoje não tenho mais nada a dizer-te. Se sobrevir
alguma coisa imprevista, uma carta a Malpertuis imediatamente.
— Não haveria meio, perguntou Adriana, de estabelecer entre nós uma
correspondência regular e nada perigosa?
— Sim, pelo jardim, quando eu tiver a chave...
— É justo. À esquerda da entrada acha-se um pavilhão rústico. Num
consolo de pedra do "rez-de-chaussée", duas janelas de velha louça de Delft
contêm flores artificiais. Pode entrar de noite e meter debaixo do musgo um
bilhete sem direção e sem assinatura, ou tirar daí o que eu própria tiver
escrito.
— A chave do quiosque?
— Nunca a tiram.
— Depois de amanhã nos entenderemos a esse respeito, quando toe
trouxeres os objetos pedidos...
— Onde o verei?
— Na Magdalena, às nove horas da manhã... Hão de achar muito natural
esta pequena visita à igreja, da qual certa fidalga do meu conhecimento me
deu idéia... Uma última palavra: Interrogaram-te a respeito do teu
nascimento?
— Não...
— Trata de sugerir as perguntas... Parece-me útil que o mais cedo
possível se saiba que és a filha do Conde Heitor de Lasseny e de Lucília
Aurélia de Pont-Landry... Que pensas tu do Visconde Armando de Logeryl?
— É um homem encantador.
—E ele sente a influência da tua beleza?
— Não: entrega-se todo ao seu amor por Helena de Chaslin. e só a ela vê
no mundo, mas mostra-se benévolo para mim. Só tenho que me louvar da
sua cortesia.
— Perfeitamente; contudo, acautela-te! Armando de Logeryl é substituto
do procurador da república, e desconfio da gente da justiça. Eis-nos próximo
da Rua do Elyseu, deixa-me e volta para o palácio...
Branca apeou-se do trem, e chegou rapidamente ao Faubourg Saint-
Honoré.

***
Ao voltar da sua entrevista com a jovem, o senhor de Chaslin deparou,
como na ocasião da saída, com Mariana Gilberto sempre à espreita.
A criada viu-lhe o rosto radiante, a fisionomia triunfal, e caminhava com
uma ligeireza de adolescente.
A velha franziu o sobrolho.
— Ia apostar que ele acaba de se entender com a velhaca, disse ela
consigo.
O Duque perguntou:
— Mariana, a senhora está acordada?
— A senhora Duquesa ainda não chamou... respondeu com sequidão a
antiga ama de Helena.
Ouviu-se um toque de campainha.
Mariana deixando sem cerimônia o senhor de Chaslin, subiu
rapidamente a escada, e entrou no quarto da ama. Joana despertava.
— Que horas são, Mariana? perguntou-lhe.
— Dez horas, senhora Duquesa...
— Dormi até tarde. Abra as cortinas. O senhor Duque já saiu do seu
quarto?
— O senhor Duque! replicou a criada com um riso sardônico, há já um
bom pedaço que saiu, e até acaba de voltar para casa.
— Por que, saiu à rua? murmurou Joana um pouco surpreendida. De
carruagem?
— A pé, senhora Duquesa. Exatamente cinco minutos depois da dama de
companhia.
— Mariana, exclamou ela severamente, porque me fala da menina
Adriana, quando se trata do senhor Duque?
— Por coisa nenhuma, senhora Duquesa... disse isto como diria outra
coisa... muito simplesmente por ser verdade.
— Não gosta de Adriana, continuou a Duquesa. Desde que ela está ao
meu serviço, não perde nunca ocasião de lhe ser desagradável...
— Por acaso essa menina queixou-se de mim?
— Nem por sombras, mas a sua animosidade, Mariana, é demasiado
visível. One lhe fez a pobre rapariga? porque é essa aversão injusta?
— Injusta! exclamou a velha criada. Por acaso uma pessoa pode ser
senhora dos seus sentimentos? Pode-se por acaso estimar uma criatura que
ninguém conhecia há oito dias, mas que já dá a lei na casa?...
— Mariana, você é invejosa...
— Eu, senhora Duquesa!
— Sim, Mariana. E um ruim defeito a inveja! Peço-lhe que se emende...
Gosto da menina Adriana. E uma jovem meiga, afetuosa, encantadora sob
todos os aspectos. E orla... é pobre... Tem direito à minha mais viva
simpatia, e não lhe regateio uma afeição que ela merece...
— Oh! bem sei que a senhora Duquesa é boa e caritativa... Às vezes
aquece-se uma serpente no seio. mas quando a gente vê que é uma serpente,
já é tarde.
— Teimas! exclamou Joana de Chaslin.
— Rogo à senhora me perdoe a minha franqueza. Digo o que penso...
Tanto melhor se me enganar, mas quem viver há de ver...
— Deixei-lhe tomar maus costumes, Mariana, e não estou de humor para
discutir exclamou a Duquesa com impaciência. Retire-se e mande-me
Justina.
— A senhora Duquesa recusa os meus serviços esta manhã? balbuciou
Mariana com os olhos rasos de lágrimas.
— Recuso-os, porque me é impossível deter o curso das suas insinuações
malévolas e caluniosas.
Os soluços da mulher rebentaram.
— E é por causa dessa rapariga que me falam assim! exclamou ela com
uma voz entrecortada; a mim que sustentei com o meu leite a própria filha da
senhora Duquesa. £ o mundo às avessas! Ah! como tenho razão quando digo
que o lobo está no redil!
E continuando a soluçar, Mariana retirou-se, deixando a ama perturbada.

LXXXII - UMA TEMPESTADE

Fora do quarto, a ex-ama de Helena, dando livre curso às lágrimas,


continuou no seu monólogo desesperado.
— Ah! balbuciou ela quase em voz alta, deixam-me espezinhar por esta
serigaita, que consente que o senhor Duque a namore, e lhe dá entrevistas
fora do palácio, e a senhora tão cega que não percebe nada! Palavra de
Mariana, a intrigante não há de levar a sua avante, e se uma de nós tem de
ceder o terreno, não hei de ser eu quem se vá daqui.
A campainha do vestíbulo fez-se ouvir.
A porta do pátio abriu-se, e tornou a fechar-se.
A criada correu a uma janela.
Branca subiu os degraus do vestíbulo.
Mariana, querendo sair-lhe ao encontro, alcançou rapidamente o
vestíbulo.
Mas no momento em que ia dirigir-lhe a palavra, — e Deus sabe em que
termos violentos — a porta da primeira sala abriu-se, e apareceu o senhor de
Chaslin.
Em presença do Duque, Mariana teve de se caiar, e dissimular a cólera
que a sufocava.
De cabeça baixa, o coração ulcerado, afastou-se, dizendo:
— Nada perderás por esperar. A minha hora há de chegar.
Naquela mesma tarde, um sol radiante dos fins do outono, crivava com
as suas flechas de ouro o grande jardim que se estendia entre o palácio e os
Campos-Elyseos.
Joana de Chaslin apesar da inchação dos tornozelos, resultante da sua
doença do coração, lhe tornar difícil o andar, quis respirar o ambiente tépido.
O Duque ofereceu-se para a conduzir.
Antes de se apoiar no braço do marido para descer, a doente pedira a
Branca que fosse verificar as somas de algumas contas trazidas naquela
manhã pelos fornecedores.
A dama de companhia sentou-se a uma pequena secretária no quarto da
Duquesa, e deitou-se ao trabalho.

***

O trabalho das contas absorvia-a havia cinco minutos, quando Mariana


entrou repentinamente.
Branca ergueu a cabeça, e viu a dois passos a criada, com os lábios
desmaiados por efeito da cólera, os braços cruzados no peito, a fisionomia
provocadora.
Era o inimigo!
No rosto contraído, liam-se as intenções hostis da recém-chegada.
A jovem procurou subtrair-se a uma cena quase inevitável.
No tom mais sossegado, proferiu:
— A senhora duquesa não está aqui, e eu não chamei ninguém. Esta
frase estimulou o furor de Mariana.
— Tem por acaso a pretensão de me impedir a entrada no quarto de
minha ama? perguntou Mariana com arrogância.
— Não tenho nenhuma pretensão desse gênero, e não me meto no que
não me diz respeito, replicou brandamente. Encarregada pela senhora
Duquesa de um trabalho que demanda toda a fuinha atenção, preciso de
sossego, e peço-lhe que se retire...
A criada estava pálida, e tornou-se purpúrea.
— Com que então dá-me ordens! exclamou. Ordens a mim, a senhora,
que está há apenas oito dias na casa, e criada como eu, pois que recebe
ordenado como eu? Dê as ordens que quiser, não obedecerei.
Branca, cuja índole orgulhosa conhecemos, sentia a cólera insurgir-se no
seu íntimo.
Contudo conseguiu reprimir-se. Sempre sossegada, respondeu:
— Falei-lhe com delicadeza, tenho a exigir da senhora uma delicadeza
igual. A senhora odeia-me desde o dia em que para aqui entrei. Por quê?
Ignoro, e não me inquietarei se não parecer que de propósito quer mostrar-se
a meu respeito agressiva e ofensiva. Até agora tenho guardado silêncio,
supondo que acabaria por compreender e arrepender-se das suas injustiças.
Vejo que me enganava, e a minha paciência está esgotada. Um tal estado de
coisas não pode prolongar-se. A senhora excede os limites, e convido-a a
volver ao sentimento das conveniências.
— Conveniências! repetiu a velha desesperada. Tenho necessidade das
suas lições para as conhecer? Odeia, diz. O que a senhora chama ódio, é
perspicácia. Adivinho-a, e a minha presença não a deixa levar ao termo as
suas velhacarias. Mariana vê muito claro para se deixar enganar como
muitas pessoas com esses ares de sansadorninha! Não se faça tão presumida,
minha menina. Já são conhecidas essas presunções! Não é preciso ser muito
esperta para perceber o jogo! A senhora é uma ambiciosa, que vê uma
mulher moribunda, e um homem prestes a deixar-se apanhar pela primeira
serigaita! O senhor Duque faz-lhe olhos ternos, e a senhora perde a cabeça.
Ele é rico, e a senhora diz que os seus milhões fariam conta. Pois mentes!
Estou nesta casa há mais de vinte anos! Seria capaz de dar o sangue por
aqueles a quem sirvo, apesar de hoje já não ser moda gostar dos amos! Todas
as vezes que alguém ou alguma coisa pode fazer mal à senhora Duquesa,
farei o meu dever gritando: Alto!
Branca encolheu os ombros.
— Ou a sua linguagem é muito obscura, ou a minha inteligência muito
acanhada, replicou, e não compreendo as suas insinuações, mas o meu
instinto de rapariga honrada, adverte-me que elas são ofensivas. Portanto,
nem mais uma palavra, ou pedir-lhe-ei que se explique perante a senhora
Duquesa...
— Fá-lo-ei, berrou Mariana. Não quero outra coisa. Estou pronta!

***

Exatamente neste momento Joana Chaslin, apoiada no braço do marido,


e cansada do seu curto passeio, entrou no quarto, cuja porta a velha criada
deixara aberta.
— Quem se atreve a falar tão alto? Que é isso, Adriana? perguntou a
Duquesa.
— Com certeza, alguma insolência de Mariana! exclamou o Duque
vendo o rosto congestionado e os olhos cintilantes da criada.
— Efetivamente, Mariana injuriava-me... volveu Branca com dignidade.
Injuriava-me sem provocação da minha parte, sem motivos de espécie
alguma; sou alvo do ódio desta mulher, a quem todavia nada fiz, e o seu ódio
manifesta-se de uma maneira mortal para ser suportada. Em tais condições,
apesar de toda a minha profunda e respeitosa ternura pela senhora Duquesa,
não me é possível ficar mais tempo ao seu serviço.
Branca, querendo acabar com a contenda com Mariana, corria
audaciosamente todo o risco.
A senhora de Chaslin sentiu o coração opresso por uma pungente
angústia.
— Quer deixar-me, Adriana? balbuciou ela com voz trêmula.
— Será o maior desgosto da minha vida. senhora Duquesa, mas assim é
preciso...
O Duque estava pálido. Tremiam-lhe as mãos.
— Repito, que se passou? perguntou imperiosamente. Devemos saber
tudo.
— Muito bem, senhor Duque, disse Branca, logo que ordena, falarei. Só
possuo uma coisa preciosa neste mundo, é a minha honra! Proíbo que lhe
toquem! Fui insultada por esta mulher. Chamou-me intrigante... atribuiu-me
projetos infames. Sem piedade, sem pudor, arrastou-me pela lama... E aqui
está porque devo, porque quero partir.
— Ah! exclamou Mariana cerrando os punhos, ela acusa-me, e vai-se
novamente dizer que tenho ciúmes desta rapariga!
— Cale-se, Mariana! Ordenou Joana de Chaslin. O seu procedimento
neste momento prova-me que tinha razão esta manhã, quando lhe falei
daquele modo.
— Assim, murmurou a criada, cujas lágrimas deslizaram novamente,
assim, a senhora ralha comigo outra vez?
— E com razão; merece-o.
— Mereço censuras, porque velo pela felicidade da senhora Duquesa.
— Entende, senhora, interrompeu Branca, insulta-me na sua presença.
Na sua presença atreve-se a sustentar que está ameaçada a sua felicidade,
porque teve dó de uma pobre órfã, porque a senhora Duquesa quis mostrar-
me uma estima que será o orgulho da minha vida! Que tenebroso segredo
ocultam estas palavras? Que fiz eu? De que me acusam? Emprazo Mariana a
que se explique, e rogo-lhe, senhora, de mãos postas, que lhe dê essas
ordens.
— Ah! replicou a criada com violência. Não direi nada, porque diria
muito! Uma pessoa deve calar-se numa casa onde os velhos criados já não
são escutados, onde os amos guardam toda a sua confiança e toda a sua
afeição, por uma desconhecida que vem não se sabe donde, e que nem tem
nome de família!
***

Havia um momento que Branca tinha ocultado o rosto nas mãos.


Ergueu-se pálida e altiva.
— Senhora Duquesa, proferiu ela com uma voz vibrante, ha nomes que a
miséria não consente. E era por isso que eu calava o meu. Obrigam-me a
falar, tudo vai saber... Chamo-me Adriana Maria, sou filha legítima do conde
Heitor de Lasseny, e de Luciana Aurelia de Font-Landry, sua mulher.
— A filha do Conde de Lasseny, que morreu em Inglaterra! exclamou o
senhor de Chaslin estupefato.
— Sim, senhor Duque, e todos os papéis de família que comprovam o
meu nascimento e a minha entidade, estão nas minhas mãos e vê-los-á num
momento.
— Menina Adriana, tornou o Duque comovido, seu pai era do número
dos meus mais queridos amigos... Ter-lhe-ia bastado outrora haver-se
dirigido a mim para evitar a ruína. O que eu sem hesitar faria por ele, fá-lo-
emos pela senhora, e será daqui em diante (ratada como filha... Se Mariana,
decididamente louca, não consegue triunfar das suas antipatias, não será a
senhora quem se retira, será ela...
— Ah! exclamou a velha criada, saindo fora de si, e perdendo toda a
compostura em presença desta ameaça, quer esta rapariga, esta senhora, seja
uma simples intrigante ou a filha de um conde, o Duque defendê-la-á
sempre.
O senhor de Chaslin tornou-se lívido.
— Saia, disse, estendendo a mão para a porta; depois acrescentou
dirigindo-se para a Duquesa:
— Bem vê que esta mulher não pode continuar a estar nesta casa!
Mariana fugiu espavorida.
— Henrique! Henrique!... balbuciou Joana, não seja falto de
misericórdia! a pobre mulher foi ama de Helena.
— É uma víbora, e eu expulso-a...
— Serviu-nos fielmente durante mais de vinte anos, não a esqueça...
— Temo-la aturado por mais de vinte anos. O seu procedimento atual,
deve pôr um termo à nossa indulgência...
Branca interveio.
— Senhor Duque, disse ela em tom de súplica comovente. Mariana teria
razão em me acusar, se a paz do seu lar fosse perturbada por minha causa.
Os serviços de Mariana e a sua antiga afeição, depõem em seu favor... Sou
nova na casa... Devo retirar-me. retirar-me-ei...
— Ficará, senhora! replicou o Duque. Ficará junto da Duquesa que a
estima e aprecia. E a minha vontade... Se alguém recusasse submeter-se a
ela, já não seria senhor absoluto, e deixaria esta casa.
— Henrique... Henrique, balbuciou Joana desfalecida, faria semelhante
coisa?
— Fá-lo-ei, se esta criada, que eu não quero tornar a ver, dormir esta
noite debaixo deste teto.
A senhora de Chaslin levou precipitadamente a mão ao coração inchado
e dorido.
Parecia-lhe que uma lâmina de ferro acabava de o atravessar, tão
intolerável era aquele sofrimento.
— Peço-lhe um momento de atenção, Henrique... exclamou com uma
voz fraca e como que entrecortada.
— Menina de Lasseny tenha a bondade de me deixar a sós com o senhor
Duque.
Branca retirou-se lentamente, humilde e modesta na aparência, mas
julgando-se no fundo segura do seu triunfo.
O senhor de Chaslin, muito perturbado, um pouco inquieto, aproximou-
se da poltrona, na qual a doente se deixara cair.
— Querida Joana, perguntou, que me quer?
A Duquesa voltou para ele os olhos, que não tinham a expressão
habitual.
O velho apaixonado julgou ver neles um começo de desconfiança, e não
se enganava.
Um vago clarão, mas que depressa podia crescer, acabava de romper no
cérebro da agonizante.
Embaraçado por aquele olhar fixo, inquisitorial, pesando imenso sobre
ele, Henrique de Chaslin repetiu a sua pergunta.
A Duquesa não respondeu logo, e pela segunda vez pôs a mão no lado
esquerdo do peito.
Cada vez se tornava mais intenso o ardor que sentia nesse lado.
Sentia-se morrer.

LXXXIII - CONTINUAÇÃO

Ao fim de um ou dois segundos passou um pouco o sofrimento da


Duquesa.
Afinal murmurou lentamente:
— Henrique ameaça-me deixar o palácio e afastar-se de mim? Que
significa esta ameaça? Que interesse tão grande toma numa questão afinal
secundária? Porque se torna em campeão apaixonado da menina de Lasseny?
— Por quê? volveu o senhor de Chaslin esforçando-se por dormir a sua
perturbação. Porque revolta tudo quanto é injustiça... porque o meu dever de
cavalheiro, é defender uma vez a filha do meu infeliz amigo, de ataques
caluniadores.
— Mariana não teve razão, bem sei, e disse-lho; mas o senhor conhece
tão bem como eu a sua profunda afeição, a sua dedicação sem limites... Foi a
própria exageração desse sentimento que produziu esse mal.
— Talvez, disse o Duque amuando-se.
— A velha ama de Helena merecia da sua parte alguma indulgência
mais. Eram injustas as suas acusações, creio, quero crer. O seu coração
cegava-lhe o espírito, ajuizava, como o mundo faz muitas vezes, por falsas
aparências mas as suas palavras inconsideradas deram-me sinal de alarme...
Escute-me, meu amigo, sem cólera, conserve o seu sangue frio, reflita
sossegadamente, compreenderá que tenho razão; a menina Lasseny é muito
nova para ter experiência... a sua maravilhosa beleza atrai sobre ela a
atenção, fatalmente, mais do que seria preciso. Com certeza que não duvido,
nem do senhor, nem dela, mas a presença dessa deslumbrante jovem em
nossa casa, pode ocasionar desagradáveis comentários, suspeitas ofensivas
para a minha dignidade, para a sua honra, e para a honra da própria
Adriana... Não lhe parece, como a mim, que tais suspeitas, tais comentários,
e preciso evitá-los a todo o custo?
— Portando, exclamou o Duque não podendo já conter-se, portanto a
loucura furiosa de Mariana produziu na senhora o seu efeito. Está com
ciúmes!
— Repito-lhe que não estou, replicou Joana de Chaslin: mas poderia vir
a estar, e os ciúmes que tão infeliz me fizeram quando eu era jovem, quando
estava com saúde, e formosa ainda, e capaz de lutar com armas iguais contra
os seus desvarios, matar-me-iam hoje. Henrique não queira que eu morra
desesperada... Faça, portanto, um sacrifício que me restitua a tranqüilidade
que pode faltar-me. Em lugar de despedir Mariana, não seria melhor separar-
nos de Adriana?
— Separar-nos de Adriana! repetiu o velho aterrado. — Acredita então
nas calúnias dessa insensível criada?
— Com certeza que não, mas afirmo-lhe que outras pessoas podem
como ela incorrer em semelhante erro. A retirada da menina de Lasseny
poria termo a tudo.
— Pois teria coragem de expulsar a infeliz menina?
— Tão mal me conhece? Quem fala em expulsá-la? Outro protegê-la,
pelo contrário, e não desprezar nada para a tornar feliz... Hoje que vemos
nela a herdeira de um grande nome, parecerá muito simples que não possa
conservar junto de mim uma posição subalterna... Constituir-lhe-emos uma
pensão, dar-lhe-emos um marido... e garantir-lhe-emos assim o seu futuro,
afastando do nosso lar um motivo de discórdia.
Enquanto a Duquesa falava, o senhor de Chaslin por mais diurna vez se
fizera sucessivamente pálido e corado.
Quando Joana concluiu, exclamou com uma cólera cuja explosão já não
podia conter.
— E fica com Mariana, a causa única desta cena deplorável, o único
elemento de discórdia que existe entre nós. Por causa dessa criatura odiosa,
ofenderia a alma, despedaçaria o coração de uma pobre menina que a ama!
Pois expulsaria do seu palácio um anjo de meiguice e de ternura a quem
deve amar e estimar, não de longe, mas de perto! Não é a senhora que fala
assim, é o seu ciúme sempre vivaz, sempre insensato! Esse ciúme que tanto
me fez sofrer, é uma injúria imerecida contra a qual hoje me revolto... Tenho
cedido por muito tempo... Não cederei mais! Ainda que a senhora me
acusasse de tirania, imporia a minha vontade. Entre a filha do Conde de
Lasseny e a ama de Helena, não hesitarei.
— Bem, seja! balbuciou a senhora de Chaslin trêmula. Partirão ambas.
— Sacrificar Adriana seria uma infâmia de que eu não quero julgá-la
capaz... Se porém o seu ciúme furioso a leva a cometê-la, não serei
testemunha. Adeus!

Henrique dirigiu-se para a porta.


— Aonde vai? perguntou a Duquesa, estendendo para ele as mãos
suplicantes.
— Retiro-me. Quando tiver recuperado a razão, voltarei.
— Por favor escute-me...
— Não tenho nada a escutar...
E o Duque saiu do quarto, deixando a mulher mergulhada num desespero
indivisível.
Dirigiu-se para o seu gabinete, onde se fechou.
Aí, pôs-se a caminhar rapidamente de um lado para o outro, segundo o
costume das pessoas furiosas, e monologando.
— Não cederei! murmurou com uma voz que lhe sibilava por entre os
dentes cerrados. Mariana deixará o palácio, ou eu não tornarei a pôr aqui os
pés... Partirá, e eu constrangerei a Duquesa a conservar Adriana. Dois ou três
dias de ausência fa-la-ão refletir e torná-la-ão dócil...
O senhor de Chaslin sentou-se à sua secretária, pegou num dos
indicadores de estrada de ferro, consultou-o, e disse consigo mesmo:
— Há um comboio às cinco e meia. São quatro apenas, e só me resta o
tempo necessário.
Depois, tocou chamando o criado de quarto, deu-lhe ordem de pôr o
trem, e de meter dentro de uma mala os objetos necessários para uma viagem
de alguns dias.
Meia hora depois subia para um trem, e fazia-se conduzir à gare de
Orleans.
Digamos de passagem que possuía uma vivenda nas margens pitorescas
do Loiret, não longe da Grand-Cour, a vivenda tão cordialmente hospitaleira
do grande editor Eduardo Dentu.
Enquanto isto se passava, Mariana entregava-se na sua solidão a
reflexões nada alegres.
Nunca, depois que estava havia vinte anos ao serviço da senhora de
Chaslin, assistira a uma cena tão violenta.
Nunca o Duque lhe dera ordem para sair de casa.
Como acabaria aquilo?
A velha criada não se sentia nada tranqüila.
Contudo, ainda tinha esperanças de que o senhor de Chaslin,
recuperando a sua serenidade, esquecesse as palavras proferidas na cólera.
Contava com a influência da Duquesa que a amava, e não deixaria de
advogar a sua causa.
Apesar de tudo, julgava prudente não se mostrar, e passava o tempo a
amaldiçoar a dama de companhia, que não deixava, na sua opinião, de ser
para ela uma intrigante de pior espécie, ainda supondo-a filha do Conde de
Lasseny.
Da sua parte, Branca, depois de se haver dirigido ao seu aposento para
obedecer a Duquesa, estava em transes cruéis.
A formidável altercação provocada por Mariana, podia fazer desabar o
edifício tão habilmente construído pelo cego.
O Duque tomara a sua defesa, mas a Duquesa declarara-se abertamente
em favor de Mariana.
Quem venceria, o marido ou a mulher?
Se Branca se visse constrangida a deixar o palácio de Chaslin, o que
pensaria, e o que diria Pedro Rédon?
Não a acusaria de imprudência ou de falta de tato?
Ora, Pedro Rédon metia-lhe medo, bem sabemos
O que fazer para conjurar o perigo iminente?
A jovem fazia a si própria estas perguntas, e corno era natural, não sabia
que resposta dar.
A sua perplexidade aumentava de hora para hora, de minuto para minuto,
ao mesmo tempo que as inquietações aumentavam.
Aguardava a solução do enigma no seu quarto de dormir cuias janelas
davam para o pátio do palácio.
Apoiando a fronte contra os vidros para a refrescar, entregava-se aos
seus pensamentos.
Um súbito incidente veio arrancá-la à sua meditação.
Tiravam da cocheira o coupé de que o Duque habitualmente se servia, e
preparavam-se para o porem.
O senhor de Chaslin ia sair.
Até ali nada mais simples, não se via coisa que pudesse aumentar a
perturbação da órfã.
De repente estremeceu.
O criado de quarto atravessou o pátio, levando na mão uma mala que
depôs no coupé.
Quase no mesmo instante apareceu o Duque, deitou para a fronteira
tristonha e para as janelas fechadas do segundo andar um demorado olhar,
depois subiu para a carruagem.
Abriu-se o portão, e o cocheiro deu a mão aos cavalos que partiram a
galope.
Branca possuída de um tremor nervoso, murmurou:
— Se ele se afasta assim, é porque não pode impor a vontade à Duquesa.
A criada Mariana é mais forte que eu! Estou perdida!...
Este desfalecimento mais moral que físico foi de pouca duração. A filha
de Pedro Rédon tranqüilizou-se depressa e murmurou, como o sorriso nos
lábios:
— Perdida! Ora adeus! Pelo contrário, triunfo, e o Duque é hábil... Para
tornar a chamar o Duque para junto de si, a moribunda cederá tudo!

***

Tornemos para junto da senhora de Chaslin, a quem deixamos entregue a


uma profunda dor.
A terrível cena que acabara de se dar, prostrara-a.
A lembrança das feridas numerosas e penetrantes outrora feitas no seu
coração pelas leviandades do seu querido Henrique, preocupava-a, juntando
a amargura do passado ao penetrante pesar da hora presente.

***

Quando se achou só, principiou por chorar por muito tempo,


amaldiçoando o Duque, amaldiçoando Adriana, amaldiçoando Mariana. que
acabavam de aniquilar a tranqüilidade, o repouso, que a sua doença tornava
tão necessários.
Pouco a pouco foi refletindo, e a reflexão trouxe-lhe um alívio.
Conhecendo o caráter irritável, e o gênio ferozmente suscetível de
Mariana. disse consigo que esta última, com o espírito perturbado pela
violência da sua antipatia, devia ter tomado os seus devaneios como
realidades, e caluniar inconscientemente a dama de companhia, cujos
privilégios invejava.
Destas premidas resultava a inocência absoluta de Adriana e do Duque.
Só Mariana era culpada.
Seria preciso desistir da sua defesa, se da sua expulsão dependesse a paz.
Tomando esta resolução, Joana quis logo fazer saber ao marido que
entregava as armas, e se retratava honrosamente.
Tocou uma campainha.
A segunda criada de quarto acudiu logo.
— Previna o senhor Duque, disse-lhe a senhora de Chaslin, que desejo
conversar um instante com ele o mais cedo possível.
A criada de quarto desapareceu, e no fim de alguns minutos voltou com
ar embaraçado.
— Viu o senhor Duque, e que resposta traz tia sua parte? perguntou a
doente.
Dirigi-me ao criado de quarto para lhe dar o recado da senhora,
balbuciou a camareira com uma hesitação visível, o senhor Duque não virá.
— Então, por quê? murmurou Joana, cujo coração se sentiu apertado por
nova angústia.
— O Francisco acaba de me dizer que o senhor Duque partiu em viagem.
— Em viagem! repetiu a Duquesa sem forças.
— Sim. senhora. O senhor Duque partiu no cupê há quase uma hora.
Levou até uma mala bem fornecida.
— Basta, retire-se.
A camareira rodou sobre os calcanhares, e afastou-se dizendo baixinho:
— Temos zangas. Estes grandes senhores não se dão melhor em casa que
a gente ordinária. Se alguma vez encontrar marido, há de ser para me andar
muito direitinho... e se refilar, tanto pior para ele!... Não responderei por
coisa alguma!
Nem por um instante a senhora de Chaslin supusera que o Duque poria
tão depressa a sua ameaça em execução.
— Foi-se! murmurou ela, dando livre curso às lágrimas que a
sufocavam. Foi-se sem me dizer adeus! Afasta-se irritado contra mim!
Esquece que estou muito doente, e que se demorar muito tempo já não me
achará viva.
Após um prolongado silêncio tornou:
— E Mariana é causa de tudo! Devo-lhe o mais pungente pesar da minha
vida! Por que foi que a defendi? Hoje faltam-me as forças e a coragem para
proceder, mas amanhã farei justiça.
Chamou novamente a criada de quarto e disse-lhe.
— Sinto uma grande fadiga... tenho necessidade de repouso, vou deitar-
me...
— Será preciso servir o jantar no quarto da senhora Duquesa?
— É inútil... Tomarei somente um caldo.
— Deverei mandar-lhe a menina Adriana?
— Não... Preveni-la-á da minha parte que jantará hoje só, e dará ordem
para a servir na sala de jantar.
— Muito bem, minha senhora. A senhora Duquesa quer falar com
Mariana?
— Não esta noite... Vá, minha filha.
A camareira retirou-se, e Joana de Chaslin, encostando ao travesseiro a
cabeça dorida, procurou adormecer; o sono é o esquecimento...

LXXXIV - AMA E CRIADA

Branca Adriana, informada pela segunda criada de quarto das vontades


da Duquesa, jantou muito ligeiramente, e tornou a subir para o seu quarto,
onde se fechou, dominada por uma angústia moral, e duvidosa do êxito da
empresa, apesar da muita confiança que tinha em si.
Parece-nos supérfluo afirmar que mal dormiu, e o seu sono foi povoado
de maus sonhos.
De pé logo ao romper do dia procurou tranqüilizar-se com a reflexão.
— A Duquesa não me quis ver ontem, disse ela consigo, porque ainda se
achava sob a impressão penosa causada pelas violências de Mariana e a
partida do senhor de Chaslin. Hoje, com certeza, manda-me chamar... Se ela
se demorasse muito, apresentar-me-ia, porque quero saber o que devo
pensar.
Depois de tornar a meditar por um momento. Branca continuou:
— É depois de amanhã que devo tornar a ver Pedro Redon. Pediu-me o
molde das chaves das duas portas, a do jardim que deita para os Campos-
Elíseos, e a da escada de serviço. Vou tomar as minhas medidas para lhas
remeter com o frasco vazio e alguns dos grânulos de digitalina que fazem
parte do tratamento da Duquesa. Vou tratar disso imediatamente.
A jovem abriu a gaveta de um móvel, tirou daí a caixinha de prata dada
na véspera por Fossaro, e que encerrava, um pedaço de cera de modelar.
Amoleceu a cera entre os dedos, dividiu-a em dois fragmentos que
tornou a pôr na caixa, meteu a caixa na algibeira e desceu ao jardim.
A hora tão matinal os criados não tinham, por assim dizer, saído dos seus
aposentos.
Branca tinha, por conseguinte, a certeza de não ser vigiada.
Além disso, os maciços espessos da verdura não deixavam avistar o
fundo do jardim das janelas do hotel.
Tirando o molde com uma incomparável habilidade, a jovem voltou para
a escada de serviço e removeu para a segunda chave as operações que
acabava de conseguir para a primeira.

***

Concluído este trabalho, voltou para casa e esperou.


Mariana Gilberto, havia vinte e quatro horas, não estava menos inquieta
que a dama de companhia; contudo, não podia acreditar que a sentença de
expulsão proferida pelo Duque fosse confirmada a sangue frio pela Duquesa.
Joana de Chaslin passara uma noite terrível.
Assaltavam-lhe o espírito pensamentos da mais sombria natureza.
Acusava-se de haver, por palavras injustas e suspeitas ofensivas,
ofendido profundamente Henrique, e causado a sua retirada.
Sentia-se disposta a todas as concessões para o fazer voltar.
— Que ele volte, murmurava ela, e peça o que pedir, exija o que exigir,
não terei outra vontade senão a sua!
Informou-se logo pela manhã se tinha vindo algum telegrama.
Mergulhou-a na consternação a resposta negativa.
Fez-se vestir pela segunda criada de quarto, e deu ordem para que lhe
mandassem Mariana.
A ama de Helena, sabendo que a senhora de Chaslin a chamava, sentiu-
se subitamente acometida de um tremor.
A explicação que ia ter com a ama, parecia-lhe temível, não que ela só
arrependesse do que tinha feito na véspera, e tivesse por isso a menor
sombra de pesar, mas porque se ia decidir ou a sua expulsão da casa ou a da
intrigante.
Quem venceria?
A velha criada, dominando o melhor que pode a sua perturbação, entrou
no quarto da Duquesa com um aspecto sossegado.
Este sossego simulado desvaneceu-se assim que Mariana viu o rosto
lívido e transtornado de Joana de Chaslin.
— Meu Deus! exclamou com uma expressão dolorosa, a senhora
Duquesa está mais doente.
— Mais doente, não, respondeu a grande fidalga, porém mais
incomodada, sobretudo moralmente, e Mariana é n causa deste sofrimento.
— Eu! balbuciou a criada pondo as mãos. Eu que daria a vida pela
senhora Duquesa!
— Não ponho em dúvida a sua dedicação, Mariana; mas seria bom
demonstrar-me poupando-me terrível comoção. Há muitos anos que tento
debalde a reforma do seu caráter indomável e dos seus exageros de
linguagem. Nada tenho conseguido. Sentindo-se amparada pela minha
confiança, e digamo-lo. também, pela minha afeição, julgava que tudo lhe
devia ser permitido, e não refletiu que vem um dia em que a paciência se
esgota.
Mariana, toda agitada, perguntou:
— Devo concluir das palavras da senhora Duquesa, que ela confirma
uma sentença proferida pelo senhor Duque num momento de cólera?
— Não fale do senhor Duque. replicou severamente a senhora de
Chaslin. Provocou a sua justa cólera... É a única causa da sua retirada.
Mariana, como desde a véspera não trocara nenhumas falas com os
outros criados, ignorava o que se tinha passado.
— O senhor Duque partiu? murmurou estupefata.
— Deixou o palácio para aqui não voltar senão depois de você aqui não
estar. A sua presença recordar-lhe-ia demasiado a acusação insultante que na
sua loucura você fez pairar sobre ele.
— Então... visto isso... retorquiu Mariana que se fez pálida de morte.
Visto isso... tenho de me retirar...
— Assim o quis, e sinto muito não a poder conservar junto de mim...
— Visto isto, a senhora Duquesa expulsa-me?
— Não, não a expulso... Por diversas razões que conhece não me é
permitido viver para o futuro sob o mesmo teto, aí está... Mariana já não é
moça... precisa de descansar. Vinte anos de serviços fiéis dão-lhe direito a
uma reforma honrosa. Sairá desta casa levando toda a minha estima... Eu e o
senhor Duque asseguramos-lhe uma renda vitalícia de mil e duzentos
francos, e dar-lhe-ei além disso dois mil francos, no momento da sua
retirada, a título de gratificação. Se for para a sua terra, será aí que receberá a
renda, se, pelo contrário ficar em Paris, autorizá-la-ei a vir ver-me algumas
vezes, e recebê-la-ei com prazer, porque a par dos seus defeitos tem grandes
e sérias qualidades... Ama-me, a seu modo, é verdade, mas ama-me... Nunca
duvidei da sua afeição, não duvidarei nunca, mas essa afeição é desastrada a
ponto de se tornar perigosa. Eis porque se torna indispensável uma
separação.

***

Mariana escutara as palavras precedentes sem interromper, e sem fazer


um movimento.
Só a alteração sempre progressiva do seu rosto provava quão profunda
ferida lhe fazia cada palavra proferida.
— E é para conservar a menina Adriana que a senhora Duquesa me
deixa partir? perguntou com uma voz sibilante.
— É para obedecer ao senhor Duque.
— Então a afeição, a dedicação, são sacrificadas à hipocrisia, à
duplicidade!
— Mariana... interrompeu a Duquesa num tom cheio de sequidão, quem
acusa sem provas, pôde e deve ser suspeito de mentira... Que tem a dizer da
menina de Lasseny?
— Devo repetir o que já disse... A sua dama de companhia acarretará a
desgraça sobre esta casa!
— O que é isso! sempre frases vagas e insinuações hostis sem base
alguma? Bem vê, Mariana, que é incorrigível! Formula uma acusação séria,
baseada em fatos... Então, e então somente, deixarei de atribuir as suas
palavras a um sentimento culpado como poucos, a inveja!
— Nada formulo, senhora, replicou a ama de Helena. Não tenha provas a
dar... Escuto o instinto que me adverte, como o cão, do perigo que vão correr
aqueles a quem amo. Sou iludida pela minha exaltação? A minha educação
evocará fantasmas? Não creio, ia jurar o contrário! Por acaso uma pessoa é
senhora dos seus pressentimentos! Não conhecia a menina de Lasseny,
ignorava a sua existência... Logo no primeiro momento que a vi, senti a
repulsão e a desconfiança apoderarem-se de mim! Adivinhei nela uma
inimiga. Antes da sua chegada, reinava aqui a tranqüilidade. A inquietação, a
dor, as lágrimas, chegaram ao mesmo tempo do que ela. É uma rapariga que
tem mau olhado!
Joana de Chaslin encolheu os ombros.
— Ora, adeus! está louca! Que influência pode a menina de Lasseny ter
no nosso repouso?
— A senhora Duquesa não é desconfiada! exclamou Mariana com
amargura. A beleza da menina Adriana...
— Basta! interrompeu a Duquesa com altivez. Vai outra vez insultar o
senhor Duque! Não duvido, não quero duvidar do cavalheiro cujo nome
tenho a honra de usar, e que não vive senão para mim e para os seus filhos!
lembro-lhe o respeito que lhe deve, o que de ontem para cá já por duas vezes
esqueceu!
Joana de Chaslin falava com uma voz lenta e grave. No rosto
manifestava irrevogável resolução.
Mariana sentiu-se vencida, e da sua alma apoderou-se o mais profundo
desespero.
— Oh! minha senhora... minha senhora! exclamem ela caindo de
joelhos, ao mesmo tempo que das faces lhe corriam torrentes de lágrimas,
tenha piedade de mim, e não me afaste de si! Não me expulse desta casa
onde passei os melhores anos da minha vida a amá-la, a abençoá-la. Não será
cruel, a tal ponto! Considere, senhora, que para mim é tudo no mundo! Que
quer que eu faça, afastada da senhora? Conheço o mal que fiz, e arrependo-
me! Peça o meu perdão ao senhor Duque, ele concedê-la-á. Pedir-lhe-ei
perdão, lançar-me-ei a seus pés. Tenha dó de mim, minha senhora, longe da
senhora Duquesa morrerei, e de certo não quererá condenar-me á morte.
Estas frases sem nexo eram proferidas com uma voz pouco distinta,
entrecortada por soluços.
As súplicas dilacerantes da velha ama iam ao mais profundo do coração
da Duquesa que estava quase a chorar de comoção.
— Minha pobre Mariana, disse ela pegando nas mãos da criada, o seu
pesar faz-me mal, e desejaria poder consolá-la com uma palavra, mas
infelizmente não me assiste um tal direito. O Duque acusa-a com razão de
ter trazido o desassossego a esta casa. Por sua causa partiu. Só voltará
quando souber que as suas ordens foram cumpridas...
Mariana pôs as mãos balbuciando:
— Compreendo isso, senhora. Compreendo bem mie é preciso obedecer
ao senhor Duque. Partirei, portanto. Partirei já amanhã, partirei já hoje se
quiser... mas não me afastarei de Paris, e mais tarde, quando o senhor de
Chaslin estiver de volta, prometa-me que intercederá em meu favor...
obtenha dele permissão de voltar para esta casa, que eu seja até ao fim da
minha vida, como tenho sido até hoje, sua dedicada servidora... que eu possa
finalmente morrer nesta casa onde tenho vivido. Digne-se prometer-me isso,
e parto imediatamente. Promete-mo?
— Sim, prometo-lhe. — E consegui-lo-á?
— Não posso a semelhante respeito dar-lhe a certeza, ma? espero e tenho
grandes esperanças. Se conseguir verdadeiramente dominar-se, modificar o
seu caráter, corrigir-se finalmente, estou convencida de que o senhor Duque
não será falto de misericórdia...
— Oh! Obrigada, senhora, obrigada, exclamou a ama de Helena, depois
de haver chegado aos lábios às mãos da Duquesa. Vou arranjar as minhas
coisas sem dizer nada a ninguém. Sairei daqui esta noite mesmo, pretextando
a necessidade de uma pequena viagem; ficarei porém em Paris...
"Tenho necessidade de me sentir sempre junto da senhora. Encontrarei
meio de obter notícias suas. Tomarei a liberdade de lhe escrever, para a
senhora Duquesa saber onde eu moro, e se chegar o perdão que desejo com
tanto ardor, far-me-á a graça de me participar.
— A esse respeito fique sossegada, minha boa Mariana. Mas não quero
que vá sem dinheiro. Vou pagar-lhe os ordenados vencidos e a gratificação
prometida.
— Suplico à senhora Duquesa que não se ocupe hoje disso... Estou longe
de me ver sem dinheiro. Tenho as minhas economias. E mais do que preciso
para esperar o meu regresso ao palácio de Chaslin.
— Como quiser, Mariana, mas de hoje em diante os dois mil francos e a
renda de mil e duzentos francos pertencem-lhe.
— Depois, minha senhora, depois. Retiro-me... Não faz idéia de como
estou apoquentada. Ah! se soubesse o que sofri! O que me ampara é a
esperança, se não fosse ela, deitar-me-ia para não me tornar a levantar com
vida. Adeus, minha senhora, adeus... Velarei de longe, como velei de perto...
E Mariana, meio sufocada pelos soluços que lhe faziam arfar o peito,
saiu cambaleante.
A Duquesa, profundamente comovida, viu-a afastar-se. Em seguida
pendeu-lhe a cabeça para o peito.
— Pobre mulher! Como me amava! Como me ama! Serão fundados os
seus pressentimentos? Só Deus o sabe! O futuro no-lo dirá... A sua retirada
despedaça-me o coração, mas Henrique exigia--a. e não tenho direito de lhe
desobedecer. Quando ele voltar, quando todo o vestígio de cólera lhe tiver
desaparecido do espírito, advogarei a causa de Mariana. Tratarei de ser
eloqüente... Ele é bom... perdoará também.

***

Neste momento bateram discretamente à porta do quarto de dormir.


— Entre, disse a senhora de Chaslin.
A porta abriu-se; Branca apareceu no limiar.

LXXXV O - ANJO DEMÔNIO

A filha de Pedro Carnot, vendo que a Duquesa não se lembrava de


reclamar os seus serviços, tomara a resolução de se apresentar sem ser
chamada, a fim de se subtrair a todo o custo ás angústias que a oprimiam.
Acabava de compor o rosto com uma habilidade diabólica.
Tinha as pálpebras avermelhadas, as suas pupilas pareciam veladas pelas
lágrimas.
Não foi sem uma hesitação que ela deu dois ou três passos no quarto.
— Ah! é a senhora, Adriana, murmurou a Duquesa em tom muito meigo.
— Sim, senhora, respondeu a jovem, cuja voz de cristal tremia. Ontem
deu ordem de me retirar, e não pude esta manhã resistir ao desejo de saber
como passou a noite?
— Estou um pouco mais incomodada, minha filha, mas espero que isto
não seja nada...
Enquanto a senhora de Chaslin proferiu estas palavras, Branca avançava
lentamente para ela.
Quando se achou perto da Duquesa, parou. Os olhos arrasaram-se-lhe de
lágrimas. Deixou-se cair soluçando, aos pés da Duquesa.
— Oh! minha senhora... minha senhora, balbuciou, perdoe-me! Sou a
causa involuntária deste sofrimento... Devia ter suportado em silêncio os
ultrajes com que me vexavam. Nem a coragem, nem a resignação me teriam
faltado, se eu imaginasse que lhe poupava um desgosto.
As hábeis entoações da boa comediante tinham um cunho de verdade
que produziu na doente uma impressão profunda.
— Com certeza que Mariana está enganada, disse ela consigo. Esta
jovem tão simpática, tão meiga, não era capaz de trazer a desgraça a minha
casa.
Branca continuou:
— A senhora Duquesa perdoa-me, não é assim, o ter atraído sobre mim,
sem o saber, a sua cólera e o seu desprezo?
— Adriana, minha querida filha, exclamou a Duquesa cada vez mais
comovida, pegando nas mãos da sua serviçal, não me fale em cólera nem em
desprezo; levante-se e sente-se junto de mim.
Nas pupilas de Branca brilhou um relâmpago de alegria que se apagou
no mesmo instante.
Toda compenetrada do seu papel exclamou, apertando as mãos da
Duquesa, e levantando para ela os belos olhos inundados de lágrimas:
— Visto isso estou perdoada?
— Não tenho nada que lhe perdoar, minha filha... Se há alguém culpado,
não é Branca.
Oh! minha senhora, que alívio me dão as suas palavras; porém elas
aumentam ao mesmo tempo o meu arrependimento! Andei mal em ligar
importância, por pouca que fosse, às palavras de Mariana. Devia tê-la
deixado falar e calar-me, desprezar ontem as suas injúrias como hoje as
desprezo.
Enquanto proferia estas palavras, Branca fora-se levantando pouco a
pouco, e atraída pela Duquesa, sentava-se ao lado dela.
Minha querida Adriana, disse Joana de Chaslin com uma voz comovida,
quero que deste momento em diante não lhe fique como não me fica a mim,
lembrança alguma do que se passou... A sua dignidade não lhe consentia ser
injuriada. As palavras de Mariana contendiam com a sua honra, como
contendiam com a do senhor Duque, e a mim própria me ofendiam. Fez bem
em não as admitir.
"Nos primeiros momentos, sofri, é verdade, mas esqueci os meus
sofrimentos, a culpada foi castigada, está tudo acabado... não falemos mais
nisso... A menina já não é minha dama de companhia, é a filha de Aurélia de
Lasseny que foi minha amiga, e a quem olho de hoje em diante como minha
filha adotiva.
— Portanto, minha senhora, murmurou Branca, conheceu minha mãe?
— Conhecia-a, amei-a.
— Fale-me dela, peço-lhe. — Era formosa e meiga como a menina.
Acho que se parece com ela. Tinha, estou certa, esses olhos azuis, e esses
cabelos louros... Amava seu pai, como a menina há de um dia amar o
homem de quem um dia for esposa.
— Oh! minha senhora, volveu Branca, e eu casarei? Quem me havia de
querer sem dote?
— A sua beleza, querida filha, vale uma fortuna, retorquiu a Duquesa
sorrindo; e demais, eu e o Duque juntar-lhe-emos um dote, e arranjar-lhe-
emos um marido digno de lhe agradar...
A jovem pôs as mãos.
— Como é boa! exclamou com uma tocante expressão de
reconhecimento. Não contente com dignar-se conceder-me a sua ternura,
lembra-se ainda do meu futuro! Mas graças a Deus, não sou ingrata! Peça-
me a vida... Pertence-lhe toda... Não quero casar, pois que o casamento me
separaria da senhora. Quero dedicar-lhe todas as minhas horas, como já lhe
dedico todos os meus pensamentos.
Joana de Chaslin tomou Branca nos braços, e deu-lhe no rosto um beijo
maternal.
A falsa Adriana sentiu um calafrio percorrer-lhe as carnes ao contato dos
lábios da Duquesa.
Esta tornou:
— Falaremos disso mais tarde. Entretanto, já esta noite ocupará a
aposento contíguo ao meu.
— Oh! minha senhora, exclamou Branca com vivacidade, lembre-se,
peço-lhe, do que ontem lhe deu... Não dê novo alimento ao ódio que eu
inspiro a Mariana...
— Isso não lhe deve causar inquietação, minha querida filha.
— Por que Mariana reconheceu por acaso o seu erro, e as suas
injustiças?
— Ainda que o fizesse seria muito tarde. Mariana já não estará esta noite
no palácio...
Branca teve um estremecimento de alegria, mas soube ocultar o seu
triunfo sob a máscara de uma compaixão hipócrita.
— Mariana expulsa desta casa, onde passou mais de vinte anos!
murmurou. E eu é que sou causa de um tal rigor! Minha senhora, minha
senhora! peço-lhe, perdoe a Mariana...
— Posso perdoar-lhe, mas não reconsiderar numa resolução tomada. A
vontade do senhor Chaslin é formal, e devo obedecer a meu marido. Quando
ele voltar a Paris, já aqui não deve estar uma mulher que a ofendeu.

***

Branca soube dar ao rosto uma expressão de espanto.


— O senhor Duque está ausente? perguntou ela.
— Está, mas a sua ausência será pequena... respondeu a duquesa, não
querendo dizer a Adriana qual a causa verdadeira da ausência do senhor de
Chaslin. Vou escrever-lhe, e não tarda que o vejamos... Mande-me o criado
de quarto de meu marido, peço-lhe, e se encontrar Mariana, evite dirigir-lhe
a palavra...
— Prometo-lhe, minha senhora... Deverei voltar para junto da senhora?
— Mais tarde. Neste momento tenho necessidade de descanso. A jovem
saiu.
Ao ver afastar-se aquele demônio com rosto de anjo, Joana de Chaslin
dizia baixinho:
— Oh! sim, aquela pobre Mariana perdeu a razão... Adriana é um anjo.
Duvidar dela seria um crime!
Decorreram dois minutos.
O criado de quarto apareceu.
— Francisco, perguntou-lhe a Duquesa, sabe aonde o senhor Duque se
fez ontem conduzir?
— À gare de Orleans, minha senhora.
— Está bom. Francisco retirou-se.
— Está na Roche-sur-Loire, pensou Joana. Amanhã hei de receber dele
uma carta ou um telegrama, por certo, e já hoje vou participar-lhe que a paz
reina nesta casa.

***

Por volta das cinco horas da tarde, Mariana solicitou uma audiência que
logo lhe foi concedida.
Vinha despedir-se daquela de quem durante tanto tempo fora a fiel
criada.
Tristes despedidas em que de um lado e de outro correram lágrimas
sinceras.
Mariana teve todo o cuidado em não dizer aos criados que a sua retirada,
segundo todas as aparências, era definitiva.
Deu como pretexto vários negócios de família, que a chamavam por
alguns dias à sua terra.
A rigidez do seu caráter tornava-a pouco simpática à criadagem do
palácio de Chaslin.
Por isso, a sua ausência, quer ela fosse de longa ou de curta duração, não
inspirou pena a ninguém.
O doutor Frébault apareceu à noite.
Não prescreveu nenhum novo tratamento.
Só o que fez, depois de observar as pulsações do coração, foi receitar
para todos os dias um grânulo de digitalina.
Depois retirou-se para ir à rua Francisco I ver o principezinho, cujo
estado continuava a ser inquietador.
Branca subiu ao aposento contíguo ao la Duquesa, e deu as ordens
relativas à sua instalação, a qual devia realizar-se naquele mesmo dia.
Dali dirigiu-se ao quarto de dormir da senhora de Chaslin, certificou-se
de que todas as portas estavam bem fechadas, entrou no gabinete de toilette,
e tirou de um móvel, dentre os pequeninos objetos que enchiam metade de
um recipiente de ônix um frasquinho vazio que tinha o seguinte letreiro:

Grânulos de digitalina drageficados de Labelonie

Depois voltou ao quarto de dormir, aproximou-se da mesa de cabeceira


onde havia vidros de remédios e um frasquinho semelhante àquele de que
lançara mão, mas que encerrava uns pequeninos grânulos brancos,
desarrolhou este frasquinho, deitou quatro ou cinco grânulos no primeiro
recipiente que desapareceu em seguida no peitilho do vestido entre os dois
seios, e tornou a pôr tudo no seu lugar.
— Vamos, murmurou em seguida num tom de triunfo, Pedro Rédon,
amanhã, deve estar contente comigo.
O dia acabou-se sem incidentes.
Pelas dez horas da noite a senhora de Chaslin quis gozar um descanso de
que tinha grande necessidade, depôs um beijo na fronte da falsa Adriana, que
pela primeira vez tomou posse do quarto contíguo ao quarto da Duquesa e ao
gabinete que tinha comunicação com este.

***

Tornemos a Henrique de Chaslin.


Deveras decidido a afastar-se momentaneamente de Paris, o duque
resolvera passar dois ou três dias na sua vivenda de la Roche-Loire, onde
importantes trabalhos, executados sob a direção do mordomo, tornavam a
sua aparição muito útil, para não se dizer indispensável.
Por isso fizera-se conduzir à gare de Orleans.
Tomou bilhete para a estação de Meung-sur-Loire e achou-se só num
compartimento de primeira classe.
A irritação resultante da cena a que assistimos, acalmara-se pouco a
pouco.
O primeiro momento de cólera cedera o lugar às reflexões, e elas não
tinham nada de alegre.
O Duque principiava a recear que a sua explosão de cólera, não
denunciasse à senhora de Chaslin o fim do seu pensamento, e desse corpo a
suspeitas até então vagas.
Henrique de Chaslin, apesar das suas leviandades muito numerosas,
sentia pela Duquesa uma ternura que as paixões criminosas podiam fazer-lhe
esquecer por um momento, mas que nem por isso ficava menos viva no seu
coração.
Além disso, amava os seus filhos Rogério e Helena.
A sós com os seus pensamentos, enquanto a trepidação regular do
comboio, caminhando a grande velocidade, lhe sacudia o coração acontoado
num dos ângulos do "wagon", não teve remédio senão confessar a si próprio
que não procedia nem como bom pai, nem como bom marido, nem como
homem de bem, e procurar afugentar a imagem de Adriana.
Da censura das próprias ações, ao pesar e ao arrependimento, só havia
um passo.
O passo foi transposto.
O Duque, quando às oito horas e meia da noite se apeou em Meung, já
não era o mesmo homem que vimos afastar-se furioso do palácio de Chaslin.
A vivenda e o parque de la Roche-sur-Loire achavam-se a quatro
quilômetros de Meung.
O senhor de Chaslin tomou um trem e fez-se ali conduzir.
A sua chegada, que coisa alguma fazia prever, encheu de surpresa, como
é fácil de compreender, o guarda da propriedade e o caseiro.
As suas respeitosas perguntas, o senhor de Chaslin respondeu que se
resolvera de um modo repentino, e não se lembrara de expedir um telegrama.
Em todo o caso o seu quarto estava preparado, e a mulher do guarda fez
prodígios de zelo para improvisar uma refeição apresentável.
O Duque comeu pouco, e retirou-se logo para o seu quarto, dando,
primeiramente, ordem de não o irem incomodar sob pretexto algum.
Escaldava-lhe o sangue uma febre violenta, sentia a imperiosa
necessidade de respirar a plenos pulmões o ar fresco da noite.
As janelas davam para o imenso parque, ao qual se seguiam duzentos
hectares de mato também pertencente ao Duque, e que subiam pelas fraldas
da colina.
Henrique de Chaslin abriu uma das janelas e encostou-se ao parapeito.
A noite estava muito clara.
As massas de verdura, as poças de água cobertas de nenúfares, os vastos
arrelvados matizados de grupos de árvores e de caixas de flores, tomavam na
penumbra um aspecto de estranha melancolia.
O Duque deixando vaguear os olhares por aqueles horizontes
conhecidos, cujas menores particularidades ele adivinhava em meio das
trevas transparentes, foi vítima de uma singular alucinação.

LXXXVI - O FANTASMA

Henrique de Chaslin julgou ver deslizar umas sombras indecisas nas


alamedas que contornavam os tabuleiros de relva.
Estas sombras foram pouco a pouco tomando corpo, as suas formas
acentuaram-se, as suas feições tornaram-se nítidas e distintas, iluminadas por
um fulgor fantástico.
Foi primeiramente uma jovem esplendidamente formosa, uma jovem de
cabelos dourados, de grandes olhos azuis, cujo olhar in-definível, se cravava
nele, ao mesmo tempo que um sorriso de esfinge lhe pairava nos lábios
avermelhados.
Henrique reconheceu Adriana.
Percorreu-lhe as carnes um calafrio.
Molhou-lhe as fontes um frio suor.
A visão desapareceu, mas uma outra substituiu-a imediatamente.
Joana de Chaslin, encantadora como era aos vinte anos, passava graciosa
e casta, tendo impressas no rosto uma dignidade modesta, e uma angélica
doçura.
Ao lado dela brincavam duas crianças adoráveis, o irmão e a irmã,
Helena e Rogério.
O Duque estendeu os braços para eles; o seu coração batia com
violência, e a lembrança de Adriana apagou-se do seu espírito ao mesmo
tempo que se lembrava dos primeiros anos do seu casamento, dos primeiros
momentos de embriaguez da sua ventura.
A meiga voz de Joana, o balbuciar infantil das queridas criaturas de
quem era pai, soaram-lhe aos ouvidos.
Depois, no espaço de alguns segundos, decorreram anos, tornou a ver
Rogério soldado, Helena formosa e sedutora como o fora a mãe, finalmente
a própria Duquesa pálida, doente e condenada como estava.
Tornou então a volver a vista sobre si mesmo, e julgou severamente a
cena odiosa em que, com o coração devorado por um amor culpado, tomara
o partido de Adriana, e expulsara Mariana, a fiel servidora, que defendia
contra ele próprio a honra da casa.
— Ah! murmurou com uma voz abafada, infeliz de mim! Que fiz eu?

***

E do peito saíram-lhe soluços que o sufocaram.


Chorou por espaço de alguns segundos.
As lágrimas dilataram-lhe os nervos, restituíram uma tranqüilidade
relativa ao seu organismo sobre-excitado, e serenou-lhe um pouco a alma.
As visões tinham-se apagado, a escuridão envolvia novamente as
solidões do parque.
O senhor de Chaslin deixou a janela, e veio sentar-se junto de uma
pequena mesa, sustentando um candelabro de quatro velas.
A gaveta desta mesa encerrava tudo o que era preciso para escrever.
O duque tomou uma folha de papel para escrever, e com mão febril
traçou as seguintes linhas:
"La Roche-sur-Loire, sexta-feira à noite.
"Minha adorada.
"Faltam-me as forças para continuar uma luta que me despedaça o
coração. Já não resisto, já não hesito... Tudo o que quiser, quero-o, querê-lo-
ei também eu. Por muito louco e cruel que seja o seu ciúme, cedo, não sem
pesar, porque é uma ação criminosa que vamos cometer sacrificando uma
inocente que nos amava, mas cedo, porque assim é preciso que Joana seja
feliz, Joana, o meu único, o meu último amor...
"Suprima pois o obstáculo que se ergue entre nós... Quero consagrar o
resto da minha vida ao plano de lhe proporcionar uma felicidade absoluta.
"Que se faça sem demora o que deseja, e que não haja dentro em pouco
no palácio de Chaslin senão dois corações estreitamente unidos.
"Todo seu.
"Henrique de Chaslin."
O Duque tornou a ler esta carta que se ressentia das perturbações do seu
espírito, meteu-a num sobrescrito, escreveu o endereço de Joana de Chaslin,
no seu palácio no bairro de Saint-Honoré.
Em seguida meteu-se na cama, mas não conseguiu lograr um sono
sossegado.
A imagem daquela Adriana, a quem acabava de sacrificar
irrevogavelmente, julgava ele, apareceu-lhe durante toda a noite em sonhos.
Debalde instava contra ela; não conseguia afugentá-la.
Levantando-se logo pela manhã, desceu ao jardim onde os guardas
faziam a sua ronda.
Chamou um deles, e entregou-lhe a carta com ordem de a levar
imediatamente à mais próxima estação postal.
Após um almoço muito sumário, o Duque de Chaslin fez preparar um
faeton que sempre estacionava no palácio, e foi com o seu feitor visitar os
trabalhos que se estavam executando num dos seus domínios separado por
dez ou doze quilômetros de Ia Roche-sur-Loire.
Voltou pelas sete horas da tarde muito fatigado, almoçou rapidamente, e
voltou para o seu quarto de dormir.
A Carta escrita à Duquesa na manhã daquele dia, só podia no dia
seguinte ser entregue no seu destino.
Segundo todas as probabilidades, a senhora de Chaslin responderia
imediatamente, mas a sua resposta só no dia seguinte chegaria à Roche.
Grandes foram a surpresa e alegria do Duque, quando, ao acordar, lhe
apresentaram uma carta originária de Paris, que se tinha cruzado com a sua.
Reconheceu as garatujas aristocráticas da Duquesa, rasgou o envelope e
leu:
"Meu querido Henrique.
"Confessando-as com franqueza, e esforçando-nos para as reparar,
fazem-se ou não esquecer as nossas culpas?
"Reconheço as minhas, deploro-as, e arrependo-me.
"Compreendi, depois do Duque ter se retirado, que um ciúme sem
motivo me tinha feito perder a cabeça.
"Mariana deixou o palácio, e não nos separamos da menina de Lasseny.
"A pobre senhora tem um coração de pomba; temos obrigação de velar
por ela, e de substituir o melhor que pudermos os parentes que ela perdeu.
"Penso no seu futuro, e talvez lhe apresente dentro em pouco, meu
querido Duque, certos projetos que lhe dizem respeito, e se acham num
estado vago no meu espírito.
"Que tudo fique esquecido! Volte depressa, meu querido Henrique.
Espero-o com viva impaciência, e uma ternura sem limites.
"Joana de Chaslin."
Enquanto o Duque devorava esta carta, a expressão do seu rosto tornava-
se radiante.
Não somente a Duquesa já não suspeitava, já não acusava, como ainda se
declarava culpada, e pedia perdão.
As ordens dadas por ele num momento de cólera tinham sido
religiosamente cumpridas.
Mariana exilada do palácio, livrava-o de uma vigilância importuna e ia
ver-se novamente junto de Adriana, mais adorada que nunca.
Das exprobações que o Duque lançava a si próprio desde que ali chegara,
já nada restava, nem sequer uma fugitiva impressão.
Os remorsos dissiparam-se como um leve nevoeiro se dissipa aos
primeiros raios do sol.

***

Horas depois. Henrique de Chaslin fazia-se conduzir a Meung-sur-Loire,


e tomava o comboio que o devia trazer a Paris.
Depois da saída do amo, nenhum incidente se produzira no palácio.
Os criados pareciam felizes por já não sentirem o imperioso domínio de
Mariana, e atribuindo o seu livramento à menina Adriana, levavam às
nuvens a jovem.
A segunda criada de quarto, tornando-se em primeira criada de quarto
sem partilha nas suas atribuições, dera notícia da satisfação das
companheiras, e a Duquesa. tornando a cair sob o feitiço da loura Circe,
sentia-se contente.
Branca Adriana, ocultando o melhor que podia o orgulho de um tão
completo triunfo, tomava sobre si a direção de tudo, e mostrava aos criados
uma benevolência que não podia deixar de os chamar a partido.
No dia seguinte à retirada de Mariana, levantou-se muito cedo e saiu,
dizendo à criada de quarto que ela ia fazer as suas orações, mas que seria
curta a sua ausência.
Dirigiu-se efetivamente à Magdalena.
César de Fossaro, com o tipo e o fato de Pedro Rédon, esperava-a ao pé
da grade, ao lado de um coupé, cuja portinhola estava aberta.
— Sobe... disse-lhe com vivacidade empurrando-a para dentro do trem.
Entretanto também, deu ordem ao cocheiro que seguisse a passo o
boulevard Malesherbes.
— Fala, tornou ele quando o trem se pôs em movimento, estou
escutando.
Pedro Rédon manifestou a princípio uma inquietação manifesta, mas o
seu rosto sombrio iluminou-se quando a jovem chegou ao fim da narrativa.
— Os meus cumprimentos, exclamou. Isso é trabalhar como se deve!
Repito-te que és de uma grande força! Com a retirada de Mariana, ficas
senhora da casa. Mas o Duque?
— A senhora de Chaslin não duvida do seu pronto regresso.
— E tem razão! Se te ama como dizes, e como estou convencido, terá
pressa de te tornar a ver.
Branca fez um sinal afirmativo, acompanhado de um sorriso orgulhoso.
Pedro Rédon tornou:
— Trazes o que te pedi?
— Trago.
— O molde das duas chaves, o frasco e os grânulos?
— Eis os moldes e o mais.
A jovem tirou da algibeira um embrulho muito pequeno, envolto em
papel azul, e amarrado com uma fita cor de rosa.
— Aí está tudo, disse.
— Tens a certeza da fidelidade dos moldes?
— Toda a certeza.
— Então tornam-se inúteis novas saídas, salvo circunstâncias
imprevistas. Nada te impede que ponhas amanhã no quiosque, no lugar
combinado, o relatório das tuas impressões, e do que se tiver passado no
palácio.
— Depois de amanhã?
— Sim, não desprezes nenhum pormenor.
— Não esquecerei nada, não desprezarei coisa alguma.
— Às mil maravilhas! Eis-nos perto da rua Boissy-d'Anglais. Apeia-te e
volta para o palácio a pé. Eu fico com o trem.
Branca fez o que lhe ordenava o zarolho, e chegou rapidamente ao
arrabalde Saint-Honoré.

***

No momento em que transpunha o portão de entrada, o porteiro


entregou-lhe uma carta que acabava de chegar para a Duquesa.
A jovem examinou o grande sinete de lacre vermelho, e reconheceu as
armas de Chaslin, encimadas pela coroa ducal.
— É dele, pensou ela. e com certeza que anuncia o seu regresso.
Subiu ao quarto, tirou o chapéu e o leve pardessus de manhã, e bateu de
vagar à porta da Duquesa.
Joana acabava de despertar.
— Entre, disse ela. Ah! é a minha querida Adriana! Seja bem aparecida.
Que me trás? acrescentou vendo um papel nas mãos da jovem que
respondeu:
— É uma carta, senhora Duquesa. e se creio nos meus pressentimentos,
uma boa nova.
A Duquesa, tremendo, rasgou e envelope, leu as primeiras linhas e soltou
um grito de alegria.
A carta do senhor de Chaslin, provava-lhe até à evidência a inanidade
das suas primeiras suspeitas.
O Duque com certeza não sentia pela menina de Lasseny um sentimento
muito terno, porque consentia no seu afastamento.
— Não se enganava, minha filha, murmurou a Duquesa, são noticias do
senhor Duque, boas noticias...
— Voltará breve? perguntou Branca com um ar tímido. Joana não
recuando diante de uma piedosa mentira, respondeu:
— Sim, volta breve. Assim que ultimar os negócios que o chamaram a Ia
Roche-sur-Loire.
A falsa Adriana pensava:
— Que escreveria ele para tornar a Duquesa tão alegre? Anunciará ele o
seu regresso sem condições? Quero saber o que esta carta contém. Sabê-lo-
ei!
A senhora de Chaslin tinha o hábito de fechar toda a sua correspondência
num cofrezinho de cristal colocado sobre um dos móveis do seu quarto.
Abria-se este cofrezinho carregando num botão quase imperceptível,
oculto nas cinzeladuras elegantes do engaste de prata.
Branca, diante de quem a senhora de Chaslin o tinha aberto e fechado
por mais de uma vez, conhecia o segredo daquele botão.
Depois do almoço a Duquesa subiu ao seu quarto, e rogou à jovem que
lhe fizesse uma leitura.
Por volta das duas horas e meia, a campainha do palácio fez-se ouvir, e o
criado de quarto veio anunciar que o senhor de Logeryl esperava no salão.
A doente foi ter com ele, deixando só a dama de companhia.
Esta, assim que teve a certeza de que Joana não voltaria, correu ao
cofrezinho, fez atuar a mola, tirou a carta, e foi fechar-se no seu quarto.
O pulso batia-lhe naquele momento mais de cem pulsações por minuto.
Tinha o peito opresso.
Que ia saber?

LXXXVII - SOBRESSALTOS E DESENGANOS

A leitura da carta subtraída foi um raio.


O Duque parecia ter-se desprendido dela subitamente.
Esquecia-a, sacrificava-a; deixava à senhora de Chaslin a liberdade de a
expulsar.
Que se passava então?
Que reviramento súbito e impossível de prever se operara nu coração e
no espírito do senhor de Chaslin?
Abandonava-a realmente, ou tinha tenções de a procurar depois de deixar
o palácio?
Quando Branca concluiu, bastou um minuto de reflexão para lhe restituir
o sossego e a confiança.
— Não sabe que fico aqui... disse ela deitando à carta um olhar de
provocação. Se julga que a cadeia está quebrada, engana-se. Um só olhar
meu bastaria para lhe tornar a forjar os elos.
No fim de alguns segundos de novas reflexões, a jovem tornou:
— Devo ler a Pedro Rédon este bilhete, ou pelo menos a cópia. Depois
de amanhã, disse-me ele, poderá penetrar no palácio. Depois de amanhã
portanto lerá estas linhas.
Copiou rapidamente a carta, e tornou a meter o original no cofre donde o
tirara.

***

Na noite seguinte chegava Henrique de Chaslin.


A falsa Adriana estremeceu de alegria.
Os olhos do Duque, fitos nela com uma indizível e opressão de
embriaguez, provavam-lhe que a cadeia estava mais sólida que nunca.
Deixemos por um instante as peripécias a que devia servir de teatro o
palácio do arrabalde de Saint-Honoré, e roguemos aos nossos leitores que
nos sigam à avenida de Villars, a casa do Conde de Vergis.
O Conde e a Condessa tinham partido sucessivamente, com poucos
minutos de intervalo, a Condessa para a vivenda de Épines-Blanches, o
Conde para a Suíça, onde o criado de quarto havia de ir ter com ele depois de
executar as instruções cujo teor conhecemos.
Antes de deixar Paris, o senhor de Vergis expedira a Malpertuis o
seguinte bilhete lacônico, assinado unicamente com a inicial V.
"A Condessa está só nos Épines-Blanches.
"A sua vigilância deve principiar imediatamente.
"Um telegrama lhe dirá com que direção me deve escrever."
Lendo estas quatro linhas, onde se achava a prova de absoluta confiança
que inspirava ao Conde, o ex-advogado sorriu.
César de Fossaro informado do que se passava, respondeu:
— Isto vai o melhor possível! Quando for tempo de fazer deste lado
alguma coisa, fazê-la-emos.
Jacques Sureau vendo que o criado de quarto ficava no palácio,
tranqüilizara-se.
— A ausência dos amos há de ser, creio, de curta duração... A decepção
não se fez esperar...
No dia seguinte à retirada do senhor de Vergis, o criado de confiança
reunindo os outros criados, disse-lhes que estava encarregado de os despedir
a todos, de fechar o palácio, e de ir ter com o amo a uma terra que não
nomeava.
Aquilo foi um raio para Jacques Sureau,
— Despedem-nos! exclamou cheio de raiva.
— Não se despede ninguém. Apenas se dispensam serviços que se
tornaram inúteis. Tenho ordem de lhes pagar, e de dar a cada um de vocês
uma boa gratificação, prova manifesta de que o senhor Conde só com pesar
se separa dos seus criados.
Uma medida tão liberal punha termo a toda a recriminação. Ninguém
proferiu palavra.
— É preciso sair do palácio antes de anoitecer, acrescentou o criado de
quarto.
— Essa ordem não se pode entender com todos, observou Jacques
Sureau.
— Por quê?
— Como os cavalos ficam aqui, é preciso alguém para cuidar deles.
— Não lhe dê isso cuidado. Os cavalos vão ser conduzidos o Tattersal,
onde ficam em pensão na ausência dos donos.
— Mas, tornou o primo de Fernando Volnay, essa ausência não se
poderá prolongar indefinidamente. Não poderemos conservar esperanças de
que à volta do senhor Conde entremos outra vez para o seu serviço?
— A isso não posso responder, porque ignoro ao mesmo tempo a
duração da ausência, e as intenções do senhor Conde.
— Eu lho perguntarei, retorquiu Jacques Sureau.
— Como?
— Escrever-lhe-ei.
— Será difícil.
— Por quê?
— Porque ignoro eu próprio onde se acha o Conde.
— Mas o senhor vai ter com ele...
— Quer dizer que parto, e num lugar combinado acharei uma carta
indicando o sítio para onde me devo dirigir.
— Mas, nesse caso, exclamou Jacques com sombrio furor, quando uma
pessoa se retira sem dizer aonde vai, quando se afasta ocultando o rasto, dá-
se-lhe o nome de fugitivo!
— Que lhe importa? replicou severamente o criado de quarto. Não tem
mais que pedir o pagamento do seu ordenado, e a indenização que se lhe
concede. As ações do senhor Conde não lhe dizem respeito.
— É justo, murmurou o escudeiro entre os dentes mas em voz bastante
alta, para ser ouvido de toda a gente. Cada qual está no direito de ocultar a
sua vergonha como quer, ou antes, como pode.
— Que significam essas palavras insolentes? perguntou indignado o
criado de quarto.
— É inútil explicá-las... não tarda que se expliquem por si.
— Jacques, você é um mau sujeito! Não tolero uma palavra mais! Aqui
tem o seu dinheiro, vá-se.
— Bem, retiro-me, mas hão de ouvir falar de mim. Não digo adeus para
sempre ao palácio de Vergis! Digo-lhe até a volta.
E Jacques Sureau afastou-se. com o desprezo no coração e uma tristeza
de morte na alma.

***

Uma hora depois, os palafreneiros conduziam os cavalos ao Tattersal.


À noite, o palácio estava vazio.
O criado de quarto fechou as portas, entregou as chaves ao porteiro, a
quem ficava confiada a vigilância do palácio, depois tomou por seu turno o
caminho da gare, e partiu num expresso.
Jacques parecia um homem que acabava de perder a razão.
— Perdida! balbuciou ele gesticulando como um doido. Pois havia de
ficar perdida, e eu não poderia possuí-la, nem vingá-la? Ora adeus! Com
paciência tudo se consegue. E eu hei de conseguir o que pretendo.
E repetia: — Hão de ouvir falar de mim!
Alugou na avenida de Villars um pequeno quarto mobiliado, donde lhe
seria fácil vigiar o palácio do Conde de Vergis; depois, quando anoiteceu,
dirigiu-se ao teatro de Belleville.
Fernando Volnay continuava a representar os Beijos Mortais.
O duplo êxito da peça e do artista não diminuía, e a cifra muito elevada
das receitas, faziam supor que esse êxito ainda por muito tempo se
prolongaria.
Jacques subiu ao camarim de Fernando, e achou o seu primo tão alegre,
quando ele próprio estava sombrio e triste.
— Mas espera lá, que sucede, meu velho? perguntou-lhe apertando a
mão ao primo. Trazes uma cara de desenterrado! Sucedeu-te por acaso
alguma desgraça?
— Sucedeu.
— Que foi?
— A mais terrível que poderia suceder-me. Ela partiu!
— Quem? a Condessa?
Jacques fez um sinal afirmativo, e contou-lhe o que sofria.
— Muito bem, primo, volveu Fernando, depois de ter prestado a maior
atenção a esta narrativa, tenho pena de te ver sofrer; mas aqui para nós, não
me pesa essa resolução da Condessa. É uma circunstância feliz que põe
termo aos teus amores insensatos! Esses amores assim são fatais quando não
se é correspondido, e quando detrás da mulher amada há um amante ou um
marido...
— É possível, murmurou Jacques; mas sofro como um condenado...
— Esquece!
— Nunca poderei esquecer!
— Diz-se isso, mas sempre vamos esquecendo.
— Os outros vão esquecendo, mas eu é que não! listou condenado para
toda a vida, fica sabendo! Há momentos que não sei o que me retém que não
faço saltar a mioleira!
Fernando Volnay encolheu os ombros.
— Isso não passa de criancice, meu velho! Faze-te homem, com a breca!
Não te deixes absorver pelas luas idéias, olha que endoideces!
— Oh! sinto muito bem que sim! murmurou o ex-escudeiro.
— Procura um emprego de picador ou de ensinador de cavalos em outra
casa, continuou o comediante; o trabalho distrair-te-á...
Jacques Sureau já não ouvia nada.
— Se ao menos eu soubesse onde ela está... exclamou de repente com
voz abafada
— Isso não te dava resultado nenhum.
— Talvez, mas parece-me que sofreria menos...
Duas grandes lágrimas deslizaram dos olhos do sombrio namorado
escorrendo-lhe pelas faces.
Apesar do seu ceticismo habitual, Fernando viu aquelas lágrimas e
sentiu-se comovido.
— O que, pois é tão sério como isso! Choras por uma mulher!
— Amo-a tanto! se soubesses! Amo-a de uma maneira mortal!
— Uma paixão como os autores pintam nas suas peças. E infelizmente
um amor sem esperança... Enfim, sossega!... Desejavas saber onde está a
rainha?
— Como, a rainha!
— Pensava em Ruy Blas... Quero dizer a Condessa de Vergis.
— Oh! sim, desejava.
— Bem, promete-me seguir os meus conselhos e... O artista calou-se.
— E... repetiu Jacques ansioso.
— E prometo-te dizer para onde foram o Conde e a mulher. — Então
sabes?
— Não, mas hei de saber.
— Por quem?
— Pelos amigos do Conde.
— Conhece-os?
— Pudera!... Nessa roda tenho íntimos amigos. Tal qual me vês, meu
querido, vou em muito bom caminho.
— Com o teu espírito, o teu físico, e o teu talento, não me admiro.
— Lisonjeiro! Em suma, torno o cumprimento pelo que ele vale, e vou
habilitar-me para te satisfazer, com a condição que não ficarás na inação
como uma alma penada. A ociosidade é a mãe de todos os vícios... Procura
um emprego, trabalha, e no dia em que tiver as informações que tanto te
interessam, comunicar-te-ei.
— E será para breve?
— Sim, será para breve. Agora digo-te adeus. Eis o momento da minha
entrada.
— Queres cear comigo esta noite?
— Não me é possível.
— Por quê?
— Neste momento não resido em Paris, e sou obrigado, depois do
espetáculo, a tomar um trem, e ir de corrida embarcar no comboio dos
teatros da gare de Vincenes. Mas vem procurar-me aqui, e assim que tiveres
um emprego, dá-me a tua nova morada.
— Está combinado.
Os dois primos trocaram um cordial aperto de mão, e separaram-se.

***

Fernando correu para a cena, e por pouco que não perdeu a sua entrada.
Jacques Sureau confiando na palavra do artista, retirou-se com o coração
menos oprimido.
Quando seguia pelo corredor de saída, no momento de passar por
defronte do bilheteiro, viu-se obrigado a afastar-se para deixar passar um
sujeito que entrava e que olhava para ele com atenção.
Muito preocupado não levantou os olhos para o recém-chegado, e
continuou o seu caminho.
O recém-chegado não era outro senão o Barão de Fossaro.
César foi bater à porta do camarim de Fernando.
Como ninguém respondia, e a chave estava na fechadura, o Barão
entrou, fechou a porta após si, pôs o chapéu em cima de uma cadeira, e
sentou-se.
Enquanto esperava o regresso do artista, pôs-se a contemplar
distraidamente as gravuras e as fotografias que lhe ornavam as paredes, e em
seguida os diferentes objetos amontoados sobre a pequenina mesa por baixo
do espelho móvel.
Entre os frascos de carmim e alvaiade, os cosméticos e os pincéis, um
relógio atraiu-lhe a atenção.
Este relógio era um cronômetro de um preço elevado.
As iniciais F V, em diamante, enlaçavam-se sobre o esmalte da caixa; na
cadeia de ouro muito pesada, e de um precioso trabalho, pendiam berloques
de um grande valor.
Fossaro pegou no relógio e examinou-lhe sorrindo as menores
particularidades.
— Encantador! murmurou ele. Rico e do melhor gosto. Aposto que
Fernando Volnay tem notas do banco nas algibeiras. e diamantes em todos
os dedos!
O garoto deve sentir-se como o peixinho na água!
Um novo sorriso do Barão, sublinhando de um certo modo estas ultimas
palavras, indicou claramente o seu verdadeiro sentido.

LXXXVIII - O ARTISTA QUERIDO

O quinto quadro dos Beijos Mortais acabara naquela momento. A porta


do camarim abriu-se, e Fernando apareceu. Ao ver o Barão soltou uma
exclamação alegre, e avançou precipitadamente para ele, de mão estendida.
O senhor de Fossaro não se enganara.
No dedo anular desta mão brilhava um diamante da mais bela água.
César, contente com a sua perspicácia, sorriu pela terceira vez.
— Ah! é o querido Barão! exclamou o comediante com uma satisfação
verdadeira. É bonito isso, e não posso expressar-lhe qual é o meu
agradecimento pela sua amável visita!
— Há quase uma semana, e não se passou um só dia sem pensar no
Barão.
— Devia ir a minha casa, replicou César.
— Bem o quis, mas foi-me impossível.
— Então, por quê?
— Por certas razões de natureza muito particular.
— E o Barão vai bem?
— Às mil maravilhas! E o senhor também, espero.
— Eu também, excetuando um pouco de fadiga...
— Fadiga muito natural... O seu papel é esmagador. Segundo penso, já
está restabelecido das comoções do famoso duelo, cujo resultado tamanha
honra lhe deu?
— Se eu fosse o senhor Prudome. disse o comediante rindo, responder-
lhe-ia que este duelo é o mais belo dia da minha vida. porque me permitiu
vingar uma mulher a quem adoro!
— Decididamente adora então a Marquesa, porque neste momento só
dela se pôde tratar.
— Querido Barão, graças ao senhor graças aos seus acertados conselhos,
sou o mais feliz dos homens! Nada devo portanto ocultar-lhe... Muito bem,
idolatro a senhora de la Tour-du-Roy, e sou correspondido.
— Tem a certeza disso?
— Oh! toda a certeza.
— E provas?
— As mais completas que uma mulher bonita possa dar a um belo
rapaz...
— Os meus melhores cumprimentos, querido artista! Safa! é uma amante
que todos os Príncipes do mundo lhe poderiam invejar!
Fernando Volnay, empanturrado de orgulho, torcia o bigode sedoso,
empertigando-se com ares pretensiosos. Fossaro tornou:
— Vê a Marquesa todos os dias?
— Todos os dias e todas as noites. Vivemos juntos.
— Juntos! repetiu o Barão estupefato ante a incompreensível loucura de
Lazarine.
— Perfeitamente.
— No seu palácio da rua Murillo?
— Oh! Não, não em Paris...
— Então onde?
— Na estalagem da ponte de Creteil... É ali a nossa instalação provisória.
— Bravo! delicioso!... campestre e bucólico! Eis realizados os seus
sonhos.
— E até excedidos, querido Barão.
— Suponho que a Marquesa se ocupará seriamente de si; porque o amor
é coisa muito bonita, mas não basta.
— Deve falar amanhã com um autor em voga, que vai dar um drama no
Ambigu, e pedir-lhe para mim o papel principal da peça. O autor é da
intimidade da Marquesa, e por conseguinte caminhará por si.
— Resta a questão do diretor.
— A Marquesa conhece Chabrillart... Não lhe poderá recusar uma lx>a
escritura para mim.
— Sim, sim, o senhor há de ser Item sustentado! Então a senhora
Marquesa já não pensa no casamento de que se tratava muito a sério?
— De que casamento? perguntou Fernando.
— Com o Príncipe Emanuel de Brada.
— Não se fará.
— Lazarine rompeu as relações?
— Oficialmente; talvez ainda não, porque ela só tem falado comigo, mas
eu me encarrego de a resolver a um rompimento,
— Pois terá sobre ela um tal ascedente?
— Terei sobre ela todos os ascendentes possíveis, e verá dentro em
pouco, querido Barão, coisas que muita admiração, lhe hão de causar.
— Que coisas?
— Não me interrogue, quero deixar-lhe o prazer da surpresa, quero
somente dizer-lhe que visto fazer-me a honra de se interessar por mim, há de
ficar satisfeito... Dê-me agora notícias do outro Príncipe meu adversário...
— Está há dez dias entre a vida e a morte.
— Falou-lhe?
— Não... O médico não quer que ninguém se aproxime dele. Ordem
rigorosa.
— Numa palavra, não há grandes esperanças...
— Não há mesmo nenhuma. Fernando olhou para o relógio.
— Com a breca! exclamou. Estou aqui a conversar, e esqueço-me de me
despir. Tenho apenas o tempo indispensável.
E despiu-se à pressa.
— Deixo-o, disse Fossaro.
— Um instante mais... O senhor não me incomoda na minha
caracterização, e tenho um pequeno pedido a fazer-lhe.
— À sua disposição... De que se trata?
— Conhece o Conde e a Condessa de Vergis?
— Muito bem.
— Acabam de deixar Paris, e desejava saber para onde foram. O Barão
pôs-se a rir.
— Por que demônio quererá o senhor saber isso? Por acaso o senhor, não
contente com a Marquesa, está também apaixonado pela Condessa?
— Nunca a vi...
— Então?...
— Não é a mim que interesse a informação pedida.
— Quem se interessa então?
— Esqueceu-se do meu primo João Jacques Sureau?
— O Ruy Blas... Verme da terra namorado de uma estrela...
— Esse mesmo... O senhor de Vergis, quando se retirou, despediu toda a
criadagem. O meu primo está como doido... Pensava em fazer saltar os
miolos... Sosseguei-o prometendo-lhe que havia de saber para onde tinham
ido o Conde e a Condessa, e recorro ao senhor Barão para o cumprimento da
minha palavra.
— O que quer então o seu primo?
— Não quer coisa que tenha um vislumbre de senso comum; mas seria
bom impedir que ele fizesse alguma asneira...
— Nada tenho a recusar-lhe, meu querido artista, e hei de encontrar meio
de lhe fazer saber o que pretende.
— Nesse caso posso dar algumas esperanças a Jacques?
— Pôde, mas com uma condição...
— Qual?
— É não lhe dizer de quem vêm as informações. Onero que o meu nome
não seja proferido.
— Compreendo isso. Fique sossegado. Não sairá dos bastidores, e
ninguém suspeitará do serviço que me prestou.
— Vou já amanhã procurar informações. Agora um aperto de mão,
deixo-o.
— Tornarei a vê-lo brevemente?
— Sim. prometo-lhe.

***

César de Fossaro saiu do camarim, depois do teatro, e voltou à rua de


Provence.
A senhora de la Tour-du-Roy, no dia seguinte àquele em que se
entregara a Fernando Volnay, na casa da ponte de Créteil, acompanhara-o a
Paris, e enquanto ele ia representar nos Beijos Mortais, dirigira-se ao seu
palácio da rua Murillo.
Ali voltou misteriosamente pela portinha do jardim, subiu ao seu quarto
sem encontrar ninguém, e chamou pela criada de quarto.
A jovem, apesar da sua inquietação mortal, soubera ocultar aos outros
criados a ausência inexplicável da Marquesa.
— Ah! minha senhora, exclamou com uma expressão de alegria, cuja
sinceridade não se podia pôr em dúvida, como me sinto feliz por ver a
senhora. Há quarenta e oito horas que eu por assim dizer não vivia.
— Deve estar sossegada, minha filha, porque aqui estou, volveu
Lazarine rindo.
— Receava tivesse sucedido alguma coisa desagradável à senhora.
— Nada me sucedeu desagradável, pelo contrário.
— Efetivamente, a senhora Marquesa tem uma cara alegre, apesar de
estar um pouco mais pálida do que é costume.
Lazarine corou, e para ocultar a sua perturbação, perguntou com
vivacidade?
— Que visitantes se apresentaram ontem e hoje no palácio?
— O senhor Príncipe de Brada veio duas vezes, o senhor Túlio Leroux
só uma vez esta tarde.
— Que disseram ao Príncipe?
— Que a senhora Marquesa, muito incomodada, não recebia.
— E a meu pai?
— Que a senhora Marquesa tinha saído, e por certo voltaria tarde.
— A partir de amanhã as ordens são outras. Responderá às visitas que
fui passar alguns dias na minha residência da la Tour-du-Roy.
— A senhora parte para o campo? perguntou a criada de quarto. Então
leva-me consigo?
— Não, minha filha. Serve-me melhor estando aqui que além. Demais, a
minha vilegiatura será de curta duração. Meta numa mala de viagem as
coisas indispensáveis, e quando tiver acabado, mande buscar um trem...
— O trem deverá parar à portinha do jardim?
— Não. Que entre pelo contrário no pátio do palácio. Não oculto a
minha retirada.
Três horas depois. Lazarine munida de uma boa quantia, e de um livrete
de cheques, subia para o trem, com grande espanto da criadagem, que não
sabia explicar o singular capricho da senhora Marquesa, e dava ordem para
que a conduzissem ao caminho de ferro de Orleans.
No caminho modificou a ordem.
Foi para a gare de Vincenes que o cocheiro se dirigiu.
Às dez horas da noite Lazarine de la Tour-du-Roy chegava à ponte de
Creteil, e mandava conduzir a mala para o quarto que conhecemos, quarto
modesto, como os que eram que o amor metamorfoseava para ela num
paraíso.

***

Na tarde seguinte o Príncipe Emanuel de Brada apresentou-se, segundo o


costume, no palácio da rua Murillo, e perguntou pela Marquesa.
Por acaso a criada de quarto achava-se no vestíbulo com o criado grave.
Foi ela que respondeu.
— A senhora partiu ontem para o castelo de la Tour-du-Roy, pelo
comboio das oito e cinco minutos.
O senhor de Brada fez-se pálido.
— Partiu! exclamou. Porém ela estava doente!
— A senhora ia muito melhor. Um despacho do feitor motivou a partida
imediata da senhora.
— A sua ama não a incumbiu de coisa alguma para mim?
— Não, senhor Príncipe.
Emanuel de Brada levou a mão à fronte umedecida por um suor de
angústia, e balbuciou:
— Quanto tempo deve durar a ausência da senhora Marquesa?
— Não deve durar muito tempo... sete ou oito dias talvez.
— Se me resolvesse a escrever, aonde deveria dirigir a minha
correspondência?
— A vivenda de la Tour-du-Roy. por Olivet- Loiret.
— Obrigado, menina...
O Príncipe deu dois luizes à criada de quarto, e retirou-se profundamente
triste.
— Partiu assim! murmurou. Partiu sem me deixar uma palavra de
despedida, de recordação, depois do que me prometeu há oito dias apenas. É
singular, muito singular!
Os nossos feitores não esquecem certa conversa entre Lazarine e o
Príncipe, conversa no decurso da qual Lazarine e o Príncipe tomaram um
compromisso positivo, na véspera da primeira representação dos Beijos
Mortais!
O Príncipe, como então dissemos, tão frio na aparência, quanto capaz na
realidade de uma grande paixão, conservara-se senhor do seu coração até ao
dia em que, pela primeira vez, se encontrara com a senhora de la Tour-du-
Roy.
A partir daquele dia, deu o coração a Lazarine com fúria, com delírio,
com entusiasmo.
Aquele amor tornara-se sua existência. Todos os seus pensamentos se
concentravam num só: amar a Marquesa, e ser amado por ela!
A fria promessa do seu ídolo, quase desanimadora para qualquer outro,
bastava para o tornar feliz.
Como Lazarine lhe pedira um mês, ele fizera juramento de esperar com
paciência, mas aquela partida repentina transtornava tudo.
Mas seria possível esperar sem ver todos os dias aquela a quem amava,
sem lhe falar da sua paixão sempre em aumento?
Emanuel de Brada voltou à rua Murillo no dia seguinte, e ainda no outro
dia, e a resposta que recebeu duas vezes seguidas, não era de certo de
natureza que o consolasse e tranqüilizasse.
A senhora de la Tour-du-Roy não dera notícias suas.
Ao terceiro dia, o Príncipe, não podendo conter-se por mais tempo,
escreveu a Lazarine uma carta, em que transbordavam o amor e o
sofrimento, e dirigiu esta carta à vivenda de la Tour-du-Roy.

LXXXIX - O CÉU DO AMOR

Na mesma noite em que Fernando Volnay recebera sucessivamente no


seu camarim Jacques Sureau e o Barão César de Fossaro, um pouco depois
da uma hora, o artista e a Marquesa estavam sentados no seu pequeno quarto
da casa da ponte de Créteil, a uma mesa coberta de uma delicada ceia.
O dono do estabelecimento tinha ordem de se dirigir todas as manhãs a
Paris e comprar o que houvesse de mais raro em peixe e caça, as
preciosidades e os frutos mais dispendiosos.
Lazarine, também muito gulosa, tomava prazer em iniciar o amante nas
superiores delícias da cozinha científica.
Servia-o com a sua mão branca e fidalga.
Enchia-lhe o copo, ora de Pontet-Canet, ora de Braune Mouton, ora,
finalmente, do delicioso vinho de Chateau Malleret, que pode lutar em
aveludado, em aroma, e em delicadeza, com os primeiros produtos do
Bordelais, e uma das glórias da célebre casa Clossmann.
A orgulhosa Marquesa de le Tour-du-Roy, a altiva Lazarine. a quem o
nome burguês do tenente Marcel Laugier tão fortemente lhe atacava os
nervos em outros tempos, gostava daquela servidão de amor junto do
comediante Fernando Volnay.
Aquele belo rapaz achava, aliás, aquilo, natural, e deixava-se servir
sorrindo.
De repente a jovem, levantando-se para o beijar, perguntou-lhe:
— Representaste bem esta noite?
— O êxito não me abandonou, respondeu Fernando, mas não estava bem
disposto. Incomodaram-me durante toda a noite. Quase faltei a duas
entradas. Por felicidade o público adora-me, e não viu nisso senão motivos
de entusiasmo.
A Marquesa franziu as sobrancelhas.
— Recebeste visitas no teu camarim? perguntou ela cheia de
inquietação.
— Três ou quatro.
— Eram mulheres? Fernando sorriu.
— Lembraste- agora de teres ciúmes? perguntou encolhendo os ombros.
— Seria loucura! Pois não tens confiança em mim?
— Pode-se por acaso ter nunca confiança nos homens? És tão bonito!
fazes andar a cabeça das mulheres à roda...
— Há nisso alguma verdade, replicou o comediante com um modo
enfatuado, mas isso deve ser-te bem indiferente, porque eu só amo a minha
Lazarine.
— Entretanto não me respondeste. Tiveste visitas de mulheres?
— Não, palavra de honra!
— Quem recebeste então?
— Vários amigos que tu não conheces, exceto um, o Barão de Fossaro.
— O senhor de Fossaro é teu amigo? murmurou a senhora de la Tour-du-
Roy muito surpreendida.
— Meu amigo íntimo, apesar de ter sido uma das testemunhas do meu
adversário. A minha bela atitude, e o meu procedimento correto no duelo,
conciliaram-me todas as suas simpatias, toda a sua estima. É um belo
cavalheiro.com o qual me parece poder contar absolutamente.
— Espero que não lhe falasses em mim, acudiu Lazarine com
vivacidade.
— Falei até muito....
A jovem tornou-se cor de púrpura.
— Disseste-lhe que eras meu amante? perguntou ela com uma confusão
involuntária.
— Não tinha motivo nenhum para lhe ocultar. Tenho orgulho de ti, e não
suponho que te envergonhes do nosso amor...
— Com certeza que não. mas a opinião do mundo.
— Ora, que temos com a opinião do mundo! interrompeu Fernando.
Amamo-nos, somos felizes. Que nos imporia o resto? Tenho ou não tenho
razão?
— Tens razão, visto que te adoro.
— Tinha desejos de convidar o Barão para vir passar um dia conosco,
tornou o comediante.
— Aqui?
— Perfeitamente! É muito campesino o meu amigo César. Segundo ele
pretende, dolatra o campo.
— Mas não estamos instalados de modo que possamos receber um
homem de hábitos tão elegantes, e o Barão César que não está apaixonado,
zombaria de nós.
— Fiz essa reflexão e abstive-me.
— Convidarás o senhor de Fossaro mais tarde, em Paris.
— Então, para tua casa, porque a minha instalação em Belleville é pouco
brilhante.
— Em minha casa não, porque isso seria faltar a todas as conveniências,
mas no teu pequeno palácio.
Fernando sorria novamente, e disse torcendo o bigode:
— Então, positivamente, terei um palacete?
— É indispensável... Quando fores ator de primeira ordem num grande
teatro, com um belo ordenado, é preciso que possas receber os diretores, os
autores, os jornalistas, os artistas em voga... as celebridades de toda a
espécie... exceto as atrizes, bem entendido. Isto por-te-á depressa em grandes
alturas, e aumentará a reputação principiada pelo teu talento... Dir-se-á de ti:
"Fernando Volnay não é somente um comediante de primeira ordem, é um
homem chic, um gentleman!"
— E então, exclamou o ator entusiasmado, todos os diretores quererão
ter-me, e disputar-me-ão entre si! Não assinarei mais escrituras... Serei uma
celebridade, e levantarei dez ou quinze por cento da receita, o que
representará uma quantia considerável. Serei rico dentro em pouco.
— Pois tu pensas em dinheiro, quando tens amor?
— Ora o dinheiro e o amor dão-se perfeitamente, e é á minha querida
Lazarine que deverei tudo isto!
— E não serás ingrato?
— Nunca! prometo-te profunda gratidão...
— E amar-me-ás sempre?
— Toda a vida, e cada vez mais.
— E não amarás nunca outra mulher?
— Amar outra mulher! Isso seria lá possível? Só tenho um coração, que
tu possuis inteiro.
— Fernando, tu enlouqueces-me!
A ceia foi interrompida por um duo de beijos, depois a conversa tornou-
se mais serena.
— Amanhã, disse Lazarine, ou, antes, hoje, porque são mais de duas
horas, iremos a Paris juntos. Almoçaremos na casa de pasto. e em seguida
ocupar-me-ei muito a sério de ti, e prometo-te serei bem sucedida. Vamos
agora descansar, porque deves estar prostrado de fadiga.

***

Um pouco antes do meio dia, os dois amantes apearam-se da estrada de


ferro na gare de Vincennes, atravessaram a praça da Bastilha, e instalaram-se
para almoçar num gabinete do restaurante dos Quatro Sargentos da
Rochelle.
A refeição prolongou-se até depois das duas horas.
— É tempo de nos separarmos, disse então Lazarine. Vou dar os passos
necessários. Tornaremos aqui para jantar, às cinco horas e meia em ponto.
Dar-te-ei conta do resultado das minhas tentativas. Irás desempenhar o teu
papel em Belleville, e voltarei só à ponte de Créteil, onde te esperarei
pesando em ti...
— Está combinado...
Exatamente em frente do restaurante há uma praça de trens.
Fernando meteu Lazarine num trem, escolheu um bom charuto na sua
charuteira cheia das melhores marcas da Havana, o ator já não fumava senão
charutos a um franco e cinqüenta, acendeu-o e pisou com um pé ligeiro o
asfalto dos "boulevards."
Enquanto jardinava, ia dizendo consigo:
— É uma amante preciosa a tal Marquesinha! Tem sólidas qualidades!
Em menos de um mês terei o meu palácio. Quanto à escritura, é demasiado
grande fidalga para não o obter. Idolatra-me, é positivo! Farei tudo quanto
quiser desta mulher... Desposá-la-ei, se me der para aí o capricho, e uma vez
casado, terei as minhas extravagâncias nas sociedades mais chics.
Decididamente, a vida é bela! Vamos agora desfrutar os colegas.

***

Chegara ao "boulevard" de Saint-Martin.


Dirigiu-se ao café da Renascença, onde se reunia um bom número de
comediantes, e os camaradas aos quais pagou liberalmente absintos, biters e
chartreuses de todas as cores, assediaram-no com felicitações a propósito do
seu êxito nos Beijos Mortais.
Estas felicitações serviram na maior parte para disfarçar uma inveja
feroz!
O ator conhecia isto às mil maravilhas, mas o seu amor próprio nem por
isso estava menos lisonjeado.
Lazarine, depois de deixar Fernando, foi sucessivamente a casa do ator
dramático em voga, do qual o teatro do Ambigu se preparava para montar
um drama de grande espetáculo, depois ao gabinete do jovem diretor, e, em
seguida, ao escritório do Figaro, onde pagou a inserção das seguintes linhas:
"Deseja-se comprar nos arredores do bosque de Bolonha, no bairro da
alameda do Trocadero, ou de Ia Muette, um palacete bonito, com pátio e
jardim, mobiliado artisticamente; o palácio deve compreender um vestíbulo,
uma saleta com casa de fumar, uma casa de jantar, dois quartos de dormir,
gabinetes de toilette. quartos para criado, cocheiras e cavalariça. Propostas à
Marquesa Laza, rua Murilo, nº..."

***

Desde as cinco e um quarto que Fernando de Volney esperava à janela


do gabinete onde o almoço tivera lugar.
Às cinco e meia em ponto, parava uma carruagem defronte do
restaurante, e apeava-se a senhora de la Tour-du-Roy com o rosto radiante.
Subiu rapidamente a escada, transpôs como um furacão o limiar do
gabinete.
— Vitória! bradou ela. deitando os braços em volta do pescoço de
Fernando.
— Foste bem sucedida? perguntou Fernando.
— Pois não havia de o ser, trabalhando por ti?
— Chabrilhart escritura-me?
— A lua escritura está assinada e estrear-te-ás no papel principal da peça
de X, cujos ensaios vão principiar de um momento para o outro...
— A minha escritura está assinada? repetiu o comediante estupefato
diante de um resultado tão rápido.
— E cm duplicado, e trago-te... Só falta a tua assinatura.
— E os honorários?
— Adivinha.
Fernando refletiu durante alguns segundos, e respondeu:
— Não tenho nada de modesto, e conheço o meu grande talento.
— Oh! sim, sim, tens um grande talento! interrompeu Lazarine. Mais
que talento, tens gênio.
— Sim. terei gênio, tornou o artista sorrindo: mas por enquanto sou bem
pouco conhecido, e o meu nome não faz ainda as receitas que mais tarde
fará!... Se fosse oferecer-me, mesmo depois do meu triunfo de Belleville,
dar-te-iam o muito quatro mil francos. Pudeste obter oito mil?
Lazarine fez beicinho.
— Pois eu dava-me ao incômodo de pedir tão pouca coisa? replicou ela...
temos melhor que isso!
— Então dez mil?
— Não acertaste.
— Afinal, quanto?
— Olha!...
E a Marquesa de la Tour-du-Roy apresentou ao comediante os dois
exemplares de uma escritura em devida forma, estipulando que ele,
Fernando Volnay, pertencia por dois anos ao teatro do Ambigu na qualidade
de primeiro galã, que todas as vezes que entrasse em qualquer peça, o seu
nome ocuparia um lugar distinto no alto do cartaz, e que teria dois meses de
licença, e receberia dezoito mil francos de ordenado anual, pagável por
duodécimos.
A multa estava fixada em vinte mil francos.
Fernando não podia acreditar no que via.
A escritura concluída em tais condições parecia-lhe fabulosa,
inverossímil, impossível.
Passado o primeiro momento de estupefação, exclamou:
— Chabrillart assinou isso!!
— Bem vês.
— Mas é um sonho!...
— É uma bonita realidade. Assinarás amanhã este exemplar, e levá-lo-ás
ao teu novo diretor, que esperará a tua visita à tarde...
— Ah! minha querida Lazarine, murmurou o artista apertando
ternamente a jovem contra o coração... és uma fada... possuis uma vara
mágica!.
— Não sabias? retorquiu a Marquesa beijando-o.
— Uma vara mágica! dissera Fernando Volnay.
Era simplesmente uma vara de ouro posta pelo Demônio Ouro no serviço
do Demônio Amor.
Isto demanda uma breve explicação.
Vamos dá-la.
Lazarine depois de visitar o autor em voga, e obtido dele a certeza de que
nada tinha a recusar-lhe, dirigira-se ao teatro Ambigu como sabemos.
O seu bilhete de visita produziu o efeito de Sésamo abre-te! dos contos
árabes.
O nosso amigo Chabrillart conhecia a Marquesa, e apreciava a sua
beleza como fino conhecedor.
Mulher bonita e grande fidalga, reunia todos os dotes possíveis para que
não a fizessem esperar.
A porta do gabinete diretorial abriu-se logo diante dela, e o jovem diretor
acolheu-a, risonho, encantado, diligente.
Graças ao seu aprumo de mulher da grande sociedade, Lazarine parecia
muito à sua vontade, mas no fundo o passo singular que ia empreender
perturbava-a afinal.

XC - A PROCURADORA POR AMOR

A senhora de la Tour-du-Roy formulou o seu pedido.


O jovem simpático diretor escutava-a sorrindo.
Fora a Belleville ver os Beijos Mortais.
Reconhecia em Fernando Volnay muito talento, muito futuro.
Já antes da visita de Lazarine, ele fazia tenção de o chamar para o seu
teatro, nas melhores condições possíveis, já se vê, mas como perfeito
cavalheiro, fingiu ceder unicamente aos desejos da jovem, e ao portador
sobre a casa Henry Leroy 41, rua Taibout.
— Senhora Marquesa, disse, a sua recomendação é onipotente. Escrituro
o seu protegido por dois anos.
— Em que condições?
— Em condições muito belas, que hão de por certo ultrapassar os seus
sonhos mais ambiciosos. Os seus honorários anuais serão de quatro mil
francos.
Lazarine sorriu por seu turno.
Meia hora depois levava a escritura que sabemos.
É verdade que deixava em poder do diretor um cheque à vista e ao
portador sobre a casa Henry Leroy 41, rua Aibout.
Este cheque, do valor de vinte e oito mil francos, representava a
diferença entre os oito mil francos oferecidos, e os trinta e seis mil francos
pedidos.
Os miríficos honorários de Fernando Volnay deviam ser pagos em parte
com o dinheiro da Marquesa, sem que ele próprio pudesse suspeitar, porque
Chabrillart prometera a mais absoluta discrição.

***

O principezinho de Castel-Vivant não estava absolutamente fora de


perigo.
Desde o dia do duelo, Antonino Frébault, como médico e como amigo,
vivera em contínuas inquietações.
Heitor não saía de um estado de pesada sonolência, não ouvia nada, não
reconhecia ninguém, e não podia proferir uma só palavra.
Entretanto, o doutor principiava a ter esperanças, mas, querendo tirar
bom partido de uma cura que lhe faria tanto maior honra, quanto mais
maravilhosa lhe parecia, calava as suas esperanças, e o boletim diário não
indicava nenhuma melhoria notável no estado do ferido.
Os numerosos amigos do Príncipe raras vezes deixavam de vir de tarde
tomar conhecimento daquele boletim, e inscrever-se no registro ad hoc.
Todos os dias, logo em seguida à vista do doutor, chegava uma jovem ao
palácio.
Aquela jovem era Lucilia Gonthier, que depois de devorar aquele
boletim, apenas traçava este nome, ou antes este sobrenome: A Toutinegra,
A pobre Lucilia estava muito transtornada.
O seu meigo rosto empalidecera.
Nos olhos encantadores já não apresentava o costumado brilho.
Rodeava-lhe as pálpebras um círculo lívido.
Já não cantava a Toutinegra.
O luto do seu coração emudecera-lhe a voz de cristal.
A tia Verdier, a ex-formosa hervanária não sabia a que atribuir uma
melancolia tão visível, que Lucilia se esforçava debalde por negar, e cuja
causa ela obstinadamente ocultava.
A pobrezinha amava! Amava o Príncipe com todas as forças do seu
jovem coração, e da sua alma casta!
Certa manhã, chegando um pouco mais cedo do que era costume, ao
palácio da rua Francisco I, achou-se na presença de Antonino Frébault que
saia.
O médico reconheceu-a logo e leu na sua simpática fisionomia o
desgosto e os cuidados que a atormentavam.
— Vem saber notícias do seu querido protetor, minha filha? perguntou-
lhe.
Lucilia quis responder.
A comoção sufocou-lhe as palavras na garganta.
Apenas pode fazer um sinal afirmativo, e as lágrimas rebentaram-lhe.
Como sabemos, Antonino Frébault era o melhor homem do mundo,
apesar dos seus singulares costumes de estróina excessivo e de cético
endurecido.
Sentiu-se impressionado pela comoção tão comunicativa da jovem.
As suas pálpebras umedeceram.
Tomando Lucilia pela mão, puxou-a um pouco de lado.
— Ora vamos lá, pequena, disse-lhe, coragem! Não chore!
— Coragem, senhor doutor! murmurou a lourinha, isso é que eu já não
tenho...
— E se eu lhe desse boas notícias?
A Toutinegra ergueu com vivacidade os olhos azuis, onde brilhava um
raio de alegria, que as palavras do médico tinham acendido.
Repetiu:
— Boas notícias?
— Sim, minha filha.
— Verdade, verdade?
— Afirmo-lhe.
— Está então fora de perigo o Príncipe?
— Isso seria dizer muito, e não me atrevo a proferir uma sentença tão
formal, mas espero hoje muito mais que esperava ontem, e isto, como bem
deve compreender, é um progresso considerável... Há muitas probabilidades
de que as melhoras principiadas avancem rapidamente, e nos conduzam à
convalescença.
Lucilia pôs as mãos, balbuciando:
— Ah! senhor doutor, quão feliz me torna!
— Dentro em pouco será muito mais feliz!
— O Príncipe recuperou o uso da palavra?
— Se ele tentasse falar, comprometeria a sua cura... O silêncio primeiro
que tudo, eis a minha receita...
— E não se esquece do que lhe pedi? do que teve a bondade de me
prometer?
— De mostrar o seu nome ao Príncipe?
Lucilia pôs-se muito corada.
— Sim, isso respondeu.
— Repito-lhe a promessa de não me esquecer. Quando o Príncipe puder
falar sem perigo, o primeiro nome que ouvir há de ser o seu.
— Oh! senhor doutor, que bondade!
— Quem não há de ser bom para com a senhora?

***

Pela primeira vez ao fim de tantos dias, sentiu o coração desoprimido, e


respirava desafogadamente.
César de Fossaro, como Lucilia, e como Genoveva, não deixava um só
dia de vir saber de Heitor.
O estado estacionado do Príncipe, que parecia não poder decidir-se nem
a viver, nem a morrer, causou no Barão uma inquietação profunda, mas,
apesar do tempo lhe parecer muito longo, a paciência impunha-se.
Fazendo da necessidade virtude, couraçava-se de filosofia, e dizia
consigo, que ainda calculando tudo pelo pior. não teria mais que recomeçar o
que já uma vez tentara sem resultado.

***

Haviam decorrido dois dias depois do regresso do Duque 1 [enrique ao


palácio do faubourg Saint-Honoré.
O senhor de Fossaro possuía as chaves, executadas na oficina clandestina
da rua de Lappe, conforme os moldes ministrados por Branca.
Tinha pressa de saber o que se passava em casa do senhor de Chaslin.
Por isso resolveu verificar, sem mais demora, se a falsa Adriana de
Lasseny tinha posto no quiosque do jardim as informações pedidas.
Acabavam de dar duas horas da manhã.
Perto da meia-noite, César instalara-se a uma mesa de jogo numa das
sociedades a que pertencia, e como a sorte o favoreceu, ganhou uns
quinhentos ou seiscentos luizes, apesar do seu jogo ser muito moderado.
Saindo da sociedade, fez-se conduzir ao ângulo da rua Boissy d'Anglas e
da avenida Gabriel.
A carruagem parou ao longo do muro de suporte do terraço do Círculo
Imperial.
Apeou-se e continuou o seu caminho a pé.
Um céu nublado, sem estrelas e sem lua, tornava a noite muito sombria.
Os bicos do gás lutavam mal com a densa escuridão dos Campos Elíseos
desertos.
Apenas, de tempos a tempos, se viam brilhar e desaparecer no mesmo
instante, como dois pirilampos, as lanternas de algum trem que se dirigia
para a praça da Concórdia.
Chegando em frente da grade que do lado da avenida, fechava o parque
em miniatura do palácio Chaslin, Fossaro moderou o passo. e aproximou-se
da portinha que havia nesta grade.
Olhando para a direita e para a esquerda, certificou-se de que nenhum
transeunte retardado pisava a calçada da avenida Gabriel.
Tranqüilizou-o o silêncio absoluto.
No fim de um segundo, tirou as duas chaves da algibeira, escolheu a
maior, e introduziu-a na fechadura.
O molde entregue por Branca habilitara o operário a realizar um
verdadeiro trabalho de precisão.
Ao primeiro impulso a chave girou logo.
A portinha cujos gonzos a jovem algumas horas antes untara de azeite,
abriu-se sem ruído.
O Barão olhou outra vez em roda, e pôs o ouvido à escuta.
Continuava o silêncio e a solidão.
Entrou empurrando a porta após si.
O plano topográfico, cujas linhas tinham sido traçadas por Branca,
haviam-se-lhe gravado na memória e servia-lhe de guia em meio das trevas.
Chegou sem dificuldade ao pavilhão rústico situado à esquerda.
Segundo julgava, a chave devia estar na fechadura; as suas previsões
foram confirmadas.

***

César entrou.
Era absoluta a escuridão.
O visitante noturno tirou da algibeira uma caixa de fósforos.
Acendeu um.
Este clarão fugitivo deixou-lhe ver o móvel onde estavam as duas jarras
de louça de Delft indicadas por Branca Adriana, e contendo plantas
artificiais rodeadas de musgo.
O barão aproximou-se do móvel, deixou cair o fósforo que se apagou, e
meteu os dedos no musgo de uma das jarras.
Nada achou.
Fez segunda tentativa.
Foi então mais feliz.
Sentiu entre os dedos um papel dobrado em quatro.
O senhor de Fossaro pegou no papel, introduziu-o na algibeira do colete,
e saiu do quiosque com tanto mistério e prudência como lá entrara.
Deixando o jardim, tornou a descer a alameda, e meteu-se na carruagem
que o esperava no ângulo da rua Boissy d'Anglas.
Chegando pelas três horas da madrugada a sua casa na rua de Provence,
fechou-se no gabinete de trabalho que conhecemos, tirou da algibeira o papel
misterioso, abriu-o e examinou-o.
No alto, havia estas três linhas em estilo telegráfico:
"Duque de volta".
"Tudo sossegado".
"Eis a cópia da carta do Duque à Duquesa."
Por baixo destas poucas palavras, Branca tinha efetivamente copiado a
carta de Henrique de Chaslin (datada de la Roche-sur-Loire, e que
expusemos à vista do leitor.)
Fossaro leu com profunda atenção.
Encolheu os ombros imperceptivelmente, e estendia o papel para a
chama para o destruir, quando de repente o seu rosto mudou de expressão.
Reconsiderou, e sentando-se a sua secretária, iluminada por uma
lâmpada de refletor, tornou a ler, mas, desta vez, estudando as palavras,
pesando as frases.
À medida que progredia neste trabalho mental, a sua pupila única
chispava, ao mesmo tempo que uma alegria singular lhe iluminava a
fisionomia expressiva.
— E ia eu queimar este bilhete sem o tornar a ler! murmurou. Estava
idiota! Que tolices a irreflexão faz cometer! Isto nas minhas mãos é uma
égide que me protege em caso de infelicidade, e torna impossível toda a
acusação!
"Temos aqui mais do que é preciso para fazer cair a cabeça do Duque de
Chaslin, mas a cópia não basta. Tenho precisão do próprio original, da carta
assinada!
"Tenho precisão, e obtê-la-ei."
Após este curto monólogo, César pegou numa folha de papel e numa
pena.
Em seguida, tendo o cuidado de disfarçar a letra, traçou estas poucas
palavras:
"Preciso do original da cópia remetida. Indispensável e urgente. Estar em
dia com tudo. Queimar este."
— Se Branca puder obedecer-me! Ficarei com muita força! Dobrou o
papel e fechou-o num dos compartimentos da sua carteira.
No dia seguinte entrava como na véspera no jardim, depois no pavilhão,
e ocultava o seu bilhete debaixo do musgo da jarra de velha louça de Delft.

XCI - CONTINUAÇÃO

Dez dias haviam decorrido depois dos últimos fatos que acabamos de
expor aos olhos dos nossos leitores.
Resumamos num pequeno número de linhas, antes de prosseguir na
nossa narrativa, os incidentes de alguma importância que tenham sobrevindo
durante estes dez dias.
As notícias de teatro parecem-se com as notícias políticas, espalham-se
com uma inverossímil rapidez.
A escritura de Fernando Colnay, anunciada em dois ou três jornais, era
conhecida de toda a cidade de Paris.
O ruído desta escritura aumentava o êxito dos Beijos Mortais.
Grande número de curiosos queriam ver o futuro grande ator antes da
sua estréia parisiense.
No dia seguinte levavam às nuvens a futura estrela, trabalhando deste
modo para a reputação do artista.
A peça do autor em voga, tinha obtido no Ambigu um grande sucesso de
leitura.
Os ensaios haviam principiado.
Fernando Volnay tomava magistralmente posse do seu papel, e não via
em roda de si senão cortesãos, aduladores e invejosos, estes escusado é dizê-
lo, não se mostravam menos zelosos em cumprimentar o sol nascente.
As respostas à nota inseria nos jornais do high-life pela Marquesa de la
Tour-du-Roy não se tinham feito esperar.
Lazarine, como não tinha mais que escolher, comprara e pagara de
pronto, em nome do ator, um pequeno palácio muito garrido e mobiliado
artisticamente, situado na vila Montespan, avenida d'Eylau.
Fernando Volnay, ao pôr-se à mesa com a amante, encontrara debaixo do
guardanapo os títulos de propriedade.
— Isto é muito bonito da tua parte, disse ele à Marquesa beijando-a com
expressão de vivo reconhecimento.
E acrescentou baixinho:
— Muito bonito... oh! muito bonito! mas isto era-me devido! A posse do
palacete foi imediata, porque o comediante só tinha de levar de Belleville o
seu guarda roupa.
Combinou-se que se faria o banquete de inauguração alguns dias depois,
e que a senhora de la Tour-du-Roy anunciaria, presidindo à ceia a, sua
ligação com Fernando Volnay.
O pouco, e não diremos de pudor, mas de respeito humano, que ainda
restava à viúva do Marquês Roberto, incitava-a a odiar tanto quanto lhe era
possível, o momento de se tornar pública a confissão do seu rebaixamento.
Até então ocultava-se em casa do amante, só indo à rua Murillo buscar
as suas cartas, e continuando a mandar responder às visitas, que ela estava
nas suas terras do Loiret.
O Príncipe Emanuel de Brada vinha todas as tardes receber a resposta
que a Marquesa não anunciava o regresso.
Estas respostas e o silêncio de madame de la Tour-du-Roy, a quem
sabemos que escrevera, eram para ele punhaladas.
Torturavam-no a dúvida e o ciúme.
Tornava-se num suplício a sua vida. — Quero acabar com isto! disse ele
finalmente, sentindo-se sem forças. Esta ausência de Lazarine parece uma
fuga, por conseguinte, uma ruptura... Preciso, primeiramente, uma
explicação... cm seguida, tomarei uma resolução.
E o senhor de Brada partiu para a vivenda de la Tour-du-Roy.

***

Sabemos o que ele devia ali averiguar.


Não tinham visto a Marquesa!
Nem a esperavam!
Foi um raio!
O Príncipe voltou a Paris entregue aos mais sombrio desespero.
Não perdoava, nem àquela que zombara dele, nem ao cúmplice
desconhecido, de uma traição de que ele já não duvidava!
Sentindo a sua existência para sempre perdida, só pensava em vingar-se,
e morrer depois.
Enquanto um príncipe perecia assim por causa dela. Lazarine mendigava
beijos aos lábios de Fernando Volnay.
Entretanto a senhora de Vergis instalara-se na vivenda dos Épines-
Blanches.
A velha ama Magdalena. casada com Pedro, o guarda da residência,
recebera-a chorando lágrimas de alegria.
Esta mulher era dedicada em corpo e alma à Condessa, que ela chegava
quase a considerar como filha.
Em presença desta afeição tão profunda, tão indestrutível. Maria sentiu
as suas pálpebras umedecerem-se de lágrimas de enternecimento.
Tinha a certeza de encontrar em Magdalena a discreta confiança, sem a
qual não podia passar, porque se lhe tornaria impossível dissimular a
prenhês, sob pena de pôr em perigo a vida da criança, e a sua própria vida.
A pobre ama recebeu com terror a terrível nova..
Mal podia dar crédito ao testemunho dos próprios sentidos, tão
impecável e imaculada julgara até então a Condessa.
Mas, esta amarga desilusão não abalou a sua dedicação, da qual a
senhora de Vergis nunca duvidara.
Pela fatalidade das circunstâncias. Magdalena depois de confidente,
tornou-se cúmplice.
Maria quis ver o amante.
A anciã consentiu em facilitar uma entrevista.
Arnoldo de Trois-Monts. prevenido, veio secretamente aos Épine-
Blanches beijar as mãos da Condessa. e jurar-lhe eterno amor.
Ninguém duvidou da visita, salvo o Barão de Fossaro, informado do que
se passava pelos agentes de Malpertuis.
A senhora de Vergis recuperava a esperança. Dizia consigo:
— Tudo acabará bem! Deus teve piedade de mim. Concedeu-me a
impunidade...

***

Jacques Sureau, consumido pela sua paixão de fera e macerado pelo


pesar, tinha, contudo, segundo os conselhos de Fernando Volnay, procurado
uma colocação.
Entrara para um dos grandes comerciantes de cavalos nos Campos-
Elyseos, Tony Monts.
O primo recompensara-o da sua obediência, prometendo-lhe estar dentro
em pouco habilitado a dizer-lhe em que lugar se achava a Condessa.
Genoveva Lenien, a ex-amante oficial do Príncipe Totor, conformava-se
estritamente com as instruções do Barão de Fossaro.
Dirigia-se todos os dias ao palácio da ma Francisco I, apesar da sua
certeza absoluta de não poder se aproximar do ferido, pois que as ordens do
doutor Frébault não admitiam exceção alguma.
Não obstante, isto deixava-a muito sossegada.
Acreditava cegamente na palavra de Fossaro, e este afirmara--lhe que
dominava a situação, e que o sucesso final não podia ser posto em dúvida.
No palácio de Chaslin não havia nada de importante a mencionar.
A situação de expectativa dos nossos personagens não sofrerá alteração
alguma, somente a paixão do Duque Henrique aumentava de hora para hora,
o que se julgaria impossível.
De dois em dois, ou de três em três dias, Adriana depunha no quiosque
algumas linhas anunciando que não havia nada de novo,
Não pudera remeter a Fossaro o original da carta escrita pelo Duque à
sua mulher, ou antes não se atrevera a isso.
— É preciso esperar um pouco.escrevia ela àquele a quem chamava
Pedro Redon, a desaparição imediata daquela carta, como não podia ser
atribuída senão a mim, comprometer-me-ia de um modo muito grave,
irremediável talvez.
Fossaro dizia consigo:
— Pois paciência! Mas hei de obter a carta, ainda que tenha eu mesmo
de me apoderar dela, porque não tarda que dê o golpe decisivo.

***

Dois dos nossos antigos conhecimentos, Daniel Gaillet e Sta-Pi,


procuravam ao mesmo tempo o rasto de Fanny Vernaut, a infanticida de
Courbevoie.
Daniel Gaillet queria tornar a encontrá-la, para, por ela chegar a Pedro
Carnot, o assassino de sua filha.
Sta-Pi aspirava ao mesmo resultado, com a idéia muito simples de
ganhar e embolsar a quantia prometida pelo inspetor da segurança.
Quanto a Bijou, o agente do escritório Malpertuis, cuja demissão era
certa em caso de insucesso, — Bijou relatava-se.
Lucilia Gonthier, a herdeira dos doze milhões de Nova York. continuava
incógnita.
Como nenhum indício o vinha auxiliar, Bijou principiava a desesperar
deveras.
Sabemos que a Toutinegra dirigia à administração da Salpetrière lima
petição para que a sua tia cega viesse passar algumas semanas junto dela.
Não podia tardar o depoimento do pedido, que, por certo, havia de ser
favorável, pois que não havia motivo para recusa.
Apesar de ser grande a sua tristeza naquele momento, parecia-lhe que a
presença da septuagenária no seu quarto, daria origem a algum movimento, e
não a deixaria entregar-se por muito tempo a um mesmo pensamento.
Finalmente, a carta esperada chegou.
Fora feita a concessão pedida.
Lucilia, quase alegre, tomou um trem, foi buscar a tia, e instalou-a junto
de si.
A cega esquecia a sua enfermidade, e abençoava Deu- e a sobrinha.
***

Deixando o palácio de Chaslin, Mariana Gilberto não se afastara de


Paris.
Fazia assim o que dissera à Duquesa.
Alugara uma água-furtada numa velha casa da rua de Miromenil e estava
quase sempre a chorar com saudades daqueles a quem amava, e assustando-
se com as desgraças que via iminentes sobre eles.
De dia, saía o menos possível.
À noite, vinha passar por diante do palácio, interrogando com o olhar,
por cima dos altos muros, as janelas da sua querida ama.
Depois dirigia-se para os Campos-Elíseos, tomava pela avenida
Gabriel, e parava em frente do jardim no qual ela tantas vezes passeara
outrora a Helenazinha, e que fazia nela agora o efeito do paraíso perdido.
Escrevera à Duquesa algumas linhas humildes e respeitosas, dando-lhe a
sua morada, e suplicando-lhe que advogasse a sua causa junto do senhor de
Chaslin, e lhe obtivesse autorização de voltar ao palácio.
Joana, em risco de irritar o Duque, falou-lhe de Mariana, e solicitou
ardentemente um perdão completo.
Henrique de Chaslin respondeu serenamente, mas no tom de uma
resolução inabalável:
— Bem sabe, minha amiga, quanto desejo ser-lhe agradável em tudo.
Custa-me afligi-la com uma recusa, mas tenho obrigação de não ceder. Essa
mulher faltou-me ao respeito, quase lançou entre nós a discórdia. Não me
fale dela, peço-lhe...
Estava perdida, sem apelo, a causa de Mariana Gilberto.

***

Dez dias depois daquela noite em que pela primeira vez César de
Fossaro transpusera a entrada do quiosque para tirar o bilhete de Adriana, o
doutor viera mais cedo do que era costume ao palácio da rua Francisco I.
Havia quarenta e oito horas, a febre do principezinho diminuía de um
modo muito sensível.
Dissipava-se pouco a pouco a prostração.
A ajuizar pelas aparências, Heitor ia bem depressa tornar a si.
Chegava finalmente o período de reação tão ardentemente esperado pelo
doutor.
Daquele momento em diante, podia considerar-se o principezinho quase
fora de perigo.
A cura completa tornava-se quase uma questão de tempo e de paciência,
salvo o caso de uma recaída, o que era pouco provável.
Antonino Frébault, ao atravessar o vestíbulo, perguntou ao criado de
quarto como havia passado, o Príncipe, a noite.
Como recebesse resposta satisfatória, apressou-se a entrar no quarto do
doente.
Henrique não dormia. Ao ruído da porta que se abriu, e dos passos do
doutor pisando o espesso tapete, os olhos do Príncipe, velados ainda na
véspera, embaciados e sem expressão, fixaram-se no recém-chegado.
— Vitória! exclamou o médico radiante aproximando-se do leito, os
diagnósticos não me enganavam, e posso gabar-me de haver feito uma bela
cura!
Os lábios do mancebo agitavam-se.
— Olá! querido Príncipe, nem uma palavra! continuou Frébault com
vivacidade, pondo-lhe a mão na boca. Falará quando eu lhe der licença! Até
lá, caluda, se faz favor! Lembre-se de que respondo pelo amigo à faculdade,
aos amigos, e a grande número de caras lindas que tomam pelo senhor vivo
interesse! Deixe-me primeiramente verificar a intensidade das melhoras,
auscultá-lo, e levantar o curativo que tem no ferimento. Depois
conversaremos, se for possível.
Heitor Bégourde achava-se num estado de fraqueza extrema.
Havia quinze dias que não lhe chegara nenhum ruído aos ouvidos.
A voz de Antonino Frébault causava-lhe uma espécie de atordoamento.
Com o auxílio do criado de quarto e da enfermeira, o doutor procedeu
sem perda de um minuto ao sério exame que lhe parecia necessário.
Encostou o ouvido ao lado esquerdo do peito, e fez respirar <> Príncipe
por muitas vezes.
Depois disto levantou o curativo.
Descerrou-lhe os lábios um belo sorriso, e esfregou alegremente as
mãos.
Estava inteiramente cicatrizada a ferida, e na alvura da pele sobressaía
um laivo cor de rosa.
Antonino Frébault puxou uma cadeira, sentou-se à cabeceira do leito, e
disse apertando a mão do Príncipe:
— Vai tudo muito bem! Levanto as ordens que dei. Pode, pois, com a
minha autorização proferir algumas palavras, poucas, e em voz muito baixa.

***

Ao tempo que se passava esta cena no quarto de Heitor, travava-se o


seguinte diálogo entre Lucilia e a sua tia cega:
— Lembras-te, Lucilia, do sonho que uma vez te contei? Lucilia soltou
uma gargalhada argentina:
— Ah! lembro-me! Mas os sonhos não passam de sonhos, não passam de
desvarios de imaginação.
A tia cega pôs-se muito séria, e ponderou com ar grave:
— Há coincidências que não podem deixar de fazer impressão.
— O que diz, minha tia? Explique-se. As suas palavras e o tom em que
fala, parece envolverem um mistério!
— Envolvem por certo, mas não tenho infelizmente o condão de explicar
mistérios, sejam eles quais forem. Têm, porém, o coração pressentimentos, e
os meus são todos em teu favor.
— Então o que lhe dizem os seus pressentimentos? perguntou Lucilia, a
um tempo duvidosa e cheia de curiosidade.
— Voltemos primeiro aos sonhos.
— Então pelo que vejo a tia passa a vida a sonhar?
— Quem se acha separada, por assim dizer, das coisas deste mundo, que
há de fazer senão andar pelas regiões do devaneio?
— E então que tem sonhado?
— Coisas tristes que te hão de magoar, e coisas extraordinárias que te
são favoráveis.
— Sou toda ouvidos.
— Imagina que sonhei que o alto personagem que te fazia a tua fortuna,
se acha perseguido por muitos inimigos que lhe armavam terríveis ciladas,
tentando um deles, de ferro em punho, contra a sua existência.
Lucilia fez-se pálida redobrando de atenção.
— E afinal, perguntou, conseguiram os seus nefandos intentos?
— Sim, minha filha, sonhei que o via ensangüentado, envolvido em
ligaduras, com a palidez da morte no rosto.
O coração de Lucilia palpitava com força.
Extraordinária coincidência, o sonho da velha tia condizia com a terrível
realidade do que há tempo sucedia ao Príncipe.
— E morria afinal?
— Se assim sucedesse, os meus sonhos não te seriam por forma alguma
favoráveis.
— Continue, continue, minha tia.
— Apesar de não acreditares em sonhos, já te interessas pelos meus?
— Interessam-me, volveu Lucilia, fingindo indiferença e
despreocupação, como me interessam no teatro os dramas em que há
punhaladas e tiros, lágrimas e sangue, intrigas e ciladas.
— Pois seja como for, o que mais sonhei foi que o tal Príncipe de conto
de fadas, saiu vencedor de todas as tentativas... para se vingar daqueles
mesmos que o queriam exterminar, casava contigo.
— Sempre essas idéias! exclamou Lucilia. O muito bem que me quer, e
que a faz devanear por esse modo, e sonhar de noite com certas coisas que
não passam de visões absurdas.
— Pois sim, vai dizendo isso, mas a verdade é que os meus sonhos
tendem sempre para o mesmo fim, e se tivesse muito dinheiro, se tivesse
milhões, não duvidava apostar que hás de casar rica, muito rica.
— Ah! nesse caso, exclamou Lucilia rindo, também eu apostava; se a tia
fosse rica, também eu o era, e não casava pobre. Olhe, tia, deite-se, e em
todo o caso, já que não pode ter outra consolação, vá-se consolando de me
ver casar rica, mas em sonho.

XCII - O RENASCIMENTO

Voltemos a Heitor e a Antonino Frébault. Heitor quis levantar-se.


— Não! não! disse o médico com vivacidade; permito-lhe falar, mas até
nova ordem, proíbo-lhe todo o movimento!
— O meu ferimento foi muito perigoso, doutor, murmurou o Príncipe
com uma voz fraca.
— Foi quase mortal, replicou Frébault. Cheguei a desesperar da sua
salvação por muitos dias. Para se salvar foi preciso quase um milagre...
— R, prosseguiu Heitor, o milagre fez-se. Por-me-ei bom de todo?
— O demônio! tenho esperanças disso! Posso até afirmar que respondo
pelo seu restabelecimento completo, mas com uma condição...
— Qual?
— Que siga à risca os meus conselhos e as minhas receitas...
— Prometo-lhe... Quero viver...
— Quando fala, sente-se incomodado?
— Um pouco... aqui...
E o Príncipe levou a mão ao peito.
— Havemos de fazer desaparecer esse sofrimento.
— Há muito tempo que estou entre a vida e a morte?
— Há quinze dias, meu pobre amigo! Há quinze dias que está sob um
regimem de pílulas, de drogas de toda a espécie, e de caldo de frangão que
lhe introduziam por entre os dentes para o sustarem. Não era muito
substancial o regimem. Mas o vigor há de voltar depressa. Para o pôr de pé
bastam-lhe costeletas em sangue, e o velho Pontet-Canet... do seu Pontet-
Canet-Classmann...
— Veio muita gente saber de mim?
— Ah! pudera! Verá a prova de que os seus amigos não o esqueciam. As
folhas expostas no vestíbulo para receberem os nomes todos os dias se
enchiam.
— Vinham só homens? perguntou Heitor com alguma hesitação.
— Mulheres também, muitas mulheres. As amiguinhas novas pensam no
senhor tanto como os velhos amigos. Em primeiro lugar Genoveva, Cuja
aflição incomodava quando os boletins eram mais graves.
— Pôde citar-me alguns outros nomes?
— Posso, pelo menos, citar-lhe um, e até lhe devia dar o primeiro lugar,
porque tenho razões muito especiais para não o esquecer, e a jovem a quem
pertence parece-me muito interessante.
Uma ligeira vermelhidão coloriu as faces pálidas do Príncipe, que
balbuciou:
— Ah! trata-se de uma jovem?
— Sim, de uma jovem adorável, de um anjinho louro, cujo sincero pesar
me comovia profundamente, apesar do meu ceticismo habitual. Aquela não
representava a comédia do desespero, afianço-lhe, e a pobrezinha chorava
verdadeiras lágrimas. Prometi-lhe que havia de falar dela...
— O seu nome! o seu nome, doutor? exclamou com uma voz menos
abafada, mas mais trêmula.
— Chama-se Lucilia, disse-me ela, por alcunha a Toutinegra.
— Lucilia! repetiu o ferido, cujo coração parecia querer saltar-lhe do
peito. Veio muitas vezes? Doutor, fale, responda-me. Não me faça penar.
A agitação do doente inquietou o médico.
— Oh! oh! querido Príncipe, exclamou, se as minhas novas devem assim
atuar sobre o senhor, calo-me, e não saberá mais nada por hoje.
— Pelo contrário, meu bom doutor, fale sem receio! replicou o jovem
com uma entoação suplicante, pondo as mãos. O que acaba de me dizer, é
para mim o mais eficaz dos medicamentos...
— Pois muito bem, mas sossegue.
— Sim, sim, vou sossegar. Olhe, aqui estou perfeitamente sossegado...
— Fale mais baixo...
— Falarei muito baixo, mas responda-me! Perguntava-lhe se Lucilia
tinha vindo muitas vezes?
— Ora essa! todas as manhãs, exceto no primeiro dia em que veio à
noite, e soubera, não sei como, do resultado fatal do duelo. Queria ser
admitida junto de si, tratá-lo, velar à sua cabeceira. Tive o maior trabalho
deste mundo em lhe demonstrar (pie era impossível a realização do que
desejava. Os soluções da pobre pequena oprimiam-me literalmente o
coração.
— Adorável criatura! murmurou o Príncipe, cujas pálpebras se
umedeciam.
— E, continuou o doutor, repito-lhe, que de então para cá tem vindo
todas as manhãs... Tranqüilizei-a um pouco há dois dias. Se visse a alegria
dela! Ah! ali está uma pequena verdadeiramente grata ao que fez em favor
dos seus!
— Em favor dos seus! repetiu o Príncipe que não compreendia.
— Mas, sim, senhor... o senhor, disse-me ela, garantiu a existência de
uma sua parenta cega e velha...

***

Heitor adivinhou o motivo da tocante mentira de Lucilia; a doce


comoção que experimentava, aumentou ainda mais.
— Frébault, disse ele após um instante de silêncio, o senhor é meu
amigo...
— Afirmou-o, e espero que não duvidará.
— Não, não duvido, e a prova é que vou confiar absolutamente no
senhor.
— A sua confiança não será mal empregada..
— Há pouco disse-lhe que queria viver...
— É muito natural! O senhor é moço, rico, ama o prazer, a vida é bela!
— Se morresse hoje, não seria o prazer, a fortuna, o luxo, de que teria
pena. Tudo isto me deixa muito indiferente. Quero viver, porque amo.
— Ora! o senhor ama Genoveva. É sabido!
— Amar essa garota! Ora adeus! replicou o Príncipe. Ah! não torne a
pronunciar o seu nome neste quarto onde ainda soa o nome tão puro, tão
meigo de Lucilia.
Antonino deu um pulo na sua cadeira.
— A Toutinegra! murmurou estupefato. O senhor ama a Toutinegra!
— Com todas as forças da minha alma, com todas as veras do meu
coração.
— Contudo, ela não é sua amante?
— Oh! doutor, está a blasfemar! Respeito Lucilia tanto quanto a amo.
Ela não será minha amante, ela há de ser minha mulher.
— Que me está a dizer! exclamou Frébault profundamente assombrado.
— A verdade, doutor, mas uma verdade que só o senhor deve saber até
ao dia em que Lucilia consentir em ser Princesa de Castel-Vivant. Confiei o
meu segredo à afeição do doutor, e espero que o guardará.
— Quanto a isso, dou-lhe a minha palavra!
— A partir de hoje, tornou o de Bégourde, renuncio a esta existência
febril e ruidosa, em que se toma o prazer pela felicidade, e a fantasia pelo
amor... Assim que o doutor me puser completamente de pé, darei um festim
de despedida à minha vida de rapaz, e no dia seguinte entrarei na categoria
das pessoas a quem a fortuna impõe grandes deveres e os cumpre. Terei uma
mulher adorada... Terei bebês, se Deus permitir. Farei deles homens úteis, e
o doutor fará homens sólidos.
— Safa! replicou Frébault, pelo menos far-lhe-ei diligência...
— E há de conseguir! Agora escute-me. Persiste em deixar à porta todos
os visitantes?
— Já se vê, porque receio por sua causa a fadiga. — E essa ordem deve
durar?
— Mais alguns dias.
— Submeter-me-ei documente às ordens, mas peço-lhe que faça uma
exceção.
— Quanto a Lucilia, não é assim?
— Exato.
— Tome cuidado... Receio que a entrevista tão ansiosamente desejada
lhe seja funesta... O senhor vai bem, mas ainda não está bom... Toda a
comoção viva ê perigosa. Uma imprudência pode comprometer os resultados
adquiridos.
— Não imagine semelhante coisa, doutor. Ver Lucilia é para mim o
renascer.
— Sim, sim, talvez tenha razão...
— Tenho razão, com toda a certeza...
— Bem, vê-la-á.
— Obrigado, doutor, mas isto não é ainda tudo. Conto com o senhor para
a prevenir... para me trazer.
— Ah! demônio?
— Recusa?
— Não, pelo contrário, consinto. Com uma condição, porém. — A
conversa que acabamos de ter fatigou-o muito... A alteração das feições é
visível. São-lhe indispensáveis neste momento o sono e o repouso. Farei o
que espera de mim. e fá-lo-ei de boa vontade, mas só depois de amanhã. Está
combinado?
— Assim é preciso! disse Heitor suspirando.
— Bravo! ei-lo razoável! Depois de amanhã será feliz, e já hoje vou
estabelecer-lhe um regimem que lhe restituirá as forças.
Antonino Frébault escreveu a receita de uma poção para tomar de hora
em hora.
Depois retirou-se, prometendo voltar naquela mesma tarde.
Heitor, quando ficou só, não se lembrou sequer de se abandonar ao sono
reparador que o médico lhe prescreveu.
Ainda antes de ter absorvido uma só colher da poção, sentiu o vigor
renascer como por encanto.
Lucilia viera todos os dias, portanto era porque o amava...
Bastava-lhe esta certeza para ser feliz, e a felicidade é remédio soberano.
Quando à tarde o veio ver, Antonino Frébault verificou que as melhoras
tinham feito em poucas horas grandes progressos.
— Estou encantado consigo, disse, e depois de amanhã cumprirei a
minha promessa.
Naquela noite, Heitor teve sonhos deliciosos!
O doutor tomara nota da morada da Toutinegra.
No dia seguinte, logo pela manhã, fez-se conduzir à rua Julien Lacroix,
em Belleville.
A jovem estava em casa, e trabalhava enquanto chegava a hora de ir
saber de Heitor.
A tia cega dormia no quarto próximo.
Frébault bateu de vagar à porta.
Lucilia levantou-se para ir abrir.
Quando o médico entrou tornou-se muito pálida, soltou um grito
abafado, e levou a mão ao coração que parecia saltar-lhe do peito.
— Valha-me Deus, que tem menina? perguntou o recém-chegado com
vivacidade.
— Receio que me traga a notícia de alguma desgraça... A pobre
Toutinegra cambaleava.
O doutor amparou-a, e apressou-se a responder:
— Não, não, minha querida filha, nada receie. Sou pelo contrário,
mensageiro de boas novas...
Um fraco rubor tornou a tingir as faces de Lucilia. Deslizaram-lhe então
pelas faces duas grandes lágrimas, ao mesmo tempo que um sorriso lhe
descerrava os lábios.
— Ah! que medo me meteu, balbuciou. Parece-me que ia morrer.
— Felizmente, ei-la bem viva e- tranqüila.
— Sim, senhor doutor, mas fale baixo, rogo-lhe... A minha velha tia está
ali, no outro quarto... descansa... não queria perturbar-lhe o sono... Entre,
sente-se, e diga-me depressa o que o traz aqui.
— Venho confirmar-lhe a esperança que lhe dava há dois dias. O
Príncipe está em via de restabelecimento.
— Ah! quão feliz me torna!
— Dentro em pouco sê-lo-á ainda mais, porque não disse tudo... Espere
um alegrão.
— Falou em mim ao senhor de Castel-Vivant?
— Sim, minha querida filha, como lhe tinha prometido... Sabe que foi a
primeira que veio, e voltou todos os dias...
Lucilia baixou os olhos.
O tom rosado das faces tornou-se-lhe de um vermelho muito vivo.
O doutor continuou:
— Foi o Príncipe que me deu a sua morada... É ele quem aqui me
manda... e que a quer ver.
— Ver-me! repetiu a órfã.
— Sim, e este desejo tão natural, deve-o compreender tanto melhor que a
menina foi a primeira a insistir num grande choro, para ser admitida junto
dele.
— É verdade, balbuciou Lucilia, mas quão diferente era então a situação!
O meu passo imprudente e tolo tinha uma desculpa. Queria velar um
moribundo. Hoje, graças a Deus, e graças ao doutor, o Príncipe está curado!
Oh! Sinto-me feliz, muito feliz, e não duvida, por certo, mas já não tenho o
direito de entrar no seu palácio.

***

Antonino Frébault olhou para a jovem cheio de admiração. Maravilha-o


a modéstia daquela jovem tão pura e tão amante.
— Compreendo a delicadeza dos seus escrúpulos, e aprecio-a.
respondeu, mas devo combatê-la... A sua presença junto de um ressuscitado.
é mais necessária que nunca...
Foi agora a Toutinegra quem cravou um olhar estupefato no doutor.
— É necessária a minha presença? disse ela.
— Sim, menina.
— Em que? Não compreendo.

XCIII - UMA IRMÃ DE CARIDADE

— Quer a salvação de Heitor, não é assim? Tornou Antonino Frébault.


— Daria a vida para salvar o Príncipe, volveu a jovem com simplicidade.
— Pois muito bem, a vida do Príncipe ficaria comprometida se "ao fosse
ao palácio...
Lucilia fez-se pálida e balbuciou:
— Há pouco afirmou-me que o perigo já não existia...
— De certo, mas pode renascer... O princípio de uma convalescença
exige infinitas cautelas. Um grande desgosto comprometeria tudo, e talvez
de um modo irremediável. Heitor não quer viver senão para a senhora.
Recuar a vê-lo seria recusar-lhe a vida...
— O senhor de Castel-Vivant disse-lhe isso? murmurou a jovem levando
ambas as mãos ao coração.
— Disse-me, pedindo para vir aqui buscá-la... Prometi... Acredita
firmemente que a menina irá lá amanhã. Acompanhar-mc--á, não é verdade?
porque, repito-lhe, a sua recusa, faria no Príncipe um ferimento tão cruel, tão
perigoso talvez, como o ferro do seu adversário.

***

O amor, o pudor, o orgulho, travavam violento combate no coração de


Lucilia.
Foi o amor quem venceu.
A adorável criança não devia dedicar-se até ao fim por Heitor?...
Não cumpriria ela além disso um dever levando-lhe o testamento em que
ele lhe legava toda a sua fortuna?
De repente disse:
— Senhor doutor, irei.
— É um anjo, e o Príncipe tem muita razão em amá-la. Quer que venha
buscá-la com a minha carruagem?
— Não, porque se haviam com certeza admirar de nos verem sair juntos.
Deus sabe o que suporiam! O único bem que possuo é a minha reputação.
Tenho-lhe apego.
— E aprovo-a... Convém-lhe ir ter comigo a minha casa? Todos podem
ir à casa de um médico.
Lucilia fez rim sinal afirmativo.
— Aqui está a minha morada... continuou Frébault dando o seu bilhete
de visita à Toutinegra. Esperá-la-ei amanhã às dez horas em ponto.
— Serei pontual.
Neste momento ouviu-se uma voz no segundo quarto. A septuagenária
cega chamava Lucilia.
— É a minha tia cega que desperta... murmurou a jovem.
— Deixo-a, até amanhã...
— Até amanhã, senhor doutor... Frébault saiu.
A cega saltara da cama.
Abrira a porta tenteando.
— Estás ai, pequena? perguntou ela aparecendo no limiar.
— Sim, minha tia.
— Conversavas com alguém? Parece-me que te ouvi falar.
— Não se enganava, um empregado do armazém para onde trabalho,
veio avisar-me de que teriam amanhã precisão de mim.
— Então almoçarei só?
— A tia Verdier lhe fará companhia.
— Como a tua voz está alegre esta manhã, pequena!
— É porque estou contente. A minha amiga doente de que lhe falei...
sabe?
— A tua amiga da rua de Bellechasse?
— Não, a outra. Acabo de ter notícias suas. A sua convalescença
começa. Há agora certeza de a salvar.
— Ah! tanto melhor. Demais, não admira que tudo hoje corra bem.
Sonhei.
— Outra vez! exclamou Lucilia.
— Sim, e é por assim dizer a continuação dos meus sonhos passados.
Lembras-te? O Príncipe que te amava.
— Lembro-me, lembro-me, exclamou a órfã muito perturbada,, e desta
vez o que sonhou?
— Que o Príncipe fora ferido quase mortalmente, nela mau homem dos
meus outros sonhos.
A Toutinegra estava extremamente comovida. A cega continuou:
— Mas à força de o amares, curava-o depressa, e ele depois de
restabelecido, tomava-te por mulher.
— E nenhum novo perigo o ameaçava? perguntou Lucilia ofegante.
— Nenhum.
A jovem soltou um suspiro de alívio. Os sonhos da tia iam-se tornando
para ela artigos de fé. Pobre Lucilia.
As horas lentas do dia. sucedeu uma noite de insônia quase completa.
A entrevista iminente, causava à pobre menina uma comoção fácil de
compreender, misto de embriaguez e de terror.

***

Finalmente rompeu o dia, e depois chegou o momento de se Por a


caminho.
Lucília recomendou a tia à ex-formosa hervanária,, tirou de um móvel o
testamento do Príncipe, e dirigiu-se a casa do doutor Frébault, cuja
carruagem a esperava.
No palácio da Rua Francisco I tudo ia pelo melhor
Os criados apresentavam cara alegre, e já não cochichavam como se
costuma fazer no quarto de um doente.
Falava-se alto, ria-se, a atmosfera de tristeza que pesava naquela casa
dissipara-se como por encanto.
O boletim da véspera tranqüilizara os numerosos amigos do Príncipe.
Sabia-se já que as ordens rigorosas do doutor seriam levantadas de um
momento para o outro.
Os amigos íntimos preparavam as suas melhores felicitações.
César de Fossaro e Genoveva Leinen tinham-se reunido, como bem se
imagina, para amaldiçoar o doutor, cuja ciência lhes arrebatava, até nova
ordem, os milhões da herança cobiçada, mas o Barão, sempre senhor de si,
lembrando-se da próxima desforra, tranqüilizou Genoveva, e preparou o seu
novo plano de batalha.
Fazia muito boas tenções desta vez de proceder por si. e não deixar nada
ao acaso nem ao imprevisto.
No dia seguinte, um pouco antes das dez e meia, Genoveva e Fossaro,
vindo cada um do seu lado. encontraram no vestíbulo.
A uma pergunta do César, o criado de quarto respondeu:
— As melhoras continuam. Os amigos do Príncipe serão admitidos junto
dele por espaço de alguns minutos esta tarde.
— Então, disse Genoveva. voltaremos às quatro horas, não é verdade,
Barão?
— Sim, minha amiga, se a essa hora lhe convier. O criado de quarto
interveio:
— Perdão, exclamou ele com uma delicadeza um pouco empertigada. A
senhora incomodar-se-ia inutilmente, as ordens só para os homens serão
levantadas.
— Quer dizer que não poderei ver o Príncipe? perguntou Genoveva com
uma voz trêmula de cólera.
— Sim, minha senhora.
— Ê por que não me conhece?
— Tive a honra de perfeitamente a reconhecer, replicou o criado
inclinando-se
— Sabe então que deve haver uma exceção em meu favor?
— Só sei uma coisa, minha senhora, é que recebi uma ordem e hei de
fazê-la respeitar.
— Uma ordem do Príncipe?
— Não, do doutor, que vem a ser a mesma coisa.
Genoveva pôs-se a rir ruidosamente; mas as suas risadas soavam falso.
— Sabe que isto vai parecendo esquisito, exclamou ela em seguida. É
preciso que o doutor esteja doido para me proibir a entrada, concedendo-a
aos amigos de Heitor! Que lhe parece, senhor Fossaro?
— Parece-me que o doutor tem talvez as suas razões, respondeu César
que não queria comprometer-se diante dos criados.
— Pois muito bem, tornou Genoveva, zombo perfeitamente das razões
desse penetra! As ordens do doutor são uma insolência que não tolero!
Quero entrar! Tenho o direito de entrar! Hei de entrar, e é já.
E a jovem, dizendo isto, dirigiu-se resolutamente para a primeira sala,
cuja porta se via entreaberta no fundo do vestíbulo O criado de quarto
atravessou-se diante da porta.
— Peço-lhe, minha senhora, não se obstine, seria debalde.
— Porventura, seria capaz de empregar a força para eu não passar?
— Terei muita pena, mas se for preciso...
— Vamos ver se se atreve a levantar a mão para mim.
— Atrever-me-ei... peço-lhe que não duvide.
— Ora então vamos a ver.

***

Genoveva, arrebatada pela raiva, ia por certo travar luta corpo a corpo,
com o criado de quarto fiel às ordens recebidas.
Não teve tempo.
Abriu-se a porta envidraçada, e Antonino Frébault apareceu, conduzindo
Lucília vestida com muita simplicidade, e com o rosto coberto com um véu
muito espesso.
— Parece estar furiosa, minha querida Genoveva! disse ele num tom
muito tranqüilo; que se passa?
A Toutinegra ao ver Genoveva, reconhecera imediatamente a
companheira do Príncipe no teatro de Belleville, por ocasião da primeira
representação dos Beijos Mortais.
O coração oprimiu-se-lhe, esperou, toda trêmula, a resposta que aquela
mulher ia dirigir ao médico.
A cortesã, interrompendo o movimento principiado, voltou-se para a
recém-vindo.
— Ah! chega a propósito, doutor, exclamou ela, e estimo vê-lo!
— Que tem a dizer-me, querida beldade?
— Tenho a perguntar-lhe qual é o sentido das ordens ineptas que o
doutor dá!
O doutor sorriu...
— Se fossem ineptas, seriam destituídas de senso comum, replicou, mas
creio-as muito razoáveis... Proíbo-lhe a entrada no quarto do Príncipe,
porque tenho a convicção de que a conversa fatigaria o ferido...
— Mas isso é absurdo, é insensato!
— Então, por quê?
— Bem sabe que os meus direitos são indiscutíveis! Conhece, como
Paris inteira, a minha profunda afeição pelo Príncipe. Bastante tenho
chorado esse fatal ferimento que o afastava de mim, e podia arrebatar-mo! já
tenho sofrido bastante com esta separação, e é no momento em que eu
poderia finalmente sentar-me à sua cabeceira, cuidar dele, velar sobre ele,
demonstra-lhe a minha dedicação, que o senhor me afasta como uma
estranha, a mim, que sou a melhor, a sua mais querida amiga. Repito-lhe que
é insensato!
Cada uma das palavras de Genoveva, entrava como um ferro cm brasa
no coração de Lucília.
Aquela mulher falava da sua ternura, da sua dedicação, dos seus direitos,
no momento em que a pobre Toutinegra levava ao Príncipe o seu ingênuo
amor!
Lembrou-se por um momento de se afastar sem voltar sequer a cabeça, e
fugir daquela casa onde a esperava uma tão pungente humilhação, uma tão
dolorosa ferida.
Queria por força fazê-lo. pelo menos assim o julgava; não teve forças
para isso.
Antonino Frébault não se abalou com a impetuosa tirada de Genoveva.
— Minha querida filha, respondeu, Deus me livre de duvidar das boas
intenções; o que me parece é que neste momento o seu zelo seria pernicioso,
em vez de ser útil.
— Portanto, mantém as suas ordens no que me diz respeito?
— Absolutamente.
— Então, continuou a cortesã com os dentes cerrados, o doutor promove
um rompimento entre mim e o Príncipe?
O doutor encolheu os ombros.
— Palavra, disse o doutor, parece-me, minha querida filha, que perde a
cabeça! Pois eu tenho alguma coisa com os seus pequenos negócios? Em que
me vem falar a propósito de urna ordem do médico, cuja oportunidade, só eu
sou o único a apreciar? Ah! está aí. Barão! bons dias, Barão! continuou
Frébault estendendo a mão a César. Se é paciente, e se deseja muito ver o
nosso amigo esta manhã, não se afaste. Depois da minha visita eu o
mandarei chamar...
Depois o doutor, voltando-se para Lucília, acrescentou:
— Venha menina.
Genoveva ia responder sem dúvida, mas ficou silenciosa e aterrada ao
ver Frébault pegar na mão daquela jovem vestida com simplicidade, em cuja
presença ela mal reparara, e dirigiu-se na sua companhia para o quarto do
Príncipe.
— Que significa isto? exclamou a cortesã com raiva, fecham-me a porta
a mim, a amante de Heitor, e introduzem à minha vista outra mulher no seu
quarto!
César de Fossaro não estava nem menos surpreendido, nem menos
intrigado que a sua cúmplice.
XCIV - AS DECLARAÇÕES

O Barão aproximou-se de Genoveva.


— Não compreendo melhor que a senhora, mas com certeza que se passa
aqui alguma coisa extraordinária.
— Quem será esta mulher?
— Ignoro... Será uma rival?
— Havemos de sabê-lo. Volte para casa e espere-me. — O Barão fica
aqui?
— Fico, parece-me necessária a minha presença aqui... o doutor
prometeu mandar-me chamar. Tenho interesse em falar com o Príncipe.
Genoveva muito inquieta, porque a realização das suas esperanças
começava a parecer-lhe comprometida, voltou para a carruagem que a
trouxera.
Heitor passara uma noite excelente.
O seu rosto pálido, muito magro, manifestava alegria, os seus olhos
brilhavam, mas já não era ao fogo da febre que deviam o brilho.
Acabavam de dar dez horas.
O criado de quarto abriu a porta.
— Está aqui o senhor doutor, disse ele.
— Manda entrar, replicou o Príncipe com interesse. Antonino Frébault
entrou.
Heitor ao vê-lo só, manifestou então uma penosa surpresa.
— Ti inútil perguntar-lhe como está. meu querido doente, exclamou o
médico. O aspecto é excelente.
— Doutor, doutor, murmurou o mancebo, esqueceu a sua promessa?
— Nada esqueci, mas da sua parte comprometeu-se a estar tranqüilo.
— Estou, estarei. Lucília está aí?
— Está. Vê-la-á dentro de alguns minutos.
— Oh! querido doutor, desejo vê-la quanto antes, suplico- lhe.
— Se o simples pensamento da sua visita lhe causa uma tão grande
agitação, vou-me embora, e levo-a sem que a tenha visto.
— Não é a sua visita, é a sua retirada, que me faria mal, bem sabe.
— Aqui para nós duvido, murmurou Frébault sorrindo, e vou fazê-lo
feliz sem mais demora.
Ao mesmo tempo tornava a abrir a porta da saleta que precedia o quarto
de dormir.
— Entre menina, esperam-na, disse ele.
Lucília avançou, mas a comoção paralisava-a; no fim da alguns passos
teve de parar, vacilante, mal se sustendo de pé, ainda antes de chegar ao
limiar da porta.
O doutor tornou:
— Coragem, minha filha, mostre-se forte! Lembre-se que a sua presença
fará mais pela rápida cura do nosso querido filho, que todas as prescrições da
ciência.
Estas palavras produziram o efeito desejado; reanimaram a jovem, que se
pôs outra vez a caminho.
Ao ver a órfã que trazia o véu levantado, estendeu os braços para ela. e
com uma voz trêmula balbuciou duas vezes seguidas:
— Lucília, querida Lucília!
Ao ouvir esta voz, a Toutinegra sentiu parar as palpitações do seu
coração.
Correram-lhe pelas faces, grandes lágrimas; dirigiu-se lentamente para o
leito.
Os lábios de Heitor moviam-se sem articular sons perceptíveis; só os
seus olhos falavam, e com que eloqüência!
A palidez lívida do mancebo assustava e consternava a órfã.
Comovida, abalada até ao fundo da alma, contemplava silenciosamente o
Príncipe.
Os dois jovens dobravam de amor.
Antonino Frébault em pé a alguns passos, e muito comovido, partilhava
a felicidade de que era testemunha.
Heitor, no fim de dois ou três segundos, tomou a palavra:
— Veio, disse ele, e não encontro palavras com que exprima o meu
reconhecimento. A sua presença completa a obra do nosso bom doutor.
Restitui-me a vida. Dê-me a sua mão.
Lucília estendeu-lhe a mão trêmula, o Príncipe chegou-a aos lábios,
fechando os olhos para melhor se entregar à sua embriaguez.
— Sente-se ao pé de mim, continuou indicando uma cadeira que estava à
cabeceira da cama.
— Tenho uma receita a escrever, disse Antonino Frébault, deixo-os sós
por cinco minutos.
Lucília fez um movimento e retirou a mão.
— Não, não, doutor, replicou o mancebo, não se afaste. O que tenho a
dizer a Lucília, o que Lucília me há de responder... pode deve ouvir... peço-
lhe que fique.
— Bem, ficarei, visto que o quer... Mas, repito-lhes, nada de comoção
muito viva... Sosseguem ambos!...
Heitor inclinou a cabeça de um modo afirmativo e sorriu.
— Sofreu muito cruelmente? perguntou Lucília.
— Sim, mas hoje os meus sofrimentos passaram... Só me lembro deles
para os abençoar, porque é graças a eles, que neste momento está aí, e que
tenho o direito de lhe repetir: Lucília, querida Lucília... amo-a!... Foi por eu
estar quase a morrer que Lucília veio aqui...
— Vim. balbuciou a Toutinegra, cuja perturbação é mais fácil de
compreender do que descrever, vim aqui, porque o Príncipe mostrou desejos
de me ver, e também porque eu queria restituir-lhe o depósito que me
confiou na véspera do terrível duelo...
— Esse depósito deve ficar nas suas mãos, respondeu Heitor... — Não
posso conservá-lo mais tempo...
— Por quê?
— Por que a sua razão de ser já não existe... Julga que eu teria aceitado,
julga que eu aceitaria uma fortuna que o senhor me desse? A que título? O
senhor está vivo, graças a Deus, mas se tivesse morrido, eu conservar-me-ia
pobre, guardando somente a sua recordação e o meu reconhecimento.
— Lucília, exclamou o Príncipe apertando ambas, as mãos da jovem, é a
mais nobre das mulheres, já o sabia... Muito bem. restituir-me-á esse
testamento, mas mais tarde...
— Mais tarde? repetiu a Toutinegra.
No dia em que eu já não tiver necessidade de dispor em seu favor dessa
fortuna que se tornou sua. —Não compreendo...
— Vou, pois, explicar-me... Escute-me, Lucília, e o senhor também, meti
bom doutor. Depois que um favor da sorte me fez subitamente rico, estraguei
a vida, tomando o prazer pela felicidade, julgando que o meu ouro me
tornaria o rei do mundo, e que neste mundo tudo se vendia, mesmo o amor,
principalmente o amor! Que quer, a riqueza demasiada é má conselheira!
Parece-se com o vinho capitoso, (pie perturba a cabeça, e afugenta a razão!
Um dia, encontrei o ente mais puro e mais encantador que Deus tem criado!
um anjo!... Esse anjo era Lucília... Amei-a logo apaixonadamente, e disse
comigo que tendo comprado tantas outras mulheres, eu poderia também
comprá-la. Deve-me perdoar, Lucília, repito-lhe que estava doido!! Minha
querida filha, sabe o resto... Bastou-lhe uma palavra para me abrir os olhos,
para me mostrar a profundeza do abismo a que eu esperava arrastá-la
comigo. Não lhe regateei o meu arrependimento, faça-me essa justiça, e
Deus que me concede o futuro, há de permitir-me resgatar as faltas do
passado... Graças a você, Lucília, e graças só a você, voltei ao caminho
direito... Guia dos meus primeiros passos, quer caminhai- até ao fim, a meu
lado. de mãos dadas? Quer dar-me o seu coração em troca do meu, que lhe
pertence, e não deixará nunca de lhe pertencer. Quer ser minha mulher?
À medida que Heitor falava, a sua comoção aumentava...
No momento em que proferia as suas últimas palavras, as lágrimas
rebentaram-lhe, doces, benéficas lágrimas...
***

Sufocada pela comoção. Lucília apoiava as mãos no peito que parecia


querer saltar-lhe.
Não podia falar.
O Príncipe inquieto com aquele mutismo de que não compreendia a
verdadeira causa, apressou-se a continuar:
— Por que não me responde? O seu silêncio faz-me muito mal... Vê que
não me ama, que não poderá nunca amar-me?
— Crê que não o amo! exclamou a jovem desvairada pelas palavras de
Heitor; duvida da minha ternura quando estou aqui, junto dele! Quando
tenho sofrido tanto, chorado tanto, orado tanto por ele! Eu que só vivo por
ele!Eu que há pouco sentia fugir a vicia ao ouvir aquela mulher falar das
suas lágrimas e da sua dor. enquanto que o seu olhar só expandiria cólera e
cobiça!
— Oe mulher, doutor? que mulher? perguntou Heitor com viva-cidade.
— Genoveva... respondeu Frébault.
—Ah! cale-se exclamou o ferido, não profira esse nome diante de
Lucilia! ficaria poluído o ar (pie ela respira... Lucília soltou um suspiro de
alívio. O seu coração ficara aliviado de enorme peso.
— Não, o passado já não existe! continuou Heitor. Lucília, querida
Lucília, compreendi bem, não é verdade? Ama-me?
— Com toda a minha alma, balbuciou a jovem inclinando-se sem o saber
para o Príncipe, que levantando-se um pouco cingiu-a com os braços, e
beijou-a na fronte.
O primeiro beijo! o mais casto o mais suave que Heitor jamais tinha
dado.
Antonino Frébault interveio.
— Tudo isso é muito bonito, disse. São comoções salutares; convém
comoções salutares, mas não muitas! Sossego no espírito, se fazem favor!
Meu querido Heitor, dê-me a mão. O senhor é um homem e presentemente
estimo-o tanto quanto já o amava! Menina Lucília. dê-me a sua... sinto
imperiosa necessidade de lha apertar com muita força.
Sou um amigo verdadeiramente novo, mas peço o privilégio de amigo
velho. A senhora é muito capaz de usar dignamente o nome que o Príncipe
com muita razão lhe oferece! Há de vir a ser o anjo puro e encantador do seu
lar!
— Obrigado, doutor, obrigado por essas boas palavras... balbuciou o
convalescente.
— Também eu lhe agradeço, e do fundo do coração! disse a órfã com
urna tocante expressão de reconhecimento.
— Ah! tornou Heitor, quão feliz sou! Lucília, minha querida Lucília, não
me tornará a deixar, não é assim?
— Não o tornará a deixar! exclamou o médico rindo. Proíbo-lhe
semelhante coisa, que seria verdadeira loucura! a menina Lucília vai afastar-
se, pelo contrário, e far-lhe-á visitas muito raras, por três razões, cujo valor
não discutirá quando tiver refletido. A primeira é que comoções muito vivas
e muito freqüentes, são perigosas para si. A segunda, é que uma futura
princesa de Castel-Vivant deve evitar tudo quanto a comprometa, e
conservar intata uma reputação que é o seu dote, e ao qual o Príncipe dá por
certo mais apreço que ninguém. A terceira, finalmente, é que a menina
Lucília tem em sua casa uma tia cega que não pode passar sem ela.
— O que pois a sua tia cega está em sua casa! exclamou o mancebo.
— Sim, respondeu timidamente a Toutinegra. A velha irmã de minha
pobre mãe desejava passar junto de mim algumas semanas. Solicitei e obtive
do diretor da Salpetrière a autorização para a levar.
— Querido anjo. tem todas as virtudes! Quando estivermos caçados, a tia
cega não nos tornará a deixar. Meu bom doutor, as suas razões são
excelentes! A noiva do Príncipe de Castel-Vivant não deve tornar-se
suspeita! Lucília só transporá o limiar deste palácio até eu estar
completamente restabelecido. E quando eu me achar a pé...
— Quando se achar em pé, interrompeu o doutor, mandá-lo-ei fazer uma
viagem a Nice. para acabar o seu restabelecimento.
— E Lucília e a tia também não poderiam ir a Nice?
— Sós?
— O senhor acompanhá-la-á.
— Eu! retorquiu Frébault encolhendo os ombros. É impossível!
Esquece-se da minha clientela...
— A sua clientela passará sem o senhor! O senhor não exercerá clínica
senão para mim e para Lucília. Será o médico privativo da princesa, com os
honorários de cem mil francos por ano.
— Falaremos nisso depois. Em todo o caso devia fazer publicar os
banhos antes da sua viagem, para pôr termo a iodos os boatos desagradáveis,
e poderem casar-se ao voltar. Será esta a opinião da menina Lucília.
A jovem com os olhos baixos e o rosto vermelho de pudor respondeu:
— Farei o que o senhor de Castel-Vivant quiser. Não devo, desde hoje,
habituar-me à obediência?
— Tudo corre então pelo melhor. E agora é preciso partir.
— Partir já! murmurou o Príncipe.
— Os amantes são insaciáveis, bem sei, disse o doutor rindo, mas até
nova ordem devem respeitar-se as minhas prescrições, e ordeno que se
separem, depois de terem trocado na minha presença o beijo esponsalício.
Por segunda vez Heitor chegou com os lábios à fronte de Lucília,
balbuciando:
— Quanto a amo!
— E eu também! exclamou a Toutinegra com uma voz fraca como um
bafejo.
— A dose é quanto deve ser! exclamou Frébault rindo. Um pouco mais,
e transgrediria a receita!
Pegando então na mão da jovem, conduziu-a vagarosamente até à porta.

XCV - UMA TERRÍVEL DESCOBERTA

Lucília parou à entrada da porta, voltou-se para deitar um olhar e um


sorriso ao ferido, cujo rosto estava radiante. Depois saiu.
Um criado esperava-a na saleta. O doutor disse ao criado:
— Acompanhe esta menina no meu trem, que ponho às suas ordens...
Em seguida deixará entrar o Barão de Fossaro.
E dirigindo-se a Lucília, acrescentou: — Até à vista, minha filha, até à
vista!
E depois de darem um aperto de mão muito sincero e muito cordial,
voltou para junto de Heitor.
— Então! perguntou ele ao Príncipe sorrindo, sente-se feliz? — Sinto-me
feliz, querido doutor, e graças ao senhor me esquecerei do que lhe devo!
E mudando de tom, perguntou:
— Então Genoveva estava aí há pouco?
— Se estava! e como entendi que devia manter rigorosamente perante
ela as ordens dadas, retirou-se furiosa.
O Príncipe apenas respondeu com um gesto manifestando a maior
indiferença.
O doutor continuou:
— Mas o senhor de Fossaro está na sala... espera, e eu dei ordem para o
introduzir.
— Fez bem, terei grande prazer em apertar a mão a esse querido... É um
amigo muito dedicado...

***

Neste momento entrava César radiante, apesar de "no intimo" estar


muito preocupado e muito inquieto a respeito do que se passava a seus
próprios olhos.
Aproximou-se muito rapidamente do leito, e apertou com fingida
comoção a mão de Heitor.
— Ah! meu amigo, meu bom amigo! exclamou, este é para mim um belo
dia. Que alegria de o ver curado, quando todos os seus amigos já não tinham
esperanças!
— É verdade que voltei de muito longe! volveu Heitor sorrindo: devo
um famoso círio bento ao nosso querido doutor! Graças a ele devo estar bem
depressa em pé.
— Não tarda, pois, que torne a aparecer na sociedade onde a sua
ausência deixava um grande vácuo!
O Príncipe trocou um olhar com Antonino. O senhor de Fossaro
surpreendeu este olhar, e a sua inquietação aumentou.
— Tenho ainda necessidade de muitas cautelas, meu querido Barão,
volveu Heitor; preciso de muito sossego durante alguns dias, e devo adotar
um regime fortificante, porque, embora o perigo passasse, resta-me ainda
uma grande fraqueza, mas assim que me sentir capaz de empunhar um copo
e de o despejar com denodo, tenciono reunir os meus amigos à mesa, para
lhes agradecer do fundo do coração o interesse que me manifestaram, e para
lhes dar ao mesmo tempo uma notícia que lhes há de causar grande
admiração.
Antonino Frébault pôs um dedo nos lábios. Heitor traduziu assim esta
pantomima:
— Oculte a sua felicidade! guarde o seu segredo!
— Uma notícia que nos há de causar bastante admiração? repeliu o
Barão cheio de curiosidade.
— Sim, sim, mais tarde hão de saber isso.
O senhor de Fossaro não se atreveu a insistir.
— Meu querido doutor, disse, para não deixar esmorecer a conversa; o
senhor foi há pouco muito severo...
— Ora essa! Então, para quem? perguntou o médico.
— Para essa pobre Genoveva... Tinha grandes desejos de ver o Príncipe.
Era muito natural, não é verdade? As suas ordens desapiedadas a fizeram-na
desesperar. Retirou-se lavada em lágrimas, e parece-me que não lhe perdoa
tão cedo...
— Ficarei muito penalizado, replicou Frébault com uma perfeita
desenvoltura, mas primeiro que tudo os interesses dos meus doentes. Neste
momento suprimo as mulheres... É uma regra absoluta.
— Que entretanto, comporia exceções, segundo me parece, observou o
Barão com um sorriso forçado.
— Fala da jovem que me acompanhava?
— Poderá!
— As minhas ordens não podiam entender-se com essa... Vinha
agradecer ao Príncipe um grande favor que ele dispensara à sua família. Não
havia nenhuma comoção a recear...
— Deve ser mentira... pensou Fossaro.
— Sinto muito o desgosto que Genoveva deve ter sentido, interrompeu
Heitor. Devo porém ao doutor uma absoluta obediência... Compreende...
— O melhor do mundo... Contudo, algumas linhas suas consolariam
Genoveva, e bastariam, estou certo, para a tornar feliz.
— Não... não... nada de correspondências! disse Antonino Frébault. Até
nova ordem proíbo ao Príncipe que pegue numa pena! Se ele tivesse cartas
indispensáveis a escrever, recomendar-lhe-ia que se servisse de um
secretário...
— Ofereço-me para desempenhar essas funções, exclamou César.
Estimaria imenso prestar ao nosso amigo esse pequeno serviço.
— Barão, o senhor é um homem encantador, exclamou Heitor, e talvez,
na sua próxima visita, eu aproveite a sua boa vontade.
— Disponha de mim.
O doutor interveio.
Declarou que Heitor, como havia conversado muito tempo, e
principiavam a manifestar-se sintomas de fadiga, tornava-se urgente deixá-lo
só, e, em conseqüência disso, levava consigo o senhor de Fossaro.
Partiram ambos.
— Almoçou, doutor? perguntou César.
— Ainda não.
Muito bem! ofereço-lhe ostras, uma costeleta, ovos com trufas, e um
perdigoto frio com gelatina, no Bignon. Convém-lhe?
— Se me convém...
Dez minutos depois os dois almoçavam um diante do outro. — Mexi
querido amigo, disse o Barão, não me canso em repetir. O senhor fez uma
cura admirável. Os meus sinceros cumprimentos!...
— Aceito-os de boa vontade, e tenho orgulho pelo meu êxito. César de
Fossaro continuou:
— O doutor faz milagres; a morte recua na sua presença? Pretendem, e o
senhor é o primeiro a dizê-lo, que a senhora de Chaslin não tem cura. Pois eu
não ficaria surpreendido se ouvisse um dia destes dizer que o doutor a tinha
curado.
Antonino Frébault abanou a cabeça com um ar triste.
— Infelizmente, no que diz respeito à Condessa. engana-se, replicou...
não tenho esperanças.
— Estará ela pior?
— Está, e devo com franqueza confessar que os caprichos da sua doença
me espantam e me transtornam. Não compreendo nada do que se passa...
Parece que algum remédio que eu não receito, combate e destrói o efeito dos
remédios que eu receito.
— És muito perspicaz! pensou o Barão, mas isso não te dará felicidade.
E tornou em voz alta para mudar de conversa:
— Sabe, querido doutor, (pie extraordinária nova é essa que o Príncipe
tem tenção de dizer aos amigos por ocasião de festejar com eles a sua cura
completa?
— Não me passa pela idéia.
— Não lhe parece que ele fala muito friamente de Genoveva?
— Efetivamente, notei isso.
— A pobre rapariga ama-o loucamente, e não se consolaria se deixasse
de ser amada... Parece-lhe que ele pensa num rompimento?
— Não sei nada a esse respeito, mas os doentes têm caprichos. O
Príncipe não me fala em nada disso, e acho-me como o senhor, reduzido a
conjeturas.
Fosse real ou fingida a ignorância de Frébault. o Barão não podia
perguntar mais.
Assim o compreendeu, e daquele momento em diante a conversa só
versou sobre banalidades.
Depois do almoço, que não se prolongou por muito tempo, Antonino
Frébault, reclamado pela sua clientela, despediu-se do Barão.
Este fez-se conduzir ao boulevard Malesherbes, à casa de Genoveva.
contou-lhe a sua conversa com o doutor, e apesar dele próprio estar muito
preocupado, tranqüilizou-a o melhor possível.
César de Fossaro sentira viva alegria ao ver Heitor aceitar o seu
oferecimento de lhe servir de secretário, o que lhe permitia iniciar-se nos
negócios íntimos do Príncipe, e dava-lhe o acesso ao gabinete de trabalho,
onde se achava o móvel italiano depositário do testamento.
O ferro velho da Rua de Lappe (como os nossos leitores devem estar
lembrados), fornecera-lhe uma chave deste móvel.
O testamento de Heitor em favor de Genoveva estaria sempre no mesmo
lugar?
Isto parecia-lhe positivo; contudo, julgava oportuno certificar-se disso o
mais cedo possível.
No dia seguinte, e no outro, dirigiu-se para a Rua Francisco T.
Como Heitor não lhe falava, de coisa alguma, não julgou dever renovar
os seus oferecimentos, e ocultou o seu desengano.
Finalmente, no terceiro dia, o senhor de Castel-Vivant disse-lhe:
— Se não tem que fazer, meu querido Barão, peço-lhe que me dedique
uma hora. Tenho precisão do senhor.
— Nunca tenho une fazer, e sinto-me sempre feliz por lhe ser útil.
— O doutor permitiu-me esta manhã que me ocupasse um pouco dos
meus negócios, mas continua a proibir que pegue na pena. Vou pois recorrer
à sua amabilidade.
— Eis-me pronto a executar prodígios de caligrafia, replicou Fossaro
rindo muito ruidosamente para dissimular a sua alegria secreta.
— Tenho que responder a muitas cartas... continuou Heitor. Faça-me
favor de chamar o meu criado de quarto, que lhe dará o que é preciso para
escrever.
— É escusado chamar. Vou buscar ao seu gabinete os objetos de que
tenho precisão, e trazê-los-ei...
— Faça o que entender. Vejo que gosta, como eu, de se servir a si
mesmo...
De certo, tanto quanto possível. O lugar de um criado de quarto é uma
sinecura, ou pouco menos.
— As cartas que precisam de resposta estão aí em cima desta mesa.
— Ei-las... Torne a lê-las. Eu já volto.
Encostando-se ao travesseiro, pôs-se a percorrer esta correspondência
atrasada, ao mesmo tempo que Fossaro tomava o caminho do gabinete de
trabalho.
Todas as vezes que ele vinha ao palácio tinha o cuidado de se munir de
chave falsa, porque podia apresentar-se de repente a ocasião de se servir
dela.
Entrando no gabinete, deitou um rápido olhar para o móvel de ébano,
incrustado de nácar e de marfim.
Além do testamento sem data, em favor de Genoveva Leinen, o móvel
continha uma duplicata da certidão, com data de 23 de setembro, cm que
Heitor constituía Lucília sua herdeira universal.
Não se deve ter esquecido por certo, que o Príncipe ia destruir o primeiro
testamento no instante exatamente em que a chegada das suas testemunhas o
interrompera.
Desde aquele momento, Heitor não tornara a tocar nele, e não se
importara de modo algum com aquele statu quo.
— Está ali, murmurou o fiarão, mas o tempo falta-me, Não tarda que
volte.
Tirou de cima da secretária um maravilhoso tinteiro de faiança de
Marseille, guarnecido das suas penas, dos seus paus de lacre.
Tomando uma porção de papel com as armas dos Castel-Vivant,
timbrado com a coroa fechada, voltou para junto do Príncipe, e preparou-se
para escrever.
A sua ausência não durara dois minutos.
Heitor ditou uma primeira carta.
— Dê cá para assinar, disse, e tenha a bondade de meter num envelope e
lacrar.
— Esqueci o sinete, volveu Fossaro, mas isso pouco importa. Assinará
todas as cartas ao mesmo tempo, e irei fechá-las no mesmo gabinete. Será
até melhor assim, porque o cheiro penetrante da cera poderia subir à cabeça.
— Tem razão e pensa em tudo...
Heitor ditou segunda carta, depois terceira e quarta.
A concentração de espírito que aquele trabalho exigia, fatigava-o de um
modo bem visível, e o doutor Frébault, se ali estivesse, ter-lhe-ia sem dúvida
alguma recomendado que se interrompesse.
Borbulhava-lhe na fronte o suor.
Sob o império de uma sonolência irresistível, as pálpebras agitavam-se-
lhe.
A cabeça balouçava-lhe para a direita e para a esquerda, e as frases não
lhe saíam dos lábios entre cortados, indistintos, quase ininteligíveis.
De repente cessou de ditar.
Fossaro olhou para ele.
A sonolência vencera-o, os dedos enfraquecidos do Príncipe acabavam
de largar a carta a que respondia.
Os seus olhos tinham-se fechado de repente, e a cabeça descançava-lhe
no travesseiro.
Mergulhara num profundo sono.
— A ocasião esperada! pensou o Barão. Finalmente!
Levantando-se então vagarosamente, dirigiu-se na ponta dos pés para a
porta entreaberta, e saiu sem ruído, por conseguinte sem despertar o ferido.

XCVI - CONTINUAÇÃO

Um segundo depois, o senhor de Fossaro transpunha o limiar do gabinete


de trabalho, corria ao móvel italiano, introduzia a chave na fechadura, e abria
a gaveta de cima.
Em cima de um molde de papéis em desordem estavam dois envelopes.
Ambos tinham em grandes caracteres estas palavras:

ISTO É O MEU TESTAMENTO

Nem um nem outro estavam lacrados.


— Que significa isto? perguntou o Barão de si para si muito
surpreendido. Dois testamentos! Tenho a certeza de não ter visto senão um
há três semanas.
Abriu o primeiro sobrescrito.
Continha as disposições tomadas em favor de Genoveva.
— Conheço este... continuou César. Vejamos o outro...
E tirando do segundo sobrescrito uma folha de papel selado, abriu-a.
Entre as sobrancelhas cavou-se-lhe uma profunda ruga; o seu rosto
tornou-se sombrio.
— Os meus pressentimentos não me enganavam! murmurou. O reinado
de Genoveva acabou. Substituiu-a outra mulher! Este testamento, a data o
prova, foi destruído na véspera do duelo. Genoveva não tinha valor. A sua
rival chama-se Lucília... Lucília, de alcunha a Toutinegra... em Belleville na
Rua Julien Lacroix...
Foi na casa onde ela mora, que a Marquesa Lazarine viu entrar o
Príncipe certa manhã... Tudo quanto me parecia incompreensível se explica!
A situação não é desesperada! tanto pior para esta rapariga que vem
atravessar-se nos meus projetos! Os obstáculos fizeram-se para serem
suprimidos! Por que foi que o Príncipe não rasgou o primeiro testamento?
Perco-me em conjeturas! Lembra-se ele sequer de que exista? Lembre-se ou
não, arrecado-o...
César meteu no envelope o documento que constituía Genoveva legatária
universal, e guardou-o na algibeira.
O segundo testamento tornou o tomar o seu lugar entre os papéis
espalhados, e a gaveta fechou-se.
De repente o rosto de Fossaro iluminou-se, ao mesmo tempo que os seus
lábios proferiam estas palavras em voz baixa:
— Acode-me uma idéia triunfante! E voltou para o quarto do Príncipe.
O que fica dito, passou-se em menos tempo do que nós levamos a contar.
O ferido continuava a dormir.
César voltou para o seu lugar, e pôs-se a tossir.
Heitor abrindo os olhos, levantou-se sobre um cotovelo.
— Perdoe-me, querido Barão, disse, parece que me deixei dormir.
— Apenas durante alguns segundos.
— Estou ainda muito fraco, e a fadiga é a minha desculpa, mas aqui
estou pronto a continuar.
Às suas ordens.
— Tem a bondade de me tornar a ler a carta interrompida?
César fez o que o Príncipe desejava.
Heitor continuou, e concluiu o seu ditado, assinou com mão um pouco
hesitante, e exclamou:
— Mais nada.
— Não esquece coisa alguma? perguntou o Barão.
— Não esqueço.
— Supunha que tinha tenção de escrever a Genoveva.
— Não, na verdade, não me passa isso pela idéia. Depois, não sabia o
que lhe havia de dizer.
— Então vou lacrar estas cartas no seu gabinete de trabalho.
— Bem, e depois mandá-la-a deitar no correio por um dos meus criados.
— Posso eu mesmo deitá-las, porque me retiro dentro de cinco minutos.
César voltou ao gabinete, pegou em muitas folhas de papel para cartas, e
em envelopes com as armas do Príncipe e guardou na sua carteira.
Em seguida acendeu uma vela, muniu-se de um pau de lacre vermelho e
do sinete de Heitor, e lacrou os sobrescritos.
Feito isto deitou num quadrado de papel algumas gotas de lacre
incandescente e assentou sobre o lacre o sinete com armas, obtendo uma
marca muito nítida que juntou às folhas roubadas.
Com este brasão cm relevo, era fácil obter uma marca côncava e por
meio dela chegar a uma reprodução idêntica do sinete desejado.
O senhor de Fossaro tornou a entrar no quarto, apertou a mão do
convalescente que o sorriso tornava a prostrar, saiu do palácio e deu ordem a
Beneditte para o conduzir à Rua de Provence.
Pelo caminho deitou na caixa as quatro cartas para o Príncipe.
R chegando a casa correu os fechos do quarto misterioso onde ninguém
entrava.
Sentou-se à sua secretária, colocou diante de si uma folha de papel com
as armas dos Castel-Vivant e o testamento completo do punho de Heitor;
depois com o seu maravilhoso talento de falsificar, imitando com perfeição a
letra do ex-Begourd traçou as linhas seguintes:

"Meu querido Fossaro


"Considero-o como amigo de muita confiança, como o mais sincero dos
meus amigos, e vou dar-lhes uma prova da minha afeição e da minha
confiança.
"Não querendo morrer sem manifestar o meu reconhecimento àquela que
sinceramente me amou, faço o meu testamento e endereço-lho, selado com
as minhas armas, acompanhado desta carta em que o nomeio meu
testamenteiro.
"Quando já não existir, remeta a quem deve este testamento.
"Tal é o último serviço que espera de si o seu amigo dedicado."
César imitou a assinatura do Príncipe como imitara a letra do bilhete,
mas deixou a data em branco; depois sobre o envelope brasonado traçou o
seu próprio endereço:
"Senhor Barão de Fossaro.
No seu palácio.
Na Rua de Provença."

Terminada esta tarefa, o sócio de Malpertuis esfregou as mãos, fechou o


testamento e a carta, saiu, tomou um trem, e fez-se conduzir à praça da
Bastilha, de onde se dirigiu a pé à Rua de Lappe e à loja empoeirada do
adelo que já conhecemos.
O motivo da sua visita a estas longínquas paragens adivinha-se.
O molde foi entregue ao adelo que se incumbiu de dar um sinete antes do
fim da semana.
César jantou num restaurante do boulevard do Templo, dirigiu-se perto
das nove horas ao teatro de Belleville. e fez que lhe abrissem o camarim de
Fernando Volnay.
O comediante soltou uma exclamação de alegria.
— Seja bem vindo, querido Barão! disse ele estendendo ambas as mãos
para o senhor de Fossaro. Já ninguém o vê!
— E de quem é a culpa?
— Não é minha.
— Perdão, é só sua porque sabe muito bem a minha morada.
— De certo, mas os ensaios roubam-me as tardes. Represento à noite.
— E a ma de mel absorve o resto, interrompeu César rindo.
— Concordo e reclamo toda a sua indulgência.
— Está perdoado! Os jornais anunciaram a sua escritura nó Ambigu e
dou-lhe os parabéns.
— Meu querido Barão, é aos seus bons conselhos que devo a minha boa
sorte!
— Está com o pé no estribo. Não lhe falta nada para ser afortunado. Há
de ir longe.
— Assim espero. A propósito, traz-me notícias a respeito da murada de
uma certa grande fidalga?
— Ah! a Condessa de Vergis?... Não, ainda não. Mas a informação
esperada não tardará. Então o seu primo está ainda apaixonado?
— Mais que nunca, pobre rapaz!
— Faça-o ter paciência. Qualquer dia lhe enviarei uma nota relativa ao
que tanto interessa. Sempre na Rua Julien Lacroix não é verdade?
— Ah! isso é que não, respondeu o comediante com vivacidade. Deixei
aquele horrível Belleville e Deus sabe que não o lastimo. Habito um bairro
catita! Sou proprietário de um delicioso palacete com pátio e jardim na
avenida do Legeau, e espero aí recebê-lo muito proximamente com as honras
que lhe são devidas.
— Bravo, meu querido artista! Basta mostrar-lhe o caminho! Quando é a
festa da inauguração?
— Dentro de oito dias... O dia não está ainda fixado... Receberá um
convite... Um colega está estudando o meu papel para me substituir aqui nos
Beijos Mortais, e não representarei ainda no Ambigu... Disporemos,
portanto, de toda a noite. Iremos exatamente à meia hora depois da meia
noite, e é a Marquesa quem preside à pequena festa.
Cesar fez um gesto de espanto.
A Marquesa! repetiu, pois ela aparece lá?
— Pudera! Fiz-lhe compreender que o meu amor próprio o exigia.
— Mas isso vai fazer em Paris um barulho infernal.
— Tanto melhor... Falando de Lazarine, falarão de mim. Que reclame!
— Safa! meu querido, o senhor é prático.
— Sim, encaro a vida pelo lado sério. A Marquesa adora-me. E eu
aproveito.
— E, perguntou César, conduzindo habilmente a conversa para o único
motivo que ali o levava, o seu coração não sofreu muito quando o senhor
deixou a Rua Julien Lacroix?
— Isso é um enigma pitoresco, meu querido Barão. Que há de comum,
se faz favor, entre o meu coração e a Rua Julien Lacroix?
— Ora! tinham-me falado de uma certa Lucilia...
— Lucilia? A Toutinegra?
— Sim, a Toutinegra, exatamente.
— Quem demônio lhe contou isso?
— A voz pública.
— Pois a voz pública não tem senso comum! A Lucilia é muito bonita, é
encantadora! Poderia ter-lhe oferecido um capricho de quinze dias, mas isso
não lhe convinha. O demônio da rapariga! É uma rapariga pobre, alegre
ganha quarenta francos, trabalha com alma, e está a cantar, desde pela manhã
até à noite. Tem juízo, é uma verdadeira santinha, e segundo me parece, um
pouco ambiciosa.
— Se a ambição faz das suas, então adeus santidades.
— Não há perigo, ingenuazinha, ambiciona um marido.
— E é bonita?
— De encantar, e olhe que eu sou entendedor! É digna de um príncipe,
ou de um comediante!
— Vive só?
— Usualmente, vive, Mas neste momento tem junto de si, por alguns
dias, uma parenta velha e pobre.
Fernando calou-se, olhou bem de frente para o seu visitante, pôs-se a rir
e tornou:
— Mas espere, meu querido amigo, porque demônio me faz estas
perguntas? Em que é que esta grizete pode interessar-lhe? Por acaso anda
como a cabeça à roda por causa de Lucilia. sem a conhecer.
— Oh! isso é que não! Falo como curioso...
— É que, fique sabendo, rico e, apesar de barão, não teria probabilidades
nenhumas de se sair bem. Eu mesmo, Fernando Volnay, ter-me-ia saído mal,
tão séria é Lucilia Gonthier. Ora veja!
— Lucilia Gonthier! repetiu Fossam com uma surpresa que lhe foi
impossível dissimular.
— A Toutinegra chama-se assim. E isto que lhe causou admiração?
— Desperta no meu espírito uma velha história. O triste fim de uma atriz
quase célebre, das Variedades, do teatro Dejazet, Amélia Gonthier, que há
alguns anos morreu miseravelmente, deixando uma filha. Será Lucília essa
filha?
E, se acreditarmos a ex-formosa hervanária, a tia Verdier, porque a
Toutinegra não fala nunca na mãe...

***

O Barão sabia o quanto bastava.


Levantou-se.
Fernando, perguntou-lhe:
— Já se retira?
— Sim, meu caro amigo. Tinha interesse em apertar-lhe a mão. Pronto e
até já. Assim que tiver esclarecimentos, mandar-lhos-ei pelo primo.
— Fica entendido... Quanto á festa, receberá o seu convite daqui a dois
dias... Não esqueça que Lazarine e eu contamos absolutamente com o
senhor.
Fossaro saindo do teatro, chamou um trem, e tomou o caminho de Paris.
Ainda atordoado com o acaso que acabava de o servir de um modo tão
prodigioso, dizia consigo:
— Lucília Gonthier! Ela, a herdeira dos doze milhões de Edgard Sydney,
de Nova York. E ela, a quem o príncipe legava milhões ainda mais
numerosos! Até que a apanhei! Ah! ela está duplamente condenada!

***

Davam onde horas da noite no momento em que o Barão entrava em


casa.
Dirigiu-se logo para o gabinete onde o aparelho elétrico o punha em
comunicação com o seu sócio, e carregou o botão.
Nenhum toque respondeu ao seu chamamento.
Este silêncio provou-lhe que Malpertuis, abandonando as suas
preocupações quotidianas, procurava fora alguma distração do seu gosto.
— Falar-lhe-ei amanhã pela manhã cedo, pensou o Barão. Não há tempo
perdido!
Depois, fatigado por um dia tão cheio, meteu-se na cama, adormeceu e
teve sonhos esplêndidos.

XCVII - NOVIDADES

Logo às oito horas da manhã o senhor de Fossaro fez soar a campainha


elétrica.
Um toque semelhante respondeu-lhe que Malpertuis estava livre e só.
No mesmo instante, apareceu no gabinete do colega pela porta secreta
que conhecemos.
— Trazes alguma coisa de novo? perguntou-lhe Malpertuis.
— Trago, e coisa que te vai surpreender.
— Boa ou má?
— Excelente.
— Estou escutando.
— Vou falar, mas dize-me primeiro que tempo seria preciso para
realizares a herança de New York, desde o momento que fosses procurador
de Lucília Gonthier?
— Recebi ontem uma carta a este respeito do meu correspondente James
Elliot. O testamenteiro depôs os milhões no cofre de um banqueiro seguro.
Está pronto a entregá-los, cm cheques sobre as primeiras casas bancárias de
Paris, à herdeira ou a quem a represente. Para apanhar os milhões de. Edgar
Sydney preciso de vinte, dias e dos documentos seguintes: a certidão de
óbito de Amélia Gonthier, a certidão de batismo de Lucília Gonthier, a sua
procuração em forma, uma carta dela legalizada pelo comissário de polícia
do seu bairro, a minha certidão de identidade legalizada e um passaporte.
Manda então hoje mesmo um telegrama a James Elliot, dizendo-lhe que
dentro cm pouco estarás em New York, munido de todos esses documentos.
— Achaste Lucília Gonthier?
— Achei.
— Por que milagre, depois de tantas pesquisas inúteis? Por um simples
efeito do acaso, como vais ver.
E o Barão contou cm poucas palavras a Malpertuis o que os nossos
leitores já sabem.

***
Muito bem, disse Malpertuis. Mas Lucília embaraça os nossos projetos
relativamente a Castel-Vivant.
— Os embaraços fizeram-se para serem destruídos. Destruí-los-ei. Bem
sabes o que te resta a fazer. Põe mãos à obra sem perda de uma hora...
Neste momento bateram por duas vezes à porta do gabinete. Fossaro
levantou-se e dirigiu-se para a saída secreta.
— Espera, disse-lhe Malpertuis, tenho ainda que te falar. Se for cliente
quem me anunciam, mandá-lo-ei embora depressa.
— Fico aqui, por detrás da papeleira. Ninguém me pode ver, e eu posso
ouvir tudo. Bateram novamente.
— Entre! gritou o ex-advogado.
O homem de fato escuro apareceu, depois de le o cartão deu ordem para
introduzirem o visitante dentro de cinco minutos. O continuo do escritório
desapareceu.
— Quem é? perguntou Fossaro detrás da papeleira.
— Uma visita singular! O Príncipe Emanuel de Brada...
— O cavalheiro que devia esposar a Marquesa de la Tour-du-Roy!
exclamou César. Que demônio vem ele cá fazer?
— Não posso imaginar, mas ouve e saberás.
— Podes ficar certo de que seu todo ouvidos.
Passados os cinco minutos, o moço do escritório introduziu o senhor de
Brada.

***

No dia em que Lazarine tomara o compromisso positivo de aceitar a mão


do Príncipe no prazo de um mês, apresentamos este ao leitor.
A partir deste tempo, a Marquesa, esquecendo a coroa fechada pelos
belos olhos e os bigodes sedosos de um comediante, tornara-se a amante de
Fernando Volnay.
O fidalgo ignorava ainda a absoluta degeneração daquela a quem amava
até a adoração até a loucura, mas sabia da pretendida viagem da jovem ao
palácio de la Tour-du-Roy, e tinha todas as suspeitas de que aquela mentira
ocultava alguma vergonha.
No momento em que o Príncipe transpunha o limiar do gabinete do
homem de negócios, o seu rosto exprimia a mais sombria tristeza: os seus
olhares manifestavam uma espécie de alucinação feroz.
Malpertuis nunca vira o senhor de Brada; impressionou-o a expressão
sinistra que acabamos de indicar.
— Queira sentar-se, senhor, disse-lhe inclinando-se, e dizer-me o motivo
que me proporciona a honra da sua visita.
O Príncipe sentou-se e respondeu:
— Vou explicar-me; mas primeiro que tudo. senhor, permita-me que lhe
faça uma pergunta... Malpertuis tornou a inclinar-se.
O senhor de Brada continuou:
— Afirmam que o senhor tem uma polícia especialmente sua, e que os
seus empregados sabem, tão bem e melhor que os agentes da prefeitura,
seguir uma pista e desvendar um mistério. Será verdade?
— É verdade.
— Quereriam os senhores encarregar-se de umas pesquisas por minha
conta?
— Por que não? O seu nome é uma garantia segura de que o senhor nada
me pedirá que não seja decente... nada que possa assustar a minha
consciência de cavalheiro. De que se trata?
— Da vida ou da morte para mim, senhor.
— É muito sério o que está dizendo, principiou Malpertuis muito
admirado.
— É muito grave bem sei... interrompeu o Príncipe. Parecem exageradas
as minhas palavras, mas exprimem apenas a mais absoluta verdade. Pus a
minha existência em jogo contra o amor e a honra de uma mulher, e parece-
me que perdi. Contudo é possível que me engane, e quero certificar-me...

***

O senhor de Brada falava lentamente, com uma tranqüilidade relativa,


mas a sua voz estridente e os seus gestos desordenados, eram voz e gestos de
um homem cuja razão vacila.
— Este grande personagem está a caminho da loucura, pensou
Malpertuis.
— Conhece a Marquesa da la Tour-du-Roy? perguntou repentinamente o
Príncipe.
— De nome, como toda a gente.
— A senhora de la Tour-du-Roy mora na Rua Murillo...
— Não ignoro.
— Há quinze dias deixou ela o seu palácio, dando como pretexto uma
viagem imaginária.

***

— Muito bem.
— Quero saber onde ela se oculta. Encarrega-se de me descobrir o seu
paradeiro?
— Diga-me primeiramente, senhor, qual o interesse que o leva a
solicitar-me semelhante diligência?
— O interesse da minha honra.
— Não compreendo.
— Vai compreender. Era... sou ainda o noivo da Marquesa. Um projeto
de casamento, cuja realização devia efetuar-se em breve, fora combinado
entre nós. Assiste-me o direito de saber se o procedimento da minha noiva
não a torna indigna de usar o meu nome.
— Tem razão, senhor, aceito a missão de confiança de que me encarrega.
Um fulgor de feroz alegria brilhou nos olhos encovados do Príncipe.
— Obrigado! disse. No dia em que me trouxer a informação de que
preciso, dar-lhe-ei cem mil francos.
— Cem mil francos! repetiu o ex-advogado, surpreendido da enormidade
da conta.
— E não é pagar muito caro uma certeza! replicou o senhor de Brada. É
imensa a minha fortuna, mas deve compreender que tenho pressa.
— Os meus agentes vão já pôr-se esta noite em campo.
— Conto com isso.
Estava terminada a conferência.
O Príncipe retirou-se, reconduzido até à ante-câmara por Malpertuis.
Este voltou em seguida para o seu gabinete, correu o ferrolho para se
acautelar contra qualquer surpresa, e Fossaro tornou a aparecer.
— Ouviste? perguntou-lhe o sócio.
— Não perdi uma palavra.
— Que dizes àquilo?
— Digo que apanhamos os cem mil francos.
— Sabes então onde se pode encontrar a Marquesa?
— Sim, mas ainda não é tempo de consumar a extravagância que ele
medita.
— Pareceu-te doido como a mim?
— Pelo menos está a caminho do hospital dos doidos. Isto de amor faz
grande colheita para os hospícios de alienados. Eu te direi quando deves ir
cobrar os cem mil francos que nos caem do céu. É uma gota de água!
— Esperarei... Outra coisa: Recebi um bilhete do Conde de Vergis. Está
em Berne.
— Desse lado nada urge.
— Tens-te lembrado de Marcel Laugier, ou antes de seu filho? Quando a
Marquesa veio aqui. prometi dar-lhe uma resposta no fim de um mês, bem
sabes, e o mês toca no seu termo.
— Neste momento a Marquesa não pensa no filho, afirmo-te, disse
Fossaro rindo. Tem preocupações muito mais agradáveis... Chegarei em
tempo útil. O essencial hoje é arrecadar os milhões de New York, indicar-te-
ei a marcha a seguir com Lucilia Gonthier. Escreve-lhe já para Belleville,
rua Julien Lacroix... Apenas um nome próprio... nada de nome de família...
— A carta partirá dentro de dez minutos.
César voltou. O móvel tomou novamente o seu lugar de encontro à
parede, Malpertuis sentou-se à secretária, puxou para si uma folha de papel
com a marca da casa, e as seguintes linhas impressas:

"Paris..."
Senhora
"Queira ter a bondade de vir ao meu gabinete, das às horas, para negócio
importante que lhe diz respeito.
"Com toda a consideração..."

Malpertuis preencheu os intervalos em branco, datou, assinou, meteu no


envelope, escreveu o endereço de Lucilia, e mandou o empregado do
escritório deitar a carta na caixa próxima.

***

Deixemos as aranhas parisienses urdirem as suas teias gigantescas, e


voltemos à Toutinegra.
A loura jovem sentia-se cada vez mais feliz.
O seu amor mostrava-lhe o futuro cor de rosa, e os menos otimistas dos
meus leitores hão de convir que bem difícil havia de ser o vê-lo de outro
modo.
Voltara à rua Francisco I, sob a égide quase paternal do doutor Frébault,
e a sua afeição pelo Príncipe aumentava de hora para hora.
Lucilia nada dissera a tia.
Por que era este mistério?
Pura criancice.
Heitor e a Toutinegra, forjavam uma surpresa à septuagenária cega, e
queriam desfrutar o seu assombro e alegria quando ela soubesse a grande
notícia, e se se visse de repente tia milionária e Princesa.
Às vezes, contudo, passavam pelo céu azul, algumas nuvenzinhas que
depressa se dissipavam.
Lucilia que se tornara preocupada, perguntava de si para si, se o que
acabava de suceder não era um sonho, se o Príncipe não cessaria de a amar, e
se um dia não se arrependeria de ter concluído, levado pelo seu entusiasmo,
uma união desproporcionada sob todos os aspectos?
Nestes momentos, o primeiro sonho da tia voltava-lhe ao espírito, e tinha
medo.
Mas, repetimos, estas crises de dúvida eram raras e de curta duração.
Heitor quisera que a Toutinegra deixasse de trabalhar.
O doutor Frébault gastara muita eloqüência para lhe fazer aceitar, a título
de empréstimo, as modestas somas necessárias à sua existência e à da tia.
Lucilia recusara terminantemente, fazendo-se muito corada, mas sentia
quanto a sua posição ia tornar-se falsa e difícil. Lembrava-se da viagem
projetada.
Como poderia essa viagem efetuar-se?
As suas modestas toilettes de humilde operária parisiense, não seriam
insuficientes, não a tornariam ridícula aos olhos de Heitor?
Esta herdeira de doze milhões, esta noiva de um Príncipe, possuidor de
milhões, ainda mais numerosos, trabalhava sem cessar, e passava a coser
uma parte das noites, sem piedade para os seus belos olhos, fatigados e
avermelhados.
Acabara uma encomenda para o seu armazém, e saía para levar a obra.
Quando chegava em frente do cubículo da porteira, esta chamou-a.
— Menina Lucilia, disse-lhe, uma carta para si. O carteiro entregou-me
há cinco minutos. Ia já levar-lhe.
Ao mesmo tempo dava à Toutinegra uma carta de papel escuro, com
aparência oficial.
Lucilia, intrigada e um pouco inquieta. rasgou o sobrescrito, tirou de
dentro a folha que ele continha, e leu:

"Senhora."
"Roga-se-lhe que apareça no meu gabinete, amanhã, quinta feira, das
nove da manhã às quatro da tarde, para negócio importante que lhe diz
respeito.
"'Receba, minha senhora, os meus respeitos.
"Malpertuis."

XCVIII - A RODA DA FORTUNA

— Esta carta é de ontem, e hoje é quinta-feira, murmurou a jovem depois


de ler. O "rendez-vous" que me dão é portanto para hoje. Que significa isto?
Não tenho que tratar com gente de justiça. Não devo um ceitil. Anda com
certeza nisto algum erro.
A Toutinegra, que ia andando e falando só, olhou para o sobrescrito e
tornou:
— Entretanto, isto sempre parece para mim... Lucilia, rua Julien
Lacroix. Não traz apelido de família, mas há tão poucas pessoas que
conheçam o meu. Isto dá-me que cismar. Das nove às quatro horas. Saindo
da oficina, irei à rua da Vitória, à casa de M. Malpertuis... Se fosse para uma
herança? acrescentou a órfã sorrindo. Poderia ter um pouco de toilette para. a
viagem, e para mandar fazer um belo vestido à minha tia... E depois,
casando, levaria a Heitor um dote... Ele não tem necessidade... é tão rico...
mas sempre me lisonjearia o meu amor próprio o não casarem comigo sem
um sou.
A reflexão derribou repentinamente os seus castelos em Espanha.
— Estou louca! disse Lucilia consigo. Não posso herdar de ninguém
neste mundo, e demais, o antigo funcionário que me escreve não sabe sequer
o meu nome de família. Decididamente, é um enigma... Já me tarda a
explicação.

***

Dali a duas horas, depois de ter levado a obra à modista, e recebido a


fazenda necessária para novo trabalho, a Toutinegra chegava à rua da
Vitória.
Quando subia a escada que conduzia ao escritório, o coração batia-lhe
precipitadamente.
Quando entrou na ante-câmara, estava toda trêmula.
— Que deseja? perguntou-lhe o empregado.
— Desejo falar ao senhor Malpertuis.
— Para negócios?
— Sim, senhor.
— Quer dizer-me o seu nome?
— Tenho uma carta de convite.
— Dê-ma. se faz favor...
— Ei-la.
— Agora, menina, sente-se um instante... Vou prevenir o patrão. Por um
caso ele está só. Não terá pois que esperar.
Lucilia sentou-se num banco e colocou o pequeno embrulho do lado,
enquanto que o homem vestido de pardo tomou o caminho do gabinete
diretorial.
Passado um minuto voltou e disse:
— Venha, menina, vou introduzi-la. Deixe aí o embrulho, não o perderei
de vista...
A órfã seguiu o seu guia.
Abriu diante dela a porta do santuário e retirou-se.
Malpertuis, em pé, sorria com benevolência, penteando as compridas
suíças.
Lucilia achou-lhe cara de muito bom homem.
— Agradeço-lhe, menina, o ter cedido tão depressa ao meu convite,
exclamou, depois de cumprimentar corretamente. Eis aí ao pé da minha
secretária uma poltrona que lhe estende os braços. Vamos conversar.
A Toutinegra sentou-se.
— Asseguro-lhe, senhor, que a sua carta deu-me bastante que cismar,
murmurou ela em seguida. Quando a li, julguei que havia algum engano...
— Engano! repetiu Malpertuis. Tenho grande esperanças de que assim
não sucederá, e daqui a pouco hei de ter a certeza.
— Então de que se trata?
— Explicar-lhe-ei logo que me fizer a honra de responder a uma ou duas
perguntas, porque as suas respostas hão de demonstrar-me que a senhora é
efetivamente a pessoa por quem se procura há um mês.
— Procuravam-me!! exclamou Lucilia.
— Muito ativamente, sim, menina, e não foi sem custo que lhe pusemos
a mão em cima.
— Mas, senhor...
— Um pouco de paciência! interrompeu Malpertuis. Não a farei sofrer.
Notou que a carta que lhe dirigi só levava no sobrescrito um nome de
batismo?
— Notei, mas sem me admirar, porque o meu nome de família é pouco
conhecido.
— Que nome é, menina? preciso ouvi-lo da sua boca.
— Gonthier, chamo-me Lucilia Gonthier...

XCIX - CONTINUAÇÃO

— Às mil maravilhas... Filha natural, não é verdade, de Amélia


Gonthier, artista dramática, falecida em Paris há oito anos.
— Sim, senhor, murmurou a órfã muito comovida. Eu era muito
pequena, e estava num colégio quando perdi a minha mãe. Uma das suas
antigas amigas teve a bondade de me recolher e educar. Esta boa mulher
também morreu.
— Pode sem dúvida dar-me as provas da sua identidade?
— De que provas fala, senhor?
— Da sua certidão de batismo, e da certidão de óbito de sua mãe.
— Nada mais fácil, senhor. Não tenho esses documentos em casa, mas
posso obtê-los. Só o que queria saber, primeiro que tudo, é para o que eles
servirão.
— É muito justo, e posso agora dizer-lho, porque não me resta dúvida. A
menina é efetivamente a pessoa que se procurava. Saiba pois que há uns
dezoito anos a senhora Amélia Gonthier foi chamada à América por uma
escritura. Deu representações muito brilhantes num dos teatros de New
York, onde obteve um grande e legítimo êxito. Um dos admiradores do seu
incontestável talento, um dos fanáticos da sua beleza, morreu ultimamente, e
lembrando-se de um passado já longínquo, deixou à sua mãe um legado
considerável.
— Um legado! exclamou Lucília; mas como já não existe a minha pobre
mãe, a última vontade do testador não pôde receber a sua inteira execução.
— É no que se engana.
— Como assim?
— O testamenteiro estipulou formalmente que na falta de Amélia
Gonthier, herdariam os que tivessem a isso direito. A menina é sua filha
única, portanto herda.
— Eu, senhor?
— É indiscutível. A verdade pura. Bem vejo que é notícia inesperada, e
acrescentarei que ela é feliz, porque segundo me consta, está longe de ser
rica.
— Pode até dizer que sou muito pobre... trabalho para viver.
— Existência modesta e laboriosa, honrada como poucas, e à qual presto
homenagem, disse Malpertuis num tom sentencioso.
— Mas, senhor, tornou Lucília, cuja perturbação é fácil de se imaginar.
Como é que veio a saber tudo isso?
— Um correspondente da América pediu-me para fazer investigações
por conta do testamenteiro. Pus-me logo em campo, nada desprezei.
Revolveu-se Paris, exploraram-se os arrabaldes a fim de a encontrar, e estou
amplamente recompensado dos meus trabalhos e cuidados, vendo quanto é
digna da felicidade imprevista que lhe sobreveio. Nunca houve fortuna que
caísse em melhores mãos do que nas suas...
— O senhor fala em fortuna...
— Pudera!
— One quantia vem então a ser?
— Adivinhe.
— Talvez uns dez mil francos? Malpertuis sorriu.
— Não adivinhou,
— Vinte mil?
— Vá subindo.
— Cinqüenta mil?
— Está ainda longe...
— É impossível que o legado de que se trata atinja a quantia de cem mil
francos.
Lucília tornou-se pálida de comoção.

***

Como sabemos, a pobre pequena não pensava sequer no dinheiro, mas


ouvimos dizer-lhe que ela estimaria muito levar um dote ao Príncipe
riquíssimo que a esposava por amor, e não só o dote existia, como também
tomava proporções consideráveis.
— Quatrocentos mil francos! repetiu a órfã estupefata.
— Sim, minha senhora. Devo porém acrescentar que as despesas do
processo e os meus honorários, reduzirão a soma a trezentos e cinqüenta mil
francos pouco mais ou menos:
— Mas, senhor, isso é ainda uma riqueza.
— Relativamente, minha senhora, essa riqueza estará bem depressa nas
suas mãos, se me encarregar dos seus interesses constituindo-me seu
procurador.
— Oh! exclamou Lucília, como me havia de lembrar de outro qualquer
para concluir o que o senhor começou tão bem?
— Concede-me então a sua confiança?
— Sim, decerto, e estou convencida de que é muito bem empregada,
— Terá a prova disso... Isto andará muito depressa, logo que eu me achar
munido dos documentos indispensáveis.
— Precisa, segundo me disse, da minha certidão de batismo, e da
certidão de óbito de minha mãe?
— Sim, minha senhora. É preciso também que me escreva uma carta
cuja assinatura fará legalizar pelo comissário de polícia do seu bairro, em
presença de duas testemunhas idôneas.
— Que devo dizer-lhe nessa carta?
— Vou preparar o rascunho. Levá-lo-á, e não terá mais que o copiar.
Malpertuis traçou as seguintes linhas numa folha de papel sem marca da
casa.

"Senhor Malpertuis.
"Por esta o incumbo de tratar do processo relativo à minha herança.
Confio-lhe da maneira mais absoluta a direção deste negócio.
"Amanhã irei ao seu escritório para lhes fazer entrega dos documentos
que precisa, e iremos juntos ao seu tabelião onde assinará a procuração, sem
a qual nada poderá fazer.
"Sou com toda a consideração...
***

Malpertuis apresentou o rascunho à jovem.


— Queira ler... disse.
A órfã percorreu o rascunho e respondeu:
— Amanhã copiarei e assinarei isto, e irei legalizar a minha assinatura ao
comissário de polícia.
— Não se esqueça, em companhia das duas testemunhas.
— Não será preciso. O comissário conhece-me pessoalmente. Fiz para a
sua mulher trabalhos de costura. Está portanto convencido da minha
identidade.
— Então muito bem.
— Quanto aos outros documentos eu os reclamarei na mairie do bairro
onde nasci, e na do bairro onde minha mãe morreu, mas não sei se as obterei
amanhã.
— Eu me encarregarei de dar esses passos. Queira indicar-me
exatamente os lugares e as datas do nascimento e óbito. Eu incumbo de
incutir zelo nos empregados.

***

Malpertuis escreveu as informações que Lucilia lhe ditou, e redarguiu:


— Agora, minha senhora, queira achar-se aqui amanhã às três em ponto.
Iremos juntos à casa do meu tabelião para se passar a procuração.
— Bem, murmurou a jovem muito confusa. Mas tudo isso vai Custar
dinheiro, e confesso que me seria impossível...
— Não lhe dêem cuidado essas bagatelas! interrompeu Malpertuis rindo.
Regularemos mais tarde as nossas contas, quando lhe entregar a sua fortuna.
Até lá eu me incumbo de tudo... de tudo absolutamente.
A Toutinegra sentia-se muito reconhecida.
— Ah! Meu senhor, que bondade a sua! exclamou.
— Agora me lembra, muito a propósito, continuou Malpertuis. Imagine
que me ia esquecendo de lhe oferecer um adiantamento.
— Um adiantamento? repetiu Lucília interdita.
— Um adiantamento sobre a sua herança, já se vê. A senhora tem
encargos, uma renda de casa, e os seus únicos recursos consistem no
trabalho, o qual lhe esgota as forças. Pois muito bem; de hoje em diante,
precisa de gastar à vontade, e só trabalhar para se distrair. Está possuidora de
um rendimento de dezessete mil e quinhentos francos. Não dispõe ainda
dele, é verdade, mas o possui. Ainda hão de decorrer uns trinta dias, antes
que se ache senhora do que lhe pertence. Não admitiria que daqui até lá
impusesse a si própria uma só privação, por pequena que fosse. Franqueio-
lhe a minha caixa. Quanto quer?
A Toutinegra dizia baixinho:
— Que honrado homem! Que excelente homem! Respondeu
timidamente:
— Parece-me que quinhentos francos... Mas talvez seja muito?
— Graceja! Vou adiantar-lhe cinco mil...
Lucília não acreditava no que ouvia.
Cinco mil francos! Uma nesga do Peru! O que poderia ela fazer de cinco
mil francos?
Malpertuis abriu a caixa.
Tirou da caixa quatro notas de mil francos cada uma, e um rolo de
cinqüenta luíses.
Depois colocou tudo num ângulo da secretária, em frente de Lucília.

C - UMA FORTUNA

— Isto pertence-lhe, menina! disse o ex-advogado mostrando o dinheiro


em ouro e os cheques.
— Mas isto é muito, senhor! É demasiado! exclamou Lucilia.
— Se quiser faça economias... replicou Malpertuis sorrindo. Demais, não
tarda que seja embolsada deste pequeno adiantamento. Daqui a um mês, ou
muito cinco semanas, repito-lhe, entrará na posse da sua herança.
— Aceito.
— Queira passar-me recibo. Amanhã redigirei e assinará uma obrigação
dos honorários que me serão devidos pelo meu trabalho e diligências, depois
de lhe serem entregues os fundos. Os honorários consistirão em seis por
cento da totalidade da herança.
— O que quiser, senhor...
— Oh! Bem sei que nos entenderemos às mil maravilhas. Agora, minha
senhora, entendo, para seu interesse, dever recomendar-lhe que não fale a
ninguém da fortuna que se lhe deparou, até o dia em que estiver no gozo dos
seus capitais.
— Guardarei segredo, senhor.
— A senhora é uma bela rapariga, digna desta inesperada pechincha.
Sinto-me satisfeito por haver servido de intermediário entre a menina e a
Providência. Portanto, até amanhã, e não se esqueça de me trazer o rascunho
da carta.
Lucília saiu do escritório da Rua da Vitória, perguntando no seu íntimo
se sonhava.
Era porém impossível a dúvida.
A realidade impunha-se-lhe sob a forma de notas de banco e do rolo de
cinqüenta luíses...
Rica! murmurou ela, caminhando rapidamente com o seu embrulho
debaixo do braço. Sou rica! Não casarei sem dote! Qual não será a surpresa
de Heitor, no dia do contrato, quando lhe entregar trezentos e cinqüenta mil
francos!
Estes trezentos e cinqüenta mil francos pareciam á ingênua Toutinegra
uma quantia enorme, fabulosa.
Entre esta quantia e os milhões do Príncipe de Castel-Vivant, a diferença
parecia-lhe mínima.

***

Naquele momento Lucília passava pela frente de uma igreja.


Entrou e ajoelhou-se, para agradecer a Deus, e pedir-lhe que velasse por
ela e por todos a quem amava.
Em seguida voltou para Belleville, e para o seu pequeno aposento da Rua
Julien Lacroix, onde a esperava a tia cega.
Malpertuis esfregava as mãos.
A herdeira de Edgard Sydney era uma criança ingênua, incapaz de
suspeitar um laço!
Logo depois dela se retirar, dirigiu-se ás duas mairies indicadas.
Obteve imediatamente, graças a boas gratificações, a certidão de óbito de
Amélia Gonthier e a certidão de nascimento de Lucília Gonthier.
No dia seguinte, à hora combinada, a jovem comparecia no escritório,
trazendo a carta copiada por ela, e cuja assinatura já vinha legalizada.
— Vou conduzi-la à casa do meu tabelião, disse-lhe Malpertuis. Mandei-
lhe esta manhã o modelo da procuração, por conseguinte, não terá mais que
ouvir a leitura e assinar, mas primeiramente queira tomar conhecimento do
pequeno documento relativo aos meus futuros honorários, e aprová-lo se o
teor lhe parecer conveniente.
A Toutinegra leu o pequeno documento, e assinou-o sem a menor
desconfiança.
Do mesmo modo, em caso do tabelião, deu a sua assinatura depois de
estudar o texto da operação.
Estava tudo perfeitamente em regra.
Informado destes resultados, o Barão mostrou-se satisfeito e disse:
— Faz visar estes documentos na legação americana, arranja um
passaporte e prepara-te.
— Quando deverei pôr-me a caminho?
— No dia seguinte àquele em que tiveres recebido cem mil francos do
Príncipe Brada.
— Quando os receberei? — No próximo sábado.
César recebera, para sábado, o convite do comediante para a festa da
inauguração da Avenida de Eynau.

***

Na Rua de Francisco I corria tudo cada vez melhor.


O Barão ia lá fazer todos os dias uma pequena visita, com o fim de
surpreender as relações que ele supunha existirem entre o Principezinho e
Lucília Gonthier, mas as entrevistas que Antonino Frébault fazia, eram raras
e muito secretas.
O sócio de Malpertuis não conseguia saber coisa alguma, salvo que a
convalescença do ferido continuava de modo normal, e nas melhores
condições.
César já não falava de Genoveva, que o Príncipe continuava a não
receber.

***

O dia do festim chegara.


A senhora de la Tour-du-Roy assustava-se um pouco ria festa a que
devia presidir, mas submetida ao domínio imperioso de Fernando Volnay,
não pudera esquivar-se a levantar publicamente o véu que ocultava ainda os
seus amores.
A ceia devia reunir vinte pessoas, entre as quais se achavam o senhor de
Fossaro e dois diretores de teatro.
Os outros convidados eram jornalistas, autores e atores dramáticos.
O amor de Lazarine por Fernando era exacerbado por um ciúme violento
que não lhe permitia tolerar a presença de atrizes no palácio da avenida de
Eylau.
No sábado, pela manhã, César, depois da troca habitual de sinais
elétricos, entrou pela porta secreta no gabinete de Malpertuis.
— Meu querido sócio, disse ele ao homem de negócios, o momento de
nos pormos em ação, chegou... Pega numa pena e escreve...
O ex-advogado dispôs-se a obedecer. Fossaro ditou: "Senhor Príncipe.
"Terei a. honra esta noite, às nove horas, de me apresentar no seu
palácio.
"Aceite os meus profundos respeitos."
— Assina...
— Agora a direção. Senhor Príncipe de Brada, Rua do Elyseu n.°... e
manda levar a carta por um criado.
— Que devo dizer esta noite ao Príncipe?
— Apenas que na noite seguinte, pela uma hora da manhã, achará a
Marquesa de la Tour-du-Roy ceando em numerosa e alegre companhia, na
casa do comediante Fernando Volnay, na avenida de Eylau, Vila
Montespan... Receberás cem mil francos, e a peça está pregada.
Malpertuis cocou atrás da orelha.
— Que fará esse fidalgo? perguntou.
— Alguma tolice, não oferece dúvida, respondeu César.
— Não ficarei comprometido? O Barão encolheu os ombros.
— Comprometido! repetiu ele. Por quê? A que propósito? Dás ao
Príncipe uma informação que há de aparecer amanhã, nela manhã. em meia
dúzia de jornais... Onde está o mal? Sossega! O senhor de Brada só
comprometerá o Príncipe e a Marquesa...
— Que temos a ganhar com esse escândalo?
— Em primeiro lugar cem mil francos, o que já é (uma bonita conta.
Devias compreender alem disso, (pie quanto mais baixo Lazarine cair, maior
certeza teremos de lhe arrancarmos uma parte da fortuna do filho.
— Tens resposta para tudo!
— Pudera!

***

Emmanuel de Brada habitava na Rua do Elyseu, um desses palácios


construídos pelo mesmo modelo, e que os parisienses conhecem.
Iam dar nove horas da noite.
O Príncipe estava só, no primeiro andar, num grande gabinete de
trabalho, forrado de tapeçarias de Flandres.
Quatro estantes de madeira escura com filetes de cobre, ocupavam as
quatro paredes.
Ao meio da casa. sobre uma grande mesa, servindo de secretária, e à
claridade de uma lâmpada munida do seu abat-jour, achava-se uma carta
aberta, a de Malpertuis.
Fora do círculo luminoso projetado pela lâmpada, reinava uma meia
escuridão.
O senhor de brada passeava de um lado para o outro, a passo rápido e
irregular.
Por vezes aproximara-se de uma janela, e por espaço de um segundo,
apoiava a fronte no vidro para a refrescar, e depois tornava a tomar os seus
movimentos de fera na jaula.
De repente parou.
Davam nove horas na pêndula de estilo Luís XIII, colocada sobre o alto
da chaminé.
Ao mesmo tempo tocava a sineta do hotel, anunciando uma visita.
O Príncipe esperou imóvel com o rosto voltado para a porta.
Passado um minuto, a porta abriu-se e o criado anunciou:
— O senhor Malpertuis.
O agente, quando entrou, fez uma profunda reverência, à qual o Príncipe
correspondeu com uma sumária inclinação de cabeça acompanhada das
seguintes palavras:
— O senhor é exato e agradeço-lhe. O fim da sua visita é, por certo,
dizer-me o resultado das pesquisas pedidas por mim.
— Sim, senhor Príncipe.
— E saiu-se bem?
— Perfeitamente.
— Sabe onde está a Marquesa de la Tour-du-Roy?
— Sei. e venho participar-lho.
— A Marquesa está ausente de Paris.
— Está em Paris, onde se oculta.
— Na Rua Murillo?
— Não. Na avenida de Eylau, Vila Montespan, num palacete com o n.°...
O Príncipe estremeceu.
— Desde quando? perguntou ele com uma voz abafada. — Há dez dias.
— E antes disso?
— Ocultava-se em Creteil, numa estalagem situada na cabeça da ponte.
— Em Creteil e na Vila Montespan! repetiu Emmanuel com uma
angústia visível. A senhora de la Tour-du-Roy estava só?
— Não, senhor Príncipe.
O senhor de Brada tornou-se lívido, e teve um tremor convulso, mas fez
sobre si mesmo um supremo esforço, e balbuciou:
— Um homem!
— Sim.
— O nome desse homem?
— Fernando Volnay.
— Fidalgo?
— Fernando Volnay, fidalgo! retorquiu Malpertuis num tom in-
traduzível. Não! É um comediante dos arrabaldes.
— Oh! exclamou o Príncipe com desgosto. As pernas vergavam-lhe.
Deixou-se cair numa cadeira, ao mesmo tempo que limpava com o lenço
as fontes molhadas de um suor frio.
***

Este estado de absoluta prostração durou pouco tempo. O senhor de


Brada levantando a cabeça, continuou:
— Onde se conheceram?
— No teatro de Belleville. A Marquesa viu-o representar, e apaixonou-se
por ele.
— O palácio da Vila Montespan pertence à senhora de la Tour-du-Roy?
— Não senhor Príncipe, mas a Fernando Volnay.
— Então ele é rico?
— Nada tinha. Foi um presente que lhe deu a Marquesa.
— Oh! repetiu o Príncipe.
Após um momento de silêncio, perguntou:
— Essas coisas extraordinárias que acaba de me dizer, são
absolutamente ignoradas do público?
— No momento em que estou falando são, replicou Malpertuis, mas
amanhã construirão o grande falatório de Paris.
— Como assim?
— Hoje pela uma hora da noite será a festa da inauguração no palácio da
Vila Montespan, consistindo numa ceia de autores, jornalistas e atores.
— A Marquesa assiste?
— É ela quem vai presidir à festa. O comediante mostrou-se exigente, e
a grande fidalga submeteu-se.
Emmanuel de Brada deixou pender a cabeça para o peito. Deslizavam-
lhe dos olhos grossas lágrimas. Parecia fulminado.
Malpertuis tinha pressa de concluir.
— Prometi, cumpri a palavra, exclamou. Sinto que as informações
obtidas sejam tão desagradáveis, mas eu devia dizer ao Príncipe toda a
verdade:
O fidalgo ergueu a cabeça e murmurou:
— O senhor prestou-me um serviço, cumprindo aquilo a que se obrigou,
e agora pertence-me cumprir aquilo a que também me obriguei...
E acrescentou abrindo uma gaveta da secretária, e tomando um maço de
bilhetes de banco:
— Eis a quantia combinada... cem mil francos... conte, peço-lhe.
— Não me atreveria a contar depois do Príncipe! exclamou Malpertuis.
Devo passar recibo?
— É absolutamente inútil. Está finda a sua missão. Não o demoro mais,
e novamente lhe agradeço.
O Príncipe tocou uma campainha, e disse ao criado de quarto que se
apresentou:
— Acompanhe este senhor...

CI - UM GRANDE LANCE

Emmanuel de Brada, ficando só, deitou-se para trás na sua poltrona, e


deixou vaguear os seus olhos tristes pelo teto pintado e decorado,
mergulhado na penumbra.
A contração das suas feições lívidas, revelava com muda eloqüência a
intensidade do seu sofrimento.
Cismava, e de segundo para segundo, tornava-se-lhe mais penetrante e
dolorosa a insondável ferida do coração.
A pêndula dando dez e meia, tirou-o daquela terrível meditação.
Depois de ter passado duas vezes a mão pela fronte, como para afastar as
imagens que o preocupavam, traçou algumas linhas sobre urna folha de
papel, meteu-a num envelope, fechou-a com uma grande sinete de lacre
preto, e expô-la bem cm evidência, no meio da sua secretária.
Em seguida, abriu uma segunda gaveta, pegou num revólver de coronha
de ébano, com incrustações de prata, certificou-se de que os cartuchos
estavam no seu lugar, e meteu a arma delicada na algibeira direita das calças.
Feito isto, transpôs a porta do quarto de dormir, escassamente iluminado
por duas velas.
O imenso leito de colunas, com dossel e cortinas de Genova, parecia um
catafalco.
Defronte deste havia um retrato em pé, de tamanho natural.
Representava este retrato uma mulher de feições nobres e cabelos
brancos.
A um ângulo da tela, a coroa fechada encimava um duplo escudo.
O senhor de Brada contemplou este retrato com ternura.
Em seguida ajoelhou em frente dele. balbuciando:
— Minha mãe... minha mãe, perdoe-me!
Depois ficou silencioso, chorando sem enxugar as lágrimas.
Quando levantou os olhos, já enxutos, brilhavam estes de um modo
estranho.
Entrou no seu gabinete de toilette, vestiu um pardessus muito leve,
calçou as luvas, pôs o chapéu, tornou a atravessar o quarto de dormir, deitou
um último olhar para o retrato, tocou uma campainha, e disse ao criado de
quarto que se apresentou:
— Saio a pé.
— Deverei esperar o senhor?
— Não... Não sei a que horas tornarei a entrar. Emmanuel saiu do
palácio, dirigiu-se para os Campos Elysios
e subiu lentamente a grande avenida com o passo automático de um
homem cujo pensamento está ausente, e não tem consciência dos seus
movimentos.
Chegando ao pé do Arco de Triunfo voltou para Paris.
A avenida, nitidamente delineada pelas luzes dos seus candeeiros, ia
estreitando em direção à Praça da Concórdia, picada de pontos luminosos.
Por cima da grande cidade flutuava uma névoa avermelhada, quase
semelhante ao último reflexo de um incêndio longínquo.
— Além há pessoas amadas... murmurou o Príncipe, há pessoas felizes.
E do peito saiu-lhe um longo suspiro.
Tornou a pôr-se lentamente a caminho dobrando, para a esquerda, e
meteu-se pela Avenida de Eylau.
Quando chegava quase à praça do mesmo nome, onde está a pequena
igreja Saint-Honoré. paróquia de uma parte importante do décimo sexto
bairro, olhou para o relógio.
Era meia-noite.
— Ti muito cedo! pensou o senhor de Brada.
Quase em frente da igreja existe um estabelecimento, metade café,
metade restaurante, cuja especialidade consiste em jantares de casamentos
burgueses.
Vários noivos, rodeados das famílias e dos amigos, preludiavam naquela
festa por meio de copiosas libações as alegrias problemáticas do casamento.
O gás flamejava na grande sala, onde saltavam as rolhas de vinho de
champanha.
O café estava aberto, mas quase solitário.
O Príncipe procurava um lugar onde pudesse esperar.
Apresentava-se-lhe aquele muito a propósito.
Entrou e sentou-se.
Um criado aproximou-se dele e perguntou-lhe:
— Que devo trazer?
— O que quiser.
— Café, chartreuse, conhaque ou rum?
— Rum, respondeu Emmanuel ao acaso.
O criado colocou em cima da mesa uma bandeja já desprateada com um
copo de cálice do tamanho de um dedal, e uma garrafa. Pelo espírito do
Príncipe passou subitamente uma idéia.
— Dê-me um copo grande, disse.

***
Persuadido de que o freguês ia preparar um grog, o criado trouxe o
recipiente pedido, uma garrafa d'água e açúcar.
O senhor de Brada deitou no copo grande todo o conteúdo da garrafa, e
engoliu de um trago.
O criado observava cheio de curiosidade o que ele fazia e dizia consigo.
— Que freguês tão exótico! Se tem o costume de tratar assim o álcool,
deve ser sujeito com a cabeça muito sólida.
Assim que bebeu, o Príncipe sentiu uma espécie de comoção elétrica.
Agitou-lhe os nervos um tremor nervoso, ao mesmo tempo que uma
vermelhidão ardente lhe purpureava as faces, mas o tremor nervoso durou
apenas um segundo, e o rosto retomou a melancólica palidez...

***

No momento em que o senhor de Brada entrava no café da Praça de


Eylau. os convidados de Fernando Volnay chegavam ao palácio da Vila
Montespan, cheio de flores, e mergulhado de jorros de luz.
A ceia devia ser servida por Paulo Brébant.
O amável e célebre restaurateur das letras, o amigo dos artistas, mandara
um dos seus chefes de cozinha e dois ajudantes que preparavam na cozinha,
situada no subterrâneo, algumas maravilhas gastronômicas.
— A sala de jantar, ainda deserta, mas iluminada a giorno, apresentava
um maravilhoso aspecto.
As velas numerosas da suspensão dos candelabros e das serpentinas,
faziam cintilar a baixela de prata completamente nova, os cristais, as
porcelanas, e listravam de cintilações luminosas as louças artísticas
suspensas da parede forrada de couro de Córdova.
No lugar de honra, ao lado do talher destinado a Lazarine, via-se um
ramo do mais alto modelo.
Era uma galanteria que o artista fazia à amante.
Muito correto, e quase tão belo sob a casaca preta e o colete aberto do
perfeito gommeux, como sob o gibão dos fidalgos, ou a casaca dos
mosqueteiros, Fernando sentia-se literalmente ébrio de alegria e orgulho mas
apresentava-se bem, e graças às feições reiteradas da Marquesa, recebia os
hóspedes com uma facilidade de bom gosto, da qual alguns no íntimo se
admiravam.
César de Fossaro fora um dos primeiros a chegar.
Quisera ver tudo, admirar tudo, e os seus cumprimentos hiperbólicos
mergulhavam o comediante na alegria mais viva.
A meia-noite e meia o número dos convivas achava-se quase completo.
Lazarine, de quem todos tinham cuidado de não falar, mas que toda
gente esperava com impaciência ainda não chegara.
Alguns convivas não estavam longe de supor que no momento de se
comprometer de um modo irremediável, a grande senhora recusaria.
O Barão sentia-se inquieto.
Mas não tardou que se dissipasse a inquietação.
Entrou na sala Um criado de mesa, e falou em voz baixa a Fernando, que
sorriu com indizível expressão de fatuidade, e saiu com o rosto radiante.
— Aí a temos... pensou Fossaro.
Quase no mesmo instante tornou a abrir-se a porta de par cm par, o
criado de quarto fazendo as funções de introdutor, anunciou:
— A senhora Marquesa de la Tour-du-Roy...
Ao mesmo tempo Lazarine entrava pelo braço de Fernando, graciosa,
risonha, radiante, como uma jovem imperatriz em meto da sua corte.
Elevou-se um murmúrio de admiração, aliás absolutamente sincera.
A deslumbrante Lazarine estava naquela noite mais deslumbrante talvez
que nunca.
A sua toilette valia um poema.
Merece ser sumariamente descrita, a título de esclarecimento para as
futuras idades.
A Marquesa trajava uma saia de cetim cor-de-rosa desmaiada, de imensa
saúda, com aplicações de veludo cor-de-rosa frappé.
Entre as aplicações de veludo. sobrepunham-se laços de cetim cor-de-
rosa e entremeios bordados de pérolas.
De cada lado da saia uma grinalda de rosas-chás, e de rosas-de-musgo.
O corpete, aberto em quadrado, muito baixo, e enfeitado de rosas,
deixava ver quase completamente, com uma audácia de deusa segura de si
mesma, a garganta triunfante.
O veludo cor-de-rosa, matizado de pérolas e de diamantes, formava as
obreiras e o peitilho do corpete.
Nem uma jóia velava a esplêndida nudez dos braços e dos ombros.
Um pente de diamantes segurava-lhe no alto da cabeça os cabelos cor de
fogo enrolados como os de uma ninfa.
Dois grandes caracóis desciam-lhe pelas costas chegando até a cintura.
Na mão esquerda trazia um leque maravilhoso, leque de Keés, o
confeccionador de leques dos artistas e das princesas.
A firmeza de Lazarine, no momento de entrar, era mais aparente que
real.
A Marquesa persuadia-se de que a admiração causada pela sua presença
ia produzir um mal-estar geral.
Não sucedeu semelhante coisa.
Todos disseram consigo:
— Se ela aqui está, é por ser muito da sua vontade!
O meio mais seguro de lhe agradar, é simular que se acham muito
simples as suas excentricidades.

***

A senhora de la Tour-du-Roy era muito inteligente para não


compreender o que se passava no espírito dos convidados de Fernando.
Por isso readquiriu logo a sua serenidade.
Depois, entre os convidados, ela conhecia diversos, o Barão de Fossaro
entre outros, o jovem diretor do Ambigu, e o autor dramático, cuja peça
Fernando representava.
Achou uma palavra agradável para cada um dos convidados que o
amante lhe apresentava, depois pôs-se a fazer coquetismo em regra com
Chabrillart e Fossaro.
— Os senhores hão de ser meus vizinhos à mesa, disse-lhes ela. e
pretendo embriagá-los a ambos...
— Bastariam os seus olhos para isso, senhora Marquesa, replicou César
rindo.
Chabrillart aprovou com um gesto.
O criado de mesa apareceu, grave e solene, e proferiu com uma voz
sonora a frase sacramental:
— A senhora Marquesa está servido.
— Lazarine foi a primeira a pôr-se a caminho, pelo braço de Fossaro, e
os convivas seguiram-na em boa ordem à sala de jantar.
O princípio do jantar não foi animado, regra geral, que não julgamos
tenha exceção, mas a senhora de la Tour-du-Roy encarregou-se de desfazer o
gelo.
Como sabemos, ela estava senhora, havia muito, de todas as sutilezas do
calão parisiense, e o melhor dos pais, (os leitores do Demônio Ouro, hão de
estar lembrados disso), achava extremo prazer em ouvi-la fazer blague,
quando ela era ainda a pequena Leroux.
Atirou com toda a franqueza a sua coroa de Marquesa para trás das
costas, e deu o sinal da alegria gaulesa com uma verve endiabrada, com um
brilho incomparável.
Os convivas não queriam outra coisa senão segui-la nesta senda, e
quando a carpa do Reno à la Chambord fez a sua aparição, com o seu
acompanhamento obrigatório de vinho de Chateau Yquem, meio gelado,
todos falavam ao mesmo tempo, e tão alto, que ninguém se entendia.
***

Voltemos ao Príncipe de Brada.


Sentado, de cabeça baixa, diante da garrafa vazia, com certeza se
absorvia nutri pensamento sinistro, porque a expressão do seu rosto tornava-
se terrível.
O relógio do pequeno botequim, acabava de dar uma hora.
Os noivos, as suas famílias, e os amigos, tornavam a subir para a
carruagem, e uma das testemunhas da noiva cantava com uma voz de tenor
enrouquecida, um velho estribilho popular.
O criado chegou-se ao Príncipe.
— Senhor, disse-lhe. vamos fechar.
O senhor de Brada atirou para cima da mesa com uma moeda de ouro.
— Eu vou buscar o troco, disse o criado.
— Guarde tudo, replicou o gentleman. E levantou-se para sair.
Vendo-o afastar-se, o criado pensava:
— Este sujeito tão generoso, tem cara de alguém que projeta coisa má.
O Príncipe continuou o seu caminho; em menos de dez minutos chegou à
grade da festa a entrada da Montespan, grade que tinham deixado aberta para
as carruagens.
A Vila Montespan é uma rua de pequena extensão orlada de árvores que
vai da Avenida de Eylau à Rua da Pompe, e ladeada à esquerda e à direita de
graciosas habitações.
Emmanuel de Brada meteu-se por aquela rua.
Esquecera-se do número do palácio dado por Lazarine a Fernando, mas
nessa noite era impossível um erro.

CII - SOLUÇÃO FATAL

As janelas do palácio em festa, separado da avenida por um pátio muito


estreito, cintilavam.
Uma das janelas tinha sido entreaberta para dar uma pouca de frescura à
atmosfera ardente da sala de jantar.
Saía dali o ruído de alegres exclamações, de sonoras risadas, de tinir de
cristais.
— É acolá... disse o Príncipe.
Entrou no pátio, cuja porta não estava fechada, e parou.
Os vapores do álcool que acabava de beber de um trago, subiam-lhe ao
cérebro já perturbado pela dor, e ocasionavam uma espécie, de embriaguez
ao mesmo tempo lúcida e feroz.
No rumor geral houve de repente uma interrupção.
Depois, uma voz elevou-se. e aos ouvidos de Brada chegara nestas
palavras nítidas e distintas:
— Bebo à bela das belas! A Marquesa de la Tour-du-Roy, esclarecida
protetora da arte e dos artistas!
Uma trovoada de aplausos acolheu este toast.
O Príncipe levou a mão ao coração que parecia estalar-lhe, um sorriso
terrível descerrou-lhe os lábios, e com um passo pesado, mas firme, dirigiu-
se para os degraus do vestíbulo.
Na sala de jantar os convivas faziam novamente grande ruído.
Produziam efeito as libações reiteradas dos vinhos de todas as
qualidades.
A extrema liberdade dos ditos quase atingia a licença.
A ceia principiava a degenerar em orgia.
O ex-primeiro ator de Belleville achava-se no seu elemento o triunfava
de um modo ruidoso, despejando sem cessar o copo renovado
constantemente, e falando, ele só, mais alto que todos os convivas juntos.
Lazarine olhava para ele com paixão e com orgulho.
De repente levantou-se, segurando na mão um copo meio de champanha
gelado.
— Escutem! Escutem! bradaram vinte vozes, a Marquesa quer falar.
A senhora de la Tour-du-Roy sorriu.
— Senhores, disse ela. vão-me corresponder. Chegou o copo à flor dos
lábios e exclamou:
— Bebo ao rei do mundo! Bebo ao demônio amor! Amar é viver.
Exatamente neste momento a porta que ficava detrás de Fernando
Volnay, e defronte da qual se achava Lazarine, abriu-se repentinamente. e o
senhor de Brada apareceu.
A senhora de la Tour-du-Roy viu-o, soltem um grito de terror e tornou-se
pálida como uma estátua de alabastro.
— Amar é viver diz? Pois amar é às vezes morrer, replicou o Príncipe
com uma voz abafada.
Todos compreenderam instintivamente que alguma coisa terrível ia se
passar.
Ficaram assombrados e aterrados.
Fernando Volnay levantou-se e encaminhou-se para o singular visitante.
— Senhor, disse-lhe num tom quase ameaçador, está em minha casa.
Não o conheço. Quem é? Que me quer?
— Chamo-me o Príncipe de Brada, respondeu Emmanuel
desdenhosamente, e estou em casa do amante pago pela Marquesa de la
Tour-du-Roy, bem o sei, mas não é com o senhor que tenho contas a ajustar,
é com ela.
— Senhor! exclamou Fernando.
— Ah! Cale-se! ordenou o Príncipe com uma autoridade que
constrangeu o ator ao silêncio. Repito, não falo com o senhor, falo com
aquela que tinha jurado ser Princesa de Brada! Joguei a existência sobre o
amor e sobre a honra desta mulher, e dissera-lho! Atraiçoar-me
cobardemente, era condenar-me à morte. Sabia-o e não hesitou. E não é só a
sua traição que me mata, é a sua vergonha. Vou morrer, Lazarine, porque a
amei! Vou morrer porque sou covarde, e apesar de tudo ainda a amo. Mas
morrendo, farei justiça. Não quis partilhar a minha vida, partilhará a minha
sepultura!
E dizendo isto, Emmanuel de Brada tirava da algibeira o revólver
engatilhado.
Pronto como o raio, apontou para Lazarine.
Fossaro que dera volta à mesa, achava-se ao lado do Príncipe.
Agarrou-lhe no braço no momento em que dava ao gatilho.
O revólver desfechou, mas a bala sumiu-se no teto.
A senhora de la Tour-du-Roy, julgando-se ferida, desmaiou de terror.
Emmanuel de Brada desembaraçou-se com um movimento repentino das
mãos de Fossaro, recuou um passo, encostou o revólver à fronte, fez fogo e
caiu morto.
A esta dupla detonação seguiu-se então um tumulto geral.
Todos os convivas se agruparam assustados, uns em roda do cadáver do
Príncipe, outros junto do corpo da Marquesa.

***

— Era um louco! exclamou o Barão.


— Um louco bem malévolo! retorquiu Fernando Volnay. Quase feriu
Lazarine, e mata-se sobre as minhas alcatifas! Que coisa tão bonita! Vamos
jogar as cristas com a justiça!
— Soberbo desenlace de drama para o Ambigu, pensava Chabrillat.
Amanhã falarei nisto a Busnach.
Levaram a senhora de la Tour-du-Roy para o seu leito, onde não tardou a
recuperar os sentidos.
Ao mesmo tempo um criado corria a toda pressa a chamar um
comissário de polícia.
O suicídio, presenciado por vinte testemunhas, não podia ser posto em
dúvida.
Logo depois de ter redigido o auto de corpo-de-delito, o comissário fez
colocar o corpo do Príncipe numa carruagem que conduziu no palácio pelo
senhor da Rua do Elyseu.
Ali. abriram a carta deixada pelo senhor de Brada sobre a secretária.
A carta atestava que ele resolvera matar-se, depois de ter matado a
Marquesa.
Ti escusado afirmar que os jornais do dia seguinte, falariam todos da
festa tão lugubremente terminada em casa de Fernando Volnay.
Foi para o comediante uma verdadeira auréola, e para Lazarine um
deslocamento completo.
Daquele dia em diante, a Marquesa de la Tour-du-Roy, apesar do seu
nome e do seu título, já não pertencia à verdadeira sociedade, mas à
sociedade das mulheres de mau proceder.
— Tem o demônio no corpo! pensou o melhor dos pais. Era tão fácil
esposar o Príncipe, evitar todo o escândalo, e conservar o ator!
Sempre prático o bom Júlio Leroux!
O senhor de Fossaro levou a notícia da catástrofe ao Príncipe Totor, que
não suspeitava dos novos amores da sua antiga noiva.
— O tal senhor de Brada tinha a cabeça um pouco fraca na verdade!
disse. Foi melodrama demais! Então aí temos a Marquesa amante declarada
do comediante?
— Sim, querido, Príncipe, e foi o senhor que o lançou nos seus braços.
— Eu! Como?
— Paga a Fernando os juros da estocada que ele lhe deu ao senhor.

***

Heitor ia cada vez melhor.


Antonino Frébault permitia-lhe agora levantar-se depois do meio-dia, e
dar duas ou três voltas pelo quarto.
Dali em diante a convalescença devia ir depressa.
No dia seguinte à ceia da Vila Montespan, Malpertuis dirigiu-se para o
Havre, onde embarcou para New York.
Durante a sua ausência, o empregado principal ficava encarregado da
direção da agência, mas tinha ordem de só dar seguimentos aos negócios de
pouca importância e de solução fácil.
Todas as cartas, todos os papéis destinados a Malpertuis, deviam ser
classificados dia a dia, e colocados em boa ordem em cima da secretária do
agente.
Fossaro podia, assim, todas as noites tomar conhecimento deles, e sem se
por em evidência pessoalmente, fazer o necessário em caso de urgência
absoluta.
Nada, aliás, fazia supor que um caso deste gênero se havia de apresentar.
O Barão ocupava-se ao mesmo tempo do palácio do arrabalde Saint-
Honoré, e do da Rua Francisco I.
Queria despedir um grande golpe, um golpe decisivo para ambos os
lados ao mesmo tempo.
As breves palavras de Branca, depostas no quiosque do jardim, sob o
musgo do vaso de Delft, davam-lhe a certeza de que o estado da Marquesa se
tornava cada vez mais grave, e que o Duque, uma ver viúvo, não hesitaria
em pôr o seu nome e tudo quanto lhe pertencia, aos pés da falsa Adriana.
Antonino Frébault, da sua parte, confessou ao Barão o enfraquecimento
rápido da senhora de Chaslin, sem ocultar que este enfraquecimento lhe
parecia inexplicável e nada natural.

***

Roguemos aos nossos leitores que nos sigam ao arrabalde Saint-Honoré,


ao quarto de dormir de Joana de Chaslin.
A doente concluía a leitura de uma carta que acabava de chegar, e o seu
rosto pálido exprimia alegria.
"Branca sentada junto dela, observava-a atentamente.
— Parece-me que a senhora Duquesa recebeu boas notícias.
— Sim, minha filha, respondeu Joana, boas notícias. Ú uma carta de meu
filho...
— Do senhor Rogério.
— Do meu querido Rogério, do 7.º de hussares... Não me escrevia havia
um mês.
— O seu regimento continua em guarnição na Haute-Saône?
— Sim, em Vesoul... Mas Rogério ficará livre dentro de alguns meses e
voltará... Verá então, Adriana, que quando eu faço o seu elogio, o meu
orgulho e o meu amor de mãe não exasperam as suas qualidades. É o que se
chamava cm outros tempos um cavalheiro perfeito, e hoje se chama um
perfeito gentleman! file fala em você, Adriana.
— Em mim! exclamou a jovem com verdadeira admiração. — Sim,
minha filha...
— Mas como é isso, minha senhora?
— É muito simples. A minha última carta deu-lhe parte da sua entrada
para a nossa casa... Disse-lhe que tínhamos tido a alegria de encontra em
você a filha de amigos nossos, que outrora nos foram bem caros. Gabei-lhe
os cuidados tocantes, a afeição terna. a dedicação de que me rodeia.. Tem
pressa de a conhecer, de lhe agradecer, de a amar tanto como nós a amamos.
A menina também o há de amar, não é verdade, Adriana?
— Como não hei de o amar, senhora Duquesa, se é seu filho?
— E depois ele é tão bom, tão interessante! Não julgue que me iludo a
respeito da sua beleza. Vai avaliar.
— Eu, minha senhora!
— Sem dúvida, e já... Rogério manda-me a sua fotografia de grande
uniforme. Olhe...
A senhora de Chaslin tirou-a do sobrescrito, e mostrou â jovem um
retrato.
Branca olhou com curiosidade para a fiel imagem do Marquês Rogério
de Chaslin de Hervilliens, naquela ocasião quartel-mestre do 7.° de hussares.
Aquelas feições corretas sem frieza, e aristocráticas sem altivez, aquele
rosto exprimindo ao mesmo tempo a doçura e a firmeza, aqueles grandes
olhos ternos e altivos, impressionaram-na vivamente.
A elegância do talhe, a gentileza viril do busto, completavam o mais
elegante conjunto que se pode imaginar.
A filha de Pedro Carnot não podia despregar os olhos do retrato, e pela
primeira vez experimentava contemplando-o uma sensação de perturbação
que não era destituída de encanto.
— Então! Tenho ou não razão? perguntou a senhora de Chaslin, a quem
a admiração visível da jovem causava um gozo delicioso. Não será belo o
meu Rogério?
— Oh! Sim, muito belo! respondeu Branca com entusiasmo. Nunca vi
ninguém tão belo. Parece-se consigo, minha senhora... Tem os seus olhos e o
seu sorriso... Tem a sua fronte, onde brilha a inteligência. Deve ser bondoso,
como é a senhora.
— É um coração de ouro, uma alma eleita! exclamou a Duquesa. Ah!
Querida, querida Adriana, adivinhou-o, compreendeu o meu Rogério, e
parece-me que será motivo para ainda mais a amar.
E Joana de Chaslin, puxando Branca para si, abraçou-a, beijou-a na
fronte por muitas vezes com uma ternura quase maternal, murmurando com
uma voz muito baixa, mas distinta:
— Se pudesse um dia chamar-lhe filha! Branca sentiu um grande abalo.
Como um raio de luz, acabava uma idéia de lhe perpassar pelo espírito.
— Eli, minha senhora, eu sua filha!
— Decerto.
— Que diz. minha senhora?
— Digo que se realizaria o meu sonho mais caro.
— Mas é impossível!
— Então, por quê? Sente-se junto de mim, Adriana, e conversemos...

CIII - INTRIGAS
— A minha querida Adriana tem vinte anos, continuou a senhora de
Chaslin. É a idade em que se decide da vida... A aparente inferioridade da
sua posição causa-me uma verdadeira mágoa.
— Não pense em tal.
— Pelo contrário. É tempo de, aos olhos de toda a gente, se tornar a filha
do Conde de Lasseny. É preciso que o seu futuro se decida.
— O meu futuro, interrompeu Branca, cobrindo de beijos uma das mãos
da Duquesa, consiste em ficar para sempre junto de si.
— Sim, conheço a sua profunda afeição, estou convencida da sua
dedicação sem limites, replicou Joana, e é por isso que vou falar como
falaria a uma filha minha... Pertence a uma família que foi outrora aliada aos
maiores nomes da França... A nobreza de Lasseny vale pela de Chaslin.
Creio que o seu coração está livre... Se assim não fosse mo diria... O meu
filho Rogério não tarda que volte para junto de nós, porque o alistamento
que ele contraiu num momento de despeito, chega ao seu termo. Vai vê-lo,
conhecê-lo, avaliá-lo. Se Deus permitir que ele a ame, e se Adriana se sentir
impelida para ele, dir-lhe-ei: Adriana, querida Adriana, quer ser minha filha?
Branca deixou-se cair de joelhos diante do leito:
— Ah! minha senhora, balbuciou com voz trêmula, ser mulher de seu
filho! Dar-lhe em voz alta esse título de mãe que lhe pertence no meu
coração, seria uma felicidade que não me atrevo a imaginar! Reflita, minha
senhora, quão pobre sou!
— E o que importa? Rogério tem riqueza suficiente para ambos!
Escrever-lhe-ei... Deixar-lhe-ei entrever vagamente os meus projetos e as
minhas esperanças... O senhor de Chaslin, a quem não quero ainda falar do
delicioso sonho que me preocupa, não poderá deixar de me aprovar. Estou
firmemente convencida de que ele me animará na minha resolução.

***

O Duque acabava de abrir a porta cio quarto de dormir. Ouvira as


últimas palavras.
— De que resolução fala, querida Joana? perguntou Joana ficou
sobressaltada.
O Duque prosseguiu:
— A senhora já tinha falado de um projeto vago que amadurecia no seu
espírito. Não me explicará hoje do que é que se trata?
Branca esperava toda trêmula a resposta da Duquesa. Desta resposta ia
depender o seu futuro, e o dos planos concebidos por Pedro Rédon.
A senhora de Chaslin disse com um sorriso:
— Paciência, meu amigo... Eu me explicarei, mas um pouco mais tarde...
Tenha confiança em mim, e lembre-se de que trabalho para a felicidade de
Adriana.
Henrique não insistiu. Pensava:
— A felicidade de Adriana! É a mim, e só a mim, que pertence assegurá-
la.
Depois do seu regresso ao palácio, depois da sua fuga para a Roche-sur-
Loire, o senhor de Chaslin não dirigira uma só palavra de amor à jovem.
Só os seus olhos revelavam a sua paixão.
Conservava-se senhor de si, mas o mutismo que se impunha exacerbava-
lhe a loucura.
Estas palavras: a felicidade de Adriana, proferidas pela mulher,
acabavam de lhe causar uma sensação de angústia.
Queria saber se a menina de Lasseny conhecia o segredo da Duquesa.

** *

Durante toda a noite espreitou a ocasião de se achar a sós um instante


com a falsa Adriana.
Como a ocasião se apresentasse, aproveitou-a. Com uma voz alterada
pela comoção, murmurou:
— Depois da cena deplorável em que, para impor a minha vontade, tive
de deixar o palácio, murmurou ele com uma voz perturbada pela comoção,
nunca lhe falei da hora mais luminosa da minha existência... da hora cuja
recordação me faz febre... da hora abençoada em que me disse que talvez me
amasse algum dia...
— Senhor Duque, replicou a jovem mergulhando o rosto nas mãos para
ocultar uma vermelhidão imaginária, não me lembre, peço-lhe, as palavras
imprudentes que a mim mesmo exprobo amargamente, e das que eu quereria
até apagar a recordação...
— Pelo contrário, replicou o Duque, preciso de lhas recordar, preciso
não as esquecer nunca, senão por amor. pelo menos por piedade. A sua
indiferença, seria a minha morte! Só a esperança me sustenta! Ora, desde
esta manhã já não vivo! A Duquesa ocupa-se, disse, da sua felicidade... Essa
pretendida felicidade assusta-me... ela tenciona casá-la?
— Eu, senhor Duque, casar-me! exclamou Branca com uma surpresa
admiravelmente fingida.
— A Duquesa não lhe deu a saber quais as suas intenções relativas ao
seu futuro?
— Nunca...
— Pois é possível isso?
— A senhora Duquesa exprimiu-se vagamente, como se estivesse na sua
presença, e sem me deixar ler no fundo do coração.
— Isso é verdade?"
— Juro-lhe.
— Então acredito... quero acreditar... É que. Adriana, sabe tudo me
inquieta e mete medo... Amo-a tanto!
Branca pôs as mãos, e disse com voz aterrada:
— Suplico-lhe, senhor Duque, rogo-lhe, não me fale assim... Não posso
escutar semelhante linguagem.
Henrique de Chaslin fez-se pálido.
— Ah! exclamou sentindo o coração oprimir-se-lhe, não me ama, nunca
me amará.

***

A filha do Pedro Carnot, como grande atriz que era, conseguiu derramar
verdadeiras lágrimas, filie num instante lhe inundaram o rosto.
— Ah! balbuciou ela com uma fingida alucinação, é porventura o
momento de me interrogar, e como poderei responder-lhe quando eu mesma
ignoro o que se passa no fundo do meu coração. Não é meu rigoroso dever
lutar com todas as minhas forças? Quando me acho em presença da senhora
Duquesa, tão boa, tão terna, tão maternal para mim, deploro o fato de lhe
inspirar um sentimento criminoso... Deus sabe que não tenho culpa nenhuma
disso, e contudo faço horror a mim mesma como se fosse culpada.
— Adriana... Adriana... murmurou o Duque chegando ao paroxismo da
paixão, tenha piedade daquele a quem enlouquece, e não desejaria curar-se
da sua loucura... O meu amor consome-me. o meu instinto adverte-me que a
Duquesa pensa em nos separar, lançando-a nos braços de um marido. Para
tornar irrealizável o projeto insensato que ela concebeu, só tem um meio, um
só...
— Qual?
— Seja minha!
Branca recuou dois passos fria e altiva, com o olhar desdenhoso e
carregado de cólera.
— Se é esse o seu amor, como se exprime o seu desprezo?
O senhor de Chaslin pôs um joelho em terra com verdadeira alucinação.
— Ofendi-a, balbuciou. perdoe-me! repito-lhe que enlouqueço! O
sangue exalta-me as veias... A sua beleza embriaga-me, e faz-me perder a
razão... Perdoe-me, perdoe-me!...
O Duque estendia para Branca as mãos trêmulas.
Branca tomou-lhas apertando-as suavemente nas suas.
A este contato, Henrique estremeceu.
Por diante dos olhos perturbados, passou-lhe uma nuvem de fogo.
— Para todos os pecados há misericórdia! murmurou a jovem com um
meio sorriso. Perdôo-lhe, mas não torne a pecar! Deve levantar-se, senhor
Duque, e não esquecer que não está livre...
— Quando eu estiver livre, replicou o senhor de Chaslin com voz
abafada, a senhora será Duquesa...
E sem voltar a cabeça, afastou-se com um passo vacilante.
— Duquesa... pensava Branca que ficara só, Duquesa com este velho!
Rogério, esse é moço, esse é formoso... e também ele há de ser Duque um
dia.

***

Durante toda a refeição da noite, Henrique de Chaslin esteve triste e


sombrio.
Para explicar a sua atitude, alegou que estava um pouco doente, e
dirigiu-se muito cedo para o seu quarto particular, onde se fechou.
Por volta das dez e meia a Duquesa mandou Branca deitar-se.
Muito antes da meia noite, os criados do palácio tinham-se retirado.
A falsa Adriana, depois de se certificar que a senhora de Chaslin
repousava, dirigiu-se nos bicos dos pés para o segundo aposento, que como
sabemos, tinha uma saída para a escada de serviço.
Desceu sem fazer ruído, e abriu a porta que deitava para o jardim.
Tornou a escutar, não ouviu nada de suspeito, saiu e dirigiu-se através
dos massiços, para o pavilhão rústico, onde depunha os bilhetes lacônicos
destinados a Pedro Rédon.
No momento de ali chegar estremeceu e parou como uma cabrinha
espantada.
Acabava de distinguir um ruído fraco, mas distinto, do lado da grade que
deitava para a avenida Gabriel.
O encontro era para a meia noite... pensou a jovem.
Ele é exato. Deve ser ele.
Correu a ocultar-se detrás de um grupo de arbustos, e com os olhos fitos
na portinha aberta na grade, aguardou.
Girou uma chave na fechadura.
A porta abriu-se.
Pedro Rédon entrou, e tornou a fechar a porta após si.
Branca saindo do seu esconderijo, avançou.
— Vim, porque o senhor me ordenou, disse ela em voz baixa, mas é uma
imprudência... Tenho pressa de voltar para o meu quarto. Fale depressa. Por
que foi que não escreveu segundo o costume?
— Porque há coisas que não podem escrever-se. replicou o cego de um
olho.
— Pedro, assusta-me.
— Por quê?
— O papel que me impõe nesta casa, é odioso.
Pedro encolheu os ombros, rindo com uma expressão sarcástica.
— Tem por acaso remorsos? perguntou.
— Tenho.
— Escolhes a ocasião própria! Remorsos quando estás a tocar numa
imensa fortuna, num título de Duquesa! Toma cuidado! No dia em que tu
fraquejasses, tu minha cúmplice, tu minha escrava, suprimir-te-ia... e eu não
teria remorso!!
E ao mesmo tempo que ia proferindo estas palavras, Pedro Carnot pegara
no braço da jovem e apertava-lhe com força despedaçadora.
— Ah! pensou ela cheia de terror, não hesitaria, era muita capaz de me
matar como diz.
Depois em voz alta:
— Prometo-lhe ser forte e obedecer. Que devo fazer?
— Tornar a pôr, amanhã já, em cima da mesa da Duquesa, em lugar do
frasco de grânulos de digitalina, o frasco que te dei.
— O que encerra o frasco?
Pedro Carnot sorriu com uma expressão malévola.
— A coroa ducal, e os milhões de Henrique de Chaslin... Branca
estremeceu.
— A morte da Duquesa, balbuciou.
— Ora essa! pois não é preciso que o Duque enviúve para te desposar?
— Amanhã farei a troca.
— Tenha o cuidado, tornou César, de retirar o frasco suspeito à hora da
visita, cotidiana do doutor.
— Esteja descansado...
— Não tinha mais nada a dizer. Retira-te, se quiseres... vou--me embora.
Pedro Carnot dirigiu-se para a grade sem acrescentar palavra. Dali a um
minuto estava fora do jardim.

***

Branca muito assustada, voltou para o quarto. Pela primeira vez, de


certo, tinha ela plena consciência do crime horroroso de que se fazia
instrumento.
Horrorizava-a o crime, mas não pensava em recuar.
Desobedecer a Pedro Carnot parecia-lhe impossível.
Depois, a sua ambição sem limites impelia-a.
Deitou-se e adormeceu quase no mesmo instante.
O seu sono foi agitado, nervoso, povoado de sonhos espantosos.
A imagem do filho da Duquesa volvia sem cessar aos seus sonhos.
E ao romper do dia, (mando despertou, o primeiro pensamento que lhe
ocorreu foi este, já formulado na véspera, após a sua entrevista com o senhor
de Chaslin:
— Rogério há de ser também Duque!

***

Passaram-se alguns dias sem sobrevirem fatos imprevistos.


Antonino Frébault cada vez se admirava mais da marcha extraordinária
da doença de Joana, marcha, que segundo já dissemos, transtornava-lhe as
previsões, e comprometia-lhe a ciência.
Para ele a Duquesa estava, havia muito, condenada sem apelo.
Podia ele por ventura imaginar que mão criminosa apressava o fim da
desgraçada mulher!
Todos os crimes têm um móvel, ou a Cupidez ou a vingança.
A que móvel atribuir um assassinato cometido na pessoa da Duquesa?
Ninguém no mundo, parecia, tinha interesse na sua morte.
Antonino Frébault nem por isso estava menos preocupado a esse
respeito, e não ocultava as suas preocupações ao fiarão de Fossaro.
Na rua de Francisco I, pelo contrário, tudo corria o melhor possível.
A convalescença do Príncipe Totor fazia rápidos progressos, o doutor,
encantado, esfregava as mãos.
Uma manhã, segundo o costume. César fez-se anunciar em casa do ex-
Bégourde.
Seriam umas onze horas da manhã.
Heitor, já levantado, com o rosto sereno, cor fresca, concluía a sua
toilette sem auxílio do criado de quarto.

CIV - UMA ARMADILHA

— Os meus cumprimentos, querido Príncipe! exclamou o Barão. A cura


está hoje completa, e vejo-lhe cara de quem está bom. Vai sair?
— A cara não engana, volveu Heitor rindo. Sinto-me inteiramente bem
disposto... As forças voltaram-me, e vou aproveitá-las para fazer algumas
visitas...
— Visitas! Seriamente?
— Muito seriamente.
— Não têm medo da fadiga?
— Fatigar-me-ei, não há dúvida: mas o nosso amigo Frébault não vê
agora nenhum inconveniente nisso.
— Se tem autorização do doutor, tudo vai bem...
— De mais, tornou o Príncipe Totor, é preciso que torne a entrar no
movimento, e deixe de me poupar. Daqui a alguns dias tenciono reunir os
amigos à mesa para festejar de copo em punho a minha cura completa. O
senhor está no alto da lista. Espero mostrar-me sólido bebedor, como antes
do meu duelo.
— Beberemos de bom grado à sua saúde, e quando não bebêssemos, não
sei quando deveríamos beber. Agora, querido Príncipe, outra coisa.
— Diga.
— Quer ser-me agradável?
— Se duvidasse disso, nunca lhe perdoaria! De que se trata?
— Um compatriota meu, capitão de longo curso, a quem prestei alguns
serviços, acaba de me enviar, como testemunho de gratidão, uma coleção de
armas indianas, que não têem outro mérito mais que a sua extrema
originalidade. Permita-me que lhas ofereça para as panóplias já tão ricas, do
seu gabinete de fumar.
O senhor de Castel-Vivant replicou, apertando a mão de Fossaro:
— Aceito-as, meu querido Barão, aceito-as com muito gosto, e
agradeço-lhas de todo o coração.
— Eu é que lhe fico agradecido, tornou Cesar, porque me aceita um
presente tão modesto... Mandar-lhe-ei as armas por um operário italiano,
muito hábil e cheio de experiência, que as disporá nas panóplias, coisa
bastante difícil... O operário apresentar-se-á na primeira ocasião com o meu
bilhete de visita... Previna o seu criado de quarto para que ponha o gabinete
de fumar à sua disposição durante duas horas.
— Fica entendido.
— Demais, procurarei achar-me aqui ao mesmo tempo do que ele e
talvez lhe possa dar indicações úteis...
— Isso assim será melhor...

***

Fossaro despediu-se do Príncipe.


Heitor, um quarto de hora depois, subia para o seu coupê, e dava ordem
para o conduzirem à rua Julien Lacroix.
Tinha pressa de tornar a ver a sua adorada Lucilia, que havia quatro dias
que não vinha ao palácio da rua Francisco I.
Era irrevogável a resolução do Príncipe. Queria desposar a Toutinegra
no mais breve prazo, sem se preocupar com o que diriam os seus antigos
amigos, vendo-lhe dar o seu nome e os seus milhões a uma rapariga sem
outro dote mais que os seus cabelos louros, os seus belos olhos, e a sua
virtude.
Que lhe importava a opinião do mundo?
De gracejos e zombarias não fazia caso.
Parecia-lhe absurda a sua existência passada.
Os seus sonhos eram a vida a duo, a felicidade íntima, e tinha grandes
esperanças de dar ao nome principesco de Castel-Vivant numerosos
herdeiros.
Pensava nestas coisas, enquanto rodava na direção de Beleville.
Quando tornou a ver a casa de Lucilia, uma salutar comoção fez-lhe
palpitar o coração de um modo violentíssimo.
Vagarosamente, porque as suas forças, apesar do que Fossaro tinha dito,
ainda não tinham completamente voltado, meteu-se pelo corredor, passou
pela frente do cubículo da porteira que não lhe deu atenção, e não sem algum
custo, subiu os degraus, parando em cada andar para retomar o fôlego.
Deixando-o prosseguir na sua ascensão, precedê-lo-emos em casa de
Lucilia.
A órfã, rica com os cinco mil francos, adiantados por Malpertuis, dissera
que devia estar preparada para a viagem a Nice, cuja época se fixaria de um
momento para o outro.
Tinha por isso comprado diversas fazendas, e cortava, ajustava, cosia
com uma habilidade de fada, e uma perícia de parisiense.
Não querendo ainda confiar à tia e à senhora Verdier a sua felicidade,
pretendia fazer executar os trabalhos encomendados pela casa de confecções
que lhe dava que fazer.
No momento em que transpomos o limiar da mansarda, Lucilia andava
em roda da cega, a qual estava em pé e muito preocupada.
— Mas espera, pequena, dizia a boa da velha, que estás a fazer? Parece
que estás a tomar-me medida de um vestido.
— E tem razão, minha tia, volveu a Toutinegra rindo, quero fazer-lhe um
vestido novo.
— Porque, o meu está rasgado?
— Rasgado, não, mas usado; é preciso substituí-lo o mais depressa
possível.
— Bem sabes que tenho outro, ainda muito bem conservado.
— Sim, sim, bem sei, mas isso não vai ao caso... seja como for há de ter
um novo...
— Pois é muito preciso?
— É indispensável... e também saias brancas.
— Saias brancas! Como as senhoras ricas. Ó pequena, tu estás doida!
— Estou com o meu perfeito juízo, tia, o que eu quero é vê-la bem
vestida...
— Imaginas que me vestirei assim na Salpétrière! Zombariam de mim.
— Será para os dias em que vier cá...
— Bem. visto que assim queres, resigno-me a fazer-me coquette. —
Isso... As minhas medidas estão tomadas. Vou preparar um molde, e
principiar imediatamente.
— Fazes-me um vestido preto, não é assim?
— Sim, minha tia.
— De molleton? Agasalha muito o molleton.
— Sim, minha tia.
— Deixa-me apalpar a fazenda...
Lucilia sorriu, deitando os olhos para um corte de bela seda preta que se
preparava a cortar, e respondeu:
— Ainda não tenho cá a fazenda... Irei buscá-la amanhã, e ao mesmo
tempo direi ao sapateiro que lhe traga as botinhas...
— As botinhas! exclamou a cega batendo as palmas. Espera lá! casa-se
alguém, e nós vamos ao casamento?
— Talvez, tia, respondeu a Toutinegra tornando a sorrir. O que haveria
nisso de espantar?
— Se fosse o teu, quão feliz seria! tornou a anciã. E contudo não poderia
ver-te, pequena! acrescentou tristemente. Deus negou-me essa alegria!
— Querida tia, não esteja a pensar em coisas tristes! A gente precisa de
se resignar a tudo cá nesta vida. Esta é a hora em que tem por costume
dormir um sono. Vou conduzi-la ao outro quarto. enquanto dorme cortarei eu
os meus moldes.
— Isso, minha querida, guia-me...
Lucilia pegou na mão da cega, que tendo de se encostar à jovem,
abraçou-a com uma voz trêmula por efeito da comoção.
— Que o bom Deus te abençoe, como eu te abençôo! Tens o coração de
um anjo!
A órfã devolveu à cega os seus ósculos.
Depois, fazendo-lhe transpor o limiar do segundo quarto, instalou-a num
fauteuil, fechou a porta após si e voltou para junto da mesa continuando a
trabalhar.
Enquanto cortava o molde segundo as regras, a Toutinegra cantava, ou
antes trauteava a meia voz, ao mesmo tempo que o seu pensamento
vagabundo afagava as mais risonhas esperanças.
***

Bateram devagar à porta, tão devagar que Lucilia, julgando ter ouvido
mal, levantou a cabeça e pôs o ouvido à escuta. Tornaram a bater.
— Entre quem é, disse a jovem. A porta abriu-se.
A órfã reprimiu um grito de surpresa e alegria. Em frente dela estava o
principezinho, que esfalfado por uma ascensão de cinco andares, se apoiava
à ombreira da porta.
A pobre pequena murmurou com uma voz fraca como um sopro:
— O senhor! em perigo de novamente cair doente! Que imprudência.
— Lucília! querida Lucilia! volveu Heitor pegando nas mãos que a sua
prometida lhe estendia, e levando-as aos lábios, há quatro (lias que não a via.
— Venha sentar-se depressa! Como está pálido! Tem a testa suada! Que
loucura! Como eu vou ralhar com o senhor... se tiver coragem para isso!...
— Ah! como eu a amo! (ornou Heitor... Se Lúcia...
A órfã pôs-lhe a mão na boca para o interromper, deitando um olhar para
o quarto próximo.
— Minha, tia está acolá, disse ela. Não quero que ela me ouça...
— Então ela não sabe ainda nada...
— Nada...
— Pois bem, serei eu quem lhe há de dizer tudo. Para mim, substitui a
mãe que perdeu, é a ela que eu devo pedir a sua mão.
— Heitor! Como é bom e leal o seu caráter!
— Pois é ser leal fazer o seu dever de homem de bem? É bondade querer
tornar indissolúvel os laços de amor que já nos unem? A minha pressa não
passa de egoísmo! Quero apressar o momento da minha felicidade. Ainda
hoje estarei com a sua tia, falarei com ela, obterei o seu consentimento para a
nossa próxima união. Dentro de poucos dias reunirei os meus amigos fiara
um jantar, em que me despedirei desta vida de solteiro, que abandono sem
pesar. Logo em seguida partiremos para Nice, deixando os papéis
necessários fiara os nossos banhos. Assim que voltarmos assinaremos o
contrato que havemos de encontrar já pronto. Depois, querida filha adorada,
conduzi-la-ei à "mairie" e à igreja, donde sairá Princesa de Castel-Vivant.
Convém-lhe assim, não é verdade?
— Pois lembra-se de me perguntar semelhante coisa? murmurou Lucilia
sorrindo e fazendo-se corada ao mesmo tempo.
Após um momento acrescentou:
— Permite-me que lhe faça uma pergunta?
— De certo, e não uma só, mas cem.
— Bastará uma... esta: Quanto tempo durará a nossa viagem?
— Perto de um mês.
— Muito bem, se quer tornar-me muito feliz, prometa-me uma coisa.
— Prometo-lhe já. De que se trata?
— Que me permita ser eu que fixe o dia da assinatura do contrato.
— Por quê? exclamou Heitor surpreendido.
— Nada de curiosidade, peço-lhe! É o meu segredo. Demais, o senhor
prometeu...
— E cumprirei a minha promessa. Mas não demorará a minha
felicidade?
— Não, porque seria demorar a minha...
O principezinho beijou a mão de Lucilia e continuou com ar tímido e
visível hesitação.
— Agora, minha querida, pertence-me também fazer-lhe um pedido.
Lucilia olhou para ele com muita curiosidade.
— Oh! é um pedido muito simples, acudiu o Príncipe. Vai ser minha
mulher... Entre nós tudo será comum. Sou rico, e Lucilia não é. Aceite um
adiantamento sobre a comunidade. Permita-me que lhe ofereça...
— Que me sirva da sua bolsa? interrompeu a Toutinegra; já recusei, e
torno a recusar.
— Lembre-se de que para a nossa próxima viagem terá precisão de
muitas coisas.
— Já as tenho. Veja, estou fazendo os meus preparativos. — E Lucilia
mostrava as fazendas colocadas em cima das cadeiras.
— Foi Lucilia quem comprou tudo isso? murmurou o Príncipe
estupefato.
— De certo, e causa-lhe admiração?
— Alguma, bastante até. Tinha-me dito...
— Então?
— Mas tinha algumas economias... Sem falar no armazém para onde
trabalho, que tem confiança em mim, e me fia tudo quanto quero.
— Lucilia, Lucilia... suspirou o Príncipe. É feio, é muito feio! Dir-se-ia
que capricha em não aceitar nada de mim...
— Ingrato! volveu a órfã fitando em Heitor um demorado olhar em que
se exprimia a infinita ternura que lhe transbordava do coração. Aceito o seu
amor... Dou-lhe o meu... e queixa-se!...
Absortos no seu colóquio, não tinham ouvido abrir a porta do quarto
próximo.
A tia cega, muito próxima, e com o rosto transtornado, parou no limiar
da porta.
— Lucilia, exclamou ela com uma voz agitada e quase desconhecida, tu
não estás só...
Vendo a septuagenária, o Príncipe e a Toutinegra levantaram-se com
vivacidade.
Heitor quiz dirigir-se para ela.
Lucilia deteve-o com um gesto e respondeu.
— Efetivamente, tia, não estou só...
— Quem está contigo?
— Uma pessoa de amizade.
— Uma pessoa de amizade! repetiu a cega. Não se dizem a uma simples
pessoa de amizade as palavras que acabo de ouvir... e que me assustam.
A órfã tornou-se purpúrea.
— Tia, balbuciou ela, duvida de mim? Isso seria cruel... seria injusto.
— Ouvi...
— Pois muito bem! continue a ouvir, querida tia... Ouça até ao fim, e não
continuará a ter medo.

CV - PAZ GERAL

A voz de Lucilia era grave.


A cega voltou a cabeça para os lados do aposento donde a voz partia.
Ao mesmo tempo, os seus olhos apagados pareciam fixar-se no rosto da
órfã, como se pudessem ler no fundo do seu pensamento.
A Toutinegra levou-a para uma cadeira, fê-la sentar-se a seu lado,
pegou-lhe nas mãos, e disse:
— Tia, lembra-se de um sonho que teve na Salpetrière, e de que me
falou não há muitos dias?
— Lembro-me, respondeu a septuagenária... Não se esquecem sonhos
desses... Nunca... Um jovem Príncipe viu-te. Enamorou-se de ti... Queria
tomar-te por mulher... mas a seu lado achava-se um homem... ou antes um
demônio, que preparava a sua perda... O demônio cumpria a sua palavra, e o
Príncipe ferido mortalmente, caía.
Heitor sentiu um pequeno calafrio.
O sonho da cega, lembrava-lhe o duelo e o ferro de Volnay
atravessando-lhe as carnes.
— Mas depois teve outro sonho, tornou Lucilia, o qual desmentia o fatal
desenlace do primeiro. Salvava o Príncipe à força de amor... e casava
comigo.
— É verdade, murmurou a anciã. Porque me lembras isso? Foi Heitor
quem respondeu, pegando por sua vez nas mão da cega.
— Por que, senhora? repetiu ele com uma voz trêmula. Porque o sonho
de sangue realizou-se, e o sonho da ventura também se vai realizar...
— Quem me fala? perguntou a septuagenária com vivacidade.
— Um homem que sabe que Lucilia é a mais pura das jovens, a mais
encantadora, a mais digna de ser amada... Um homem que a adora, e hoje
pede-lhe a sua mão...
— O senhor ama-a? exclamou a cega.
— De toda a minha alma.
— E Lucilia ama-o?
— Ah! murmurou a órfã, de todo o meu coração!
— E querem casar?
— O mais depressa que for possível! exclamou Heitor impetuosamente.
— Isso é muito louvável, e sinto que o senhor é homem de bem. Mas não
basta amar e casar, é preciso primeiro que tudo viver. A agulha de Lucilia
não basta para a despesa de uma casa. Depois de casados o que tencionam
fazer?
— Sossegue, senhora, disse o ex-Bégourde sorrindo. Lucilia nunca mais
trabalhará... o futuro da senhora e o dela estão seguros.
— Tem então algum bom emprego?
— Tenho milhões, minha senhora... e chamo-me Heitor, Príncipe de
Castel-Vivant.
A cega levantou as mãos ao teto, ao mesmo tempo que imensa alegria
lhe brilhava no rosto enrugado.
— Um príncipe!
— Sim, um príncipe!
— Oh! um verdadeiro príncipe! balbuciou... o meu sonho todo inteiro!
— Sim, o seu sonho, minha tia! replicou a órfã... o seu sonho sem lhe
faltar coisa nenhuma. E se soubesse como Heitor é belo! Se soubesse
principalmente como ele é bom... e como me ama!
— E amar-te-á sempre?
— Oh! sempre! exclamou o principezinho. É a minha vida inteira que
lhe dou.

***

A cega chorava enternecida.


Com uma voz entrecortada, exclamou:
— Dêem-me as mãos, meus filhos... Deixem-me apertá-las nas minha!
Chamo sobre vós a benção do céu e abenço-os! Senhor Príncipe, case
depressa com Lucilia. Quero presenciar a sua felicidade antes de morrer!
Depois morrerei sossegada e sem pena...
E a boa mulher puxando a si as formosas cabeças dos dois noivos,
cobriu-as de beijos e de lágrimas.
— Há de viver ainda muito tempo, minha senhora... tornou Heitor, cuja
comoção lhe apertava a garganta. Viverá junto de nós. Não nos deixará
nunca...
— Ah! como eu sou feliz, repetia a septuagenária, como sou feliz!
Velhacazinha, acrescentou dirigindo-se a Lucilia, foi do vestido para assistir
ao casamento que esta manhã tomaste medida, não é verdade?
— Não, querida tia, mas do seu vestido de viagem...
— Vamos então fazer uma viagem?
— Sim, minha senhora, respondeu o Príncipe. Por ordem do médico, a
quem devo a vida, tanto como a Lucilia, passaremos um mês em Nice. Os
banhos serão publicados na nossa ausência, e o casamento terá lugar depois
do nosso regresso a Paris...
Durante uma hora, Heitor deu parte à septuagenária de todos os radiantes
projetos do futuro de que temos conhecimento. Depois, com o coração cheio
de alegria, deixou as duas mulheres prometendo-lhes voltar no dia seguinte.

CVI - MAQUINAÇÕES DO INFERNO

À meia noite, o senhor de Fossaro entrava pela portinha da avenida


Gabriel, no jardim de Chaslin.
Transpôs o limiar do pavilhão rústico e meteu debaixo do musgo da
velha jarra de Lelft um bilhete tendo só as seguintes palavras:
"Amanhã, à meia noite, no jardim... é preciso trabalhar."
Branca encontrou o bilhete logo pela manhã, e prometeu ser exata no
"rendez-vous" indicado.
À hora designada, o Barão César, ou por outras palavras, Pedro Rédon, o
zarolho, chegava à avenida Gabriel.
Branca esperava-o, muito preocupada, muito inquieta.
— Portanto, perguntou-lhe, é chegado o momento de nos. pormos em
ação?
— É.
— Espero as suas ordens...
— Eu tas darei, mas responde-me primeiramente. Seguiste as minhas
instruções relativas aos grânulos?
— Religiosamente.
— A Duquesa tomou-os hoje?
— Tornou.
— Quantos?
— Três, segundo o costume...
— Como tem ela passado esta noite?
— Desde a troca dos grânulos, fica às vezes numa prostração de que o
doutor se admira, procurando debalde a causa. Receitou mais um grânulo
todas as noites de hoje em diante.
— A que horas deve a Duquesa absorver os dois últimos?
— Às dez horas.
— Quem lhos dá?
— Eu.
— Sempre?
— Sempre.
— Muito bem. Estamos hoje a 15. Lembra-te que a partir de amanhã, e
até 20 à noite, deixarás de fazer a troca dos frascos. E preciso desfazer as
suspeitas do doutor.
— Até 20, à noite?
— Sim, não te esqueça.
— Terei todo o cuidado.
César de Fossaro tirou da algibeira um pequeno frasco, e deu-o a Branca,
continuando:
— No dia 20, às dez horas, farás tomar à Duquesa dois dos grânulos que
aqui estão. Toma cuidado não os confundas com os primeiros, cuja aparência
eles têem.
— Sossegais... evitarei todo o erro. E depois?
— Depois porás este frasco e o que te entreguei primeiramente, num
lugar bem visível do teu quarto. Em cima do fogão, por exemplo, diante da
pêndula.
— Far-se-á isso, depois?
— Onde é que a Duquesa fecha as cartas importantes que recebe e que
pretende conservar?
— Num cofre de cristal guarnecido de prata, colocado em cima de uma
banquinha no seu quarto de dormir.
— Como se abre esse cofrezinho?
Branca explicou muito claramente o mecanismo da mola oculta do cofre.
— Compreendi. A que horas tinha o serviço cios criados?
— Às dez e meia... É raro às dez e meia não ser eu a única pessoa em pé
no palácio.
— O Duque vem saber da Duquesa às onze horas menos um quarto, e
volta para o seu quarto, mas não me parece que se deite... a sua luz brilha
ainda por muito tempo.
— Escuta e toma sentido, pontue o que te vou dizer é de importância
capital. É preciso que o senhor de Chaslin não faça a sua visita habitual à
Duquesa depois das dez horas da noite de 20... é preciso que esteja ausente
em seguida, e só volte para o palácio depois da urna hora da manhã...
— É impossível! murmurou Branca.
— Não há impossíveis para quem quer... replicou Pedro Rédon com voz
dura.
— O que hei de fazer?
— Isso é contigo... O teu império sobre esse velho enamorado é
absoluto... Arranja um pretexto para o levares contigo, seguir-te-á
prontamente. Mas que ninguém te veja sair do palácio. Toda a gente deve
julgar-te fechada no teu quarto. Demais, quando tu saíres, os criados já hão
de estar deitados.
— E isso há de ser por força na noite de 20?
— Sim, partirás depois de dar à Duquesa os dois grânulos do frasco que
acabo de te entregar.
— Muito bem...
— Quando saíres, certificar-te-ás de que a porta próxima da escada de
serviço não está fechada à chave.
— Far-se-á. Só uma coisa me preocupa...
— O que?
— Se eu não conseguisse levar o Duque comigo?
Fossaro encolheu os ombros.
— Pois duvidas de ti desse modo tão tolo? replicou com uma gargalhada
sarcástica. Bastar-te-ia uma palavra, menos que uma palavra, um sinal, para
arrastares o senhor de Chaslin até ao fim do mundo.
— Experimentarei o meu poder...
— E conseguirás! Vou agora procurar-te uma casa...
— Uma casa! repetiu Branca muito surpreendida.
— De certo, porque dentro de pouco tempo terás de abandonar o palácio
de Chaslin.
— Deixar este palácio! Mas quais são os seus projetos?
— É para que se realizem que tu deves partir... Não poderás ficar aqui
depois de realizados os sucessos que se preparam, e deves retomar perante
toda a gente, o nome de Lasseny que te pertence. O Duque saberá muito bem
tornar a encontrar-te.
— Quando será preciso partir?
— Quando eu to disser... Agora, adeus, ou antes até à vista... Se tiver
alguma comunicação a fazer-te antes do 20, encontrá-la-ás no pavilhão. Se
não houver novidade até lá, não te esqueças que no dia 20 deves pôr-te em
ação...
— Ah! murmurou Branca, nada esquecerei.
O pai e a filha, ou antes os dois cúmplices, separaram-se depois da troca
destas últimas palavras.
***

Estava na véspera do grande jantar, em que Heitor de Castel-Vivant


tencionava dizer adeus à vida de solteiro.
César de Fossaro, naquela manhã, tomou um coupé de aluguel que o
conduziu à praça da Bastilha.
Dali dirigiu-se a pé à rua de Lape.
Foi à casa do alemão que nós conhecemos.
Este honrado personagem recebeu-o com um sorriso de bom
acolhimento.
Fazendo-o entrar para os fundos do estabelecimento, a fim de evitar
qualquer olhar indiscreto, disse-lhe na pronúncia germânica que temos
evitado reproduzir por meio da ortografia:
— Vem buscar os objetos?
— Venho. Está tudo pronto?
— Está. Vai ficar contente... É trabalho esmerado... não se pode fazer
coisa melhor.
O ferro-velho abriu um antigo cofre que lhe servia de armário.
Tirou deste uma pequena caixa de papelão escuro, e da caixa três
objetos: um prego de parafuso com a cabeça em forma de anel, assaz forte, e
uma marca de sinete em lacre.
— Em primeiro lugar, aqui está o sinete, disse. Uma verdadeira obra
prima, palavra de honra! Não há um traço, uma linha, que não reproduzam
exatamente o modelo que me deixou, e que aqui está. O senhor mesmo se
pode certificar. Ah! o operário que fez isto, é muito esperto!...
Fossaro armou-se de uma lente, pegou no sinete e na marca, e examinou-
os atentamente.
— Irrepreensível! exclamou. Sou da sua opinião... o operário que fez isto
sabe bem do seu ofício.
— Por isso o pago bem... Conhece quanto vale e pede os olhos da cara!
E o alemão pegando no prego, continuou:
— Agora, eis o segundo objeto, cujo mecanismo vou explicar.
"A cabeça compõe-se de dois pedaços fixos um no outro por meio de
uma pequenina cavilha de aço, terminada por um anel imperceptível...
Tirando a cavilha, a argola divide-se, e cada um dos pedaços apresenta o
aspecto de se ter quebrado, como se no ferro houvesse uma falha. Estenda a
mão e verá.
O ferro velho tirou a cavilha.
A argola que formava a cabeça do prego dividiu-se logo e os dois
pedaços caíram na palma da mão de Fossaro.
O Barão examinou com a lente os dois pedaços, como fizera ao sinete.
Era absolutamente maravilhoso.
O buraco da cavilha desaparecia nas rugosidades da fratura; quem não
estivesse prevenido, devia supor um acidente casual.
— Isto está muito bem imaginado! exclamou César.
— Vale bem quinze luíses... retorquiu o ferro velho piscando o olho.
— Com um peso no prego, a cavilha não pode dar de si?
— Pode muito bem agüentar um peso de quinhentas libras...
— Mas para a tirar?
— Bastará passar no anel um fio de latão muito delgado, quase
imperceptível. Um puxão no fio fará sair a cavilha do encaixe... e... zás...
— Bem, compreendi... Vou pagar.
E Fossaro estendeu para o alemão um bilhete de quinhentos francos.

CVII - NOVOS MANEJOS

No mesmo dia, por volta das sete horas, um homem de cabelos louros,
cego de um olho, com traje de operário, mãos negras, rosto queimado pela
limalha do ferro, trazendo sob o braço esquerdo um embrulho comprido,
coberto de pano verde, e que parecia pesado, apresentava-se no palácio do
príncipe Totor.
O homem trazia a tiracolo um desses sacos de couro grosso, onde os
serralheiros guardam a ferramenta.
— Que quer? perguntou-lhe o criado, a quem o guarda-portão o
mandara.
O homem respondeu com uma pronúncia italiana muito carregada,
tirando da algibeira um bilhete em cartão porcelana que deu ao criado:
— Venho da parte do senhor de Fossaro... Trago umas peças indianas
que é preciso colocar nas panóplias de um dos quartos do palácio... Deve
estar já prevenido.
— Efetivamente esperava-o havia dois dias, e vou conduzi-lo.
— Si signor.,.
O criado de quarto introduziu o operário no gabinete que já conhecemos.
— Eis as panóplias... tornou o criado: traz a ferramenta?
— No meu saco, si signor.
— Precisa de alguma coisa?
— Uma escada de tesoura, mais nada.
— Quer que o ajudem?
— Não. signor, não preciso de ninguém.
— Vou então acender as velas deste candelabro, para o alumiarem, e
deixá-lo-ei com o seu trabalho a contas.

***

Dali a um instante, o operário, cego de um olho, em quem os nossos


leitores já reconheceram de certo o Barão de Fossaro, ou antes Pedro Rédon,
achava-se só no gabinete de fumar.
Espalhou em cima da mesa as armas indianas, depois, despregou o
escudo de veludo vermelho que sustentava a panóplia composta em parte de
flechas envenenadas.
— Cuidado! murmurou. Não tenho desejos de experimentar em mim o
efeito das picadas. É preciso prudência, é preciso até muita prudência.
Com incomparável destreza o operário desguarneceu o escudo de
veludo, e misturando as armas indianas com as flechas venenosas, dispôs o
troféu de armas como artista hábil, apaixonado pelo pitoresco.
Quando lhe pareceu satisfatório o efeito procurado, principiou por
segurar as armas inofensivas.
Pegou em seguida em pontas de aço muito ligeiras, e em pequenos
semicírculos de fio de ferro fino como seda. e fixou as flechas mortíferas de
um modo aparentemente sólido, mas na realidade tão fraco, que um puxão
repentino devia infalivelmente soltá-las.
Feito isto, o operário tirou da algibeira o objeto fornecido pelo ferro-
velho da rua de Lape, certificou-se de que a cavilha funcionava bem, e
cravou o parafuso de anel na parte superior da armadura da panóplia, em
lugar da que lá se achava antes, e que suprimiu.
Tirou, então, do saco um pedaço de fio de latão envernizado de preto,
delgado, mas resistente, e meteu a extremidade do fio no anel da cavilha,
onde o torceu de modo a formar um nó.
Pegando na panóplia cautelosamente, subiu os degraus da escada, e
pendurou-a pelo parafuso de anel no prego que ficava exatamente por cima
do divã de couro fulvo.
O fio de latão pendia invisível, ao longo da parede.
Fossaro estendeu-o ligeiramente, ocultou-o detrás de uma serpentina, e
formou uma espécie de laçada na extremidade, para se poder agarrar
facilmente.
Afinal, anunciou o seu trabalho, e declarou-se satisfeito.

***

— A vida de quem aqui vier sentar-se neste divã, está nas minhas mãos!
disse ele consigo. Nem o Príncipe, nem o doutor escapam.
O facínora tratou em seguida das outras três panóplias, e como a segunda
parte do trabalho não precisava de tantas precauções, caminhou mais
depressa que o primeiro.
Às nove horas o criado de quarto entrou no gabinete
— Então, meu rapaz, em que alturas vai isso?
— Signor, já acabei.
— Só me falta pagar-lhe. Diga quanto se lhe deve...
— Não me deve nada.
— Como assim?
— O senhor Barão pagou-me adiantado... file lá ajustará as contas com o
seu amo...
— Muito bem. Mas aceitará pelo menos um copo de vinho na cozinha?
— É impossível, signor... Vim depois do meio dia... Tenho a minha
mulher e os meus dois pequenos à minha espera para cearem... e moro no
arrabalde Antoine... Uma boa caminhada daqui até lá.
O criado de quarto não insistiu, e o operário deixou o palácio.

***

Na manhã do dia em que o jantar de despedida devia ter lugar, Heitor


querendo desfazer de uma maneira absoluta e definitiva os laços que o
prendiam ao passado, sentou-se à sua carteira e escreveu as seguintes linhas:
"Minha querida Genoveva.
"À hora em que receber este bilhete, todos os meus amigos devem já
saber que desisto para sempre da existência absurda que eu passava desde o
dia em que o acaso me fez rico, mas não esqueço que Genoveva foi a amiga
das horas loucas e alegres, e envio-lhe uma prova material desta lembrança.
"Incluso achará um cheque de trezentos mil francos.
"Com certeza que não é uma fortuna, mas a tranqüilidade para o futuro.
"Não devemos tornar a ver-nos, minha querida Genoveva, digo-lhe por
isso adeus, e por última vez lhe aperto amigavelmente a mão.
"Heitor."

O principezinho assinou o cheque cuja quantia acabava de enunciar,


meteu-o no sobrescrito conjuntamente com a carta, traçou no sobrescrito o
endereço de Genoveva e chamou pelo criado de quarto.
— Esta noite, às dez em ponto, não antes, mandará um criado com esta
carta à menina Leinen.
— Tem resposta?
— Não, não deve ter.
Heitor almoçou, depois pôs o trem e dirigiu-se para a rua Julien Lacroix.
Não podia passar um só dia sem ver Lucília.
A Toutinegra continuava os seus preparativos para a viagem a Nice, cuja
época se ia aproximando.

***

No palácio de Chaslin tudo estava, ou, pelo menos, tudo parecia


sossegado.
O doutor Frébault fizera naquela manhã uma visita à Duquesa: apesar de
não notar nenhuma mudança extraordinária no estado da doente, tencionava
voltar à noite antes de ir para casa do príncipe Totor.
Pelas duas horas o Duque entrou no quarto da Duquesa.
A senhora de Chaslin repousava.
Branca tendo a mão um livro aberto que não lia, sentara-se junto do leito.
O rosto pálido da jovem denunciava intensa preocupação.
A falsa Adriana de Lasseny pensava com uma angústia fácil de
compreender nos terríveis acontecimentos que estavam para se efetuar,
pensava sobretudo em Rogério de Chaslin, naquele mancebo tão belo e tão
altivo, que havia de ser duque um dia, e cuja imagem se desenhava sem
cessar na sua imaginação em traços de fogo.
Vendo entrar o velho, Branca indicou com o gesto a doente adormecida,
pondo um dedo nos lábios.
O Duque aproximou-se da jovem, e inclinando-se um pouco, disse-lhe
em voz muito baixa:
— Menina Adriana, é preciso que lhe fale...
Depois, vendo o rosto de Branca tornar-se sombrio, apressou-se a
acrescentar:
— Trato da sua família, dos seus interesses. Trago-lhe uma boa notícia.
— Uma boa notícia? — Sim.
— A senhora Duquesa está a dormir,e o murmúrio das nossas vozes
acordá-la-á. Permita-me que a conduza ao meu quarto? Peço-lhe.
Branca levantou-se, e andando nos bicos dos pés, dirigiu-se para um
quarto próximo, cuja porta estava entreaberta.
Henrique de Chaslin seguiu-a, e assim que se achou a sós com ela quis
agarrar-lhe nas mãos.
A jovem soltou-se suavemente.
— Ah! murmurou o Duque. É cruel. Porque me repele assim? Sem
responder, Branca perguntou:
— Essa nova feliz de que me fala será apenas um pretexto para me atrair
aqui?
— Não, de certo, quer a prova disso?
— Fale então sem demora, peço-lhe, porque o sono da senhora de
Chaslin pode cessar de um momento para o outro.
— Bem sabe, principiou o Duque, que ocupa exclusivamente o meu
espírito, a sua felicidade é a minha única preocupação. Disse comigo que
talvez fosse possível fazê-la recuperar uma parte da fortuna tão loucamente
comprometida com seu pai...
— Que me diz? Que novidade me vai dar?
— Procurei... achei... No momento de deixar a França para fugir a
credores que na maior parte não eram mais que usurários, o Conde de
Lasseny, querendo a todo o transe criar recursos no estrangeiro, fez uma
última loucura mais imperdoável ainda do que as outras. Vendeu, mediante
uma miserável soma de cinqüenta mil francos, vários bens, cujo valor ainda
era importante, apesar das hipotecas que os oneravam. Morreu sem se ter
reembolsado, e os comparadores, ou antes, os agiotas, entraram na posse
desses bens. Eu adivinhava vagamente de que maneira as coisas se tinham
passado. Pus em campo vários agentes de negócios muito hábeis que
ameaçaram as pessoas enriquecidas com os despojos do seu pai, e como o
aumento do valor dos bens era considerável, obrigaram-nas a uma transação.
Tenho até agora guardado silêncio a respeito das diligências que ordenei.
Não se admire; com o receio de causar uma alegria enganadora, não lhe quis
falar em coisa nenhuma.
— Rompe hoje o silêncio, disse Branca, quer dizer que conseguiu o que
queria?
— Além das minhas esperanças. Os restos salvos do naufrágio têm até
sua importância... sobem a quinhentos mil francos...
— Quinhentos mil francos! repetiu a jovem estupefata. Mas isso é uma
fortuna.
— Uma fortuna de que não tem necessidade, querida Adriana, replicou o
senhor de Chaslin, visto que dando-lhe o meu coração, dei-lhe tudo quanto
me pertence.

**

Branca não retirou a mão, que Henrique tinha tomado nas suas.
Parecendo obedecer a um impulso irresistível, murmurou:
— Oh! senhor Duque, há de obrigar-me a amá-lo.
— Há de amar-me, há de amar-me, tartamudeou o velho
apaixonadamente, atraindo e apertando contra o peito a filha de Pedro
Carnot.
Branca fez-se vermelha e baixou os olhos.
— Não, não, aqui não, suplico-lhe! Nesta casa, tão perto da Duquesa,
escutar a voz do meu coração, é um crime. Tenho vergonha de mim mesma.
— Sim, tem razão, mas essas palavras de esperança que acaba de
pronunciar, e que me embriagam, há de repeti-las noutra parte, promete-mo?
— Senhor Duque, eu também tenho que lhe falar seriamente; mas assim
como eu não quero ouvi-lo nesta casa, também não onero falar-lhe aqui.
— Que devo fazer? Bem sabe que sou seu escravo...
— Não podemos esta noite encontrar-nos fora do palácio?
— Será fácil, respondeu impetuosamente o senhor do Chaslin, a quem a
idéia de um encontro longe de toda a vigilância incendiava: será fácil, mas
onde?
— Ignoro, pertence ao senhor o designar o lugar onde me há de r
esperar.
— Então, tornou o Duque delirante, saia pela poria do jardim que deita
para a avenida Gabriel. Estarei no ângulo da rua Boissy d'Anglas com uma
carruagem. A Duquesa deixa-a livre por volta das dez e meia, venha ter
comigo às onze. Virá?
— Prometo-lho. Sairei até mais cedo, se a senhora de Chaslin
adormecer. Das dez e meia em diante espere por mim.
— Ah! como me torna feliz!
O Duque tinha os lábios trêmulos.
Um olhar de sátiro perseguindo uma ninfa, brilhava entre as suas
pálpebras meio fechadas.
A paixão sensual tornava-o assustador, e os seus braços estendiam-se
para um novo amplexo.
Branca recuou dois passos.
— Até esta noite, disse ela.
— Sim, até esta noite! Até esta noite! Mas primeiramente tome lá isto
que lhe pertence.
É o senhor de Chaslin apresentava à jovem um papel que acabava de
tirar da sua carteira.
Branca, muito admirada, perguntou:
— Que vem a ser isto?
— Um cheque de quinhentos mil francos à vista, sobre o Banco. Os
restos de que lhe falava há pouco...
— Obrigada, ser-lhe-ei reconhecida...
E a falsa Adriana metendo no seio o precioso papel, voltou para o quarto
da Duquesa, dando como adeus ao senhor de Chaslin um sorriso e estas
palavras:
— Até esta noite!
CVIII - SÓ MORRE QUEM DEUS QUER

De tudo o que o Duque acabava de dizer a Branca, relativamente aos


restos da fortuna do falecido Conde de Lasseny, não havia uma palavra fie
verdade.
Os leitores já o deviam ter compreendido.
Henrique de Chaslin ocupado da idéia fixa de enriquecer aquela a quem
amava, e convencido de que ela nada lhe aceitaria, torturava o espírito para
inventar um pretexto de restituição.
Acabara por encontrar o pretexto, e apesar de que ele não resistia à
crítica, a falsa Adriana acreditava nele ou pelo menos fingia acreditar.
O velho não queria mais.
Voltando para junto da moribunda, Branca murmurava:
— Vamos, é o princípio da fortuna...
A Duquesa, quando despertou, achou a jovem à cabeceira, velando-lhe o
sono com solicitude filial.
Um pouco antes das seis. o Duque e Antonino Frébault entraram juntos
no quarto.
Acabavam de lhe servir uma ligeira refeição.
— O apetite volta, senhora Duquesa? perguntou o doutor. Joana de
Chaslin abaixou a cabeça.
— Faço diligência por comer, respondeu, mas não posso vencer a
repugnância que me causa o alimento.
— Sufocações?...
— Desde esta manhã têm aumentado.
— Havemos de triunfar delas. A menina Adriana, a sua simpática
enfermeira, há de dar-lhe esta noite, das nove e meia para dez horas, dois
grânulos de digitalina. Se não se produzir o resultado que espero, mudarei
amanhã de tratamento.
— Tenho confiança no meu querido doutor. Trate-me bem, desejaria
viver, menos por mim que por aqueles a quem amo.
— Há de viver, senhora Duquesa, e por-se-á boa, prometo-lhe.

***

Mas Frébault pensava entretanto:


— É extraordinário o que se passa e não compreendo. Amanhã hei de
proceder a investigações.
Depois de uma breve visita o doutor retirou-se.
Ta vestir-se para assistir ao grande jantar do Príncipe Totor.
— Sabe se o senhor de Logeryl virá esta noite? perguntou Joana ao
Duque.
— Sei que não virá, respondeu o Duque. Foi chamado repentinamente a
Senlis, para uma devassa, relativa, creio ao negócio misterioso do
infanticídio de Courbevoie. Não pode estar de volta ante-; de amanhã. Tem
portanto alguma coisa a dizer-lhe?
— Queria saber o que ele manda dizer a Helena, de quem não tenho
recebido notícias há dias, e a quem vou escrever...
— Falo por ele. e não receie exagerar a expressão da sua ternura, porque
ele está seriamente apaixonado.
Vieram anunciar que o jantar estava servido.
O senhor de Chaslin dirigiu-se para a sala do jantar na companhia de
Branca.
Os dois convivas, durante todo o jantar, que aliás foi muito breve, só
poderiam trocar frases banais em presença de um criado que não os deixava.
Levantando-se da mesa, o Duque lançou à jovem um olhar que
significava claramente:
— Até esta noite!
Branca respondeu com um sinal afirmativo.

***

Por volta das seis horas e meia, César Fossaro subiu para o seu coupé, e
deu ordem a Benedetto para o conduzir ao palácio do Príncipe Totor.
Não deviam ir para a mesa senão às sete e meia.
Ele, porém, tinha interesse em chegar primeiro.
Quando se apeou do trem, recomendou ao cocheiro que o viesse esperar
às dez horas e meia em ponto, não diante do palácio, mas no ângulo da rua, e
não se arredar dali sob que pretexto fosse.
Segundo o seu costume, Heitor recebeu cordialmente o Barão, a quem
tinha na conta de um dos seus melhores amigos.
— Então, querido Príncipe, disse-lhe César com o sorriso nos lábios, é
esta noite que nos vai dar a nova que nos há de causar geral admiração.
— Sim, meu querido, replicou o ex-Bégourde com os modos de
gommeux que ele agora só por intermitências ostentava, é uma notícia de
arromba, de um chic por aí além. Há de ser uma coisa obeliscal, piramidal,
de pôr tudo a uma banda, como diz o Príncipe de Chypre! O Barão há de ver,
e não há de crer!
— Bem, então deixe-me já com a cara a uma banda.
— É impossível, amizade verdadeira ter os seus privilégios.
— Reconheço isso, e em outra qualquer ocasião seria o primeiro a
prestar homenagem a esse direito, mas não quero ultimar o meu efeito com
antecipadas confidencias...
O Barão não insistiu. Frébault chegava.
— Eis o meu salvador! exclamou o Príncipe apertando-lhe as mãos.
— O seu salvador, perfeitamente! volveu Antonino. Isso dá-me sobre o
meu amigo certos direitos de que não abusarei, mas de que pretendo servir-
me. Poupe-se, querido Príncipe, poupe-se esta noite!
— E o que quer dizer com isso?
— Quero dizer que à meia noite deve estar a fazer ó ó.
— Obedecer-lhe-ei, doutor... À mesa deve ficar a meu lado para me
vigiar. O difícil é de deitar-me à meia noite...
— Então por quê?
— Depois de jantar sempre se há de armar um joguinho.
— Não ponho nisso nenhum obstáculo. Jogar-se-á sem o senhor, ora aí
está.
— Na verdade, é uma idéia... pensou o ex-Bégourde. Deitando-me à
meia noite, estarei amanhã fresco e disposto para ir muito cedo à Rua Julien
Lacroix.
E torne/u em voz muito alta:
— Barão, as suas armas indianas brilham de um modo maravilhoso nas
panóplias... Foi um presente soberbo que me fez.
— Ainda bem que lhe agrada... Dá-me licença que vá dar-lhe uma vista
de olhos?
— Bem sabe que aqui está em sua casa.
Fossaro dirigiu-se para o gabinete de fumar.

***

Aproximou-se da panóplia formada em parte de flechas envenenadas, e


convencido de que ninguém o observava, meteu a mão detrás da serpentina,
e pendurou o fio de latão invisível preso de um lado ao anel da cavilha, e
terminado do outro lado por uma espécie de laçada.
— Tudo vai bem, murmurou.
Depois voltou para a sala. aonde acabavam de chegar muitos dos
convidados do Príncipe.
Às sete e meia, menos alguns minutos, os convidados, em número de
trinta, achavam-se todos presentes.
Eram, já se vê. só homens.
Heitor jurara que nenhuma mulher do mundo duvidoso transporia o
limiar do palácio, que a presença de Lucília, transformada em Princesa de
Castel-Vivant, ia bem depressa mudar num tempo consagrado aos castos
amores.
Deu a meia hora.
As portas abriram-se de par em par.
Uni criado de mesa proferiu a frase sacramentai:
— O senhor Príncipe está servido.
Os convivas invadiram a imensa sala de jantar, onde muitos criados de
libré formavam alas na sua passagem.
O jantar foi logo no princípio muito animado. Heitor achava-se entre o
Barão e o doutor.
Antonino Frébault não se mostrava mentor muito severo, e bebendo de
um trago copázios cheios, não punha o convalescente no regimem do vinho
com água.
Demais, o Príncipe bebia com moderação relativa.
O Chateau Laffite e o Musignoy substituíram as tisanas, e os vapores
destes vinhos generosos subindo-lhe à cabeça, punham-no de uma alegria
louca.

***

Deixemos por uns minutos a Rua Francisco I, e roguemos aos nossos


leitores que os acompanhem ao palácio de Chaslin, ao quarto da Duquesa.
Os ponteiros da pêndula de velho Saxe ornada de flores e de amores,
indicam nove horas e três quartos.
Joana de Chaslin, deitada, com a parte superior do corpo amparada por
almofadas postas umas sobre as outras, e uma escrivaninha diante de si,
escrevia.
Este trabalho parecia fatigá-la muito.
Por instantes, a mão tremia-lhe, a pena só traçava então caracteres
indecisos, mas legíveis.
Quase a cada frase detinha-se para lançar um olhar repassado de ternura
à falsa Adriana, que à viva claridade de um candieiro de abatjour, trabalhava
num bordado.
O Duque entrou.
Joana estendeu para ele a mão esquerda, e disse-lhe sorrindo:
— Vem dar-me as boas noites, meu amigo?
— Sim, uma boa noite.
— Não sei se a noite será boa... replicou a senhora de Chaslin, Todos os
vestígios da minha habitual sonolência desapareceram, e não tenho desejos
de dormir.
— Está a escrever?
— Sim, a Rogério.
— Tome cuidado com a fadiga.
— Estou a acabar. Vá descansar, meu amigo.
— Até amanhã, querida Joana...
O Duque inclinando-se, chegou os lábios à fronte da moribunda, que
respondeu:
— Sim, até amanhã.
O senhor de Chaslin retirou-se sem se atrever a olhar para Branca na
presença da mulher.
A Duquesa voltou-se para a jovem:
— Está bem pálida, minha querida Adriana... disse-lhe ela, está por
acaso incomodada?
— Incomodada, não, minha senhora... mas levantei-me hoje mais cedo
que tenho por costume, e devo admitir que estou prostrada pelo sono.
— Porque não me avisou mais cedo? retire-se.
— A senhora Duquesa já não precisa de mim?
— Não precisarei de mais nada, depois de me haver dado os dois
grânulos prescritos pelo doutor.

***

Branca levantou-se.
A Duquesa tivera razão falando na sua extrema palidez.
Estava lívida, e um círculo violáceo orlava-lhe as pálpebras
avermelhadas.
Neste momento, a força traía-lhe quase a vontade.
Dirigiu-se com um passo vacilante para um pequeno móvel colocado
detrás do leito.
E, quando ninguém a podia ver, em lugar de tirar do móvel o frasco que
encerrava os verdadeiros grânulos de digitalina, tirou do seio o outro frasco
idêntico, entregue por Pedro Rédon, e voltou para junto da doente.
Dando então ao rosto uma expressão obrigada de serenidade, desrolhou o
tubo de vidro, e deitou dois grânulos na colher de prata dourada que a
senhora de Chaslin estendia para ela.
Tremia-lhe a mão.
A terceira pílula escapou-lhe do frasco e rolou sobre o tapete. Branca
baixou-se rapidamente para a apanhar.
Mas de certo que a minúscula bolinha rolara para mais longe.
Com grande surpresa nada viu.
— Ah! disse a Duquesa, não procure. Para quê? Uma de mais ou de
menos, que importa?
E absorveu os dois grânulos.
Branca teve um calafrio em todo o corpo. Parecia-lhe que o chão lhe
fugia debaixo dos pés, e ia cair. Tornou a dominar os nervos, conseguindo
ocultar a terrível sensação que a dominava.
— Obrigada, querida filha, tornou a Duquesa. Dê-me um abraço e vá
dormir.
A filha de Pedro Carnot debruçou-se para o leito, e sem se fazer pálida, e
sem tremer daquela vez, ofereceu a fronte à nobre dama que acabava de
condenar e executar.
A senhora de Chaslin beijou-a repetindo:
— Vá dormir, minha filha... Eu vou concluir a carta... Até amanhã.
Branca sem responder recuou lentamente com uma rigidez de estatua,
dirigiu-se com um passo automático para a porta do gabinete, abriu-a,
fechou-a após si, e arrastou-se ao seu quarto.
Aí, os seus nervos contraídos espantosamente, dilataram-se-lhe, as forças
abandonaram-na, e caiu numa cadeira, prostrada por um desfalecimento que
foi de curta duração.
— Pronto, murmurou ela passado um instante. Dez vezes julguei que me
ia entregar! Jogava a cabeça por uma coroa de Duquesa... Ganhei a partida?
E quem, pai ou filho, me dará essa coroa? Um futuro próximo me dirá.
Agora trata-se de executar à risca as ordens de Pedro Rédon. É preciso que o
Duque não entre no palácio antes da uma hora da manhã.
Levantou-se, banhou o rosto em água fresca, olhou para a pêndula e
disse:
— Só dez e meia... É muito cedo... devo esperar ainda...

CIX - ACONTECIMENTOS

Branca fez erguer sem ruído o fecho interior da porta, depois, como lhe
recomendara Pedro Rédon, colocou os dois frascos em cima da mesa.
Tornou, em seguida, a sentar-se e esperou.
Deram onze horas no relógio.
— Estão todos deitados, murmurou a jovem, e o senhor de Chaslin
espera por mim. É tempo de me pôr a caminho.
Neste momento chegou-lhe aos ouvidos um leve ruído.
Aproximou-se da porta que dava para o corredor, pôs <> ouvido à
escuta, e ouviu passos de homem.
— É o Duque que sai pelo jardim, continuou ela. Vou ter com ele.
Branca deitou sobre os ombros uma capa de peles, e pôs na cabeça um
chapéu escuro, cujo véu de renda preta lhe formava uma máscara
impenetrável.
Depois de baixar a luz do seu candieiro, desceu pela escada de serviço,
atravessou o jardim, e achou-se dali a pouco na avenida Gabriel.
Levava consigo a chave da portinha.
A noite estava sombria.
Um espesso nevoeiro flutuando na atmosfera, tornava as trevas mais
espessas.
Os perfis das árvores dos Campos-Elyses a custo se avistavam,
parecendo fantasmas.
A filha de Pedro Carnot seguiu pelo passeio, até. ao ângulo da Rua
Boissy d'Anglas.
O senhor de Chaslin esperava-a debaixo do terraço fio Club Imperial.
Reconheceu-a, ou antes adivinhou-a na escuridão, e dirigiu-se
rapidamente ao seu encontro.
— Não me fale aqui, disse-lhe Branca em voz baixa sem parar. Vamos
mais longe. Siga-me.
Apressou o passo já rápido, e só parou debaixo das arcadas da Rua
Rivoli, onde o Duque se lhe reuniu.
A hábil comediante parecia suster-se de pé com dificuldade.
— Que tem? perguntou-lhe o velho muito inquieto, por vê-la tremer.
— Tenho medo, respondeu.
— Estando eu aqui que pode recear?
— Se alguém nos visse!
— É verdade! Não podemos conversar junto de um club onde tenho
tantos amigos. De um momento para o outro posso ser reconhecido...
— Para onde ir?
— Para um lugar seguro... Tem confiança em mim? — Se não a tivesse
estaria aqui?
O Duque apertou a mão de Branca, para lhe agradecer a resposta.

***

Passava um trem de aluguel sem gente.


Fez parar o trem, subir a jovem, e subiu para o lado dela, depois de dizer
ao cocheiro:
— Recanto da Rua da Chaussée d'Antin e do Boulevard. O trem rodou.
Voltemos ao palácio de Chaslin, ao quarto da Duquesa.
A Duquesa, assim que a falsa Adriana de Lasseny a deixou, quis
continuar o seu trabalho interrompido.
Principiou por ler a meia voz as linhas seguintes, já escritas:
"Meu bem amado Rogério.
"Recebi a tua querida carta. Sinto-me feliz por saber que pensas muitas
vezes em tua mãe, que também pensa sem cessar em ti.
"É chegado o momento em que acabará o exílio que te impuseste. Não
tarda que estejamos reunidos, e esqueçamos as pequenas tempestades do
passado, para só pensarmos no teu futuro...
"Bastante desejava poder mandar-te boas notícias... infelizmente e
impossível, porque nenhumas melhoras se manifestam no meu estado.
"Tenho porém a consolação de achar junto de mim um anjo, que sem
hesitar daria uma parte da vida para prolongar a minha.
"Este anjo é Adriana de Lasseny, de quem te falava na minha última
carta; Adriana, a filha de um velho amigo de teu pai, e a última descendente
de uma grande raça...
"Adriana é pobre, mais a sua nobreza vale a nossa, e a fortuna nada
acrescentaria aos encantos do rosto, e às perfeições da alma.
"Imagina. Rogério, que tive um sonho, cuja realização depende
absolutamente de ti. É nunca me separar de Adriana, chamar-lhe minha filha,
e ouvir-la chamar-me minha mãe.
"Quem sabe, — quando conheceres a menina de Lasseny, se não terás
pressa, tanto como eu. e mais que eu talvez, - de mudar o sonho em
realidade?...

A carta não passava dali.


A senhora de Chaslin tornou a pegar na pena.
Ta molhá-la na tinta, quando de repente parou, com a boca entreaberta,
os olhos espantados...
A pena escapou-lhe da mão, ao mesmo tempo que uma expressão de
indizível angústia lhe subia ao rosto.
Quis chamar...
Da garganta opressa, não lhe saiu um som sequer.
Os seus olhos tornaram-se fixos.
As suas mãos contraídas rasgaram a coberta da cama.
Um tremor convulso abalou-lhe todo o corpo, fazendo tremer a cama.
Esta terrível crise apenas durou.alguns segundos.
De repente os seus membros tomaram uma rigidez cadavérica.
A Duquesa soltou um fraco suspiro, e tornou a cair sobre as almofadas.
Passava-se isto no momento exatamente em que o senhor de Chaslin,
ébrio de amor sensual, fazia subir Branca para um trem no canto da Rua
Florentin.
Ao mesmo tempo outro acontecimento não menos trágico se realizava no
canto da Rua Francisco I.
O jantar oferecido -pelo Príncipe Totor aos seus amigos, tornava-se cada
vez mais animado e ruidoso.
O doutor Frébault não se poupava, e principiava a falar muito,
embrulhando-se-lhe alguma coisa a fala.
O próprio Fossaro tinha os olhos mais animados mie do costume ; e
parecia sentir tanto como os jovens elegantes ali reunidos. a influência dos
grandes vinhos.
Nós, porém, não duvidamos afirmar que era simulada a sua embriaguez.
— Meus rapazes, disse ele de repente, estamos à sobremesa, e sei de
ciência certa que o nosso amável anfitrião nos poupa uma surpresa. Reclamo
a surpresa! Se o nosso amigo se demorar um pouco mais, parece-me que já
não estaremos em estado de a saborear, porque, com a breca! tudo principia
a dançar menos mal, e as velas do lustre bailam uma sarabanda insensata!
— Sim, sim, gritaram os convivas que ainda tinham forças para isso, a
surpresa, venha a surpresa!

***

Heitor estremeceu, e passou o lenço pela fronte inundada de suor.


Antonino Frébault levantando-se, não sem custo, proferiu:
— Meus amigos, meus queridos amigos, o meu amigo, o nosso amigo, o
nosso excelente amigo, o Príncipe Totor, vai pedir a palavra... Peço-lhes um
silêncio, cuja necessidade se impõe... O que ele quer dizer-lhes é muito
curioso... Ele vai explicar-lhes como eu, que o curava, não fui a final quem o
curou... Vai provar-lhes por A mais B, que eu, doutor em medicina da
faculdade de medicina de Paris, e muito apreciado dos conhecedores, não
passo de um animal ao lado de um outro médico, que não é médico, mas que
sabe mais que eu, e que todos os meus colegas... Passo a palavra ao Príncipe
Totor.
Antonino Frébault deixou-se cair na sua cadeira em meio de grande
ruído de aplausos, e bebeu um copázio de vinho de Champanhe para se
refrescar.
Heitor, por seu turno levantara-se.
— Meus bons amigos, principiou ele com a voz um pouco embrulhada a
princípio, mas que se desembaraçou no mesmo instante, não tenham receio,
que serei breve... Querem saber o nome do médico de que falava o nosso
querido Frébault, e que não sendo médico, era mais esperto que todos os
doutores? Chama-se o Amor!
Os convivas, supondo aquilo um gracejo de quem estava alegre,
gritaram: bravo!
Só o Barão César franziu o sobrolho, e disse com um sorriso
constrangido:
— Pede-se a explicação do enigma.
— A explicação do enigma? repetiu o ex-Bégourde... ah! é muito
simples! O jantar que nos reúne esta noite, é o meu jantar de despedida à
vida de rapaz solteiro! O Príncipe Totor passou! Agora vai figurar o Príncipe
de Castel-Vivant. Amo, sou amado, e dentro de um mês, aquela a quem amo,
será minha mulher.
— Como fiz bem em me apressar! pensou Fossaro. Tudo nos fugia!
Às últimas palavras de Heitor sucedeu um ruído infernal.
Em meio de uma matinada de ensurdecer, cruzaram-se aclamações
confusas, ouviam-se estas palavras, que um peralvilho mais embriagado que
os outros repetia com uma persistência idiota:
— Homem ao mar! homem ao mar!
— Não, palavra, o principezinho falou como um anjo! balbuciou
Frébault enchendo o copo outra vez. Bebo à sua saúde! aqui jaz Totor e viva
Heitor! Palavra, que se abafa aqui... tenho precisão de mudar de ar por um
pouco...
O médico deixou a mesa, e dirigiu-se para o gabinete de fumar,
titubeando de um modo extraordinário.
César alcançou-o no caminho, tomou-lhe o braço amigavelmente, e
conduziu-o até ao divã que ficava por baixo da panóplia das armas
empeçonhadas.
Chegando ali cessou de o amparar.
César sentou-se, ou antes deixou-se cair sobre o divã.
— Meu querido doutor, disse o Barão, não receia que o Príncipe nosso
amigo, abuse das suas forças, e se exponha a uma recaída?
Antonino fez maquinalmente um sinal afirmativo.
— Quer que lho mande? continuou César. Pregar-lhe-á uma lição de
moral.
— Uma lição de moral! repetiu o médico bamboleando a. cabeça. Uma
lição, uma pequena lição de moral. Aconselhar-lhe-ei a que se vá deitar. Eis
a minha lição de moral. Com a breca! Sempre tenho um peso na cabeça!
César voltou para a sala de jantar, aproximou-se do Príncipe e segredou-
lhe:
— Antonino Frébault tem alguma coisa de importante a dizer-lhe. Está à
sua espera.

CX - A CATÁSTROFE

Heitor dirigiu-se para junto do doutor, e um bom número de convivas


seguiram-no ao gabinete de fumar, aonde os chamava o charuto de digestão.
— Vejamos, querido doutor, que pretende?
O médico respondeu:
— Uma lição de moral, uma pequena lição de moral. Vou passar a
receita. Sente-se aí.
E puxava para junto de si Heitor, cuja mão tomara e que não lhe
apresentava resistência.
Quando César de Fossaro os viu instalados ao pé um do outro, despediu
do seu único olho um fulvo lampejo.
Estendeu o braço como quem acende o charuto numa das velas da
serpentina, agarrou na extremidade do fio de latão invisível sobre a parede, e
recuou dando um puxão, e desprendendo assim a cavilha que enfiava na
cabeça do prego.
Os dez ou doze indivíduos reunidos no gabinete de fumar soltaram na
uníssona um grito de terror.
A panóplia desabava com ruído sobre o doutor e sobre o Príncipe,
saltando em seguida sobre o tapete.
Heitor ergueu-se de um pulo, sem outro mal mais que uma forte
contusão na cabeça.
O doutor levantou-se dificilmente, com o rosto ensangüentado.
— Ferido! balbuciou o Príncipe torcendo as mãos. Ferido! E as flechas
estão envenenadas! Socorro! depressa, socorro!
Antonino Frébault, a quem a embriaguez completamente se desvanecera,
mal se sustinha de pé. Procurava, contudo, persuadir-se a si próprio que o
perigo não existia.
— Sossego! exclamou, não é nada! Apenas um arranhão. Água fresca,
gelo e ligadura, não preciso de mais nada.
Foi quem havia de correr mais para lhe obter os objetos pedidos.
Decorreu um quarto de segundo.
De repente o desgraçado Frébault sentiu um calafrio percorrer-lhe a
epiderme, descendo-lhe da nuca até aos calcanhares.
— Vamos, disse ele com um estranho sangue frio. mas com voz
estrangulada, estou perdido.
— Frébault, querido Frébault, tornou o Príncipe, havemos de salvá-lo.
— Nada me pode salvar, o veneno que corre nas minhas veias nunca
perdoa! Há pouco era gelo, agora é fogo! Tenho ainda cinco minutos de
vida, e sofro como um condenado! De beber, por Deus dêem-me de beber!
Trouxeram uma garrafa cheia.
O doutor agarrou-a, mas agitavam-lhe as mãos terríveis convulsões.
O gargalo de cristal quebrou-se-lhe entre os dentes, sem que pudesse
engolir uma só gota de água.
Os olhos revolviam-se-lhe nos órbitas.
Apresentava o rosto de um homem consumido em vida pelas chamas.
Um estertor, entrecortado de lamentos abafados, saía-lhe dos lábios.
Caiu, contorceu-se numa convulsão suprema, e não se moveu mais.
Estava tudo acabado.
— Morto, está morto, exclamou o Príncipe caindo de joelhos junto do
corpo.
— Não falará, disse Fossaro em voz baixa!

CXI - CONTINUAÇÃO

Heitor sufocado pela dor e pela comoção, perdeu os sentidos.


— Depressa, levem-no para o seu quarto, deitem-no em cima da cama, e
tratem dele, ordenou Fossaro.
Os criados consternados obedeceram prontamente. A embriaguez geral
dissipara-se como por encanto. A alegria louca fora substituída por um
profundo terror.
— Não será preciso levar para casa o corpo do desgraçado Frébault!
atreveu-se a perguntar um dos convivas.
— Não, respondeu César, a verificação do óbito deve-se efetuar.
Previnam sem perda de um minuto o comissário de polícia, para que venha
fazer auto de corpo de delito.
— Eu vou avisar o médico.
E o Barão apressou-se a sair, depois de ter enrolado nos dedos e metido
na algibeira o fio de latão.
Na rua o nevoeiro cada vez se tornava mais espesso. Fossaro encontrou o
coupé que o esperava no lugar designado.
— Avenida Gabriel, canto da praça da Concórdia, e toca a bater, disse
ele a Benedetto saltando para o trem.
E enquanto o cavalo desfilava rapidamente, o Barão murmurava:
— O demônio transtorna-me o jogo! Só Frébault ficou ferido. O Príncipe
é portanto invulnerável. Não importa, irei até ao fim, e hei de ganhar a
partida.

***

Há já algum tempo que não falamos de Mariana Gilberto, expulsa do


palácio de Chaslin pela vontade inflexível do Duque Henrique, a quem
assustava a grande perspicácia daquela mulher.
A antiga ama de Helena, não podia conformar-se com um exílio que lhe
envenenava a existência.
Nos primeiros tempos, veio todas as noites passear defronte do palácio,
com o coração opresso, as pálpebras úmidas, olhando para as janelas
iluminadas, como Adão e Eva depois da queda contemplavam os horizontes
do paraíso perdido.
Não podia, contudo, imobilizar-se na sua dor.
Era preciso viver, e como não queria aceitar os oferecimentos generosos
da Duquesa, procurou trabalho como enfermeira, e foi admitida na Rua do
Bac, em casa de uma senhora idosa e decente, onde passava os dias.
Às onze horas, regularmente, uma enfermeira da noite vinha substituí-la.
e ela dirigia-se para o seu humilde quarto da Rua Miroménil, passando pela
ponte da Concórdia, praça do mesmo nome, Avenida Gabriel, e rua do
Elyseu.
Nunca deixava de parar em frente do pequeno parque, onde outrora
Helena de Chaslin, a quem chamava filha, experimentava os seus passos
vacilantes.
Os olhos arrasavam-se-lhe então de lágrimas.
Na noite em que tão terríveis coisas tinham sucedido no arrabalde de
Saint-Honoré e Rua de Francisco I, como a enfermeira da noite se fizera
esperar um pouco, Mariana só sairá da Rua do Bac às onze e um quarto.
A densidade do nevoeiro fez-lhe recear que se perdesse ao atravessar a
praça da Concórdia.
Tomou pela ponte Royal, costeou as Tulherias, e chegou à Rua de Rivoli
que a conduzia diretamente à Avenida Gabriel.
Como andava ligeiramente, apesar da idade, percorreu quase todo v
caminho em menos de meia hora.
No momento em que a anciã costeava os muros do Círculo Imperial, viu
uma carruagem, cujas lanternas, no meio do nevoeiro, pareciam duas
manchas de sangue, chegar a toda a velocidade, e parar de repente no ângulo
da Rua Boissy d'Anglas.
Um homem apeou-se da carruagem, meteu-se pela Avenida Gabriel, e
Mariana ouviu passos atrás de si, ao mesmo tempo que a carruagem se
afastava.
O terror não raciocina.
Segundo todas as aparências, a pobre criada nada tinha a perder, contudo
teve medo.
E atravessando a calçada, refugiou-se entre as árvores dos Campos
Elysios.
— O solo úmido abafava-lhe os passos, enquanto que, pelo contrário, os
calcanhares do passeante noturno soavam sobre o asfalto.
De repente cessou todo o ruído.
O homem fazia alto.
Mariana surpreendida, parou também,
Achava-se defronte do palácio de Chaslin, mergulhado no nevoeiro.
Procurou distinguir a portinha da grade.
Um vulto que se movia ocultava aquela porta.
— Não me engano, murmurou, ali está alguém. É um homem, bem vejo,
ou antes adivinho.
E encostando-se a uma árvore, esperou.
No fim de um segundo, chegou-lhe aos ouvidos o ruído de uma chave
girando na fechadura.
A portinha girou nos gonzos, e o vulto desapareceu.
— Quem quer que é, entrou... disse Mariana consigo. Quem será?... Será
o Duque! Mas por que havia ele de ocultar-se? Não está ele no direito de
fazer o que bem lhe parece, e de entrar pela porta principal? É singular...
Quero saber...
Tornou a atravessar a rua, e certificou-se de que a porta estava fechada.
— Que se passa para lá dessa grade? continuou a criada principiando a
sentir-se assustada. Parece-me extraordinário este mistério... Quem sabe se a
menina de Lasseny, não tem alguma coisa com esta visita noturna? Julgo a
velhaca muito capaz de receber um amante... Ah! se eu pudesse ler as provas
disso! Esperarei.
E Mariana embrulhando-se no seu chalé de quadrados, porque a névoa
penetrante a gelava até à medula dos ossos, afastou-se uns dez passos, e pôs-
se de observação.
O homem que acabava de transpor a porta do jardim, — o que é quase
supérfluo afirmar aos nossos leitores, - era o Barão de Fossaro.
Apeando-se, dissera a Benedetto:
— Vá imediatamente à Rua Verneuil, a casa do doutor Frébault... chame
pelo porteiro, anuncie-lhe que sucedeu uma desgraça ao seu locatário, e que
de um momento para o outro lhe levarão o cadáver. Que trate de prevenir os
criados do médico.
— Si, signor.
— Se o interrogarem, não saberá nada.
— Si, signor.
Assim que se achou no jardim, dirigiu-se para a porta por onde Branca
tinha saído, tendo o cuidado de não a fechar.
Fossaro empurrou-a e achou-se num pequeno vestíbulo.
Apesar de haver estudado o plano, traçado pela falsa Adriana, não podia
às cegas caminhar pelo palácio, sem se arriscar a denunciar a sua presença
com encontrões imprevistos.
No palácio estava tudo silencioso.
César de Fossaro fez girar o fecho da porta, e não encontrando
resistência, entrou sem hesitar.
A lâmpada, cuja torcida Branca baixara, derramava uma fraca claridade.
O Barão dirigiu u olhar para a pedra do fogão.
Os dois frascos estavam ainda ali.
Avançou, pegou neles, e meteu-os na algibeira, onde guardara o fio de
latão.
Neste momento, um ruído inesperado fez-lhe desce um calafrio pelas
costas, mas sorriu no mesmo momento daquele terror irrefletido, cuja causa
única estava no mecanismo das horas do relógio.
— Meia noite... disse, lançando um olhar para o mostrador esmaltado.
Há meia hora, pelo menos, tudo deve estar terminado... Vou certificar-me...
Preciso da carta do Duque à Duquesa que Branca não se atreveu a empolgar.
Fossaro atravessou o gabinete do toilette, e encostou o ouvido à porta do
quarto de Joana.
Nenhum ruído suspeito se fazia ouvir.
Puxou o fecho que a jovem tinha corrido antes de sair, abriu a porta com
precaução, e tornou a parar novamente.
No vasto aposento reinava silêncio de morte.
Um candieiro de Carcel de grande luz, colocado sobre uma mesa
pequenina ao pé do leito, banhava de esplêndida luz o corpo já hirto da
senhora de Chaslin.
O Barão aproximou-se nos bicos dos pés, precaução inútil e
inconsciente.
Um sorriso de triunfo iluminou-lhe as feições, ao mesmo tempo que
relanceava pelo quarto a sua pupila única, procurando o cofrezinho de cristal
montado em prata, e do qual a falsa Adriana falara.
Quando o descobriu, fez jogar a mola, levantou a tampa, e depois trouxe-
o para junto da luz, a fim de lhe examinar melhor o conteúdo.
A sua exploração foi coroada de repentino êxito.
— Eis o que quero! disse metendo na carteira a carta escrita pelo senhor
de Chaslin, e datada do palácio de la Roche-sur-Loire.
Feito isto, e posto o cofre no seu lugar, César deixou um derradeiro olhar
para a cama fúnebre, atravessou o gabinete de toilette, depois de novamente
fechar a porta, correu o fecho do quarto de Branca, baixou a torcida do
candieiro, seguiu ao longo do corredor, desceu a escada, saiu do palácio,
depois do jardim, e voltou para o trem.

***

— Fez o que lhe disse, Benedetto? perguntou ao cocheiro. Recebeu uma


resposta afirmativa, e deu ordem para o conduzirem à Rua Francisco I.
Quando César chegou ao palácio do principezinho, o comissário de
polícia acabava de terminar o seu auto de corpo de delito.
Este auto declarava que a morte do doutor Frébault fora acidental, em
presença de numerosas testemunhas.
— Este pobre Antonino havia de querer saber porque é que a Duquesa
morrera tão depressa... pensou o Barão. Sabe-o agora, se o outro mundo
existe, mas não o pôde dizer a ninguém. Tudo corre perfeitamente!
O cadáver do médico foi logo colocado numa carruagem para ser
conduzido à rua de Verneuil.
Fossaro viu-o partir, depois dirigiu-se para o quarto de Heitor.
O Príncipe voltara a si, mas achava-se numa prostração penosa, quase
inquietadora.
César apertando-lhe afetuosamente a mão, disse-lhe:
— Coragem, querido Príncipe!
— Coragem! não tenho! Eu era muito amigo de Frébault... Não me
consolarei nunca com a sua morte...
— O que acaba de se passar é profundamente triste, tornou o Barão; mas
a catástrofe podia ser mais terrível ainda... A sua estrela protege-o
visivelmente!... Sentado ao lado de Frébault, devia ter ficado ferido como
ele...
Heitor limpou o rosto inundado de lágrimas e balbuciou:
— Deus, de certo, quer que eu viva...
— Veremos! disse Fossaro.

***

Voltemos a Mariana Gilberto. Ouvira abrir a porta do jardim...


Vira o vulto humano tornar a sair, e dirigir-se para a Rua de Boissy
d'Anglas.
O visitante noturno tornando a sair do palácio, não podia ser o Duque.
Quem seria então, e porque estivera ausente tanto tempo?
Por um instante, Mariana teve idéias de o seguir.
Mas ele caminhava depressa, e chegou num instante à carruagem que o
trouxera, e que logo se afastou.
A velha criada, com a alma atormentada por negros pressentimentos, em
vez de voltar para casa pela Avenida Gabriel, Rua do Elyseu e Praça
Beauveau, tornou para trás.
Dirigiu-se para o faubourg Saint-Honoré, pela Rua Boissy d'Anglas, e
parou em frente do palácio de Chaslin, tendo o cuidado de se colocar na
calçada, do lado oposto da rua.
Apesar da densidade do nevoeiro, pareceu-lhe distinguir uma fraca
claridade através das cortinas descidas das janelas do primeiro andar.
— Há luz no aposento da senhora Duquesa, murmurou. Também há luz
no quarto onde eu ficava, para estar ao pé da minha ama. Também há luz no
do Duque... Que se passa esta noite no palácio?
Durante mais de vinte minutos, Mariana andou a passear de um lado para
o outro pelo passeio, perguntando no seu íntimo se não deveria despertar o
porteiro, e contar o que acabara de presenciar na Avenida Gabriel.
Mas a idéia de que o senhor de Chaslin a tornaria a acusar de mentirosa e
a faria expulsar novamente, não a deixou dar seguimento ao seu projeto.
Não podia, contudo, resolver-se a sair dali.
Via que não poderia pregar olho em toda a noite.
Queria, pelo menos, antes de voltar para a Avenida Gabriel, certificar-se
de que daquele lado nada havia de anormal.
Por isso tornou a encaminhar-se para a Rua Boissy d'Anglas.
Era uma hora da manhã...

CXII - ROMEU E JULIETA

O trem onde se achavam o senhor de Chaslin e Branca fez alto no ângulo


do boulevard e da Rua de Ia Chaussée de Antin, defronte do Vaudeville.
O Duque abriu a portinhola e apeou-se.
— Chegamos, disse, apeie-se, querida Adriana. A jovem saltou
ligeiramente para o passeio.
— Para onde me leva? perguntou.
— Ao Bignon.
— Um restaurante! murmurou Branca com gesto de terror.
— Vamos para um gabinete, onde estaremos ao abrigo de toda a
curiosidade indiscreta, onde poderemos conversar à nossa vontade. Não
hesite... venha.
Branca fez uma ou duas objeções, por simples formalidade, e seguiu o
ancião que subiu com ela os degraus cobertos de um tapete felpudo que
conduziu ao primeiro andar.
Um criado majestoso, com suíças de ministro, introduziu-os num
gabinete onde os perfumes combinados do charuto e do opoponax,
produziam aquele cheiro sui generis, muito conhecido dos pândegos
noturnos, das bonitas cocotes e das mulheres casadas que cultivam a flor do
adultério.
A falsa Adriana de Lasseny deitou um olhar curioso pelas paredes
forradas de papel e guarnecidas de frisos de madeira dourada, daquele
gabinete banal, pela mesa posta, pelo amplo divã de fisionomia provocante,
pelos espelhos garatujados de nomes e de letras por garotas idiotas que a si
mesmas querem provar que têm nos dedos verdadeiros diamantes.
O criado majestoso entufou o peito, afagou com a mão esquerda as
suíças sedosas, e formulou esta interrogação:
— O senhor quer escrever o que escolhe?
O Duque perguntou então à sua companheira:
— Que come?
— Não tenho fome...
— O apetite virá... replicou o senhor de Chaslin. Depois, dirigindo-se ao
criado:
— Traga-nos ostras de Ostende, sopa de purée de caça, um perdigoto
com trufas, uvas e peras...
— Vinho?...
— Champanhe nevado.
— Durante toda a refeição?
— Sim.
— Bem, senhor.
O criado saiu para ir transmitir as ordens que acabava de receber.
Passado um momento veio pôr em cima da mesa os hors d'oeuvres, as
ostras e uma garrafa de cápsula dourada num regelador de plaque.

***

Branca não levantara ainda o véu.


Para se dar uma atitude, procurava ler os nomes escritos num dos
espelhos.
Quando o criado se retirou, o Duque aproximou-se da jovem.
— Querida Adriana, exclamou ele num tom suplicante, venha sentar-se à
mesa; mas tire primeiramente esse véu que lhe oculta as feições; tire esse
chapéu que lhe esconde os cabelos ; essa capa de peles que não me deixa
admirar o seu talhe.
Branca obedeceu silenciosamente.
O senhor de Chaslin sentiu-se numa atmosfera de fogo, quando a viu de
cabeça descoberta, os grandes olhos cismadores, ainda maiores por efeito da
aureola lívida, e o rosto mais pálido que de costume, sob o diadema dos seus
cabelos louros.
Quis agarrar-lhe as mãos.
Branca retirou-as suavemente.
— Pedi-lhe que me concedesse uma entrevista fora de casa, e segui-o
aonde lhe aprouve conduzir-me... disse ela com voz firme. Se fiz isto, foi
que um motivo grave e legítimo desculpa a meus próprios olhos um passo
tão comprometedor... Devo falar-lhe demorada e seriamente...
— Querida Adriana, replicou o senhor de Chaslin, que pensava em coisa
muito diferente de uma conversa séria; não poderíamos pensar primeiro que
tudo na felicidade de nos vermos juntos?
— Se estamos juntos, interrompeu a jovem, é porque devo ocupar-me do
meu futuro.
— Do seu futuro repetiu o Duque. Mas não está o seu futuro já
garantido? Não estou eu para velar incessantemente sobre ele, para a rodear
de cuidados e de amor?
— Ah! exclamou Branca com vivacidade, cale-se! Não torne a proferir
semelhante palavra, peço-lhe!
— Posso eu impor silêncio ao sentimento que me domina a alma? Posso
porventura deter nos lábios os gritos da paixão que me saem do peito?
— Pode, porque assim é preciso, porque lho exijo! Não me faça
arrepender da minha confiança! Não me obrigue a fugir-lhe. Sossegue e
domine-se...
— Pois sim, sossegarei, obedecer-lhe-ei. Que devo fazer?
— Primeiro cear, depois escutar-me...
O Duque sentou-se todo trêmulo ao lado de Branca, e encheu us copos.
Branca comeu algumas ostras, e bebeu um gole de Champanhe.
O criado tornou a aparecer com a sopa. Quando ele se retirou, Branca
volveu:
— Sim, creio na sua amizade.
— Não é na minha amizade que deve crer! murmurou o senhor de
Chaslin. O que sinto por si é uma paixão profunda... infinita...
— Diga-me então aonde nos levará essa paixão? interrompeu a jovem.
O velho baixou os olhos, sob o olhar que descia sobre ele a prumo.
— O senhor Duque cala-se, continuou Branca passado um instante. Não
se atreve a responder! Pois bem, responderei pelo Duque, porque leio no seu
pensamento. Quer fazer de mim sua amante...
— Quero fazê-la meu ídolo... meu culto... uma divindade que se adora de
joelhos...
— Sua amante, em suma... repito a palavra... - talvez brutal, mas
absolutamente verdadeira.
— Bem sabe que será minha mulher...
Branca encolheu os ombros. A final retorquiu:
— É uma promessa que o obriga a tão pouco! A Duquesa está viva...
— Adriana, quer então encher-me de desespero?
— O que eu quero é torná-la razoável, mais nada... Sirva-me dessa sopa,
e deite-me de beber...
Branca bebeu com delicadeza e aprumo.
O criado entrou, trazendo a continuação da ceia, e tornou logo a sair.
Reinou demorado silêncio. A falsa Adriana rompeu-o.
— Senhor Duque, exclamou, eis-me chegada às cousas sérias que devo
dizer-lhe... vou pedir-lhe um conselho.
— Um conselho? a mim?
— Sim.
— Fale.
— Não acha que seria acertado ver se se encontra um pretexto que me
permitisse deixar o palácio de Chaslin?
O velho amante estremeceu; a estupefação e a angústia manifestaram-se
no rosto.
— Deixar o palácio? balbuciou com uma voz alterada. Por quê?
— Pois não compreende quanto a minha posição é falsa, e até odiosa
junto da Duquesa? O Duque fez-me a confissão de uma paixão falsa, e eu
proibi-lhe que me falasse em semelhante coisa, mas sem ter a coragem de
lhe proibir que me amasse! Sabendo que o senhor Duque está apaixonado
por mim, e continuando a ficar sob o mesmo teto que o cobre, torno-me sua
cúmplice, apesar da minha inocência! A minha presença é um contínuo
insulto para a nobre senhora que tem o seu nome! Não esqueça que Mariana
Gilberto despertou na sua alma suspeitas, agora desvanecidas, creio, mas que
podem de um momento para o outro reviver. Ora, Adriana de Lasseny deve
estar acima de toda a suspeita! Será verdade?
— Sim, é verdade, respondeu o Duque, arrastado contra sua vontade;
mas se Adriana se retirar, será para mim a morte!
— A morte! repetiu Branca sorrindo. Compreendo mal...
— Não a ver, é o mesmo que não viver!
— Quem lhe impede que me veja? Não pôde vir visitar-me à casa onde
eu estiver?
Uma imensa alegria invadiu a alma do senhor de Chaslin.
— Receber-me-á? exclamou. Permitir-me-á passar junto de si longas
horas que me hão de parecer muito breves?
— Permitir-lho-ei de muito boa vontade... respondeu Branca: sou a filha
de um dos seus velhos amigos... Nada será pois mais natural que as suas
freqüentes visitas; ninguém poderá admirar-se... e acredite que me tornarão
feliz...
— Adriana, Adriana... tornou o velho cingindo com os braços o corpo da
jovem que pretendeu puxar para si. Nessa nova habitação que o meu amor
espera transformar em paraíso, não recusará a fortuna que deponho a seus
pés! Onero rodeá-la das maravilhas do luxo e das artes. Quero preparar uma
moldura real à sua divina beleza. Consentirá, não é verdade? Deixar-me-á
admirar o meu ídolo, não é assim?
Branca soltou-se repentinamente.
— De que desprezo se complica o seu amor! replicou ela com altivez. O
senhor propõe-me mancebia! Os olhos de Branca fuzilavam.
— Senhor Duque, não sou mulher que se venda! Não esqueça para o
futuro o respeito que me deve, aliás juro-lho pela minha honra, entre nós
acabar-se tudo.
O senhor de Chaslin murmurou desculpas.
A jovem não pareceu ouvi-las. Consultou o relógio. Faltava um quarto
para a uma hora.
— É tarde... continuou ela levantando-se. Reconduza-me.

***

O Duque, confuso e arrependido, não replicou, e chamou pelo criado,


para pedir a conta e um trem.
A falsa Adriana punha o chapéu, deixava cair novamente o véu, e punha
a capa nos ombros.
O nevoeiro tornava-se cada vez mais denso.
Mariana Gilberto, dominada por sombrios pressentimento, não se
resolvia a sair da Avenida Gabriel.
Encostada a uma das árvores dos Campos-Elysios, fitava persistente o
olhar na portinha do jardim, naquela portinha que duas vezes se abrira para
dar passagem a um desconhecido suspeito.
Sentiu uma comoção repentina ao ouvir o rodar de uma carruagem que
vinha da Praça da Concórdia e se aproximava da avenida.
A vinte passos da grade a carruagem parou, depois, no fim de um
segundo, gritou sobre si mesma e afastou-se.
Mariana viu então, na espessura, avançarem dois vultos e pararem
defronte de uma porta.
Apesar da espessura do nevoeiro, a velha criada distinguiu um homem e
uma mulher.
Parecia-lhe vagamente reconhecer o andar da mulher.
O ranger do ferro contra o ferro demonstrou-lhe que introduziam uma
chave na fechadura.
— Entre depressa, disse uma voz.
Não foi sem custo que Mariana abafou o grito prestes a escapar-lhe dos
lábios.
— É o Duque! murmurou ela, o Duque e Adriana de Lassen?! Ah! o meu
instinto não me enganava! Eu avaliava bem a miserável rapariga! A
vergonha e a desgraça entraram com ela em casa da minha querida senhora!
A antiga ama de Helena sabia agora demasiado.
Nada mais lhe restava que saber naquela noite.
Tornou encaminhar-se para a Rua Miromenil.
***

Logo que o Duque e Branca se acharam no jardim, a jovem dirigiu-se


rapidamente para a portinha do palácio, deixando atrás de si o seu
companheiro sem lhe dirigir uma palavra, subiu a escada que conduzia ao
seu quarto, fechou-se, e atirou para cima de uma cadeira a capa e o chapéu.
— Parece que endoideço, disse ela. Na minha ausência que se passaria?
Viria Pedro Rédon?
Depois de levantar a torcida do candieiro, correu ao fogão.
— Sim, continuou ela, veio... Os frascos já aqui não estão, tenho medo.
As pernas fraquejavam-lhe, mas a sede de saber restituiu-lhe a energia,
esmorecida.
Puxou o fecho, atravessou o gabinete como fizera Fossaro, e encostou o
ouvido à porta do quarto de Joana.
— Um silêncio de morte... continuou a falsa Adriana... Está consumada a
obra... Quero certificar-me... A incerteza matar-me-ia.
Abriu a porta com precaução, e caminhando nos bicos dos pés, avançou
até à cama fúnebre.
Pálida de pavor recuou, mas sem soltar um grito, e já senhora de si,
constrangeu-se a contemplar as feições decompostas e os olhos muito
abertos da vítima.
— Está tudo acabado, balbuciou ela; serei Duquesa. Passado um
momento acrescentou:
— Quando eu parti, a senhora de Chaslin escrevia... Tinha a pasta em
cima dos joelhos. Pedro Rédon levaria a carta principiada?
Descobriu entre as dobras da cobertura de seda da cama, rasgada pela
vítima na sua convulsão suprema, um ângulo da pasta.
Apoderou-se dela, descobriu a folha de papel coberta de letras, pegou
nela, e aproximando-se do candieiro, cuja torcida quase toda carbonizada, só
projetava um clarão avermelhado, leu as últimas linhas traçadas pela
moribunda, e destinadas, como sabemos, a Rogério de Chaslin.
À proporção que lia, a expressão de terror ia-se lhe desvanecendo no
rosto, sendo substituída por uma irradiação de alegria.
— Designa-me a seu filho como a filha das suas afeições, como a mulher
sonhada para ele. E Rogério é moço, é belo, e será Duque! Vou amá-lo,
amo-o já talvez! Que me importa ao presente o velho que me adora? Eis o
meu futuro. É preciso que o Duque não suspeite a existência de semelhante
carta... O seu ciúme levá-lo-ia a aniquilá-lo... mas é preciso que Rogério
leia... O que fazer?
Branca, com a cabeça baixa, e os olhos fixos, procurou a solução do
enigma.
Achou-a finalmente.
Tornando a pegar na pasta abriu-a, meteu-lhe a carta dentro, atirou-a
para o espaço que medeava entre a cama e a parede, dizendo:
— A confusão das primeiras horas há de ser tal, que durante este tempo
ninguém, com certeza, se lembrará de que a Duquesa escrevia ontem à noite,
e pensará nesta carta. Porém, eu falarei nela quando a ocasião chegar... Só
me resta retirar... A criada de quarto entrará aqui esta manhã segundo o
costume, e dará o sinal de alarma. Deste momento em diante, o meu papel
limitar-se-á a fazer face aos acontecimentos.

CXIII - NOVAS MAQUINAÇÕES

Branca entrou para o seu quarto, despiu-se e meteu-se na cama, prostrada


do corpo e do espírito.
Parece-nos supérfluo afirmar aos nossos leitores que ela não pregou olho
por um minuto.
Quando o ruído de passos no palácio anunciaram que os criados
acabavam de se levantar, e principiavam o seu serviço, levantou-se sobre um
cotovelo e pôs o ouvido à escuta.
Por volta das nove horas fê-la estremecer um grito terrível, seguido de
pancadas violentas na porta.
Ao mesmo tempo uma voz transtornada repetia:
— Menina Adriana! menina Adriana...
— Descalça, e sem se dar ao trabalho de enfiar uma saia, Branca correu
a abrir.
— Que há de novo? perguntou a miserável criatura com uma expressão
de angústia capaz de enganar o mais sagaz dos juízes.
— Uma horrível desgraça, menina! respondeu a criada de quarto, cujo
rosto estava banhado de lágrimas.A senhora Duquesa morreu...
— Morreu! repetiu Branca. Ah! meu Deus! Mas é impossível! é
impossível!
Atravessou de um salto o gabinete de toilette, correu ao leito, soltou um
grito abafado, e caiu de joelhos, ocultando o rosto nas mãos, e balbuciando
palavras entrecortadas e frases sem nexo.
— Bem vê, menina, que não me enganava! tornou a criada de quarto.
Que fazer, meu Deus? que fazer?
Branca levantou-se:
— Primeiro que tudo é preciso prevenir o senhor Duque enquanto me
vou vestir, replicou ela. Vá! vá depressa!
A criada de quarto saiu correndo.
A envenenadora voltou para o seu quarto, acabou de vestir à pressa um
penteador, e atava o cabelo, quando as portas se abriram com violência, e se
ouviram passos precipitados no quarto da morta.
O senhor de Chaslin, ofegante, alucinado, dominado por um desespero
sincero, chegava, e atrás dele afluíam os criados lavados em lágrimas,
porque sabemos que Joana era adorada pelos criados.

***

A filha de Pedro Carnot entrou.


— Morta, a senhora Duquesa! Morta a minha benfeitora! murmurou ela
com uma voz quase indistinta, entrecortada por soluços. Oh! meu Deus! meu
Deus! quão cruelmente me feris!!
E por segunda vez deixou-se cair de joelhos.
Em roda dela não se ouviam senão gemidos abafados!
Em pé, à cabeceira do leito, o Duque conservava-se mudo, aterrado,
como idiota, os lábios trêmulos, os olhos espantados.
Grandes lágrimas deslizavam-lhe uma a uma, sem que ele tivesse
consciência disso.
De repente passou a mão pela fronte como um homem que desperta.
— O doutor Frébault... ordenou. O senhor de Logeryl... os meus filhos...
Helena e Rogério... previnam-nos.
E prostrando-se aos pés do leito, enterrou o rosto nas coberturas da
cama, ao mesmo tempo que o peito lhe arfava convulso.
Partiram dois criados a toda a pressa, um para casa do doutor Frébault, o
outro para casa do senhor de Logeryl.
Branca chamou o criado de quarto do Duque, e disse-lhe:
— Um telegrama para a menina Helena, em casa da senhora Condessa
de Roncey, em Besançon, e outro para o senhor Rogério, em Vesoul...
Depressa!
O criado saiu.
Durante alguns minutos reinou um silêncio profundo e sinistro no quarto
mortuário.
O senhor de Chaslin levantou-se.
Deitava em roda de si olhares sem expressão, e parecia aniquilado.
Alguns minutos tinham-no envelhecido dez anos.
Lembrava-se talvez com terror de que no momento em que a Duquesa
Joana de Chaslin morria, dizia ele a outra mulher, no delírio da sua paixão
adúltera.
— Será Duquesa! Entretanto Branca dava ordens.
Fecharam-se as cortinas das janelas; acenderam-se velas em roda do
leito.
Despenduraram da parede um crucifixo de marfim, e coloram-no em
cima do peito da morta.
Os criados mandados em missão voltaram um depois do outro.
— Então? perguntou Branca ao primeiro criado que apareceu: O criado
respondeu:
— O senhor de Logeryl não está de volta. Só o esperam depois do meio
dia.
O segundo criado chegou.
— O doutor Frébault estava em casa? interrogou a jovem,
— O doutor Frébault morreu. Branca teve um estremecimento...
Compreendia, adivinhava.
O Duque ouvira.
— Morreu! exclamou com voz abafada.
— Sim, senhor Duque, esta noite.
E o criado referiu o que acabavam de lhe contar na Rua Verneuil.
Henrique de Chaslin levantou as mãos ao céu, e deixou-se cair numa
poltrona.
A envenenadora aproximou-se dele.
— Senhor Duque, murmurou.
O velho ergueu a cabeça, fixou na jovem um olhar sem ardor, e
balbuciou:
— Que me quer?
Branca continuou:
— Apesar da sua imensa dor é preciso pensar nos deveres que lhe
incumbem. Devem fazer-se as declarações legais.
O Duque respondeu com um sinal afirmativo.
Levantou-se, não sem custo, apoiando-se nos braços da cadeira, curvou o
joelho diante do leito fúnebre, e saiu do quarto cambaleando como um
homem embriagado.
A bastarda de Pedro Carnot não se desmentirá.
Mandou chamar um padre, foi vestir um traje de luto, e voltou a
representar junto do cadáver da santa mulher que lhe chamava filha, a
comédia sacrílega da oração e das lágrimas.
O médico enviado pela "mairie" para verificar o óbito, declarou que
como a morte remontava a noite precedente, a decomposição do corpo devia
ser rápida, convinha proceder ao enterro na manhã seguinte.
Atribuiu a morte à ruptura de um aneurisma.
Corriam as horas.
Próximo da noite, o senhor de Logeryl chegou todo assustado.
A falsa Adriana continuava a orar e a chorar.
— Ah! senhor, balbuciou ela com uma explosão de soluços, que terrível
golpe para todos nós, e para mim que eterno luto. Parece-me que acabo de
perder minha mãe.
O substituto pegou nas mãos de Branca, apertou-as da maneira mais
afetuosa, e dirigiu-se ao quarto do senhor de Chaslin.
O Duque depois de haver escrito os apontamentos necessários para as
declarações legais, fechara-se no seu quarto e absorvera-se nos seus
desgostos e nos seus remorsos, remorsos pungentes que lhe dilaceravam a
alma, porque lembrando-se da sua casta companheira moribunda e tão
cobardemente atraiçoada, tinha horror de si mesmo.
Deus sabe se naquele momento Adriana já não existia para ele?
Ao ver a terrível alteração das feições do Duque, o senhor de Logeryl
estremeceu.
O ancião estendeu-lhe os braços, e encostando a cabeça ao seu ombro,
balbuciou:
— Morreu a minha pobre Joana! Morreu. Ah! eu desejava morrer
também!
Tio e sobrinho choraram juntos.
Bateram de manso à porta.
Um criado trazia dois telegramas.
Eram as respostas aos telegramas expedidos algumas horas antes.
— Leia, meu filho, disse o Duque.
O senhor de Logeryl rasgou os envelopes. Henrique de Chaslin
interrogou-o com o olhar.
— Rogério estará aqui amanhã pela manhã, exclamou o substituto.
— E Helena?
— Helena achava-se no campo com a tia a dez léguas da Besançon. Fez-
se seguir o telegrama. Helena também deve chegar amar nhã, mas de certo
mais tarde que o irmão.
— Valha-me Deus, murmurou o Duque, chegará ela a tempo de ver por
última vez a mãe?
— A que horas deve efetuar-se a cerimônia fúnebre?
— Ao meio dia.
— Não se poderá adiar?
— O empresário do enterro disse que era impossível. O senhor de
Logeryl passou toda a noite junto do tio. Antes de sair do palácio quis
despedir-se da falsa Adriana. Kra uma atenção devida a quem tão dedicada
fora a sua tia.

***
Foi encontrá-la na câmara mortuária, que ela não consentia em deixar
sob nenhum pretexto.
Os criados não se fartavam de elogiar a sua dedicação e a sua gratidão.
O senhor de Logeryl dirigiu-se-lhe com respeitoso interesse:
— Menina, olhe que sucumbe a tanta fadiga! É preciso fazer-se
substituir aqui durante algumas horas, e tomar um pouco de descanso.
Branca retorquiu chorando:
— Sou mais forte do que julga, senhor. Demais, pouco importa que eu
sucumba. Não deixarei a minha benfeitora.
— Tem o coração de um anjo, pensou o substituto. Branca tornou:
— Permita-me, senhor, que lhe faça uma pergunta. O senhor de Logeryl
inclinou-se.
— Quando chegam os filhos do senhor Duque?
— Vêem ambos amanhã pela manhã, mas Rogério chega primeiro.
— Permita Deus que eles tornem a ver o rosto de sua pobre mãe.
— Duvida?
— Infelizmente duvido, porque o telegrama expedido por sua ordem,
não a encontrou sua prima em Besançon.
— O namorado de Helena retirou-se, e Branca voltou para a cabeceira da
morta.
Desde pela manhã que ela impusera a si própria um jejum voluntário, o
que, junto à ausência do sono e à intensidade das suas preocupações, dava-
lhe ao rosto pálido um caráter doloroso e trágico.
Era impossível não a julgar esmagada sob o peso de um incomensurável
pesar.
Absorvia-a uma idéia fixa.

***

Dentro de algumas horas ia ver Rogério de Chaslin de Kervilliers, aquele


Rogério tão jovem e tão belo. que seria Duque e milionário, e a quem a
Duquesa a destinava para mulher.
Durante toda a noite, enquanto parecia chorar e orar, ardentes sonhos lhe
povoavam o cérebro febricitante.
Por volta das sete horas da manhã, o rodar de uma carruagem que vinha
a toda a pressa, e parou repentinamente na rua, mesmo em frente do portão,
despertou-a da sua absorção.
Ao mesmo tempo soava a campainha do palácio.
Branca correu uma das janelas, levantou as cortinas, e olhou.
O portão abriu-se.
Um mancebo de uniforme de hussardo dirigiu-se rapidamente para os
degraus do vestíbulo.
— É Rogério, disse Branca, a fotografia que sua mãe que mostrou não
exagera a sua beleza. Vou ver finalmente aquele que me há de fazer
Duquesa. Como o meu coração bate! Tenho afinal coração.
Depois deste breve monólogo, a filha de Pedro Carnot voltou para junto
do leito, e volveu à sua atitude recolhida.
Rogério de Chaslin, encontrando pelo caminho os criados inclinados e
silenciosos, galgou as escadas, atravessou a sala de entrada, entrou como um
furacão no quarto da mãe, e correu para a câmara fúnebre, sem reparar
sequer na jovem que ocultava o rosto entre as mãos.
O filho da Duquesa caiu de joelhos.
As suas lágrimas por muito tempo reprimidas, rebentaram. Balbuciou:
— Oh! minha mãe, minha doce e santa mãe. Por que a chamou Deus tão
depressa para si, sem permitir aos seus filhos o receberem o último ósculo?
Ao ouvir a voz de Rogério, Branca sentiu vibrar-lhe todas as fibras.
Ao ouvir as palavras proferidas pelo seu desespero, as palpitações do
coração aumentaram-lhe.
Levantou-se e olhou para o mancebo que não a via.
— Quais serão as primeiras palavras trocadas entre nós? perguntava ela.
No limiar da porta que ficava aberta, apareceu o senhor de Logerly que
se apeara e acabara de ser prevenido da chegada do primo.
Armando aproximou-se dele, o tocou-lhe brandamente no ombro.
Rogério voltou a cabeça, reconheceu o substituto, lançou-se nos seus
braços, e teve-o muito tempo abraçado, soluçando sem proferir palavra.
Branca conservava-se um pouco afastada.
A dor daquele filho cuja mãe matara, importunava-a.
Quis voltar para o seu quarto.
O ruído ligeiro dos seus passos atraiu sobre ela a atenção do senhor de
Logeryl.
— Não se afaste, menina Adriana, peço-lhe, disse-lhe com vivacidade;
desejo mesmo apresentá-la ao meu primo.
E voltando-se para Rogério, acrescentou:
— Rogério, eis aqui a menina de Lasseny, a nobre menina a quem a
senhora Duquesa chamava, com razão, o anjo do seu lar. Pelo amor da nossa
querida morta, é preciso amá-la como uma irmã, ela pertence-nos.

CXIV - NOVO IDÍLIO

Branca estacara numa atitude modesta. Parecia confusa ante as palavras


laudatórias proferidas pelo senhor de Logeryl.
Rogério ergueu pra a jovem os olhos avermelhados e intumescidos pelas
lágrimas.
Durante um segundo, apesar da violência da dor, experimentou uma
sensação de surpresa e de deslumbramento.
— Ah! A menina de Lasseny, balbuciou, de quem minha mãe me falava
nas cartas com profunda ternura.
A filha de Pedro Carnot sentiu o coração fundir-se-lhe. O sonho de amor
e de ambição que ela afagava havia alguns dias não tardaria a realizar-se.
Tinha já disso a certeza. Rogério estava encantado. Sem responder inclinou-
se. O mancebo tornou com vivacidade:
— Minha mãe amava-a. Tinha na senhora toda a confiança... Viu-a
morrer. Diga-me se o seu último pensamento... Se o último nome proferido
pelos seus lábios moribundos foi o meu.
Falando assim, Rogério agarrava nas mãos de Branca, e senti-as tremer
nas suas.
— Ai de mim, senhor, replicou a falsa Adriana, soluçando. O senhor,
sem querer, aviva o meu mais pungente pesar. A senhora Duquesa morreu
esta noite de repente, e eu não estava ao pé dela! Obedecendo à sua vontade
formal, ao seu desejo imperioso, tomava algum repouso...
— De repente! De noite! exclamou Rogério, é horrível essa agonia
solitária, é horrível! O quê, ninguém ao pé de minha mãe! Nem saberemos se
quer se ela morreu chamando pelos filhos!
— Pensava continuadamente no senhor e na menina Helena, tornou
Branca, e lembro-me... quando a senhora Duquesa, ao pé da qual trabalhei
até às onze horas da noite, me deu ordem para me retirar, escrevia-lhe, e
queria terminar a sua carta.
— Escrevia-me!... repetiu o mancebo sufocado pela comoção.
— Sim, confirmou Branca.
— Uma carta de minha mãe no momento em que ia subir ao céu! Os
seus últimos pensamentos! A suprema expressão da sua ternura! E essa carta
existe?
— Sem dúvida.
— Que é feito dela?
— Não sei.
— Foi talvez meu pai que se apoderou dela, como de uma relíquia
sagrada. Não lhe parece?
Branca refletiu.
— Não, não me parece, disse afinal.
— Por quê?
— O senhor Duque fulminado por um golpe inesperado, não podia
pensar senão na sua desgraça. Eu mesma, no meio da alucinação do meu
desespero, esqueci-me dessa carta que deve estar na pasta de que a senhora
duquesa costumava servir-se para escrever, e que eu lhe trouxera tão pouco
tempo antes da catástrofe.
— Onde está essa pasta?
— Em cima da cama... Pode ter caído para o chão.
— Sim?
— Não é certo, mas provável, e vou já certificar-me disso.
Branca meteu-se entre o espaço da cama e a parede, baixou-se e pareceu
procurar.
— Ei-la, senhor, disse, não me enganava...

***

Ao mesmo tempo apresentava o objeto a Rogério, que agarrou nele,


abriu-o e tirou a carta por acabar que chegou aos lábios.
— A letra de minha mãe! as últimas palavras que a sua mão traçou!
Deixou-se cair numa cadeira, e durante alguns segundos tornou-se-lhe
impossível decifrar uma só linha.
Cegavam-no as lágrimas.
Finalmente, um momento de calma no seu desespero, permitia-lhe ler em
voz baixa a carta que nós conhecemos.
Quando acabou de decifrar a última frase, tornou a olhar para Branca e
balbuciou com uma voz abafada:
— Menina Adriana, minha mãe amava-a do fundo dalma... Pusera na
senhora certas esperanças de que me fala nesta carta, e se isso depender de
mim só, tais esperanças não serão logradas.
— Eu amava a senhora Duquesa como se fosse sua filha... volveu Branca
simplesmente. Por ela houvera dado sem pesar a vida, Deus bem o sabe!
Após um momento de silêncio, tornou:
— Permita-me que me retire, senhor... tenho algumas instruções a dar
aos seus criados.
— Vá, minha senhora, e continue a dirigir tudo aqui, como se fazia antes
do golpe terrível que nos feriu a todos... Já não tarda a dizer à minha irmã, à
minha querida Helena, quanta gratidão lhe devemos...
Branca inclinou-se diante dos dois homens e saiu. No seu rosto
manifestou-se a mais profunda tristeza. Uma alegria imensa fazia-lhe,
porém, pulsar o coração. Quando a porta se fechou após ela, Rogério disse
ao senhor de Logeryl:
— Armando, minha mãe tinha razão, aquela jovem é um anjo.
Voltou-se para o leito onde jazia a morta, e continuou:
— Oh! minha mãe... minha mãe. Juro-lhe que satisfarei o seu último
voto... Não o esquecerei nunca.
Os soluços embargaram-lhe a voz.
— Vamos, Rogério, exclamou o senhor de Logeryl pegando-lhe nas
mãos, sê homem! Poupa-te a estas frases banais de consolação que não
consolam, e luta porém contra a dor, e mostra que és o mais forte! Lembra-te
de que deves a teu pai o exemplo da coragem.
— Tens razão! Meu pobre pai! Sobreviverá ele ao infortúnio que o
esmaga? Vamos ter com ele...
— Depois iremos... O seu criado de quarto, no momento em que
cheguei, disse-me que dormitava após uma longa insônia... Deixemo-lo
saborear uma hora de descanso, de que tanto carece!...
— Mas por que é que minha irmã não está aqui? Não foi prevenida por
despacho ao mesmo tempo do que eu?
O senhor de Logeryl explica a causa da demora de Helena.
— Chegará ela a tempo para o séquito fúnebre? murmurou Rogério.
O criado de quarto entrou.
Acabava de anunciar que o Duque de Chaslin esperava Rogério e
Logeryl.
Não descreveremos a entrevista de pai e filho.
Para que havemos de enegrecer mais ainda as cores de tão sombrio
quadro?

***

Soavam as doze badaladas do meio dia.


Havia mais de uma hora que o caixão de Joana de Chaslin estava exposto
numa verdadeira capela ardente, por baixo dos panos de luto encimados
pelas armas ducais que ornavam a porta monumental do palácio.
Os empregados das pompas fúnebres, levantando o caixão, colocaram-no
no luxuoso trem, cujo pano mortuário desapareceu debaixo de um montão de
coroas e de flores.
O Duque estava aniquilado.
Amparado pelo filho e por Armando, veio colocar-se à frente do cortejo;
as carruagens de luto desfilaram-se, seguidas de centenas de carruagens
particulares, e o préstito dirigiu-se lentamente para a igreja.

***

No momento em que se punha a caminho, um comboio da linha de Paris-


Mediterrâneo-Lyão, vindo de Dijon, parava em Brunoy.
Uma jovem de vinte anos, trigueira, muito bela, vestida de luto, pálida,
com os olhos avermelhados, o rosto angustiado, meio deitada no ângulo num
compartimento de primeira classe, onde se achava só com uma criada de
quarto, murmurava ouvindo nomear a estação pelos empregados:
— Brunoy! Estamos apenas em Brunoy! Faltava ainda uma hora para
chegar a Paris! Meia hora pelo menos para ir da gare ao palácio. Chegarei
muito tarde!
E a jovem, em quem os nossos leitores já adivinharam a menina Helena
de Chaslin, abafou os soluços com o lenço.
O comboio tornou a seguir rapidamente, e passando como um raio pelas
estações intermediárias, parou na gare de Paris.
Helena, abrindo a portinhola, saltou, seguida da criada de quarto, no cais
de desembarque.
Um coupé enviado pelo senhor de Logeryl esperava desde pela manhã.
Helena não o viu sequer, atravessou a multidão, correu à estação dos
trens de praça, e disse a um cocheiro indicando-lhe o palácio de Chaslin:
— Vinte francos pela corrida, mas com toda a velocidade. O cavalo tinha
gênio, e o cocheiro não poupou o pingalim. Não obstante, eram quase duas
horas quando o trem parou no faubourg Saint-Honoré.
A menina de Chaslin apeou-se e tocou com violência. A porta abriu-se
logo.
Toda a casa assistia à cerimônia fúnebre, salvo o porteiro, que não podia
deixar o seu posto.

***

Ao ver entrar a filha do Duque, o velho servidor soltou uma exclamação


abafada e ocultou o rosto nas mãos. Helena compreendeu e balbuciou:
— Chego muito tarde, não é verdade, Etiene?
— Infelizmente, menina, tudo está acabado... A estas horas o cadáver da
nossa boa ama deve ter entrado no cemitério, e eu estou só, como vê.
Helena deixou-se cair de joelhos no empedrado de entrada do palácio,
levantou as mãos e os olhos para o céu, e da alma, mais que dos lábios,
saíram-lhe estas palavras:
— Oh! minha mãe! minha mãe! não devia tornar a abraçá-la, nem viva,
nem morta. Porque partiu, minha mãe, sem receber o último beijo de sua
filha?
A criada de quarto, jovem camponesa da Franche Comté, chorava
também rezando em voz baixa. A menina de Chaslin levantou-se.
— Entre no meu cubículo, menina Helena, se faz favor, disse-lhe o
porteiro, esperará o senhor Duque, o senhor Rogério, e o senhor Logeryl.
— Meu irmão chegou a tempo, não é verdade? tornou a jovem.
— Chegou esta manhã muito cedo. Se lhe apraz, venha sentar-se.
Helena abanou a cabeça e perguntou:
— As portas do palácio estão abertas?
— Sim, menina.
— Vou ao quarto de minha mãe.
— Só!
— Só, sim... Quero estar só! Julga que tenho medo de quem tanto me
amou? Ah! se a sombra querida de minha mãe se dignasse aparecer-me!!
Fique com Antonieta.
E a irmã de Rogério dirigiu-se para o vestíbulo. - Pobre menina Helena!
murmurou o velho guarda-portão limpando os olhos. Pobre menina! E
invejam os ricos! Pois a riqueza não lhes faz derramar uma lágrima de
menos!
Helena subiu os degraus, abriu um dos batentes da grande porta de
vidraça, e entrou no vestíbulo.
O silêncio profundo que reinava em volta dela oprimiu-lhe o coração, e
regelou-lhe o sangue nas veias.
Mal teve forças para subir a escada que conduzia do quarto da Duquesa.
A porta do quarto de dormir e as duas janelas, estavam abertas de par em
par.
A menina de Chaslin, meio sufocada pelos soluços, dirigiu-se para o
leito com um passo vacilante, prostrou-se diante daquela cama onde sua mãe
dera o último suspiro, e não podendo agora conter a expressão do seu
desespero, deu livre curso às lágrimas e aos gemidos que ecoaram de um
modo lúgubre na casa maldita...

***

Depois de deixar a avenida Gabriel à uma hora da noite, em que se


efetuara o crime, Mariana Gilberto assustada com o que vira à porta do
jardim, voltou para a sua mansarda da Rua Miromenil.
Torturavam-lhe a alma terríveis angústias; tudo receava pelo futuro, mas
tratava-se do duque, e o passado condenava-a ao silêncio.
Não podia senão amaldiçoar Henrique de Chaslin. e, sobretudo, Adriana
de Lasseny, em quem adivinhara a alma de um demônio sob a forma de um
anjo.
A velha criada dali a um quarto de hora já não se preocupava com o
homem cuja entrada no jardim e saída a tinham a princípio intrigado e
inquietado tanto.
Aquele homem devia ser o próprio Duque.
A densidade do nevoeiro não a deixara reconhecê-lo.
O criminoso acordo do marido de Joana e da dama de companhia, já não
podiam pôr-se em dúvida, existia a prova material indiscutível.
Mas de que lhe servia aquela certeza?
Que resolução tomar?
Devia avisar a senhora de Chaslin?
Seria tropeçar novamente numa incredulidade completa, e além disso
causar à doente comoções talvez funestas...
Mariana, para nos servirmos da sua linguagem, sabia por experiência que
maus resultados dava o pôr o dedo na ferida.
Feitas todas estas reflexões, resolveu abster-se e calar-se, pelo menos até
nova ordem.

CXV - RASGÕES NO VÉU DO CRIME

No dia seguinte Mariana Gilberto voltou à Rua do Bac, a casa da dama a


quem andava tratando.
Soube ali que o médico autorizara a doente, como ia melhor, a ir para o
campo.
Por isso pagaram à antiga ama de Helena, e notificaram-lhe que não
voltasse no dia seguinte.
Ora naquele dia era o enterro da Duquesa, cuja morte Mariana não podia
suspeitar, por ter estado ausente do bairro na véspera até as onze e meia.
A velha criada passou toda a manhã em sua casa, a tratar da roupa de que
não fazia uso havia algum tempo em conseqüência das suas ocupações
quotidianas
Por volta das duas horas sentindo a cabeça pesada, saiu para tomar ar, e
abastecer-se das suas modestas provisões.
Quando entrava num padeiro próximo da praça Beauveau, uma operária
ainda nova conversava com o dono da casa ao pé do balcão.
— Viu o enterro, senhor Gaudin? perguntava.
— Isso é que não, menina Liza.
— Pois olhe que perdeu.
— Então era bonito o enterro?
— O que se pode imaginar de melhor.
— Como assim?
— Olhe, eu lho conto.
— Vamos lá a ouvir.
— Seis cavalos com xaireis e plumas como no Hipódromo! Penachos
por todos os lados, e um coche de enterro que parecia de praia maciça.
— Safa!
— Aquilo devia custar bem bom dinheiro!
— Também não admira! replicou o padeiro. Aqueles Chaslin são ricos...

***

Mariana que até ali escutara de um modo distraído, estremeceu.


— De que Chaslin fala o senhor? perguntou com angústia.
— Falo do Chaslin que tem aquele grande palácio no arrabalde Saint-
Honoré, não muito longe daqui.
— Pois morreu alguém no palácio Chaslin?
— Sim, minha querida senhora.
— Então quem foi?
— A Duquesa: pessoa muito caritativa, segundo parece. Vão levá-la para
o cemitério.
— A senhora Duquesa morreu! exclamou Mariana com desvario. Ah!
meu Deus, meu Deus, que desgraça!
A antiga ama de Helena correu para fora da loja, partiu com rapidez, e
parou ofegante à porta do palácio onde puxou a campainha com todas as
forças.
O guarda-portão veio abrir.
— Mariana! Mariana, em Paris! murmurou com grande assombro.
Julgava que Mariana, como as outras criadas, tinha ido para a província.
— Mentiram, não é verdade? balbuciou a boa da mulher. A senhora
Duquesa está viva, não é assim? responda, responda!
— Ai, minha pobre Mariana, disse o guarda-portão baixando a cabeça, a
notícia fatal é verdade, e bem verdade... a senhora Duquesa morreu... terrível
desgraça para o senhor Rogério, para o senhor Duque, e para a menina
Helena, que choram a bom chorar.
Mariana estremeceu.
No mesmo instante perguntou impetuosamente.
— O senhor Rogério, a menina Helena?
— O senhor Rogério veio esta manhã, a menina Helena veio há uma
hora...
— A menina Helena acompanhou o enterro?
— Não, a pobre menina chegou muito tarde...
— Onde está ela?
— No quarto da senhora Duquesa, onde está a orar, enquanto a família
não volta.
— Ah! exclamou a velha criada meio sufocada pelos soluços... Helena
está no palácio! Helena! minha filha! Quero vê-la!
E atravessando o pátio, galgando os degraus, chegou ao quarto da morta
repetindo:
— Helena! Helena!
A jovem, sempre ajoelhada, ouviu e reconheceu aquela voz que lhe era
querida.
Levantou-se e estendeu os braços para a recém-chegada, balbuciando
através das lágrimas:
— Ah! Ama, minha mãe morreu... Não a tornei a ver.
— Querida filha... querida Helena!... replicou Mariana cobrindo de
beijos as faces úmidas de Helena. Morta! a minha querida senhora! e eu sem
saber nada! E não fui eu quem lhe prestou os últimos deveres! E levaram-na
para o cemitério sem mim! Compreende? Sem mim!
A menina de Chaslin olhou para a sua interlocutora com um espanto
misturado de susto.
— Não sabia nada! disse. Tu que não deixavas minha mãe!!
— Ai de mim! já cá não estava!
— Pois tu não estavas ao pé de minha mãe doente, agonizante?
— Não.
— Abandonaste-a?
— Expulsaram-me daqui.
— Expulsaram-te! repetiu a jovem. Tu, a minha ama! Tu, a guia dos
meus primeiros passos! Tu, a personificação do dever, pois expulsaram-te!
— Sim, expulsaram-me como uma miserável... como uma criatura
indigna e perigosa!
— De que te acusavam?
— De perceber muito bem os manejos da menina de Lasseny.
— Da menina de Lasseny!... A menina de Lasseny não é a dama de
companhia de quem as cartas de minha mãe falavam com tantos elogios?
— Sim, um demônio que eu adivinhava, e de quem a senhora Duquesa,
com a sua bondade de anjo, era vítima. Disse em voz muito alta o que
pensava... fecharam-me a boca e expulsaram-me!
Helena estremeceu de horror e exclamou:
— Que se passava então aqui? A minha pobre mãe estava então em
perigo havia muito tempo?
— Não, cem vezes não! A doença do coração seguia a sua marcha lenta.
Nada fazia pressagiar um fim próximo...
— Quem tratava de minha mãe?
— Sempre o mesmo médico... o doutor Frébault... Afirmava que a
senhora Duquesa tinha ainda anos a viver...
— E a menina de Lasseny? estava sempre ao pé dela?
— Sempre... Era ela quem lhe fazia tomar os seus grânulos e as suas
poções. Aquele monstro de hipocrisia demonstrava uma grande dedicação.
— Um monstro de hipocrisia! repetiu a menina de Chaslin.
— Por Deus e pela salvação eterna o juro!
— Que sabes então a respeito dessa rapariga?

***

Mariana perturbou-se ao pensar que era preciso atacar o Duque perante


Helena, o pai perante a filha...
— O que sei... balbuciou. Não sei nada...
— Se não soubesse alguma coisa, não falarias assim. Terias o cuidado de
não acusar sem motivos.
— Helena... Helena... por piedade não me interrogue!... Não me peça
que lhe responda... Tenho medo..., bem vê que tenho medo...
— Mariana, as tuas palavras assustam-me, e o teu silêncio assusta-me
ainda mais!... Acode-me ao espírito uma dúvida horrível... Cometeu-se
algum crime nesta casa?
A velha criada tornou-se lívida.
— Um crime, um crime! repetiu ela alucinada. Valha-me Deus, que
acabas de me dizer?
— Que idéia! Abre-me os olhos. Quando foi que a Duquesa morreu?.
— Na noite de anteontem, subitamente...
— O telegrama que me chamava foi expedido ontem pela manhã.
— Na noite de anteontem, tornou Mariana, falando em voz alta sem
saber, como os sonâmbulos, num sonho magnético.
— Na noite em que as janelas da Duquesa estavam iluminadas, as do
senhor Duque, e as da tal Adriana... Na noite em que eu estava de
observação na Avenida Gabriel, e vi entrar pela portinha do jardim um
homem que tornava a sair no fim de um quarto de hora e tomava a fuga.
A antiga ama calou-se.
Helena agarrou-lhe nas mãos.
— Ah! disse ela, faz-me tremer! Fala, explica-te, continua até ao fim!
Disseste que tinha entrado um homem no jardim do palácio!
— Sim, e tenho a certeza de não me ter enganado.
— Sabes quem era esse homem?
— Não, o nevoeiro não mo deixou reconhecer, julguei a princípio que
era o senhor Duque.
— Meu pai!
— Mas bem vejo agora que não me iludia, porque um pouco mais
tarde...
Mariana tornou a calar-se.
— Acaba, acaba, disse Helena suplicante, um pouco mais tarde o quê?
— Não. não me pergunte nada. Não sei, enlouqueço. Mas tinha
adivinhado tudo, previsto tudo. A desgraça entrava nesta casa ao mesmo
tempo que Adriana de Lasseny. Oh! minha Helena, minha querida filha! oh!
minha pobre senhora!
Neste momento várias carruagens pararam à porta do palácio, e ouviu-se
tocar a campanhia.
Mariana não pôde conter um movimento de susto, ei-los, são eles, disse
ela com uma espécie de delírio, oculto-me. Helena, porque assim é preciso, o
Duque está a chegar, e não quero que ele me veja. Não o quero ver.
Não, mais vale fugir que ocultar-me. Parto, sairei sem ser vista pela porta
do jardim... Minha filha, minha querida filha, quando tiver necessidade de
mim, far-me-á prevenir, Rua de Miromenil, 92, não tornarei a sair da minha
água-furtada. Estarei sempre na expectativa.
— Minha ama, não me deixes ainda, conclui o que começaste, esclarece-
me completamente.
E a menina de Chaslin esforçava-se por deter Mariana, porém Mariana
retorquiu soltando-se dos braços de Helena:
— É preciso partir. Se me visse em presença desta miserável, matá-la-ia.
Na Rua Miromenil n.° 92. Lembre-se.
Fugiu, atravessou o gabinete de toilette e o quarto da falsa Adriana,
tomou pelo corredor de serviço pela escada particular, e alcançou as ruas
mais assombreadas do jardim.

***

— Meu Deus, meu Deus! pensara Helena que ficara só. Parece-me que
tenho um mau sonho. Que quis ela dizer? Que devo eu recear? Essa Adriana
a quem minha mãe amava, saiu um monstro, um demônio. O túmulo que se
acabou de fechar oculta por acaso um crime? Preciso de o saber!
Na escada ouviu-se um rumor de passos.
O Duque, seu filho Rogério e Armando de Logeryl, transpuseram o
limiar da câmara mortuária.
Helena caiu desfalecida nos braços do pai.
À recrudescência de dor, de lágrimas, de soluços, causados por aquela
dilacerante entrevista, sucedeu, como era inevitável, um momento de
tranqüilidade.
A recordação da conversa que tivera com Mariana voltou à memória da
jovem, que acometida de um calafrio, olhou para o pai cujos olhos se
fixavam com indizível expressão de angústia no leito onde Joana estivera
morta.
Uma piedade terna e profunda apoderou-se de Helena à vista daquele
ancião prostrado pela dor, com o rosto cavado, as órbitas encovadas, as
pupilas embaciadas.
Henrique de Chaslin padecia horrivelmente.
Não podia haver dúvida a tal respeito.
A jovem afugentou do espírito as vagas suspeitas invocadas pelas
reticências da ama.
Aproximou-se do Duque sentado numa poltrona, junto da qual se
conservavam em pé, silenciosos e sombrios. Rogério e o senhor de Logeryl.
— Meu pai, disse ela com uma voz lenta e meiga, a desgraça que nos
fere, é daquelas cuja recordação nunca se apagará... Nós perdemos a nossa
mãe muito amada, mas resta-nos o pai... O pai perdeu a querida e santa
companheira da sua vida, mas restam-lhe os filhos... os seus três filhos,
porque Armando também é seu filho. Pai, deixe correr as lágrimas, mas
apegue-se à existência para nos amar como outrora... para nos amar por
muito tempo ainda...
O Senhor de Chaslin escutava enternecido as palavras da filha.
Tinha as faces inundadas de lágrimas, mas parecia-lhe que aquelas
lágrimas tinham menos amargura.
Com as mãos trêmulas puxou para si a cabeça de Helena, e beijou-a nos
lábios, na fronte, nas faces, nos cabelos.
— Querida... querida filha, balbuciou ele.
A menina de Chaslin. tomando uma atitude erecta, chamou de lado o
senhor de Logeryl, e em voz muito baixa formulou esta pergunta que já
fizera a Mariana:
— Então a minha pobre mãe estava em grande perigo havia muito
tempo?
— Não, querida Helena, respondeu o substituto, a hipertrofia do coração
não chegava ao seu último período, e nada pressagiava uma morte
fulminante...
Esta resposta, idêntica no fundo, senão na forma, à da ama. impressionou
a jovem, que continuou, mas de uma voz mais alta, olhando para o pai:
— E ela morreu de repente?
O Duque, levantando a pesada fronte, respondeu:
— De repente, sim. Foi uma mulher que entrando aqui ontem de manhã,
soltou o primeiro grito de alarma.
— E na véspera, a minha mãe já não estava incomodada?
— Não... Parecia ir até um pouco melhor... Conversou até às dez e meia
da noite com a menina de Lasseny, a quem muito amava.
Ao ouvir o nome da dama de companhia, Helena recebeu cm cheio no
coração uma espécie de choque.
Fez-se pálida, e as suas sobrancelhas contraiam-se repentinamente.
Como ninguém olhava para ela aqueles sintomas de revolta passaram
despercebidos.

CXVI - SUSPEITAS

Passado um momento. Helena tornou:


— A menina de Lasseny de quem me falava minha mãe numa das suas
cartas...
— Um anjo de dedicação, interrompeu Rogério.
— uma encantadora jovem que não deixava a Duquesa, apoiou o senhor
de Logeryl. Há de amá-la, Helena.
— E na noite fatal ela velava junto de minha mãe? perguntou a menina
de Chaslin.
O substituto respondeu-lhe:
— Até às dez horas e meia, e às instâncias da Duquesa a menina Adriana
retirara-se para o quarto, antes ocupado, por Mariana Gilberto.
— Visto isso, tornou Helena com uma expressão dilacerante, a minha
velha ama também não estava presente?
— Mariana havia quinze dias que deixara o palácio.
— Como! tornou Rogério estupefato, Mariana deixara o palácio?
Helena como não queria ainda confessar a entrevista que acabava de ter
com a fiel criada, fingiu ignorar tudo, e perguntou:
— Por que se retirou? Julgava que Mariana nunca abandonaria esta casa,
que se passou?
Era embaraçosa a pergunta formulada pela jovem.
O senhor de Logeryl deitou um olhar ao Duque de Chaslin.
O Duque respondeu, mas não sem se mostrar contrafeito:
— Se Mariana se retirou, foi porque o seu caráter cioso e violento se
tornava insuportável. Tinha tomado ódio à menina de Lasseny, e não perdia
nenhuma ocasião de a ofender.
— Que me está a dizer, meu pai?
— A verdade.
— A verdade! repetiu a menina de Chaslin com amargura. Então aquela
que me sustentou com o seu leite, que me criou, que foi uma segunda mãe
para mim, o senhor baniu-a sem piedade, porque ela se dava mal com uma
estrangeira! Era muito duro, era muito cruel! Mariana Gilberto expulsa para
deixar o lugar livre à menina de Lasseny, é uma coisa que profundamente
me ofende, confesso.
— Helena, Helena, exclamou Rogério, não acuses a menina Adriana!
O Duque levantara-se.
— Minha filha, disse ele num tom quase severo, fique certa de que eu e a
Duquesa julgamos proceder bem. A pessoa de quem fala merecia o respeito
de toda a gente. O nosso dever era fazê-la respeitar.
— Não a conheço, interrompeu Helena.
O ancião interrompeu logo:
— Mas há de conhecê-la, e avaliá-la melhor.
— Talvez! exclamou a jovem com uma voz tão baixa, que não se ouviu
esta palavra.
Depois acrescentou:
— E meu pai a que horas saiu desse quarto?
— Um pouco depois das dez... respondeu o senhor de Chaslin, que não
suspeitava o terrível pensamento de Helena.
— Como estava minha mãe?
— Parecia melhor, repito. Não tinha sono e queria concluir uma carta
principiada. Abracei-a, segundo o costume, e saí. Quem me havia de dizer
que não a tornaria a ver? Quem se havia de lembrar de que aquele beijo seria
o último!

***

Esta recordação comoveu o Duque profundamente. Rompeu em soluços.


Helena sentiu-se impressionada com as suas lágrimas evidentemente
sinceras.
Novamente impôs silêncio ás suas suspeitas, e tornou:
— Depois de deixar minha mãe, quando chegou ao seu quarto, não ouviu
nada? algum grito ou ruído?
O senhor de Chaslin fitou em Helena um olhar espantado, inquieto, e
repetiu:
— Um ruído! Um grito?
— Sim, no aposento onde minha mãe soltava o último suspiro.
— Não podia ouvir nada; não me achava no palácio.
A jovem lembrou-se das palavras de Mariana, e com uma voz trêmula
perguntou:
— Onde é então que estava meu pai?
— Senti-me incomodado, prostrado. Saí para tomar o fresco
— E saiu pela porta principal?
— Pelo jardim...
— E recolheu-se muito tarde?.
— Pela uma hora, parece-me.
— E o que fez então?
— Fui descansar.
— Sem tornar a abraçar minha mãe?
— Julgando-a adormecida, seria correr o risco de a despertar.
— O que disse o médico habitual da casa quando soube da catástrofe
terrível, inesperada?
— Ai, minha querida Helena, as desgraças nunca vêem sós! Na mesma
noite em que a Duquesa morreu, morria também o nosso amigo Frébault.
Helena teve um sobressalto. Fez-se lívida.
— O que está dizendo? E de que morte?
— De morte acidental... em seguida a um grande jantar em casa do
Príncipe de Castel-Vivant.
— Extraordinária coisa! Mas os outros médicos? Suponho que os
deviam ter chamado, e se deve saber qual a sua opinião?
— O médico enviado pela mairie, declarou que a ruptura de um
aneurisma lhe parecia a causa única da morte.
Após alguns instantes de silêncio. Helena, cuja respiração sibilante
incomodava, e cujo rosto se decompunha cada vez mais, continuou:
— Meu pai não supôs que nessa noite alguém pudesse aproveitar-se da
sua ausência para se introduzir no palácio?
O Duque olhou para a filha com um ar espantado, e balbuciou:
— Introduzir-se no palácio durante a minha ausência?
— Sim, chegar até à cama de minha mãe sem ser visto.
— Meu Deus! Mas o que pensas tu? perguntou o ancião pegando nas
mãos de Helena.
— O que julgas, minha irmã? acrescentou Rogério.
— Penso, creio, respondeu a noiva de Armando de Logeryl, que há na
desgraça que nos fere certas coisas inexplicáveis, e que essas coisas me
assustam.
— Helena, explique-se! disse então o substituto em quem se despertava
o instinto do magistrado.
— Pois muito tem, corro no risco de passar por louca a seus olhos, mas
afirmo que esta catástrofe que nos fulminou a todos nós, sobreveio muito
antes da hora devida... Afirmo que a morte de minha mãe resulta não de uma
causa natural, mas de um crime...
— Um crime!... repetiram ao mesmo tempo os três.
— Sim. um crime! o mais covarde de todos os crimes!
— Mas isso é impossível! tornou Rogério tremendo. Quem se lembraria
do pensamento monstruoso de atentar contra a vida da melhor, da mais santa
das mulheres?
O senhor de Chaslin, cuja prostração, muito antes, lhe parecia absoluta,
recuperou as forças para intervir e suspender as palavras nos lábios da filha.
— Nem mais uma palavra. Helena! ordenou ele num tom imperioso e
ameaçador. Delira, e o pesar perturba-lhe a razão... O que! pois o crime
havia de transpor o limiar dessa morada, e eu, <> dono da casa, não saberia
defender contra o atentado a nossa morta bem amada! Sou eu então cego ou
cúmplice? Entre estas duas hipóteses, escolha! O teu cérebro doente
engendra fantasmas! Cale-se. Em nome de sua mãe ordeno-lhe! Não quero
ouvir nada! replicou o Duque.
E com o rosto contraído, o olhar cintilante de cólera, deixou o aposento
fúnebre.

***

Armando e Rogério apertaram a mão silenciosamente. Os seus olhares


concentravam-se em Helena com uma expressão aterrada e compadecida.
A jovem baixava a cabeça, e parecia prostrada.
— Minha irmã... minha irmã... disse Rogério. Tenho medo de te
compreender.
— Quer dizer que me compreendes...
— Sob as tuas palavras misteriosas entrevejo uma terrível suspeita.
— E tens razão.
— Querida Helena, acrescentou o senhor de Logeryl, tome cuidado!
— Com quê?
— O Duque dizia há pouco: O seu cérebro engendra fantasmas. Creio
firmemente que ele tinha razão.
— Ah! exclamou a jovem muito agitada, julga isso!.Ah! aceita a morte
de minha mãe. essa morte súbita, incompreensível, que nada fazia pressentir,
e não teve uma suspeita!! Como, pois na noite de anteontem minha mãe
vivia, minha mãe velava, sossegada e risonha, e horas depois já não existia.
Pois havia uma mulher encarregada de cuidar dela. e essa mulher só
despertava pela manhã, ao grito de alarme da criada! E o doutor Frébault, o
médico hábil, o velho amigo, morria na mesma noite que nossa mãe, ferido
por mão desconhecida! E não acham assustadoras estas coincidências! Não
vêem em tudo isto nada de suspeito? Não desconfiam de coisa alguma? Se
ouvissem como eu Mariana Gilberto, estariam ambos menos surdos e menos
cegos...
— Mariana Gilberto! repetiram ao mesmo tempo Armando e Rogério.
— Sim. Mariana! que expulsa daqui, viu na noite em que minha mãe
morria, introduzir-se um homem no jardim, pela porta que deita para os
Campos-Elysios... Naquele homem julgou a princípio reconhecer o Duque
de Chaslin. mas enganava-se.
— Que dizes?
— Aquele desconhecido misterioso não era, não podia ser-meu pai...
— Que me está a dizer? exclamou Armando estupefato.
— A verdade, juro-lhe! Mariana afirma-me que viu, e eu creio-a, porque
a sua afeição pela nossa família é uma prova da sua absoluta sinceridade! A
menina de Lasseny, a quem chamam o anjo da dedicação, com uma agitação
febril, estava ou devia estar no quarto próximo. Uma criatura que morre solta
um grilo... brada por socorro... o anjo da dedicação não ouvira nada! o tal
anjo tinha então abandonado o seu posto no momento do perigo?
— Oh! minha irmã... minha irmã... exclamou Rogério. A jovem
continuou:
— Não atrairia, a menina de Lasseny, o Duque para fora do palácio, a
fim de aí deixar penetrar um cúmplice? Tenho o direito de o supor...
— Helena, disse Armando por seu turno, suplico-lhe, cale-se.
— Que me cale quando tudo me grita, quando tudo me prova que
assassinaram covardemente minha mãe! Ah! compreendo agora muito bem
as reticências de Mariana.
— O que?
— O seu instinto revelava-lhe a infame comédia que uma aventureira
sem pudor representava junto do ancião...
— Está ofendendo seu pai, murmurou o substituto.
— E insultas gratuitamente uma jovem a quem nossa mãe deveu as suas
últimas alegrias, e consagrava os seus últimos pensamentos... exclamou
Rogério com fogo. Lê esta carta, Helena... esta carta que minha mãe escrevia
quase no momento em que a feriram de morte, e acusa em seguida, se te
atreves, a menina de Lasseny.

***

Helena pegou com mão trêmula na carta que o irmão lhe dava e devorou-
a com os olhos.
Enquanto ela lia, a sua fisionomia expressiva manifestava ao mesmo
tempo o terror e a revolta.
Quando concluiu, exclamou:
— Adriana de Lasseny tua esposa! Adriana de Lasseny minha irmã! Oh!
nunca! nunca!
— Pois não compreendeste que devo obedecer ao desejo supremo da
nossa amada mãe? Entre as palavras de Mariana louca de ciúme, e as da
querida morta, por quem choramos, hesitarias tu? Hesitar seria um crime,
sabes, Helena?
— Não sei senão uma coisa: a idéia de chamar a esta mulher minha irmã,
faz-me calafrios, transtorna todo o meu ser, causa-me em suma uma
invencível repulsão! O instinto que me adverte não poderia enganar-me...
— Engana-a o instinto, querida Helena, disse o senhor de Logeryl
pegando nas mãos da noiva, terá disso a prova quando conhecer Adriana de
Lasseny, e as suas suspeitas desvanecer-se-ão sob o seu primeiro olhar,
como a neve se funde aos raios do sol.
— Minha mãe amava-a do fundo dalma, tornou Rogério; e ela pagava na
mesma moeda o amor de minha mãe. Más de também amá-la.
Dominada por uma perturbação mais fácil de compreender, que de
descrever. Helena perguntava a si própria:
— Que devo acreditar? Minha mãe estaria cega? Andaria Mariana
iludida? Onde procurar a explicação deste enigma sombrio?...
E acrescentou em voz muito alta:
— Apresente-me a menina de Lasseny...

CXVII - O ANJO BOM E O ANJO MAU

No momento em que a menina de Chaslin proferia as palavras que


acabamos de produzir, a porta do gabinete contíguo ao quarto mortuário
abriu-se.
Branca apareceu.
Trazia o rosto lívido, as feições cavadas, as pálpebras rubras.
Helena cravou nela um olhar fixo e desconfiado.
— Minha irmã, disse Rogério, dirigindo-se ao encontro da jovem, eis a
menina de Lasseny...
Branca aproximou-se de Helena, que olhava para ela dizendo baixinho:
— Esta palidez... esta atitude modesta! Iludir-se-á Mariana?
A falsa Adriana inclinou-se, murmurando com voz fraca:
— Acabo de saber, minha senhora, da sua chegada, e tenho pressa de
saudar na senhora a filha da minha querida protetora. Para poder tornar a vê-
la viva seria capaz de dar a vida... Deus bem o sabe, e de todo o meu
coração.
Estas últimas palavras foram proferidas de um modo quase indistinto, e
terminaram por um soluço.
— Afirmam-me que a senhora mostrava grande dedicação por minha
mãe, replicou a irmã de Rogério num tom glacial, quero crê-lo e agradeço-
lhe. Sinto que não pudesse, amando tanto minha mãe, receber o seu último
suspiro, na falta de meu pai ausente.
— É mais uma dor acrescentada ao meu desespero, murmurou Branca
limpando as lágrimas: mas, ao menos, se o meu coração se despedaça, a
minha consciência nada me exproba... Quando deixei este quarto à hora
habitual, obedeci às ordens da senhora Duquesa. Demais, eu estava
perfeitamente sossegada, porque o doutor Antonino Frébault viera naquela
tarde, e nada fazia recear uma catástrofe fulminante...
— Fulminante e inexplicável, não é verdade? volveu Helena.
— A isso não posso responder... Infelizmente a ciência tudo explica...
médico, chamado muito tarde, não pareceu surpreendido com aquela morte
que nos cobre de luto. Apesar de estranha na sua família, perdi com a morte
da senhora de Chaslin.
Helena observava-a com profunda atenção.
Branca continuou:
— Achei nela uma segunda mãe... Ela restituíra-me a fé e a esperança no
futuro. Dignava-se chamar-me filha... Se soubesse como eu a amara!... A
ternura que ela me testemunhou, ficará sendo a mais cara recordação da
minha vida... O meu reconhecimento por ela e pelos seus nunca terá fim.
— Oh! minha irmã, disse Rogério em voz muito baixa ao ouvido de
Helena, pode duvidar ainda...
Branca continuou:
— A morte da minha protetora bem amada, e o seu regresso à casa de
que vai ser a senhora, mudam completamente a minha situação.
— Que diz?
— O caminho que devo seguir já está traçado. Abandono já, hoje, este
palácio, onde a minha presença deixa de ser útil, e seria indiscreta.
— Deixar o palácio! exclamou Rogério. Por quê?
— Porque o devo fazer, e com certeza que o senhor seu pai, a menina
Helena e o senhor de Logeryl me hão de aprovar. Não quero por forma
alguma perturbar neste momento a solidão e a dor do senhor Duque, e peço
que lhe participe a resolução em que estou. Mais tarde, quando o sossego e a
resignação tiverem sucedido à amargura dos primeiros momentos, terei a
honra de informar à menina Helena do lugar para onde vou, e espero que
algumas vezes se dignará pensar na órfã que há de chorar incessantemente
lembrando-se daqueles a quem ela amava, e que não tornará a ver...
Branca ocultou o rosto nas mãos soluçando.
— A sua resolução é irrevogável? perguntou a menina de Chaslin que
não partilhava a ternura visível do irmão e do noivo.
— Irrevogável, sim...
— Não procurarei combatê-la, e demais aprovo-a...Assim que tiver
escolhido a sua nova residência, faça-ma saber.
— Prometi e cumprirei a minha palavra.
— Temos que lhe pagar, menina, dívidas de mais de urna qualidade, e
dívidas de dinheiro.
Branca retorquiu com altivez:
— Essas não existem! e quanto às primeiras, pagando com uma ternura
filial uma afeição maternal. não fazia mais que o meu dever. Adeus, minha
senhora, levo a esperança de que um dia me fará justiça. Senhor Rogério, os
meus cumprimentos... Senhor de Logeryl, adeus...
Branca foi ajoelhar-se diante da cama onde Joana jazera, e pareceu
durante alguns segundos orar com fervor.
Levantando-se, inclinou-se profundamente, mas sem humildade,
primeiramente diante de Helena, depois diante dos dois mancebos e saiu.
Rogério seguiu-a.

***

Quando se achou fora do quarto, disse-lhe com voz suplicante:


— Não esqueça, menina, as últimas palavras de minha mãe... Lembre-se
do seu voto supremo. Ela chamava-lhe filha.
— Nada me esqueci, senhor, volveu Branca em voz muito baixa; mas
devo lembrar-me que se deixo aqui amigos, deixo também uma inimiga...
— Uma inimiga! Então quem?
— A menina Helena...
— Minha irmã não poderia odiá-la.
— Não queira iludir-me... Estava há pouco no meu quarto... a menina de
Chaslin falava muito alto, e eu ouvi sem querer. Ah! senhor Rogério que
odiosa acusação! Suspeitar assim de mim é horrível!
— Seja indulgente com Helena, a quem o desespero alucina.
— Perdôo-lhe! mas posso por ventura esquecer? O senhor defendeu-me,
e do fundo do coração lhe agradeço... Retirando-me levo comigo a sua
estima e o meu reconhecimento eterno, pelos benefícios de sua mãe... Adeus,
senhor Rogério, adeus...
Rogério não se atreveu a prolongar uma entrevista que de um momento
para o outro Helena podia interromper.
Apertou nas mãos, e chegou respeitosamente aos lábios, as mãos de
Branca que lhe lançou um olhar indefinível.
Em seguida afastou-se, cismador, fascinado, esquecendo quase a mãe
para só pensar na falsa Adriana.
Armando de Logeryl, assim que Branca deixou o aposento mortuário,
disse para a noiva com vivacidade:
— O que! pois deixa aquela jovem retirar-se assim! Nem ao menos a
beijou!! É ser má e cruel. Duvida da sua dor e supõe que ela representa a
comédia das lágrimas?
— Sim, suponho hipócrita a sua dor, e mentirosas as suas lágrimas,
replicou a menina de Chaslin com uma voz abafada.
— Que dizes! exclamou Rogério.
— Quis há pouco reagir contra as minhas suspeitas, e tentei-o debalde.
Adriana de Lasseny é uma criatura fatal... Vi os seus olhos vacilarem sob o
meu olhar. Metia-lhe medo! Adverte-me o instinto de que nesta casa se
realiza um atentado tenebroso... A mulher infame a quem defende, matou
minha mãe! Dia virá, dia que não está longe, talvez, em que não se duvidará
do que digo.
Exausta pela comoção, a jovem deixou-se cair muna cadeira e baixou a
cabeça.
— Helena, querida Helena... Tornou Armando de Logeryl, peço-lhe que
sossegue! A sua imaginação perturbada pelo desgosto exalta-se. Está
alimentando suscitas que a lógica e o bom senso repelem! Considere,
Helena, que a acusação se chama calúnia quando não tem base, e não se
apoia em prova alguma!
— Provas! fala-me em provas! repetiu a noiva de Armando... tê-las-ei.
— Aonde as vai buscar?
— Mariana mas dará... Daqui a pouco tornarei a travar com ela a
conversa interrompida por meu pai. Obterei que ela se explique sem
hesitação, sem reticência, e quando souber tudo, veremos se ainda defende
contra mim essa aventureira.
— Aflige-me, Helena... replicou o substituto, aflige-me profundamente!
Bem sabe que é a pessoa a quem mais amo no mundo; mas a justiça deve
estar acima da afeição ainda a mais legítima e a mais santa! Correndo o risco
de a fazer zangar, o que para mim seria um grande desgosto, defenderei a
menina de Lasseny enquanto estiver convencido da sua inocência...
— E quando deixar de estar convencido?
— Quando deixar de estar convencido, quando me for demonstrado que
se cometeu um crime, e que Adriana era cúmplice desse crime, não terei
como a senhora senão um pensamento, um desejo: vingar sua extremosa
mãe!
Enquanto escutava o senhor de Logeryl, Helena olhava para o tapete sem
ter disso consciência.
De repente um glóbulo de cor pardacenta. pouco maior que um grão de
milho, atraiu a sua atenção.
Baixou-se para apanhar aquele objeto minúsculo, pegou-lhe com as
pontas dos dedos e colocou-o na palma da mão.
O substituto, dando-lhe que cismar aquele movimento, inclinou -se para
ela.
— O que é isto, sabe? perguntou-lhe a jovem.
Armando pegou por seu turno no glóbulo, examinou-o, e respondeu:
— É um dos grânulos de digitalina que o nosso pobre amigo o doutor
Antonino Frébault, receitava para uso cotidiano...
— Como está esse glóbulo ai?
— Caiu de certo do tubo de vidro que o continha.
— Poder-se-á encontrar esse tubo?
— De certo.
O senhor de Logeryl aproximou-se do pequeno móvel colocado detrás
do leito.
Estava ali um frasco.
O substituto pegou nele e deu-o a Helena.
Helena desrolhou-o logo, deitou alguns grânulos no côncavo da mão.
— Pedia a prova do crime! exclamou. Talvez possa dar-lhe
imediatamente.
— A prova?
— Sim... Estes grânulos não têm exatamente a mesma cor, nem
absolutamente o mesmo volume desse que o senhor tem na mão. Com
certeza que não saem do mesmo tubo! Ora veja...
— É verdade, murmurou o substituto, mas não seja precipitada nas
conclusões.
— Não concluo, procuro... e Deus há de permitir que eu descubra.
Armando, em nome do amor que me tem, em nome da afeição que votava à
minha pobre mãe, saiba o que esse granulo contém.
— Sabê-lo-ei, mas serei prudente... Se Deus a inspira, se as suas
suspeitas se confirmam, justiça será feita, juro-lhe...
— Conte comigo... volveu a menina de Chaslin... Calar-me-ei, e a
paciência não me faltará!
Armando embrulhou em um papel o grânulo encontrado por Helena,
meteu-o num compartimento do seu "porte-monaie", e guardou na algibeira
do colete o tubo ainda com metade dos grânulos.

***

Na noite precedente. Branca abandonando por alguns momentos a sua


vigília sacrílega junto do leito da sua vítima, descera ao jardim, e dentre o
musgo do vaso de Delft tirara o seguinte bilhete trazido por Pedro Rédon:
"Quando chegar o momento de retirar, mandar por um moço de recados
pedir no escritório da rua da Vitória, em nome da menina Adriana, as chaves
de um palacete mobiliado, alugado desde ontem no "boulevard Flandrin,
n.°... Escrever logo, avisando, para o Chalet da rua Compons, para o nome
de Margarida."
No momento de deixar a casa da rua do arrabalde Saint-Honoré, a filha
de Clara Gaillet sabia para onde ia, apesar de na presença de Rogério, de
Helena, e de Armando de Logeryl fingir a mais completa ignorância a tal
respeito.
Duas horas depois chegava de trem ao boulevard Flandrin.
Ficou alegre ao deparar com uma casa de proporções restritas,, porém
mais que suficiente, mobiliada com modesta simplicidade.
A sala do "rez-de-chaussée" abria para uma estufa envidraçada bastante
vasta, cheia de flores, e à qual se seguia um jardim pequenino como um
lenço de assoar, ensombrado por uns três castanheiros bem desenvolvidos.
No fundo deste jardinzinho havia uma pequenina porta oculta sob a hera
que deitava para uma rua geralmente deserta, a rua Ahéry.
— Aqui estarei muito bem, murmurou Branca, só sairei para voltar
triunfante ao palácio de Chaslin.

***

No quarto de dormir achavam-se muito à vista em cima da mesa papel,


envelopes, penas e um tinteiro.
Branca escreveu estas poucas palavras:

"Participar a Pedro que estou instalada."

Escreveu no envelope a morada de Margarida, no chalet da rua


Compons.
Foi ela própria deitar no correio aquele bilhete lacônico.
Em seguida, mandou um moço de recados buscar a sua modesta
bagagem ao palácio do arrabalde Saint-Honoré, dirigiu-se a Passy, a uma
agência, onde tomou uma cozinheira e uma criada de quarto que deviam
principiar o seu serviço no dia seguinte muito cedo.
Jantou só num gabinete do restaurante Ia Muette. e voltou para casa.
Aí pôs-se a refletir, e, se assim nos podemos exprimir, deitou balanço à
sua situação.
— Acabo de jogar, disse ela consigo, uma terrível partida, cujo selo
consiste na coroa ducal, e nos milhões de Chaslin. Pedro Rédon, o meu
sombrio companheiro, partiu o baralho abrindo duas covas... É a vitória ou o
cadafalso... Qual das duas coisas me reserva o futuro? Tenho contra mim
Helena e Mariana, mas tenho do meu lado Rogério... O filho da Duquesa vai
amar-me... ama-me já... Hei de ganhar a partida!
A recordação do velho Duque já não existia para Branca!

***

No dia seguinte pela manhã as cridas tomadas na véspera vieram tomar


posse do seu lugar.
Próximo do meio dia, um moço de recados trazia à menina de Lasseny
um bilhete de Pedro Rédon.
Anunciava-lhe a sua visita para aquela noite, às oito horas.
Às oito em ponto César de Fossaro, ou antes Pedro Rédon tocava à porta
do palacete do boulevard Flandrin.
A criada de quarto, conformando-se com as ordens dadas, introduziu-o
logo.
Pedro Rédon principiou por dizer:
— Primeiro tenho que te felicitar... Estou contente contigo. Foi tudo
conduzido de um modo magistral. O Duque entrou tarde, não é verdade?
— Próximo da uma hora da manhã, mas tenho medo de que da ausência
do senhor de Chaslin não resulte algum perigo... retorquiu a jovem.
— Algum perigo para nós?
— Sim.
— Como?
Branca explicou o que ouvira na véspera, através da porta. Entrou em
todos os pormenores da acusação formulada tão precisamente por Helena.
Acrescentou que Mariana, asseverou que tinha visto um homem entrar e
sair pela portinha do jardim. Fossaro contraiu o sobrolho.
— Era eu, disse. Depois?
— Não será bastante para nos comprometer?
— Não... Mariana sabe que tu saíste para ires ter com o Duque fora do
palácio, e que voltasse com ele?
— Ignoro, mas é possível.
— Nesse caso, se as suspeitas recaíssem sobre ti, o Duque havia de
parecer teu cúmplice. Seria a salvação, porque os filhos não entregariam o
pai à justiça. Demais, para acusar, seriam precisas provas.
— Se se examinasse o cadáver?
— A autópsia daria resultado conforme com a declaração do médico,
provando que a Duquesa sucumbiu à ruptura de um aneurisma.
— Mas se encontrassem um dos últimos grânulos que o senhor me
levou, e se deram à senhora de Chaslin em lugar dos grânulos? do doutor?
— É impossível, porque me restituíste o frasco, replicou César.
— É verdade que lhe restitui, mas no último momento tremia-me a
mão... um dos glóbulos que escapou do tubo, rolou sobre o tapete onde
debalde o procurei...
Pedro Rédon franziu o sobrolho por segunda vez, mas serenou no
mesmo momento.
— A tua falta de jeito, disse, pouca importância tem.
— Não me parece.
— Eu te digo. Supondo, coisa inverossímil, que esse glóbulo venha a
cair em mãos inimigas, não poderia servir de base a uma convicção séria.
— Como?
— Quando os grânulos de que se trata estão expostos ao ar livre durante
vinte quatro horas, o dissolvente que encerram desaparece quase
completamente pela evaporação. Portanto, não há nada que recear. Se nos
atacarem, tenho com que me defender.
— Que devo fazer?
— Estar muitos dias sem dar novas tuas ao Duque; depois, quando a
mágoa se desvanecer cedendo o lugar ao amor, dirigir-lhe uma palavra de
gratidão dando-lhe a tua morada, e acrescentando que estimaria vê-lo e
confundir as tuas lágrimas com as suas.
— Far-se-á. Mais nada?
— Mais nada... Ah! uma pergunta ainda: Qual foi a atitude de Rogério e
do senhor de Logeryl quando a menina Helena lhe deu parte das suas
suspeitas?
— Tomaram ambos o meu partido.
— Perfeitamente.
— Acha?
— Não te inquietes! Hás de ser Duquesa.
Branca sorriu-se com orgulho.
Fossaro continuou:
— Durante uma semana não te verei, porque me vou ausentar.
— Como nos havemos de corresponder?
— Se tiveres alguma coisa muito urgente, muito grave a comunicar-me,
escreve Margarida. Ela sabe para onde há de mandar-me algum telegrama.
Compreendeste?
— Compreendi.
— Então até à vista, e não esqueças nada.
Fossaro retirou-se deixando Branca muito satisfeita com a ausência que
acabava de lhe anunciar.
Completamente livre, e não sentindo pesar sobre si uma vigilância
oculta, nada lhe impedia que visse Rogério, e lhe exaltasse o amor nascente.

***

As suspeitas de Helena tinham despertado a suspeita no espírito do


senhor de Logeryl, mas entre esta dúvida e a convicção existia um abismo.
Entretanto, queria habilitar-se para dar à jovem uma resposta afirmativa
ou negativa.
Por isso deliberara fazer analisar quanto antes o glóbulo suspeito, e
interrogar ele próprio Mariana Gilberto.
Dirigiu-se no dia seguinte a casa de um químico, com quem tratara
muitas vezes, em conseqüência das suas funções judiciais, e encarregou-o da
análise, acrescentando que pouca importância ligava ao seu resultado.
O químico prometeu fazer-lhe conhecer aquele resultado no dia seguinte.
Durante o dia Armando voltou ao palácio do arrabalde Saint-Honoré, e
pediu a Helena que lhe desse a morada de Mariana Gilberto.
— Que lhe quer? perguntou a jovem.
— Pretendo interrogá-la.
— A pobre mulher não poderá responder-lhe neste momento, meu
amigo.
— Então por quê? exclamou o substituto muito surpreendido. — Queria
vê-la... Fui por isso a sua casa esta manhã...
— E depois?
— Encontrei-a de cama com um médico e lima enfermeira ao pé de si. O
desgosto que lhe causou a morte da nossa mãe, pô-la às portas da morte...
Tem uma febre cerebral, e o médico, chamado a toda a pressa, prometeu
salvá-la.
— Reconheceu-a?
— Não. Estava em delírio.
— Por todas as razões é uma desgraça, tornou o senhor de Logeryl,
porque só dela espera as revelações que podem lançar luz em meio das
trevas espessas em roda de nós.
— Deus não há de permitir que ela sucumba! murmurou a jovem. Viu o
clínico? acrescentou:
— Sim.
— Que lhe disse?
— Que à primeira vista não parecia inofensivo, mas que não ousava
emitir uma opinião. Só depois de amanhã saberei o resultado da análise.
— Quanta demora, meu Deus!
— Esteja sossegada, e arme-se de paciência. A hora da justiça há de
chegar infalivelmente, embora se faça esperar. Falou com Rogério a respeito
da menina de Lasseny?
— Mal vi esta manhã meu irmão, A sua profunda dor torna-o silencioso.
Foi ao ministério da guerra pedir uma licença.
— O senhor de Chaslin sabe que a menina Adriana deixou o palácio?
— Disse-lhe esta manhã.
— Que disse ele?
— Pareceu muito espantado com semelhante notícia.
— E depois?
— Pobre menina, murmurou ele. A sua prostração pareceu aumentar
desde ontem. Perguntou se a menina de Lasseny indicara a sua nova morada.
Respondi-lhe negativamente.
O senhor de Logeryl observou:
— Tinha o maior interesse em saber essa morada
— E por quê?
— Por muitos motivos.
— Posso dar-lhe.
— Então conhece-a?
— Quase.
— Como?
— Graças a um acaso muito simples. Ontem de tarde veio um moço
buscar a bagagem daquela rapariga.
— Mandou-o seguir?
— Não,o moço disse à criada de quarto que ele levava aquela bagagem
para muito longe, para Passy, boulevard Flandrin, para um palacete.
— Disse o número?
— Não.
— Pouco importa, bastará essa informação.
— Sabe onde é o boulevard Flandrin?
— Se bem me lembro, começa na grade do Arocadero. Não fica longe,
facilmente se encontrará.
O substituto escreveu uma nota na sua carteira:
— Desta noite em diante, o palacete será vigiado, acrescentou.
— Para que serve essa vigilância?
— Vai compreender-me, minha querida Helena.
— Explique-se então.
— Supondo, o que eu estou longe de admitir, que sua mãe não morresse
naturalmente e houvesse crime, Adriana só poderia ser a cúmplice nesse
crime.
— Cúmplice de quem?
— O principal criminoso seria, portanto, o homem que Mariana afirma
ter visto entrar no jardim do palácio durante a noite fatal, e tornar a sair
passado um quarto de hora. Se o fato é verdadeiro, se a cumplicidade existe,
esse homem irá com certeza visitar Adriana, e nós ficá-lo-emos conhecendo.
Eis porque se torna indispensável uma vigilância rigorosa.
— Faça o que entende, meu amigo; os acontecimentos hão de provar que
o meu instinto não me enganava.

***

Depois de deixar a sua noiva. Armando de Logeryl fez-se apresentar no


quarto do Duque, que ali se conservava enclausurado.
O ancião emagrecido, desconhecível, parecia sair de uma longa doença.
Daquela aparência vigorosa que dias antes alguns homens de trinta anos
lhe poderiam invejar, nada restava.
As costas alquebravam-se-lhe, as mãos tremiam-lhe.
Contudo, no fundo dos olhos encovados, brilhava-lhe um fulgor
sombrio.
Estendeu a mão para o sobrinho:
— Meu querido sobrinho, disse-lhe ele, estimo vê-lo. A sua presença
seria um lenitivo à minha dor, se a minha dor pudesse ser su avisada.
Depois sem transição, acrescentou:
— Sabe que a menina de Lasseny deixou o palácio?
— Bem sei, respondeu o substituto, e aprovo absolutamente a resolução
que ela entendeu dever tomar, a morte da senhora Duquesa não lhe permitia
ficar aqui.
— Helena tornou a falar-lhe nas idéias loucas e criminosas que lhe
assaltaram o cérebro?
— Sim, tomou a falar, querido tio.
— E ralhou com ela?
— Com certeza. Mas a perturbação momentânea do seu espírito,
resultante de um golpe tanto mais terrível, quanto era imprevisto, merece
uma grande indulgência.
— Sabe para onde se retirou a pobre menina?
— Ignoro-o; mas devo acrescentar que antes de se ir embora, prometeu
participar a Helena o lugar para onde se retirava.
Um fulgor de alegria perpassou pelas pupilas embaciadas do ancião, que
se levantou e levou ambas as mãos à fronte ardente.
O substituto seguia-lhe os movimentos, e estudava-lhe a fisionomia com
uma atenção desconfiada.
Como se não esquecera das cenas violentas de que M ariana Gilberto
fora causa, perguntava com terror a si próprio, se na verdade o Duque não
sentia por Adriana um amor senil.
O ancião murmurou de repente:
— Vamos, está tudo acabado, bem o sinto. A minha vida está por pouco!
Não obstante, quereria viver ainda...
— Deve viver, respondeu o substituto. Deve... por causa dos seus filhos.
— Por causa dos meus filhos, repetiu o Duque meneando a cabeça; sim,
por causa dos meus filhos.
E consigo acrescentou:
— Por causa dela, por causa dela sobretudo.
Armando de Logeryl despediu-se e retirou-se. principiava a estar muito
inquieto. O aspecto embaraçado do tio parecia-lhe de mau agouro.
Contudo não se atrevia a tirar nenhuma conclusão
Rogério, como ouvimos Helena dizer, fora ao ministério pedir uma
licença.
As razões de família com que fundamentava o seu pedido, eram
infelizmente muito sérias.
Prometeram-lhe uma resposta breve e muito favorável.
A morte da Duquesa, ia pôr os seus dois filhos de posse da fortuna
trazida por ela, mas não era por este motivo de herança a regular, que
Rogério desejava não voltar ao regimento.
Vira as últimas linhas traçadas por Joana moribunda, vira a falsa Adriana
de Lasseny, ferida pelo raio, como se dizia no século passado, e o seu
coração transbordava de amor pela jovem a quem a senhora de Chaslin
chamava um anjo.
Como o anjo prometera fazer dentro em pouco conhecer a sua nova
morada, esperava com impaciência febril o momento de ir novamente
manifestar-lhe o seu reconhecimento, pelos cuidados prodigalizados por ela
à Duquesa, e para ao mesmo tempo cair a seus pés, e pedir-lhe que aceitasse
o seu nome.
Não se lembrava sequer das acusações formuladas pela irmã, ou se se
lembrava, atribuía-as a uma crise de delírio que o desespero promovera.
Na sua opinião a prova de que eram absurdas tais suposições, era que o
senhor de Logeryl, o homem grave, o magistrado desconfiado, não as
admitira, e até dirigira afetuosas mas severas exprobações àquela que as
proferira.
Saindo do palácio de Chaslin, Armando dirigiu-se para a prefeitura de
polícia, ao chefe da segurança que imediatamente o recebeu e lhe perguntou
com a sua habitual cortesia:
— Em que lhe posso ser útil ou agradável?
— Venho pedir-lhe, respondeu Armando, que ponha à minha disposição,
por causa de um negócio que diretamente me diz respeito, um dos seus
agentes mais hábeis, mais discretos, mais seguros, um homem, em suma.
investido da sua confiança absoluta.
— Trata-se de alguma investigação judicial?
— Não, mas de uma investigação puramente particular, realizada, repito-
lhes, num interesse quase pessoal... Este passo que dou não tem nada de
judicial. É um serviço absolutamente particular que solicito do senhor...

CXVIII - JUSTIÇA EM CAMPO


Como facilmente se compreende, o senhor de Logeryl não queria
confiar, fosse a quem fosse, o segredo de um negócio que tão intimamente
lhe dizia respeito.
Se coisa alguma viesse a justificar as suspeitas de Helena, importava
evitar todo o escândalo e todo o ruído inútil.
— Conhece Daniel Gaillet? perguntou o chefe da polícia de segurança.
— Conheço, e sei que se pode contar com ele.
— É um homem por quem posso responder. É inteligente, zeloso, e de
absoluta discrição.
— Não está encarregado de pesquisar com respeito a uma certa Fanny
Vernaut, acusada de infanticídio?
— Está... As suas investigações até hoje só têm dado resultado negativo.
Mas ele não desanima, e suponho que há de vir a conseguir alguma coisa.
— Deus o queira.
— Quer servir-se de Daniel Gaillet?
— Porque não?
— Hoje não está de serviço... vou mandá-lo chamar, e se o encontrarem
em casa. o que me parece provável, dentro de uma hora estará no seu
gabinete.
— Mil vezes obrigado.
Como Armando tinha uma hora diante de si, aproveitou-a para se dirigir
ao químico.
O químico quando o viu entrar, perguntou-lhe:
— Vem para a análise do glóbulo?
— Sim. meu amigo. K a análise está terminada?
— Desde ontem.
— O que conclui?
— Nada de positivo. O princípio corrosivo contido no grânulo é tão
fraco, que a sua dose centuplicada, não seria suficiente para ocasionar a
morte... Não creio que este princípio tenha podido servir de base a um
envenenamento. Todos os dias os médicos fazem uso de substâncias tóxicas
muito mais perigosas... Mas, se se acha em face de uma morte
aparentemente suspeita, poder-se-ia desenterrar o cadáver, e procurar nas
vísceras os vestígios do veneno que aqui me escapa.
— Uma exumação! uma autópsia! exclamou o senhor de Logeryl com
terror.
— Bem sei que não é agradável, replicou o químico, mas quem quer os
fins, usa dos meios...

***
Armando, muito pálido, fez-se conduzir ao palácio da justiça, e entrou
no seu gabinete.
No fim de cinco minutos, anunciavam-lhe o agente enviado pelo chefe
da polícia.
— Senhor Gaillet, disse-lhe o jovem magistrado, de todas as vezes que
tenho tratado com o senhor, só lenho tido motivos de me felicitar pelos seus
serviços.
— Agradeço ao senhor substituto a sua benevolência, murmurou Daniel
Gaillet.
— Hoje.continuou Armando, tenho precisão do senhor... O negócio de
que lhe vou falar confidencialmente, não está ainda a estas horas entregue à
justiça... não se fez nenhuma queixa, nenhuma denúncia, e talvez não haja
nunca motivo de se proceder a tal respeito.
— Compreendo muito bem. disse Daniel, trata-se de suspeitas vagas, a
respeito de um crime possível, mas não certo, e o senhor, senhor substituto,
quer conhecer o bem ou o mal fundado de tais suspeitas, antes de proceder
legalmente, e de entregar o caso à justiça.
— Isso mesmo; acrescentarei que os esclarecimentos que o senhor
obtiver serão para mim de grande valor.
Daniel Gaillt tirou da algibeira uma carteira, abriu-a e perguntou:
— Que pontos temos a esclarecer?
— Uma jovem, chamada Adriana de Lasseny, mora desde ontem num
pequeno palacete situado no boulevard Flandrin...
Daniel Gaillet repetiu:
— Adriana de Lasseny... boulevard Flandrin... Que número? perguntou.
— Ignoro.
— Será fácil de encontrar.
— É preciso saber o nome e a morada das pessoas que vierem visitar a
menina de Lasseny:
— Supõe que ela recebe muita gente?
— Segundo toda a probabilidade não deve receber ninguém, e é
justamente por isso que todas as suas visitas se tornarão suspeitas, e que é
preciso estabelecer nos arredores do palácio uma vigilância de dia e de noite.
— Compreendi, senhor substituto, e far-se-á: mas por grande que seja o
meu zelo, não poderei eu só desempenhar a tarefa... Preciso de agentes que
me substituam no meu posto de observação.
— O senhor tem carta branca... A gente que o senhor empregar para esse
serviço particular, será paga por mim.
— Para onde deverei dirigir os meus relatórios quotidianos?
— Não me mandará relatórios escritos...
— Então como há de ser?
— Dir-me-á aqui, verbalmente, o que descobrir... se alguma coisa
descobrir...
— Fica entendido.
— Proceda o mais depressa possível...
— Dentro de duas horas hei de saber a morada exata, hei de comparecer
no local, e já terei colegas prontos a servirem-me.
— Bem.
— Uma palavra mais. senhor substituto...
— Fale.
— Se a menina de Lasseny sair de casa, deverei segui-la?
— De certo!... é essencial saber aonde é que ela vai...
— Muito bem.
— Aceite isto. senhor Gaillet.peço-lhe.
E Armando tirou da algibeira uma nota de mil francos e apresentou-a ao
polícia.
— Isto é apenas adiantamento... Há de ter despesas a fazer. Girando o
dinheiro lhe faltar, previna-me.
Daniel Gaillet inclinou-se.
Fez uma continência militar, e retirou-se.

***

O enterro do doutor Frébault efetuou-se no mesmo dia em que tiveram


lugar as exéquias da Duquesa de Chaslin.
Atrás do trem que levava o féretro, ia grande multidão.
Heitor de luto carregado, ainda muito fraco, não podendo dar a pé a
grande caminhada, ia de carruagem.
César de Fossaro não era homem que cometesse a falta de não ir ao
enterro do homem que acabava de assassinar.
Podia-se notar e comentar a sua falta.
Foi dar um aperto de mão ao Príncipe que parecia profundamente triste,
e apenas trocou com ele algumas palavras.
No dia seguinte, César apresentou-se segundo o costume, no palácio da
Rua Francisco I.
Responderam-lhe que o senhor de Castel-Vivant tinha saído...
E disseram-lhe também, que cansado de negócios se preparava para uma
viagem, e resolvera não receber ninguém até nova ordem.
O senhor de Fossaro tinha, contudo, o mais vivo desejo de ver Heitor, e
ouvir da sua boca certas particularidades de que precisava muito para
proceder.
O Príncipe, ao anunciar o seu futuro casamento, não nomeara a noiva.
Porém, César, tinha toda a certeza de que se tratava de Lucília Gonthier.
Lucília, princesa, o testamento roubado tornava-se um papel sem valor, o
edifício tão laboriosamente arquitetado para o roubo dos milhões de Heitor
desabava logo.
Ficando Lucília sendo o objeto principal, era preciso primeiro que tudo
suprimir esse obstáculo, e obrar precipitadamente, porque a órfã ia com toda
a certeza deixar Paris na companhia do Príncipe.
Depois, a sua supressão teria um duplo fim, porque poria na posse do
Barão e do seu sócio os milhões da herança de Nova York, e tornaria
impossível toda a contestação.
Assim que a viu perguntou-lhe:
— Sabes o que se passa?
— Sei pelo menos que tudo vai mal, respondeu, porque recebi de Heitor
uma carta de rompimento, acompanhada de um cheque de trezentos mil
francos.
— Cem mil escudos não é mau. observou então Fossaro.
— Mas é uma triste consolação quando se esperava uma fortuna enorme.
— O caso não é ainda para desesperar.
— Que ouço?
— Devo primeiro informar-te de que Antonino Frébault morreu.
— Ignorava que ele estivesse doente...
— Não estava doente, nem para lá caminhava... A panóplia das flechas
envenenadas caiu em cima dele... Uma armadilha minha, muito engenhosa,
para nos livrar daquele importuno.
— Não tenho desejo nenhum de deitar luto por ele.
— Deixa-me continuar.
— Continua.
O Barão prosseguiu confidencialmente:
— A minha invenção tinha mais em mira o Príncipe de que o médico.
— Então como foi isso?
— Heitor saiu incólume por milagre, o que para nó* é inconveniente,
porque ele vai casar.
— Vai casar, repetiu Genoveva fazendo-se pálida.
— Pelo menos está para isso.
— Então fica tudo perdido.
— Ainda não.
— Com quem casa ele?
— Com uma costureirinha assaz bonita, mas sem um sou, por quem ele
se apaixonou tolamente... A jovem de véu que o doutor levou à Rua
Francisco I, como te eleves lembrar, certo dia em que o criado de Heitor
quase te pôs no olho da Rua.
Genoveva, com os olhos faiscantes, os punhos cerrados, exclamou:
— Ah! que se eu apanhasse essa rapariga...
— Que farias?
— Esganá-la-ia com as minhas próprias mãos!
— E terias muita razão, porque uma vez esganada, os milhões do
Príncipe ficar-me-iam pertencendo...
— Como?
— Possuo o testamento sem data em teu favor, e uma carta que me
nomeia testamenteiro. Encarrego-me de Heitor.
— Heitor é invulnerável, observou Genoveva ironicamente.
— Nem todos os dias se há de operar um milagre que o salve. Acha tu
um meio de suprimir Lucília, (é assim que se chama a futura Princesa de
Castel-Vivant), e o testamento tornar-se-á válido. Faltará só datá-lo.
—Ah! murmurou Genoveva com ar sombrio, se pudéssemos atrair
Lucília bem sei eu aonde...
— Aonde? perguntou Fossaro com curiosidade.
— Conheces a casinha que me pertence numa ilhota do Marne, junto de
Creteil?
— O chalet da ilha Passe, uma gaiola onde a água sobe até ao primeiro
andar por ocasião das grandes cheias, e que um capricho absurdo te levou a
comprar por doze mil francos.
Ao fim de oito dias, como o capricho passara, abandonavas a casa, e não
tomavas a pôr lá os pés!
— Uma loucura!
— A loucura talvez nos venha a servir.
— Explica-te.
— Se a futura Princesa de Castel-Vivant ali fosse... de noite
— Com certeza que se se ela lá fosse secretamente, sem que se pudesse
saber nos arredores, havia grandes probabilidades de não tornar a sair.
— Isso é verdade.
— Mas o meio de a atrair?
— Já tens esse meio?
— Estou a procurá-lo.
— Suponhamos que o encontras, e que as coisas caminham conforme os
nossos desejos...
— É preciso prever tudo. Pode-se encontrar um cadáver, proceder-se a
pesquisas, e descobrir-se que a gaiola em questão foi teatro de um crime.
— E então?
— Então descobririam o nome do proprietário, e viriam direitos aqui.
— Genoveva abanou a cabeça.
— Fanny Vernot está morta e bem morta, não é verdade? perguntou.
— É verdade, porque tenho na minha mão os documentos autênticos
provando que te chamas Genoveva Leinen.
— Então quaisquer pesquisas não poderiam dar resultado, porque a
aquisição foi feita em nome de Fanny Vernot, por aquele estudante que eu
arruinei, e fez saltar os miolos ein conseqüência de se ver comprometido
numa falsificação.
— Então tudo corre às mil maravilhas. Irei ver outra vez a casa. Quem
tem as chaves?
— Eu.
— Dá-mas.
Genoveva abriu uma gaveta, e tirou uma chave um pouco enferrujada, e
deu-a a Fossaro que a guardou na algibeira.

***

— Agora só nos resta achar o meio de atrair a intrigante.


— Há de ser difícil, mas não impossível.
— Essa operária que quer casar com o Príncipe, vive só?
— Vive com uma tia cega.
— Que nos importa essa mulher, visto que ela é cega?
— É tão capaz, como outra qualquer pessoa, de gritar por socorro.
Reclamará a sobrinha em grande berreiro.
— Quem lhe responderá? O Mame! Bem sabe que o rio é mudo.
— A estas últimas palavras sucedeu um instante de silêncio. Fossaro
rompeu o silêncio por uma exclamação alegre.
— Encontraste? perguntou Genoveva com vivacidade.
— Encontrei.
— Então o que foi?
— O amor arrebatou-nos Heitor: o amor nos entregará Lucília!
— Como?
— Explicar-me-ei mais tarde quando o meu plano estiver maduro. Hei
de ter de certo necessidade de ti. Sentes-te disposta a auxiliar-me?
— Ora essa! Em qualquer hora, e por todos os meios possíveis.
— Enche-te então de paciência, porque vou meter mãos à obra. O Barão
deixou Genoveva, e voltou para a Rua de Francisco I.
Pelo caminho ia pensando:
— Se for preciso transgrido as ordens; custe o que custar, preciso de
saber quando é que partem.
O Príncipe acabava de entrar para casa.
César mandou-lhe o seu bilhete de visita, no qual escrevera algumas
palavras a lápis.
Heitor, sabendo que o visitante vinha por segunda vez. consentiu em
recebê-lo.
O Barão, triunfante, foi introduzindo.

CXIX - MAIS UMA TEIA DE ARANHA

César apertou a mão de Heitor.


— Se insisti tanto para ser recebido, querido Príncipe, é porque devo
ausentar-me por alguns dias, e sabendo que o Príncipe também vai deixar
Paris, tinha grande interesse em lhe dizer até à vista, antes do Príncipe se
retirar.
— Quando parte. Barão? perguntou o mancebo.
— De um momento para o outro, talvez amanhã.
— Vai viajar?
— Vou a Gênova, minha pátria, aonde me chamam questões de herança.
— Efetivamente não me tornava a ver. Dentro de cinco dias hei de pôr-
me a caminho. Quanto tempo deve durar a sua viagem?
— Umas três semanas.
— Portanto deve estar de volta para a época do meu casamento, que se
deve celebrar dentro de seis semanas. Espero me fará a honra de ser um dos
meus padrinhos.
— Estimarei muito, e muito me lisonjeará.
Sabendo o que queria saber, o senhor de Fossaro não prolongou a sua
visita.
Heitor partia dentro de cinco dias, e Lucilia de certo o acompanharia.
Era preciso pôr-se em ação quanto antes.

***

No dia seguinte, muito cedo. Fossaro dirigiu-se à sua casa da Rua Philipe
de Girard, donde saiu metamorfoseado em Pedro Rédon.
Um trem conduziu-o, à praça da Bastilha, e tomou a estrada ferro com
direção a Saint-Maur-les-Foussés.
Desta estação dirigiu-se pedestremente para a ponte. Atravessou-a e
encaminhou-se para o lugar onde uma extensa alameda de alamos se enxerta
em ângulo reto na estrada de Creteil.
Por esta alameda, um caminho ladeado de sebes, servia às pequenas
propriedades espalhadas nas ilhas, muito profundas naquele sítio, e apertados
entre praias cobertas de arvoredo.
As casinholas construídas nas ilhas, só são habitadas nos belos dias da
primavera ou do estio.
Assim que chegam as chuvas do outono, e as cheias do rio, a água
invade os "rez-de-chaussée", chegando por vezes aos primeiros andares.
Depois de uma caminhada de uns vinte minutos, o Barão parou defronte
de uma pequena ponte vacilante, feita de tábuas grosseiramente reunidas, e
que levavam a uma cancela fechada a cadeado.
Ali deitou um olhar em roda.
Tudo estava deserto.
Transpôs a ponte, abriu a cancela, e achou-se num jardim em que as
ervas altas e as plantas parasitas cresciam com um vigor tão luxuriante, que
as ruas tinham desaparecido sob os seus entrelaçamentos.

***

A casinha comprada por Fanny Vernaut para satisfação de um capricho,


chamava-se o chalet da ilha Basse, e elevava-se do meio das grandes
árvores, neste momento quase despojadas das suas folhas.
Na força do estio, quando as roseiras e as flores de tons vivos decoravam
alegremente o jardim bem tratado, era bonito e adoravelmente pitoresco.
No estado de abandono absoluto em que a propriedade se achava, não se
podia imaginar coisa mais lúgubre e desoladora.
Uma rede de trepadeiras, que o jardineiro há muito já não podava, subia
até ao telhado, e quase ocultava as persianas fechadas.
Fossaro fez, com alguma dificuldade, girar a porta nos gonzos.
O interior exalava um insuportável cheiro de bafio.
A grande cheia de 1878 deixara no sobrado uma camada de limo
esverdeado e ressequido.
Depois de abrir à força, quebrando as trepadeiras, uma das janelas, e uma
das persianas, para entrar alguma claridade e algum ar. examinou as salas de
que só lhe restava uma confusa recordação, e disse com um sorriso:
— É quanto basta... O principal é ela entrar aqui, e há de entrar,
respondo por isso!... O rio fica a vinte passos! Há de ser muito esperto quem
descobrir donde vinha a jovem afogada por acidente... Se alguma vez a
tornarem a encontrar...
Fechou a persiana, a janela e a porta, tornou a atravessar o jardim, e
examinou o braço do Marne, espécie de pequeno canal, da largura de uns
doze pés o muito...

***

Como se lembram, o ano de 1879, tinha sido muito chuvoso...


Em fins de setembro, as chuvas incessantes produziam inundações
gerais.
O Marne engrossava a olhos vistos.
As águas lodacentas chegavam ao nível das terras, e, com certeza,
transporiam dentro em pouco esse nível.
Vendo aquilo, Fossaro exclamou:
— Safa! Se continua assim, difícil será chegar aqui... Felizmente que há
dois dias e o tempo está bonito... se a chuva continuasse, ficaria tudo
inundado...
César transpôs a ponte, e subiu até à barragem formada de tábuas meio
podres que gemiam parecendo prestes a desligar-se sob a pressão da massa
liquida.
A barragem por acaso se desfizesse, o chalet correria grande perigo.
O senhor de Fossaro voltou a Paris, retomou a sua aparência habitual, e
chegando a noite, fechado o escritório, penetrou no gabinete do seu sócio.
Malpertuis, a caminho, naquele momento, para New York.
Uma carta que estava entre outras em cima da secretária, despertou-lhe a
atenção.
Esta carta era a da Marquesa de la Tour-du-Roy.
Lazarine queixava-se com alguma amargura ao ex-advogado por ele não
ter cumprido aquilo a que se obrigara para uma época fixa. que já passara
havia alguns dias.
Rogava-lhe que ativamente se ocupasse dos seus negócios, deixando
tudo o mais, e terminava por estas palavras duas vezes sublinhadas: Toda a
urgência!
Fossaro exclamou:
— Parece que tem pressa! Homem prático o tal Fernando Volnay! O
empregado responderia! Vamos ver!

***

O copiador das cartas estava na prensa.


Fossaro pegou no copiador, examinou as últimas folhas, e leu esta
resposta lacônica:
"Não tenho conhecimento do negócio da senhora Marquesa. O senhor de
Malpertuis está ausente. É indispensável esperar o seu regresso."
— É quanto hasta... disse o Barão tornando a pôr o livro no seu lugar.
Voltou para os seus aposentos, e abrindo um indicador dos caminhos de
ferro na coluna que tinha por título: Paris a Tours e Bordeaux por Orleans,
procurou as horas em que os comboios partiam para Amboise.
— O comboio n.° 17 parte às oito horas e quarenta e cinco minutos da
noite, murmurou, e chega a Amboise à uma hora e oito minutos da manhã...
De Amboise a Vézelay, são cinco quilômetros por caminhos transversais...
Posso chegar ao domínio às duas horas e meia o mais tardar, fazer o que
tenho que fazer, tornar a tomar o expresso, e estar de volta a Paris às dez
horas e cinqüenta e sete minutos. Corre tudo muito bem.
Tomou nota na agenda das horas que acabava de verificar, e continuou o
seu monólogo nestes termos:
— Depois da catástrofe toda a gente perderá a cabeça... Só pela manhã é
que se mandará ao Príncipe um telegrama... partirá para Vézelay sem a
menor demora, deixando-nos assim o campo livre. Seria melhor que não
visse Lucília antes de subir para o comboio, mas ainda quando a visse não
haveria grande comprometimento... É preciso agora escrever e trabalhar.

***

César abriu uma gaveta da sua secretária, pegou numa das folhas de
papel com o timbre dos Castel-Vivant, que ele roubara do gabinete de
trabalho de Heitor, e no sinete que lhe dera o ferro-velho da Rua de Lappe.
Depois, imitando a letra do Príncipe, com o seu maravilhoso talento de
falsificador, traçou as seguintes linhas:

''Minha querida Lucília.


"Graves interesses me forçam a afastar-me repentinamente de Paris por
quatro ou cinco dias, obrigando-me a partir sem lhe dizer adeus de viva
voz...
"Isto há de por força demorar a nossa viagem.
"Este adiamento desgosta-a por certo, e sente-o, mas os acontecimentos
podem mais do que eu.
"Sempre seu...
"Heitor de Castel-Vivant."

O principezinho, se se desse o caso de ver este bilhete, teria perguntado


se havia ou não escrito e assinado aquelas linhas glaciais, tão bem imitada
estava a sua letra e a sua assinatura.
César meteu a carta no sobrescrito, dirigiu-se a Lucília, e pôs-lhe em
lacre vermelho o sinete de Heitor.
Feito isto, pegou numa folha de papel de cartas, e com uma letra fingida,
que não parecia nem a sua, nem a de Heitor, redigiu as seguintes frases:

"Menina Lucília.
"Enganam-na. Se quer saber de que natureza são os graves negócios que
forçam o senhor de Castel-Vivant a afastar-se sem a tornar a ver, não tem
mais que dirigir-se esta tarde a Creteil, ao chalet da ilha Basse. Apear-se-á
no caminho de ferro na estação de Saint-Maur-des-Fossés. Assim que
atravessar a ponte de Creteil, o primeiro transeunte que lhe aparecer, indicar-
lhe-á o caminho, porque sabe quanto o seu amor é puro e desinteressado.
Bastar-lhe-á talvez uma palavra para arrancar aquele a quem ama das garras
de uma mulher indigna, que só trata de se apoderar do título e da fortuna de
Heitor.
"Salve-o de uma perda certa. Seja corajosa até ao heroísmo. Mostre ao
Príncipe de Castel-Vivant o abismo para onde se deixa arrastar. A sua honra,
a sua própria vida, estão em perigo, porque a criatura por quem ele a atraiçoa
é capaz de todos os crimes! Ela já cometeu um infanticídio; mostrar-se-lhe-á
o meio de dar uma prova disso ao Príncipe.
"Não hesite, menina, e creia na palavra de um homem de bem, amigo do
doutor Antonino Frébault, que sabendo muito bem quanto vale, muito a
estima."

No sobrescrito da carta anônima, como no da carta precedente, César


traçou a morada de Lucília, meteu as cartas na carteira, deitou-se e
adormeceu.

***

No dia seguinte, só saiu de casa pelas quatro horas da tarde, depois de


dizer ao criado de quarto:
— Vou a Maison Lafitte. Não me recolho esta noite.
Jantou num restaurante do boulevard, e, como na véspera, dirigiu-se para
a Rua de Philippe de Girard.
Dali a uma hora um homem cego de um olho, vestido de camponês,
levando na mão um saco de noite muito cheio, subia para um trem na estação
de Ia Chapelle, e dava ao cocheiro ordem para o conduzir à gare de Orleans.
Às oito horas e quarenta e cinco minutos, o cego de um olho subia para
um compartimento de segunda classe, parecia adormecer profundamente, e
só acordar na estação de Amboise, onde se apeava à uma hora e oito minutos
da manhã.
Atravessou a ponte do Loire, meteu-se rapidamente por um caminho
transversal que seguia à esquerda pelos campos fora.
O domínio de Vézelay, situado nos limites da floresta de Amboise, no
ponto onte esta confina com a de Loches, compunha-se de um pequeno
palácio, de um parque imenso, e de esplêndidas cavalariças de criação.
1 leitor, atacado por certo tempo do fraco do sport, desejoso de ganhar os
louros das corridas, e além disto persuadido de que adorava a caça, tinha
comprado havia três anos este domínio, e apressara-se a prover as
cavalariças de animais de primeira ordem.
Depois, alugara nos arredores consideráveis terrenos de raça, E tinha uma
matilha de quarenta ou cinqüenta cães.
A pequena residência de Vézelay servia de morada ao velho Príncipe de
Castel-Vivant, o pai adotivo do pintor transformado em milionário. Heitor
Bégourde.
O grande senhor que os nossos leitores conhecem há muito, o antigo
amigo do Marquês Roberto de la Tour-du-Roy, e de Júlio Leroux, atacado
havia dois anos de uma paralisia, que o privava do uso das pernas, já não
saía de Vézelay.
Ali a sua única distração consistia em longos passeios através do parque,
num carrinho de verga puxado por dois poneys microscópicos, tão bem
ensinados, que documente obedeciam à mão enfraquecida do velho.
Heitor nutria pelo senhor de Castel-Vivant uma sincera afeição, e vinha
de dois em dois ou de três em três meses, passar um dia com ele.
César de Fossaro, tendo sido convidado às caçada-; de Vézelay. conhecia
admiravelmente o domínio.
Sabia que nas proximidades da residência, separados dela unicamente
por alguns massiços de verdura. e por um renque de árvores, havia os
armazéns das forragens, contíguos ao recinto onde estavam as cavalariças, o
picadeiro e os quartos dos palafreneiros e dos grooms e tudo em suma
quanto dizia respeito à coudelaria do Príncipe.
O falso camponês em lugar de seguir até ao fim o caminho de carros que
conduzia diretamente à grade do parque, meteu-se pelas terras encharcadas
das últimas chuvas, tomou por um atalho entre o mato, tornejando por detrás
das cavalariças e deixando à esquerda o sítio onde estavam os cães.
Por este modo evitava que o vento do sul denunciasse a sua presença aos
cães que não teriam deixado de dar o sinal de alarma com furiosos latidos.
Pedro Rédon, ou antes César de Fossam, costeou o muro do recinto, e
chegou a uma portinha aberta nesse muro.
Sem dificuldade abriu a portinha, servindo-se de gazua, e entrou no
recinto.
Ali tirou do velho saco de noite que tinha na mão, lima pequena lanterna
de furta-fogo, acendeu-a, e serviu-se dela para examinar o lugar onde se
achava.
Era um pátio rodeado de telheiros cheios de lenha.
— Primeira estação! murmurou.
E tornando a meter a mão no saco, tirou uma garrafa cuja rolha fez
saltar.
Despejou o que ela continha por cima de um molho de lenha.
Imediatamente espalhou-se o cheiro abominável e penetrante do
petróleo...
Em menos de um segundo toda a atmosfera estava impregnada.

CXX - O INCENDIÁRIO

O camponês tornou a meter a garrafa no saco. Fechando a lanterna,


disse:
— Agora às cavalariças! Primeiramente tratarão de salvar os cavalos, e
durante este tempo o resto caminhará por si.
Tornando a costear. mas inteiramente, o muro do circuito, dirigiu-se para
os armazéns das forragens, cuja grande porta apenas estava fechada com a
tranqueta.
Fazendo novamente brilhar a lanterna, espalhou sobre um montão de
feixes de palha o conteúdo de uma segunda garrafa de petróleo.
Acendeu, então, fósforo, atirou-o para cima da palha, viu as chamas
rebentarem, deitou a correr, voltou aos telheiros, e pôs, também, fogo ali.
Passados cinco minutos o incendiário estava já longe, atalhando caminho
e precipitando a sua carreira nos atalhos da floresta.
O suor inundava-lhe a fronte, as artérias batiam-lhe com força, e a
respiração faltava-lhe. Teve de moderar o passo.
Repentinamente um clarão imenso iluminava o horizonte.
Ao mesmo tempo soaram os gritos: fogo, fogo! misturados com os
relinchos dos cavalos e os uivos dos cães.
O cego parou de repente soltando uma gargalhada.
O sino de alarma da residência respondeu-lhe.
Tornou a partir pelos campos a fora, e chegou ao princípio da floresta
onde o darão do incêndio era cada vez mais intenso.
Ao longe viu passar as bombas das aldeias próximas que acudiam.
Em menos de três quartos de hora chegou à ponte de Amboise.
Aproximando-se do parapeito, certificou-se de que era absoluta a
escuridão, e atirou para o Loire o saco de viagem.
Continuando a sua jornada, passou o resto da noite nos subterrâneos de
uma casa que se estava demolindo, e às seis e meia tomou o comboio que
parou na gare de Paris às dez e cinqüenta e sete minutos.
Duas horas depois o bandido, vestido como um moço de recados, fazia
sentinela em frente do palácio do Príncipe.
Vendo os criados andarem de um lado para o outro com um aspecto
muito sossegado, disse consigo:
— Não se sabe nada ainda... esperemos. Foi de curta duração a sua
expectativa.
Por volta da uma e meia, no momento em que ele observava, olhando
pelo postigo entreaberto, que no pátio estavam pondo um trem, naturalmente
para conduzir o Príncipe à Rua Julien Lacroix, um empregado do telégrafo
dirigiu-se para o palácio, tocou e entrou,
— Atenção! pensou Fossaro.

***

Roguemos aos nossos leitores que nos acompanhem ao quarto de dormir


de Heitor.
O ex-Bégourde concluía a sua toilette e preparava-se para fazer à Lucília
a sua visita quotidiana.
Manifestava na fisionomia uma profunda melancolia.
Por muito absorvente que fosse a sua paixão pela Toutinegra, não
deixava por isso de pensar em Antonino Frébault.
Não podia consolar-se da morte do pobre doutor.
O criado de quarto entrou.
Trazia uma carta numa bandeja de prata dourada.
— Um telegrama para o Príncipe... disse.
Heitor pegou no telegrama com indiferença, e rasgou distraída-mente o
sobrescrito, mas assim que decifrou as primeiras palavras, tornou-se lívido.
Eis o texto do telegrama:

"Terrível incêndio esta noite em Vezelay. Príncipe Reginaldo de Castel-


Vivant arrancado com dificuldade do meio das chamas muito perigosamente
ferido. O palácio em ruínas. Cavalariças destruídas. Doze cavalos queimados
vivos. Presença do senhor Príncipe urgente em Vezelay."

Seguia-se a assinatura do feitor.


— As perdas materiais não querem, dizer nada! exclamou o mancebo.
Mas o meu pobre pai adotivo perigosamente ferido... na sua idade!... Ah! os
mais rudes golpes sucedem-se continuamente. Vou a Vezelay.
Heitor pegou num indicador e consultou-o.
Às duas horas e vinte e cinco minutos partia um comboio que chegava a
Amboise às oito e cinqüenta e sete.
— Tenho tempo apenas para escrever duas palavras a Lucília.
explicando-lhe a minha ausência, e chegarei à gare no último momento.
Pegou numa folha de papel e traçou rapidamente as seguintes linhas: 1
"Minha querida Lucília. !
"Acabo de receber uma notícia duplamente fatal. O meu palácio de
Vezelay, ao pé de Amboise, está sendo devorado pelas chamas, e o meu pai
adotivo, o velho Príncipe de Castel-Vivant, foi ferido no incêndio de um
modo muito grave. Vou já pôr-me a caminho com o grande desgosto de
partir sem a ver. Espero voltar amanhã. Se me demorar mandarei um
telegrama.
"Adoro-a, ame-me..
"Heitor."

O Príncipe meteu a carta no envelope, escreveu a direção e olhou para a


janela.
— O trem, já posto, esperava-o no pátio, cujo portão acabavam de abrir
de par em par.
Heitor desceu.
— Luiz, disse ao criado de quarto, dando-lhe o bilhete destinado a
Lucília, esta carta para o seu destino imediatamente... entende,
imediatamente!
— Sim, senhor Príncipe...
— Vou a Vezelay... Não voltarei esta noite... acrescentou o mancebo.
Depois saltou para a carruagem, dizendo ao cocheiro:
— Estação de Orleans... lado da partida. A toda a brida.
O moço de recado ouvira, ao pé da porta, as últimas palavras de
Príncipe, e esfregava as mãos.
O criado de quarto murmurou:
— Vou mandar esta carta por um moço de recados. Parece que isto é
com pressa.
Atravessando o pátio, saiu à rua.
Aos primeiros passos que deu no passeio, deparou com o moço de
recados.
O seu fato verde-garrafa, e a medalha de cobre atraíram logo a sua
atenção.
Travou-se o diálogo seguinte:
—..... Você é moço de recados?
...... Sim. senhor, para o servir.
— Esta aqui uma carta para se levar.
— Isso é num pronto. Para onde?
— Para Belleville, Rua de Julien Lacroix.
— Bem sei... sou de Belleville.
— Perguntará pela menina Lucília Gonthier.
— Basta.
— Aqui tem três francos pelo seu trabalho.
— Muito obrigado. Isto tem resposta?
— Não, entregará a carta, mais nada.
O moço de recados ia abalar.
— O número da medalha, se faz favor, acrescentou o criado.
— É justo. Veja.
E o homem apresentou a medalha ao criado.
— 1.537, disse este. Está bom, meu amigo, pôde dar à perna.

***

O criado voltou para dentro, ao mesmo tempo que o moço se afastava


depois de meter na carteira a carta do príncipe.
Chamou o primeiro trem que passava sem gente.
Fez-se conduzir a casa de Genoveva, com quem conversou por muito
tempo de coisas muito interessantes de certo, que não tardaremos a saber.
Por volta dás oito horas da noite, o falso moço de recados apeava-se no
ângulo da Rua Julien Lacroix, dirigia-se para a casa que a Toutinegra
habitava, entrava no cubículo do porteiro, e perguntava com uma voz
roufenha:
— É aqui, minha querida, que mora a menina Lucilia Gonthier?
— É no quinto andar... porta à esquerda. Que lhe quer?
— Está aqui uma carta para ela.
— Da parte de quem?
— Não sei... Entregaram-me isto na Rua Francisco I.
— Bem sei. Tem resposta?
— Não. Só me disseram que a entregasse à senhora porteira, que logo a
levaria a cima com todo o gosto... e como me pagaram generosamente, aqui
estão vinte sous pelo seu incômodo.
A porteira meteu na algibeira a moeda de prata, fechou a porta do
cubículo, e subiu o primeiro degrau da escada, dizendo:
— Vou já a correr!
— Isto vai perfeitamente... murmurou o cego de um olho. Dentro de
meia hora, a segunda carta chegará muito a propósito, e produzirá o seu
efeitozinho.
Encaminhou-se para a Rua de Paris, instalou-se num café de medíocre
aparência, e pediu um boch, menos para beber, que para se dar uns certos
ares.

***

Galguemos os cinco andares de Lucília.


Depois das quatro horas da tarde, a jovem tornara-se inquieta,
preocupada, nervosa.
Heitor faltava pela primeira vez à sua visita quotidiana, depois que as
suas forças lhe permitiam sair, e era o noivo oficial da jovem.
Chegava todos os dias às duas horas com a regularidade de um
cronômetro.
Uma demora involuntária podia explicar-se sem dificuldade, logo que
ela fosse de pequena duração.
Por isso, até às quatro horas, Lucilia não se apoquentou demasiado; mas
quando chegou a essa hora, não pôde deixar de confessar no seu íntimo que a
demora se tornava inexplicável.
Enquanto trabalhava com mão febril, a órfã olhava sem cessar para o
relógio de cuco pendurado na parede, e à medida que o ponteiro dos minutos
corria sobre o mostrador, a sua inquietação tornava-se angustiosa, causando-
lhe cada vez mais dolorosa opressão.
Às cinco horas levantou-se do seu lugar, dirigiu-se para a janela, abriu-a,
e debruçando-se do corrimão, esteve a olhar muito tempo para a rua.
— Que terá sucedido? perguntava ela de si para si. Nunca faltou...
Parece-me que esta ausência é de mau agouro.
Deslizou-lhe pelas faces uma lágrima.
Fechou a janela, e ocupou-se maquinalmente em preparar a refeição da
noite para si e para a tia cega.
Precisaremos de afirmar que lhe foi impossível absorver um átomo de
alimento?
A septuagenária jantou só.
Em seguida adormeceu na sua poltrona.
O ponteiro grande prosseguia sobre o mostrador a sua marcha lenta e
monótona.
Duas vezes deu o seu giro circular.
Lucilia conhecia que perdia a cabeça.

***

Pouparemos aos nossos leitores a análise dos pensamentos confusos que


se debatiam no cérebro da pobre criança.
Aos sofrimentos das primeiras horas, juntava-se uma dor pungente, que
para ela era ainda desconhecida.
O estilete agudo, empeçonhado do ciúme, torturou-a sem cessar.
Esta circunstância predispunha-a fatalmente para cair no laço armado
pelo Barão de Fossaro.
Finalmente, um pouco depois das oito horas, não se podendo conter, e
querendo a todo o custo saber o que se passava, preparava-se para sair e
correr à Rua Francisco I, com risco de se comprometer e descontentar
Heitor.
Bateram naquele momento duas leves pancadas na porta.
Lucilia teve um estremecimento de alegria, e correu a abrir.
A porteira estava no limiar da porta.
Apresentou-lhe uma carta, acompanhando-a com um sorriso e com estas
palavras:
— Um moço de recados acaba de lhe trazer isto, menina Toutinegra.
Parece que é urgente Vem da Rua Francisco I.
— Obrigada, respondeu a jovem agarrando na carta, e olhando para a tia,
cujo sono tranqüilo não fora interrompido pelo ruído da porta, quando se
abriu, nem pelas palavras proferidas em voz alta.
Lucilia aproximou-se do candieiro, e deitou os olhos para o sobrescrito.
— É a letra de Heitor... balbuciou! Não pôde vir e escreve-me... Ah! já
estou sossegada.
Quebrou o sinete e leu, não o verdadeiro bilhete do príncipe, — será
preciso dizê-lo — mas as linhas glaciais escritas por César, com o seu
incomparável talento de falsário, e que os nossos leitores já conhecem.
As primeiras linhas, uma mortal palidez espraiou-se pelo rosto da
Toutinegra; os lábios tremeram-lhe, tremeram-lhe as mãos, tremeu-lhe todo
o corpo.
— Partiu! murmurou com uma voz sufocada. E é com esta sequidão
desesperadora que me anuncia a sua retirada e o adiamento da nossa viagem!
Nem uma só palavra de sincero afeto! Nada do coração! Oh! os meus
pressentimentos!
Tornou a ler a primeira frase e repetiu:
— Grandes interesses! Pois além do nosso amor deviam existir outros
interesses! Esta jornada repentina é apenas um pretexto precursor do seu
rompimento. Heitor já não me ama! E amou-me ele alguma vez?
Lucilia deixou-se cair numa cadeira, ocultando o rosto nas mãos, e
chorando silenciosamente para não despertar a cega. Prolongou-se por muito
tempo esta crise de dor muda. De repente a jovem ergueu a fronte. Acabava
de ouvir bater por segunda vez à porta da água-furtada.
— Será mais algum novo desgosto? perguntou indo abrir.

CXXI - A AVE E A ARMADILHA

A porta estava um homem cego e barbudo, vestido de moço de recados.


— Que quer, senhor? perguntou a jovem.
— A senhora é que se chama Lucilia Gonthier? perguntou em lugar de
responder.
— Sim, senhor.
— Então, isto é para a senhora.
E o moço de recados deu uma carta à órfã que pegou nela
maquinalmente.
Muito surpreendida, ela ia interrogá-lo mas o homem tinha fechado a
porta, e já descia a escada.
A cega acabava de despertar.
— Que é isso, pequena? murmurou.
— É uma carta, minha tia.
— Do príncipe, de certo. Ele não veio?
— Não, minha tia...
— E é tarde?
— Oito horas e alguns minutos.
— Bem, pois vou deitar-me. Estou a cair de sono, apesar do
adiantamento que já tomei por conta da noite.
— Venha, tia, que eu a dispo.
— Não, não, lê primeiro a carta.
— Não há pressa, depois a leio. Venha.
E a jovem conduziu a anciã para o quarto próximo, onde a despiu v a
meteu na cama.

***

O fato é que a órfã, vendo no sobrescrito letra desconhecida, sentiu um


terror instintivo e adiava o momento de abrir a carta, donde, parecia-lhe,
devia sair a nova de alguma desgraça.
Depois da septuagenária se deitar e de adormecer, a Toutinegra ainda
esperou alguns minutos.
Mas afinal, envergonhada da sua hesitação, rasgou o sobrescrito e
devorou a carta anônima que nos parece conveniente expor novamente aos
olhos do leitor:
"Menina Lucilia.
"Enganam-na. Se quer saber de que natureza são os graves negócios que
forçam o senhor de Castel-Vivant a afastar-se sem a tornar a ver, não tem
mais do que dirigir-se esta tarde a Creteil, ao chalet da ilha Basse. Apear-se-
á na estrada de ferro na estação de Saint-Maur-les-Fossés. Assim que
atravessar a ponte de Creteil, o primeiro transeunte que lhe aparecer, indicar-
lhe-á o caminho que deve seguir para ir ao chalet. A pessoa que lhe escreve
interessa-se pela senhora, porque sabe quanto o seu amor é puro e
desinteressado. Bastar-lhe-á talvez uma palavra para arrancar aquele a quem
ama das garras de uma mulher indigna, que só trata de se apoderar do título e
da fortuna de Heitor.
"Salve-o de uma perda certa. Seja corajosa até ao heroísmo. Mostre ao
Príncipe de Castel-Vivant o abismo para onde se deixa arrastar. A sua honra,
a sua própria vida, estão em perigo, porque a criatura por quem ele a atraiçoa
é capaz de todos os crimes! Ela já cometeu um infanticídio; mostrar-se-lhe-á
o meio de dar uma prova disso ao Príncipe.
"Não hesite, menina, e creia na palavra de um homem de bem, amigo do
doutor Antonino Frébault, que sabendo muito bem quanto vale muito a
estima.

Depois de ler até à última linha, Lucilia ficou imóvel durante alguns
segundos, com a boca entreaberta, os olhos espantados, e como assombrada.
De repente ergueu-se.
Estava transfigurada, febril, e dos lábios saíram-lhe estas palavras:
— Ah! não será debalde que se terá feito apelo à minha coragem, à
minha dedicação... Que me importa a vida? Quero salvar Heitor, ou pelo
menos tentar salvá-lo. Se ele sucumbir, de que me servirá viver?
Ao mesmo tempo que dizia isto, a órfã metia na algibeira as duas cartas
que acabava de receber sucessivamente, deixando, por esquecimento, ficar
em cima da mesa os sobrescritos com as armas do príncipe.
Pôs na cabeça um chapéu sombrio, embuçou-se numa capa de peles,
pegou no seu "porte-monaie", certificou-se de que a tia dormia
sossegadamente, deixou a água-furtada, desceu rapidamente a escada, e
passou sem se deter por diante da porteira que não a viu sair.
A atmosfera úmida e pesada, pressagiava a volta próxima das grandes
chuvas na bacia do Sena.
No boulevard de Belleville, Lucília olhou para o relógio da estação dos
trens.
— Nove e um quarto! murmurou. A pé não chegarei nunca....Subiu para
um trem, deu ordem para o cocheiro a conduzir à
estrada de ferro de Vincennes, e pôs-se a chorar amargamente.
As lágrimas fizeram-lhe adquirir uma tranqüilidade relativa.
Apeou-se na gare, quatorze minutos antes de principiar a venda dos
bilhetes.
Tinha pois de esperar com inexprimível angústia.
Finalmente, pode comprar o seu bilhete para Saint-Maur-les-Fossés,
donde se devia dirigir para a ponte de Creteil, segundo as informações
ministradas pela carta anônima.
Em Saint-Maur fez perguntas.
Um empregado da estação informou-a.
O céu estava como breu.
O vento soprava com lufadas violentas.
No horizonte, grandes relâmpagos rasgavam as nuvens.
Principiava a cair a chuva.
Lucilia não andava, corria.
Que lhe importava a tempestade ribombando por cima da sua cabeça?
Tratava-se da salvação de Heitor.
Era pelo menos o que ela julgava.
A sua sublime dedicação tudo lhe fazia esquecer.
Chegando à ponte de Creteil, as casas já não a abrigavam.
Ouvia os queixumes lúgubres do vento, e o ruído assustador das águas
muito volumosas, engolfando-se pelos arcos que eram agora estreitos para
elas.
Alguns fregueses mais demorados, fumavam e conversavam ainda no
café restaurante da testa da ponte.
Pela porta entreaberta saía um raio luminoso.
A órfã empurrou a porta, parou à entrada e perguntou:
— Têm a bondade de me dizer por onde devo tomar para ir ao chalet da
ilha Basse?
Os fumadores olharam uns para os outros espantados.
Foi o dono da casa quem respondeu:
— Atravessem a ponte, e tomem pela grande avenida dos alamos á sua
esquerda.

***

Estava no estabelecimento, acantoada em sítio sombrio, com o traje de


camponesa dos arredores de Paris, embuçada num manto de estofo grosseiro,
e o rosto oculto por uma capota muito grande.
— Com um tempo destes, menina, disse ela, vai perder-se por aí. Eu
dirijo-me para o mesmo lado. Se quiser, iremos juntas.
— Ah! minha senhora, retorquiu Lucilia, aceito de boa vontade.
— Então venha.
Lucilia e a desconhecida meteram-se pela ponte ao lado uma da outra.
A tempestade desencadeava-se com duplo furor.
A grande massa líquida bramia de encontro aos pilares.
O vento uivava arrancando as últimas folhas das arvores plantadas nas
margens do rio.
As duas mulheres chegaram finalmente à avenida dos alamos.
O ruído dos elementos desencadeados era ali um pouco menos atroador.
e permitia trocarem-se algumas palavras.
A órfã perguntou:
— Estamos ainda longe do chalet da ilha Basse?
— Num pequenino quarto de hora estaremos na Cova das Carpas, e daí
à ilha, bastam uns cinco ou seis minutos.
— Acompanha-me até lá?
— De certo, porque moro do lado de lá do chalet, a uns cem metros, na
vertente.
E passado um momento, acrescentou:
— Avie-se, menina, a tempestade que está uivando vai desencadear-se
com toda a força. Tenha o cuidado de ir por onde eu vou. O caminho trilhado
é por aqui.
De segundo em segundo, grandes relâmpagos inundavam com uma
claridade branca a estrada úmida onde se abriam profundos regueiros.
Ouviu-se ruído de passos.
Passou pelas duas mulheres um camponês.
— Muito mau tempo para irmos para os lados da barragem, minhas
santinhas. Vai ser o bom e o bonito, não tarda nada!

***

A desconhecida e Lucilia continuaram o seu caminho sem responder.


O vendaval aumentava de intensidade.
As gotas de chuva tornavam-se cada vez mais grossas e mais freqüentes.
A camponesa deixou a avenida para tomar o caminho coberto por onde
vimos embrenhar-se Fossaro.
À esquerda, por detrás das sebes, um braço muito cheio do Marne corria
impetuosamente.
Eis-nos próximo da Cova das Carpas... disse a companheira de Lucilia.
Não tarda que cheguemos. Por acaso vai passar a noite no chalet?
— Não sei, respondeu Lucilia. Vou falar com alguém que ali deve
aparecer esta noite. Conhece os donos do chalet? acrescentou.
— Os donos são uma senhorita... uma parisiense... uma bonita rapariga
que tem dentes como pérolas, e olhos como luzes. As borboletas vão
queimar-se nelas, e contam-se histórias muito esquisitas a respeito do que se
passa no chalet. Dizem que tem ali ido homens que não têm tornado a sair,
mas não deve ser verdade, embora eu julgue a parisiense capaz de tudo.
A órfã não respondeu. Pensava.
As palavras da desconhecida confirmavam ponto por ponto a carta
anônima.
— Ele está ali ao pé daquela odiosa criatura! dizia consigo a pobre
menina. Se não fosse eu, ele ficaria de certo perdido! Deus há de permitir
que o salve.
Durante alguns minutos as duas caminharam em silêncio. Afinal a
companheira de Lucilia fez alto.
— Chegamos? murmurou a Toutinegra.
— Sim, menina.
— Não distingo nada.
— É que a noite está muito escura. Eis a pontezinha. Três tábuas pouco
sólidas, ligadas nem mal nem bem, e que conduzem a uma portinha sempre
aberta. Vê a luz por detrás das tabuinhas?
Lucilia sondou o melhor que pode as trevas espessas, e acabou por
distinguir na sua frente uma claridade pálida.
Deu um passo em frente, e pôs o pé na ponte frágil, lançada sobre as
águas quase sempre dormentes, mas agora impetuosas.
A trepidação das tábuas abaladas meteu-lhe medo.
Recuou.
— Vou conduzi-la ao chalet, menina, tornou a desconhecida. Ah! eu
conheço muito bem a propriedade.
— Indique-me o caminho, peço-lhe. Ficar-lhe-ei muito reconhecida.
— Deixe-me então ir adiante... Chegaremos juntas à porta, mas eu não
entrarei. Já não terá medo de estar só, porque encontrará toda a gente em pé
lá dentro... Fazem pândega até pela manhã, e de dia descansam. São
borboletas noturnas os tais parisienses, tanto homens como mulheres!
Dizendo isto a camponesa metera-se pela ponte pouco segura, e
pegando-lhe na mão ajudava Lucilia a conservar o equilíbrio.
Uivou uma formidável lufada, acompanhada de relâmpagos e trovões.
Assustada, de certo, a companheira da Toutinegra soltou um grande
grito.
Uma gargalhada que partiu do chalet, pareceu-lhe responder.
Esta gargalhada fez vibrar uma fibra dolorosa no coração de Lucilia.
As águas mugiam na praia.
Ouviam-se bater com um ruído sinistro na pequena barragem ou dique
situado na ponta da ilha, e cujo mau estado vimos Fossaro verificar.
As duas mulheres tinham entrado no jardim.
— Siga-me, tornou a desconhecida, levando pela mão Lucilia gelada de
terror.
De repente, Lucilia retesou o corpo.
— Que tem? perguntou-lhe a camponesa.
— É que vamos caminhando pela água.
— São as poças da chuva. Não ê nada, venha depressa.
Lucilia obedeceu.
Chegavam aos três degraus de pedra que conduziam à porta do chalet.
— É ali, tornou a desconhecida. Já não precisa de mim. Bata que hão de
abrir-lhe. Agora deixo-a.
— Obrigada, senhora... Obrigada.
— Não tem nada que me agradecer.
E a camponesa voltando para trás, desapareceu na escuridão. Ouviu-se
novo ribombo do trovão.
A chuva caía agora, como se as cataratas do céu acabassem de se abrir
todas a um tempo.
Lucilia subiu os degraus.
O clarão deslumbrador de um relâmpago, mostrou-lhe a chave na
fechadura, muito ao alcance da mão.
— Vou surpreendê-los... disse ela consigo, E em lugar de bater, abriu.

CXXII - CONTINUAÇÃO

Apenas a porta girou nos gonzos, duas mãos vigorosas agarraram na


jovem pelos pulsos e arrastaram-na para o fundo do quarto alumiado pelas
velas de um pequeno candelabro.
Lucilia soltou uma exclamação de terror, e quis resistir, mas o único
resultado desta tentativa foi provar-lhe a sua fraqueza.
Achava-se só na presença de um homem cego de um olho, de rosto
sinistro.
Pareceu-lhe reconhecer naquele homem o moço de recados que duas
horas antes fora à sua água-furtada.
O desconhecido disse-lhe com um riso de fera:
— Ora até que a apanhei, menina dos milhões, futura Princesa. Vem aqui
procurar o seu amante. O ciúme fê-la cair às cegas no laço! Tanto pior para
si, minha linda! Não sairá do chalet!
A órfã escutava, como se fosse em sonhos, aquelas palavras proferidas
com uma voz abafada, que entretanto não se confundia com o sibilar da
tempestade, nem com o estrondo das águas rugidoras.
Metida a um canto do quarto, muda e toda trêmula, olhava alucinada
para o bandido que estava na sua frente.
Tirando uma navalha da algibeira, ele continuou:
— Em menos de uma hora, pequena, a ilha Basse ficará submersa, e as
águas do Marne arrastarão o teu cadáver...
A iminência do perigo restituiu um pouco as forças a Lucilia. Atreveu-se
a balbuciar:
— Que lhe fiz eu? Não o conheço... Por que é meu inimigo? Por que me
armou este laço? Por que vai assim assassinar covardemente uma criatura
sem defesa? Ferindo-me, quer ferir o Príncipe? Cometi algum crime,
amando-o do fundo dalma? Ah! se a minha morte o deve salvar, mate-me.
mate-me depressa, deixe-o viver a ele!
— O Príncipe está também condenado! disse ele erguendo a arma cujo
aço a luz das velas fez cintilar.

***

Quando ia cravar o ferro, ouviu-se um estalido. O chalet estremeceu da


base ao teto.
A ligeira construção parecia oscilar nos seus alicerces, como que
sacudida por um tremor de terra. A órfã deixou-se cair de joelhos.
— Perdão! murmurou, pondo as mãos. Tenha piedade de mim! Perdoe-
me!
— Com mil raios! bradou o desconhecido cheio de raiva. Eis a cheia! O
Marne vai-nos levar! É preciso acabar com isto.
Por segunda vez ergueu a faca!
Lucilia sentiu-se perdida... Saiu-lhe dos lábios um gemido. Fechou os
olhos e rolou sem sentidos pelo sobrado coberto de lama. Em vista daquilo, o
homem disse consigo:
— Desmaiada! De que serve feri-la? Um golpe deixa sempre vestígios. É
inútil o crime quando o acidente basta.. É preciso que o cadáver não fale!
Debruçando-se então para a jovem, revistou-lhe as algibeiras, e tirou-lhe
as duas cartas que conhecemos.
Chegando-as à luz de uma vela, reduziu-as a cinzas.
Voltando em seguida para Lucilia,tomou-a nos braços, e carregado com
este leve fardo, dirigiu-se para a porta.
Quando ali chegava, atingiu o furacão a sua máxima intensidade.
Era de ensurdecer o fragor dos elementos desencadeados.
Com um vigoroso pontapé, o bandido abriu a porta: mas em lugar de
sair, recuou aterrado.
Ao clarão de um relâmpago.descobriu uma torrente impetuosa
envolvendo por todos os lados o chalet, e cobrindo a ilha Basse.
Em menos de um quarto de hora a água subira oitenta centímetros
arrancando árvores arrastando tudo na sua passagem.
Ouviu-se uma voz dos lados da praia bradar:
— Pedro! gritava a voz, toma cuidado, é a cheia!
— Lá vou! respondeu o cego de um olho.
Arremessou o corpo de Lucilia para longe. A corrente apoderou-se dela
como de uma palha Depois atirando-se à água que lhe dava pela cintura
atravessou o jardim inundado chegou à porta atravessou a ponte pequenina
coberta pelas ondas e reuniu-se à mulher de capota que o esperava sobre um
ponto elevado da estrada
— A caminho! disse-lhe ele, e depressa! Escapo de boa, mas o nosso
segredo há de ficar bem guardado!
O cego e a sua cúmplice. Fossaro e Genoveva, dirigiram-se para Creteil.
De repente, soou detrás deles um ruído sinistro.
Atravessou O espaço um grito de agonia, vibrou por algum tempo, e não
se ouviu em seguida mais que o fragor do vento e das águas.
O chalet da ilha Basse, abalado, minado, escavado, havia dois anos pelas
cheias sucessivas acabava de se afundar...

***

Segundo o seu costume, a tia cega tinha-se deixado dormir até muito
tarde.
Por volta das nove horas da manhã, após uma noite de sono muito
sossegado, despertou e chamou Lucilia.
A Toutinegra, infelizmente, não podia responder-lhe.
— Saiu para algumas compras... disse a septuagenária. E esperou sem
grande impaciência.
O tempo passava.
— Enganar-me-ia eu? tornou a cega no fim de um quarto de hora. Será
por acaso noite ainda? Mas não. é impossível... Ouço andar pela casa... Está
toda a gente ainda de pé... demais, tenho o estômago a dar horas, e este é um
relógio que nunca se transtorna...
Tornou a chamar Lucilia com mais força ainda.
Como os seus brados não tivessem resultado, apoderou-se dela uma
inquietação muito natural.
Trêmula, saltou da cama. dirigiu-se com os braços estendidos para a
porta que separava o seu quarto do da sobrinha, abriu-a, e. às apalpadelas,
aproximou-se do leito que achou muito em ordem.
— A cama está feita... pensou a cega. A pequena deve ter saído esta
manhã... Mas como se demora! Não é o seu costume!! One horas são?
A anciã aproximou-se do relógio de cuco suspenso da parede, passou
muito de leve os dedos por cima do mostrador. consultou os ponteiros, e
descobriu sem custo que eram dez horas.
— Dez horas! murmurou. Porque será esta ausência tão prolongada?
Ontem à noite ela recebeu um bilhete do Príncipe. O que lhe diria a carta?
Meu Deus. se aquele homem tivesse abusado da ingenuidade de Lucilia... do
seu amor!! Os homens são capaz-es de tudo! Não. não, não quero crer.
Lucilia demora-se, não é mais nada. Daqui a cinco minutos volta...
Passaram os cinco minutos, depois outros cinco, e a final um quarto de
hora.
A septuagenária, dominada então por uma angústia indizível, voltou para
o quarto, vestiu-se à pressa, dirigiu-se para a porta da escada, abriu-a, e
gritou:
— Senhora Verdier! senhora Verdier!
— Ei-la! ei-la! respondeu a vizinha, apressando-se a abrir a porta. Que
determina, minha cara senhora? acrescentou.
A cega fê-la entrar, fechou a porta e perguntou:
— São dez horas,não é verdade?
— Por que me faz essa pergunta? Que há de novo? Vejo-a tão
alvoroçada!
— Viu hoje Lucilia? tornou a cega.
— Não vi... Não está cá?
— Não, não está. Tem a certeza de que não a ouviu sair esta manhã?
— Oh! essa certeza, tenho-a! mas isso não prova nada... podia não a ter
ouvido... Há alguma coisa que a inquieta? Supõe que sucedesse alguma
coisa?
— Não sei o que suponha... alguma coisa extraordinária se passa... tenho
medo...
— É preciso sossegar,minha querida senhora... A porteira pôde dar-nos
algumas informações... Quer que vá em baixo e a interrogue?
— Sim, sim, peço-lhe...
— Vou a correr.
E a senhora Verdier, no fundo excelente pessoa, e muito impressionada,
porque sinceramente amava a Toutinegra, correu para fora do quarto.
Passados cinco minutos entrava ofegante, depois de subir de um fôlego
os cinco andares.
— Nada! disse ela com uma voz entrecortada. A porteira tem estado toda
a manhã a trabalhar no seu cubículo, não arredou pé. Devia ter visto passar
Lucilia... Nada viu.
— Então é que a pequena não se recolheu ontem à noite! exclamou a
septuagenária com desespero.
— Não se recolheu! repetiu a senhora Verdier, levantando as mãos ao
céu. Pois ela havia de passar a noite fora de casa na véspera do casamento!
— Oh! nada de suposições injuriosas! replicou a cega. Conheço
Lucilia... tenho-a por incapaz de uma fraqueza!... A pobre pequena não
pecou, foi algum laço que lhe armaram, ou deixou-se levar pelo desespero.
— Oh! minha boa vizinha, está a assustar-me. De que laço-me fala? a
que propósito esse desespero?
— Ontem, a minha sobrinha recebeu uma carta... É preciso encontrar
essa carta, que talvez, nos mostre algum indício. Procure-a, peço-lhe.
A senhora Verdier olhou para a mesa de trabalho de Lucilia,. viu d
sobrescrito que ali deixara a jovem, e exclamou:
— Uma carta... ei-la.
— Leia, leia depressa! leia em voz muito alta! Bem vê que estou sobre
brasas!
A senhora Verdier lançou mão do sobrescrito, e com grande surpresa
sua, nada achou dentro.
— Não temos sorte! disse, o envelope está vazio!
— Mas para quem era dirigido?
— À menina Lucilia Gonthier, rua Julien Lacroix. Há um sinete
quebrado... um belo sinete de lacre vermelho com uma coroa...
— O sinete do Príncipe! murmurou a velha. Ah! bem me dizia o coração,
Lucilia foi atraída a algum laço por aquele miserável que falava de.
casamento para disfarçar os seus vergonhosos projetos!... É infame!... E não
posso ir em socorro da minha pobre menina sem defesa! Sou velha... fraca...
Estou cega e impotente! Deus é desapiedado para mim!
E a septuagenária pôs-se a soluçar contorcendo as mãos.
— Vejamos... Vejamos... tia Gonthier... disse a ex-formosa hervanária
enxugando os olhos arrasados de lágrimas. Não se apoquente tanto... Não
temos a prova de que sucedesse alguma desgraça...
A cega não escutava.
— Senhora Verdier, disse, se tivesse de permanecer nesta incerteza,
morreria dentro de uma hora. Venha comigo.
— Vizinha, que quer fazer?
— Quero ir à rua Francisco I, pedir minha filha à irmã do Príncipe de
Castel-Vivant.
— Mas é impossível.
— Impossível, por quê? A vizinha pôde levar-me muito bem até urna
carruagem, não é verdade?
— Até, se for preciso, acompanhá-la-ei a qualquer outra parte.
— Obrigado, recuso o oferecimento... não tenho necessidade de ninguém
para obrigar o Príncipe a dizer-me o que fez de Lucilia.
Venha então, visto que assim o quer absolutamente.

***

A senhora Verdier conduziu a septuagenária a um trem de praça.


Depois de a meter dentro do trem disse ao cocheiro:
— A pobre mulher é cega, tenha cuidado com ela.
— Sossegue... Aonde vamos?
— À rua de Francisco I, palácio do Príncipe de Castel-Vivant. Não sei o
número... mas toda a gente no sítio lhe indicará o palácio.
Três quartos de hora depois, o trem parava no lugar designado. O
cocheiro saltou da almofada, e perguntou:
— Toco a campainha, freguesa?
— Sim, se faz favor.
— Vou primeiro ajudá-la a apear-se.
O bom do cocheiro fê-la atravessar o passeio, e puxou pela campainha.
Quase no mesmo instante o porteiro abriu então a porta.
— Quem é? perguntou dirigindo-se primeiramente ao cocheiro
— Foi esta senhora cega que me encarregou de a conduzir aqui,
respondeu o cocheiro.
O porteiro voltando-se então para a tia de Lucília retorquiu:
— Que deseja, minha senhora?
— Desejo falar ao Príncipe de Castel-Vivant.
— O senhor Príncipe está ausente.
— É mentira! exclamou a septuagenária.
— Como! como é mentira! repetia o porteiro pasmado. Não é delicada
minha querida senhora.
A tia de Lucilia compreendeu que seguia caminho errada.
— É verdade, senhor... balbuciou, mas peço-lhe que me desculpe, sou
tão infeliz! Juro-lhe que preciso falar ao senhor de Castel-Vivant. Depende
disso o meu sossego... a minha vida!
O criado tornou muito seriamente:
— Afirmo-lhe novamente, minha senhora, que meu amo saiu de Paris
ontem à tarde...
— A que horas?
— Cedo
— O senhor quer enganar-me! retorquiu a septuagenária. A minha
sobrinha Lucilia que mora em Belleville, recebeu uma carta de seu amo
muito mais tarde.
— Lembro-me efetivamente que o senhor Príncipe quando se retirava,
entregou uma carta para Belleville ao primeiro criado de quarto. Esta carta
mandada por um moço de recado, era dirigida à menina Lucilia Gonthier.
Proferiram este nome diante de mim.
A pobre anciã tornou:
— É que seu amo preparava o laço abominável em que Lucilia caiu. Tão
verdade como existir um Deus, não me irei daqui enquanto não souber o que
o Príncipe fez da minha querida menina! E se for desapiedado, se me
expulsar deste pátio de entrada, esperarei na rua!
Exatamente naquele momento ouviu-se o rodar de uma carruagem que
parava à porta que ficara entreaberta. A porta abriu-se de par cm par. Heitor
apareceu à entrada.

CXXIII - INVESTIGAÇÕES

Ao ver a cega, o principezinho soltou uma exclamação de surpresa.


Correu para ela.
— A senhora Gonthier aqui! exclamou.
A cega reconheceu-lhe a voz.
Agarrou-se a ele por um braço, e disse:
— Não era então mentira a sua partida! Eu bem adivinhara!
Ei-lo! Apanhei-o! não o largarei enquanto não me responder!
Heitor fez-se pálido.
Assustou-o uma vaga angústia.
— Responder-lhe! balbuciou. Mas a mim é que me pertence interrogá-la,
e tenho pressa de o fazer, porque a sua presença mete-me medo. Venha,
minha senhora, venha.
E levou a septuagenária até à sala do "rez-de-chaussée", e depois de
fechar a porta, disse com vivacidade:
— Então que há de novo, senhora Gonthier?
A cega cravou no Príncipe os seus olhos sem vista. Depois, com uma voz
abafada, perguntou-lhe:
— Que fez da minha sobrinha?
Heitor estremeceu, como se recebesse, em cheio, no coração, uma
facada.
Transtornou-se-lhe o rosto, agitou-lhe as mãos um tremor nervoso, ao
mesmo tempo que o suor em bagas lhe umedecia as raízes do cabelo.
— O que fiz da sua sobrinha? repetiu o mancebo alucinado. Não
compreendo! Onde está Lucilia?
— O senhor é que me há de dizer, o senhor que ma roubou! respondeu a
septuagenária.
— Lucilia abandonou a sua casa? bradou o Príncipe desorientado.
— O senhor bem o sabe!
— Pela minha honra, pelo meu amor, juro-lhe une não sei nada!
O tom de sinceridade com que Heitor proferiu estas palavras, produziu
certa impressão na anciã.
Contudo, prosseguiu:
— De que serve mentir? O senhor espera fazer me crer que não é o
raptor de Lucilia? A não ser o senhor, quem havia de ser? Em todo o caso
atrever-se-ia a negar que lhe escreveu? Os seus criados desmenti-lo-iam!
O principezinho retorquiu com vivacidade:
— Não nego isso! Não podendo ir à rua Julien Lacroix, como era minha
tenção, escrevi a Lucilia.
— Para lhe aprazar uma entrevista, aonde ela foi... Heitor sentia
baralharem-se-lhe as idéias.
— Uma entrevista! repetiu. Como lhe podia eu dar uma entrevista, tendo
saído de Paris?
— O senhor deixou Paris? É mais uma mentira! Qual foi o motivo dessa
retirada imprevista?
— Fui chamado a Vezelay, perto de Amboise, onde o incêndio acabava
de consumir uma residência que me pertence, pondo em perigo a vida de
meu pai adotivo. Podia, por acaso, deixar de ir? O tempo urgia... Escrevi a
Lucilia um bilhete de três linhas... Anunciava-lhe um regresso quase
imediato... Não acredita?
— Continue.
— Dizia-lhe: Adoro-a... Pedia-lhe que me amasse... Hei de admitir que
ela duvidou de mim? que supôs que eu a enganava? ou que tomando o meu
bilhete como um precursor de um rompimento, ela perdesse a cabeça, e o seu
louco ciúme a levasse a um ato de desespero?
— Tudo é admissível, retorquiu a cega, tudo é verossímil, pois que
desapareceu. Oh, minha filha, minha pobre filha! Está a estas horas talvez
morta! Meu Deus! meu Deus!
Heitor chorava.
— O que havemos de fazer? balbuciou.
— Procurá-la sem perda de um instante... revolver Paris Oh! se eu
tivesse vista! Infelizmente sou cega!
— Sim. tem razão, corro...
— E eu não o largarei... exclamou a senhora Gonthier tornando a agarrar
no braço do mancebo. Quero acompanhá-lo por toda a pane, segui-lo nas
suas diligências. É o meu dever e o meu direito. Quero, em suma, tornar a
encontrar a minha sobrinha, viva ou morta.
— Morta! repetiu o Príncipe cheio de terror.
— Sim, morta!
— Não profira semelhante palavra! cale-se! cale-se! Deus não há de ter
permitido semelhante desgraça! Com certeza protegeu o anjo a quem
amamos. Havemos de tornar a encontrar Lucilia!
Partamos, partamos depressa!Diga-me, porém, primeiramente, que
já não me acusa...
— Oh! não, cem vezes não, perdoe-me, estava louca... Mas lembre-se do
que sofria... do que ainda sofro!
— Coragem, senhora! Mostre-se forte... Deus terá piedade.

***

Heitor tocou uma campainha.


— O coupé está posto? perguntou ao criado de quarto.
— Sim, senhor... está à espera...
— Venha, senhora Gonthier, nós partimos...
O trem vindo de Belleville, foi generosamente pago.
A septuagenária tomou lugar no trem, ao lado do mancebo.
— Aonde vamos primeiramente? perguntou-lhe ela.
— A Morgue.
Tão sinistra palavra gelou o sangue nas veias da cega. cujos soluços
aumentavam.
É na Morgue que se expõem os cadáveres dos desconhecidos
Não lhe fez mais perguntas.
O coupé partiu a toda a brida.
Infelizmente a primeira paragem não deu resultado
Um só cadáver, o de um homem, jazia nas lages inclinadas da Morgue.
Heitor dirigiu-se ao escritório.
Receando de uma desgraça que não queria admitir, deu os sinais de
Lucilia, e a sua própria morada, para que o avisassem sem demora se
aparecesse o corpo da pobre menina.
Da Morgue dirigiu-se à prefeitura da polícia, onde tomaram nota
rigorosa das suas declarações.
Obteve ali a promessa de que a brigada de segurança iria imediatamente
ocupar-se da jovem desaparecida.
Da prefeitura o cocheiro recebeu ordem de ir à rua Julien Lacroix.
Talvez Lucilia houvesse voltado para casa.
Baldada esperança!
A órfã não apareceu.
Heitor esquadrinhou por toda a parte, esperando encontrar um indício
qualquer que o pusesse na posta e facilitasse as pesquisas.
O sobrescrito que ficara em cima da mesa do trabalho, atraiu-lhe o olhar.
Pegou nele e examinou-o com atenção.
Era exatamente a sua letra, o seu papel e o seu sinete.
Uma só coisa lhe causou admiração.
Habitualmente escrevia a morada no alto do sobrescrito, e o nome do
destinatário por baixo; ora no sobrescrito que tinha à vista, havia uma
disposição inversa, pois que as palavras Julien Lacroix estavam por baixo do
nome de Lucilia Gonthier.
Lembrou-se porém da sua grande preocupação quando escrevia, a sua
admiração diminuiu.
Entretanto, meteu sempre o sobrescrito na sua carteira.
— Então? perguntou a cega.
— Nada, respondeu o mancebo com desespero. Nada que nos possa
guiar!
A septuagenária deixou-se cair de joelhos.
— Meu Deus, balbuciou ela,que vai ser de mim. Eu só vivia por Lucilia,
de Lucilia cessou de viver, que fico eu cá fazendo neste mundo? Deus me
chame para si! A morte seria um alívio.
O que vai ser de si? exclamou o Príncipe comovido. Eu vou lhe dizer,
neste mesmo quarto, neste mesmo lugar, há poucos dias, a senhora chamava-
nos, a mim e a sua sobrinha, seus filhos. Esse título, ainda o mereço, ainda o
reclamo. Continuará n viver para Lucilia viva, e até ao dia ditoso em que ela
for minha mulher, a senhora não me deixará.
E chegando ao coração a cega que chorava, abraçou-a com um:', ternura
verdadeiramente filial.

***

Cinco minutos depois, tornavam a descer em sua companhia os cinco


andares, e fazia-a novamente subir para a carruagem, depois de dar dez
luizes à porteira, que prometeu correr à rua Francisco T se soubesse alguma
coisa.
Depois de instalar a senhora Gonthier num quarto próximo do seu,
Heitor dirigiu-se à loja de bebidas da rua Victoria, onde encarregou um dos
empregados da casa de levar à agência Malpertuis um bilhete dirigido a
Estanislau Picolet, e assim concebido:

"Senhor Sta-Pi."
"Espero-o no pequeno café."
"Muito urgente."
"Heitor."

Um instante depois, o falso polícia vinha muito risonho procurar o


Príncipe cujo rosto sombrio o impressionou.
Dirigindo-se com um respeitosos interesse, perguntou:
— Meu senhor, há alguma coisa que não corria à medida dos seus
desejos?
— Sou muito desgraçado, senhor Sta-Pi... volveu o ex-Bégourde.
— Desgraçado, meu Príncipe? — Sim.
— Por que,então?
— Desapareceu Lucilia Gonthier.
A fisionomia expressiva do falso polícia, manifestou o mais profundo
espanto.
— Pois a lourinha mandou passear o Príncipe, que é tão rico e tão
generoso! murmurou. Não sabe a gente em quem se fie! E o Príncipe
conhece o cúmplice desta fuga inverossímil?
— Não calunie um anjo de virtude! exclamou o Príncipe. Não se pôde
suspeitar de Lucilia. Tenho toda a certeza de que ela não é culpada, e tenho
medo até de que já não existia...
— O quê, pois julga que ela morreu?
E Sta-Pi franziu o sobrolho.
— Temos algum crime? acrescentou.
— Diga antes um suicídio...
— Um suicídio na sua idade! Mas porque, santo Deus! Heitor referiu o
pouco que sabia.
O agente de Malpertuis tornou:
— Então acha que a menina Lucilia se suicidou por se julgar abandonada
pelo Príncipe?
— Repito-lhe que o receio bem.
— Então a carta escrita à jovem no momento de se retirar, prestava-se
muito ao equívoco?
— Era simplesmente lacônica...
— Esqueceu os termos em que ela era concebida?
— Se não me lembro das expressões, lembro-me pelo menos do sentido..

***

O Príncipe invocou as suas recordações, e repetiu quase textualmente as


poucas linhas do bilhete que os leitores conhecem. Sta-Pi tomou nota delas
no seu livro de lembranças.
— Não há nisto nenhum motivo de suicídio... disse ele. Nada denuncia,
nestas curtas frases, um pensamento reservado de abandono... Se a menina
Lucilia é de gênio desconfiado e ciumento, teria, o muito, suposto que era
mentiroso o anúncio da sua partida, e nesse caso correria a sua casa para se
certificar disso...
— Não se apresentou no palácio...
— Fez algumas pesquisas em casa da jovem?
— Sim, procurei por toda a parte.
— Não achou nada?
— Nada... exceto o envelope da minha carta.
— É um bom sinal... As mulheres que se matam por desespero de amor
têm por costume escreverem ao seu infiel antes de acenderem o rescaldo da
asfixia ou de se atirarem ao rio...
— Que me diz!...
— É regra quase sem exceção... tem o envelope de que acaba de me
falar?
— Tenho... Quer examina?lo?
— Mais tarde nos ocuparemos disso. A que horas escreveu?
— No momento de partir, um pouco antes das duas horas.
— A quem confiou a sua carta?
— Ao meu criado de quarto. Luiz.
— E ele levou-a imediatamente ao seu destino?
— Ignoro.
— É preciso sabê-lo... Viu a menina Lucilia pela manhã?
— Não.
Sta-Pi agarrou na fronte com as mãos ambas e durante alguns segundos
conservou-se silencioso.
— Em que pensa? perguntou-lhe o Príncipe inquieto com aquele
mutismo.
— Em muitas coisas... Era conhecida a sua ligação co ma menina
Lucilia?
Heitor abanou a cabeça.
— Tem a certeza disso? continuou Sta-Pi.
— Ninguém ouvira falar da menina Gonthier, ninguém, exceto o meu
pobre amigo o doutor Frébault, que já não existe.
— Isso é o que resta verificar... Deu já alguns passos e contou a alguém
a estranha desaparição que tanto o aflige?
— Fui à Morgue e avisei a polícia.
Picolet encolheu imperceptivelmente os ombros.
— Enfim, murmurou, se isso não faz bem, também não faz mal. Porém,
a minha confiança é limitada.
— O que conclui?
— Por agora nada... Tenho precisão de refletir e de passar a noite a
procurar o meio de desembrulhar este negócio... Poderia amanhã pela manhã
apresentar-me no seu palácio? Examinarei o envelope da carta dirigida à
menina Lucilia, e interrogarei o criado de quarto incumbido de levar essa
carta.
— Esperá-lo-ei com impaciência febril.
— Tomo a liberdade de rogar ao Príncipe que não dê nenhum passo, que
não volte à Morgue, nem à Polícia. Eu me encarrego de tudo...
— Conheço o seu zelo e inteligência... Tenho confiança...
— O Príncipe tem muita bondade para comigo! Na verdade o Príncipe
enche-me de favores.
— Tem precisão de dinheiro?
— Se respondesse: não, o Príncipe não me acreditaria.
— Aqui estão dois mil francos. Será bastante para as primeiras despesas?
— É bastante.
— E lembre-se, senhor Sta-Pi,, que se o senhor encontrar viva a minha
Lucilia, a sua fortuna fica por minha conta.
— Ah! meu senhor, meu senhor! exclamou o falso polícia com um
entusiasmo sincero, para o servir seria capaz de fazer milagres.
— Basta fazer um só para vir a ser rico.

***

Os dois separaram-se.
No dia seguinte pela manhã. Luiz. o criado de quarto veio anunciar ao
Principezinho que o senhor Estanislau Picolet, que recebera ordem de
introduzir assim que se apresentasse, esperava no gabinete de trabalho.
Heitor apressou-se a ir ter com ele.
O empregado do escritório de Malpertuis apurara muito particularmente
a sua toilette.
Parecia um empregado de tribunal com traje de domingo e dias de festa.
— Ora seja muito bem vindo.senhor Picolet... disse-lhe o Príncipe com
uma comoção fácil de compreender. Traz-me notícias?
— Só uma, senhor; venho da Morgue, e ali coisa alguma confirma o
suicídio... Demais só hoje. e depois de ter a honra de conversar com o senhor
Príncipe, é que dou princípio às minhas investigações....

CXXIV - O FARO DE STA-PI


— Então, conversemos quanto antes... disse Heitor, porque a ansiedade
que me domina quase me enlouquece!...
— O Príncipe, tornou Picolet, tem a bondade de me mostrar o envelope
da carta que escreveu à menina Lucilia?
Ei-lo.
Sta-Pi examinou muito atentamente o quadrado de papel velino que o
Príncipe lhe estendia.
— Esta e na verdade a sua letra?
— É... mas fiz um reparo.
— Qual?
— Tenho por costume escrever a morada por cima do nome da pessoa a
quem a carta é destinada, e nesta dá-se inteiramente o contrário...
O Príncipe estava com muita pressa e muito inquieto, o que explica mais
que suficientemente uma distração. Contudo, sempre tomo nota desta
pequena circunstância.
Sta-Pi voltou o envelope, olhou para as armas, estudou o sinete de Heitor
e verificou que a marca em lacre vermelho reproduziu perfeitamente o
sinete.
— Até agora nada vejo de suspeito, disse. Tem a bondade de me
apresentar o criado de quarto a quem confiou a carta?
Heitor tocou.
O criado de quarto apareceu.
O Príncipe disse-lhe indicando Picolet:
— Este senhor vai dirigir-lhe algumas perguntas. Responda-lhe o mais
precisamente possível.
— Anteontem, começou Sta-Pi, seu amo, no momento de partir,
entregou-lhe uma carta.
— Sim, senhor, respondeu Luiz, uma carta dirigiria à menina Lucilia
Gonthier, rua Julien Lacroix, cm Belleville....
— O senhor mesmo é que a levou?
— Não, senhor... O senhor Príncipe não me deu essa ordem.
— Então mandou-a?
— Imediatamente.
— Por algum dos seus companheiros?
— Não, senhor.
— Então, por quem?
— Por um moço de recados.
— Do sítio?
— Não, senhor...
— Então como foi isso?
— No momento em que saía do palácio, passava pela frente da poria um
moço de recados com a respectiva medalha.. Vendo-me uma carta na mão.
ofereceu-se para se encarregar dela... Como não tinha nenhum motivo para
rejeitar o oferecimento, confie'-lhe a carta e paguei o recado. Quando sonhe
que se tratava de ir à rua Julien Lacroix, disse: — Conheço... sou de
Belleville...
Picolet franziu os sobrolhos.
— Ah! ah! exclamou, esse homem passava?
— Sim, senhor, com o seu gancho ao ombro.
— Reparou-lhe na cara?
— Não reparei muito... Mas parece-me que tinha muita barba, e era cego
de um olho.
— Seria capaz, de o reconhecer?
— Talvez... Não, não atreverei a afirmá-lo... Mas se o quiserem tornar a
encontrar, será fácil.
— Como?
— Tomei nota do número da sua medalha.
Os olhos de Sta-Pi cintilaram.
— Bravo! exclamou. E o número?
— É 1:547.
Sta-Pi tomou nota do número na sua carteira.
— Era tudo quanto eu queria saber... tornou. O criado de quarto retirou-
se.
— Outro coisa, continuou o policia, finando se achou a sós com Heitor.
— Diga.
— Talvez o Príncipe vá julgar que me afasto da questão; mas num
inquérito bem conduzido, num dado momento, tudo se torna. ou pelo menos
pôde tornar-se útil... O incêndio da sua residência de Vezelay foi
importante?
— Foi. Uma ala e metade do corpo principal do edifício foram
consumidas pelas chamas... as cavalariças e as suas dependências já não
existem. Perdi muitos cavalos de grande preço. Receei a princípio uma
desgraça muito maior. O telegrama que recebi fazia-me recear pela vida de
meu pai adotivo, gravemente ferido, diziam. Felizmente não sucedeu assim.
A ferida do velho Príncipe não tem gravidade real, o que me permitiu voltar
no fim de algumas horas...
— Como pegou o fogo?
— Não se sabe, e devo a este respeito indicar-lhe um fato
incompreensível... pelo menos para mim.
— Que fato?
— Segundo o testemunho unânime dos meus criados, prova-se que o
incêndio rebentou, no mesmo momento, em dois lugares diferentes, bastante
afastados um do outro.
Sta-Pi apurou o ouvido.
— Ah! ah! exclamou, aí está uma circunstância muito interessante! Dois
lugares diferentes, muito afastados um do outro?
— Sim.
— A que horas se manifestou o fogo? — Antes das três da manhã.
— Que distância medeia entre os dois lugares?
— Mais de duzentos metros. Mas que. relação pôde estabelecer entre
este incêndio e a desaparição de Lucilia?
— O senhor Príncipe acha que me extravio? perguntou Sta-Pi sorrindo.
— Concordo.
— Previra isso. Permita-me o Príncipe lhe repita que se engana... Se bato
mato à esquerda e à direita, sei o que faço, e procuro um rasto.
— Bem.
— Supõe-se por ação que o fogo fosse deitado por maldade?
— Não. A maldade seria inexplicável... Não tenho inimigos na
localidade.
— Então o Príncipe supõe apenas um acidente puro e simples?
— Sim, como toda a gente...
— A notícia do sinistro chegou a Paris por volta das duas horas? — Às
duas menos vinte minutos... Escrevi a Lucilia e parti... — E foi nessa mesma
noite que a menina Lucilia desapareceu?
— Naquela mesma noite...
— Bem, exclamou Sta-Pi levantando-se, resta-me um bonito trabalho a
fazer. De hoje em diante vou declarar ao chefe, do escritório de Malpertuis,
que preciso de uma licença. Se me recusar, pedirei a minha demissão... e
toca a investigar!
Sta-Pi despediu-se.
No coração do Principezinho brilhou um vago raio de esperança.

***

Retrocedamos, e conduzamos novamente os leitores às margens do


Marne.
A tempestade furiosa no momento em que Fossaro e Genoveva
atentavam contra a vida de Lucilia Gonthier, continuou toda a noite.
A cheia do Marne atingia proporções assustadoras.
Quando apareceu o dia, toda a planície apresentava o aspecto de um
casto lago de águas lodacentas.
Os moradores de um grande número de propriedades marginais tiveram
de se refugiar nos andares superiores para escapar à inundação que os
afogava no "rez-de-chaussée", e achavam-se isolados nas suas habitações
como em ilhas.
À tempestade serenara pela manhã, e os camponeses armados de
compridos forçados, diligenciavam puxar a si os destroços arrastados pelas
ondas.
Do lado de Créteil e dos campos que conduziam à ilha Basse, o mal
excedia toda a suposição.
Muitas casas tinham desabado, fazendo numerosas vítimas.
Barqueiros corajosos arrastavam nos seus catraios os lugares mais
perigosos, levando socorros aos inundados, e apanhando os cadáveres.
Os representantes da autoridade local e o comissário de polícia assistiam
aos trabalhos de salvação em companhia de dois médicos.
Um dos médicos dirigia uma importante casa de saúde.
Esta casa gozava na localidade grande e legítima reputação.
Chamava-se o doutor Auger.
Acompanhava-o a esposa, mulher nova e formosa, que a todos
prodigalizava palavras de consolo e de animação.
— Sabe, senhor comissário, dizia um conselheiro municipal, que o
chalet da ilha Basse se desmoronou esta noite?
— Há pouco, quando passei, vi o lugar onde ontem se elevava. Estava
habitada?
— Nesta estação não é muito provável...
— Mandou alguns barcos para aqueles lados?
— Ainda não... É muito difícil a passagem por causa da rutura da
barragem das duas ilhas...

***

Naquele momento tiravam da água um cadáver.


Era o cadáver de uma criança de doze anos esmagada com a mãe sob as
ruínas de uma casa.
No respectivo auto mencionou-se esta triste descoberta.
O doutor Auger e o seu confrade ligavam a perna a um desgraçado,
quebrada pela queda de uma viga.
Um morador da margem que vinha do lado da ilha Basse correu
gritando:
— Por aqui! por aqui! há uma mulher a salvar.
— Uma mulher! repetiram muitas vozes.
E os curiosos partiram na direção indicada.
— Senhor Auger, disse o comissário de polícia ao diretor da casa de
saúde, cuja existência há pouco indicamos, quer vir conosco?
O médico apressou-se a aceitar a este convite, deixando o colega
concluir a tarefa principiada.
A sua jovem esposa seguiu-o.
Chegaram a cento e cinqüenta metros da ilha Basse.
Ao longe viam-se algumas vigas do chalet desmoronado, seguras por
grandes árvores formar um simulacro de barragem, de encontro á qual as
águas de despedaçavam com furor.
— Onde está essa mulher? perguntou o comissário.
O homem que bradara por socorro respondeu, designando um ponto
situado a cem metros do sítio elevado onde parara a inundação.
— Acolá está ela, senhora, por trás daquele grupo de árvores, sobre os
ramos de um salgueiro desarreigado que ficou preso entre dois olmeiros.
Todos os olhares para ali se dirigiram.
— Sim, sim, bem vejo... disse o comissário. Desgraçada! Um barco...
Depressa um barco!
Um barco não poderá passar pelo meio destas sebes e deste enredamento
de plantas, observou alguém desanimado.
— É preciso porém chegar a todo o custo aonde está aquela mulher,
interrompeu o doutor Auger. O salgueiro pôde oscilar de um momento para
o outro, e a pobre criatura ficará irremediavelmente perdida.
E dirigindo-se a um homem de rosto enérgico e bronzeado, acrescentou:
— O senhor é um barqueiro experimentado e intrépido... dedique-se!
Salve esta mulher!
— Oh! doutor, estou pensando nisso, e procuro um meio... Mas o meu
barqueiro nunca poderá navegar lá dentro, e subir semelhante corrente. É
impossível.
— Pois bem, Lambert, faça o impossível.
— Sim, sim, repetiram os circunstantes... faça o impossível...
— Mil raios! exclamou o barqueiro... Pelo menos tentá-lo-ei!... Trata-se
de trazer até aqui o barco à força de braços. Preciso de dez rapazes forçosos.
Apresentaram-se logo vinte homens.
— Sigam-me, companheiros, tornou Lambert, vamos buscar a
pequerrucha.
E partiu com os homens de boa vontade.
Da praia gritavam à mulher deitada e imóvel sobre o salgueiro:
— Coragem! coragem! vão em seu socorro! A infeliz não fazia
movimento algum.
— Estará viva? perguntou o comissário.
O doutor Auger tirou da algibeira um binóculo. Assestou-o para aquele
lado.
— Não está morta, respondeu, acabo de lhe ver mexer a cabeça.
A multidão repetiu com dobrada energia.
— Coragem! coragem!
Lambert e os seus companheiros tinham chegado à pequena angra onde
estava o barco meio enterrado no lodo.
— Cinco de cada lado! ordenou o salvador, e força!
Dez homens obedeceram. Ao sinal dado por Lambert, reuniram as
forças.
O barco pesado deslizou deixando um sulco no terreno lodacento, e
achou-se completamente a seco.
— Agora, continuou o barqueiro, trata-se de levantar o barco, e de o pôr
aos ombros. Compreenderam?
— Compreendemos.
— Bem, então que todos se deitem á faina. Pronto? Atenção!... Um. dois,
três. iça!...
Quarenta braços vigorosos levantaram como uma pena a embarcação que
um instante depois descansava sobre os ombros de doze homens, entre os
quais figurava Lambert.
— O pior está feito! disse ele. Agora a caminho, e marquemos o passo.
Um, dois...
Os doze homens puseram-se em movimento, e tomaram a passo
ginástico a direção da ilha Basse.
Em menos de um quarto de hora chegaram ao sítio onde os esperava o
comissário, o doutor, a sua jovem esposa, e um grupo de curiosos.
Segundos depois, o batel estava na água, tripulado por Lambert e por
mais dois barqueiros.
Os corações batiam com força despedaçadora.

CXXV - UMA SITUAÇÃO COMOVENTE

Lambert ordenou:
— Salta aos remos, e remar com força rio acima, para que a corrente não
nos alague. Eu vou ao leme... Deixar-nos-emos descair sobre o salgueiro, e
quando lá chegarmos, eu me encarrego de amarrar o barco sòlidamente...
Vá...
Os barqueiros agarraram nos remos e principiaram a lutar vigorosamente
contra a corrente.
Em terra, os espectadores não respiravam, assistindo àquela luta
imponente, bem depressa coroada de êxito.
Lambert, em pé, na popa do barco, cujas violentas oscilações não lhe
faziam perder o equilíbrio, tinha numa das mãos o seu croque, e na outra a
amarra.
— Agora deixem descair o barco, disse ele no fim de alguns minutos, e
procuremos evitar o choque... Bem vejo a pobre criatura, parece que está a
olhar para nós...
Efetivamente a mulher que queriam salvar, voltara à cabeça ao ouvir o
ruído dos remos, e fixara no barco olhos espantados.
O doutor Auger seguia com o binóculo os movimentos da infeliz, cujo
rosto podia agora ver.
— É uma jovem muito nova ainda! exclamou muito comovido, quase
uma criança.
O barco de Lambert estava apenas a alguns metros de salgueiro
desarraigado que a violência das águas abalava.
A jovem, trêmula de frio, o rosto lívido, os lábios desmaiados. os cabelos
soltos e encharcados, agarrava-se aos ramos com toda a força dos dedos
contraídos.
— Atenção! disse o barqueiro. Abordemos o salgueiro de través. A
manobra foi habilmente executada, e o barco impelido pela corrente, veio
encostar a borda aos ramos copados da árvore, e ali imobilizou.
Da praia elevaram-se exclamações de imensa alegria.
— Deve um círio bento ao santo da sua devoção, minha filha, porque ei-
la salva! exclamou Lambert. Vamos, coragem, e alguma força! Pegue na
minha mão, levante-se, e salte para o barco...
O bom do homem estendia a mão à jovem, mas esta não se movia.
Parecia não ouvir, e olhava para ele com olhos embaciados e fixos.
— Dir-se-ia que não compreende nada... murmurou um dos barqueiros.
— Valha-me Deus, ela está regelada... replicou Lambert É preciso pegar
nela e transportá-la, porque julgo-a incapaz de se mexer. Vou saltar no
tronco... Está sòlidamente seguro entre os olmeiros. Demais, se houver
perigo, tanto pior... Chegar bem o barco.
O barqueiro pôs resolutamente os pés no salgueiro que não cedeu sob o
peso do corpo.
Debruçou-se, desprendeu, não sem custo, os dedos contraídos dos ramos
que enlaçaram, levantou-a brandamente, e deitou-a no barco, saltando em
seguida para junto dela.
Os espectadores soltaram vivas e bateram palmas.
O mais difícil estava feito.
O barco, entregue à corrente, chegou à praia em alguns segundos, e dez
homens puxaram-no sobre o terreno encharcado.
Lambert tornou a tomar a jovem nos braços, e depôs o leve fardo sobre
uma elevação coberta de erva, à beira do caminho.
A jovem era Lucília, comi os nossos leitores devem ter já adivinhado.
Devemos explicar porque acaso, ou antes porque milagre, a noiva do
principezinho ainda estava viva.
Fossaro julgara desembaraçar-se para sempre da órfã, atirando-a
desmaiada às ondas engrossadas do Marne.
A impressão da água gelada reanimou subitamente a pobre Toutinegra,
levada pela corrente por entre os destroços que o rio impetuoso arrastava.
A corrente levou-a para um ponto elevado do rio.
Ali agarrou-se aos ramos pendentes de um salgueiro, e assim se manteve
durante alguns segundos, transida, assustada, mais morta que viva, e
julgando-se ludibrio de um terrível sonho.
De repente o salgueiro oscilou, como uma árvore cujo tronco e atacado
pelo machado do lenhador.
A violência da corrente escavava o solo em roda das raízes.
Subitamente Lucília sentiu vacilar a árvore, e cair nas águas lodosas.
Agarrou-se com mais força aos ramos, soltando aquele grito de agonia
que Fossaro e Genoveva tinham ouvido.
O Marne transbordante arrastou a jovem e o salgueiro.
A árvore deslizava pela corrente com uma rapidez vertiginosa.
De repente parou. Dois olmeiros muito próximos um do outro, entre os
quais se arremessara como uma cunha, embaraçavam a sua doida carreira.
Sabemos o resto.

***

Lucília, sentada na praia, olhava com assustadora fixidez para o grupo,


formado em roda dela.
A mulher do doutor aproximou-se dela, pegou-lhe nas mãos úmidas,
frias como pedra, e disse-lhe com uma voz meiga e caridosa:
— Salva! balbuciou. Estou salva! E ele, ele?
— Ele quem? perguntou o médico.
— Ele... por quem eu queria dar a vida? ele que estava no chalet da ilha
Basse com aquela mulher miserável.
— De que mulher fala, minha filha?
— Não sei... Não sei nada.
E Lucília cujos olhos desvairavam de momento para momento, pôs-se a
balbuciar palavras soltas frases sem nexo.
Os espectadores desta cena olhavam uns para os outros espantados.
— Infelizmente! disse o doutor Auger, o susto paralisou-lhe o cérebro. A
pobre menina está louca!
— Pouca! repetiu a mulher do médico. Isso é verdade?
— Infelizmente não posso duvidar...
— Que resolução tomar? perguntou o conselheiro municipal.
— Mandá-la para Paris para a prefeitura, respondeu o comissário. É
desconhecida na terra... ninguém sabe quem ela é...
Então a senhora Auger exclamou com as lágrimas nos olhos:
— Transportá-la para Paris no estado em que se acha? seria cruel, e
talvez perigoso para a vida dessa pobre menina...
— Efetivamente, senhora, é muito triste, volveu o comissário, mas não
podemos escolher.
A senhora Auger não se deu por vencida. Voltou-se para o marido:
— Meu amigo, disse-lhe ela, não há falta de lugar na casa de saúde. É
preciso conduzir esta pobre menina para nossa casa, em Creteil. Quem sabe
se poderás pô-la boa?
— Eu quero o que tu queres, minha querida mulher, exclamou o doutor,
tratarei de muito boa vontade esta nova pensionista... Vamos levá-la.
— É uma resolução que lhe faz honra, senhor Auger, e que da sua parte
não me admira, exclamou o comissário, mas é preciso primeiro que tudo
levantar auto do salvamento, e revistar o fato da vítima. Talvez aí achemos
alguns indícios que nos permitam estabelecer a sua identidade.
Revistaram as algibeiras de Lucília: só encerravam um "porte-monaie"
contendo uma pequena quantia.
Fossaro, como sabemos, tivera cuidado de tirar e queimar as duas cartas
recebidas na véspera na rua Julien Lacroix.
— Nada, disse o comissário.
— Ela falou no chalet da ilha Basse... observou o doutor Auger. É talvez
onde ela morava.
— Eu julgava o chalet deserto. Contudo dirigirei as minhas
investigações para este ponto. Doutor, deixo-o. Devo ir ver pessoalmente se
posso ir mais longe tentar outros salvamentos.
— Eu vou conduzir esta menina à casa de saúde, e depois nos
tornaremos a encontrar.
— Fica entendido.
O doutor convidou Lucília a levantar-se.
A jovem quis obedecer, foi-lhe impossível conservar-se de pé; as pernas
vergavam-lhe, tornou a cair sobre o solo.
— Esta criança não está em estado de andar, meu amigo, observou a
senhora Auger, era preciso uma maça.
— Vamos improvisar uma, disse Lambert.

***

Num momento, por meio de remos e de ramos partidos, o barqueiro


formou uma espécie de maça, sobre a qual estenderam Lucília. Dois homens
encarregaram-se de a levar rapidamente à casa de saúde do doutor, onde o
triste cortejo chegou sem embaraço.
Bem depressa ali encontraremos a noiva do principezinho.
Primeiramente devemos encontrar o Barão de Fossaro, sombrio
ensaiador dos sinistros dramas que estamos contando.
Voltando para casa, na rua Provence, César achou um telegrama de
Malpertuis.
Anunciava ele o seu êxito completo, e o seu regresso para breve.
Uma das frases do telegrama, era assim concebido:
"Pensar em Marcello Aubertin."
Marcello Laugier, talvez os nossos leitores não se tenham esquecido,
tomara na Suíça este nome de Aubertin, para transviar as pesquisas de que
ele era objeto, havia seis anos, a pedido da Marquesa de la Tour-du-Roy, que
o acusava do rapto do filho.
Ainda antes de ele ter recebido o telegrama do seu sócio, Fossaro
resolvera proceder sem demora, no que dizia respeito ao ex-tenente.
Julgava-se desembaraçado de Lucília Gonthier, como já o estava da
Duquesa de Chaslin e de Antonino Frébault.
Nada urgente o detinha em Paris.
No dia seguinte partiu para Gênova, munido dos esclarecimentos os mais
precisos, os mais minuciosos, e levando um plano já esboçado.
Devemos acrescentar que já conhecia a Suíça, e explorara numa viagem
precedente, as margens pitorescas do Leman.
Hospedou-se em Genebra, num pequeno hotel muito simples, o hotel de
Ia Gare, sob o nome de Jorge Dutil, negociante parisiense, que ia fazer
compras de relojoaria e bijouteria, e tencionava visitai-as principais fábricas
da cidade e dos arredores.
Entregou o seu passaporte no escritório do hotel, tomou um quarto muito
confortável, e declarou que pagava e conservava este quarto, mesmo durante
as suas freqüentes ausências.
Depois do almoço saiu do hotel, deixou a sua bagagem, levando consigo
apenas um pequeno saco de viagem.
Alugando um trem fechado, a pretexto de passeio, fez-se conduzir para
os lados de Garouge, e valendo-se dos objetos contidos na mala, modificou a
sua aparência de modo que parecia um capitão da marinha mercante.
Um gorro de pano azul, ornado de uma âncora de ouro e de três galões,
substituiu o seu chapéu de viagem, e completou o seu disfarce.
Voltando para Genebra tomou um quarto no hotel da Coroa, apresentou
um segundo passaporte, muito em regra, no nome de Bernardo Gentil,
capitão de longo curso, e contou que. desejando estabelecer-se na Suíça com
a família, tencionava visitar as margens do lago até ao limite do cantão de
Vaud, para aí procurar uma propriedade que lhe conviesse.
Na sua opinião, esta dupla individualidade desnortearia as pesquisas
mais minuciosas da polícia.
— Desejava comprar ou alugar um barco de recreio... disse a um dos
empregados do hotel; a quem me devo dirigir para esse fim?
— Olhe, capitão, vai ao cais de Rive, ao pé da ponte.
— E depois?
— Procure por Samuel Render, construtor... Só terá a dificuldade da
escolha...
***

Fossaro dirigiu-se ao lugar indicado.


Falou com o construtor, e mediante a quantia de seis mil francos, obteve
um barquinho a vapor, munido de uma maquininha de hélice, fácil de
manobrar sem o auxilio de uma maquinista.
No dia seguinte, muito cedo, aqueceu a caldeira, e partiu só para
Varsóvia, aldeia situada a dez quilômetros de Genebra.
Chegando à foz do rio que dá o seu nome à aldeia, parou, largou ferro,
embarcou no you-you que levava a reboque, e dirigiu-se ao hotel da Balança.
Almoçou, e ao mesmo tempo que regava de vinho branco de Yvorne um,
ferra, peixe delicioso, muito apreciado pelos verdadeiros gastrônomos,
entabulou conversa com a dona cio hotel, o pediu que lhe dissesse, se por
acaso conhecia nas margens do lago um pequeno domínio que se alugasse ou
vendesse.
— Há a propriedade do senhor Monestier, respondeu a dona do hotel,
Está ausente, e quer desfazer-se dela... É vasta e está numa situação
esplêndida.
— Poderia visitá-la?
— De certo, falando com o vizinho do senhor Monestier... É quem tem
as chaves... Havia de gostar de travar conhecimento com ele... É homem
muito amável... um francês viúvo, segundo se supõe.
— Como se chama esse francês?
— O senhor Aubertin. Fossaro sorriu dissimuladamente.
— Vamos lá. pensou, tive sorte. li em voz alta acrescentou:
— O senhor Aubertin é ainda rapaz?
— Pode ter trinta e dois ou trinta três anos.
— É viúvo? disse. Vive só?
— Com o seu pequeno, criança de cinco para seis anos, linda como os
anjos. Tem também consigo duas criadas, um jardineiro, e um criado que lhe
serve de marinheiro, porque o senhor Aubertin e o pequeno estão todo o dia
no lago.
As informações ministradas pela dona do hotel eram rigorosamente
conforme com as informações contidas nos papéis do escritório Malpertuis.
A boa da mulher continuou:
— O senhor Aubertin é rico, e faz muito bem... Adoram-no na terra...
Quem quisesse fazer mal, quer ao pai, quer ao filho, sair-lhe-ia caro, afianço-
lhe...mas poderiam procurar à vontade, que não lhe encontrariam nenhum
inimigo.
O senhor de Fossaro disse hipocritamente:
— Estimaria muito entrar em relações com esse mancebo. Onde fica
situada a sua propriedade?
— Exatamente no canto do porto, e no porto verá os seus barcos... tem
verdadeiramente uma flotilha.
Levantando-se da mesa, César dirigiu-se para a casa habitada pelo ex-
tenente dos hussardos. Marcello Laugier, com seu filho Raul, o filho da
Marquesa Lazarine de la Tour-du-Roy.
Era um chalet de extraordinária elegância, situado no meio de um
jardim, do tamanho de um parque, e maravilhosamente tratado.

***

Seriam onze horas da manhã quando o suposto Bernardo Gentil tocava à


grade.
Marcello, que voltara na véspera após uma excursão de quinze dias com
Raul no Oberland, percorria os jornais acumulados durante a sua ausência na
secretária de uma grande casa que servia de gabinete de trabalho.
Este gabinete tinha duas grandes janelas que deitavam para o lago.
De repente contrairam-se-lhe as sobrancelhas, ao mesmo tempo que uma
palidez de morte se lhe espraiava no rosto.
Acabava de casualmente deparar com a notícia do suicídio do príncipe
Emmanuel de Brada, fazendo saltar os miolos no palácio da villa Montesan,
em meio da ceia oferecida por Fernando Volnay, ceia presidida pela
Marquesa de la Tour-du-Roy, amante declarada do comediante.
— Em que lodaçal se revolve a infeliz! murmurou. Oh! Raul, meu
querido filho, pertences-me, pertences-me só a mim! Não saberás nunca o
nome de tua mãe! Tua mãe nunca te encontrará! Far-te-ia talvez matar para
herdar de ti!
Neste momento a porta abriu-se, e um pequenito louro, de olhos azuis,
belo como um anjo (como dissera a dona do hotel de Balança), entrou no
gabinete com a petulância graciosa da sua idade, e saltou sobre os joelhos de
Marcello, abraçando-o de um modo sufocador.
— Meu pai, disse-lhe ele com uma voz engraçada, os nossos amigos, os
pobres, estão lá embaixo no jardim; não os tenho visto há quinze dias, e
venho perguntar-te se me deixas ir lá abaixo.
— Vai pequeno, e faze tu mesmo a distribuição novamente Marcello,
para festejar o nosso regresso, queres que eu divida entre eles as minhas
economias da viagem? Tenho trinta francos na minha algibeira, sabes?
Aumentará em mais de vinte souls o quinhão de cada um. Fico tão contente!
Dás licença, não é verdade? Dize, dás licença?
Aos olhos do ex-tenente assomou uma lágrima.
— Sim, meu querido amor, replicou ele muito comovido, sim. permito,
vai depressa.
— Como tu és bom, meu pai!
O rapazinho saiu tão depressa como entrara, e com o rosto radiante
correu à distribuição das suas esmolas.
— Coração generoso! Alma celeste! murmurou Marcello Laugier,
vendo-o afastar-se. Ah! graças a Deus, esta criança não se parece nada com a
mãe!
Em seguida desceu a fim de afugentar as suas idéias sombrias, vendo
Raul realizar os seus atos de caridade.
Um rapaz de vinte anos, alto, magro, pálido, com os olhos avermelhados,
segurando na mão um belo chapéu de feltro rodeado de um fumo, foi o
último a vir receber a sua esmola.
— És tu, Luis? disse-lhe Raul. Quando partimos, a tua mãe estava muito
doente, agora está melhor?
O Luiz não respondeu.
Com um gesto consternado apontou para o fumo.
Grossas lágrimas lhe deslizaram pelas faces.
— Morreu? Pois ela morreu, balbuciou o pequeno com tristeza. Ah!
pobre mulher! Pobre Luiz! E tu não podes ainda trabalhar? A ferida do teu
braço ainda te faz sofrer?
— Ainda, senhor Raul.
— Pois bem não te inquietes, o papai disse-me que tu eras um bom
rapaz. Prometo-te que ele terá o cuidado de evitar que passes necessidades
enquanto não te pões bom completamente, bem sabes como o papai é bom.
Quando rezares por tua mãe, não te esqueças de rezar pelo meu pai.
— Ah! exclamou o rapaz alto e magro, seria muito ingrato se deixasse de
o fazer.
E retirou-se abençoando o pai e o filho.
Marcello tornou nos braços, e apertou contra o coração Paul que
chorava.
— Que tens tu, meu querido? perguntou-lhe ele, por que choras?
— Meu pai, respondeu o pequeno, eu também já não tenho mãe. e foi
por pensar na minha mãe que chorei.

***

Um violento abalo agitou os nervos de Marcello. Lembrou-se da que


acabava de ler minutos antes.
Lembrou-se da Marquesa de la Tour-du-Roy, perdida e infamada,
desacreditada publicamente e tragando sem pudor o cálix da vergonha.
— Chora, meu filho, disse ele abraçando Raul. Tens razão de chorar.
Ouviu-se um toque de sineta, e o sineiro veio anunciar que alguém
desejava falar ao senhor Aubertin.
Ao mesmo tempo avançava César de Fossaro, com o seu traje de velho
lobo do mar.
— O importuno que o vem incomodar sou eu, senhor. Não tenha receio,
serei breve.
Marcello olhou para o recém-chegado, cujo rosto lhe desagradou. Sabia
porém que as aparências enganam muitas vezes, e respondeu com
delicadeza:
— Não me incomoda, senhor; em que lhe posso ser útil?
— É uma coisa muito simples, senhor, replicou o barão com franqueza e
jovialidade.
— Chamo-me Bernardo Gentil, ex-capitão de longo curso, fiz uma
fortuna sofrível, renuncio à navegação. Abandono as viagens, desejo
estabelecer-me na Suíça com a minha família. Varsóvia agrada-me, e a dona
do hotel da Balança, disse que eu devia dirigir-me ao senhor, para obter
autorização de visitar uma propriedade que está para vender e toca na sua.
— Essa propriedade pertence ao senhor Monestier, de quem sou amigo,
e a quem negócios importantes chamam à Áustria por tempo indeterminado,
volveu Marcello. Pediu-me que me ocupasse, e eu consenti. Vou conduzi-lo.
— Ficar-lhe-ei muito reconhecido.
O ex-tenente de hussardos chamou o criado, e deu-lhe urdem para que
fosse buscar as chaves do senhor Monestier.
Raul tinha-se afastado para ocultar as lágrimas, no momento da chegada
do visitante desconhecido.
César estremeceu à vista do rapazinho, e perguntou:
— Este encantador menino, pertence-lhe?
— Sim, senhor, respondeu Marcello com orgulho.
— Que bonita cabeça loura! Que inteligente fisionomia! Ah!
compreendo, senhor, o seu orgulho; meu jovem amigo, permita-me, que lhe
dê um beijo.
Raul olhou para o pai, e obedecendo a um sinal afirmativo, aproximou-se
de Fossaro que lhe chegou com os lábios à fronte.
Ao contato deste beijo, o pequeno estremeceu, mas sem explicar o que
sentia.
Trouxeram as chaves, os dois homens que seguiam Raul dirigiram-se à
propriedade do senhor Monestier. e visitaram-na minuciosamente.
Depois da visita, Fossaro disse:
— Se o preço for razoável, convém-me.
— O senhor Monestier encarregou,-me de pedir setenta e cinco mil
francos, compreendendo os móveis.
— Faria algum abatimento?
— Talvez.
— Não pode fazê-lo em seu lugar?
— Não posso; mas se o senhor formular alguma proposta, eu lha
transmitirei.
— E a resposta?
— A resposta vem dentro de três dias. e em caso de acordo, nada obstará
a que se ultime o negócio com o tabelião.
— Ofereço sessenta e cinco mil francos a pronto pagamento.
— Vou já escrever a Monestier.
— Procurá-lo-ei então daqui a três dias.
— Venha só daqui a quatro dias, peço-lhe, e eis a razão porque: Amanhã
de manhã vamos a Vevey, eu e meu filho, no meu yacht... Passarei em
Vevey dois dias livres. is,o é. só me retirarei na tarde do terceiro dia.
— Então viaja de noite sobre o lago? exclamou Fossaro.
— Muito à minha vontade, e com lodo o tempo.
— Então está combinado... Na manhã do quarto dia estarei aqui.

***

Depois de saírem da propriedade Monestier, passaram pelo velho porto.


Um bonito yacht de recreio, chamado o Rhône, eslava amarrado à ponte.
Na tolda estava um homem.
Fossaro reconheceu naquele homem o criado de Marcello.
Estava ocupado em içar as velas.
— Antônio, disse-lhe o ex-tenente, não ficará em atraso?
— Não, senhor... Faço secar as velas que se molharam ontem.
— Este yacht pertence-lhe? exclamou o pseudo capitão de longo curso,
— Sim, senhor, e é bem insignificante ao lado dos seus grandes navios,
mas é quanto basta a nós os marinheiros de água doce...
— Galante barco que deve correr magnificamente!...
— Aguenta-se no lago com os ventos mais fortes, que tornam o Leman
muito perigoso.
— Navega muito?
— Quase todos os dias, com meu filho... Ensino-lhe a manejar uma
escota, a ferrar uma vela.
— Foi marinheiro?
— Não, senhor, respondeu Marcello sorrindo, apenas fui barqueiro, mas
barqueiro entusiasta.
— Compreendo isso perfeitamente... Se me instado aqui, o que é
provável, hei de fazer aquisição de um yacht como o seu, e o meu prazer
maior será manobrá-lo...
— Ofereço um antegosto desse prazer... Devo ir hoje a Thonon...
Acompanhe-me... Tomará o leme, e por esta leve brisa do sul poderá avaliar
quão manejável e obediente é o barco. Às quatro horas estaremos de volta.
— Quando partiremos?
— Assim que tiver escrito a Monestier, para lhe transmitir a sua
proposta.
— Pois muito bem, aceito de boa vontade.

***

Enquanto se trocavam estas palavras, Raul silencioso, olhava para o


falso Bernardo Gentil, com uma desconfiança irrefletida.
— Meu filho, disse-lhe Marcello, vai vestir o teu fato de passeio.
— Permita-me, senhor, que o deixe só por um quarto de hora... Vou
escrever a Monestier, e transmitir-lhe os seus oferecimentos...
Faz-me a honra de me dizer o seu nome?
— Bernardo Gentil... respondeu César, ex-capitão de longo curso da
marinha francesa... Provisoriamente em Genebra, hotel da Coroa... Parece-
me desnecessário indicar-lhe referências, porque tenho tenção de pagar de
pronto.
Fossaro ficando só no jardim enquanto o ex-tenente entrava no chalet,
tirou da algibeira uma carteira, abriu-a, e tomou algumas notas à pressa.
Marcello e Raul vieram ler com ele no fim de vinte minutos, e dirigiram-
se para o velho porto.
O yacht estacionava, o escaler estava amarrado à popa, e uma canoa
tripulada por Antônio, esperava os excursionistas.
Embarcaram.
O pretendido Bernardo Gentil, examinava como entendedor a
embarcação muito baixa e deslocando muita água.
— Borda muito fraca, pensou, o menor choque arrombá-la-ia. Feita esta
observação, perguntou:
— Tem, segundo me parece, muito lastro...
— Muito, respondeu Marcello. Se naufragássemos iríamos a pique, mas
não é de recear no lago, e o lastro mantém o equilíbrio quando há mau
tempo. Largamos, capitão... tome o leme...
César de Fossaro, muito amador de todo o gênero de divertimentos, era
barqueiro muito hábil.
Demonstrou a sua habilidade dirigindo a embarcação para a barra muito
estreita do porto, com a destreza de um marinheiro consumado.
Marcello fez-lhe os seus cumprimentos. O vento refrescava.
Em menos de uma hora chegou-se a Thonon, e o regresso efetuou-se de
maneira não menos agradável e rápido.
Os dois separaram-se no cais de Varsóvia, trocando um aperto de mão. e
aprazando um encontro para dali a quatro dias.
— Meu pai, disse Raul a Marcello depois de Fossaro os deixar, como me
sinto agora satisfeito...
— Satisfeito, por quê? perguntou o ex-tenente muito embaraçado.
— Porque esse ruim homem se foi embora...
— Que significa?... perguntou Marcello com uma severidade que não
tinha por costume.
— Não te zangues, querido pai... tornou o pequeno com voz meiga...
Quando me beijou pareceu-me que os seus lábios me gelavam. Quando o
convidaste para vir no nosso yacht. tive desejos de chorar... Quando lhe
apertaste a mão, senti uma dor aqui...
E Raul indicava o lado esquerdo do peito.
— Isso é verdade, pequeno, replicou Marcello... Desconfia de repulsões
sem motivo... O capitão Gentil desagrada-te hoje, e é possível que dentro de
oito dias estejas doido por ele. Afugenta essas idéias insensatas, e vamos
para a mesa.

CXXVII - DESASTRE

Depois do jantar, Antônio, o marinheiro criado, veio receber ordens para


a excursão do dia seguinte.
— Partiremos ao meio dia em ponto, disse-lhe Marcello. e na previsão
de uma calmaria podre meterá a bordo dois pares de grandes remos, e os
competentes bancos.
— Bem. senhor.
Naquela noite, o ex-tenente dormiu mal.
Os artigos dos jornais relativos a Lazarine, e as reflexões de Paul,
povoaram de pesadelos o seu sono agitado, interrompido muitas vezes.
Voltemos a César Fossaro.
No caminho para Genebra, o suposto capitão de longo curso, examinou e
mediu a roda de proa do barco com minucioso cuidado.
— Isto é capaz de romper uma borda da grossura de cinco centímetros!
murmurou. Isto não cede!
Antes de entrar para o hotel da Coroa, comprou várias folhas de papel de
desenho de grandes dimensões, lápis e uma régua. Jantou. Depois subiu para
o seu quarto.
Fechou-se ali, e servindo-se de várias medidas tiradas da roda de proa do
seu barquito. executou um desses desenhos a lápis, a que os construtores de
máquinas e os arquitetos chamam plantas.
No dia seguinte, pela manhã, regulou as suas contas, foi a bordo do seu
vapor metamorfosear o capitão Bernardo Gentil em Jorge Dutil, viajante do
comércio de relojoaria Suíça, almoçou no hotel de Ia Gare, onde sabemos
que tinha um quarto, dirigiu-se cm seguida a um maquinista, e disse-lhe
apresentando-lhe a planta:
— O senhor pode executar-me isto à risca, no mais breve prazo?
— Em ferro forjado, senhor? perguntou o maquinista.
— Sim, e as portas salientes de vinte centímetros de aço.
— Ti o prazo?
— Posso dar-lhe para este trabalho, até esta tarde às quatro horas, mas
não mais.
— Far-se-á... Agora, outra coisa...
— O que?
— Aonde se deve ir para a colocação?
— A parte nenhuma... Entregar-me-ão aqui as peças, e eu mesmo as
colocarei...
— O senhor é construtor?
— Um pouco...
— Há de permitir, que lhe pergunte, por simples curiosidade, a que se
vai adaptar este engenho que parece, em ponto pequeno, um esporão de
navio couraçado?
Fossaro sorriu.
— É efetivamente um esporão, e destino-o a uma canoa de recreio no
Doubs.
— Vou mandar principiar já este trabalho.
— Quando lhe devo?
— Depois direi.
— Pago adiantado.
O mecânico estipulou uma quantia, e o barão contou o dinheiro.

***

A hora aprazada, a peça de serralheria eslava pronta, e de uma execução


irrepreensível.
O sócio de Malpertuis fê-la embrulhar em papel grosso, levou-a consigo,
dirigiu-se para o barquito a vapor que teve o cuidado de abastecer de carvão,
acendeu a caldeira, levantou ferro, fez-se ao largo, e passou a noite no lago.
Desde o romper do dia pôs-se a trabalhar com ardor, fixando o esporão
na proa do barco, o qual guarnecido das suas duas pontas de aço, se tornava
um instrumento de destruição temível, e despedido com toda a força contra
uma embarcação ligeira, devia forçosamente arrombá-la e fazê-la a pique.
O esporão não era seguro por nenhum parafuso.
As cavilhas de tirar e pôr que o fixavam na roda de proa não o deixavam
mover-se.
Porém, depois de um choque, o movimento de recuo do hélice devia
fazer com que ele ficasse na perfuração feita.
Pelas cinco horas da tarde, o vaporzinho tripulado por um só marinheiro
de estranha fisionomia, e falando só inglês, veio abordar a Eviau, onde o
marinheiro jantou e passou a noite.
No dia seguinte a embarcação acendeu as caldeiras, e veio cruzar nas
águas de Vevy.
Com o auxílio de um óculo de muito alcance, o marinheiro inglês
inspecionou o porto.
Exclamou em muito bom francês:
— Bem, Estou vendo o yacht de Marcello Laugier! O factótum do ex-
tenente arranja o aparelho e larga as velas. Anteciparia ele o momento de
partir? Pouco me importa. Estou pronto!

***

O dia deslizou sem trazer nenhum incidente notável e imprevisto.


Sobrevindo a noite, Fossaro largou ferro, embarcou no seu escaler e veio
rondar em volta da embarcação de Marcello. Depois de um breve exame,
murmurou:
— Tomei tem as minhas medidas; o esporão fura o yacht a dez
centímetros abaixo da linha de flutuação.
Feitas estas reflexões, foi à cidade comprar provisões, e voltou para o
barquito a vapor, onde dormiu.
Na noite do terceiro dia, o oculto fez-lhe ver Antônio embarcando
muitos fardos.
— É para esta noite... pensou o barão, — às oito horas partirá, disse-
me... às nove horas estará no grande lago... Às dez estará tudo terminado,
espero, e desembarcarei em Genebra antes da meia noite.

***

O tempo estava sombrio.


O vento soprava do nordeste, amontoando pesadas nuvens sobre as
montanhas que formam o horizonte do lago.
As águas estavam revoltas, mas a sua agitação nada oferecia de
inquietador.
Esfregou as mãos pensando que aquele ponto luminoso o guiaria nas
trevas, e não deixaria fugir-lhe a sua presa.
Às oito horas menos um quarto Marcello e o seu filho, acompanhados do
amigo, em casa do qual acabavam de passar três dias, chegavam à ponte.
Raul exclamou logo:
— Ah! papai, com está escuro!
— Efetivamente, disse o amigo do ex-tenente deitando um olhar para as
montanhas, os cumes estão cobertos de nevoeiro, o vento refresca, e torna-se
muito sério, havemos de apanhar mau tempo pelo caminho.
— Mais rapidamente iremos, retorquiu Marcello. O nosso farol nos
alumiará o caminho... Depressa estaremos em Lausanne, e de Lausanne a
Versoix levaremos vento pela popa.
Raul apertava-se contra o pai, em cuja mão pegou tremendo.
—Tens medo, meu querido? perguntou-lhe Marcello.
— Não tenho medo em rigor, mas gostaria mais que fosse dia.
Marcel pôs-se a rir, e gritou:
— Antônio!
Ouviu-se a voz do marinheiro, que respondeu:
— Por aqui, senhor. Estou perto da escada... o mar engrossa... Trocaram-
se apertos de mão cordiais.
Dali a cinco minutos, os dois homens e a criança estavam a bordo do
yacht.
— Prenda sòlidamente o escaler à popa. ordenou Marcello. mas com
uma simples laçada.
— Pronto, senhor.
— Senta-te ao pé de mim, meu filho, disse ele a Raul. O ex-tenente pôs-
se ao leme, e pegou na escota.
O pequeno assim fez.
Fossaro viu acender-se um farol, e conservar-se fixo na proa do yacht.
Passando um momento recomendou-lhe:
— Cobre-te bem, o vento está fresco.
— Não tarda que nos dê que fazer, murmurou Antônio com melancolia.
As velas foram orientadas.
O yacht deslizou.
Soou um assobio, agudo, estridente, em meio das trevas.
Marcello exclamou:
— Aí vem um vapor que se põe a caminho como nós. exclamou
Marcello.
— É um barquinho de recreio, senhor... replicou o marinheiro. Há dois
dias que está à vista... Parece que espreitava alguma coisa...
Fossaro acabava de se fazer ao largo, afastando-se do yacht. Fazia porém
caminho de conserva com ele, e não perdia de vista o farol.
O céu cada vez se tornava mais negro.
As nuvens baixas formavam sobre o lago um crepe fúnebre.
Nos desfiladeiros o vento soprava e gemia.
As ondas engrossavam.
Raul estava silencioso.
Marcello perguntou-lhe:
— Dormes, pequeno?
—Não, meu pai.
— Em que estás a pensar?
— Não sei; em muita coisa.
— Se queres desce para o camarote. Dormirás...
O pequeno chegou-se muito para o pai, respondeu com vivacidade:
— Não... não... não quero deixar-te.
Marcello abraçou-o.

***

O yacht corria com uma rapidez prodigiosa, fazendo espumar a água sob
a roda de proa.
Iam entrar no grande lago. isto é. no lugar mais largo e mais profundo do
Léman.
Naquele ponto a sonda denuncia profundidade de cento e cinqüenta
braças.
Uma ventania repentina abalou o yacht no seu cavername.
A chuva principiava a cair.
As ondas tornavam-se muito violentas.
— Eis a brisa... disse Marcello. E gritou para Antônio:
— Olha que levamos muito pano: é preciso ferrar os papa-figos
— Sim, senhor.
O pano foi ferrado.
O yacht não perdeu porém a sua velocidade vertiginosa. O vento
refrescava cada vez mais.
As vagas levantavam a embarcação que não perdia o equilíbrio. por ter
bastante lastro.
A chuva transformava-se em aguaceiro torrencial.
— Vai, pequeno, peço-te, para o camarote.
Ao longe avistavam-se as luzes de uma cidade, sobrepondo-se pela
encosta da montanha.
— É Lausanne, disse Antônio. Vamos aproveitar a corrente e o vento,
para descermos a Versoix.
— Tudo vai bem... estamos apenas molhados.

***

A tempestade tornava-se formidável.


— Senhor... senhor... gritou Antônio, cuja voz apenas se ouvia no meio
de um estrondo de ensurdecer, deixe-se cair para a term.
— Teremos mais vaga?
— É verdade, mas em caso de desgraça, estaremos mais perto da terra.
— A estibordo, senhor, a estibordo,ou daremos em cheio ruim vapor que
marcha para nós!
O pai de Raul executou a manobra indicada, e gritou com uma voz
trovejante:
— Oh! do vapor! Atenção!
Vinte braças apenas separavam as embarcações.
Marcello e o seu marinheiro repetiram:
— Atenção! atenção!
Ainda não tinham acabado de proferir este grito de alarma, quando o
vapor caiu sobre eles, batendo com a sua roda de proa na borda do yacht.
Ouviu-se um estalido sinistro.
— Miserável! uivou Marcello. Raul agarrava-se a ele.
O barqueiro, descarregando o vapor, recuava já. deixava o seu duplo
esporão no flanco do yacht arrombado.
O Barão, graças à força adquirida, continuava a sua marcha. Elevou-se
uma voz.
— Boa viagem para o outro mundo. Marcello Laugier, disse aquela voz
com rancor.
Depois, o vapor girando sobre si mesmo, desapareceu no escuro.

***

Marcello era valente.


Contudo, ao ouvir proferir aquele nome em tais circunstâncias, sentia-se
aterrado.
Aquele terror ainda aumentou, quando Antônio disse com uma voz
balbuciante:
— Vamos a pique; aquele infame patife acaba de arrombar o yacht.
Efetivamente a água subia até à tolda.
Marcello, em face do perigo, recuperou o seu sangue frio de soldado.
Saltou para o escaler e embarcou com Raul nos braços.
Em seguida chamou Antônio.
O marinheiro quis saltar, mas os pés embaraçaram-se-lhe na escota do
leme.
Caiu, e o yacht indo a pique, arrastou-o ao fundo do abismo.
O ex-tenente soltou um grito de horror, e abraçou o filho mais
estreitamente.
O escaler balouçava-se sobre a vaga como uma casca de noz sobre um
tanque agitado por cisnes.
Era preciso prever tudo.
De um minuto a outro, o frágil esquife podia e devia perecer não
deixando aos náufragos senão uma probabilidade de salvação, alcançar a
praia a nado.
Marcello despiu-se quase completamente para ter os movimentos livres,
pegou nos remos do escaler, e disse a Raul que não cessava de se agarrar a
ele:
— Não tens medo, meu filho?
— Não tenho medo, porque estou contigo, respondeu a criança. Mas
poderás salvar o pobre Antônio?
No momento em que Marcello ia responder, uma vaga furiosa desfez-se
sobre o escaler, que sossobrou voltando a quilha, mas não foi ao fundo.
— Segura-te bem a mim, gritou o ex-tenente ao filho, nadando para o
casco do frágil barquinho.
Naquele momento Raul exclamou:
— Meu pai, meu pai, uma tábua, aí... muito perto... ao teu alcance.
Esta tábua era uma do escaler, que se soltara no momento da submersão
do yacht, e que flutuava seguindo a vaga.
Marcello agarrou-a na passagem.
Ao mesmo tempo alcançou o escaler, assentou o filho em cima da
quilha, sustentando-o com um só braço ao mesmo tempo que ele se
sustentava na água com o auxilio do banco.
Agora, meu filho, disse ele, ficamos à conta de Deus! Pede-lhe que nos
proteja, porque não tenho esperança senão nele.
O pequeno pôs as mãos e orou.

XCCV III - AS CONSEQÜÊNCIAS NO NAUFRÁGIO

As ondas e o vento impeliam os náufragos para o lado da margem, mas a


distância era considerável, e Marcello sentia a fadiga e o entorpecimento
apoderarem-se dele.
Durante mais de uma hora lutou, rolando com o escaler, mas não o
largando, e agarrando sempre Raul.
No fim dessa hora, extensa como um século, em semelhante situação,
disse:
— Vamos, vamos, está tudo acabado. Deus não teve piedade de nós...
estamos perdidos! O miserável que nos mata fica seguro da impunidade!
— Coragem, pai, coragem, disse o pequeno de repente, vejo árvores
exatamente em frente de nós... olha...
Marcello achava-se no cume de uma vaga, olhou para a frente, e viu
efetivamente o vulto de grandes árvores recortando-se no céu sombrio.
Por baixo estendia-se uma praia de areia, cuja brancura sobressaía em
meio das trevas.
As ondas despedaçavam-se ali com o ruído de uma catarata, e formavam
turbilhões de escuma.
— Uma praia! é a salvação, exclamou Marcello. trepa sobre os meus
ombros, meu filho, e passa os teus braços em roda do meu pescoço.
Abandono o escaler. e vou nadar até terra.
Depois, animado pela esperança que renascia, o ex-tenente abandonando
o seu ponto de apoio, pôs-se a nadar vigorosamente.
As braçadas sucediam às braçadas, as vagas rolavam-no como o destroço
de um naufrágio, cobrindo a cada instante Raul. que balbuciava com voz
extinta:
— Meu pai, já não vejo, já não posso respirar. Marcello fez um supremo
esforço.
A onda arremessou-o à praia.
Levantou-se de um salto, atraiu-a aos braços, e apertou contra o peito a
criança, cujas mãos se soltaram. Raul soltou um suspiro.

***

Deus de bondade. Deus de justiça, exclamou Marcello caindo de joelhos.


Vós não haveis de querer arrebatar-me no momento em que eu o salvei!
O tempo tornara-se muito frio, e a brisa soprava constante. Como
aquecer aquele pobre corpinho encharcado e gelado? O pai desesperado,
relanceou em roda um olhar. A tempestade atingia ao seu termo; o céu
limpava em certos pontos; uma pálida claridade caia das estrelas.
À direita elevava-se uma montanha caprichosamente recortada.
— Estamos perto de Nyon, disse Marcello reconhecendo a forma
daquela montanha. A casa do meu amigo Lourenço Féral fica a duzentos
passos.
Deitou a correr.
Subiu a praia alcançar a estrada, ferindo os pés descalços nas asperezas
do caminho.
Não dava por isso, e no fim de cinco minutos parava em frente de uma
grade, e puxava repetidas vezes a campainha com violência.
— Abriu-se uma janela. Uma voz perguntou:
— Quem está aí?
— Sou eu. Marcello Aubertin, abra depressa.

***

Exatamente no momento em que o pai e o filho entravam na casa de


Lourenço Féreal, o senhor de Fossaro chegava à vista de Genebra.
Lançou ferro. Ein seguida pegou na mala, e mudando de fato para
novamente se transformar em Jorge Dutil, viajante do comércio, acendeu um
fogo infernal debaixo da caldeira meio vazia, saltou para a pequena
embarcação, que estava à popa, desamarrou-a, e fez força de remos para a
margem.
A chuva já não caía.
César chegou são e salvo.
Saltou em terra e empurrou com o pé a canoa, que as ondas arrastaram a
distância para os quebra-mares, onde se afundou.
Decorreram dez minutos.
O Barão imóvel e voltando para o lago, esperava. De repente, uma
explosão formidável soou a quinhentos metros ao largo.
Um facho de chamas subiu ao céu em meio de uma nuvem de fumo. e de
um chuveiro de faíscas.
Depois mais nada.
A caldeira, aquecida em excesso, acabava de rebentar, deslocando o
barquito, e fazendo-o ir a pique, como fizera ir o yacht de Marcello Laugier.
Fossaro esfregou as mãos.
Dirigindo-se sossegadamente para o hotel da Gare, recebeu a chave e a
vela no cubículo do porteiro, subiu ao seu quarto, deitou-se e adormeceu
profundamente, como homem sem remorsos na consciência.
Levantando-se às dez horas, almoçou, acendeu um charuto e dirigiu-se
para o lago.
O céu estava admiravelmente puro, mas o vento soprava com uma
intensidade de mau agouro, e os bons genebreses, habituados a estes ventos
do norte, agasalhavam-se muito bem e diziam consigo:
— Temos para oito dias!
Fossaro julgava-se absolutamente seguro de que o yacht soçobrara,
arrastando aos abismos Marcello, seu filho, e o criado que os acompanhava.
Queria porém que o rumor público confirmasse a sua certeza.
Dirigiu-se ao caminho de ferro, e tomou um bilhete para Versoix.
O comboio chegava à estação que precedia Versoix, no momento em que
ia partir outro comboio que vinha do lado oposto com direção a Genebra.
Maquinalmente, o Barão meteu a cabeça pela portinhola.
Retirou-a porém no mesmo instante pálido de terror.
Acabava de avistar num compartimento de primeira classe, o ex-tenente
de hussardos, cuja morte, um minuto antes, ele firmara!
— Será ele? perguntou César, ele vivo! Ou serei ludibrio de uma
semelhança? Como conseguiu ele sair do abismo? Que foi feito do filho?
O comboio tornava a pôr-se em marcha.
— Hei de saber o que se passa! continuou mentalmente Fossaro.
Ninguém reconhecerá no comerciante Jorge Dutil, o capitão Bernardo
Gentil, em que ninguém deve ter reparado.
Saltou para a gare, entrou num café. mandou vir um copo de absinto, e
não querendo correr o risco de se comprometer com perguntas, esperou.

***

Porque é que Marcello se achava só no caminho de ferro e a caminho de


Genebra
Vamos dizê-lo em poucas palavras aos nossos leitores.
Retrocedamos algumas horas.
Lourenço Féreal, assim que pai e filho transpuseram a porta da sua
habitação, falou em despertar uma criada, mandar buscar um médico, de que
Raul parecia ter grande necessidade, por continuar desmaiado.
Marcello deteve-o com estas palavras:
— Ninguém deve saber que meu filho está aqui! É de uma importância
capital...
O amigo a quem se dirigia, olhou para ele espantado. O ex-tenente, ao
ver aquele assombro, exclamou:
— Admira-se!
— De certo.
— Tenha um pouco de paciência... Assim que o pequeno estiver quente e
reanimado, dar-lhe-ei a explicação do enigma...
Dali a cinco minutos, Raul volvia a si num bom leito, murmurava
algumas palavras indistintas, e adormecia com um sono reparador.
Marcello vestiu um fato de Lourenço, e bebeu um grande copo de
aguardente antiga.
Apesar de prostrado de fadiga, sentiu renascerem-lhe as forças.
— Espera a explicação prometida? disse ele ao amigo. É muito simples...
O naufrágio desta noite é resultado de um crime...
— Um crime! repetiu Lourenço Féral espantado.
— Avalie...
O pai de Raul contou o drama terrível a que o lago servira de teatro, e
que os nossos leitores conhecem.
— Então? perguntou.
— Tem razão... Há crime?
— O que supõe?
—O homem do barquinho a vapor queria matá-lo.
— Queria a minha vida. de certo, mas queria ainda mais a de Raul.
— Que supõe então?
— Como é que não adivinha, o senhor, a quem confiei o segredo do meu
passado? O assassino desta noite, o homem que me gritou o meu verdadeiro
nome no momento em que me achava irremediavelmente perdido, é um
bandido por conta da Marquesa de la Tour-du-Roy.
— Pois a Marquesa havia de fazer matar o filho!... exclamou Lourenço
Féral com horror.
— Afirmo-o.
— Por quê?
— Para herdar dele...
— Julga-a capaz de tão monstruosa infâmia?
— Julgo-a capaz de tudo.
— Custa a crer!
— Se até quis queimar-me em vida, unicamente para se desembaraçar de
mim... Pôde muito bem afogar o filho, cuja fortuna, hoje mais que nunca, se
lhe torna necessária...
— Mas as provas?
— Tê-las-ei.
— Para fazer condenar esse miserável?
— Não, mas piara ter o direito de realizar um plano que concebi
— Espera tornar a encontrar o homem?
— Senão ele, pelo menos um espião que se apresentou em minha casa há
três dias, e que,tenho disso a certeza, procedia por conta dele. Não se
denunciarão um ao outro.
Marcello referiu a visita de Bernardo Gentil, dizendo-se capitão de longo
curso, e continuou:
— Este homem, convencido de que eu estou morto e mais meu filho,
também espera que a notoriedade pública permita tirarem-se as certidões de
óbito de que a Marquesa tem precisão para ser livre e para ser rica. Pelo
menos há de ter uma certidão.
— Qua delas? perguntou Lourenço Féral com dobrado assombro.
— A de Raul, que lhe permitirá pôr mão na fortuna cobiçada, e não
tornar a tentar contra a criança. Por isso importa ocultar de todos a presença
de Raul nesta casa.
— Raul morreu, Raul pereceu no naufrágio do yacht, ao mesmo tempo
que o meu marinheiro. Só eu me pude salvar! Tal é a declaração que farei
amanhã.
— Não esqueça que uma declaração falsa é crime previsto e punido por
lei!
— Que me importa? Se é um crime,o motivo que o originou desculpa-o
e habilita-o! Há muito que eu procurava meio de meu filho ser
exclusivamente meu. O acaso dá-me, e aproveito o acaso.
— Mas Raul ficará sendo um bastardo, uma criança sem nome?
— Adotá-lo-ei, e dar-lhe-ei o meu nome... Amanhã farei constar que
Raul pereceu... Porei luto no chapéu... Tomarei uma fisionomia
consternada... Deixarei Versoix, e refugiar-me-ei num retiro que o senhor
com a sua boa amizade poderá encontrar para mim. e onde viverei feliz junto
de meu filho...
— Esse retiro está achado.
— Onde?
— Próximo de Bale... nas margens do Rheno... Tenho ali uma pequena
propriedade que ponho à sua disposição.
— Quando poderemos partir?
— Amanhã à noite. Já, se quiser. Acompanhá-lo-ei até Bale para se
instalar... Uma vez Raul posto ao abrigo, virá a Versoix buscar tudo o que
lhe for necessário. Farei afastar os criados para levar o pequeno, e irei
esperar pelo senhor no hotel do Caminho de ferro, donde partiremos juntos...
— Aceito, e de muito boa vontade! Os dois deram um aperto de mão.

***

No momento em que Fossaro o vira passar, Marcello dirigia-se para


Genebra, ao hotel da Coroa, para esclarecer as suas dúvidas a respeito
daquele que fora a sua casa sob um fútil pretexto, e a quem considerava
como um espião pago por Lazarine.
Entrou no hotel e perguntou:
— O senhor Bernardo Gentil?
— Bernardo Gentil! repetiu o empregado.
— Sim, um capitão de longo curso.
— Bem sei, bem sei.,.um antigo marinheiro... um belo homem, mas que
tinha só um olho.
— Isso... Queria falar-lhe... Estará em casa? O empregado folheou um
registro, e respondeu:
— Retirou-se há três dias, senhor...
— Tem a certeza disso? exclamou Marcello, muito atordoado com a
notícia.
— Toda a certeza. Só cá ficou duas noites.
— E para onde foi, sabe?
— Não disse nada, mas há todos os motivos para crer que se retirou para
França.
— Muito bem, senhor, agradeço-lhe...
E deveras desapontado, Marcello afastou-se.

CXXIX - CONTINUAÇÃO

A súbita retirada do suposto capitão de longo curso, tornava em certeza


as suposições de Marcello.
Em lugar de vir buscar a resposta relativa à aquisição da propriedade
Monestier, Bernardo Gentil deixara Genebra. Portanto, era efetivamente
espião e cúmplice do assassino. Seria por conseguinte inútil procurá-lo por
mais tempo.
O ex-tenente dirigiu-se a casa do seu banqueiro, ajustou contas, e tomou
o comboio para Versoix.
Ali estava tudo em movimento e agitação.
Acabavam de apanhar, trazidos pelas ondas que a brisa ainda agitava,
cabos, bancos, reinos, mostrando até à evidência que se dera um sinistro no
lago.
Ora, remos e bancos tinham marcados a ferro em brasa o nome de
Marcello Aubertin e o nome do yacht Rhone.
Teriam pois perecido o senhor Aubertin e o seu marinheiro?
Infelizmente parecia a coisa muito provável.
A multidão assustada, correu a casa para se informar.
O jardineiro e as criadas não sabiam nada, senão que seu amo estava em
Vevey havia três dias, na companhia de Raul e de Antônio, e devia fazer-se
de vela na véspera à noite.para regressar a Versoix.
— Então pereceram com toda a certeza! exclamou o "maire", amigo
particular do senhor Aubertin.
As lágrimas deslizaram de todos os olhos: os soluços rebentaram.
Naquele momento apareceu Marcello. lívido. e com o rosto transtornado.
Ouviram-se exclamações de alegria.
Todas as mãos estendidas quiseram apertar a sua.
— Chorem! chorem! exclamou ele com uma vez abafada. Estou vivo,
mas Raul morreu, e o bom serviçal que nos acompanhava, seguiu-o ao
abismo.
As lágrimas rebentaram novamente, os soluços aumentaram.
Adoravam Raul, como já dissemos, e o Antônio era filho daquela terra.
Marcello entrou em casa na companhia do "maire".
A multidão afastou-se, silenciosa, consternada.
George Dutil, ou antes o Barão de Fossaro. confundido com a multidão,
ouvira o que precede, e dizia consigo:
— Pouco importa que Marcello Laugier escapasse por milagre! A
Marquesa de la Tour-du-Roy não tem nada agora a recear dele. O ponto
principal era herdar, e ela herda. O "maire" e o ex-hussardo vão com certeza
tirar o auto mortuário do pequeno Raul. É quanto precisamos. Depressa
saberei o que devo pensar...
E voltou para a aldeia.

***

Sigamos o "maire" e Marcello ao gabinete deste último.


Instado pelo amigo, Marcello contou a catástrofe,mas teve todo o
cuidado de não lhe dar por causa uma abordagem premeditada, porque a
violência da tempestade justificava plenamente o naufrágio.
O yacht fora a pique, ao largo do grande lago, quase na altura de Nyon.
O ex-tenente representando com um grande talento o papel que a si
próprio se impusera, cortou de lágrimas a sua lúgubre narrativa, que teve de
interromper por mais de uma vez, sufocado por uma fingida comoção.
— Agora, meu amigo, disse-lhe depois de um momento de silêncio,
quando concluiu, resta-lhe uma tarefa dolorosa a cumprir, a de levantar o
auto do meu amado Raul, mas primeiro devo fazer-lhe uma confidencia, ou
antes uma confissão...
— Uma confidencia! Uma confissão! repetiu o "maire".
— Sim, e a sua surpresa será profunda.
Marcello abriu uma das gavetas da sua secretária, pegou nuns papéis e
continuou:
— Raul não era meu filho, segundo a lei pelo menos.
O "maire" fez um gesto de assombro.
Marcello prosseguiu.
— Pouco depois do seu nascimento arrebatei-o a uma mãe indigna.
Queria fazer dele um homem! Segundo o axioma legal: Is patre est que
nnuptia demonstrant, é o filho póstumo e legítimo de um grande fidalgo, o
Marquês de la Tour-du-Roy. É uma história sombria que desperta em mim
terrível recordações. Amava Raul do fundo da alma. Era na verdade o meu
sangue que lhe corria nas veias, e nunca me refarei do golpe que esta noite
me feriu.
Marcello ocultou durante alguns segundos o rosto nas mãos. Em seguida
ergueu a fronte, limpou os olhos, e tornou, apresentando um papel selado ao
"maire":
— Eis a certidão de nascimento da pobre criança, que não tornarei a ver!
— Coragem, meu amigo!
— Não tenho... Concentrara em Raul todas as minhas afeições e todas as
esperanças... Quero ir ter com ele, depressa irei ter com ele...
— Tenha ânimo!... Compreendo o seu sofrimento e partilho-o. mas não
lhe ficava próprio deixar-se abater!... Lute contra o pesar... Procure
distrações... Viage...
— É o que vou fazer... Sairei de Versoix e só voltarei dentro de alguns
dias... Tem precisão de mim para a confirmação do óbito?
— Não... Infelizmente a morte de Raul não pôde ser posta em dúvida,
como não o pôde ser a do pobre Antônio...
— No meu regresso tirarei na "maire" um extrato mortuário, e fazê-lo-ei
chegar às mãos da Marquesa de la Tour-du-Roy...

***

Dali a uma hora Marcello Laugier partia para Nyon, com uma mala cheia
de roupa e de fato, e reunia-se no hotel da Gare a Raul e a Lourenço Féral.
César de Fossaro pusera-se de observação num café próximo da "mairie"
onde não tardou que visse o oficial do estado civil, seguido de um
personagem de cabelos compridos e lisos que um dos fregueses designou
como sendo o mestre escola, fazendo as vezes de secretário do conselho.
— Vão lavrar o auto... pensou o barão. E tornou a partir para Genebra.
Dali a três dias voltava para Varsóvia.
Depois de se certificar da ausência de Marcello Aubertin, dirigiu-se à
"mairie" e pediu uma certidão do filho do Marquês, Roberto de Tour-du-Roy
e de Lazarine Leroux, viúva do Marquês.
Munido desta certidão, César voltava para Paris onde Malpertuis, tendo
chegado na véspera, aguardava impaciente.
Pôs o seu sócio ao fato do que se passara.
Malpertuis apesar de no fundo sentir sérias apreensões cumprimentou-o
com entusiasmo a respeito dos resultados obtidos.
— Temos em nosso poder toda a fortuna de Lucilia Gonthier e a
Marquesa de la Tour-du-Roy vai cumprir o seu contrato... atreveu-se em
seguida a dizer. Portanto estamos já hoje ricos... Não te parecia prudente
parar?
César encolheu os ombros.
— E havemos de abandonar os milhões do Príncipe Heitor, os milhões
do Duque de Chaslin, os milhões de Maria de Vergis e de Arnaldo de Trois
Monts! exclamou. Estás doido? Iremos até ao fim... Primeiro a Marquesa de
la Tour-du-Roy.
— Apenas está comprometida por um milhão...
— Eu encarrego-me de lhe fazer triplicar a quantia... Nesta ocasião deve
ela debater-se em meio de grandes dificuldades de dinheiro.
— Por quê?
— Como um filho de família namorado de uma dançarina, assinará tudo
quanto quiserem para receber de uma só vez uma grande quantia... Talvez
lhe compremos as propriedades da Tour-du-Roy. para onde iremos viver
como grandes fidalgos...
— E Branca?
— De hoje em diante ocupar-me-ei dela, mas estou sossegado a seu
respeito. Sempre é do meu sangue!

***

Três dias depois da sua instalação em Passy, a falsa Adriana de Lasseny,


cujo amor a Rogério de Chaslin ia aumentando, resolvera-se a recebê-lo.
Apenas, porém, para que no seu procedimento não houvesse motivos de
suspeitas, escrevera, não ao filho, mas ao pai, fazendo-lhe saber para onde se
retirara.
Henrique de Chaslin, a quem a separação e a inquietação atormentavam,
sentiu-se reviver, ao receber aquela carta, e naquele mesmo dia dirigiu-se ao
"boulevard" Flandrin.
Branca que esperava aquela visita, mandou responder que tinha saído.
No dia seguinte, escreveu nova carta ao velho Duque, para lhe dizer que
tendo a sua fama em mais estima que nenhuma outra coisa, só o receberia
acompanhado do filho e do senhor de Logeryl.
O senhor de Chaslin conhecia a vontade inflexível de Adriana.
Teve de se submeter.
Apresentou-se portanto com Rogério e com o substituto.
Abriram-lhe a porta.
O senhor de Logeryl tendo sabido por Daniel Gaillet que uma carta da
menina de Lasseny havia sido dirigida para o palácio de Chaslin, achou logo
a remessa suspeita. Mas vendo que o Duque não fazia mistério da carta,
tranqüilizou-se e disse ao inspetor da segurança que cessasse
momentaneamente uma vigilância que dava resultados negativos, pois que a
ex-donzela de companhia da Duquesa Joana, vivia numa solidão absoluta.
Daquele dia em diante,os três homens tornaram-se assíduos visitantes, e
passavam no boulevard Flandrin quase todas as noites.
Sabemos que sentimentos ali levavam o pai e o filho.
O motivo da assiduidade do senhor de Logeryl era diferente.
Depois das dúvidas despertadas no seu espírito pelas palavras de Helena,
o jovem magistrado estudava sem cessar o tio e o primo.
Daquele estudo resultava para ele a convicção de que ambos nutriam
pela menina de Lasseny uma profunda paixão.
Às vezes perguntava a si próprio se o amor do Duque, com certeza
anterior à morte da Duquesa, não dava um terrível cunho de verossimilhança
às terríveis suspeitas da menina de Chaslin.
Não se atrevia a responder.
Ao mesmo tempo uma outra pergunta se oferecia ao seu espírito.
Em que viria a dar aquele amor do pai e do filho pela mesma mulher, e
que tempestade rebentaria no dia em mie os dois homens soubessem da sua
rivalidade?
Este segundo enigma ficava não menos insolúvel que o primeiro.
Como a falsa Adriana falasse de Helena a Rogério, afirmando que ela
estimaria muito vê-la, o mancebo balbuciara, não sem manifesto embaraço,
que o luto tão recente não lhe permitia nem sair, nem receber visitas.
Branca mostrou nos lábios um sorriso de indizível amargura, e não
insistiu.
Quanto mais vezes Rogério via a feiticeira, mas tímido o tornava a
sinceridade da sua paixão.
Não se atrevera a falar-lhe do seu amor, de mais a ocasião faltava-me.
A filha de Pedro Carnot esperava ansiosamente uma confissão, mas
obedecendo às exigências do seu papel, não queria provocá-la,
O Duque por muitas vezes tentara volver ao passado.
Branca como sabia que ele era incapaz de se conter, assim que encetava
este perigoso assunto, não deixava de o interromper logo às primeiras
palavras.
O senhor de Logeryl, frio observador, não podia deixar de confessar que
a atitude e o procedimento da menina de Lasseny eram absolutamente
corretos.
Helena não ignorava as freqüentes visitas do pai, do irmão, e do noivo,
ao boulevard Flandrin.
Ela estimava que assim sucedesse, convencida de que de um momento
para o outro a intrigante esquecer-se-ia de pôr a máscara, e ao menos por um
segundo, deixaria ver o seu verdadeiro rosto.
Inabalável nas suas convicções, esperava que fosse possível interrogar
Mariana convencida de fazer brecha na incredulidade do senhor de Logeryl.
A criada fiel, apesar de sempre de cama, estava em via de
restabelecimento, e não tardaria a recuperar as forças.
Poder-se-ia então tentar arrancar-lhe o segredo de que Helena só
conhecia metade.
Eis em que ponto estavam as coisas no momento em que o senhor de
Fossaro voltava de Genebra trazendo a certidão de óbito do filho de Marcel
Laugier, ou antes do jovem Marquês Raul de la Tour-du-Roy.

***

Eram nove horas da noite.


O Duque Rogério e o senhor de Logeryl achavam-se reunidos no
boulevard, no salão que deitava para a estufa, e que ficava separado de um
boudoir muito pequeno, por um reposteiro de tapeçaria.
Branca preparou o chá que ia oferecer às suas visitas.
Henrique de Chaslin viera naquela noite com a idéia fixa de obter uma
explicação decisiva, e esperava o momento de alcançar um tête-a-tête.
Rogério também louco de amor, resolvera dominar a própria timidez, e
declarar à menina de Lasseny os sentimentos que por ela nutria, e pedir-lhe,
que aceitasse o seu nome.
A criada de quarto entrou na sala.
— Que quer? perguntou-lhe Branca.
— Menina, respondeu a camareira, acabam de bater à porta que deita
para a rua Thery, e não tenho chave.
A falsa Adriana designou com um gesto uma das jarras colocadas em
cima do fogão, e replicou:
— Tire a chave que está na jarra da esquerda, e depois torne a trazê-la.
Passados três minutos a criada de quarto apareceu novamente, trazendo a
chave que tornou a pôr no lugar donde a tirara.
— Quem tocava? interrogou Branca.
— Um desconhecido que se enganava na porta.

CXXX - AMOR E VIOLÊNCIA

Um pouco depois das dez horas, Henrique de Chaslin, muito pálido e


com um fulgor sombrio nos olhos. levantou-se repentinamente, e pegou no
chapéu que estava em cima da mesa ao pé dele.
Branca disse-lhe com uma gentileza felina:
— Espero, senhor Duque, que não se lembrará de nos deixar.
O ancião replicou:
— Desculpe, minha senhora, mas estou um pouco incomodado, e volto
para casa.
— Quer que o acompanhe, meu pai, perguntou Rogério movido de mu
sentimento filial.
— Recuso absolutamente... A minha doença não tem gravidade...
Amanhã, pela manhã, já não se tratará disso... O mancebo teve todo o
cuidado em não insistir.
O senhor de Chaslin deu um aperto de mão ao filho e ao sobrinho, e
apertou também as mãos de Branca.
A jovem acompanhou-o até à porta da sala.
A criada de quarto esperava-o no vestíbulo.
O duque aproximou-se dela com vivacidade, apresentou-lhe alguns
bilhetes de banco e disse-lhe em voz baixa:
— Aqui estão cinco mil francos... Vou sair para mandar o trem embora,
depois voltarei em segredo, e ocultar-me-á até ao momento em que a sua
ama estiver só. Se a menina Lasseny a mandar embora por me haver servido,
receberá dez mil francos.

***

Dez mil francos em perspectiva, e cinco mil já recebidos!


Não era preciso tanto para comprar a consciência da camareira, e a
própria camareira ainda por cima.
A sua resposta foi um sinal de adesão.
Henrique de Chaslin saiu.
Falou com o cocheiro, e deu-lhe ordem para o ir esperar no ângulo do
boulevard Flandrin, e na avenida de Eylau; depois quando o trem partiu,
introduziu-se na pequena residência.
Havia uma copa, dependente da sala de jantar, que também comunicava
com a sala por meio de duas grandes portas.
Às onze horas o senhor de Logeryl e o primo despediram-se por seu
turno da falsa Adriana.
Enquanto esta reconduzia o Duque, Rogério, encostando-se ao fogão,
apoderara-se da chave que abria a porta da rua Thery.
Branca acompanhou os dois mancebos mais longe do que tinha
acompanhado o velho fidalgo.
Em pé na plataforma da escadaria, cujos degraus iam ter ao boulevard
Flandrin, viu-os subir juntos para a carruagem do substituto.
De cabeça baixa, com os olhos afogados em lágrimas, murmurou
voltando para a sala:
— Quando será que ele dirá: Amo-a!
Levantou o reposteiro de tapeçaria para entrar no gabinete de vestir, a
fim de apagar as luzes, e ficou estupefata vendo diante de si Henrique de
Chaslin, que estendia para ela as mãos suplicantes.
Branca ficou deveras assombrada:
— O senhor Duque! balbuciou. Como é que está aqui?
— Pouco importa corno, respondeu o ancião. O importante é estar.
— Não pode aqui ficar mais tempo.
— Não me irei embora enquanto não me ouvir. — Que me quer?
— Bem sabe o que quero? É a primeira vez depois que saiu do palácio,
que me vejo a sós com a senhora. É a primeira vez que lhe posso falar
livremente. Escute-me então e responda-me! Amo-a com uma paixão que
aumenta de hora para hora, requeimando-me o sangue, gastando-me a vida!
Quando lhe confessei o meu amor, existia entre nós um obstáculo, separava-
nos uma barreira. A senhora permitiu-me que tivesse esperanças. Tive de me
contentar com isso. Hoje o obstáculo já não existe. Está suprimida a barreira.
Cumpra o compromisso contraído. Lembre-se de mim!
Branca exclamou desdenhosamente:
— Sua amante!
— Minha mulher! É o título de Duquesa e o nome de Chaslin que
deponho a seus pés. Aceita?
— Recuso.
Henrique vacilou como fulminado.
— Recusa! exclamou estupefato. Pois recusa ser Duquesa?
— Sem hesitar.
— Mas por quê?
— Porque tenho no coração o luto daquela que já não existe, e que o
senhor esquece muito depressa! A minha dor é sincera, e a sua mentirosa! O
meu orgulho, excitado pelas nossas diligências, fizera-me perder a cabeça.
Compreendo agora e arrependo-me. Permitindo-lhe a esperança, como o
dizia há pouco, cometi uma ação odiosa e criminosa! Ao ouvir as suas
palavras de amor adúltero, ofendia gravemente a duquesa viva. Não
ofenderei gravemente a Duquesa morta tomando o seu lugar. Não serei
nunca sua mulher.
— Nunca! repeliu o senhor de Chaslin com voz extinta.
— Nunca!
E deixou-se cair numa cadeira com os olhos espantados, a face lívida, e
escondeu o rosto nas mãos.
— Ah! tartamudeou passado um instante, a senhora mata-me.
Branca não respondeu.
Após um novo silêncio o velho tornou, mostrando o rosto transtornado,
assustado, de um homem agonizante.
— Tenha dó de mim... Engana-me... Deixe-me crer que talvez um dia,
mais tarde... comovida com o excesso dos meus sofrimentos, cessará de ser
implacável, e aceitará o que hoje recusa...
— Nunca! exclamou a falsa Adriana pela terceira vez.
O senhor de Chaslin deitou a Branca um olhar de uma expressão
estranha, o olhar de um infeliz cão condenado que de corda no pescoço
pedisse perdão ao dono estimado.
A jovem voltou a cabeça.
O Duque compreendeu então que a decisão era irrevogável.
— Que castigo! balbuciou, que castigo!
Levantou-se hirto, e dirigiu-se com um passo automático para a porta,
saiu da sala, depois do palácio, e desapareceu nas trevas pouco menos densas
do boulevard Flandrin.
Depois dele se retirar, Branca sentou-se exatamente no lugar que ele
acabava de deixar, e mergulhou numa meditação profunda, cuja natureza
parece supérfluo indicar.
O senhor de Logeryl morava na rua de Varenne.
Depois de ter conduzido o primo até ao arrabalde Saint-Honoré fez-se
conduzir para casa.
Rogério esperou que o trem se afastasse.
Em lugar de tocar à porta do palácio, voltou para trás, dirigiu-se para o
boulevard, tomou um trem e disse ao cocheiro:
— Avenida d'Eylau, no recanto da rua Dufresnoy,
Meia hora depois apeava-se, e com o coração agitado por uma
perturbação desconhecida, dirigiu-se rapidamente para a rua Théry, onde
ficava a porta, cuja chave sabemos que ele tinha na algibeira.
— Assiste-me porventura o direito de proceder por esta forma?
perguntou. O meu procedimento será o de um cavalheiro? Por que não? A
sinceridade do meu amor não será a desculpa de uma tão louca resolução?
Amo Adriana no fundo dalma, e quero que ela seja minha mulher. Se a
comprometer, restituir-lhe-ei a honra.

***

No momento em que o trem que acabava de trazer Rogério de Chaslin à


rua Dufresnoy parava no lugar indicado, chegava um homem à rua Thery, à
porta do pequeno jardim de Branca.
Aquele homem, cujo único olho brilhava de noite como o dos gatos, era
César de Fossaro, ou antes Pedro Redon, o cego de um olho.
Tirou do bolso uma chave, introduziu-a na fechadura, fê-la girar nos
lemes com infinitas precauções, entrou, fechou-a após si, e parou de olho à
espreita.
Dentro e fora reinava profundo silêncio.
O sócio de Malpertuis avançou até ao pé da estufa que formava um
anexo do rés-do-chão, e cuja porta de vidraça nunca era fechada à chave.
Através daquela vidraça César via distintamente o interior da sala
iluminado pelas velas de dois candelabros.
A princípio aquela sala pareceu-lhe deserta.
— Ninguém! murmurou. Onde está, então Branca Se ela se retirou para
o seu quarto, coisa possível àquela hora, pois que não me espera, por que são
aquelas luzes?
Mais atento exame, fez-lhe ver a jovem sentada, ou antes estendida numa
chaise-longue, com a cabeça caída para trás, e o olhar perdido no vago.
— Que atitude prostrada! pensou Fossaro. Não dorme... pensa... Em que
pensa?
Após um momento de meditação, acrescentou: — Vou saber.
E estendeu a mão para o botão de cobre polido. Não concluiu porém o
gesto principiado, e estremecendo de súbito, pôs novamente o ouvido à
escuta.

***

Detrás do muro do jardim ouviu-se um passo rápido.


O passo parou em frente da porta.
Na fechadura rangeu uma chave, e a porta girou sobre os gonzos.
O cego de um olho exclamou com um frêmito de inquietação:
— Alguém entra aqui! que significa isto? quem virá aqui? Seria o
Duque?
Ocultou-se detrás de um maciço de plantas de ramagem perene.
Agachando-se quase sobre o solo úmido, esperou. Foi breve a sua
expectativa.
Um vulto de mulher jovem e flexível passou rapidamente por diante
dele, abriu a estufa no bico dos pés, e dirigiu-se para a sala. O recém-
chegado não era o Duque. Fossaro cerrou os punhos enraivecido.
— O que é isto? perguntou. A infame terá um amante?
O visitante noturno subiu os três degraus, que da estufa conduzia à sala.
Apesar de andar muito levemente, Branca arrancada à sua meditação por
um inesperado ruído, ergueu os olhos.
Reconhecendo Rogério, soltou um grito de alegria, que o mancebo
tomou por um grito de terror.
Por isso Rogério exclamou com uma voz apenas distinta.
— Oh! perdoe-me! Não chame ninguém! Não me expulse. Não tem nada
a recear, bem sabe... Por que é que havia de ter medo?
— Não tenho medo... respondeu Branca.
Vendo o seu sonho realizado, readquiriu a presença de espírito, e queria
ficar senhora da situação.
— Não teimo medo, continuou, porque tenho a certeza de impor
respeito, mas o meu espanto não tem limites. Por onde foi que entrou aqui?
— Pela porta do jardim.
— Quem lha abriu?
— Ninguém... ocultei a chave e voltei.
— Por quê? não acabava de sair de junto de mim?
— Porque a senhora nunca me recebe só. e eu queria ;t todo o custo estar
a sós com a senhora.
— Que tem a dizer-me?
Rogério apelou para a sua coragem desfalecida, e respondeu:
— Tenho a dizer-lhe que a amo.
Branca sentiu o coração bater-lhe com força desesperadora. Estava
finalmente proferida a palavra esperada por tanto tempo.
— O senhor... balbuciou ela.
— Pois ignorava? retorquiu o mancebo. Um simples olhar que lhe deitei
tornou-me seu escravo. Entreguei-me completamente à senhora quando a vi
chorar junto do leito onde minha mãe acabava de morrer. Adriana tenho
direito de lhe falar assim. Não estamos nós ligados um ao outro pela vontade
suprema daquela a quem ambos amávamos?
— Cale-se! cale-se! exclamo Branca com um terror que não era fingido.
A recordação de Joana de Chaslin assassinada por ela, aterrava-a.
Rogério continuou:
O desejo supremo da minha mãe, como não pode ter esquecido, era
chamar-lhe sua filha.
A falsa Adriana tornou-se pálida e pôs-se a tremer.
O fantasma vingador da Duquesa, evocado pelo filho, erguia-se diante
dos seus olhos.
— Ah! tornou, não me fale de sua mãe.
— Por quê?
— Repito, cale-se.
— Do alto do céu ela está a ver-nos, espera por nós. e suplico-lhe que
advogue a minha causa. Pense em minha mãe. Adriana, e amar-me-á.
Cedendo a um impulso, irresistível, Branca murmurou:
— Para que se há de advogar essa causa? Ela está gasta de antemão...
— Adriana... Adriana... exclamou Rogério agarrando nas mãos da jovem
que teve um calafrio por todo o corpo, compreendi bem as suas palavras,
amar-me-á?
— Sim, respondeu a sereia, não resistindo aos braços que a enlaçavam,
amo-o.
O zarolho aproximara-se durante a conversa precedente, e oculto detrás
do reposteiro, escutava.
Nenhuma frase poderia pintar a expressão sinistra do seu rosto, e o brilho
fulgurante do seu olho único.
Rogério puxara Branca, e estreitava-a contra o peito.
— Adriana, oh! minha adorada! exclamou. Torne a dizer-me essas
palavras embriagadoras, essas palavras que transformam a terra num céu.
Repita-me que me ama...
— Amo-o... repetiu a jovem. Amo-o, Rogério... amo-o!

CXXXI - IDÍLIO E VIOLÊNCIA

Rogério chegou os lábios aos cabelinhos soltos, de um ouro pálido, que


estremeciam na nuca de Branca.
Foi tão viva a sensação produzida por aquele beijo, que a filha de Pedro
Carnot sentiu faltarem-lhe as forças.
Teve medo de si mesma, vendo-se meio desfalecida e sem forças para a
resistência, nos braços de Rogério, ébrio de amor.
Procurando desprender-se, balbuciou:
— Não me faça arrepender de uma imprudente confissão. Deixe-me!
O mancebo, em vez de obedecer, estreitou mais o seu amplexo.
— Que pode recear sobre o meu coração! perguntou. Bem sabe que será
minha mulher...
Fossaro fez um gesto de cólera.
— Adriana, duvida de mim? continuou Rogério.
— Não! oh! não, não duvido! exclamou Branca com voz moribunda. É
leal, e tenho a certeza do que ama. Proteja-me.
— Contra quem?
— Contra mim mesma. Nos seus braços a minha razão desvaira. Bem vê
que enlouqueço. Não me obrigue a corar amanhã, na sua presença, peço-lhe!
Por favor, por piedade, deixe-me digna do nome que me oferece, e que eu
recusaria, juro-lhe, se devesse manchá-lo aceitando-o. Deixe-me...
— Exige-o?
— Não exijo, imploro de joelhos... A maior prova de amor que neste
momento me pode dar, é afastar-se.
— É cruel!
— Não sou, sou digna e prudente.
— Bem, obedeço... Obedeço levando a esperança, ou antes a certeza de
uma próxima felicidade... Voltarei amanhã...
— Sim, amanhã.
— E será dentro em pouco minha, só minha, será a minha mulher
idolatrada, a minha amante sedutora.
— Sim, dentro em pouco.
— Dê-me pois um beijo... um só... e retiro-me. Se me demorasse mais,
não partiria nunca...
Rogério inclinou-se para Branca, que lhe oferecia os lábios. Sob a chama
daquele ósculo, ela torceu-se como uma cobra. Soltando-se repentinamente,
arrastou o mancebo para a saída do vestíbulo, balbuciando:
— Retire-se! assim é preciso... Retire-se depressa...

***

Decorreram alguns segundos.


Ouviu-se uma porta fechar-se.
Branca tornou a aparecer.
Parecia em êxtase.
Iluminava-lhe o rosto uma alegria sobrehumana.
Os seus lábios moviam-se.
— Ama-me! dizia ela em voz baixa, ama-me e eu adoro-o! O amor é o
único rei, o único senhor, mais ainda, é um verdadeiro demônio.
De repente a jovem tornou-se lívida. Escapou-lhe da garganta um grito
de terror.
Mão rude acabava de lhe agarrar o pulso.
Pedro Rédon estava diante dela. ao mesmo tempo zombeteiro e
ameaçador.
Branca recuou.
Sentia assombro e terror.
César de Fossaro perguntou-lhe:
— De que tens medo? É a minha presença que te faz assim tremer?
— Estava tão longe de esperar...
— Ver-me esta noite? concluiu Fossaro.
— De certo.
— Má razão essa! Deves constantemente esperar a minha visita, nunca te
deves admirar! Venho perguntar-te o que se passou desde a minha retirada.
— Chega talvez neste momento, pensou Branca. Nana sabe, nada
ouviu... Posso mentir e ganhar tempo.
— Fala. disse o zarolho sentando-se. Branca respondeu:
— Obedeci às suas ordens... Fiz o que me ordenou.
— O Duque?
— Cada vez mais apaixonado. Esta noite ofereceu-me o seu nome e a
sua fortuna.
— Tu respondeste?...
— Que aceitaria ambas as coisas, mas que o túmulo da Duquesa mal se
acabara de cerrar, e era preciso esperar.

***

Pedro Rédon levantou-se de um pulo e respondeu:


— Mentes!
— Digo a verdade!
— Repito-te que mentes! Despediste o Duque, porque o teu fraco
coração, que julgavas tão forte e tão bem couraçado, se deixou cativar de
amor! Sacrificas o velho ao mancebo! Entre o pai e o filho preferes e amas o
filho!
— O senhor escutava-me! disse. Armava-me um laço... Sabe tudo! pois
tanto melhor! Uma vez para sempre expliquemo-nos!
— Pois vamos a ouvir a explicação.
— Modifiquei os seus planos, mas que importa, visto que eles não
deixam por isso de ficar de pé? Queria que fosse Duquesa. Prometo-lhe sê-
lo. Henrique de Chaslin é um velho, cujos dias estão contados... Rogério
herda o título de seu pai, e eu serei mulher de Rogério!
— Tu arranjas assim as coisas! exclamou o zarolho com um riso mau.
— Não estão arranjadas conforme os seus desejos?
— Julgas então que matei a Duquesa, para tu poderes pôr-te a rolar com
um donzel?
— E eu pedi-lhe esses crimes?
— Impunha-nos o meu interesse. É só do meu interesse que se trata, é só
o meu interesse que te ordena me sirvas.
— Recuso, se for hostil ao meu amor. Mas porque havia de ser hostil!
— Vais compreender. Dois dias antes da tua admissão ao serviço da
Duquesa, fiz-te traçar na parte inferior de uma folha de papel selado estas
poucas palavras: — "Confirmo o que acima está escrito" — seguido da
assinatura de Adriana Lasseny. Lembras-te?
— Lembro-me.
" — Muito bem, por cima destas poucas palavras e da assinatura, escrevi
eu: — "Prometo a pagar ao senhor Pedro Rédon a soma de três milhões, um
mês depois do dia em que eu ficar viúva do Duque Henrique de Chaslin."
Branca murmurou aterrada:
— Escreveu isso!
— Amanhã te mostrarei esse pequeno documento, se quiseres... Ora,
casando com o velho de que me encarrego de te fazer viúva em breve prazo,
receberas um donativo da quota disponível de todos os seus bens, o que te
permitirá honrares a assinatura... Pelo contrário, desposando o filho,
transformado em rival de seu pai, fatalmente deserdado por esse motivo
tanto quanto for possível, ficando apenas possuidor da sua parte da herança
materna, ver-te-ias à frente de uma fortuna infinitamente modesta, com a
qual não me contentaria, e de que aliás não poderia dispor sem preceito. Eis
as razões por que hás de renunciar de bom grado a Rogério de Chaslin, e
serás mulher do velho Duque. Exagero o meu interesse! Compreendeste?

***

Branca ergueu a fronte.


Cruzando os braços no peito, replicou em tom provocador:
— E se eu recusar?
Fossaro olhou para ela espantado, não podendo acreditar que acabava de
ouvir.
— Se tu recusares? repetiu com o olho injetado, os lábios contraídos.
— Sim.
— Revoltar-te-ias contra a minha vontade?
— Revoltar-me-ia, revolto-me...
— Toma cuidado!
— Em que? Na morte? Ora adeus! eu encaro a morte! Digo-lhe que me
revolto... Ergo a cabeça... Despedaço as minhas cadeias! Há já muito que
trabalho pelo senhor! Quero finalmente trabalhar para mim!
Habituado a ver ceder tudo diante da sua vontade. César de Fossaro
espumava de cólera.
— Donde te vem essa audácia, infame criatura? perguntou ele. E a cólera
fazia-lhe tremer a voz.
Branca respondeu com toda a simplicidade:
— Do amor!
O zarolho, no paroxismo do furor, levantou os punhos fiara a jovem,
como para a esmagar.
Porém um pensamento que lhe acudiu, sossegou-o repentinamente.
A expressão feroz do seu olhar desapareceu, o rubro fulgor da sua pupila
apagou-se, a expressão terrível tornou-se chocarreira, e o ritus da fera
tornou-se numa gargalhada.
— Palavra, que sou absurdo! exclamou. Ameaças não são razões, e a
cólera nada prova. Vamos conversar, minha querida. Escuta-me sem reserva,
põe de lado o teu coração, porque me dirijo à tua inteligência, e entender-
nos-emos sem dificuldade... Rogério de Chaslin quer casar com a menina de
Lasseny... Para casar são precisos papéis... apresentarás os teus, os teus
títulos de família, a sua certidão de nascimento, não é verdade?
— De certo respondeu Branca, em quem esta pergunta despertou vaga
inquietação.
— Pois eu, interveio o zarolho, intervirei em tempo oportuno! Ao lado
desses apresentarei outro, um só, indiscutível, esse; e demonstrando até à
evidência que não és Adriana de Lasseny, filha legítima de um fidalgo, mas
Branca Gaillet, filha bastarda de Clara Gaillet, assassinada pelo amante... por
mim... por teu pai.
Branca estremeceu de horror, e exclamou:
— O senhor, meu pai!
— Pois julgas que Rogério de Chaslin, quando conhecer a tua origem, te
há de continuar a querer por mulher? perguntou o zarolho rindo.
— O senhor, meu pai! repetiu a jovem. Ah! não o creio. O senhor
inventou essa fábula absurda, para impedir que eu quebrasse a cadeia. O
senhor, meu pai! Ora adeus!... Por acaso meu pai, mesmo admitindo que ele
fosse infame, me havia de ensinar o crime? Pois Deus havia de permitir
semelhante coisa?
— Devaneias!
— Não, não, sou uma criança roubada pelo senhor, industriada pelo
senhor, formada na sua escola, e o senhor pode perder-me, é verdade, mas
não é meu pai, e arrastá-lo-ei ao abismo! Fez de mim Adriana de Lasseny...
Ficarei sendo para todos Adriana de Lasseny, e desafio-o a que quebre o
pedestal edificado por suas mãos!...
— Dou-te cinco dias para refletires... concluiu Fossaro brevemente.
Dentro de cinco dias, às dez horas da noite, esperarei no chalet da rua
Compans, Branca Gaillet.
— Ah! não profira semelhante nome... balbuciou a falsa.Adriana.
— É o teu nome, minha filha! Daqui a cinco dias. às dez horas da noite,
virás dizer-me o que te houver respondido o Duque, a quem vais escrever
que consentes em ser sua mulher... É uma resposta escrita que me é precisa.
Compreendeste-me, não é verdade?

***

O sangue frio daquele homem era aterrador. Apesar da sua energia,


Branca teve medo.
— Obedecerás? perguntou-lhe Pedro Rédon.
— Sim, respondeu ela com uma voz que parecia um sopro.
— Ora aí estás razoável! Bravo! Deita-te, e dorme. O sono acalmará os
teus nervos excitados, e amanhã compreenderás melhor ainda quanto era
louca a tua resistência. Boa noite, minha filha.
Segundos depois a falsa Adriana, ficando só, caía aniquilada numa
cadeira.
Foi de curta duração este estado de prostração absoluta. Levantou-se, e
exclamou:
— Disse que obedecia... Sustentada pelo amor julgava-me forte e tentei
revoltar-me, mas Pedro Rédon é mais forte do que eu, e tornei a curvar a
cabeça... Tem-me segura, e não posso arrancar-me das suas garras.
Esboçou um gesto de protesto, e tornou após um instante:
— Mas domina-me ele efetivamente? Sou verdadeiramente sua filha? A
prova de que ele fala existirá? Os documentos que tenho em meu poder
atestam que tenho direito ao nome de Adriana de Lasseny... Se aquele
dissesse o contrário, ninguém o acreditaria. Depois, perder-me-ia, querendo
perder-se a si... Esposar o velho Duque! Esquecer Rogério! ah! nunca! É
daqui a cinco dias que Pedro me espera no chalet da rua Compans, e dentro
de cinco dias passam-se muitas coisas! Veremos...
Apagou as luzes da sala e do gabinete, e meteu-se no seu quarto.

***

Estanislau Picolet deixara o principezinho, dizendo-lhe que ia pedir uma


licença no escritório de Malpertuis, dar a sua demissão no caso de recusa, e
tratar de investigar. t
Obteve sem dificuldade licença de um mês, de que tinha necessidade,
segundo disse, para negócios de família.
Bem munido de dinheiro, entrevendo num futuro uma fortuna que havia
de exceder os seus sonhos, deu começo ao seu pequeno trabalho.
Das notas que tomara, havia uma que mais particularmente lhe chamava
a atenção.
Era a nota relativa ao moço de recados encarregado de levar à rua Julien
Lacroix a carta escrita por Heitor a Lucília Gonthier.
Saindo do escritório, Sta-Pi dirigiu-se à prefeitura de polícia, e
familiarizado com os membros do grande estabelecimento da segurança
pública, foi direito à repartição das reclamações respectivas aos moços de
recados autorizados.
ü empregado a quem se dirigiu, estava a ler um jornal. Levantou a
cabeça sem dizer nada. mas a sua expressão significava claramente:
— Por que é que me vem incomodar?
—Senhor, respondeu Picolet, peço-lhe o favor de uma informação.
Trata-se de um moço de recados de medalha.
— Algum moço de recados de quem tem motivo de queixa?
— Não sei.
— Explique-se.
— Há dias, senhor, confiei uma caria a esse homem, recomendando-lhe
que trouxesse a resposta a um lugar indicado, a um pequeno café da rua da
Vitória. Não veio. Não o acuso de má intenção. Talvez não tivesse entendido
bem, ou já não se lembrasse do lugar indicado, tenho porém precisão de o
interrogar, e peço-lhe que me entregue a sua morada.

CXXXII - STA-PI EM CAMPO

Em lugar de responder, o empregado interrogou:


— Então esse homem não estava no seu lugar regulamentar quando o
encarregou da sua carta? perguntou a Sta-Pi.
— Não, senhor, respondeu Sta-Pi, passava pela rua à volta de um
recado... Tomei o número da medalha.
— E que número era?
— 1.547.
— Bem. Sente-se.
Picolet sentou-se num banco, e o empregado tirou de uma prateleira um
grande livro. Pôs-se a folheá-lo.
— 1.547, disse passado um instante. Achei... Sta-Pi levantou-se logo e
aproximou-se.
— O moço de recados com a medalha n.° 1.547 chama-se Carlos
Chauvin, continuou o burocrata. Mora na rua Saint-André-des-Arts. n.° 27.
A sua estação regulamentar é na praça Saint-Michel.
Sta-Pi ao mesmo tempo franziu o sobrolho de um modo extraordinário,
tomava a nota daquela informação na sua carteira. O empregado continuou:
— Se das indagações a que vai proceder, vir que tem motivo de queixa
desse homem, não deixe de o vir participar a esta prefeitura, quer por escrito,
quer verbalmente. Retirar-se-á a medalha.
Não deixarei de o fazer, senhor. Obrigado pela sua atenção.
O falso polícia saiu da repartição com o rosto mais sombrio que era
possível imaginar.
— Tá, tá, tá, exclamou acendendo um pedaço de charuto. Principia a
coisa a complicar-se! O moço de recados, a quem o criado confiou a carta,
na rua Francisco I, dizia que era de Belleville, e este mora na arrabalde de
Saint-Germain. Enfim, vamos ver...

***

Da prefeitura à praça Saint-Michel vai apenas um passo.


Picolet depressa transpôs esse espaço.
Examinou as esquinas das ruas, e avistou no ângulo da cais e da praça,
ao pé da estação do ônibus, um banquinho de engraxador, e um gancho de
moço de recados.
O próprio moço, em pé, à porta do café, escutava uma discussão entre
consumidores.
Sta-Pi aproximando-se, perguntou-lhe:
— Olá, amigo, você é que tem a medalha n.° 1.547?
— Não, senhor... eu sou o n.° 2.059. O lugar do meu colega, o a.° 1.547,
é no canto da rua de la Harpe. Mas parece-me que há algum tempo não o
vejo.
Picolet dirigiu-se à rua Saint-André-des-Arts, perguntou por Carlos
Chauvin, e foi mandado pela porteira ao sexto andar.
Encontrou uma mulher a chorar ao pé de uma pobre cama.
Nessa cama repousava um homem de cerca de sessenta anos, com a
barba e os cabelos já brancos, que parecia sofrer muito.
Era Carlos Chauvin.
Tinha uma perna quebrada.
— Meu amigo, principiou Picolet, o senhor é efetivamente o titular da
medalha n.° 1.547?
— Sim, senhor, há vinte e sete anos... respondeu o doente, Bem vê que
no espaço de vinte e sete anos o oficio não me enriqueceu. Já éramos bem
pobres, e para cúmulo da desventura quebrei uma perna.
— Quebrou uma perna! repetiu o falso polícia. Há quanto tempo foi
isso?
— Há oito dias, senhor.
Picolet apurou o ouvido.
Fez logo a seguinte observação:
— Mas nesse caso estando há oito dias no bairro dos Campos Elyseos,
recebeu de um criado uma carta para a rua Julien Lacroix, em Belleville?
— Há cinco dias estava eu já nesta cama. donde não me torno talvez a
levantar.
— Ninguém o substituiu?
— Não nos fazemos substituir, senhor. A medalha e a licença só podem
servir ao titular. Se por fraqueza ou por interesse emprestássemos a medalha
seria uma contravenção, e a prefeitura riscaria dos cadernos o nome do
culpado.
— Como pode então suceder que haja um colega seu com o mesmo
número?
— Isso não é possível, senhor.
— Mas assim sucede. O moço de recados a quem se entregou uma carta
há cinco dias, tinha na botoeira da veste o n.° 1.547.
— Repito-lhe que é impossível... devem ter lido mal o número,
— Talvez assim fosse, disse Picolet sem a menor convicção.
Meteu uma moeda de cinco francos na mão do pobre diabo, e desceu os
seis andares, murmurando em meia voz:
— Seria para admirar que o criado de quarto lesse o número... a medalha
devia ser falsa... Isto agora vai num sino. É em Belleville que é preciso
procurar.
O agente do Príncipe alugou um trem e fez-se conduzir à rua Julien
Lacroix.
A porteira, a senhora Lambert, estava só no seu cubículo. Sta-Pi
principiou nestes termos:
— Minha querida senhora, pertenço à polícia, e venho pedir-lhe
informações a respeito de uma pessoa que morou na sua casa.
O efeito da polícia é infalível sobre os porteiros. Picolet bem o sabia.
— Completamente à sua disposição, senhor... volveu a senhora Lambert
com afã. De que se trata?
— Da menina Lucília Gonthier.
— Ah! pobre pequena! exclamou a porteira, há notícias suas?
Encontraram-na?
— Ainda não, minha senhora, infelizmente, e é por isso que estou aqui.
O senhor chefe da segurança pensa que a senhora pode ministrar indicações
úteis...
— É muita honra para mim... não sei muito, mas estou pronta n dizer o
que sei.
— Procedamos por ordem... exclamou Sta-Pi. Vou interrogá-la.
— Interrogar-me, senhor, responder-lhe-ei ao pé da letra.
— Lembra-se de um moço de recados que na véspera do dia em que a
jovem desapareceu, veio trazer-lhe uma carta?
— Lembro-me muito bem... Uma carta da rua Francisco I. Metia medo
aquele homem... Faltava-lhe um olho.
— Bem, e depois?
— Perguntou pela menina Lucília Gonthier. Indiquei-lhe o andar e a
porta. Em lugar de subir, deu-me a carta, pedindo-me que a levasse. Deu-me
até vinte sous pelo meu incômodo.
— Que horas eram?
— Quase oito horas da noite. Mas isto não é tudo, e é o que me dá que
cismar. Vinte e cinco minutos ou meia hora depois, outro moço de recados,
que se parecia muito com o primeiro, tanto quanto pude avaliar, entrou no
prédio. Como passasse muito lépido por diante da porta, gritei-lhe: "Onde é
que vai nessa pressa"? Ele respondeu-me: "Vou a casa da menina Lucília
Gonthier. Trago uma carta para ela."
— Então trouxeram duas cartas uma atrás da outra? perguntou Picolet
muito confuso.
— Sim, senhor... O que é para admirar muito, porque nunca, ninguém
escrevia à Toutinegra.
— O primeiro moço de recados era do bairro?
— Reconhecê-lo-á agora?
— Oh! isso com certeza. Mostrem-mo, digo logo, ê ele.
— Sabe se existe em Belleville algum moço de esquina que seja
zarolho?
— Não, senhor; ignoro, mas isso não quer dizer nada.
— Como assim?
— Se tem interesse em o saber, poder-lho-ão dizer na "mairie". — Tem
razão... uma pergunta mais. Seria capaz de reconhecer
o segundo moço de recados?
— Talvez, por causa da sua semelhança com o primeiro. Mal o vi; não
fez mais que passar pela frente da porta.
Da rua Julien Lacroix Picolet dirigiu-se, não à "mairie", mas ao gabinete
do comissário de polícia.
Soube ali que nenhum zarolho exercia em Belleville a profissão de moço
de esquina.
— Teria apostado a cabeça que não me enganava! murmurou voltando
para Paris. A medalha era falsa, e o homem disfarçado! Onde procurar agora
essa pista que se oculta? Donde vinha a segunda carta?
Sta-Pi voltou o seu albergue.
O seu bestunto trabalhava sem descanso. Debalde, nada tirava
satisfatório.
Após uma noite de insônia quase completa, apresentou-se muito cedo no
palácio da rua Francisco I, onde havia ordem para imediatamente o
introduzirem.
Heitor que andava consumido pela febre da angústia, tinha o rosto
transtornado, as faces cavadas, e as pálpebras vermelhas.
— Traz-me alguma notícia favorável? perguntou dirigindo-se
precipitadamente ao encontro de Picolet.
— Ainda não, senhor... respondeu o falso polícia. Heitor ficou
consternadíssimo.
— Nesse caso Lucília está perdida!
— Nada prova isso, e tenho boas esperanças de que a havemos le achar,
mas...
— Mas o que?
— Parece-se mais que provável, que ela foi atraída nalgum laço.
— Em que se funda essa triste probabilidade?
— Em primeiro lugar o moço de recados encarregado por Luiz, o seu
criado de quarto, de levar a sua carta, era falso, tenho a prova disso, e falsa
também a medalha, cujo número ele mostrou... Esse homem sabia que o
príncipe ia escrever, porque estava à espreita da carta... Como sabia ele isso,
ou antes, por que circunstância, que nós desconhecemos, estava ele nos
casos de prever esse fato? Quando tivermos a chave deste enigma, teremos
conseguido o nosso fim...
— Esse homem levou contudo a minha carta.
— Sim, mas às oito horas, e ela foi-lhe entregue às duas.
— E o que concluiu daí?
— Durante esse intervalo um falsificador hábil não poderia ter mudado o
sentido do que o senhor escreveu?
— O Príncipe foi o primeiro a notar que a disposição do sobrescrito
diferia da sua maneira habitual.
— Não nego, mas a letra idêntica?
— Falei de um falsificador hábil.
— E o sinete das minhas armas? É impossível obter um igual.
— Efetivamente, isso parece impossível, mas algum dia se explicará.
Devo informá-lo de uma particularidade muito importante. Meia hora depois
da chegada da primeira carta, a menina Lucília recebia segunda, e tenho a
convicção de que aquela a atraía a alguma armadilha.
— Uma armadilha!... exclamou o príncipe. Quem a teria preparado?
— Algum amante desprezado e cioso, talvez...
— Lucília não tinha namorado. Tinha uma tal fama de casta, que apesar
da sua grande beleza, ninguém se lembrava de lhe fazer a corte.
— Então algum inimigo?
Heitor fez um gesto de protesto.
— Como podia a Toutinegra ter inimigos, ela, a própria doçura, a
bondade em pessoa, dividindo a vida modesta entre o seu trabalho e as suas
canções?
— Assim será, mas o Príncipe também os tem... Heitor fez um gesto de
negação.
— Oh! não diga que não!... Um homem na posição do Príncipe sempre
tem alguns inimigos. Ora procure quem pode ter interesse vingativo em fazer
desaparecer aquela a quem ama.
— Mas por que tal vingança? Nunca fiz mal a ninguém.
— Mas o Príncipe tem tido amantes... tem-nas deixado, e há mulheres
que nunca perdoam. A última, por exemplo, aquela que lhe fazia bonitas
cenas... a carraça.
— Genoveva! disse Heitor com vivacidade. Por que é que ela me havia
de querer mal? Indenizei-a generosamente... Garanti-lhe o futuro.
— Isso não é uma razão, senhor.
— Demais, Genoveva é uma boa rapariga... de uns ciúmes intoleráveis,
excessivamente enfadonha, mas boa rapariga, afinal.
— Não se fie muito nisso! As mulheres, como sabe, são o demônio!
Admito que haja exceções, mas poucas. Na minha opinião, senhor Príncipe,
deveríamos, sem mais demora, ir a casa da menina Genoveva, e interrogá-la.
Surpreendida e perturbada pela nossa visita, é possível que ela deixe escapar
alguma confissão no caso de culpada ou cúmplice...
Heitor abanou a cabeça...
— Não espero nenhum bom resultado desse passo... replicou ele. Mas
não devemos desprezar coisa alguma. Vamos...

***

Cinco minutos depois, o jovem e o seu agente surgiam para um trem, a


fim de se dirigirem ao boulevard Malesherbes.
Depois dos últimos acontecimentos conhecidos dos nossos leitores.
Genoveva Leinen, obedecendo às ordens do Barão, vivia muito retirada,
pensando na sua fortuna futura, exaltando-se na solidão, com a idéia em
Fernando Volnay, que jurara mais cedo ou mais tarde raptar à Marquesa de
la Tour-du-Roy, lendo romances, e deitando cartas.
No momento em que o coupé de Heitor parava à porta, Genoveva, de
penteador e os cabelos caídos, estava sentada no seu toucador. a uma
pequenina mesa de pelúcia.
Em cima da mesa estava um baralho de catas disposto em forma de
leque.
Genoveva dizia a meia voz:
— É espantoso o dinheiro que tenho no meu jogo! Paus e sempre paus!
Há apenas um sujeitinho que me incomoda!
E punha o dedo no valete de espadas.
— Ao lado dele a dama de espadas... Mulher ruim! O rei de paus... Um
homem muito rico! Terei muitos inimigos, mas também verei dinheiro e
amor.
A campainha soou.
Anunciava uma visita.
Genoveva apanhou as cartas e meteu-as dentro da gaveta da mesa.

CXXXIII - BATALHA PERDIDA

Heitor e Sta-Pi, no patamar da escada, esperavam que lhes abrissem a


porta.
— Permite-me que seja eu quem interrogue? perguntou o polícia.
— Sim. mas vá direito ao fim.
— Sossegue, sei como se trata esta gente.
A porta abriu-se.
Apareceu uma criada de quarto.
— O senhor de Castel-Vivant! exclamou ela muito surpreendida, porque
não ignorava o rompimento do Príncipe com a ama.
— A senhora está em casa?
— Está no boudoir. Devo anunciar o Príncipe?
— É inútil... Eu mesmo me anunciarei.
E o mancebo sempre acompanhado, ou antes seguido de Sta-Pi,
atravessou duas salas, e bateu duas leves pancadas na poria do gabinete...
— Entre, disse a dona da casa. Heitor abriu e levantou o reposteiro.
Genoveva. por extraordinária que fosse a sua surpresa, soube manter um
aspecto tranqüilo.
As lições e os conselhos de Fossaro, tinham-na feito muito senhora de si.
Perguntou então se o amor ou o hábito não lhe restituíam Heitor, agora
que Lucília, sua rival, estava suprimida.
— Ah! Querido Príncipe! exclamou estendendo as mãos para o
mancebo: Eis uma visita que não me atrevia a esperar, e que me torna muito
feliz.
Heitor deu alguns passos à frente.
Não pegou porém nas mãos da ex-favorita.
Sta-Pi, que vinha atrás dele, apareceu repentinamente.
Genoveva olhou para ele espantada.
O Príncipe explicou:
— Este senhor vem comigo.
A cocotte cumprimentou sumariamente.
Perguntava de si para si quem poderia ser aquele personagem
desconhecido, cujo tipo e apresentação não indicavam estar ali um homem
da sociedade.
Após rápido exame, olhou novamente para Heitor, e tornou:
— Mas o que tem? As suas feições estão alteradas... Parece
profundamente triste... Suceder-lhe-ia alguma coisa desagradável?
O Príncipe murmurou tristemente:
— Tenho um grande desgosto.
— Um grande desgosto! murmurou Genoveva com uma comoção muito
bem fingida.
— E vimos perguntar-lhe, senhora, se não lhe é possível pôr termo...
disse Picolet por seu turno.
— Ouço-o, senhor, mas não o compreendo, retorquiu a jovem. Como me
havia de ser possível suavizar um desgosto de Castel-Vivant, se infelizmente
eu já nada represento para ele?
O empregado de Malpertuis tornou:
— Já vai compreender melhor, minha senhora; primeiro que tudo devo
dizer-lhe sob que qualidade me apresento em sua casa. Pertenço à polícia
secreta, de que sou inspetor.
Genoveva ficou sem pingo de sangue, e tornou-se pálida de morte.

***

Estaria comprometida? Iriam prendê-la?


Resolveu contudo fazer boa cara, e respondeu com uma aparente
firmeza, desmentida pelo tremor da sua voz:
— O que me diz aumentou o meu espanto... Não tenho contas a ajustar
com a polícia e peço uma explicação imediata.
— Não se fará esperar. A senhora associou-se a uma intriga odiosa.
— Eu! exclamou a cúmplice de Fossaro. Eu!...
— A senhora mesmo!
— Ora essa! o senhor está doido! de que é que me acusam?
— Genoveva, disse o Príncipe, não vimos aqui como inimigos e de
ameaça na boca... Dê-nos o meio de reparar o mal que fez, e eu serei o
primeiro a fazer valer em seu favor circunstância atenuantes. Amei-a durante
muito tempo, depois arrebatado por outro amor, quebrei de um modo um
pouco inesperado os laços que nos uniam. Ofendida por semelhante
rompimento, obedecendo aos maus conselhos do ciúme e do despeito,
resolveu vingar-se e pôs em execução os seus projetos.
Ao ouvir estas palavras a beldade tranqüilizou-se.
Compreendeu que a acusava de ter suprimido Lucília.
Portanto, para se salvar do aperto, bastava-lhe uma pouca de audácia.
— O enigma complica-se! replicou ela com frieza que não era fingida.
Qual é então esse projeto de vingança que eu concebi e executei. Confesso
que me dá que cismar...
Fitando-a. Sta-Pi respondeu:
— A jovem por quem o senhor de Castel-Vivant a sacrificara
desapareceu.
— Desapareceu! exclamou a antiga amante de Heitor com ar espantado.
Que me está a dizer? Realmente não há nada mais desagradável; mas não
pretende, suponho, tornar-me responsável por essa desaparição que se fosse
real podia explicar-se por muitas maneiras...
— Nós pretendemos, senhora, retorquiu Picolet com aprumo, que
incitada pelo ciúme fizesse desaparecer a menina Lucília Gonthier para se
vingar do senhor de Castel-Vivant... Por muito criminoso que seja o fato,
tem reparação, por que a acusamos, não de um crime cometido na pessoa da
jovem, mas sim de um simules seqüestro... Restitua-nos a menina Gonthier,
e eu tomo sobre mim o afirmar-lhe que apesar do caráter semi-oficial da
minha visita, o negócio não irá para diante.
— Restitua-me Lucília, acrescentou Heitor com vivacidade, e dou-lhe
um milhão.

**

Genoveva cruzou os braços sobre o peito e olhou primeiro para o


Príncipe e depois para Picolet com uma expressão altiva e desprezadora.
— Os senhores sabem que me estão Insultando! exclamou ela em
seguida. As suas acusações são odiosas e os seus oferecimentos humilhantes!
Que fiz eu para merecer semelhante coisa? Amei apaixonadamente o senhor
de Castel-Vivant... amo-o talvez ainda mais, mau grado meu. O seu
abandono dilacerou-me o coração... Amaldiçoei a minha rival, convenho
mas o sofrimento que então passei não têm comparação com os que hoje me
infligem! Com que direito suspeitam de mim? Por que me acusam sem
provas, sem pretextos? Por que me julgam capaz de uma ação criminosa e
me oferecem dinheiro para.sua reparação? O que estão fazendo senhores, é
cobarde e cruel! Ultrajar uma mulher sem defesa, é indigno de um
cavalheiro, indigno de um homem de bem. Ouve Príncipe de Castel-Vivant.
Depois desta tirada majestosamente profunda, a beldade ocultou o rosto
nas mãos e chorou verdadeiras lágrimas.
— Genoveva, balbuciou o principezinho, se soubesse o que eu sofro!
— Estou consternada por vê-lo sofrer, mas será minha a culpa?
— Procuro por toda a parte... perco a cabeça... julguei que se tinha
tornado minha inimiga...
— Sua inimiga, volveu a jovem com ímpeto. Eu! sua inimiga, em cujo
coração ainda não o esqueceu! Oh! quão mal me conhece:! Hoje ainda,
desdenhada, desprezada, abandonada pelo senhor, daria a vida para lhe
poupar uma dor... para lhe restituir a jovem a quem ama... a minha feliz
rival! Heitor, suplico-lhe, peço-lhe de joelhos, não continue a acusar-me!
Falando assim, Genoveva dobrava efetivamente os joelhos. O
principezinho exclamou um pouco abatido:
— Viemos aqui para tirarmos informações, não para acusarmos!
— Infelizmente, nada sabendo, nada posso dizer, senão que sou
inocente, juro-lhe. Duvida ainda?
— Não, não duvido, respondeu Heitor.
— Bem, pois apesar de entre nós estar tudo acabado, faça-me a esmola
de um bom olhar, de uma boa palavra... Prometa-me que pensará sem zanga
na pobre pecadora que muito o amou.
— Prometo-lhe.
— Dê-me então a sua mão.
Genoveva agarrou-a, chegou-a febrilmente aos lábios e balbuciou com
uma voz alterada, deixando-se cair numa cadeira.
— Obrigado! obrigado! O senhor tem muita bondade! O Príncipe e
Picolet tinham-se levantado.
— Perdoe-me, senhora, exclamou o falso polícia muito contrariado com
o resultado negativo.
A cocote respondeu apenas com soluços.
Os dois cumprimentaram e bateram cm retirada.

***

Assim que a porta se fechou após eles, Genoveva levantou-se com olhos
faiscantes.
— Vai-te Príncipe imbecil! disse ela quase em voz alta num tom de raiva
espantosa. Sim, fui eu que levei a tua Lucília para o chalet da ilha Basse
onde a esperava a morte, ü teu instinto de amante não te enganou. Apanhaste
o rasto... Mas arranja provas!... Soube dominar a minha perturbação e
mentir. Fossaro ter-me-ia admirado... A tarefa era pesada, mas agora não há
nada a recear... Heitor há de ir fazer companhia a Lucília e a nós os seus
milhões. Serei rica e ficarei vingada.
Heitor e Sta-Pi, ambos sombrios, tinham subido novamente para o trem.
— Que lhe parece, senhor Picolet? perguntou o Príncipe.
— Parece-me que aquela velhaca é de grande força.
— Não está convencida da sua inocência?
— Não.
— Contudo, na sua voz havia um imutável tom de verdade.
— Nada prova senão que é hábil comediante.
— Que vai fazer?
— Procurar, procurar sem descanso, até ao dia em que tiver encontrado...
— Sta-Pi, as minhas esperanças já não são nenhumas.
— Pelo contrário, é preciso ter esperança, e contar comigo.
O principezinho abanou a cabeça e tornou:
— Aonde quer que eu o conduza?
— Atrevo-me a pedir ao senhor que me ponha no boulevard.
— Quando o tornarei a ver?
— Dentro de três dias.
Picolet apeou-se ao pé da Madalena.
Dirigiu-se a pé para o seu domicílio. Ali preparou uma pequena mala,
consultou o indicador dos caminhos de ferro, fez-se conduzir de trem à gare
de Orleans e tomou um bilhete para Amboise.
Ia explorar as ruínas do palácio de Vezelay incendiado.

***

Uma hora depois da visita a que os nossos leitores assistiram, Genoveva


dirigiu-se à rua de Provence, ao palacete de Fossaro.
O criado de quarto informou-se de que seu amo se afastara de Paris por
algum tempo.
Genoveva deixou um dos seus bilhetes no qual escreveu a lápis:
"Peço-lhe me venha ver assim que voltar, para coisa muito importante."

***

Fossaro chegou no outro dia pela manhã, e à noite apresentou-se em casa


da ex-favorita de Heitor.
— Esperava-te com impaciência! exclamou.
— Há então alguma coisa de novo?
— Há.
— O que é?
— O Príncipe veio ver-me.
— Ah! ah!
— Não ia só! Acompanhava-o um inspetor da polícia.
César franziu o sobrolho e perguntou:
— Que querem eles?
A jovem narrou miudamente a sua entrevista com os dois homens. O
sócio de Malpertuis escutou atentamente. Mostrou alguma inquietação.
— Tens a certeza de que o companheiro do príncipe era efetivamente
inspetor de polícia?
Esta pergunta foi feita depois de ter refletido por algum tempo. — Ele
assim o disse.
— Deu-te provas disso.
— Bem deves ver que me atreveria a perguntar-lhe. Eu mostrava boa
cara, mas no fundo estava com um grande medo.
— Pois minha filha, caçoaram contigo.
— Ora adeus!
— Com toda a certeza. Um agente da polícia não podia ter ordem para
interrogar, porque não está isso nas suas atribuições... Supondo que o
príncipe se tenha queixado de ti à justiça, o que não é admissível, porque
nem sequer existe uma sombra de indícios, um juiz de instrução,
encarregado do negócio pelo tribunal, ter-te-ia mandado ordem para te
apresentares. O homem que te apareceu na companhia de Heitor, devia ser
simplesmente algum polícia particular, como há tantos em Paris, e que aliás
não são os menos hábeis. Demais, pouco nos importa. Desafiamos os mais
espertos porque as nossas medidas estavam bem tomadas. Em todo o caso
não desgostaria de saber com quem lidamos. Podes dar-me sinais desse
sujeito?
— Perfeitamente. É o que se chama um tipo... alto e magro... bigode
grisalho, eriçado por baixo do nariz... cabelos grisalhos, olhos pequenos mas
muito vivos... nariz de papagaio.
— Ora essa! os demônios me levem, exclamou César, tornando a
carregar o sobrolho, estás a dar-me sinais de Sta-Pi.
— Quem é esse Sta-Pi?
— Um desses polícias de que te falava há pouco. Como são as mãos?
— Umas pás.
— E os pés?
— Umas toezas.
— É ele exatamente. De mais, terei dentro em pouco certeza a esse
respeito, e se o velhaco se tornar perigoso, eu o chamarei à ordem. Podes
dormir em paz.

CXXXIV - A LOUCA

Fossaro deixou Genoveva.


Diante da jovem pareceu não ligar a menor importância à ingerência do
polícia nos negócios do Principezinho, no fundo não se iludia a respeito da
gravidade da notícia que acabava de saber.
— Sta-Pi, se fosse ele, pertencia à oficina nefasta donde partira o golpe
que feriu Lucilia.
Quem sabe se aquele personagem de duas caras, trabalhando ao mesmo
tempo por Malpertuis e por Heitor de Castel-Vivant, não conhecia alguns
dos segredos da agência Malpertuis?
O Barão voltou imediatamente para casa, na rua de Provence, por meio
da campainha elétrica que conhecemos, que tinha necessidade de se pôr em
comunicação imediata com ele.
Malpertuis respondeu telefonicamente que estava livre.
César entrou pela porta secreta.
— Sabes que me inquietas! exclamou Malpertuis.
— Talvez tenhas razão.
— Que há de novo?
— uma coisa que pôde ser muito séria.
— Explica-te depressa.
— Responde-me primeiramente.
— O que faz Sta-Pi neste momento?
— Não faz coisa que nos possa interessar. Está ausente do escritório.
— Por que motivo ou que pretexto? Por acaso o despediste?
— Não despedi. Pediu e obteve do empregado do escritório na minha
ausência, uma licença de um mês para ir à sua terra pôr em ordem certos
negócios de família.
— Supões então que ele esteja na província?
— Suponho.
— Pois não saiu de Paris, foi pôr-se à disposição de Castel-Vivant, e
procura Lucilia Gonthier.
— Tinhas razão, replicou Malpertuis, se isso é verdade é uma coisa séria,
mas será verdade?
— Avalia.
E Fossaro repetiu o que Genoveva acabava de lhe contar.
— Isso parece provável, disse Malpertuis. Mau negócio! Sta-Pi é um
espertalhão, e pode encontrar um rasto.
— Não achará nada. Se ele é espertalhão, também eu o sou, e tenho
muito cuidado de não deixar após mim nenhum vestígio da minha passagem,
mas é bom tomar todas as precauções. É preciso vigiá-lo.
— Como?
— Primeiramente trata de saber se ele está em Paris, sa estiver manda-o
procurar, diz-lhe com toda a delicadeza que o escritório já não tem
necessidade dos seus serviços. Dá-lhe uma boa gratificação para que se vá
embora contente e sem desconfiança. Em seguida vigiem-no com habilidade,
e tragam-nos em dia com todos os seus passos.
— Fica combinado.

***

Voltemos a Creteil.
Conduzida pelos cuidados da jovem esposa do doutor Auger à casa de
saúde, dirigida pelo marido, Lucilia Gonthier fora colocada num quarto, e
rodeada de cuidados assíduos.
A senhora Auger tinha uma profunda simpatia pela jovem desconhecida,
a quem uma catástrofe acabava de perturbar a razão.
O "maire" de Creteil e o comissário de polícia tinham feito o seu
relatório à autoridade competente, mas este relatório apresentava um número
considerável de incidentes de toda a espécie, resultado da inundação.
Na prefeitura não se tinham preocupado com aquela jovem retirada das
águas, viva e louca.
— Talvez eu fizesse bem em falar a pessoa competente da minha nova
pensionista? disse um dia o doutor à mulher.
— Se a deixares ir embora, que será feito dela? perguntou a senhora
Auger.
— Virão buscá-la, transportá-la-ão para a enfermaria do Depósito, e daí
para um asilo de alienados.
— Aí tratá-la-ão mal, e pobre, sem família, sem amigos, servirá para as
experiências dos professores e dos internos!
— Não deixa de ser verdade.
— Admites que a luz possa brilhar um dia naquele cérebro obscurecido?
— Pelo menos creio que não é impossível.
— Porque se há de então arremessar essa criança para um desses
túmulos antecipados que se chamam casas de doidos? Ela ali nunca se
curaria, enquanto que tu eras capaz de lhe fazeres reviver a inteligência.
Então ela te dirá quem é, e terás a alegria de fazeres gente feliz. Foi Deus
quem a enviou. Conservêmo-la. Eu gosto dela.
O doutor abraçou ternamente a mulher, e respondeu:
— Nós a conservaremos, visto que a amas.
A loucura da jovem era a tal ponto silenciosa, que o médico perguntava
às vezes, se o terror, ferindo os lóbulos cerebrais, não tinha causado uma
paralisia quase completa das cordas vocais.
Teve a prova do contrário nas seguintes circunstâncias:
Vagou um quarto próximo do quarto particular de senhora Auger.
A jovem pediu ao marido que instalasse ali a louca da ilha Basse, de que
poderia ocupar-se mais assiduamente.
O Senhor Auger não resistia nunca à mulher.
Consentiu.
Numa linda manhã, a dona da casa dirigiu-se acompanhada de uma
enfermeira, à célula ocupada pela sua pensionista.
Vestiu Lucilia com o traje da casa de saúde, e fê-la descer ao jardim de
que era preciso atravessar uma parte para chegar ao ponto do edifício onde ia
habitar.
Naquele momento o doutor saindo da sua visita, veio ter com eles
acompanhado do seu ajudante.
— Conduza-a muito devagar porque ela está muito fraca, disse ele. Passe
por pé do tanque, será mais perto.
A senhora Auger seguiu o caminho indicado pelo marido.
No meio do tanque de que o doutor acabava de falar, havia uma bacia na
qual repuxo iluminado com as cores do arco íris, cada continuadamente com
um pequeno ruído monótono.
A alguns passos do tanque. Lucilia parou trêmula.
A senhora Auger procurou levá-la com brandura, dizendo-lhe:
— Venha, minha filha.
A jovem resistiu.
Os olhos fixos, o rosto aterrado, apontou para o tanque murmurando:
— Escute, escute, ouve? É a chuva que cai, a água sabe, a água vai-me
levar e engolir. Socorro! Acudam-me. salvem-me!
Depois, soltando um grito de aflição, ocultou o rosto nas mãos, para não
ver o terrível espetáculo que a sua imaginação evocava.
— Lembra-se? exclamou o doutor, é de um feliz agouro. Curar-se-á.
Mas é preciso afastá-la depressa desse jacto de água que a aterra.
Auxiliado pelo mancebo que o acompanhava, levaram-na ambos nos
braços até ao quarto que ela devia habitar dali em diante.
Ali tornou-se sombria e silenciosa.
O senhor Auger dirigiu-lhe a palavra por muitas vezes; ela pareceu não a
ouvir.
Daquele dia em diante as suas forças aumentaram rapidamente, mas
pareceu cair outra vez num mutismo absoluto.
Passava horas inteiras a olhar para o céu enevoado, onde a instantes
caíam as neves precoces do terrível inverno de 1879 a 1880.
O doutor resolveu começar sem mais demora um tratamento em que
muito confiava para chegar ao restabelecimento.

***

No palácio de Chaslin a situação era muito violenta.


Ü velho Duque, pensando noite e dia no seu amor transtornado, nas suas
esperanças aniquiladas, sentia a paixão senil que o consumia, requeimar-lhe
o sangue e atacar-lhe o cérebro.
Tinha prometido amar-me, e não me ama. repetia ele sem cessar. Não me
ama! Quem ama ela então?
Completamente absorto nas suas idéias negras, obstinando-se em
procurar a chave do enigma insolúvel. fechava-se no seu aposento, e
recusava ver Helena e Rogério.
Este, certo de ser amado pela falsa Adriana, continuava, como Ruy Blas,
no seu sono estrelado!
Entre estas estrelas, havia porém mais de uma nebulosa.
Parecendo-lhe ainda sentir nos lábios os lábios da jovem palpitante,
estava sob o encanto daquele beijo encantador.
Prometera á menina de Lasseny que ela seria sua mulher, mas não podia
cumprir aquela promessa, sem primeiramente solicitar e obter o
consentimento do pai.
Ora, um vago instinto fazia-lhe recear uma resistência imprevista e
difícil de vencer.
Desejoso de saber sem demora o que devia pensar. Rogério pediu ao
velho Duque uma entrevista, que foi recusada.
Voltou ao boulevard Fladrin.
Branca mandou-lhe dizer que o não receberia.
Escreveu por isso uma carta extensa e apaixonada. Esta caria ficou sem
resposta.

**

Helena de Chaslin, esperando que Mariana Gilberto se achasse em


estado de responder às suas perguntas, imobilizava-se na sua dor incurável.
Não falava da menina de Lasseny nem ao irmão, nem ao seu noivo
Armando de Logeryl.
Entretanto, orava, rogando a Deus que a conduzisse à descoberta da
verdade, e lhe desse o meio de vingar sua mãe.
Todos os dias ela ia visitar a sua antiga ama. cuja convalescença fazia
progressos rápidos.
Contudo ainda receava fatigá-la com as suas perguntas.
Foi Mariana que lhe deu ocasião de o fazer.
A fiel criada obtivera do doutor autorização de se levantar da cama.
Pela primeira vez, depois que principiara a convalescença, sentara-se
num velho fauteuil diante do fogão onde ardia um bom lume.
Uma mulher do bairro, que lhe servia de enfermeira, dera-lhe um caldo,
um ovo quente, e um pouco de vinho de Bordeaux mandado por Helena.
A menina de- Chaslin entrou no momento em que Mariana acabava de
descansar.
— Oh! minha querida filha, quão feliz me sinto por boje a ver! disse-lhe
a velha criada estendendo para ela as mãos trêmulas.
— E eu também, minha ama. sinto-me feliz por vê-la... replicou Helena
com vivacidade. e principalmente por te ver levantada, ao pé de um bom
lume, tomando alguma coisa... eis-te boa!
A enfermeira perguntou:
— A menina vai de certo ficar alguns momentos a sós com a senhora
Gilberto?
— Meia hora pelo menos, respondeu a irmão de Rogério.
— Então aproveitarei a ocasião para levar ao farmacêutico a receita
escrita pela manhã pelo senhor doutor, e não voltarei sem que esteja aviada.
— Vá descansada... Ainda me encontrará aqui...
— Helena, querida Helena, exclamou Mariana, como é boa!
— Pois é bondade ser tua amiga? murmurou a jovem. Não és para mim
uma segunda mãe? Posso por acaso esquecer que me criaste? que cresci nos
teus braços, sob as tuas carícias?
— Outros indivíduos se têm esquecido disso! exclamou Mariana com
amargura.
— É preciso perdoar, ama... Torna-os esquecidos funestas influências.
— Oh! sim, funestas influências! bem funestas, repetiu a criada. Após
um momento de silêncio, acrescentou, não sem sensível inquietação:
— O senhor de Logeryl não fez mudança, não? Continua a amá-la?
— Continua e continuará! redarguiu Helena com ingênuo orgulho.
Temos um pelo outro um amor leal e puro, que não acabará nunca...
Um raio de alegria iluminou o rosto devastado de Mariana. Mas esse
fulgor apagou-se logo, e cedeu o lugar a uma expressão de tristeza profunda.
— Ah! balbuciou, se a minha querida ama pudesse presenciar a ventura
da sua filha! Teria sido tão feliz a pobre mártir! E o senhor Duque que faz?
Helena pareceu hesitar.
— Por que não me responde, minha filha? perguntou a ama Por acaso no
palácio passam-se coisas impróprias?
A jovem meneou a cabeça.
— Mas finalmente que faz o senhor Duque?
— Tem envelhecido muito depois da morte de minha mãe... é tão infeliz!
A convalescente repetiu, acompanhando as suas palavras com um sorriso
de incredulidade:
— Depois da morte de sua mãe!
— Sim, ama... Há já alguns dias que não sai do seu quarto... Só uma vez
o vi. A sua palidez, os seus olhos encovados, a sua fisionomia lúgubre... tem-
me aterrado.
— O remorso! exclamou Mariana com um tom de sombrio triunfo. Deus
é justo!
— Por que é que meu pai havia de ter remorsos?... Parecia que já o
acusavas por ocasião da nossa primeira e consternadora entrevista na câmara
fúnebre, no momento da minha chegada, depois da catástrofe.
— Não fale mais nisso, menina... São recordações muito desagradáveis.
E para mudar de conversa, Mariana acrescentou:
— Infelizmente, Rogério está bem mudado.
— Ele amava tanto a minha querida ama!
— Não é só á morte de minha mãe que eu atribuo a mudança de que te
falo... Creio que meu irmão ama.
— Então! isso é próprio da sua idade. Quem é que ele ama, sabe?
— Tenho medo de saber, tenho medo de adivinhar...
— Diz que tem medo! por quê? Quem julga então une ele ama?
— A menina de Lasseny.

CXXXV - PROVAS

Ao ouvir o nome que Helena acabava de proferir, Mariana estremeceu


como sob a ação de uma pilha elétrica muito carregada. E o seu rosto tomou
uma expressão de horror.
— Ama a menina de Lasseny! exclamou, a menina de Lasseny que
matou sua mãe!
— É horrível! tornou a jovem. E explicou:
—Acusei diante dele aquela criatura... Defendeu-a! Quer casar com ela.
estou convencida.
— Porque julga que a menina acusa sem fundamento. Helena só tem
suspeitas... Não pôde provar coisa alguma. Seria monstruoso semelhante
casamento... Não se fará...
— Só uma pessoa no mundo o pôde impedir, ama, és tu! Não tenho
senão suspeitas, é verdade, mas tu possuis provas...
— Mariana, querida Mariana, é preciso revelares o segredo que tu sabes.
Esperava o teu restabelecimento para te interrogar. Hoje tens forças para
responder. Desvenda o crime cometido no palácio de Chaslin. Esclarece-me.
Se a menina de Lasseny é na verdade culpada, arranca-lhe a máscara. É do
teu dever vingar minha mãe e salvar Rogério... Não hesites, peço-te. Em
nome da honra da nossa família... em nome da tua ternura, e da tua
dedicação, imploro-te! Fala, dize-me tudo...
A fiel servidora murmurou:
— Bem! falarei!...
— Ah! louvado seja Deus!
— Direi toda a verdade, mas não à menina Helena
— Não a mim! Por quê?
— Porque é impossível!
— A quem dirás?
— Ao senhor de Logeryl!... É da família... é seu noivo!... representa a
justiça. A ele é que direi tudo... só a ele! Ele que venha, que me ouça, e
veremos depois se Rogério de Chaslin teima em desposar Adriana de
Lasseny...
***

Naquele momento a enfermeira entrava com o remédio preparado na


farmácia.
Helena levantou-se.
— Vou buscar o senhor de Logeryl.
— Que venha, espero por ele.
A jovem beijou a sua antiga ama. e voltou para a carruagem que a
trouxera.
Fez-se conduzir à rua de Varenne, à residência do primo.
Aí soube que o substituto estava no palácio da justiça.
Ali se dirigiu logo, perguntou pelo gabinete do jovem magistrado, e deu
o seu bilhete a um porteiro que logo o foi entregar.
Armando deu ordem de imediatamente introduzirem a visitante.
Correndo para ela com inquietação, exclamou:
— Por aqui, querida Helena! por aqui.
— Armando, venho buscá-lo.
— Buscar-me! Mete-me medo. Que há de novo nu palácio?
— Não é ao palácio que o quero levar, é a casa de Mariana Gilberto.
— Falou-lhe esta manhã?
— Acabo de estar com ela.
— Que lhe disse?
— A mim não me disse nada.
— Ora essa!
— Por um motivo que não posso compreender, recusa dizer-me o seu
segredo. É só ao senhor que ela quer dizer tudo. Ao senhor, representante da
lei e da justiça.
— Vou acompanhá-la. A sua carruagem está lá em baixo?
— Está.
— Venha. Vou primeiro levá-la à casa.
— Não quero, porque tenciono acompanhá-lo a casa de Mariana.
— Não lhe aconselho que o faça, seria inútil, e poderia comprometer
tudo. Mariana Gilberto não falaria na sua presença, visto que recusou
responder às suas perguntas.
Helena reconheceu que o senhor de Logeryl tinha razão.
— Leve-me então ao arrabalde Saint-Honoré, disse ela. Mas com que
impaciência o vou esperar.!
— Irei procurá-la logo que possa, bem sabe.
— E repetir-me-á tudo?
— Prometo-me.
***

Armando deu ordem de parar no palácio de Chaslin.


Em seguida fez-se conduzir à rua de Miromenil.
Mariana, tornara-se a deitar, dominada por uma agitação violenta.
Aquela agitação fora causada pela notícia imprevista do amor de Rogério
por Adriana de Lasseny.
Tivera um acesso de febre ao lembrar-se do terrível alcance das
revelações que ia fazer.
Não hesitava porém.
O senhor de Logeryl aproximou-se da convalescente.
Mariana leal aos hábitos de familiaridade que não excluíam o respeito,
estendeu para ele a mão emagrecida pela doença, e murmurou:
— Sede benvindo, senhor Amando. Tinha pressa de lhe falar. O
substituto aproximou-se do leito.
Reparando no rosto pálido, nas feições apoquentadas da ama de Helena,
exclamou:
— Minha boa Mariana, esteve bastante doente.
— Oh! sim, bastante doente!
— Vai melhorando, disse-me a minha prima, e deve estar dentro *m
pouco completamente restabelecida.
Estou ainda muito fraca, contudo já tenho força para falar. Armando
deitou um olhar para a enfermeira que os escutava. A boa mulher
compreendeu a significação daquele olhar, e dando como pretexto um recado
urgente, saiu com toda a discrição. Mariana tornou:
— Sente-se ao pé de mim, peço-lhe, senhor de Logeryl. Mais perto
ainda. Fatigar-me-ia muito o falar muito alto.
Armando tratou de fazer logo o que a convalescente lhe pedia.
— É Helena quem me manda, disse ele, segundo parece, tem coisas
graves a dizer-me?
— Oh! sim, coisas graves, muito graves. Mas em primeiro lugar, será
verdade que o senhor Rogério de Chaslin ame Adriana de Lasseny?
— Apesar de Rogério não me ter feito a confidencia do seu amor, tenho
a certeza que esse amor existe, e que é sério.
— Não falou ainda da sua paixão ao senhor Duque?
— Se o não fez, fá-lo-á dentro em pouco com certeza.
— Então há de passar-se alguma coisa terrível entre o pai e o filho i
exclamou Mariana erguendo as mãos postas.
— Alguma coisa terrível? repetiu o substituto.
— Porque o senhor Duque está também enamorado da menina de
Lasseny, a qual é sua amante.
— Parece-me isso impossível, replicou o senhor de Logeryl. Como a
menina de Lasseny é de uma beleza maravilhosa, pôde- se admitir que sem
ela o saber talvez, o Duque se tenha apaixonado da sua beleza, mas esse
honrado homem era incapaz de instalar o adultério no seu lar doméstico, no
momento em que a mãe dos seus filhos se abeirava do túmulo.
— Do túmulo que mãos infames lhe abriam! replicou Mariana com uma
voz abafada.
O senhor de Logeryl franziu o sobrolho e disse:
— É chegada a hora das explicações. Acabaram-se as palavras vagas, e
as reticências. Chamou-me, e aqui estou. É preciso dizer-me o que viu, o que
sabe, ou pelo menos o que julga saber. Não é ao noivo de Helena que vai
falar, é ao magistrado.
— Oh! eu direi tudo. Quero que a minha querida ama, assassinada
covardemente, seja vingada!
— Sossegue, Mariana, e responda-me.
— Como responderei a Deus, juro.
— Não gostava da menina Lasseny?
— Odiava-a.
— Por quê?
— Em primeiro lugar, por instinto! Adivinhava que faria mal àqueles a
quem amo. Reparei logo que o senhor Duque olhava muito para ela, e que
ela se deixava olhar com modos de sonsinha, que não me diziam nada bom.
Quanto mais cuidados tinha na senhora, mais eu desconfiava, lia no jogo da
velhaca.
— O que supunha então?
— Que ela amimava o marido, e esperava com impaciência a morte da
mulher, para se tornar Duquesa.
— Uma tal suspeita! pensou o substituto.
— Não é suspeita, interrompeu Mariana. É uma certeza. Eu vi.
— O que?
— Adriana sair do palácio sob pretexto de ir fazer as suas devoções à
Magdalena, e o Duque segui-la... porque a seguia e ia juntar-se com ela. tão
verdade como eu me chamar Mariana Gilberto. Algumas palavras
imprudentes nessa ocasião deram lugar à cena terrível que me fizeram
expulsar do palácio.
— Sei tudo isso, replicou o substituto. Deplorei essa cena e as suas
conseqüências; mas supondo, o que não esta ainda provado, que Adriana
tenha sido amante do senhor de Chaslin, não se segue daí que ela cometesse
um crime.
Mariana perguntou com ímpeto:
Onde estava ela enquanto a Duquesa morria?
— No seu quarto, repetiu-o muitas vezes na minha presença.
— Mentia! e o senhor Duque onde estava?
— No seu quarto, para onde voltara depois de breve ausência.
— Também ele mentia!
— Como assim?
— Tendo saído do palácio que dá para a avenida Gabriel, voltavam
juntos, entende-me, voltavam juntos quando já passara uma hora da manhã!
Eu lá estava de vigia, em meio do nevoeiro.
Atinando sentiu um calafrio.
— O que diz! exclamou.
— A verdade.
— O Duque e Adriana estiveram juntos fora do palácio, e juntos
regressaram?
— Assim o afirmo.
— A senhora reconheceu-os?
— Como agora o reconheço ao senhor. Eu estava oculta, mas via bem.
Depois, ouvi a voz do senhor de Chaslin...
— Que motivo a levou a vigiar o palácio?
— Voltava da rua do Bac onde andava tratando de uma doente, e para
não me perder no nevoeiro, viera costeando as Tulherias. e seguira as
arcadas da rua Rivoli.
Armando escutava com a maior atenção.
— Chegando ao recanto da rua Boissy d'Anglas, parou detrás de mim um
trem particular, continuou Mariana.
"Mal tinha andado cinqüenta passos na avenida, ouvi passos atrás de
mim.
"Atravessei a calçada, e continuei o meu caminho por baixo das árvores.
"Continuavam a caminhar pelo passeio.
"Quando me achei defronte da grade do jardim de Chaslin. parei
maquinalmente.
"Era o meu costume, para deitar um olhar para aquele jardim. para mim
tão cheio de recordações.
"Ao mesmo tempo do que eu. parava a pessoa que seguia o passeio
oposto.
"Olhei."
Armando de Logeryl observou:
— O nevoeiro não a devia deixar ver bem.
— Não me seria possível reconhecer as feições, mas distinguia
perfeitamente um homem bastante alto. vestido com elegância.
— O Duque, por certo?
— Não era o Duque. Ouvi o ruído de uma chave que introduziam na
fechadura, e a portinha abriu-se para o homem entrar.
"A porta fechou-se assim que ele entrou."
O substituto estava muito impressionado com aquela narrativa.
— E depois? perguntou.
— Depois, respondeu Mariana, esperei. Quanto tempo? Não poderei
dizê-lo, porque os minutos me pareciam séculos; depois a portinha tornou a
abrir-se. O homem saiu do jardim e desapareceu nas trevas.
Um suor frio molhava as fontes de Armando de Logeryl.
— Continue, disse. Depois do homem desaparecer, que fez?
— Muito inquieta, dirigi-me para o faubourg Saint-Honoré, na firme
intenção de tocar à porta do palácio, e de contar o que vi. Não me atrevi. O
senhor de Chaslin metia-me medo.
"Voltei para a avenida Gabriel e por volta da uma hora da manhã, vi o
senhor Duque entrar na companhia de Adriana de Lasseny.
"Infelizmente, tinha compreendido tudo.
"Ao tempo que aquela rapariga arrastava o fraco ancião, a um "rendez-
vous" de amor. o assassino industriado pela infame, introduzia-se no palácio
e matava a minha adorada ama!
Mariana Gilberto calou.

***

Armando Logeryl meditava.


A lembrança do grânulo encontrado por Helena na alcatifa do quarto de
dormir, voltava-lhe ao espírito.
As suspeitas vagas até aquele momento, iam tomando corpo.
O substituto levantou-se.
— Mariana, disse ele. está pronta a repetir diante do juiz o que acaba de
me dizer?
— Estou disposta a tudo para vingar a minha querida ama! O senhor
compreendeu como eu que mataram a Duquesa de Chaslin, mas também
deve reconhecer que me era impossível dizer a Helena que eu vira seu pai
com a cúmplice do assassino.
— Compreendo.
— E aprova o que diz?
— Aprovo!
— Então até depois, Armando.
O substituto apertou a mão que a ama de Helena lhe estendia, e retirou-
se da mansarda.
CXXXVI - PAI E FILHO

Eis o que se passava no palácio de Saint-Honoré, ao tempo que se


efetuava esta entrevista na rua de Miromenil.
Rogério apresentara-se três vezes nos aposentos do Duque, a fim de lhe
confessar o seu amor, e de pedir o seu consentimento ao casamento
projetado.
Três vezes o senhor de Chaslin recusara recebê-lo.
Para um amante apaixonado, era insustentável a situação.
— Meu pai há de ouvir-me, disse o mancebo consigo, não continuarei a
resignar-me à derrota. Se preciso for, violarei as ordens dadas.
E resolveu arrostar a cólera do Duque. Foi novamente bater-lhe à porta.
Foi o criado de quarto quem abriu. Rogério perguntou-lhe:
— Como passa hoje meu pai?
— Infelizmente, o senhor Duque está cada vez mais sombrio e absorto,
respondeu Francisco, não quer ver ninguém.
— Nem mesmo os filhos?
— O senhor Duque não faz nenhuma exceção...
— É preciso contudo que ele me receba... Tenho precisão de lhe falar.
Anunciem-me.
— Não me atreveria a transgredir as ordens do senhor Duque...
— Meu pai desculpá-lo-á quando lhe disser da minha parte que se trata
de uma comunicação urgente...
— Mas, senhor Rogério...
— Ordeno-lhe que vá levar o meu recado, exclamou imperiosamente o
mancebo.
O criado de quarto inclinou-se e dirigiu-se para a sala onde estava o
Duque.
Passado um segundo, ouviu-se a voz do fidalgo.
— Quero estar só, dizia ele irritado, deixem-me sossegar.

***

Rogério ouvira.
Sem esperar o regresso de Francisco, abriu a porta e parou ò entrada.
O Duque de Chaslin dirigiu-se para ele. com o furor nos olhos, a ameaça
no gesto.
— Desde quando se atreve o senhor a desobedecer-me? exclamou.
— Desobedeço-lhe, mau grado meu, respondeu Rogério. Não esqueço,
não esquecerei nunca, o profundo respeito que lhe devo e se transgrido umas
ordens inexplicáveis, é porque preciso falar-lhe quanto antes.
— Que me quer?
— Desejaria que ninguém nos ouvisse.
— Então entre o seja conciso.
Rogério entrou na sala.
O senhor de Chaslin fechou depois a porta.
O mancebo contemplava o pai com assombro.
Mal o conhecia, tão terrível era a mudança que nele se operara havia
quatro dias.
Os dois olhos amortecidos sumiam-se no fundo das órbitas rodeadas por
um circulo azulado.
Sulcavam-lhe a fronte profundas rugas.
Tinha a barba crescida e maltratada.
No rosto mostrava, uma expressão de idiotismo.
O Duque de Chaslin parecia um homem morto pelo deboche e excessos
de toda a espécie.
Rogério sentiu comiseração.
— Meu pai, perguntou ele com uma voz afetuosa, sofre muito, não é
verdade?
— E eu queixei-me?
— Não, meu pai, mas há no seu rosto vestígios de dor...
O Duque sentou-se sem dar resposta.
Passou as mãos pela fronte, guardou silêncio por um instante como para
reunir as idéias, e disse de repente:
— O senhor entrou contra minha vontade no lugar do meu refúgio, sob
pretexto de uma comunicação importante. Explique-se, e repito-lhe, seja
conciso.
— Bem sabe, meu pai. que eu não voltarei ao regimento, tornou Rogério.
Alcancei uma licença renovável, que equivale a uma baixa definitiva.
O senhor de Chaslin fez um gesto de indiferença.
Que lhe importava aquilo?
— Quero casar, continuou o irmão de Helena.
— César! repetiu o Duque: na sua idade!
— Sou ainda muito novo, é verdade, mas conheço a vida, porque a tenho
gozado, e talvez abusado dela. Os prazeres fáceis já não têm atrativos para
mim. O meu ideal agora é tornar-me homem sério, pai de família,
conhecedor dos seus deveres e cumprindo-os. Nunca e cedo de mais para
isso. O que lhe parece, meu pai?
Henrique de Chaslin estremeceu, e deitou ao filho um olhar a furto.
Parecia recear que naquelas palavras se ocultasse algum pensamento
reservado.
Depois, baixou a fronte, e respondeu:
— Penso que tem razão. Se o senhor tem confiança em si, não posso
deixar de o aprovar... O senhor tem um grande nome... Vai entrar na posse
da parte que lhe pertence da herança materna... Portanto, pôde e deve
pretender a mão de uma jovem de velha nobreza, possuidora de uma riqueza
pelo menos igual à sua...
— Aquela a quem amo, pôde unir o seu nome ao meu, sem que me fique
mal, murmurou Rogério. Não suponho porém que ela seja rica.
O Duque mostrou-se muito surpreendido, e exclamou:
— Aquela a quem ama! O que, já a encontrou?
— Sim. meu pai.
— Depois que voltou para Paris?
Rogério fez um sinal afirmativo e acrescentou:
— Amo-a, e desposarei a jovem que minha santa mãe designou...
Por segunda vez o senhor de Chaslin levantou a cabeça e olhou par ao
filho.
— Sua mãe indicou-lhe alguma senhora? exclamou. Nunca me falou em
semelhantes projetos.
— Contudo, esta é a verdade.
— Ela escreveu-lhe a tal respeito?
— Sim, meu pai, na carta que a morte não lhe permitiu concluir, e eu
encontrei junto do leito fúnebre...
— Como é possível que eu não tivesse conhecimento dessa carta?
— Só a mim era dirigida... Vi a senhora que minha mãe me destinava...
Amei-a, porque ela é pura... Amei-a, finalmente, porque o senhor Duque foi
seu protetor, seu amigo, e ela captou as simpatias e o respeito de meu pai.
O senhor de Chaslin levantou-se repentinamente.
Pairava-lhe a angústia no coração.
Tinha as mãos trêmulas, e os olhos lampejavam-lhe.
— Quem é então a jovem, perguntou com uma voz rouca, quem é a
jovem de quem tenho sido o protetor, o amigo, e a quem sua mãe lhe
designava como mulher num escrito supremo?
— Leia, meu pai...
E Rogério estendeu para o Duque a carta por concluir, que ja mostramos
aos nossos leitores.

***

O Senhor de Chaslin estava todo numa tremura.


Compreendia que daquela folha aparentemente muda, ia desprender-se
um segredo terrível.
Os seus olhos fixaram-se na letra da morta.
Leu, ou antes devorou as poucas frases que nós conhecemos.
Quando concluiu, cambaleou.
À palidez lívida, sucedeu-lhe nas faces uma vermelhidão de um tom
sombrio.
Arrancou a gravata para não ficar sufocado.
— Que tem, meu pai? perguntou Rogério alucinado... Mete-me medo!
— Adriana de Lasseny, tua mulher! exclamou o Duque com um riso
estridente que incomodava. Estás doido quando pensas em semelhante coisa,
e eu estou doido por considerar semelhante coisa possível! Tua mãe não
escreveu isso.
Rogério, cujo assombro aumentava de segundo em segundo, replicou
com energia:
— Escreveu-o, bem sabe, porque acaba de o ler...
— Não escreveu! não, não escreveu! vociferou o senhor de Chaslin
rasgando a carta com furor, e pisando com os pés os fragmentos espalhados.
Rogério fez-se muito pálido.
— Meu pai, balbuciou, que faz!
— Aniquilo a prova de um momento de demência, cuja recordação deve
desaparecer. Casares com Adriana, tu! Ora adeus!
— E por que não, meu pai?
— Gostas dela?
— Amo-a com todas as veras da minha alma.
— Ela é que não te ama!...
— Pelo contrário, disse que me amava.
— Pois ela disse-te isso?
— Não estava nesse direito? Não é ela livre?

***

O Duque soltou um grito de raiva, correu para o filho e agarrou-o pelos


pulsos.
Com uma voz rouca e lenta, exclamou:
— Não repitas que ela te ama! Não repitas que ela te disse. Matar-te-ia,
ouves, matar-te-ia!
— Matar-me-ia! repetiu Rogério, cuja tranqüilidade aparente fazia
grande contraste com a excitação furiosa do velho. Al eu pai, que loucura o
acometeu neste momento?
— Perguntas que loucura? Pois sim, é verdade, estou doido! <le amar,
como tu! Ah! amas Adriana, e vens dizer-me... Olha, vai-te, vai-te! Repito-
te, matar-te-ia! Vai-te, perdôo-te, mas não desposarás Adriana!
— Meu pai, hei de casar com ela.
— Vai-te! Não vês que as minhas mãos procuram uma arma, que o
sangue sobe ao meu cérebro! Louco! és amado por ela, e vens dizer-me a
mim que morro por ela! Vai-te.
Foi agora o mancebo quem empalideceu e estremeceu. Mostrou-se
horrorizado e exclamou:
— O que! meu pai! ama-a!
— Como tu! mais que tu! Ela há de pertencer-me a mim, ou a mais
ninguém! Coitado daquele que quiser criar-me embaraços! Se és meu rival,
já não és meu filho!Renego a família e só creio no amor! Vai-te!
Rogério cruzou os braços.
— Meu pai, retorquiu friamente, mate-me se tem coragem para isso.
Amo Adriana, e ela corresponde-me.
O Duque, estimulado pela raiva, quis lançar as mãos às goelas do filho
para o estrangular.
Porém, o mancebo agarrou-lhe nos braços com força, embora sem
violência, constrangeu-o à imobilidade, e continuou:
— Perdôo-lhe em nome de minha mãe.que já não existe, mas ela,
representa um ultraje para a sua memória, e pôde fazer supor que meu pai só
esperava a sua morte para realizar o projeto criminoso que, graças a Deus,
não pôde realizar-se. Reflita- nisto, meu pai.
— Cala-te! ordenou o velho debatendo-se. Faltas-me ao respeito.
— Calar-me-ei, meu pai, e lembrar-me-ei de que sou seu filho; mas
Adriana de Lasseny há de ser minha mulher.
Exatamente naquele momento ouviu-se uma voz no quarto contíguo.
Era a voz de Armando de Logeryl.
— Preciso de falar com o senhor Duque, dizia o substituto. Preciso,
quero, e as ordens que se invocam não me detêm.

***

Abriu-se a porta.
Rogério largou os pulsos do pai, que se deixou cair esmagado,
aniquilado, numa cadeira.
— Armando! exclamou o mancebo, tens o rosto transtornado. Que
sucede?
— Preciso de falar ao senhor Duque... respondeu o magistrado, com uma
voz trêmula pela comoção.
— Fala! Exclamou Rogério.
— Só devo falar com ele a sós...
— A sós... repetiu o velho assustado.
— Sim, senhor Duque...
— Retiro-me, meu amigo... exclamou Rogério assustado, pressentindo
nova desgraça.
— Retira-te, disse o pai para Rogério, depois nos tornaremos a ver.
O irmão de Helena inclinou-se diante do pai e saiu. O substituto e o
Duque acharam-se em frente um do outro. Não podia ocultar a sua terrível
agitação o primeiro. O segundo, com a cabeça inclinada, os olhos vacilantes,
o lábio pendente, parecia atacado de um súbito amolecimento de cérebro.
— Senhor Duque, disse de repente Armando de Logeryl, ouve-me?
Acha-se em estado de ouvir?
O ancião enxugou a fronte molhada de suor, e balbuciou:
— Estou escutando.
O substituto principiou:
— Tinha a honra de ser parente da senhora Duquesa, principiou o
substituto; tenho também a honra de ser noivo da menina de Chaslin, que há
de ser minha mulher, assiste-me pois o dever de me preocupar com o que diz
respeito à sua família, que a minha, e de apartar dela a vergonha, se tanto for
preciso...
Nos olhos amortecidos do velho, brilhou um clarão.
— A vergonha! repetiu.
— Profiro esta palavra, e por desagradável que seja, não a retiro.
Depois desta frase proferida por um modo incisivo. Armando continuou:
— No dia em que conduzimos a senhora de Chaslin à sua última morada,
Helena que chegara de Besançon muito tarde para a cerimônia, viu-se só no
palácio, no quarto mortuário, e terríveis suspeitas lhe invadiram a alma a
respeito da morte de sua mãe. Formulou o seu pensamento em voz alta na
sua presença... eu estava presente... O senhor Duque cheio de cólera impôs-
lhe silêncio, afirmando que o crime não tinha podido transpor o limiar de
uma habitação onde o senhor Duque velava...
— O senhor, naquela dia, defendeu aquela a quem caluniavam,
balbuciou o senhor de Chaslin. Hoje, como naquele dia, repito cheio de
convicção, que o crime não pode aqui entrar.
— Que sabe o senhor Duque a esse respeito? perguntou de súbito o
jovem magistrado.

CXXXVII - COMEÇO DE INVESTIGAÇÕES


A pergunta fulminadora de Armando acabou de desnortear o velho
Duque, cuja razão vacilava sobre tantos choques sucessivos. Contudo quis
responder. Sem lhe dar tempo a isso, o senhor de Logeryl continuou:
— Sim, defendi como o senhor Duque aquela a quem acusavam!
Também a julgava um anjo! Hoje já não a defendo, acuso-a.
— Acusa a menina de Lasseny, balbuciou Henrique de Chaslin com
gesto de protesto.
— Sim, acuso a sua amante.
Ao ouvir estas palavras, o velho recuperou um pouco de energia.
Levantou-se da poltrona, e colocando-se diante do substituto, retorquiu com
uma voz pouco firme:
— Mais uma mentira! Mais uma calúnia! O ódio cega-o. A menina de
Lasseny não é minha amante, e nunca o foi. Ela é digna de todos os seus
respeitos.
Armando retorquiu:
— É ao senhor a quem o amor cega! Adriana de Lasseny atraía-o nos
seus laços, ao mesmo tempo que preparava a morte da Duquesa cujo lugar
queria tomar.
— Mentira, mentira, repetiu o Duque.
— Então por que foi que durante a noite fatal, saiu o senhor Duque do
seu palácio às onze horas pela porta da avenida Gabriel, e por que foi que só
voltou à uma hora, pela mesma porta, em companhia da menina de Lasseny?
O Duque aterrado, não ousando suportar o olhar com que o fitavam,
ocultou o rosto nas mãos e balbuciou:
— Pois sim, é verdade. Amava-a. Queria dizer-lhe fora de casa. Ela
compareceu, reconduzi-a, mas pela minha fé de gentil homem, juro que não
era minha amante.
— Então era sua vítima!
— Sua vitima, repetiu o senhor de Chaslin erguendo para Armando de
Logeryl uns olhos sem expressão.
— Sim, vítima de uma criatura infame, que o levava para longe do seu
palácio, para aí deixar entrar na sua ausência um assassino. Ao mesmo
tempo que falava de amor à menina de Lasseny, introduzia-se um indivíduo
no palácio e matava a Duquesa.
Henrique estava todo numa tremura.
Perguntou com uma voz que nada tinha de humana:
— Tem as provas disso?
— Tenho as provas morais. Quanto às provas materiais, não tarda que
também as tenha.
— E se na verdade se cometeu algum crime, o que me custa a crer, serei
acusado de cumplicidade com o assassino? balbuciou o Duque assustado.
— Não será acusado, vingarei a senhora de Chaslin, mas evitarei que se
pronuncie o seu nome, pouparei a Helena e a Rogério a vergonha e o pesar
de saberem que o senhor Duque amava uma intrigante junto de sua mãe
prestes a morrer! Calar-me-ei, senhor Duque, não pelo senhor, mas por eles!

***

Depois da assim falar, Armando de Logeryl dirigiu-se lentamente para a


porta.
Quando ali chegava parou e voltou-se.
O Duque parecia quase não dar pela sua presença
Os olhos tinham-se-lhe tornado fixos, movia os lábios sem articular uma
palavra.
Inspirava ao mesmo tempo dó e piedade.
O substituto pensou:
— Eis ao que o amor pecaminoso pode conduzir um homem, um ancião.
Depois dirigiu-se para a sala, onde Helena o esperava com impaciência
Ao vê-lo entrar, a jovem correu para ele e disse-lhe:
— Sonhe que estava em conferência com meu pai. Viu Mariana?
— Sim, querida Helena.
— Revelou-lhe coisas terríveis, não é verdade? Deu-lhe as provas do
crime?
Armando de Logeryl, como sabemos, queria sozinho estudar o tenebroso
mistério em que o senhor de Chaslin se achava comprometido.
Era preciso portanto iludir Helena.
— Infelizmente, replicou ele, não me deu provas de coisa alguma.
— De coisa alguma! exclamou a menina de Chaslin. Falou-me de um
homem que entrou no jardim do palácio durante a noite em que a minha mãe
morreu.
— Ela julgou ver esse homem, sustenta que o viu, mas a densidade do
nevoeiro que cobria Paris, podia porventura permitir-lhe distinguir
nitidamente as coisas? Com certeza que não! Demais, ela não se acha em
estado de reforçar as suas afirmativas com provas, e o seu testemunho não
teria valor algum.
— Mas sendo assim, ponderou a jovem com mágoa, minha mãe não
ficará vingada?
— Tenha confiança em mim, querida Helena, replicou o substituto, não
deixarei o crime impune se ele existir. Caminho em meio das trevas, mas hei
de fazer a luz, juro-lhe!
"Hei de alcançar a chave do enigma sombrio... Paciência e coragem! Não
fale nem ao Duque, nem a Rogério, peço-lhe, a respeito da minha visita a
Mariana.
— Prometo-lhe... Que tal achou meu pai?
— Causou-me profundo pesar o seu estado de sofrimento e de
abatimento. Rogério estava junto dele... Tem-no visto?
— Não... saiu do palácio quase logo depois que o senhor chegou.
Armando de Logeryl a quem muito embaraçava uma conversa em que
era preciso mentir a cada palavra, despediu-se da sua noiva no fim de alguns
minutos, e voltou para a rua de Miromenil...
Queria recomendar à ama de Helena, que até nova ordem, guardasse o
maior segredo a respeito dos fatos que lhe revelara. Mariana comprometeu-
se a isso.

***

Ao deixar o senhor de Chaslin. Rogério encarara de um modo


relativamente plácido a situação que este acabava de lhe proporcionar com a
sua confissão.
O ancião declarando com incrível cinismo que era rival do filho,
causava-lhe maior desgosto que terror.
— No cérebro de meu pai há desequilíbrio! disse ele consigo. O seu
olhar ora fixo ora vacilante, a incoerência das suas falas, os seus acessos de
súbito furor, revelam uma loucura nascente... De um doido não há nada a
esperar... Recusará o seu consentimento... Passarei sem ele para o
preenchimento das formalidades legais... Amo Adriana, a quem minha mãe
amava, e queria dar o nome de filha! Adriana há de ser minha mulher!

***

O mancebo vestiu-se rapidamente, saiu, e Fez-se conduzir ao


"boulevard" Flandrin.
Haviam decorrido quatro dias depois das últimas cenas a que servira de
teatro o pequeno palácio.
Durante os quatro dias Branca não tomara decisão alguma; mas
dominada pelas ameaças de Pedro Carnot não se atrevia nem a receber
Rogério, que se apresentara, duas vezes, nem a responder à carta mie ele lhe
escrevera.
É verdade que também já não escrevia ao Duque...
E contudo, dentro de vinte e quatro horas, tinha de se dirigir ao chalet da
rua Compans, onde Pedro Rédon esperava a prova material da sua
obediência.
Padecia um verdadeiro tormento debatendo-se no círculo de ferro onde a
encerrara o homem que se intitulava seu pai, mas não entrevia nem os meios,
nem a possibilidade de uma evasão.
A criada de quarto veio anunciar que o senhor Rogério de Chaslin se
apresentava, e que insistia de tal modo para ser recebido que não sabia como
o despedisse.
Branca murmurou cheia de alegria:
— Rogério! é talvez a salvação! Depois, em voz alta:
— Introduza o senhor de Chaslin na sala... Daqui a nada irei ter com ele.
Branca lançou um rápido olhar para o espelho, pois os seus esplêndidos
cabelos numa desordem estudada, e foi receber o mancebo.
Rogério correu para ela.
Pegou-lhe nas mãos apesar do simulacro de resistência que ela julgou
dever opor-lhe.
— Adriana... querida Adriana, exclamou com paixão, até que enfim a
vejo!... Há quatro dias,tinha-me dito:
"Amanhã! No dia seguinte, infelizmente, achei fechada a sua porta! Duas
vezes de seguida recusou receber-me. E escrevi-lhe, e a senhora não me fez a
esmola de uma resposta! Por quê?
— Por quê?... replicou a falsa Adriana... Quer sabê-lo, meu amigo?
Lutava contra mim mesmo, em risco de despedaçar o seu coração e o meu...
O senhor ama-me, e eu amo-o... Pois bem, tinha medo de o ver... tinha medo
de lhe ouvir falar no seu amor...
— Mas isso era loucura...
— Não, era juízo. O futuro assusta-me. Junto de si o futuro seria muito
belo. eu seria muito feliz, e não estou muito costumada à felicidade!! O
senhor fez-me conhecer um sentimento que eu receava, e que daqui será a
minha vida... Aonde me levará esse sentimento? Junto do senhor esqueço o
resto do mundo... Se me faltasse... que vácuo... que solidão!... morreria!
— Adriana, nunca lhe faltarei...
— É verdade isso?
— Tão verdade como eu amá-la. — E amar-me-á sempre?
— Até ao meu último suspiro.
— Se me quisessem fazer mal, defender-me-ia, não é verdade?
— Defendendo-a, defendo-me a mim, porque será minha mulher.
— Sua mulher! repetiu a jovem com uma entoação melancólica.
— Duvida?
— Não duvido do senhor... duvido do meu destino... Repito-lhe, estou
pouco costumada a ser feliz! Parece que nasci sob má estrela... Para dar o
nome de Chaslin à pobre órfã, não hasta a sua vontade... A menina Helena,
como sabe, é minha inimiga! Recusar-me-á aceitar por irmã! Terá o
consentimento de seu pai?
Estas últimas palavras atacando uma questão irritante, foram proferidas
com uma perturbação que a falsa Adriana não pode disfarçar.
— Meu pai! retorquiu Rogério com uma voz abafada... Ah! não me fale
de meu pai!
— Por quê?
— Seja franca... Ignorava que o Duque a amava?
— O que, ele disse-lhe? exclamou Branca aterrada.
— Disse-me, e a senhora tinha-me ocultado!
— Pois devia eu acusar um pai perante um filho? Não, cem vezes não.
Mas visto que o senhor de Chaslin não corou da sua vergonha, saberá tudo.
mesmo porque as coisas mal compreendidas: mal interpretadas poderiam
parecer-me desfavoráveis.

***

Neste momento, nas pálpebras de Adriana brilhava um fulgor estranho.


A diabólica criatura acabava de achar no espaço de um segundo o que
debalde procurava havia quatro dias.
Entrevira um meio de despedaçar a sua cadeia, e de se subtrair ao
domínio tirânico de Pedro Rédon.
Este meio, terrivelmente audacioso, podia conduzi-la ao abismo.
Branca era porém dessas criaturas que se dirigem ao seu fim. sem se
importarem com o perigo.
Conduzindo Rogério para um divã, onde se reclinou junto dele, de
maneira que o embriagasse com as emanações capitosas da sua mocidade e
da sua beleza, disse-lhe:
— Sente-se aqui, junto de mim. Ouça-me, mas não olhe para mim.
— Por quê?
— Se sentisse os seus olhos fitos em mim. não me atreveria a falar.
— Meu Deus, balbuciou o mancebo, que vai dizer-me?
— A verdade, isto é, um segredo terrível. Na noite em que sua mãe
morreu, achava-me fora do palácio com o senhor Duque.
— Estava fora do palácio... com o Duque... na noite em que morreu
minha mãe, repetiu Rogério estremecendo. Parece-me que tenho um sonho
mau.
— Não, não sonha, e vai compreender... Sem respeito pela casa em que a
sua nobre e pura companheira se finava amando-o, o senhor de Chaslin não
deixava de me perseguir... Quis acabar com este estado de coisas, porque
sentia coragem suficiente para deixar a Duquesa, a quem era tão afeiçoada, e
só a minha retirada poderia pôr termo a insuportáveis perseguições.
Rogério fez um gesto de desgosto.
Branca continuou:
— Aceitei, pois. ou melhor dizendo, promovi eu própria um encontra
noturno, durante o qual disse franca, brutalmente ao Duque, que julgava vir a
uma entrevista de amor, quanto o seu procedimento era odioso, desleal,
indigno de um cavalheiro e de um grande fidalgo... Pareceu compreendê-lo,
e prometeu não abandonar nunca o respeito que eu merecia. Seria capaz de
cumprir a palavra? Não sei, apenas me atrevo a acreditá-lo.
"No dia seguinte, a minha querida e muito amada protetora, a sua santa
mãe, que me chamava filha, não despertava, e eu deixava o palácio de
Chaslin em circunstâncias que são suas conhecidas.
"Ai de mim! o Duque vendo-se viúvo não desistiu dos projetos
insensatos que havia concebido.
"Há quatro dias, nesta mesma sala, no lugar em que estamos, poucos
minutos antes da sua chegada, pela porta de cuja chave se apoderou, seu pai
oferecia-me nome. título, fortuna...
"Respondi-lhe que se tivesse de escolher entre a morte e a desgraça de
ser sua mulher, preferia a morte.
"Retirou-se desesperado.
Rogério exclamou logo:
— Ah! compreendo agora o seu furor...
— Por quê? perguntou Branca espantada.
— Porque, quando lhe disse que a amava, e que a senhora me
correspondia, atirou-se a mim como um louco... Quis matar-me!
Branca, verdadeiramente comovida, fez-se pálida, e toda trêmula
envolveu Rogério nos braços.
— Matá-lo! balbuciou. Seu pai quis matá-lo! Ah! é pois maldito o nosso
amor!

CXXXVIII - UMA ESPANTOSA CONFIDENCIA

— Adriana, querida Adriana, tornou o mancebo impetuosamente, por


que há de ser maldito este amor puro. abençoado por sua mãe. simplesmente
por haver perdido o juízo o Duque de Chaslin?
— E sabia que me queriam constranger a ser mulher de semelhante
homem! murmurou Branca continuando a desempenhar o papel que a si
própria impusera.
Rogério repetiu estupefato:
— Queriam constrangê-la? Então quem!
— Não lho posso dizer.
— Quero sabê-lo.
— Por que não há de ser já?
— Não teime, peço-lhe... Amanhã falarei... em presença do senhor de
Logeryl,
— Em presença do noivo de minha irmã?
— Sim, é na sua presença que devo revelar um segredo que me sufoca...
Venha aqui buscar-me, para me conduzir ao palácio da justiça...
— Não seria melhor trazer-lhe aqui Armando?
— Não, porque já não é ao amigo quo devo dirigir-me, é ao magistrado...
— Como assim!
— No momento de me tornar sua mulher, quero que as suspeitas odiosas
que sobre mim pairam se dissipem! Quero que me lastimem as pessoas que
me acusavam. Quero provar, que escreva, recusarei obedecer às ordens de
um senhor implacável, e rejeitei com horror a coroa de duquesa que me
queriam impor!

***

Rogério não podia compreender aquelas palavras misteriosas, mas a voz


de Branca soava-lhe aos ouvidos como embriagadora música e encantava-o.
Não insistiu por uma explicação imediata e retirou-se. mais apaixonado,
mais louco que nunca, dizendo à sereia:
— Até amanhã!
— Vamos, murmurou a jovem vendo-o afastar-se. Está lançada a sorte.
Jogarei amanhã a minha vida!
De regresso ao palácio, Rogério encontrou a irmã ainda mais sombria
que de costume.
Por isso perguntou-lhe logo:
— Tens mais algum novo desgosto?
— Sim. estou apoquentada. O criado de quarto inquieto com o estado em
que viu o Duque, foi buscar um médico, o médico saiu agora daqui...
interroguei-o.
— Que respondeu ele:
— Acha-lhe o cérebro muito abalado, e receia pela sua razão. Rogério
conservou-se silencioso.
Pensava.
— Provesse a Deus que meu pai estivesse realmente doido! Seria a sua
desculpa!

***

Na noite que se seguiu à sua conferência com Mariana Gilberto e com


Henrique de Chaslin, o noivo de Helena dormia pouco e dormira muito.
Persistia na resolução tomada na véspera de empreender um inquérito
secreto a respeito das circunstâncias ainda não explicadas da morte da
Duquesa.
A ausência do seu chefe hierárquico, procurador da república, de quem
era o primeiro substituto, deixava-lhe o campo livre, e punha à sua
disposição poderes discricionários.
Podia portanto proceder sem que ninguém tivesse direito de lhe pedir
contas das suas ações.
Logo pela manhã escreveu uma espécie de auto das respostas de Mariana
e do senhor de Chaslin.
Foi muito cedo para o palácio da justiça, aviou expediente, escreveu ao
chefe de segurança para lhe mandar quanto antes Daniel Gaillet, e mandou-
lhe o seu bilhete de visita por um contínuo.
Este voltou no fim de dez minutos com a seguinte resposta:
— O inspetor Daniel Gaillet está de serviço. Assim que ele voltar, o
senhor chefe da segurança mandá-lo-á pôr às ordens do senhor substituto.
— Bem. Prevenir-me-á assim que ele chegar...
Armando ficando só, puxou pela sua carteira, e tornou a ler as notas
escolhidas por ele antes de sair: depois, apoiando a fronte nas mãos. pôs-se a
procurar a chave do enigma trágico.
O crime parecia indiscutível.
O homem que Mariana vira introduzir-se no jardim do palácio, ao tempo
que a menina de Lasseny e o Duque se achavam fora, era com certeza o
assassino.
Um só ponto estava duvidoso, a cumplicidade de Adriana.
Parecia porém muito leve aquela, dúvida.
O contínuo tornou a aparecer.
Apresentando um bilhete ao senhor de Logeryl, disse-lhe:
— Senhor substituto, estas pessoas solicitam uma audiência.
Armando deitou os olhos para o bilhete e fez um gesto de surpresa, ao ler
o nome de Rogério de Chaslin, e por baixo a lápis, o nome de Adriana de
Lasseny.
— Ela! Na companhia de Rogério! Que vêm aqui fazer? perguntou o
jovem magistrado. Mande entrar, acrescentou em voz alta.
Um momento depois, o contínuo introduzia os visitantes e retirava-se.
Armando estendeu a mão para Rogério, e inclinou-se diante da falsa
Adriana com fria delicadeza.
Depois, sem dizer palavra, indicou cadeiras e esperou.
Branca estava horrivelmente pálida.
Um grande círculo lívido que lhe rodeava as pálpebras, demonstrava
uma noite de insônia.
Rogério principiou:
— Meu querido Armando, a nossa presença no teu gabinete causa-te
alguma admiração, não é verdade?
— Confesso.
— Venho com a menina Lasseny, que deseja, na minha presença, fazer-
te uma comunicação.
O substituto olhou para Branca como para a interrogar.
— Efetivamente é uma comunicação muito grave, disse Branca, e mais
que uma comunicação, pode talvez chamar-se-lhe um depoimento.
— Um depoimento? repetiu o substituto.
— Sim, senhor.
A atitude da jovem era decidida, mas a voz tremia-lhe.
— Fale. minha senhora.
— Senhor de Logeryl, principiou Branca, o senhor, até hoje, tem sido
para mim um amigo, um protetor, um defensor até, quando sobre mim
pairaram injustas suspeitas, das quais apagarei a mais simples recordação...
Creia que lhe estou muito grata.
Armando inclinou-se ligeiramente.
— Aonde quererá ela chegar? pensava. Branca tornou:
— Bem sabe, senhor, que o Conde e a Condessa de Lasseny, meus pais,
foram obrigados a expatriar-se, que morreram pobres em Inglaterra,
deixando-me de tenra idade, e que fui recolhida por um industrial de
Londres.
— Bem sei disso, menina.
— Mas o que o senhor ignora, o que toda gente ignora, é que vivo há dez
anos numa situação intolerável, terrível, escrava de um homem.
— Escrava de um homem! exclamou o senhor de Logeryl, que julgou
ver um raio de luz despontar em meio das trevas.
— Há dez anos que me vejo constrangida a uma obediência absoluta,
cega, às vontades de um miserável...
— Mas como é isso?
— O industrial que me recolhera não era nem caridoso, nem
compassivo... era simplesmente hipócrita e pronto a cometer todas as
infâmias a troco de ouro. Adivinhando que eu viria a ser formosa, esperava
fazer de mim a base de uma especulação vergonhosa, e quando chegasse a
idade de ser vendida, vender-me a algum lord milionário.

***

Como que sufocada pela comoção. Branca calou-se durante um ou dois


segundos.
Lívido de horror, Rogério escutava.
O senhor de Logeryl, vendo, ou julgando ver, o ponto luminoso
aumentar, esperava com impaciência.
A jovem continuou:
— Um dia, haverá dez anos. um amigo desse homem, tão infame como
ele, e talvez mais, veio ter com ele a Londres. Devia ser algum fugido das
galés! Assim que o vi, meteu-me medo... e ele dando por isso, e servindo-se
do meu terror para me dominar, fascinando-se com o seu olhar, como a
serpente fascina a ave, avassalou-me, submeteu-me com a sua vontade de
ferro,e não cessou de me repetir que os devia um dia enriquecer...
— Oh! É horrível! exclamou Rogério.
— Oh! Sim, muito horrível, e eu nada podia. Se eu tivesse mostrado
alguma veleidade de resistência, aqueles homens que só viam em mim
instrumento de fortuna, ter-me-ia esmagado. Um deles morreu, o outro, o
último que aparecera, trouxe-me consigo para França e confiou-me a uma
mulher, uma digna criatura, que não era sua cúmplice, e não adivinhava os
seus projetos odiosos, Por um momento, esperei que fosse recuperar a
liberdade. Era um sonho que bem cedo, havia de desvanecer-se...
— Apanhei o assassino da Duquesa, pensou o senhor de Logeryl.
— Aquele homem tornou a aparecer, continuou Branca, voltava todos os
dias continuando a sua obra de domínio, esforçando-se por me persuadir que
tudo é permitido e legítimo para chegarmos ao fim desejado, seja qual for
esse fim.
O senhor de Logeryl escutava cada vez com mais atenção.
— Um dia, anunciou-me que acabava de me inscrever em muitas
agencias, para ver se me arranjava uma colocação de dama de companhia.
Esta notícia encheu-me de satisfação. Disse comigo que uma posição,
mesmo subalterna, poria termo à minha escravidão, e dar-me-ia uma
liberdade relativa.
— Mas, interrompeu ti substituto, nada lhe impedia, parece-me, o
conquistar uma liberdade completa.
— Como?
— Colocando-se sob a salva-guarda da lei, pedindo-lhe essa proteção
que a lei nunca recusa aos fracos e aos oprimidos.
— Em que motivos devia ter fundamentado a minha queixa? Não sofria
nenhuma violência material, não me faltava coisa alguma. a minha denúncia
havia de parecer um ato de ingratidão, e depois aquele homem metia-me
medo, sentia-o capaz de tudo. À primeira suspeita da revolta matar-me-ia, e
hoje no momento em que lhe falo, a minha vida está ameaçada.
— Tranqüilize-se, querida Adriana! exclamou Rogério. Hoje já não tem
nada a recear. Eu e Armando velamos; está sob a dupla égide do amor e da
justiça!
O substituto exclamou:
— Continue a esclarecer-me, menina.
Branca tornou:
— Um dia, o diretor de uma agência da Rua da Vitória, avisou-me de
que se oferecia uma colocação. Dirigi-me à agência, e o proprietário
mandou-me procurar o doutor Frébault, que me conduziu ao palácio de
Chaslin. A senhora Duquesa teve a bondade de se agradar de mim. Senti-me
então verdadeiramente feliz, julguei-me livre, infelizmente, que ilusão!
— Esse homem perseguia-a até ao asilo inviolável que lhe oferecia a
Duquesa de Chaslin? perguntou o jovem magistrado com vivacidade.
— Perseguiu-me até lá, sim! Encontrou meio de transpor o limiar desse
asilo para me lembrar que aí como em qualquer outra parte, eu era sua
escrava.
Rogério mudo, pálido, com as sobrancelhas contraídas, o olhar sombrio,
cerrava os punhos cheio de raiva.
— Mas, finalmente, exclamou o senhor de Logeryl, o que queria esse
homem?
— Vai sabê-lo, balbuciou a jovem enxugando as lágrimas que lhe
corriam pelas faces.
— Diga. senhora interrompeu o substituto dominado por uma ávida
curiosidade.
— Previno-o de que é horrível, disse Branca. Uma manhã ia eu fazer as
minhas orações à igreja da Madalena, encontrei-o nos degraus.
— Então ele sabia que devia sair?
— Não, mas estava sempre à espreita; chegou-se a mim, deu-me ordem
para o acompanhar a uma capela, e ali me expôs o plano que devia, na sua
opinião, enriquecer-nos a ambos.
— E que plano era esse? perguntou o substituto.
— A senhora de Chaslin, disse-me ele, sofrendo uma doença do coração,
e condenada pelos médicos, só tem alguns meses de vida, algumas semanas
talvez. O Duque dentro em pouco será um homem livre. É preciso que a
menina de Lasseny se faça amar dele, e se torne Duquesa.
— Ah! O infame, o infame, exclamou Rogério com uma voz sibilante.
— E o Duque amou-a! murmurou o substituto.
— O Duque amou-me, mas eu juro que nada fiz para isso; perante Deus
que me ouve, afirmo, não me servi de nenhuma provocação. O senhor de
Chaslin falava-me do seu amor, eu escutava, mas sem lhe responder, os seus
discursos apaixonados. Para me esquivar o mais possível às suas
perseguições, mal saía do quarto da senhora Duquesa. Mariana Gilberto
notando os manejos do Duque, julgou-os animados por mim. A este respeito
travou-se entre o Duque, a Duquesa e Mariana uma discussão violenta, da
qual o senhor de Logeryl não pode ter completamente a lembrança. Quis
deixar o palácio... Resolvera partir no dia seguinte... E no meio da noite, o
meu perseguidor informado, não sei como, do que acabara de se passar,
entrou no meu quarto, e proibiu que realizasse o meu projeto, sob pena de
morte. Sabia que a ameaça seria logo seguida da sua realização. Curvei a
cabeça, e fiquei.
Neste ponto o substituto perguntou:
— Por que não disse isso, quando após a catástrofe a menina Helena e
Mariana tiveram terríveis suspeitas?
— Não me atrevi... Era perder-me... e mais que nunca, eu desejava
viver... amava.
— Era designar o assassino da senhora Duquesa! exclamou o senhor de
Logeryl.
— O assassino de minha mãe! apoiou Rogério.
— O assassino! repetiu Branca fingindo surpresa e terror. O que diz?
Julga que efetivamente se cometeu um crime?

CXXXIX - JUSTIÇA EM FAMÍLIA

— O crime é demasiado certo, respondeu Armando de Logeryl.


Branca pareceu refletir durante alguns segundos, depois murmurou como
se falasse consigo mesma:
— Não, não, é impossível, materialmente impossível...
— Materialmente impossível? repetiu o substituto. Por quê?
— Só eu apresentava à senhora Duquesa os remédios receitados pelo
médico. Só eu lhe fazia tomar os grânulos de digitalina...
— O homem a quem acusamos, entrava de noite no palácio. A senhora
foi a própria que o disse. Pode ter trocado os frascos que continham os
grânulos.
A jovem pareceu aterrada por aquela revelação.
— Santo Deus! balbuciou, pois ele fez semelhante coisa?
— Sim, respondeu Armando. E a prova é que a menina Helena achou
sobre o tapete do quarto, junto do leito onde sua mãe tinha morrido, um
glóbulo que eu fiz analisar... E esse glóbulo continha veneno.
— Oh! O infame! O infame! Mas nesse caso torno-me eu suspeita!
Posso passar por cúmplice do infame.
Rogério acudiu logo:
— Nunca! Nunca! Eu sei por que a senhora saiu do palácio com meu pai
durante a noite fatal, e nenhuma acusação a pode ferir! O seu tirano não se
atrevendo a ordenar-lhe o crime, ele próprio o executava. Se a senhora fosse
sua cúmplice, não teria ele entrado no palácio... É evidente, é indiscutível!
— Menina Adriana, exclamou Armando de Logeryl, estamos à espera do
nome do assassino.
Branca pareceu possuída de terror. O substituto continuou:
— Entregar-nos esse homem, é vingar a senhora Duquesa que a amava, e
era amada pela senhora, é demonstrar a sua inocência de quem ninguém no
mundo terá direito a duvidar e que eu serei o primeiro a proclamar.
— Ah! Não hesito! volveu a falsa Adriana. Denunciá-lo é jogar a minha
vida, bem sei, porque a sua vingança saberá alcançar-me em toda à parte.
Que importa, porém?
— Diga então, insistiu o substituto.
— Estou pronta a morrer para que se faça justiça!... O miserável chama-
se Pedro Rédon...
— Pedro Rédon já comprometido no negócio de Courbevoie...
murmurou o substituto escrevendo o nome. Onde é que poderemos
encontrar? acrescentou:
— Ignoro a sua morada; sei somente que me esperará esta noite às dez
em ponto, no chalet da Rua Compans.
— Para que vai ele lá? perguntou Rogério.
— Intimou-me, sob pena de morte, para ali lhe declarar que consinto em
casar com o Duque de Chaslin.
— Ficará livre dele, mas por muito grande e muito legítimo que seja o
horror que ele lhe inspira, terei de a confrontar com ele.
Branca ficou numa tremura.
— Mas isso é indispensável? perguntou.
— É indispensável... É preciso que diga: "Este homem é Pedro Rédon, o
meu perseguidor, o infame de quem eu era escrava, e me impeliu ao crime."

***

O tremor de Branca aumentou.


— Dizer isso na sua presença, balbuciou ela. Terei forças para tanto?
Armando de Logeryl franziu o sobrolho, e perguntou num tom severo:
— Que receia então?
Branca adivinhou as suspeitas renascente do substituto. Compreendeu
que não devia deixá-las tomar corpo. Apressou-se a responder:
— Não receio nada, mas comparo esse homem ao réptil cujo olhar
fascina a ave. Na sua presença o sangue gela-me, a minha vontade aniquila-
me; torno-me outra vez escrava.
— A situação estará completamente mudada... Não terá nada que recear.
A obra da fascinação não se realizará.
— Sim, terei força, terei coragem. Direi: É ele, é Pedro Rédon, o
miserável que tornava a minha vida num suplício, e queria tornar-me numa
vergonha!
— Muito bem, querida Adriana! exclamou Rogério.
— Obrigado, minha senhora, acrescentou o substituto. A senhora acaba
de prestar um grande serviço à sociedade e à justiça. Agora temos armas
para vingar a Duquesa de Chaslin... para a senhora mesma se vingar!
— A minha vingança, essa não estará completa senão no dia em que vir
Pedro Rédon frente a frente, e ele fizer a confissão do seu crime
proclamando-me inocente.
E voltando-se para Rogério, prosseguiu:
— Agora, senhor Rogério, deixe-me a sós com o senhor de Logeryl.
Tenho a dizer-lhe alguma coisa que deve ficar em segredo, mesmo para o
senhor, pelo menos neste momento. E não espere por mim, voltarei só para o
palácio...
O mancebo, admirado e inquieto, mas não podendo recusar-se a
obedecer, deixou o gabinete de Armando.

***

O substituto quase tão admirado como o próprio Rogério, perguntou:


— Minha senhora, não me disse tudo o que diz respeito a Pedro Rédon?
— Sim. senhor, mas falta-me falar, não ao magistrado, mas ao amigo e
aliado da família de Chaslin, de uma resolução que entendo dever tomar,
resultante do que se passa.
— Explique-se, minha senhora. Branca ia falar.
Bateram devagar à porta do gabinete.
— Entre, disse Armando.
O contínuo tornou a aparecer.
— O que temos? perguntou o senhor de Logeryl com impaciência.
— Senhor substituto, a pessoa cujo bilhete apresento, pede para lhe falar
sem demora...
Armando deitou os olhos para o quadrado de papel onde havia um nome
a lápis.
— Helena de Chaslin! exclamou.
— A menina Helena... exclamou Branca levantando-se.
— Peca à menina de Chaslin que tenha a bondade de esperar um
momento, disse o jovem magistrado.
— Não, senhor, interrompeu a falsa Adriana. Pelo contrário ficar-lhe-ei
agradecida se imediatamente receber a menina Helena; terminarei diante
dela a comunicação principiada.
— Faça entrar, disse o substituto.
O contínuo saiu do gabinete.
A visitante entrava pouco depois.
Ao ver uma mulher junto do senhor de Logeryl, a menina de Chaslin
parou surpreendida.
Branca achava-se na sombra.
Venha querida Helena... tornou Armando.
A filha de Pedro Carnot deu então dois passos à frente, colocando-se em
plena luz.
Ao vê-la. a irmã de Rogério tornou-se pálida, e maquinalmente fez um
movimento para se retirar.
— Helena, venha, peço-lhe, continuou o substituto, um motivo grave e
respeitável traz aqui a menina Adriana. Sabendo que me queria falar,
mostrou desejos de concluir na sua presença a conferência principiada
comigo.
Helena proferiu com esforço:
— Decerto que esta senhora veio falar-lhe do seu próximo casamento.
— Do seu próximo casamento? repetiu o senhor de Logeryl estupefato.
— Sim. com meu irmão Rogério. É verdade que o Duque recusa o seu
consentimento; mas meu irmão tenciona passar sem ele. Se ignora esta nova,
eu lha digo.
Armando olhou para Branca que se conservava impassível. Depois,
passado um momento de silêncio, redarguiu:
— Ignorava; mas Rogério está na idade de saber o que deve fazer. Por
que não há de ele casar com a menina de Lasseny, se ele a ama, e se ele julga
encontrar a felicidade nessa união?
A noiva de Armando exclamou impetuosamente:
— Se casar com ela, ficará desonrado, ficará perdido, ficará maldito!
— Helena, peço-lhe, meça as suas palavras! exclamou o substituto muito
agitado.
— Medir as minhas palavras! Para quê? Para essa rapariga poderão
nunca ser assaz cruéis as minhas palavras?
— Helena, conhece todo o respeito, toda a ternura que me inspira,
continuou o mancebo, mas a afeição não me cega. Estamos aqui no santuário
da justiça, e não posso admitir ditos ultrajantes.
— É que todo o meu sangue se revolta à idéia da infame aliança que me
querem impor!
— Suspenda, Helena, peço-lho de mãos postas. Não devo, não quero
ouvir mais...
***

Branca estava mortalmente pálida, tinha os lábios cerrados, e nos seus


olhos havia um sombrio fulgor.
— Agradeço-lhe a sua generosa intervenção, senhor de Logeryl, disse
ela. Não duvide da minha gratidão, mas pertence-me responder a menina de
Chaslin, e vou fazê-lo serenamente.
A falsa.Adriana voltou-se para Helena e continuou:
— Principiarei por uma pergunta: Por que me odeia, senhora, e por que
me insulta?
— Por que repetiu a jovem trêmula, atreve-se a perguntar-mo?
— Atrevo-me! Que lhe fiz? De que me acusa?
— Já é audácia!
— Isso não é responder... e espero uma resposta.
— Acuso-a de ter trazido à casa de meu pai a hipocrisia, a cobiça, o
vício!... Acuso-a de me haver feito órfã! Acuso-a de ter matado minha mãe!
— Senhor de Logeryl, disse Branca por seu turno, ouve! Acusa-me de
um assassinato! Representante da lei e da justiça, emprazo-o a que me
defenda...
— Defendê-la-ei, menina.
— Mesmo contra mim! exclamou Helena alucinada.
— Mesmo contra si... É o meu dever...
— Meu Deus! Meu Deus! balbuciou a irmã de Rogério ocultando o rosto
nas mãos.
— Agora, senhor substituto, tornou Branca, deitando a Helena um olhar
de triunfo, vou concluir.
Armando olhou para Helena cheio de curiosidade. Branca prosseguiu:
— O senhor Duque, há cinco dias, ofereceu-me o seu nome, o seu título,
e a sua fortuna... Recusei indignada. Ontem, o senhor Rogério de Chaslin
pediu-me para ser sua mulher... Amo-o, mas recuso.
— Recusa! exclamou o senhor de Logeryl.
— Recuso e recusarei enquanto em volta de mim não se fizer a luz!
Enquanto a menina Helena, corando das acusações que ela hoje formula, não
venha dizer-me: Seja minha irmã— Não volto hoje para o boulevard
Flandrin. Quero desaparecer até o momento em que o senhor me ponha em
presença daquele que sabe... A minha única probabilidade de salvação é que
aqui até lá ele perca o meu rasto... Só ao senhor farei saber o lugar do meti
refúgio momentâneo. O próprio Rogério o ignorará. Peço-lhe que o
tranqüilize a meu respeito... Obrigado mais uma vez, senhor, e até a vista.
Branca dirigiu-se para a porta.
Armando deteve-a com um gesto e disse-lhe:
— Tenho precisão de hoje em diante de saber que asilo escolhe.
— Só depois de sair daqui o escolherei, queira pois, senhor substituto,
mandar-me acompanhar.
Armando de Logeryl tocou uma campainha, e disse ao contínuo que
apareceu:
— Ponho-o à disposição desta senhora... vai acompanhá-la... ela dar-lhe-
á alguma coisa que depois virá transmitir-me.
Branca tornou:
— Não se esqueça, senhor substituto, das notas que tomou. Mande esta
noite, às dez horas, ao hotel da Rua Compans...
— Esquecer-me... terei todo o cuidado de não me esquecer.

***

Helena escutava sem compreender.


A filha de Pedro Carnot inclinou-se diante dela e murmurou:
— Deus é testemunha, menina, de que lhe perdôo! Ou eu muito me
engano, ou há de vir a ter grande remorso de me haver insultado...
Depois cumprimentou e saiu... O contínuo seguiu-a. A porta fechou-se
após eles. Helena ergueu-se de um ímpeto.
— E deixa-a ir-se embora! exclamou dirigindo-se ao senhor de Logeryl
com uma espécie de alucinação.
— Então o que queria?
— O senhor tinha-a no seu gabinete, no palácio da justiça... bastava
proferir uma palavra, bastava fazer um gesto para a reter presa... e o senhor
não fez esse gesto, não proferiu essa palavra! Esta jovem fica livre, e o
senhor defende-a! Armando não amava minha mãe, e não me ama a mim...
Ao ouvir estas palavras, o substituto tornou-se muito pálido e sentiu o
coração oprimir-se-lhe.
— Helena... Helena... balbuciou com uma voz angustiada. É possível que
tão mal me avalie! Pois bem deve saber que a minha vida lhe pertence, e que
sem a senhora a vida seria para mim um vácuo.
— Se me amasse, pensaria como eu, acusaria quando eu acuso...
— Querida Helena, a justiça, numa alma reta, deve falar mais alto que o
próprio amor... Defendi a menina de Lasseny... defendê-la-ei até o dia em
que tiver a prova de que ela é culpada... e, não tenho remédio senão
confessá-lo, neste momento, julgo-a inocente...
—Então o senhor é cego?
— Não, sou imparcial... A menina de Lasseny veio leal, livremente,
confiar-me o segredo doloroso da sua vida... Prestou-me um minucioso
serviço... Vai entregar-me o homem que deve ter sido o assassino de sua
mãe...
— Conhece-o, é portanto sua cúmplice!... exclamou Helena.
— Será cúmplice inconsciente, irresponsável.
— Oh! Meu Deus... Meu Deus... Ainda a defende!
— E continuarei a defendê-la, repito-lhe, enquanto a sua inocência me
parecer certa... Mas não duvide de mim, Helena... A Duquesa será vingada,
juro-lhe, e eu amá-la-ei sempre!
Naquele momento bateram discretamente à porta do gabinete.

CXL - NOVOS ENREDOS

Era o contínuo que se apresentou depois de receber ordem de entrar.


— O que temos? perguntou-lhe o senhor de Logeryl.
— Senhor substituto, é o inspetor da segurança, Daniel Gaillet.
— Que espere...
O empregado saiu.
— Minha querida Helena, tornou Armando, a nossa conversa não deve
prolongar-se por mais tempo. Vou trabalhar na obra comum... Tenha
confiança, e sobretudo, ame-me, como eu a amo...
O jovem magistrado reconduziu a noiva até ao vestíbulo, e mandou
entrar Daniel Gaillet.
— O senhor chefe da segurança recomendou-me que viesse pôr-me às
ordens do senhor substituto... exclamou o inspetor.
— Sim, senhor Gaillet... Preciso do senhor para um negócio que tem
relação direta com o negócio de que o encarreguei...
— Devo recomeçar a vigilância do boulevard Flandrin?
— Não. Trata-se de uma prisão. Tome notas.
Daniel tirou da algibeira uma carteira, e dispôs-se a escrever.
— Irá esta noite, às dez horas, à Rua Compans, em Belleville n.°... e aí.
num pavilhão situado em meio de um jardim que se chama Chalet, achará o
homem que é preciso prender... Esse homem espera uma mulher às dez em
ponto, e abrir-lhe-ão a porta sem desconfiança.
— Poderei perguntar ao senhor substituto, qual o motivo da prisão?
— O homem é acusado de assassinato.
— Tenho então necessidade de uma ordem de prisão regular...
— Vou assiná-la.
— Deverei conduzi-lo ao Depósito?
— Não, mas à prisão da Santé.
Gaillet não pôde disfarçar um movimento de surpresa.
— Tenho razões para assim proceder, tornou o senhor de Logeryl; quero
durante alguns dias estar senhor do negócio, porque tenho suspeitas, e não
provas... Dar-lhe-ei uma carta para o diretor da Santé, que é meu amigo, e
me dará meio de evitar um escândalo inútil...
— Bem, senhor substituto, deverei efetuar alguma busca?
— Depois de levar o homem para lugar seguro, lançará mão de todos os
papéis e entregar-mos-á, a mim só, amanhã pela manhã... Às nove horas já
estarei no meu gabinete.
— O homem resistirá?
— Talvez... Dizem que é capaz de tudo. Tome por isso as suas medidas.
— Irá só?
— É de crer.
— Bem, senhor substituto.

***

Armando encheu uma ordem de prisão, assinou-a, e deu-a a Daniel.


O agente olhou para ela. ao mesmo tempo que escrevia ao diretor da
prisão.
Estremeceu de súbito, e soltou uma exclamação de alegria selvagem.
— Que tem? perguntou Armando.
— Li bem, é verdade? Este nome é com efeito o que o senhor escreveu:
Pedro Rédon?
— Sim.
— Ah! justiça de Deus! exclamou Daniel Gaillet. A final entrega-se! Há
muito já que o esperava.
— Que quer dizer? Conhece esse homem que se acha envolvido no
mistério do infanticídio de Courbevoie?
— Esse homem, senhor, esse Pedro Rédon, respondeu o agente, não é
outro senão Pedro Carnot, o assassino de minha filha, condenado por esse
fato à pena de cinco anos de trabalhos públicos! Desde que saiu das galés
estou à espera que ele cometa outros crimes, e que esses crimes me
permitam entregar a sua cabeça ao carrasco. As minhas esperanças vão
realizar-se!
— Sossegue, senhor Gaillet, replicou o substituto tornando a, escrever, e
tome cuidado não deixe escapar esse patife.
— Deixá-lo escapar! murmurou o agente com uma voz abafada, e como
que falando consigo mesmo, deixá-lo escapar, quando há mais de dez anos
que eu o procuro! Ah! Mais depressa perderei a vida! Pedro Rédon há de
esta noite ficar preso!
Armando concluíra o seu bilhete lacônico dirigido ao diretor da Santé.
Deu-o a Daniel Gaillet, e concluiu por estas palavras:
— Vá, senhor Gaillet... Até amanhã... Confio no senhor.
O inspetor saiu.
Quase no mesmo instante chegou o contínuo, que acabava de
acompanhar a filha de Pedro Carnot.
Trazia uma carta da falsa Adriana.
Branca anunciava ao substituto que até nova ordem iria morar para uma
pequena casa mobiliada da Rua Notre Dame des Champs.
O senhor de Logeryl meteu esta carta nos autos relativos á morte da
Duquesa de Chaslin, guardou estes autos à chave e saiu.

***

César de Fossaro, cuja perigosa atividade os nossos leitores têm tido


muitas vezes ocasião de verificar, não perdera o seu tempo desde a sua
entrevista com Branca no palacete do boulevard Flandrin.
Deixando Malpertuis, depois de haver conversado por muito tempo
sobre o caso de Picolet, ocupara-se de Fernando Volnay. e da Marquesa de la
Tour-du-Roy.
O comediante, a quem primeiramente foi visitar na vila Montespan. e
que achou só, recebeu-o de braços abertos.
A primeira representação do drama em que Fernando se estreava 110
Ambigu, tinha tido, dias antes, um grande êxito para a peça, e um grande
êxito para o ator.
— Por que não esteve em Paris, querido Fiarão? exclamou o ex-galã de
Belleville. Tanto eu como a Marquesa sentimos bastante a ausência
desagradável que me privava dos seus bravos.
— Meu querido artista, os jornais informaram-me do seu triunfo e dou-
lhe os meus sinceros parabéns.
— Obrigado, mil vezes obrigado.
— O senhor é um homem feliz! Como vão os amores?
— Quais? perguntou Volnay rindo.
— Quais! exclamou César. Por acaso a Marquesa está destronada?
— Ainda não o está de todo, mas já não reina absolutamente, e sem
partilha.
— Temos rivais?
— Uma pelo menos, linda como os amores, e que me adora... Deu-me
cinqüenta luíses por um camarote de frente para a minha representação, e
todas as noites me ai ira no fim do terceiro ato, um ramalhete de quinze
luíses.
— Já se vê que Lazarine tem ciúmes?
— Como uma leoa. Mas achei meio de a tornar razoável.
— Que meio foi?
— Oh! Um meio elementar, e de um efeito muito seguro... a receita está
à disposição de toda gente. Olhe...
E Fernando fez um gesto de quem dá uma bofetada.
— Per Bacco! exclamou César com uma careta significativa. É como
quem diz o jogo da mão morta!
— Da mão morta! repetiu o artista soltando uma gargalhada. Barão, é
um dito engraçado... muito engraçado... deixe-me saboreá-lo.
— E como foi que a Marquesa de la Tour-du-Roy aceitou o presente?
— Ora, chorou muito, gemeu menos mal; falou mini rompimento, e à
noite estava mais terna que nunca...
— Muitíssimo bem! Uma mulher que não se revolta contra uma
familiaridade dessas, é uma mulher enfeitiçada. É chegado o momento
psicológico...
— Explique-se.
— O senhor não tem mais que uma palavra a dizer, para que Lazarine
atire com a coroa de Marquesa para trás das costas, a fim de se tornar a
senhora Fernando Volnay.
O comediante apenas respondeu com um amuo muito pronunciado César
perguntou muito inquieto:
— Por acaso não lhe sorri a idéia de casamento?
— Mesmo nada.
— Por quê?
— Sou homem prático, bem sabe. querido Barão, e por mais de uma vez
me tem felicitado. Isto de casamento é um negócio... Não devemos alienar a
nossa liberdade senão com muita vantagem, em troca de compensações
suficientes...
— Já se vê.
—Ora, o senhor ilude-se, creio, a respeito da fortuna da Marquesa.
— Lazarine possui um milhão e o usufruto de seis milhões...
— O milhão pessoal já há muito foi devorado. A pequena casa onde
residimos, a sua mobília, e algumas pequenas compras, absorveram o resto...
Quanto ao usufruto, não chega para pagar as nossas despesas e as nossas
fantasias... Lazarine vendeu os diamantes, e tinha tenção de vender a mobília
que guarnece o palácio da Rua Murillo.
— O demônio! E ela disse-lhe isso?
— Não tenho precisão de que o diga para o saber... tenho olhos... Seria
pois absurdo desposar uma pessoa interessante, que no dia da maioridade do
seu filho não tivesse um sou. Seria a miséria.
— Miséria relativa...
— Uma miséria muito decente! Seria eu a sustentar a mulher com os
meus honorários! Ora muito obrigado?
— A criança pode morrer, e o senhor ficaria rico.
— Tá, tá, tá! Quem espera por sapatos de defuntos, toda a vida anda
descalço...
— Em tese geral, sim; mas se lhe provassem que há probabilidade séria
de que a criança não viva muito?
— Isso seria muito diverso... Fala-se em seis milhões, mas não creio
nisso... O muito que admito é metade... A quem me provasse que a Marquesa
possui dois, muito bem apurados, abandonaria de boa vontade o resto.
Um riso de mau agouro descerrou os lábios do senhor de Fossaro.
— E eu casaria dentro de vinte e quatro horas, concluiu Fernando
Volnay.
— E o senhor tem em que empregar imediatamente esses milhões?
perguntou César.
— Sim, querido Barão... Posso contar-lho, porque o senhor é um amigo
discreto... Sonhei com alguma cousa de gigantesco, com um estabelecimento
único no mundo... As Folies Bergéres decuplicadas. Uma Tertália mágica
onde se pudesse passar os dias, as tardes, e as três quartas partes das noites
em meio de prazeres variados. Restaurantes, cervejarias, cafés-concêrtos,
carreira de tiro, barracas de feira, teatros de opereta, teatros de baile,
quadrilhas doidejantes dançadas ao som de grande orquestra, as mais bonitas
garotas de Paris.
— Mas espera lá, isso é uma idéia...
— Se é, e na minha opinião, uma idéia rica! Idéia só minha!
— Seria preciso uma sala imensa!
— O local está à minha disposição no mais belo bairro de Paris, a dois
minutos do boulevard Montmartre! Em menos de cinco anos terei dez
milhões!
— Arranje capitalistas.
— Isso é que nunca! Enriquecer exploradores, incomodar-me por causa
de usurários. isso é que não! Tudo ou nada, eis a minha divisa! Quero voar
com as minhas próprias asas, ser senhor absoluto, e não ter contas a dar a
ninguém! O êxito é muito seguro! Sou conhecido, sou adorado, o meu nome
à frente da empresa fará acudir Paris em peso! Preciso de dois milhões, com
estes milhões de pronto realizarei o meu sonho. Tragamos a Marquesa, e
desposá-la-ei se o chamar-se a senhora Volnay a faz feliz! Por dois milhões
caso seja com quem for...
— Pois muito bem, caro artista, volveu Fossaro rindo, se eu encontrar
por acaso uma mulher de dois milhões, expedir-lha-ei imediatamente, e
franca de porte.
— Não deixe de o fazer, Barão, seria uma pechincha para mim.
— E para ela?
— Para ela? Isso parece-me menos certo, replicou Fernando rindo
também; mas expeça sempre.

***

César deixou o comediante, voltou para a carruagem, e deu ordem para o


conduzirem à Rua de Provence, onde conferenciou imediatamente com
Malpertuis.
Os dois sócios puseram-se de acordo a respeito do procedimento que
deviam seguir.
No outro dia pela manhã, quando voltou para casa, a senhora de la Tour-
du-Roy achou uma carta da agência.
Pediam-lhe que se dirigisse ali o mais cedo possível, porque haviam uma
comunicação importante a fazer-lhe.
Lazarine saia do seu palacete da Vila Montespan.
Estava muito triste.
Fernando Volnay em lugar de lhe falar de amor como no começo da sua
ligação, passara quase toda a noite a repetir-lhe que lhe era preciso dinheiro,
muito dinheiro, dois milhões, e que precisava deles imediatamente.
A Marquesa procurava (sem achar, já se vê), o meio de satisfazer as
exigências do amante.
O rendimento dos bens de que ela possuía o usufruto, estavam já
comidos.
Algumas jóias ainda não vendidas, e os móveis da Rua Murilo,
representavam uma quantia relativamente insignificante, que para o apetite
do comediante, seria apenas uma dentada.
Apesar de cada vez estar mais apaixonada e mais ciumenta, não se
iludia.
À medida que o dinheiro diminuía, o comediante esfriava a olhos vistos.
No dia em que faltassem os fundos, o ex-primeiro galã de Belleville
deixaria sem escrúpulos uma amante inútil.
A perversão do senso moral tornara-se tão completa em Lazarine, que
apesar de se assustar e de se desesperar com aquele abandono provável e
próximo, não se admirava por isso.
A brilhante filha de Júlio Leroux, a deslumbrante viúva do Marquês de la
Tour-du-Roy já pertencia à categoria das mulheres galantes que acham
natural e justo pagar o amor de um bonito rapaz, o que ele vale, isto é,
horrivelmente caro.
A carta de Malpertuis fez-lhe febre.
As pesquisas dos misteriosos agentes teriam a final dado resultado?
Iria a morte da criança roubada por Marcelo Laugier depor finalmente
nas suas mãos a fortuna cobiçada?
Deveria, pelo contrário, perder todas as esperanças.
Lazarine formulando a si própria estas perguntas insolúveis, dirigiu-se
logo para a Rua da Vitória.

CXLI - MÃE A FERA

O agente deu logo ordem para imediatamente introduzirem a senhora de


la Tour-du-Roy.
A Marquesa principiou por dizer:
— Esperava a sua carta com impaciência, senhor Malpertuis, acabo de a
receber, e aqui estou.
— Estava convencido da exatidão, volveu o agente sorrindo.
— Encontrou os vestígios do senhor Marcelo Laugier e de meu Filho?
— Sim. minha senhora.
— Finalmente! murmurou Lazarine com um tom de triunfo. Depois
acrescentou:
— Está bem certo de que não o enganam com falsas informações?
— Certíssimo. Eu mesmo quis pessoalmente seguir um negócio desta
importância, fiz uma viagem para eu próprio verificar as informações dos
meus agentes; vi o ex-tenente de hussardos, e o rapazito que ele fazia passar
por filho.
— Então não há dúvidas possíveis?
— Oh! São absolutamente impossíveis, o rapazito de que trata chamava-
se efetivamente Raul Henrique Roberto de la Tour-du-Roy, prova-o na
certidão autêntica.
— Que certidão?
— Uma certidão de óbito.
— O quê! Meu milho morreu! exclamou então a Marquesa.
— Sim, minha senhora.
— O senhor diz que o viu?
— Digo a verdade, e viu-o na véspera do dia em que devia morrer.
— Estava então doente?
Passava pelo contrário às mil maravilhas, e deve convir que era uma
perfeita criança.
A Marquesa sentiu um pequeno calafrio. Perguntou com voz trêmula:
— Que sucedeu?
— Um acidente, minha senhora.
— Um acidente, repetiu Lazarine.
— Sim, minha senhora. Foi tudo obra do acaso. Talvez alguém ajudasse
o acaso, mas com isso ninguém tem nada.
A senhora de la Tour-du-Roy compreendeu, tornou-se pálida e
cambaleou.
A sua comoção teve apenas a duração de um relâmpago.
— Marcel Laugier? tornou ela.
— Marcel Laugier devia perecer com o jovem Raul. Salvou-se por
milagre.
— Mas já nada pode contra mim?
— Sim, minha senhora. A arma que constituía a sua força, despedaçou-
se nas minhas mãos. A senhora está livre.
— Livre e rica... Herdo de meu filho.
Malpertuis tornou a sorrir.
Volveu com uma voz melíflua:
— É para me entender com a senhora a respeito de semelhante herança,
que tive a honra de convidá-la a vir aqui, disse ele.
— Pois não estamos nós já de acordo? perguntou Lazarine. As nossas
convenções estavam de antemão assentes. No dia que se seguir à minha
posse, entregar-lhe-ei a quantia prometida.
— Um milhão! exclamou o ex-advogado com um beicinho significativo.
Estamos muito longe do nosso ajuste.
— Contudo, parece-me...
— Não nos desnorteemos, interrompeu Malpertuis num tom quase
brutal. Tempo é dinheiro! A senhora passou-me o recibo de um milhão, a
pagar-me no dia em que eu lhe apresentasse a prova da morte de seu filho.
Eis esse recibo. Destruo-o. Entre nós deixa de existir convenção escrita.
E o sócio de César rasgou em mil pedacinhos o papel selado, depois de o
apresentar aos olhos de Lazarine.
— Parece-lhe?
— Meu filho morreu, portanto herdo dele, e se me convisse negar a
minha palavra, nada lhe deveria.
Malpertuis encolheu os ombros e replicou:
— Sim, seu filho morreu, mas desafio a que o prove! Ignora o nome que
Marcelo Laugier tomou, não sabe em que terra ela residia, a natureza da
catástrofe, e o sítio onde ela se efetuou, são-lhe desconhecidos. A situação
fica hoje o que era ontem. Não pode tocar na fortuna de seu defunto marido,
nos seis milhões que a final lhe pertencem. É o suplício de Tântalo! Para o
fazer cessar é preciso primeiro que tudo apresentar a certidão de óbito que eu
tenho na minha mão. Muito bem. vendo-lhe a certidão, ou antes a fortuna.
— Por quanto?
— Por dois milhões.
— Negócio concluído! Vou assinar! exclamou Lazarine. Lembrando-se
unicamente de Fernando Volnay, queria dinheiro a
todo transe.
Malpertuis redarguiu:
— Em troca da sua assinatura entregar-lhe-ei a certidão, não tarda em
que tratemos disso. Agora que estamos de acordo, restam-me várias coisas a
dizer-lhe.
— Estou escutando.
— A senhora despende muito.
— Estou costumada ao luxo, e sou muito inclinada a ele.
— Isso é muito natural, mas a senhora despende sem conta. O milhão
que se lhe tinha constituído em dote evaporou-se. Os rendimentos de um ano
dos bens do seu falecido filho já estão comidos. A senhora vendeu os seus
diamantes, e procura comprador para a mobília da Rua Murillo. Não é o luxo
que a conduz à ruína, é o amor...
— Sim. e depois? replicou Lazarine, levantou a cabeça com uma
imprudência magnífica. Sim, é verdade, o amor é o meu luxo. Sei o que faço,
e sei para onde vou... Caminho sem hesitação por uma senda embriagadora,
por onde me acompanha o desprezo do mundo, e que me conduz à ruína...
One me importa? Amo e sou feliz. Uns arruínam-se ao jogo, outros na bolsa.
Os cavalos de correr, as apostas insensatas, absorvem a fortuna destes,
aqueles estragam-na em mil caprichos absurdos... Pois eu. arruinar-me-ei
pelo amor, alegremente, sem um pesar, Tenho um amante a quem amo. Era
muito capaz de lhe dar o meu sangue, posso muito bem dar-lhe o meu ouro...
Quero que ele brilhe... Acho legitimas as suas exigências. Se eu fosse pobre,
amar-me-ia muito menos. Por isso preciso de ser rica!
— Não posso dizer que a aprovo, mas compreendo-a, replicou
Malpertuis depois de apreciar como entendedor a esplêndida beleza da
mulher a quem a paixão tornava deslumbrante. Não me compete governá-
la... Coloco-me sob o seu ponto de vista. É preciso receber, sem a menor
demora, os milhões da herança. Recebê-lo-á? Eis o lado palpitante da
questão...
— Como? Perguntou se os receberei? exclamou a Marquesa. Quem mo
havia de impedir? Não tenho a lei por mim?
— A lei, querida senhora, diz o que se quer que ela diga. Depende da
maneira de a interpretar...
— Assusta-me.
— Tenho a certeza de que os representantes do ramo cadete de Tour-du-
Roy, logo que souberem da morte de seu filho, atacarão o testamento do
falecido Marquês.
— Farão guerra ao testamento?
— Não duvide.
— E têm direito para o fazer?
— Há sempre direito de tentar um processo, e isso faz ganhar dinheiro
aos advogados, aos procuradores, e a toda a caterva da justiça.
— Mas sempre precisam de um pretexto.
— De um pretexto? Terão para dar e vender, sem se cansarem n procurar
muito. Apoiar-se-ão sobre os grandes princípios da moral. Sustentarão que é
imoral, inadmissível, escandaloso, ver a fortuna do Marquês de la Tour-du-
Roy estragada, dilapidada, aniquilada pela amante de um cômico. Ah! Posso
afiançar-lhe que não a poupam.
— Se fosse só isso! murmurou Lazarine com indiferença. Que me
importam as injúrias de um advogado? O essencial é saber se os meus
adversários ganhariam semelhante processo!
— Podem ganhar.
— Talvez não ganhem.
— Em todo caso, a ação intentada por eles pode impedir que a senhora
não toque nos bens em litígio.
— E isso durará por quanto tempo?
— Tribunal de primeira instância oito meses, tribunal da apelação, e
tribunal da anulação, idem. Conte pelo menos dois anos.
— Mas nesse caso, exclamou a Marquesa desesperada, é terrível a minha
situação. Vou ficar sem recursos, e preciso de dinheiro. Preciso quanto antes,
preciso a todo custo.
O ex-procurador fez um gesto que significava claramente: — É triste,
mas nada posso fazer.
Lazarine tornou:
— Senhor Malpertuis, o senhor, cuja experiência e habilidade não têm
rivais, tire-me destas dificuldades. É tanto o seu interesse como o meu. Para
o senhor é negócio de dois milhões. Se a fortuna me foge das mãos, perco-
os.

* *.*

O sócio do Barão de Fossaro, encostou os cotovelos à mesa, mergulhou a


fronte nas mãos, e pareceu refletir.
Procurava com certeza a solução do problema.
Achá-la-á?
A senhora de la Tour-du-Roy aguardava a sua primeira palavra, com a
ansiedade com que o condenado.. morte espera a notícia do seu perdão.
No fim de três ou quatro minutos, Malpertuis levantou a cabeça.
— Vou tomar uma resolução de insigne loucura, disse, e jogar um lance
de dados, que me tornará rico, ou me porá na espinha. Tenha a bondade de
me escutar sem me interromper... serei breve.
Lazarine era toda ouvidos. Malpertuis continuou:
— A herança representa seis milhões, dos quais dois já me pertencem,
em troca da prova legal da morte de seu filho. Abandone-me um dos outros
quatro, substitua-se por mim em todos os seus direitos, por meio de um
documento em boa e devida forma que eu próprio redigirei. Entregar-lhe-ei
três milhões e sustentarei o processo com todo o risco para mim. Tanto pior
para mim se ficar vencido. Convém-lhe a minha proposta? Aceite-a, ou
recuse-a, mas não a discuta! É pegar ou largar...
— Aceito... disse a Marquesa com vivacidade: mas...
— Oh! minha querida senhora, nada de mais...
— Uma simples pergunta.
— Qual?
— Quando receberei os três milhões?
— Assim que assinar o documento redigido por mim, e a procuração que
é indispensável, e que o meu tabelião vai preparar. Dentro de três ou quatro
dias, o muito cinco, estaremos habilitados, a senhora assinará e embolsará.
— Pois sejam quatro ou cinco dias, mas daqui até lá, repito-lhe que
preciso de dinheiro quanto antes.
— Vou portanto ter a honra de lhe fazer um adiantamento de cem mil
francos sobre o seu simples recibo.
— O senhor Malpertuis salva-me a vida... É um procedimento de
cavalheiro que não esquecerei.
— Sinto-me muito feliz, senhora Marquesa, por poder ser-lhe agradável.
E agora que estamos perfeitamente de acordo sobre todos os pontos,
permite-me que lhe dê um conselho muito desinteressado?
— Por que não?
— A senhora ama Fernando Volnay?
— Adoro-o!
—Não é capricho, é paixão?
— Paixão profunda, infinita, absorvente. Se Fernando me deixasse,
matar-me-ia, ou perderia o juízo.
— Pois minha querida senhora, acredite na minha velha experiência. Por
muito formosa que a senhora seja, esse rapaz fugir-lhe-á mais tarde ou mais
cedo, uma vez que esse não esteja ligado à senhora por laços indissolúveis.
— Que laços?
— Os do casamento... Teria de renunciar ao seu título de Marquesa, é
verdade, mas Fernando Volnay é um grande artista, e a nobreza artística vale
tanto como qualquer outra.
— Ah! exclamou Lazarine, ser mulher de Fernando seria o meu sonho! E
esse sonho pode-se realizar? Fernando consentiria em alienar a sua
liberdade?
— Consentirá se a senhora quiser encarregar-me da transação.
— O senhor Malpertuis! murmurou a Marquesa muito admirada.
Conhece o senhor Volnay?
— Conheço.
— E tem sobre ele alguma influência?
— Uma influência muito grande. Autoriza-me a servir-me dela?
— Sem hesitar, e de todo o meu coração.
— Considere então o negócio como feito, porém com uma condição, é
que não falará de mim ao senhor Volnay, e até nova ordem não lhe dirá
palavra do importante negócio que aqui acabamos de tratar.
— Às mil maravilhas...
— Queira assinar-me este recibo. Vou contar-lhe cem mil francos.

***

Minutos depois, Lazarine louca de alegria, deixava a agência, levando


consigo um pequeno embrulho envolvido num jornal, e composto de dez
maços de bilhetes de banco de dez mil francos cada um.
Assim que ela fechou a porta, apareceu Fossaro.
— Bravo, meu belo sócio, exclamou ele rindo, isso é que foi trabalho
bem feito! O ramo mais novo dos Tour-du-Roy foi uma verdadeira mina! A
formosa Marquesa vai toda alegre como se não deixasse nas nossas mãos as
mais brilhantes penas das suas asas!
— Três milhões! exclamou Malpertuis. É uma bonita conta!
— Enquanto esperamos pelo quarto, que nos há de vir de Fernando
Volnay, ocupa-te do comediante o mais depressa que possas.
— Vê-lo-ei amanhã, e sei o que lhe devo dizer.
César voltou para os seus aposentos esfregando as mãos.
O ex-procurador tornou a sentar-se à sua secretária, preencheu os
intervalos em branco de uma caria de convite para o dia seguinte, meteu a
carta no sobrescrito, e endereçou-a paro Fernando Volnay, artista dramático,
na vivenda Montespan, e incumbiu um dos empregados do escritório de ir
deitá-la no correio.
Lazarine dera ordem ao cocheiro para a conduzir à Avenida de Eylau.
Pelo caminho refletiu no que acabava de se passar, no dinheiro que ela
pagava por bom preço, no negócio de burla que ela tão levianamente
concluíra, mas teve todo o cuidado de se não deixar possuir de idéias
tristonhas.
Tinha ali sobre os joelhos os cem mil francos, realizaria três milhões em
breve prazo, e dentro de alguns dias Fernando Volnay seria seu marido.
Não sucedia tudo pelo melhor, no melhor dos mundos possíveis?
"Risonha e alegre apeou-se da carruagem, à grade da vivenda
Montespan, e subiu ligeiramente os degraus do palacete.
Ela tinha toda a certeza de ser bem recebida, porque levava dinheiro ao
comediante.

CXLII - UMA AGÊNCIA DE CASAMENTOS

Naquela tarde, no momento em que ia para o teatro, Fernando Volnay


recebeu a carta em que Malpertuis lhe pedia que fosse ao escritório no outro
dia às quatro horas, para negócios que lhe diziam respeito.
Fernando Volnay não pôde deixar de murmurar:
— Espera lá, os aplausos e o amor fizeram-me esquecer que eu devia
dinheiro a este homem e prometera levar-lo. Mas ele lembra-se. Pois muito
bem, terá amanhã capital e juros, e restituir-me-á certo papel que eu já há
muito tempo devia ter retirado.
No dia seguinte à hora indicada, Miguel, o contínuo de fato pardo,
introduzia o comediante no gabinete de Malpertuis.
O ex-procurador levantou-se para o receber e disse-lhe no tom mais
amigável:
— Querido senhor Volnay dê-se ao incomodo de se sentar.
— Que mudança! pensou o mancebo sentando-se numa cadeira de
trabalho. Há dois meses este agente tratava-me do alto da sua grandeza, hoje
ei-lo um torrão de açúcar. O que é a glória!
— Quando o senhor falava do seu talento, do seu futuro, dizia a verdade,
continuou Malpertuis. Fi-lo a caminho, ei-lo célebre; põe Paris em alvoroço!
Os meus cumprimentos! Fernando retorquiu todo lisonjeado:
— O público efetivamente mostra-me uma grande benevolência, mas
isso não devia ter feito esquecer-me que eu sou seu devedor.
— Ora adeus, eu tinha-lhe dado todo o tempo possível. Se lhe pedi que
viesse hoje ao escritório, não foi só para lhe lembrar essa bagatela.
— Tem mais alguma de que me falar? exclamou o ator muito
surpreendido.
— De cousa muito mais importante.
— O senhor faz-me cismar, confesso.
— Tenha paciência. Vou direito ao meu fim, e a despeito das leis da
conveniência, transporei o muro da sua vida privada. A par das suas fortunas
de teatro, tem sido fortunas de outro gênero, e fortunas muito lisonjeiras.
— Mas, senhor, interrompeu Fernando.
— Oh! Não negue. Estou ao fato dos seus amores como o mais bem
informado dos cronistas da imprensa parisiense. O senhor é amante da
Marquesa de la Tour-du-Roy que o adora e faz loucuras por sua causa.
Fernando tornou-se cor de púrpura, e quis falar.
— É inútil interromper-me, continuou Malpertuis com vivacidade, a
Marquesa faz loucuras. Está no seu direito, porque é viúva, mas a família do
seu marido tem razão para achar desagradável a fama galante que ela dá
neste momento ao generoso nome de la Tour-du-Roy. O senhor tem
demasiada agudeza de espírito para não compreender isto...
— Compreendo-o, senhor, balbuciou o comediante. Mas com que fim?...
— Com que fim me ocupo de uma cousa que na sua opinião não me diz
respeito?
— Exatamente.
— Pois meu querido senhor, sucede que a cousa me diz respeito, pelo
contrário, e eis por quê. O representante do ramo mais novo dos Tour-du-
Roy, ignorando que eu o conheço, e trabalhando por conta de um conselho
de família, incumbiu-me de tomar informações precisas e circunstanciadas,
acerca do presente e do passado do senhor Volnay.
O comediante fez-se pálido de cólera...
— São imperiosas tais investigações! exclamou.
— São, pelo contrário, muito naturais. Se a Marquesa dilapida a fortuna,
é por sua causa, meu querido senhor. O senhor Volnay é o instigador da sua
ruína.
— Eu sou o instigador?
— Com toda a certeza!A Marquesa fez-lhe presente do palacete da
Avenida d'Eylau. Estragou um milhão que lhe pertencia propriamente.
Vendeu os diamantes... procura vender a mobília... Recebeu e despendeu
antecipadamente os rendimentos de um ano. Tudo se funde nas suas mãos...
Se estes fatos, mais indiscutíveis uns que outros, chegam ao conhecimento
do conselho de família, far-se-á de certo declarar pelos tribunais a
incompetência da senhora de la Tour-du-Roy, tirar-lhe-ão a administração
dos bens do filho, e por conseguinte gozo dos rendimentos, finalmente,
procurar-se-á a sua interdição.
— Então a Marquesa ficará perdida?
— Sim, perdida, se eu falar. Mas eu posso calar-me, ou por outra forma,
posso par a seu respeito as melhores informações, e fazê-lo passar como um
rapaz um pouco leviano talvez, mas honrado, leal, cheio de futuro...
— Que sucederia então?
— O conselho de família, desejando primeiro que tudo, que a formosa
viúva deixe de usar o nome de la Tour-du-Roy, faria a proposta para o
senhor a desposar.
Fernando repetiu muito cheio de assombro:
— Desposá-la... e ela consentiria?
— Tem-lhe amor bastante para lhe sacrificar o seu título, esteja certo.
— Mas, senhor, se as rendas de Lazarine estão comprometidas, como
diz, e como eu creio, condenar-me-ia à miséria casando com ela.
— Espere lá... A família daria três milhões à Marquesa, e a propriedade
absoluta dos três milhões ser-lhe-ia reconhecida.

***

As palavras: três milhões, descerraram aos olhos de Fernando Volnay


uma radiante miragem.
Viu-se à testa daquela. Tertúlia gigantesca com que sonhava, e de que
falara ao senhor de Fossaro.
— Que pensa de tudo isso? continuou Malpertuis.
— Penso que este casamento, em tais condições, seria a garantia da
minha felicidade.
— Este casamento depende do senhor. Dar-me-á muito simplesmente
um milhão do dote. Vendo-lhe a minha consciência pos este preço... Se acha
que é muito caro, não falemos mais nisso.
— Que sucederia?
— Mandava ao representante do conselho de família informações sérias,
e juntava-lhe a declaração escrita pelo senhor aqui mesmo a respeito de
certos bilhetes assinados com um nome falso... Talvez se sirvam daquela
declaração para o deitarem a perder. É possível. É até provável... Que
decide?
— Oh! senhor, não hesite... Era inútil ameaçar-me... Pagar-lhe-ei do dote
um milhão...
— Restar-lhe-ão dois... e tenho a firme convicção de que hão de
frutificar entre as suas mãos. Um sujeitinho do seu quilate deve ter idéias.
Fernando sorriu-se.
— Sente-se á minha secretária, continuou Malpertuis, e escreva O que
vou ditar.
"Eu, abaixo assinado Fernando Volnay, artista dramático e proprietário,
morando em Paris, na Avenida d'Eylau, vivenda Montespan, declaro ter
recebido do senhor Malpertuis a quantia de um milhão, que me obrigo a
pagar-lhe a ele ou à sua ordem, dentro das quarenta e oito horas, que se
seguirem ao meu casamento com Lazarine Leroux, viúva do Marquês de la
Tour-du-Roy."
— E depois? perguntou Fernando Volnay.
— Date e assine, e mais nada... Fica bem entendido que a Marquesa não
deve suspeitar da combinação que houve entre nós... e que até ignore a nossa
entrevista.
— Serei mudo.
— Conto com isso. No dia em que eu receber o milhão estipulado,
entregar-lhe-ei os bilhetes de Marselha e a sua comprometedora declaração.
— Senhor, eu vinha pagar-lhe e retirar esses papéis.
— E eu quero conservá-los até nova ordem.
— Contudo...
— Oh! não insista... Nunca revogo uma decisão tomada... A nossa
conferência está terminada... Até a vista, caro senhor.
O ex-procurador apertou a mão de Fernando, reconduziu-o e fechou após
si a porta do gabinete.
Tornando a sentar-se no seu lugar, disse pondo novamente os papéis em
ordem.
— Mais um negócio liquidado. Tudo caminha! Basta de trabalho por
hoje... Vou regalar-me com um bom jantar no restaurante, e dar uma volta
pelas Folies Bergères.

***

Eram nove horas da noite.


Pedro Carnot, o cego de um olho, subiu lentamente a Rua da Crimée, por
trás do Largo das Buttes Chaumont, em direção ao chalet da Rua Compans.
Chegando ao muro, tirou uma chave da algibeira, abriu uma portinha,
atravessou o jardim, e com auxílio de uma segunda chave, introduziu-se no
chalet.
Desde o regresso a Paris do Barão de Fossaro, na sua volta de Genebra, a
casinha rústica tinha estado desabitada.
Entendera conveniente mandar Margarida Vernaut passar alguns dias no
campo, para os lados de Chantilly.
César entrou na sala principal do rés-do-chão.
Esta sala estava úmida e glacial.
Principiavam os frios que faziam prever um inverno rigoroso.
As primeiras camadas de neve cobriam a terra, e apenas se fundiam no
meio-dia.
No fogão havia um montão de lenha já preparada.
O senhor de Fossaro largou-lhe fogo, acendeu uma vela e sentou-se
diante do fogão.
Olhou distraidamente para as chamas que crepitavam, e para as achas
que estalavam e se fendiam.
Com certeza que o seu pensamento vagava longe dali.
Em que pensava?
No passado cheio de trevas, no futuro resplandecente.
Contemplava em meio de um clarão de apoteose, os milhões acumulados
pelos seus crimes, e calculava a soma de prazeres e de gozo que aqueles
numerosos milhões lhe iam proporcionar, quando se retirasse do negócio,
como um honrado industrial, depois de fazer fortuna.
Fora reinava grande sossego.
A neve principiava a cair.
As ruas daquele bairro isolado estavam desertas e silenciosas.

***

Quatro homens, muito bem agasalhados, com o rosto meio oculta sob
fartos cachenês, deslizavam ao longe das paredes como sombras, andando
sem ruído.
Estes quatro homens fizeram alto junto da porta por onde Fossaro se
introduzira um pouco antes.
Havia um a quem os outros três obedeciam.
Era Daniel Gaillet.
— É aqui, disse ele.
— O que substituiu Daniel, perguntou-lhe:
— Agora que vamos fazer?
— Uma coisa muito simples, respondeu Daniel Gaillet. Eu vou escalar o
muro com um de vocês. Quando nos acharmos no jardim, iremos colocar-
nos à direita e à esquerda da entrada do chalet. Daqui a cinco minutos o
senhor baterá a esta porta.
— Há uma campainha, observou um dos agentes.
— Em vez de bater, tocará a campainha.
— E depois?
— Depois, como o nosso homem não desconfia, porque espera alguém,
virá abrir, e filá-lo-emos na passagem. Isto deve caminhar perfeitamente.
— Mas se for preciso prestar-lhe auxílio? tornou o agente subalterno.
— É exato... Abrir-lhe-emos a porta lá de dentro, mas só em caso de
necessidade deverá aparecer...
— Fica entendido...
— Sirvam-me de escada, tornou Daniel, sou o primeiro a entrar...
O polícia mais robusto cruzou as mãos no ventre e encostou-se na
parede.
Daniel serviu-se daquela escada improvisada, para subir para os ombros
do colega, e dali para o muro.
Apesar de já não ser moço, conservava, então, graças à regularidade da
sua vida, um vigor pouco comum.
Suspendeu-se pelos pulsos à aresta do muro, e deixou-se cair no jardim.
Um segundo agente seguiu o mesmo caminho, e achou-se ao pé do
inspetor.
— Meu amigo, era inútil, era inútil a sua escalada, disse o inspetor
abrindo a porta que estava apenas no trinco.
Depois, acrescentou, falando aos outros dois agentes:
— Não se mexam, e de revólver em punho!
Feita esta recomendação, Daniel e o seu companheiro, caminhando pela
neve, cuja camada pouco espessa ainda, abafava o ruído dos passos,
dirigiram-se para o chalet.
Através das águas de uma das persianas do "rez-de-chaussée"
infiltravam-se umas réstias de luz.
Os dois homens postaram-se à direita e à esquerda da porta, empunhando
cada um o seu revólver engatilhado, pronto a fazer fogo.
Imóveis e silenciosos como cariátides, esperaram.
O frio chegava ao vivo, repetimos, do negro céu caíam grandes flocos de
neve.
Daniel tinha os pés gelados, e contudo, um suor abundante umedecia-lhe
a raiz dos cabelos.
A febre escaldava-lhe o sangue.
O coração parecia querer saltar-lhe do peito.
Decorreram assim alguns minutos, depois, no relógio, ao longe, deram
dez horas.
À última badalada, respondeu o tinir da campainha, agitada por um dos
agentes.
Gaillet já não respirava.
Na chalet Pedro continuava a cismar, atiçando com mão distraída os
toros inflamados.
Ao ruído da campainha estremeceu e levantou-se rapidamente.
— É ela, murmurou com um sorriso feroz. Aí está, apesar das suas
veleidades de resistência, continuo a dominá-la. Obedece, portanto sente-se
vencida, e resigna-se a ser Duquesa. Tinha já a certeza disso.
Levantou-se e correu para a porta que abriu para sair.
Mas parou repentinamente aterrado.
Soltou um grito de raiva.
Dois homens impediam-lhe o caminho.
Apontavam-lhe os seus revólveres.
Ao mesmo tempo dizia-lhe ao ouvido uma voz sibilante:
— Tenho esperado por muito tempo, mas apanhei-te finalmente, Pedro
Carnot, e não te tornarei a largar.

CXLIII - A FERA NO LAÇO

Ao ouvir o seu verdadeiro nome proferido por aquela voz, o zarolho


dirigiu o seu único olho para aquele que acabava de falar. Reconheceu-o
logo.
— Daniel Gaillet! exclamou aterrado.
— Sim, replicou o inspetor, sim, Daniel Gaillet, o pai da tua vítima! Não
te matei há dezesseis anos porque eu contava com os juízes para a vingança
de minha filha, e para te mandarem ao cadafalso... Enganava-me, mas não
perdia a esperança, porque sabia que um dia virias fatalmente cair-me nas
mãos em conseqüência de novos crimes! Procuro-te há dez anos... Hoje,
tenho-te nas mãos, e desta vez não estou com medo de que a justiça se
mostre clemente! Condenado fugido das galés, prometo-te a guilhotina! Em
nome da lei, prendo-te. Dá cá as mãos para te algemarem!
As palavras de Daniel Gaillet não chegavam ao ouvido de Fossaro senão
como um murmúrio quase indistinto.
A idéia de que soçobrava exatamente quando chegava ao porto do
destino, fazia-lhe perder a cabeça.
Paralisava-o o desvanecimento dos seus sonhos.
Entrevia o cadafalso no meio de uma nuvem de sangue.
— Dá cá as tuas mãos! repetiu Daniel Gaillet.
Desta vez Fossaro ouviu.
Em lugar de obedecer, recuou de súbito, e ocultou os braços atrás das
costas.
— As tuas mãos, ou faço-te saltar os miolos! exclamo o inspetor
chegando o cano do revólver às fontes do miserável.
Fossaro compreendendo que Gaillet não hesitaria em dar ao gatilho,
submeteu-se.
Puseram-lhe as algemas.
— Vão buscar-me a carruagem! gritou Daniel aos agentes que tinham
ficado à porta do jardim.
Um deles partiu a correr, o outro dirigiu-se para casa.
— Agora, prosseguiu o inspetor dirigindo-se a um dos homens, vai ficar
aqui até o meu regresso, porque tenho de proceder a uma busca. Fechar-se-á
por dentro, não abrirá a porta seja a quem for, finalmente, não dará sinal de
vida senão à minha chamada, quando reconhecer a minha vox...
— Está combinado, meu inspetor, volveu o agente.
***

Como os nossos leitores sabem, Fossaro, tanto no moral, como no físico,


era de uma tempera vigorosa.
Durante a troca das poucas palavras precedentes, recuperara todo o
sangue trio.
— O senhor prende-me, disse ele, tenho o direito de saber em virtude de
que mandado...
Daniel tirou da algibeira a ordem entregue pelo substituto, abriu-a e pô-
la ao alcance da vista do zarolho.
— Quem assinou isso?
— Veja.
E Gaillet apontou para a assinatura do substituto.
Fossaro leu o nome de Armando de Logeryl, e não pestanejou.
Aquele nome dizia-lhe tudo quanto queria saber.
Tornou:
— É então por ter fugido das galés que me prende? A ordem de prisão
não declara nenhum delito.
— A minha missão não é responder.
— Tem razão. Posso pelo menos saber aonde me vai conduzir?
— Verá...
César compreendeu que Daniel Gaillet não falaria. Calou-se.
Tornou ao silêncio.
Mas já não era aniquilamento, era reflexão.
Da banda de fora ouviu-se um rumor abafado, que cessou de repente.
O agente mandado em busca do trem, tornou a aparecer.
— A caranguejola está lá em baixo, disse.
— A caminho! ordenou Daniel Gaillet.
Fossaro dirigiu-se para a porta escoltado pelo inspetor e pelos agentes.
Um dos agentes subiu primeiramente para o trem.
Em seguida subiu o Barão, junto do qual se sentou Daniel.
O terceiro polícia instalou-se na almofada, ao pé do cocheiro.
O trem partiu.
O que ficou de guarda à casa fechou a porta da rua, depois a porta da
casa, ateou o lume do fogão, sentou-se. pôs os pés na cinza quente, acendeu
o cachimbo e esperou.

***

O trem rodava lentamente.


A neve meio fundida, congelava-se ao tocar na calçada, e tornava difícil
o caminhar dos cavalos.
No interior da carruagem, não se proferia uma palavra.
Dava meia-noite quando parou o veiculo.
Daniel saltou com toda a presteza do lado direito, ao mesmo tempo que
os outros dois agentes guardavam a portinhola da esquerda.
Num tom breve ordenou:
— Apeie-se!
Fossaro obedeceu, e olhou para a frente do edifício que tinha diante de
si.
Reconheceu-o imediatamente.
— A prisão de la Santé, disse consigo. Não é um cárcere. Que significa
isto?
O inspetor tocara; a porta abriu-se.
O preso e os guardas penetraram no cárcere.
— Um recluso, disse Daniel ao chefe dos guardas. Eis a ordem de prisão
e uma carta do substituto para o diretor.
O chefe dos guardas pegou na carta, examinou a ordem e replicou: —
Está em regra... Podem tirar as algemas a esse homem, respondo por ele...
O preso foi desalgemado.
O inspetor tornou:
— Assine-me um recibo. A minha missão está concluída, e vou-me
embora...
— Não há nenhuma recomendação particular? perguntou o guarda
enquanto passava o recibo.
— Nenhuma.
— Eis o que quer.
— Obrigado.
Daniel deitou para o preso um olhar de triunfo, meteu o recibo na
algibeira, e dirigiu-se com os agentes para o trem que devia reconduzi-los à
Rua Compans.

***

Fossaro ficou em companhia de dois guardas e do chefe, este perguntou-


lhe:
— Não traz armas consigo?
— Já me revistaram, respondeu César.
— E dinheiro?
— Alguns luíses... três ou quatrocentos francos, parece-me.
— Então toma um quarto?
— Tomo.
— Deponha o dinheiro...
O zarolho tirou da algibeira um "porte-monaie" cujo conteúdo deitou em
cima da mesa.
O guarda contou e viu que havia trezentos e setenta francos.
— Tem aqui com que se instalar muito convenientemente... disse.
Deixo-lhe dois luíses. É permitido ter aqui algum dinheiro. Quando se lhe
acabar, peça-me mais.
Fossaro embolsou as duas moedas de ouro.
— Agora, acrescentou o guarda, vou dar-lhe lençóis e conduzi-lo à
célula. Amanhã pela manhã fá-lo-ão descer ao escritório, para lhe tomarem
os sinais. Venha.
Cinco minutos depois. Fossaro estava só, e perguntava a si próprio de
onde podia ter vindo o golpe imprevisto que o fulminava.
Não era duvidosa a resposta a esta pergunta.
A assinatura que figurava na parte superior da ordem, bastara para o
esclarecer.
Na sua opinião era evidente e indiscutível que o negócio da Duquesa de
Chaslin era a causa da sua prisão.
Mas naquele caso Branca havia falado.
Parecia-lhe impossível.
Branca não podia tê-lo traído.
E contudo, quem, salvo a jovem, podia ter dado a indicação do chalet da
Rua Compans?
Quem, excetuando Branca, sabia que ele ali estaria às dez horas da
noite?
Como explicar aquilo?
Talvez a filha de Clara Gaillet estivesse presa... talvez louca de terror,
houvesse confessado o crime de que se sentia cúmplice, e denunciado, sem
querer, toda a verdade.
Como era então que o motivo da acusação não se especializasse na
ordem da prisão?
Geralmente, não se têm cerimônias com um homem acusado de um
crime capital.
Conduzem-no ao Depósito, depois a Mazas, onde o põem em segredo no
começo da instrução.
Com ele não se dava nada disto.
Encarceravam-no, ou melhor dizendo, encerravam-no na casa de la
Santé, prisão reservada às pessoas condenadas pelos tribunais correcionais a
penas mínimas por delitos sem gravidade.
Muito longe de o meterem no segredo, admitiam-no no quarto particular.
Não existiam portanto contra ele senão suspeitas, e Branca, se estivesse
presa, devia achar-se no mesmo caso.
Fossaro lembrava-se do que lhe dissera a falsa Adriana a respeito dos
pressentimentos e das suspeitas da menina de Chaslin.
Recordava-se também do grânulo caído do frasco sobre o tapete.
Portanto, o senhor de Logeryl procedia contra ele independentemente do
tribunal, e sob a sua própria responsabilidade.
Só se tratava de Pedro Carnot, ou antes de Pedro Rédon.
Não se tratava, não se podia tratar do Barão de Fossaro.
Ninguém, nem mesmo Branca, suspeitava do mistério daquela dupla
individualidade.
Era preciso portanto, que Pedro Rédon preparasse os seus meios de
defesa, e estivesse apto para arrostar tudo, mesmo uma acusação baseada em
fatos positivos.
César de Fossaro sorriu de modo estranho e murmurou:
— O substituto julga que tem a mão cheia de trunfos, mas não é de força
a lutar comigo...

***

Tranqüilizado por estas reflexões, deitou-se na cama, e dormitou


conforme pôde até pela manhã.
Ao romper do dia estava de pé.
Tirou a sua carteira da algibeira lateral do jaquetão que não tinham
revistado.
A carteira continha três bilhetes de mil francos, e vários papéis.
Por um exame atento, o Barão certificou-se que nenhum destes papéis o
podia comprometer, como também o não comprometiam as notas inscritas
numa das páginas.
Depois disto, fez no pano do seu colchão uma fenda.
Escondeu ali os bilhetes do banco, depois esperou que o viessem buscar
para o levarem à casa do assento, o que não tardou.
Inscreveram-no no livro de entrada, tomaram nota dos seus sinais, e
tornaram a levá-lo para a célula que devia ficar aberta até a hora
regulamentar em que à noite se fechava a prisão.

***

Os presos iam de porta em porta, cumprimentavam-se e conversavam de


coisas indiferentes para se distraírem.
O zarolho mostrou-se muito benévolo.
Era um recém-chegado, o quanto bastava para despertar a curiosidade
geral.
César de Fossaro julgava-se fisionomista. Tinha presunção de que em
dez vezes nove não se enganava, ao avaliar qualquer à primeira vista.
Conversava ao pé da porta da célula com um preso, a quem explicava da
maneira mais fantasiosa os motivos da sua prisão, julgando-se condenado
por delitos de imprensa.
Um mancebo de vinte e três ou vinte e quatro anos, tendo na mão um
pequeno embrulho, aproximou-se e disse ao interlocutor do Barão:
— Antes de me ir embora, venho apertar-lhe a mão. Vão chamar-me
para me porem ao fresco. Daqui a meia hora estou ao ar livre.
— Você tem sorte... murmurou o preso... Ainda me faltam oito dias, e
principio a aborrecer-me horrivelmente!
— Ora adeus! Uma semana passa depressa! Quer alguma coisa lá para
fora?
— Não, meu caro. Vem ver-me de dois em dois dias. Obrigado.
Fossaro estremecera.
— Senhor, disse para o mancebo, cuja fisionomia apresentava uma
expressão de franqueza, sou um condenado político, tenho portanto o direito
de me dizer honrado... Apesar de ser para o senhor um desconhecido,
permita-me que lhe peça um serviço.
— Prestar-lho-ei se estiver na minha mão... De que se trata?
— Simplesmente de deitar um bilhete no correio.
— Isso é fácil, com a condição de que não tenha muito que escrever,
porque me vão chamar de um momento para o outro.
— Bastar-me-ão dois minutos...
— Avie-se, portanto...
O primeiro preso tomou a palavra:
— Tendo chegado ontem à noite, disse, é possível que não tenha o que
lhe é preciso para uma correspondência... Entre na minha célula, senhor...
achará em cima da mesa papel, pena e tinta.
César apressou-se logo a aproveitar este amável oferecimento, e traçou
rapidamente as linhas seguintes:
"Estou num quarto particular, na prisão da Santé. Vá a minha casa e tire
dos autos do faubourg Saint-Honoré uma carta datada de Roche sur Loire.
Terceira prateleira da biblioteca de segredo. Preciso dessa carta, custe o que
custar. Não seja inquieto.
Seu P. R.

Fechou isso num envelope, e sobrescritou:

"Senhor Malpertuis.
Agente de negócios,
Rua da Vitória.
Pessoal."

Dirigindo-se novamente ao mancebo, e dando-lhe a carta, disse-lhe:


— Aqui tem, é negócio urgente, muito urgente, afianço-lhe...

CXLIV - OS RECURSOS DE MALPERTUIS

O que ia sair solto olhou para a carta, e disse: É escusado deitá-la no


correio... Eu mesmo a levarei... vou para os lados da Rua de Provence.
— Presta-me um serviço, um grande serviço! replicou Fossaro.
— Com bem pouco incômodo, senhor... Mas onde demônio hei de meter
esta carta, para que os guardas não dêm por ela... Se por acaso me
revistassem à saída?...
— No seu chapéu, dentro do forro.
— Espere lá, é uma idéia...
— Não é nova a idéia, mas parece que sempre prova bem.
O mancebo tirou o chapéu, e procedeu à operação indicada por César.
Era tempo.
Um guarda chamou:
— Senhor Lebarrois... ao escritório.
O que saía solto trocou vários apertos de mão, e seguiu o guarda. Uma
hora depois, a carta de Fossaro chegava às mãos de Malpertuis.
— A letra de César! murmurou Malpertuis muito intrigado. Rasgou o
envelope, e logo às primeiras palavras tornou-se lívido.
— Preso! exclamou com terror. Por quê? Todo trêmulo continuou a
leitura. Quando concluiu, tornou:
— Eis um mau negócio! A prisão de Pedro não será o desabamento dos
trabalhos de dez anos? Quando ainda era tempo repetia-lhe que parasse. Não
quis! Que se passa? Vou viver em terríveis aflições até que me seja revelada
a palavra do enigma... Entretanto, César ordena, devo obedecer... Preciso,
custe o que custar, de uma carta datada da Roche sur Loire, e que está nos
autos do faubourg Saint-Honoré. São os autos da família de Chaslin... Por
acaso terá Branca, feito das suas? Tenho dó dela, porque Pedro Carnot
mataria a filha como matou a mãe... Terceira prateleira da biblioteca à
esquerda... Vamos...
Malpertuis fez girar a porta oculta, e entrou no gabinete de trabalho de
Fossaro.
Depois de cinco minutos de pesquisas, voltava para o seu gabinete com a
carta datada de la Roche sur Loire. e dirigida pelo Duque à Duquesa.
Como era natural leu-a. Sorriu e exclamou:
— Oh! Oh! Pedro tem razão dizendo-me: Não esteja inquieto! Está
perfeitamente defendido com esta carta... Mas como fazer-lha chegar às
mãos? Ir ter com ele, para lha entregar secretamente, seria comprometer-nos
a ambos... perder-nos talvez... É preciso procurar alguma coisa engenhosa.

***

O ex-procurador pôs-se a refletir.


De repente uma expressão alegre iluminou-lhe o rosto.
Achara o que procurava.
Depois de guardar a preciosa missiva num envelope sem direção que
guardou na sua carteira, Malpertuis vestiu o sobretudo, pôs o chapéu,
encarregou o empregado principal de atender os clientes na sua ausência, e
dirigindo-se ao palácio da justiça, procurou a repartição das multas, onde era
muito conhecido, porque ai ali muitas vezes pagar por clientes seus.
Perguntou pelo chefe da repartição.
O empregado que estava na cobrança, respondeu-lhe cumprimentando:
— Sim. senhor Malpertuis, está acolá, no seu gabinete. Oh! pode entrar...
O chefe da repartição acolheu cordialmente o ex-procurador com estas
palavras:
— Que bom vento o traz por aqui? Posso ser-lhe útil? — Pode, sim.
— Em quê?
— Pode ajudar-me a reparar um erro imperdoável que cometi.
— Que me diz?
— Imagine que ontem um pobre homem foi levar-me algum dinheiro,
para que eu pagasse por ele uma multa resultante de uma sentença
correcional proferida há três dias. O bom do homem tinha de partir para o
campo. Deixou-me o nome. a morada, a citação, o dinheiro, e perdi tudo,
menos o dinheiro...
— Oh! demônio! Se não sabe como se chama o seu cliente, de ocasião,
será difícil.
— Se visse o seu nome escrito, talvez me lembrasse.
— É justo, isso sucede muitas vezes... Vou proporcionar-lhe os meios de
tentar a experiência...
E o chefe deu ordem ao empregado para mostrar a Malpertuis as
sentenças correcionais da semana.
O ex-procurador compulsou uns vinte autos, e tomou a seguinte nota na
sua agenda:
"Fernando Gardel, comerciante de feira, Rua das Auvierges, 29, em
Belleville, contravenção aos regulamentos, e resistência a um agente de
autoridade; cinco dias de prisão, 25 francos de multa. Custas 47 francos e 75
cêntimos."
— Achei o meu homem, disse em voz alta, Fernando Gardel, e vou
pagar-lhe por sua conta 72 francos e 75 cêntimos. Passar-me-á um duplicado
do boletim, se me faz favor.
— O que quiser.
— Tem cinco dias de prisão, disse o empregado.
— Sim, com o seu recibo e o seu boletim, o nosso homem não tem mais
que apresentar-se na Santé, não é verdade?
— Vou dar-lhe um boletim para a Santé.

***

Malpertuis agradeceu e voltou para o trem que o trouxera.


Fazendo-se conduzir a Belleville, à Rua Auvierges, achou Fernando
Gardel num pequeno quarto, cuja aparência mais que modesta, indicava
senão a miséria, pelo menos a falta de meios.
— O senhor não me conhece, disse ao vendilhão, mas eu conheço-o, e
venho aqui para lhe ser útil... com utilidade alheia, já se vê. Eu me explicarei
sem perífrases. Venho da repartição das multas... O senhor tem que lá pagar
72 francos e 75 cêntimos...
— Sim, senhor, recebi aviso, e estava agora perguntando a mim mesmo
onde e como encontrarei esta quantia, que parece não valer nada. e que para
mim é enorme...
— Pois está paga, anunciou Malpertuis.
— Ora adeus!
— Aqui está o recibo.
— E é verdade... Paga! Mas por quem?
— Por mim... Não me pergunte porque, vai saber. Além da multa tem
cinco dias de prisão.
— Disseram-me que se quisesse, teria quinze dias para me defender.
— Não tem uma hora. Aqui está o seu boletim para a prisão da Santé,
prisão encantadora, onde uma pessoa está como em sua casa... melhor talvez
que em sua casa.
— Lá isso é verdade, confirmou o vendilhão olhando em redor de si com
ar desanimador.
— Agora aqui tem duzentos francos em ouro para não se privar de coisa
nenhuma, e tomar um quarto particular, porque é indispensável.
E dizendo isto. Malpertuis apresentou em cima da mesa de madeira em
ouro o recibo, o boletim, o bilhete de mil francos, e as dez moedas de ouro.
— Mas senhor, exclamou Gardel estupefato, tem então precisão de que
vá para a prisão da Santé?
— Já se vê!
— Devia ter logo dito isso...
— Estou dizendo...
— O senhor não tem a pedir coisa que seja indigna?
— Avalie: trata-se de passar esta carta de maneira que não seja vista no
cartório, e entregá-la a um preso.
— Mais nada?
— Mais nada.
— Estou às suas ordens. O nome do preso? Porque não vejo nada escrito
no envelope.
— Pedro Rédon...
— Cá me fica!... Quando nos pomos a caminho?
— Já. Vou acompanhá-lo... Pegue em alguma roupa...
— É escusado... Cinco dias passam-se depressa...
— Não é tanto assim.
— Mudei de roupa esta semana, e não sou homem de luxo. Só preciso do
tempo para ocultar a carta.
— Vamos a isso.
— Não leva muito tempo, verá.
Gardel despiu o paletó, um paletó quente, forrado de algodão debaixo
dos braços.
Descoseu o forro, meteu a carta e o bilhete de mil francos entre os dois
chumaços de algodão, e tornou a fechar a costura com muita habilidade.
— Pronto! disse em seguida, tornando a vestir o paletó. Não se vê, nem
se conhece! O mais esperto não seria capaz de descobrir a gíria!
Malpertuis passou duas ou três vezes a mão pelo lugar designado.
Do exame resultou-lhe a certeza de que não era possível encontrar o
esconderijo, salvo se houvessem pesquisas minuciosas que provavelmente
não se dariam.
— A caminho, disse.
O comerciante pegou no seu cachimbo, no seu tabaco, e na sua chave, e
só deixou o agente à porta da prisão, para se entregar na prisão.

***

Desde pela manhã César de Fossaro estava entregue a uma ex-citação


nervosa fácil de avaliar.
No seu íntimo, perguntava como é que Malpertuis acharia meio de lhe
fazer chegar às mãos a carta preciosa de que parecia depender a sua
salvação.
Convencido de que de um momento para o outro seria chamado, ou à
presença do juiz de instrução, ou à do procurador da república, ou à do seu
substituto, queria ter uma arma para se defender, e sendo necessário, para
atacar.
Ora. que arma haveria melhor que a carta do Duque de Chaslin, se
alguma imprudência de Branca, a respeito da morte da Duquesa, houvesse
dado motivo à sua prisão?
Mas, supondo mesmo que aquela arma chegasse, não chegaria tarde?
Além disto César, censurava a si próprio, não sem amargura, um
esquecimento que tivera, e que lhe parecia imperdoável.
Como fora que ele esquecera de acrescentar à sua carta estas palavras:
"Saber o que fazia Branca."
A resposta àquela pergunta, bastaria de certo para lançar a luz em meio
das trevas.
Aproximava-se a hora da refeição.

***

O moço encarregado de ir buscar os jantares dos presos dos quartos


particulares a um restaurante das proximidades, acabava de tomar nota das
encomendas, quando um guarda seguido de um indivíduo de fisionomia mais
risonha que triste, apareceu na galeria.
O homem trazia dois lençóis no braço.
Ao ruído das chaves e dos passos, tinham aparecido todas as cabeças às
portas das células.
— Um novo hóspede... cochichavam as vozes dos presos.
E olhavam todos para o recém-chegado com uma curiosidade que a sua
aparência vulgar e sem relevo estava bem longe de justificar. O guarda
designou uma célula.
— Aqui é que o senhor fica... disse. Já jantou?
— Não, senhor.
— Quer mandar vir o jantar de fora?
— Quero.
— Muito bem, dirija-se a este rapaz... Ele lhe trará o que o senhor
mandar.
— Pronto; não levará muito tempo, porque não sou difícil de contentar.
E Gardel, porque era ele, depois de encomendar uma sopa de cebola,
meia dose de carne com convés, duas salsichas, um pedaço de queijo e uma
garrafa de vinho, entrou na célula e preparou-se para fazer a cama.
Ta entretanto dizendo consigo:
— Cá estou... Estes cinco dias não me hão de parecer muito compridos.
Mil francos! Se quiserem, passarei muitos mais por este preço! Sem falar nos
duzentos francos, dos quais gastarei a quarta parte, o muito. Trata-se agora
de desempenhar a minha comissão, e depressa, é o que menos me custa.
Pagaram-me para isso.
Durante o monólogo, Gardel ia enchendo o cachimbo.
— Bravo! exclamou ele quando concluiu esta operação, não há fósforos!
Pois bem, é agora ocasião de travar dois dedos de conversa com os colegas.
Saiu da célula e dirigiu-se para a primeira porta aberta. Parou à entrada.
Um mancebo sentado a uma pequenina mesa, escrevia ao pé da janela.
— Queira perdoar, disse-lhe Gardel, podia ter a bondade de me dar um
fósforo? Esqueci os meu sem casa.
— Muito bem, tire-o desta caixa.
— Muito obrigado, meu senhor. Se não é indiscrição, permite-me que
lhe pergunte uma coisa?
— Queira dizer.
— Há muito tempo que está aqui?
— Há quinze dias. Exatamente metade do presente que me fez o
tribunal.
— Então poderia talvez, dar-me uma informação?
— Qual?
— Conhece um preso chamado Pedro Rédon?
O mancebo ia responder de modo negativo, quando Fossaro saiu da
célula vizinha, e disse apresentando-se:
— Pergunta por Pedro Rédon, senhor, sou eu.
Gardel voltando-se, achou-se em frente de Fossaro.
— Nesse caso, senhor, exclamou ele, estou encarregado de lhe transmitir
muitos cumprimentos.
— Da parte de quem?
— Da parte de um dos seus amigos da rua da Victoria.
César teve um estremecimento de alegria.
— Ah! exclamou, conhece o meu amigo da rua da Victoria? Venha
comigo, vamos falar dele.
Assim que se achou na sua cédula. Fossaro fechou a porta.
— Traz-me uma carta? perguntou com vivacidade e em voz baixa.
— Trago.
— Dê cá.
— Um pouco de paciência, é preciso descoser.
E o comerciante despindo o paletó, repetiu o trabalho que vimos fazer
em Belleville.
Depois introduziu dois dedos na abertura, tiro na carta que deu ao Barão,
e acrescentou:
— Eis o que é... A minha comissão está desempenhada.
Fossaro rasgou o envelope, que não tinha direção, e tirou a carta do
Duque.
Na pupila do seu único olho brilhou um fulgor de triunfo. Sentia-se
agora forte, quase invulnerável.

CXLV - OS ARTIFÍCIOS DO CIÚME

A formosa mulher de quem ouvimos Fernando Volnay falar ao Barão de


Fossaro, e que depois de ter dado mal francos por um camarote de boca para
a primeira representação do drama do Ambigu, mandava todas as noites ao
comediante um ramo de quinze luizes, não era outra senão Genoveva, como
os nossos leitores hão de ter compreendido.
A ex-amante do principezinho cada vez estava mais apaixonada pelo
belo rapaz que quisera raptar á Marquesa de la Tour-du-Roy, e Fernando
começava a entusiasmar-se extraordinariamente por aquela admiradora
entusiástica do seu talento e da sua pessoa; mas a vigilância incessante de
Lazarine. como pouca ou nenhuma liberdade lhe deixara, demorava um
desenlace esperado e desejado de parte a parte com febril impaciência.
Por duas ou três vezes, deixando a vivenda Montespan sob pretexto de
ensaios, fora ao "boulevard de Malesherbes. na esperança de precipitar esse
desenlace.
Genoveva não entendia as coisas assim.
Respondia-lhe redondamente:
— É verdade que estou louca pelo senhor, mas recuso aceitar a esmola
de uma hora subtraída à sua amante pública. Tudo ou nada. eis a minha
divisa. Tenha a coragem de se libertar. Venha cá depois do espetáculo,
achará ceia. agasalho e o mais. Até lá, meu queridinho, nada, mesmo nada.
O comediante, em quem o interesse falava mais alto do que o capricho,
recuava diante de um rompimento completo com a Marquesa, e dava tratos à
imaginação.
A situação poderia ter-se prolongado assim indefinidamente, mas no dia
que se seguiu à sua entrevista com Malpertuis, Lazarine recebeu uma carta
anônima que modificou extraordinariamente as coisas.
O autor desta carta, um ator de ínfima ordem, muito invejoso das
fortunas de toda a espécie de Fernando Volnay. avisava a "Marquesa de que
ela fazia o ridículo papel de um mulher enganada pelo amante com uma rival
indigna.
Como já dissemos, a senhora de la Tour-du-Roy era ferozmente
ciumenta.
Contudo vigiava tanto o ator, julgava-se tanto ao fato dos seus menores
passos, que a sua incredulidade foi a principio completa; a reflexão produziu
a desconfiança.
No fim de um quarto de hora. Lazarine já não duvidava: sentia-se
atraiçoada, e queria ter disso a certeza.
Como chegar a esse resultado?
Nada mais simples, bastava empregar o antigo meio gasto até no fio. e
que dá contudo sempre bom resultado, fingiu uma ausência.

***

Com a intuição particular às mulheres apaixonadas, a Marquesa


adivinhou que a sua rival não nomeada devia ser Genoveva Leinen,
cúmplice da insolência de Heitor na primeira representação dos Beijos
Mortais, e cuja assiduidade ela notara muitas vezes, com exaspero, às
representações do Ambigu. sempre na mesma frisa de boca.
— É ela, murmurou Lazarine. Tenho a certeza de que é ela! Hei de obter
provas disso, e arrancar a essa rapariga o homem quem eu quero fazer meu
marido.
O ciúme torna as mulheres hábeis na arte de dissimular. Naquela tarde a
senhora de la Tour-du-Roy falou a Fernando com uma fisionomia
extremamente triste.
Como de a interrogasse àquele respeito, respondeu:
— Meu querido, tenho um grande desgosto...
— A propósito de dinheiro? perguntou o comediante franzindo as
sobrancelhas.
— Sim, a propósito de dinheiro, mas não como tu o julgas, hei de ter
dinheiro, havemos de o ter... e até muito.
— Então tudo corre o melhor possível.
— De certo, somente...
— Somente, o que?
— O meu tabelião de Paris com quem estive há pouco, tem necessidade
de certos papéis que estão no escritório do meu tabelião de Orleans.
— É preciso pedir-lhos o mais depressa possível.
— Isso já podia estar feito, mas o tabelião só os entregará a mim, e tenho
de os ir buscar.
— A Orleans?
— Infelizmente! É o que me apoquenta. Separar-me de ti!
— Oh! por tão pouco tempo. E quando partes, meu amor?
— Esta noite mesmo.
Ao olhar atento e desconfiado de Lazarine, não podia escapar a
expressão de alegria indizível que iluminava o rosto do comediante.
Por isso ela disse consigo amargamente:
— Como ele está satisfeito com a minha partida, a carta anônima não
mentia. Continuou em voz alta:
— Parto, esta tarde, no comboio das cinco horas e quinze minutos. Terás
tempo de me acompanhar ao caminho de ferro, e de voltar em seguida ao
teatro para te vestires?
— Isso não admite dúvida, demais se eu me demorasse alguns minutos,
tanto pior! O público teria de esperar.
A Marquesa beijou Fernando, como para o recompensar destas boas
palavras.
Mas enquanto o abraçava dizia no seu íntimo:
— Hipócrita e mentiroso!

***

A tarde chegou.
Os dois amantes jantaram juntos.
Em seguida o artista acompanhou a amante à gare, viu-lhe tomar o seu
bilhete para Orleans, quiz ele próprio instalá-la no compartimento reservado
às damas.
No momento da despedida, jurou que pensaria nela constantemente, e
fez-lhe prometer que tomaria no dia seguinte sem falta.
E quando o comboio se punha em movimento, voltou para o seu coupé
murmurando:
— Até que enfim ela partiu! Estou livre, tenho a minha noite para mim!
Que sorte!
Pelas três horas da tarde, Genoveva Leinen recebera um telegrama
concebido nos seguintes termos:
"Irei cear contigo esta noite.
"Fernando."

E a velhaca dissera como o ator:


— Até que enfim!

***

Lazarine partira de fato, somente ninguém se admirará ao afirmarmos


que ela tencionava parar no meio do caminho.
Apeou-se em Étamps, com grande assombro do empregado, a quem ela
apresentou um bilhete com destino a Orleans.
Como não queria entrar em Paris muito cedo para não se expor a
comprometer, com alguma imprudência, o êxito do seu projeto, dirigiu-se
para a cidade, transpôs- o limiar da hospedaria, tomou um quarto, pediu um
caldo, bebeu um copo de vinho de Bordeus, de que tinha grande necessidade
para se amparar, porque havia jantado aparentemente no momento da
separação.
Um pouco depois da meia noite, voltava ao caminho de ferro, tomava o
comboio da uma hora e sete minutos, e chegava a Paris às duas horas e meia
da manhã.
Tomando um dos trens que passam a noite nas estações dos caminhos de
ferro, preveniu o cocheiro de que por certo tomaria o trem por muito tempo,
e fazia-se conduzir à vivenda Montespan.
Enquanto o velho trem de aluguel rodava aos solavancos pela avenida de
Trocadero, depois de haver seguido pelos cais intermináveis murmurava:
— Mas se a carta anônima tivesse mentido... se eu me tivesse enganado!
Que alegria! Que embriaguez!
Durante a noite caíra uma grande quantidade de neve.
O desgraçado cavalo escorregava a cada passo, e não avançava.
Davam quatro horas, quando chegava ao termo da sua corrida.
A senhora de la Tour-du-Roy apeou-se à entrada da vivenda Montespan,
tirou duas chaves da algibeira, e com estas chaves abriu sem ruído a grande
do pátio e a porta do vestíbulo.
O seu coração, que até àquele momento batia com violência oprimiu-se-
lhe de repente.
Num sócio do vestíbulo gastava-se uma vela lentamente no seu castiçal,
e o pavio carbonizado espalhava apenas um incerto clarão.
Esta vela colocada no mesmo lugar todas as noites pelo criado de quarto
para o dono da casa. parecia demonstrar até à evidência que Fernando não
voltara.
Lazarine pegou no castiçal com mão trêmula, subiu a escada, cujos
degraus estavam cobertos com um espesso tapete felpudo, e dirigiu-se para o
quarto de dormir cheio para ela de inebriantes recordações.
Meio desfalecida, parou à porta, e pôs o ouvido a escuta.
Reinava profundo silêncio.
Nem um ruído, nem um sopro sequer, denunciavam a presença de
qualquer criatura viva.
A Marquesa, com as fontes banhadas de suor, o colo palpitante, fez girar
a lingueta e abriu a porta.
A corrente de ar produzida por aquele inesperado movimento apagou a
vela, e a jovem achou-se então sem luz.
Pôs-se outra vez a escutar.
Nada ouviu.
Pôs o castiçal no chão, entrou no quarto, e sem hesitar dirigiu-se para o
grande leito de colunas torcidas, cujo lugar ela conhecia tão bem.
Apalpou as coberturas, procurando um corpo sob o seu tecido macio, e
não o achou.
— Vamos, murmurou, já não me resta dúvida... Sou traída! Procurou em
cima da mesa de cabeceira uma caixa de fósforos que sempre ali
estava.acendeu um, e deitou os olhos em roda de si.
No quarto de dormir reinava a ordem mais irrepreensível.
A cama não fora calcada, nem desmanchada.
Lazarine percorreu sucessivamente o gabinete de trabalho, a sala, o
gabinete de fumar, andando com um passo automático semelhante ao de um
sonâmbulo.
Voltou para o quarto, deitou para a cama vazia um olhar consternado,
murmurando palavras indistintas, depois, lívida como um morto, e os olhos
rodeados de uma orla cor de carvão, voltou para o vestíbulo, apagou a vela.
saiu do palácio cuja porta fechou,e do pátio, cuja porta empurrou, e voltou
para o trem que a trouxera.
A neve tornando a cair cm espessos flocos, tornava os caminhos quase
impraticáveis.
— Para onde, freguesa? perguntou o cocheiro.
— Para o boulevard Malesherbes...
— Ó demônio! A minha cocheira é em Grenelle, e com este tempo de
mil demônios, desejava voltar para casa. A minha perua já não se tem nas
pernas.
— Dois luizes de gorjeta, volveu Lazarine.
— Adiantados?
— Aqui estão...
— Basta, freguesa... Tanto pior para o bicho... Ele que arrebente se
quiser... Não é meu... Boulevard Malesherbes... Que número?
A Marquesa indicou o número da casa onde morava Genoveva Leinen, e
acrescentou:
— Deverá parar defronte.
— Compreendi.
A senhora de la Tour-du-Roy tornou a subir para o trem. e como o frio a
incomodava, levantou os vidros do trem. O cocheiro fustigou o cavalo. Ao
mesmo tempo murmurava com uma voz chocarreira:
— É uma senhorita com ciúmes que corre atrás do amante ou do marido.
Vai talvez passar-se o bom e o bonito! Gosto destas coisas de mulheres.
Divertem!
***

Agachada a um canto do trem, Lazarine fechava os olhos e deixava o


espírito entregar-se ao único pensamento que a preocupava.
Via em imaginação a sua rival no fundo do seu camarote de boca, linda
como um Grévin, deliciosa de chic e de elegância, com o seu sorriso
provocante e os seus olhos incendiários.
Depois, a cena mudava, os vestidos da formosa beldade desapareciam
como um costume de mágica, e Genoveva abandonava-se desvelada e sem
pudor nos braços de Fernando, embriagado pela paixão.
Lazarine sentia-se enlouquecer.
O trem fez alto.
A senhora de la Tour-du-Roy tirou com a luva uma pouca da geada
espessa que cobria o vidro, e reconheceu que tinha chegado.
Havia muito ela queria saber onde morava aquela mulher, de quem um
vago ciúme lhe dizia que desconfiasse.
— Foi ali. murmurou ela. foi ali que ele passou a noite com aquela
velhaca. Ah! miserável rapariga, como eu a odeio! Mas paciência!...
Tiram seis horas da manhã.
A pardacenta alvorada começava a despontar, fazendo amarelecer a luz
dos bicos de gás.
A Marquesa tornou a cair numa completa prostração.
As suas ligeiras botinhas de estofo tinham bebido água como esponjas,
enquanto ela pisava a neve da vivenda Montespan.
Tinha os pés gelados, os dentes batiam-lhe uns nos outros, e todo o corpo
lhe tremia sem que ela reparasse nisso.
Deram sete horas... depois oito... depois nove.
O cocheiro que saltara da almofada, sapateava na calçada para aquecer
conforme podia.
Lazarine, exausta de forças, parecia dormir de olhos abertos. mas aquele
sono era mais aparente que real.
Não perdia de vista a porta da rua.
O seu rosto contraído pelo frio. pela insônia, pela angústia, não parecia o
mesmo.
— Cedo ou tarde, ele há de sair. dizia ela consigo, e ainda que eu tivesse
de esperar aqui até à noite, hei de obter a prova da sua traição.

CXLVI - GELO E FOCO


Às nove e meia, a senhora de la Tour-du-Roy estremeceu.
Levou a mão ao lado esquerdo do peito.
O coração oprimia-se-lhe.
Fernando acabara de aparecer no vão da porta principal.
Vendo o passeio coberto de neve meio fundida, parara.
Ao mesmo tempo abria-se uma janela no primeiro andar, em uma jovem,
envolta num penteador mal abotoado e com o cabelo em desalinho,
debruçava-se do parapeito da varanda.
Era Genoveva.
O comediante levantou a cabeça.
A sua nova amante gritou-lhe:
— Sobe outra vez; vou mandar-te buscar um trem.
Lazarine não deu tempo a Fernando de responder.
Saltou para a neve e disse:
— Um trem! tenho aqui o meu! Venha, senhor Volnay.
Genoveva reconheceu Lazarine, deitou-se rapidamente para trás e fechou
a janela.
O artista estupefato, desconcertado, perdendo toda a presença de espírito,
fez-se pálido e corado alternadamente.
Quase sem ter consciência do que dizia, balbuciou:
— Tu. És tu!
— Espero-o desde as seis horas da manhã,.. replicou a senhora de la
Tour-du-Roy. Venha, vou levá-lo para casa...
O cocheiro instalara-se na sua almofada.
Sorriu como um filósofo, para quem certos aspectos da vida parisiense
não têm segredos.
O belo Fernando, cada vez mais assombrado, não sabia que cara
apresentasse.
Lazarine ia pedir-lhe explicações. Apanhado em flagrante delito, que
poderia responder?
Recusar seguir a amante, era-lhe impossível.
lá iam parando alguns transeuntes.
Sem dizer palavra, subiu para o trem.
A Marquesa antes de se sentar ao lado dele, voltou-se para deitar os
olhos para a janela fechada.
Genoveva arredara a cortina de guipure, e em pé detrás da vidraça, ria-se
com um ar insultante.
A senhora de la Tour-du-Roy estremeceu de ódio, e sentiu possuir-se de
um desejo de vingança.
— Aonde vamos? perguntou o cocheiro.
— Avenida d'Eylau. vivenda de Montespan.
***

O trem rodou.
Fernando silencioso, tudo corrido, procurava o meio de cortar ou pelo
menos de atenuar uma cena inevitável, em que para ele não seria o papel
brilhante.
— Lazarine, disse de repente à jovem inerte e muda, querendo pegar-lhe
na mão, Lazarine, escuta-me.
— Oh! peço-lhe, interrompeu a Marquesa com uma voz alterada tirando
a mão, peço-lhe, não me fale agora... Depois... daqui a bocado.
E desatou a chorar.
O comediante, atirando-se para o seu canto donde não se mexeu mais,
pensou:
— É escusado insistir.

***

O trem parou junto à grade da vivenda Montespan. Fernando foi o


primeiro a apear-se. Puxou pelo "porte-monaie".
Lazarine, repelindo-o de num bilhete de cem francos ao cocheiro.
— Quanto devo dar de demasia à senhora? perguntou o cocheiro.
— Guarde tudo.
— Obrigado, minha senhora. Quando tiver necessidade de um trem,
recomendo-me.
O comediante tinha entrado em casa.
Lazarine seguiu-o.
Foi direito ao seu gabinete de trabalho.
Ela transpôs a porta ao mesmo tempo que ele..
O bonito rapaz acabara de traçar a sua linha de procedimento.
— Tomarei as coisas de alto, disse ele consigo. Serei brutal se preciso
for, e sairei da contenda com as honras da guerra!
Por isso fechou a porta de uma maneira tão violenta, que os quadros
pendurados nas paredes puseram-se a bater.
Caminhando para Lazarine com uns ares furibundos, exclamou:
— Não quis escândalo na rua, mas aqui estou em minha casa. Falas ou
não?
Lazarine endireitou-se. Passou-lhe pelos olhos um relâmpago. Contraiu
as narinas. Armou-se-lhe entre as sobrancelhas uma profunda ruga.
— Sim, respondeu, falarei...
— Que tens a dizer-me?
— Em primeiro lugar isto. És um covarde!
Fernando encolheu os ombros.
— Isso é um pé de cantiga! exclamou tornando a adotar a linguagem e o
tom da súcia. Deixemos-nos de cantigas! Palanfrório! Frases de teatro! Já
passou da moda! Sejamos francos! Passei uma noite com Genoveva... Não
posso dizer que não, porque me apanhaste ao saltar da cama. E depois?
— Achas então isso muito simples?
— Ora adeus! Não sou um monge, sou um homem.
— Um homem indigno, é verdade! Parto... Prodigalizas-me os
juramentos de amor... deixas-me com beijos jurando-me que levo o teu
coração, e mal me sentes longe de Paris vais para casa dessa mulher! É
indigno e covarde!
— Sou ou não senhor das minhas ações?
— Não! não! não! cem vezes não! não és senhor! Amei-te. Disseste-me
que me amavas... Eu acreditei. Não eras nada, fiz-te o que és, para te elevar
até mim, e para não me envergonhar do meu amor.
— Lazarine! Lazarine! interrompeu o ator com uma entoação
ameaçadora.
— Não me calarei! Quiseste que falasse... falarei.
— Toma cuidado!
— Em que? Vai-me bater? Já o fizeste! Está nos teus costumes bater nas
mulheres. Se não gostas de me ouvir, mata-me, porque é o único meio de me
impores silêncio... Eras pobre e enriqueci-te. Eu, a Marquesa de la Tour-du-
Roy, aviltei-me ao ponto de frequentar a boêmia teatral para te seguir por
toda a parte, para te provar que o meu coração e a minha alma te pertenciam
completamente! Não, não és senhor de si! És um bem, uma coisa que me
pertence. Comprei-te, Fernando Volnay! Comprei-te, arruinando-me!
Ao ouvir estas palavras, o comediante deu um pulo exasperado, os lábios
espumantes, e com as costas da mão esbofeteou a amante.
— Covarde! Covarde! Covarde! bradou Lazarine.
O ator agarrou-lhe nos braços, apertou-lhe os pulsos quase a esmagá-los,
quebrando-lhe os braceletes que magoavam as carnes delicadas, disse com
uma voz sibilante, os dentes cerrados, os olhos desvairados:
— Escuta-me bem, e não te esqueças! Sou senhor de mim, senhor de
mim, senhor absoluto, e posso proceder como entendo. Fui amante de
Genoveva, porque o quis ser, e tinha o direito de o querer... Ah! elevaste-me
à tua altura e envergonhaste-te do comediante! Pois minha querida, era
preciso dizê-lo! Não era o teu coração que te impelia para mim, era a tua
fantasia de grande fidalga caprichosa e gasta. Desejaste Fernando Volnay,
como desejarias um quadro de mestre, uma parelha puro sangue, um palácio
da Renascença. Desconfiava disso, mas fazia diligências para o não crer.
Agora tenho a certeza. Pois muito bem, tiveste Fernando Volnay, pagaste-o,
estamos quites!
Lazarine estava como doida, enquanto o amante lhe fazia este pequeno
discurso que acabamos de reproduzir.
— Ah! balbuciou ela com uma voz extinta, não pensas o que dizes!...
— Eu penso o que tu própria dizes.
— Então não te amei?
— Capricho, minha querida, puro capricho!
— Oh! mas isso é horrível é mais horrível que bater-me... Negas o meu
coração! negas a minha alma! negas o meu amor!
— Perfeitamente exato! para ti eu era uma coisa, um objeto de luxo e de
fantasia! pois Genoveva teve o mesmo capricho que tu, o que prova que ela é
mulher de gosto...
— Ah! não me fale dessa rapariga! gritou Lazarine.
— Por quê? Não tenhas ciúme. Entradas de favor é que nunca! Tu
pagaste, ela há de também pagar, visto que segundo as tuas próprias
palavras, fica entendido que me compram!
— Oh! cala-te, cala-te! tornou a Marquesa. Esquecerei tudo... tudo,
entendes, se me juras não a tomares a ver. Se te comprometei a não proferir
o seu nome diante de mim. Confessa somente que fizeste mal, e perdôo-te.
— Teria feito mal se fosse escravo, e houvesse enganado o meu senhor,
mas sou livre. Não confesso nada!
Lazarine torcendo as mãos. balbuciou: — Mas então ainda amas essa
criatura?
— Acho-a bela e capitosa, e o teu ex-amante, o principezinho de Castel-
Vivant, que deve ser entendedor, era da minha opinião. Tem olhos de
bailadeira, uma boca embriagadora, um sorriso de Erigona, finalmente o que
quer que seja que nos sobe à cabeça, e nos mete o diabo no corpo...
— Visto isso, perguntou a senhora de la Tour-du-Roy com uma espécie
de ardor feroz, é a sua beleza, só a sua beleza, que te faz cair nos seus
braços? Foram os seus olhos, a sua boca e o seu sorriso que te tornaram
perjuro?
— Somente, respondeu Fernando, muito satisfeito do caminho que as
coisas iam tomando. Bem deves compreender que para me possuir é preciso
ser bonita.
— Mas não lhe tens amor?
— Oh! isso é que não!
— Mas prometeste torná-la, não é verdade? Para que negar se tenho a
certeza! Na embriaguez das suas caricias, sob o fogo dos seus beijos, juraste-
lhe deixar-me! Ela disse-te: Serás só meu! E fascinado por aquela beleza que
tu achas tão capitosa, comprometeste-te a isso. E farás o que disseste?
— Palavra que não. Afinal, zombo de Genoveva... Tu vales muito mais!
Lazarine continuou com uma voz surda e alterada:
— Se soubesses o que sofri por causa daquela mulher, terias piedade de
mim! Imagina que entrei esta noite aqui, pelas quatro horas da manhã, em
dúvida, mas sempre com esperança. Quando achei o quarto deserto, o leito
vazio e frio, julguei endoidecer! Aquela criatura tinha-me roubado o meu
amante, tinha-me roubado a felicidade, e isto graças à sua beleza! Oh! a sua
beleza, a sua beleza maldita! E há pouco, no momento em que te trazia, via-a
rir ironicamente detrás da vidraça fechada. A infame ria-se quando olhava
para mim, Lazarine de la Tour-du-Roy!

***

A Marquesa baixou os olhos, e por espaço de alguns segundos guardou


silêncio.
A expressão sombria do seu rosto, causava a Fernando uma vaga
angústia...
De repente levantou a cabeça, e num tom quase ligeiro, perguntou:
— Queres que tudo acabe? Queres esquecer?
— Francamente?
— Sim, francamente... Façamos as pazes...
— Sem condições?
— Sim, sem condições. Dá-me um beijo.
O comediante abriu os braços...
Lazarine lançou-se-lhe a chorar sobre o peito do amante. Esta crise de
sensibilidade foi de curta duração.
— Vamos, está acabado... balbuciou ela em seguida. Foi um sonho mau,
não falemos mais nisso.
— Sim, não falemos mais nisso... repetiu o ator maquinalmente, que não
achava explicação à mudança repentina da amante.
— Estou gelada... tornou a senhora de la Tour-du-Roy. Não fechei olho
em toda a noite, vou voltar para casa, e descansar um pouco. Queres mandar
pôr o trem para eu me retirar?
Fernando apressou-se a dar ordens, mas a sua preocupação aumentava.
Estranhou Lazarine. Ao fim de dez minutos o coupé estava pronto.
— Quando te torno a ver? perguntou o comediante com uma voz
maliciosa. Esta noite, não é verdade?
— Sim. esta noite... Virei jantar contigo.
— Esperar-te-hei cheio de impaciência e de amor. Ao ver-se na
carruagem, a Marquesa disse consigo:
— Já não possuo todo o seu coração. Esta rapariga levou-me metade.
Não poderei viver assim!
Assim que se achou no palácio, a senhora de la Tour-du-Roy mandou
embora o trem de Fernando; em lugar de se deitar, mandou dizer ao seu
cocheiro que pusesse imediatamente o trem, e tratou da sua toilette.
A criada de quarto, que segundo sabemos era muito dedicada à
Marquesa, exclamou:
— Como a senhora Marquesa está pálida! Está incomodada?
— Não, filha, estou apenas muito cansada...
— Mas a senhora vai sair?
— É preciso, é indispensável...
— Mas a senhora almoçou ao menos?
— Não. porque não tenho fome... Vista-me primeiro, em seguida dar-
me-há um copo de vinho de Jerez e um biscoito...
Lazarine falava com voz breve.
Os olhos cintilavam-lhe no rosto lívido; tinha uns gestos incertos.
Aqueles modos singulares, produziam na criada de quarto uma surpresa
em que havia algum terror.
Meia hora depois, terminada a sua toilette, a Marquesa encheu de vinho
de Jerez um copo em forma de tulipa, e despejou-o de um trago.
Pelas faces espalhou-se-lhe logo um fraco tom de rosa e o brilho das suas
pupilas aumentou.
Olhou para o relógio que marcava duas horas, calçou as luvas. pôs o
chapéu e a capa de peles e desceu.
A carruagem esperava diante da escadaria.
— Boulevard Malesherbes. n.°... disse Lazarine ao cocheiro.
Ia a casa de Genoveva.

CXLVII - AS DUAS RIVAIS

O coupé parou diante da casa habitada pela ex-amante do Príncipe Totor.


A senhora de la Tour-du-Roy apeou-se do trem, entrou, e sem falar ao
porteiro, subiu pela escada que conduzia ao quarto de Genoveva.
A cocote ocupava o primeiro andar.
Lazarine sabia isso, porque a vira pela manhã à janela.
Sobre o patamar havia uma só porta.
Era uma grande porta de duas batentes, fingindo ébano e ornada com
filetes de ouro.
A Marquesa tocou com mão febril, ouviu a campainha soar no interior, e
em seguida ouviu passos.
Abriu-se uma porta, e apareceu uma criada de quarto.
— A menina Genoveva Leinen? perguntou Lazarine.
— A senhora saiu, respondeu a criada de quarto.
— E isso é verdade?
— Sim, senhora; mas a senhora não tarda.
— Posso esperá-la?
A criada de quarto hesitou antes de responder.
A senhora de la Tour-du-Roy meteu-lhe dois luizes na mão.
O argumento não admitia réplica.
A visitante foi conduzida imediatamente à sala. onde ficou só.
Ai deixou-se cair numa cadeira, e de cabeça baixa refletiu.
No fim de vinte minutos a campainha tornou a soar, um cochichar de
vozes atraiu a atenção de Lazarine, e quase no mesmo instante Genoveva
entrou.
Ao ver quem a esperava, a cortesã tornou-se um pouco pálida.
— Sou a Marquesa de la Tour-du-Roy, disse Lazarine dando dois passos
ao seu encontro.
Genoveva readquirira o seu aprumo.
— Conheço-a, volveu ela em tom desdenhoso, e admira-me a sua
presença em minha casa. Que me quer?
— Quero saber, respondeu a Marquesa aparentemente muito sossegada,
quero saber em que preço avalia a noite concedida pela senhora ao meu
amante. E como sou bastante rica para pagar as suas fantasias de um minuto,
os seus caprichos de uma hora, venho pagar a sua conta, o que ele se
esqueceu de fazer.
A cortesã não esperava semelhante entrada.
Sob aquele insulto, o rosto transtornou-se-lhe: os lábios descoraram-lhe.
Arrancou a capa e o chapéu que atirou para cima de um móvel, depois,
avançando por seu turno para Lazarine, disse com uma voz alterada:
— Olá, senhora, cale-se! Está em minha casa, e não se o que poderia
suceder se não cessasse as suas injúrias!
— O que sucederia? perguntou a Marquesa medindo de alto a baixo a
sua rival com um desprezo esmagador, sim, o que sucederia?
— Nada, exclamou Genoveva repentinamente. Para que me hei de
encolerizar? Seria toleima irritar-me com os seus ultrajes. O orgulho ferido,
o ciúme, o despeito enlouquecem-na... Veio, tanto melhor! aproveitarei o
ensejo para dizer o que penso da senhora.
— Tome cuidado!...
— Em que? perguntar-lhe-ei eu agora. Chamo-me Genoveva Leinen, e a
senhora chama-se Marquesa de la Tour-du-Roy. Muito bem. Marquesa,
vamos conversar. Tirei-lhe o amante, e deseja saber porque? Pela razão
muito simples de que o amo. Quer que lhe diga quanto me deve pelos beijos
que recebeu? Não os vendi, dei-os. Ele não me deve nada. e a senhora deve-
me a mim respeito, a mim, rapariga galante, que faço do amor modo de vida,
enquanto que a Marquesa mancha o nome e enxovalha o título, tendo um
ator por sua conta. Pois esse ator meu igual, tirei-lhe e tornarei a tirar-lhe.
faça a senhora o que fizer para o reter. Amo-o! Não é um capricho,
desengane-se, é uma paixão! Amo-o tanto, como a senhora o ama. Amo-o
mais talvez... adoro-o! E ele amar-me-á... ama-me já!
— Ah! bradou Lazarine, com os olhos dilatados, as mãos empadas, não
diga isso!
— Por quê? Digo-o porque é verdade! Tirei-lhe Fernando. Julga talvez
que não sou bastante rica para o conservar? Tente lutar. Marquesa, e
veremos... Por ele sacrificarei tudo! Amo-o! Arruinar-me-ei por causa dele
se for preciso, e demais sou formosa, tão formosa como a senhora.
— E conta com a sua beleza para me tirar o meu amante?
— Conto.

***

Após um momento de silêncio, Lazarine que cessara de ser senhora de


si, apesar dos seus esforços, murmurou com voz alterada:
— Sabe que me fez sofrer muito?
— Isso é que para mim é indiferente! Não a conheço.
— Se eu lhe pedisse que não tornasse a ver Fernando?
— Responder-lhe-ia que era louca! Neste mundo cada qual trata de si!
— E é a sua última palavra?
— Pudera!
A senhora dela Tour-du-Roy olhou fixamente para a sua rival durante
alguns segundos.
Depois, disse de repente:
— Sim, compreendo que a amem... É verdade... é formosa... mas pode
deixar de o ser...
— Na minha idade? ora adeus!
— Quem sabe?
Lazarine, erecta, altiva e desdenhosa, passou pela frente de Genoveva, e
dirigiu-se para a porta da sala.
— Adeus, Marquesa! gritou-lhe a prostituta.
A fidalga voltou-se e redarguiu:
— Adeus, até à vista.
E saiu.
Meia hora depois, regressava ao palácio da rua Murillo.
Ali encontrava um bilhete de Malpertuis, pedindo-lhe que fosse às três
horas ao escritório, donde iriam juntos a casa do tabelião para se proceder à
contextura da procuração.
A senhora de la Tour-du-Roy foi pontual, assinou tudo quanto o
advogado lhe quis fazer assinar, recebeu a certidão de dote do filho, e
perguntou:
— Quando é que eu recebo os três milhões?
— Logo que estiverem registradas as certidões, isto c, depois de amanhã.

***

Satisfeita com aquela resposta, fez-se conduzir às cinco menos um


quarto à vivência Montespan.
Fernando esperava-a.
Ele beijou-a como se nada se houvesse passado horas antes, e sentaram-
se à mesa.
A Marquesa diligenciava parecer alegre segundo o costume, mas-não o
conseguia.
Esta preocupação visível inquietava Fernando e importunava-o.
— Vejamos, minha Lazarine querida, exclamou abraçando a amante,
dize-me o que tens...
— Pois podes perguntar-me semelhante coisa, tendo-me feito sofrer
tanto?
— Mas visto que já lá vai, não pensemos mais em semelhante coisa!
Andei mal, confesso! peço-te perdão... de joelhos, se quiseres...
— Isso é verdade? exclamou a Marquesa fitando no amante um olhar
ardente.
— Palavra de Fernando que te ama!!
— E essa mulher?
— Olha, não me fales mais nisso! história velha...
— Prometo-te não falar mais nisso, mas ela há de querer tornar a ver-te...
O comediante não respondeu.
Também ele entendia que Genoveva não o largaria com facilidade, e
entrevia um futuro repleto de cenas desagradáveis.
— Ouve, Lazarine, disse ele passado um instante, se quiseres provar-te-
ei que nada tens a recear de ninguém... que nunca amei nem amarei senão a
ti.
— Oh! sim, sim, prova-me isso, e far-me-ás muito feliz... exclamou
Lazarine com exaltação.
— Isso depende de ti...
— Como?
— Amas-me tu o bastante para me sacrificares o teu título apesar dos
meus agravos?
— Bem o sabes.
— Gostarias que nos amassemos ambos para sempre?
— Para sempre! repetiu a Marquesa em êxtase. Ah! meu Fernando, se
quisesses...
— É isso justamente o que eu quero... O que mais desejo no. inundo é
que sejas minha mulher.
— Tua mulher, eu? Pensas em casarmos?
— Não penso noutra coisa... Garantir a nossa felicidade para sempre, eis
o meu sonho. Dizes que sim?
— Ah! com toda a minha alma, e não uma, mas cem vezes. Casemo-nos
o mais depressa... Vais já amanhã tratar disso. Entregar-te-ei os meus papéis
de família para os proclamas... E talvez, acrescentou Lazarine, talvez te
reserve uma surpresa...
O comediante ia interrogar.
Foi interrompido pelo criado de quarto que acabava de entrar e lhe
apresentava uma bandeja.
— Que é isso? exclamou.
— Senhor, é uma carta que um moço de recados acaba de trazer.
Fernando pegou no envelope, respirou o perfume bem conhecido que se
desprendia dele, reconheceu a letra do sobrescrito e corou levemente.
— É dela, não é verdade? perguntou a Marquesa com as sobrancelhas
contraídas, a voz sibilante. É dela?
— Sim, balbuciou Fernando, é dela.
— Se me amas, dá-me essa carta, continuou Lazarine. Não quero que a
leias, e quero eu lê-la.
Ao mesmo tempo arrancava a carta ao comediante que não resistiu,
rasgava o envelope, e devorava as frases seguintes:
"Oh! meu Fernando (como se canta na ópera na Favorita), imagina que a
Marquesa teve o capricho de vir há pouco a minha casa para me fazer uma
cena., não de fidalga, mas de regateira...
"Não levou a melhor na contenda; tratei-a segundo os seus
merecimentos, e faço idéia de que a estas horas está arrependida de ter caído
em semelhante asneira...
"Eu te contarei isto por miúdo, entre dois beijos, e espero que nos
havemos de rir a bom rir...
"Hoje à meia noite, depois do espetáculo, irei buscar-te ao teatro, porque
espero iremos cear juntos como ontem.
"Irei buscar-te ao tem camarim; arranja as coisas de modo que estejas
só...
"Até à noite, meu Fernando, e muito beijos da tua mulherzinha que te
adora.
"Genoveva."

"P. S. Fui esta tarde aos Campos Elyseos a casa de Tony Montel, que
acaba de receber de Inglaterra uma recua de cavalos encantadores.
"Sobretudo há uma parelha de trem que me faz andar a cabeça à roda.
Iremos vê-los juntos, e se te agradarem, hás de me dar licença para tos
oferecer."
Lazarine sorriu amargamente, amarrotou a carta e meteu-a na algibeira
do vestido.
O comediante, muito feliz por escapar à tempestade que receava, teve
todo o cuidado de não fazer perguntas a respeito da carta.
Pensava que Genoveva, por muito generosa que fosse, não lhe daria
nunca três milhões.

***

Davam seis e meia. Fernando levantou-se. Perguntou á Marquesa:


— Acompanhas-me ao teatro?
— Agora não, respondeu a Marquesa.
— Por quê?
— Tenho muito que fazer, vou para casa. Às onze horas irei ter contigo,
e passarei o último ato no teu camarim.
— Está dito... Vou-me embora... já é tempo.
Os dois amantes separaram-se.
A senhora de la Tour-du-Roy voltou para o palácio da rua Murillo.
Pediu luz e fechou-se no quarto.
A sua fisionomia expressiva manifestava uma violenta agitação.
Tinha um olhar sombrio.
Descerrava-lhe os lábios um ritus sinistro.
Tirou da algibeira a carta de Genoveva. abriu-a e tornou a lê-la.
Por duas vezes repetiu em voz alta a frase seguinte:
"Hoje à meia noite, depois do espetáculo, irei buscar-te ao teatro."
— À meia noite! murmurou ela em seguida. Lá estarei antes da meia
noite, e amanhã já não recearei esta rapariga.
Atirou a carta para cima do fogão, onde ardia um bom lume.
Depois tocou a campainha.
A criada do quarto acudiu e disse:
— A senhora Marquesa deve estar muito fatigada, e deitar-se-á por certo
muito cedo... Vou preparar a cama.
— Isso, minha filha, prepare a cama e retire-se.
— A senhora Marquesa não tem precisão dos meus serviços?
— Não... Tenho cartas a escrever; deito-me tarde, e eu mesma me
dispo... Diga ao cocheiro e ao criado de quarto que esta noite estão livres.
— Bem, minha senhora; boas noites.
— Boas noites, minha filha...
— A senhora dá-me licença que saia com a cozinheira?
— Perfeitamente.
— Obrigada, minha senhora.
Ficando só. Lazarine entrou no seu gabinete de toilette, e escolheu um
frasco vazio cujo gargalo muito largo, se fechava com uma rolha
esmerilhada.
Pegou no frasco, entrou no seu quarto, e disse consigo, olhando para a
pêndula que indicava apenas nove horas:
— Tenho tempo bastante diante de mim...
Sentou-se ao pé do fogão, com o olhar fixo. uma expressão feroz, e
esperou.

CXLVIII - O VITRÍOLO

Acabavam de dar dez e meia.


Lazarine levantou-se, acendeu um castiçal, pegou no frasco que
escolhera no toucador, saiu do quarto, e por uma escada de serviço desceu ao
subsolo, onde se achavam as cozinhas naquele momento desertas.
Ocupava um dos ângulos um grande armário normando.
A Marquesa abriu-o.
Numa das prateleiras haviam várias garrafas com letreiros.
Uma das garrafas continha vitríolo destinado à limpeza da baixela de
cobre.
A senhora de la Tour-du-Roy desrolhou o frasco que trouxera consigo,,
encheu-o quase completamente do líquido corrosivo, tornou a pôr a garrafa
no seu lugar, fechou novamente o armário, subiu outra vez para o seu quarto
não deixando após si vestígio algum.
Vestiu-se de preto, embuçou-se numa capa de peles, pôs na cabeça um
chapéu com véu, calçou umas luvas, ocultou no regalo o frasco de cristal
cuidadosamente fechado, e saiu do palácio pela porta que dava para o
jardinzinho.
Na estação da avenida de Messine tomou um trem. e deu ordem ao
cocheiro para a conduzir ao ângulo da Rua de Bondy, ao pé do teatro da
Renascença.
Ali apeou-se, e seguiu pelo boulevard Saint-Martin até à entrada dos
artistas do Ambigu, entrada sombria, estreita, que conduz à escada de
caracol.
Esta escada, não menos sombria, e não menos estreita, conduz ao
primeiro andar onde se achava o foyer dos autores, e os escritórios da
administração.
Lazarine consultou o relógio.
— Onze horas e meia, murmurou. Não esperarei muito tempo.
Aproximou-se da balaustrada de ferro que domina a calçada, e corre ao
longo da escadaria por onde se desce para o boulevard, e ali se imobilizou
em observação.
No fim de dez minutos, um coupé particular parou na parte inferior da
escadaria.
Apeou-se uma mulher, e disse ao cocheiro:
— Espere aí.
A Marquesa reconhecera a voz de Genoveva.
Deixou o seu posto de observação, meteu-se pelo corredor do teatro,
abriu a porta forrada, subiu a escada até ao patamar, e puxou pelo seu frasco
mortífero.
Detrás dela a porta do corredor tornava a abrir-se, e Genoveva subiu por
sua vez a escada.
A senhora de la Tour-du-Roy quis então abrir o frasco.
O esmeril molhado, fazendo aderir a rolha no gargalo, opôs uma
resistência invencível.
Genoveva continuava a avançar.
A Marquesa redobrava de esforços, mas sem resultado.,
Exasperada com a inutilidade dos seus esforços, não querendo deixar
escapar a ocasião esperada, voltou-se, viu a rival a dois passos, e atirou
contra a parede o frasco de vitríolo, para o quebrar e fazer saltar o líquido
sobre Genoveva que vinha mais abaixo.
Ao mesmo tempo bradou:
— Vingo-me!

***

O seu braço trêmulo por efeito do terror, comprometeu-a.


O recipiente bateu na parede mais alto do que era preciso para conseguir
o resultado desejado.
O corrosivo espadanando, apanhou em cheio a cara de Lazarine.
A fidalga soltou um grito terrível, seguido de dolorosos lamentos, e caíra
aos pés de Genoveva aterrada.
— Acudam! acudam! bradou Genoveva.
Só então compreendera a que terrível perigo acabava de escapar.
A senhora de la Tour-du-Roy revolvia-se pelas escadas, contorcendo os
membros, e soltando queixumes inarticulados.
O pano descia sobre o último ato, em meio de uma trovada de aplausos.
O teatro enchia-se de ruído e de movimento. Tanto fora como dentro
ouviam-se aplausos e os gemidos.
Acudiram de todos os lados os passeantes. os empregados da
administração, os atores com os seus fatos de cena.
Fernando foi um dos primeiros a chegar, viu Genoveva cm pé, e
Lazarine entregue a terríveis convulsões.
Dera-se uma catástrofe resultante da rivalidade das duas mulheres.
— Que sucedeu! perguntaram muitas vozes a um tempo.
— Não sei. balbuciou Genoveva assustada e vacilante. Subia, essa
desgraçada quis atirar-me ao rosto o conteúdo de uma garrafa, e foi ela que
ficou ferida.
O comediante, causa primária ele todo aquele mal. tomara Lazarine rios
braços, levou-a para o foyer, estendeu-a cm cima de um banco, e levantou o
véu. pedaços pendiam na borda do chapéu.
Viu-se então um espetáculo horrível.
O adorável rosto ele Lazarine era apenas uma coisa sem nome, uma
massa informe sulcada de chagas vivas, as pestanas queimadas, os olhos
apagados, os lábios fendidos.
A infeliz rugia de dor.
Genoveva acabava de transpor a entrada elo foyer.
Recuou aterrada.
Chamaram o médico ele serviço, e o comissário de polícia.
O comissário conduziu a cortesã ao gabinete do diretor, onde teve de
responder às suas perguntas.
Ao mesmo tempo o médico, servindo-se da farmácia portátil que há cm
todos eis teatros, fazia um primeiro curativo, colocava um pequeno aparelho.
O comissário de polícia formou o auto de corpo de delito, e deu ordem
para reconduzirem a Marquesa ao seu palácio.
Fernando encarregou-se disso.
Genoveva viu retirar-se. e sorriu por baixo do seu véu descido.
— Já não tenho ciúmes, pensava ela, agora é só meu.
O comissário de polícia disse-lhe:
— Amanhã a senhora há ele ser por certo chamada ao tribunal, assim
que eu der parte do que se passou.
— Irei, senhor, respondeu Genoveva, e responderei o que já respondi. A
Marquesa de la Tour-du-Roy é a sua própria vítima. Preparara contra mim a
vingança que recaiu sobre ela.
***

No dia que se seguiu a prisão de Pedro Rédon, Daniel Gaillet fora ter
com o senhor de Logeryl conforme as ordens que recebera para lhe dar conta
de como as coisas se tinham passado, e entregar-lhe alguns papéis
apreendidos no chalet da Rua Compans, papéis aliás insignificantes.
— O homem é efetivamente quem supunha? perguntou o substituto.
— Sim, senhor. Pedro Carnot, condenado evadido do local que lhe foi
designado para residência.
— Resistiu?
— Não, senhor, parecia aterrado.
— Dirigiu-lhe algumas perguntas?
— Perguntou-me porque era que o prendia, e tive, conforme a lei, de
apresentar a ordem de prisão de que era portador.
— Não pude interrogar esse homem hoje, continuou Armando, vários
negócios tomam todo o meu tempo. Vou assinar uma ordem de extração; irá
buscar Pedro Rédon, amanhã às duas horas, à prisão da Santé, e trazê-lo-a
aqui
— Bem, senhor. No outro dia Armando chegou muito cedo ao tribunal.
O comissário de policia que na véspera à noite redigira o auto do
acontecimento do Ambigu, esperava-o, acompanhou-o ao seu gabinete, e
explicou-lhe o motivo da sua visita.
Ao ouvir proferir o nome da senhora de la Tour-du-Roy, o senhor de
Logeryl pareceu estupefato.
— Como, exclamou ele num tom de incredulidade, a Marquesa tentou
semelhante crime! É possível?
— Está infelizmente provado, e a sua culpável tentativa redundou contra
ela.
— Então ficou desfigurada?
— Tanto quanto é possível, o médico não responde pela sua,vida. Em
todo o caso, ainda que escape, parece que os olhos ficarão perdidos.
— Infeliz!
— Ah! os amores impuros são amores malditos! murmurou o substituto,
que pensava não só em Lazarine, mas no duque de Chaslin.
Passando um instante, tornou:
— E essa Genoveva Leinen, não ficou ferida?
— Só ficou com o fato queimado em algumas partes.
— E ela vai queixar-se à justiça?
— Não, senhor; mas para chegar a um conhecimento profundo da
verdade, parece-me que seria conveniente interrogá-la hoje mesmo.
— Tem razão. Vou mandar hoje a casa dela um agente para a convidar a
apresentar-se sem demora no seu gabinete. Quem é essa Genoveva?
— Uma bela pequena da alta roda. A ex-amante oficial do príncipe de
Castel-Vivant.
— A Marquesa de la Tour-du-Roy estará nos casos de passar por um
interrogatório?
— Neste momento, parece-me impossível.
— Qual é então na sua opinião o móvel do crime?
— Ciúmes de mulheres por causa de um comediante do Ambigu,
chamado Fernando Volnay.
Armando de Logeryl franziu o sobrolho.
— Sim, murmurou ele, essa grande fidalga chegou a esse ponto. O
suicídio do príncipe de Brada não a fez parar. Escândalo sobre escândalo
— A premeditação parece-lhe estabelecida?
— Indiscutivelmente, porque de manhã a Marquesa foi a casa da cocotte
pedir-lhe o amante com uma imprudência de rapariga perdida.
— Eu irei pessoalmente esta noite ao palácio da Rua Murillo, e verei se a
senhora de la Tour-du-Roy me pode responder.
O comissário de polícia retirou-se.
O senhor de Logeryl encheu os intervalos cm branco de uma ordem de
comparecimento, e mandou-a levar ao boulevard Malesherbes a Genoveva.
em seguida tratou do expediente.
Às duas horas Pedro Rédon, tirado da prisão da Santé, chegava algemado
e escoltado por Daniel Gaillet e um outro agente, à antecâmara.
O inspetor da segurança disse algumas palavras ao contínuo, o qual
entrou no gabinete e tornou a sair quase no mesmo instante, com ordem de
fazer introduzir o preso.
Fossaro estava sereno, ou pelo menos não manifestava a menor
comoção.
A um sinal de Daniel, entrou.
Armando de Logeryl pediu o processo de Pedro Carnot.
— Senhor substituto, eis aqui o homem, disse o inspetor.
O magistrado olhou para o recém-vindo.
Pedro Carnot, com a cabeça descoberta, aparecia com a sua fisionomia
natural, cabelos curtos, cor baça, órbita vazia e sanguinolenta. Uma
verdadeira cara de grilheta. de condenado fugido das galés. Tal devia ser o
miserável da menina de Lasseny!
— Deixa-me a sós com este homem, disse Armando a Gaillet, depois do
exame de um segundo.
Daniel retirou-se.
— Oh! oh! pensou o Barão, não temos secretário, e manda afastar o
agente, anuncia-se bem, tem suspeitas, mas não tem provas. Vou vê-lo fazer
jogo cerrado.
O substituto principiou:
— Chama-se Pedro Carnot?
— Sim, senhor.
— Mas o senhor usa habitualmente do nome de Pedro Rédon?
— Não é um nome falso, é o nome de minha mãe, portanto pertence-me.
O senhor de Logeryl não perdeu tempo a discutir, e continuou:
— O senhor nasceu em Paris. A sua família era respeitável, e possuía
alguns meios. Recebeu alguma instrução, e trabalhou em um escritório de
advogado?
— Sim. senhor.
— Sofreu por um crime de assassinato uma condenação a cinco anos de
trabalhos públicos?
— É verdade, senhor, mas paguei a minha dívida à justiça.
— Mas nem por isso deixa de andar evadido. A cidade de Nimes fora-
lhe designada para residência. Nunca aí apareceu.
— Concordo.
— Por onde tem andado depois que saiu das galés.
— Tenho corrido mundo.
— Esteve na Inglaterra primeiramente?
Fossaro apurou o ouvido.
O que deveria responder?
Esta inesperada pergunta ocultaria algum laço?
Seria uma conseqüência das declarações de Branca, também presa
talvez, e que segundo os seus falsos papéis de família, fora educada na
Inglaterra.
A hesitação de Fossaro foi de pequena duração; tomou a sua resolução e
respondeu:
— Passei algum tempo em Londres.
— Que fazia lá?
— Negociava em bijouterias.
— Não tinha um sócio?
— Não, senhor, trabalhava só.
— Em todo o caso conhecia um certo James Scoot?
Ao ouvir pronunciar este nome. Fossaro perdeu todas as dúvidas a
respeito dos motivos da sua prisão.
Tratava-se do crime Chaslin.
Branca, presa e interrogada, respondera por certo como lhe fora
ordenado no momento de entrar para o serviço da Duquesa.
O homem, o suposto homem que a recolhera depois da morte do Conde e
da Condessa de Lasseny, chamava-se efetivamente James Scoot, mas quem
o denunciara? Quem o interrogara! Era preciso nada comprometer, e ganhar
tempo.
César de Fossaro disse estas diversas coisas em menos de um segundo, e
concluiu:
— O mais prudente é negar tudo. Tenho probabilidades de obrigar este
substituto que se julga hábil, a dizer-me o que eu ignoro.

CXLIX - O INTERROGATÓRIO

— Perguntei-lhe se conhecia um certo James Scoot? repetiu Armando de


Logeryl.
— Não, senhor, respondeu Fossaro, não o conheço.
— Afirma isso? exclamou o substituto ironicamente.
— Afirmo.
— Conhece a menina Adriana de Lasseny?
— Não, senhor.
O jovem magistrado fitou Pedro.
— Então, disse em seguida, é um sistema completo de negativa?
— Não é sistema, é a afirmação pura e simples de uma coisa verdadeira.
— O senhor mente! exclamou o senhor de Logeryl deixando-se levar
pela cólera.
— Prove-me que minto...
— Será fácil... Conhece o senhor Duque de Chaslin?
— Não conheço.
— E a Duquesa?
— Não a conheço melhor. Acha-me tipo de quem pertença à sociedade
onde se conhecem os duques e as duquesas?
— Vai dizer-me que até ignora onde se acha o palácio de Chaslin?
— De certo.
— Ignora por conseguinte que a Duquesa morreu?
— Oh! senhor, como havia eu de o saber?
— Então nunca entrou de noite pela porta que deita para a avenida
Gabriel, no palácio do faubourg Saint Honoré?
— Ouço-o, senhor, respondeu Fossaro com um assombro
maravilhosamente fingido, mas as suas perguntas não têm para mim sentido
algum; com certeza me tomam por algum outro.
O senhor de Logeryl continuou:
— Nega que entrou no quarto da Duquesa, para trocar uns grânulos de
remédio por outros perniciosos?
Fossaro não pestanejou, mas estremeceu.
O substituto sabia muito.
Contudo respondeu, esboçando um gesto de indignação:
— Sim, ora essa! nego-o com todas as minhas forças!
— Tome cuidado! Olhe que vou confrontá-lo com alguma pessoa que o
afirmará!
Fossaro levantou a cabeça.
— Quem afirmará o que? Que significa tudo isto? Por que é este
interrogatório? A que propósito são esses nomes que não conheço? Sou um
pobre diabo fugido, é verdade... Serei julgado na polícia correcional... Terei
um mês de prisão, o mínimo, um ano, a máximo. Mas o senhor fala-me de
outra coisa. Tenho ares de acusado. De que me acusam?
— Acuso-o de ter envenenado a Duquesa de Chaslin.

***

Fossaro ergueu ao céu as mãos algemadas, revolveu o seu olho único, e


soube dar ao rosto uma expressão de aflição profunda.
— Ora essa! exclamou, a modo que é muito forte! Isso faria rir, se não
fizesse chorar de medo. Eu envenenei uma Duquesa! Eu, Pedro Carnot? Ora
qual! Felizmente não basta dizê-lo, é preciso prová-lo...
— Provar-se-á.
— Não se prova senão a verdade, senhor substituto, e isso é uma
abominável mentira! Não o poderão provar.
Armando de Logeryl tocou uma campainha.
— Mande-me Daniel Gaillet, ordenou ele ao contínuo do escritório.
O inspetor da segurança entrou e fechou logo a porta após si.
— Reconduza esse homem à prisão da Santé... disse-lhe o substituto.
Depois, refletindo, acrescentou:
— Pedro Carnot, ou Pedro Rédon, conheceu uma mulher chamada
Fanny Vernaut?
Fossaro estremeceu, mau grado seu.
Que vinha Fanny fazer ali em meio de tudo aquilo?
Como lhe parecesse inútil a mentira, daquela vez respondeu:
— Sim, senhor.
— Onde a conheceu?
— Em Courbevoie, num colégio interno, onde tinha a roupa a seu cargo.
Há muito tempo que isso foi!
— Foi sua amante?
— Nunca, senhor... Oh! não me custava dizê-lo, porque era uma bela
criatura...
— Que é feito dessa Fanny?
— Não sei... Ia a Courbevoie visitar a filha de um camarada... Não voltei
mais ao colégio, e não tornei a ver Fanny Vernaut...
A final, aquilo era possível.
O substituto fez sinal a Gaillet para que se aproximasse, disse-lhe
algumas palavras a meia voz, e acrescentou em voz alta:
— Leve-o.
Daniel abriu a porta, e com um gesto ordenou a Pedro Rédon que se
pusesse a caminho em frente dele.
Ao entrar na antecâmara o zarolho não pôde conter uma surda
exclamação, ao ver uma jovem que estava sentada num banco.
Da sua parte, aquela jovem levantara-se repentinamente e parecia
estupefata.
Fossaro pôs um dedo nos lábios e não parou.
O que precede passara-se com a rapidez de um relâmpago, contudo
Gaillet surpreendera a exclamação do preso, denotara a surpresa da
desconhecida.
— Devem conhecer-se, disse. Quem será esta mulher?
Depois de meter o preso no trem. deixou-o por um instante sob a guarda
do seu colega, voltou para trás, e tornou a entrar na antecâmara onde o
contínuo se achava só.
— Que foi feito da dama que estava ali? perguntou-lhe o agente.
— Acabo de a introduzir no gabinete do senhor substituto.
— Sabe o seu nome?
— Sim, senhor Gaillet, aquela dama chama-se Genoveva Leinen.
— Onde mora?
— No boulevard Malesherbes. n.°...
— A sua posição?
Rapariga amancebada, nem mais nem menos. Uma cocotte de alta
categoria...
Daniel escreveu a lápis na sua carteira de lembranças as informações que
acabava de obter, voltou para junto do colega, e tornou a entregar Pedro
Carnot na prisão da Santé.

***

Nada poderia dar uma idéia das angústias do Barão César de Fossaro,
quando as portas da prisão se fecharam sobre ele.
O interrogatório a que acabavam de o submeter, não pudera
completamente esclarecê-lo.
Branca atraiçoara-o?
Começava a recear isso seriamente.
Depois, que significava a presença de Fanny Vernaut (que por sua ordem
se transformara em Genoveva Leinen), no gabinete do substituto, no
momento em que este acabava de lhe falar nela?
Estariam no rasto do crime cometido no chalet na ilha Basse?
César levou as mãos à cabeça, perguntando:
— Irá tudo por terra? Se saiu são e salvo do crime de Chaslin, ficarei
irremediavelmente perdido dos lados de Lucília Gonthier? Estarei no fundo
do abismo?
Passado um instante voltou a sua força de alma.
— Por que hei de desesperar? tornou levantando a cabeça. Nada de
fraquezas! nada de desânimo! Tenho passado por transes muito mais
difíceis! Tenho-me livrado deles! Hei de também livrar-me deste.

***

Já sabemos porque motivo a ex-amante do príncipe Totor fora chamada


ao tribunal.
Aí completou as informações que na véspera ministrara ao comissário de
polícia de Saint-Martin.
As suas palavras foram claras e precisas. A situação nada apresentava de
obscuro.
A senhora de la Tour-du-Roy, louca de ciúme, quisera desfigurar a sua
rival.
A arma terrível empregada por ela voltara-se contra si.
Genoveva, como não estava ferida, recusava ser parte.
Mostrava deste modo o bom coração de que era dotada.
O senhor de Logeryl mandou-a retirar-se no fim de dez minutos.
Escreveu em seguida um bilhete à menina de Lasseny, mandou o seu
cartão de visita à Rua de Notre Dame des Champs, deixou o palácio da
justiça e dirigiu-se à Rua Murillo, ao palácio da Marquesa.
Depois de declarar o seu nome e a sua qualidade de magistrado,
conduziram-no ao quarto de Lazarine, onde já estava o médico que procedia
a um curativo.
A infeliz estava estendida sobre o leito, inerte e com o rosto descoberto.
A criada de quarto anunciou:
— O senhor substituto do procurador da república.
Armando avançou, deitou um olhar para as feições tão encantadoras
ainda na véspera, e sentiu-se possuído de terror e de piedade.
As devastações causadas pelo vitríolo excediam a sua expectativa.
O senhor de Logeryl chamou o médico de parte e perguntou-lhe em voz
baixa:
— A senhora de la Tour-du-Roy estará perdida?
— Tenho algumas esperanças de a salvar, respondeu o doutor, mas o seu
rosto não tomará aspecto humano e receio bem que não torne a abrir os
olhos.
— Já falou depois que veio?
— Não, senhor. O líquido corrosivo entrou-lhe na boca... a língua ficou
ferida, e o menor esforço para proferir uma palavra causa-lhe horríveis
sofrimentos.
— Não sabe nada do acidente?
— Nada, senão o que sabe toda a gente.
— E a senhora o que sabe? continuou o substituto dirigindo-se à criada
de quarto.
— Meu senhor, não sei nada... A senhora tinha-me dado licença, por
volta das nove horas, para sair, dizendo-me que se despiria sozinha... eu
julgava que ela estava deitada... fiquei estupefata quando esta noite, pela
uma hora, me trouxeram a minha pobre ama no estado em que se vê...
— Imagina onde a senhora Marquesa poderia obter o vitríolo?
— Havia no subsolo, uma garrafa num armário... É de certo aí que a
senhora a foi buscar.
— Quem trouxe a sua ama?
— O Sr. Fernando de Volnay, um ator que é do Ambigu.
— E ele voltou?
— Sim, senhor, para saber notícias; mas não quis subir. Disse que o
incomodava muito ver a senhora desfigurada.
O senhor de Logeryl, não podendo saber nada, retirou-se, dirigiu-se para
a Rua Miromenil, subiu a casa de Mariana Gilberto onde apenas esteve um
instante e dirigiu-se depois ao palácio de Chaslin.
— Que há de novo, meu amigo? perguntou-lhe Helena com vivacidade.
— Interroguei Pedro Rédon.
— Confessou o crime?
— Nega tudo. Assevera que não conhece a menina de Lasseny.
— Pois eu sustento que ela é sua cúmplice!
— Paciência, querida Helena, É amanhã que se tirará a prova decisiva.
— Amanhã?
— Sim. Confrontarei Pedro Rédon com a menina de Lasseny e com
Mariana Gilberto. Veremos se na sua presença se atreverá a mentir.
— E eu devo estar presente?
— A senhora e Rogério... É indispensável.
— E meu pai?
— Não, respondeu Armando, com algum embaraço. O cérebro do duque
sofreu um grande abalo... Não quero que ele assista a uma cena talvez
terrível.
— Onde se fará a confrontação? tornou Helena.
— Aqui.
— Aqui, repetiu a jovem aterrada. Essa mulher, essa Adriana, há de
voltar para a nossa casa! Ah! não pensa nisso, Armando!
— Querida Helena, compreendo a sua repugnância, mas acima de tudo
precisamos de nos esclarecer.
A menina de Chaslin baixou a fronte sem responder.
— Rogério acha-se no palácio? tornou o substituto
— Não sei...
— Como vai ele?
— Ama aquela infame mais que nunca, e como ela desapareceu procura-
a, chama-a, está como doido...
— Devemos ter dó dele.
— Quereria compadecer-me dele, mas não posso. O seu amor por
Adriana, era capaz de me levar a odiá-lo.
— É seu irmão, querida Helena... Tem tão pouco a esperar... Vou
escrever a Rogério, para o avisar do que se há de passar amanhã...
Armando de Logeryl traçou algumas linhas.
Entregou o papel a Helena, e acrescentou:
— Peço-lhe que me mande dar a chave, da porta do jardim que deita para
a avenida Gabriel, e a da porta da escada oculta que a menina de Lasseny
ocupava.
— Tê-la-á num momento.
— Além disso queria o frasco que ainda encerra alguns grânulos de
digitalina.
— Vou eu mesmo buscá-lo. Peço-lhe que me diga, meu amigo, onde é
que se fará a confrontação?
— No quarto onde sua mãe morreu.
Helena fez um gesto de assombro.
— Parece-lhe um sacrilégio entrarem neste santo lugar, aqueles que
suspeitamos de haver cometido o crime? Mas, repito-lhe, é preciso que a luz
se faça, é preciso, custe o que custar!
A jovem tornou a baixar a fronte, depois saiu e voltou passados alguns
minutos, trazendo ao seu noivo as duas chaves e o frasco quase vazio.
— Eis o que me pediu... exclamou. Armando beijou-a na fronte,
dizendo-lhe:
— Até amanhã, minha Helena, e coragem!
— Tê-la-ei, prometo. Até amanhã!...
CL - CONTINUAÇÃO DO ANTERIOR

No dia seguinte, às três em ponto, duas carruagens faziam alto, na


avenida Gabriel, diante da grade do palácio do duque de Chaslin.
De uma das carruagens apeou-se o substituto.
D outra apeou-se Pedro Rédon. acompanhado de Daniel Gaillet e de um
agente.
Fossaro estava gelado e frio.
Tinha as mãos algemadas, mas a cadeia que ligava as algemas, tinha o
necessário comprimento para deixar aos braços certa liberdade.
Armando de Logeryl, tirando uma chave da algibeira, abriu a porta do
jardim.
Daniel fez entrar o prisioneiro.
O substituto deu ordem aos cocheiros para irem esperar no faubourg
Saint-Honoré, defronte do palácio.
Em seguida perguntou a Pedro Rédon.
— Reconhece que entrou por aqui de noite?
— Não, senhor, acho-me neste lugar pela primeira vez na minha vida...
— Bem. vou contudo fazer-lhe percorrer o caminho que o senhor seguiu
para chegar ao quarto da Duquesa,

**

Armando, precedendo o zarolho e os dois polícias, atravessou o jardim,


abriu a porta da escada de serviço, meteu-se pela escada e disse:
— Suba estes degraus...
Em frente do quarto ocupado pela falsa Adriana, diminuiu o passo e
continuou:
— O senhor atravessou este pátio, depois o gabinete de toilette, que
comunicava com o quarto de dormir da senhora Duquesa de Chaslin, e
transpôs o limiar da porta por onde vai agora entrar.
À medida que falava, o substituto ia continuando na sua marcha, seguido
de Fossaro.
Ao entrar na câmara mortuária, o Barão não pôde deixar de experimentar
uma sensação de terror.
Via em frente de si Helena e Rogério de Chaslin, ambos em pé à
cabeceira do leito onde sua mãe dera o último suspiro.
As janelas estavam fechadas e as cortinas corridas..
Um candieiro colocado em cima da mesa de cabeceira, alumiava a cama
em desalinho.
O vasto aposento apresentava o mesmo aspecto sinistro.
Os dois irmãos sentiram um calafrio.
— Conhece este quarto? perguntou o senhor de Logeryl. Só aqui falta o
cadáver da sua vitima.
Pedro Carnot exclamou:
— Para que serve este cenário, senhor substituto? Não posso reconhecer
o que nunca vi.
Armando apresentou então um frasco ao preso, e tornou:
— Nega ter substituído do frasco que aqui está, um tubo semelhante
contendo grânulos venenosos?
Fossaro não pestanejou.
— Nego, replicou, e tornarei a negar... Pode precisar os fatos e
multiplicar as perguntas. Compreendo muito bem que se cometeu aqui um
crime, e julga ter no seu poder o autor... Engana-se, ora aí está, e toma-me
por outro... Já o disse e repito-o...
— Mande entrar Mariana Gilberto... ordenou o substituto a Daniel.
O inspetor da polícia introduziu, amparando-a, a velha criada, muito
pálida e caminhando com dificuldade.
O zarolho examinou-a cheio de curiosidade, mas sem mostrar a menor
inquietação.
— Mariana, disse Armando indicando o preso, vê este homem.
— Sim, senhor.
— Reconhece-o por aquele que se introduziu à sua vista, de noite, no
jardim do palácio?
— Era efetivamente a sua estatura, mas não era nem o seu aspecto, nem
o seu vestuário.
— O vestuário modifica o aspecto, e muda-se de vestuário quando é
preciso... Examine-lhe o rosto.
— Não era este rosto.
— Tem a certeza disso?
— Tenho a certeza.
Fossaro voltou-se para o jovem magistrado:
— Ora, bem, senhor substituto, exclamou ele num tom de triunfo, está
convencido?
— Ainda não. Retire-se Mariana, e obrigado. Depois, Armando,
dirigindo-se a Daniel, acrescentou:
— Mande entrar o mancebo que está à espera... Carregou nestas três
palavras qua acabamos de sublinhar. Pedro Carnot, muito comprometido,
repeliu mentalmente:
— Quem poderá ser esse homem?
A porta abriu-se.
Branca apareceu.
— Ela murmurou Fossaro fazendo-se pálido. Eis o perigo!
— Adriana... exclamou Rogério.
E ia correr para a jovem. Armando deteve-o.
— Lembra-se de que se trata de vingar tua mãe! disse-lhe em voz grave.

***

Rogério baixou os olhos e calou-se.


Branca avançava lentamente, com os olhos baixos, as feições
decompostas, o rosto lívido, a respiração ofegante.
Não se atrevia a levantar os olhos para Pedro Rédon.
Sentia pesar sobre si o olhar do tirano, cujo jugo ela queria quebrar de
uma vez para sempre; toda ela tremia.
Depois de ter avançado até meio do quarto, a falsa Adriana inclinou-se e
esperou.
O senhor de Logeryl aproximou-se do preso e disse:
— Há pouco caiu no laço que lhe armei... Esperava deparar com um
mancebo. Quando a menina entrou, a sua palidez, a sua exclamação
involuntária, traíram-no. Reconheceu a menina de Lasseny.
Fossaro encolheu os ombros. Armando continuou:
— É à senhora que pertence esclarecer a justiça... desmascará-lo,
confundi-lo, é à senhora que pertence dizer-nos se o senhor é efetivamente
esse Pedro Rédon. que a domina e a atormenta há dez anos...
— Branca traiu-me! pensou Fossaro. Eu era um obstáculo ao seu amor,
imaginou deitar-me a perder. Que vai ela responder na minha presença!
— Conhece este homem? perguntou o substituto.
— Sim, senhor! respondeu Branca com uma voz trêmula.
— Chama-se Pedro Rédon?
— Não lhe conheço outro nome.
— Foi ele que na Inglaterra, depois do suicídio do seu sócio James
Scoot, se encarregou da senhora e a trouxe para França?
— Foi.
— Foi também ele que a fez inscrever nas diversas agências, a fim de lhe
obter um emprego de dama de companhia? Foi ele que lhe recomendou que
se fizesses amar pelo Duque de Chaslin, quando a duquesa se dignou
admirá-la ao seu serviço?
— Sim, ele, foi ele. Eu queria revoltar-me contra o seu domínio, mas ele
ameaçou-me de morte, se o não servisse nos seus projetos desconhecidos.
— Por mais de uma vez se introduziu no palácio de noite, não é verdade,
para continuar no seu domínio?
— Sim, senhor.
— Como podia ele entrar?
— Não sei, mas entrava.
Pedro Carnot escutava Branca trêmula de raiva.
As últimas palavras da jovem causaram-lhe um exaspero que não pôde
dominar.
Correu para a falsa Adriana rugindo, e ergueu para ela os punhos
algemados.
Branca permanecia impassível, e não fazia um movimento para evitar o
golpe prestes a feri-la.
Daniel Gaillet agarrou porém o assassino da filha pelos ombros, e
puxou-o violentamente para trás.
— Foi ele, continuou Branca, cuja voz já não tremia, foi ele. tenho disso
a convicção, que para libertar a senhora de Chaslin. matou a Duquesa. Foi
ele que há oito dias apenas me ordenou que escrevesse ao Duque que eu
consentia em ser sua mulher, pedindo-lhe uma resposta escrita. Essa
resposta, devia levá-la ao chalet da Rua Compans. Eu é que esperava o
miserável. Graças a Deus a justiça apareceu em meu lugar
Prostrada por esta cena. Branca cambaleou.
Cairia, se Rogério de Chaslin não se apressasse a ampará-la nos braços.
Fossaro, após o movimento de furor de que se deixara levar, mau grado
seu. tornara-se sereno e frio.
Escutava com um sorriso as palavras de Branca, e ao mesmo tempo
pensava:
— Quando me vir livre, que vingança não hei de tirar!
Daniel Gaillet começava a ter pela pobre Adriana um interesse muito
vivo.
— Pedro Rédon, o senhor ouviu. O que tem a responder-me?
— O que tenho a responder-lhe, senhor substituto, só ao senhor desejo
dizê-lo replicou Pedro Carnot.
— A mim só?
— Sim, senão não falarei.
— Tome cuidado. Armando, exclamou a menina de Chaslin
— Que quererá ele dizer? perguntou Branca com angústia.
O senhor de Logeryl depois de um momento de reflexão, exclamou:
— Seja! ficarei aqui com este homem. Peço a todos que saiam por um
momento.
Helena designando com o olhar a falsa Adriana, disse:
— Vou para o meu quarto, aonde me mandarão chamar.
E retirou-se.
Rogério conduziu "Branca, e Daniel caminhava atrás dele. Ao mesmo
tempo dizia consigo pensando em Pedro Rédon:
— Seu tirano há dez anos!
O senhor de Logeryl e o zarolho tinham ficado em frente um do outro.
— Preciso de recuperar a liberdade, murmurou César; para grandes
males, grandes remédios.
O substituto principiou:
— Ninguém nos pode ouvir, nada de palavras inúteis! A verdade toda
inteira. Em presença dos filhos da sua vítima, uma confissão aterrava-o,
compreendo-o muito bem... Agora não mais reticências, confesse o seu
crime...
Pedro Carnot replicou:
— Senhor substituto, se quis achar-me a sós consigo, foi para não
obrigar os filhos da Duquesa de Chaslin, a que tivessem de se envergonhar e
de curvar a cabeça diante de mim.
— Cale-se, ordenou o senhor de Logeryl, não insulte aqueles que bradam
contra o senhor, pedindo-lhe justiça!
— E que daqui a pouco pedirão clemência! concluiu Fossaro. Senhor
substituto, declaro que cometi o crime de que me acusam.
— Até que finalmente, exclamou o magistrado radiante.
— Creia-me, senhor, tornou César, não triunfe tão depressa.

***

Neste momento a porta do gabinete do toucador da Duquesa abriu-se


sem ruído, e o rosto pálido de Helena apareceu no reposteiro entreaberto.
Nem Armando nem Fossaro, deram pela sua presença.
— Confessa-se culpado, de que mais preciso? retorquiu o substituto.
— Precisa também de conhecer os meus cúmplices.
— Vai nomear a menina de Lasseny, cúmplice inconsciente,
involuntária, ou antes mártir, que reabilitou aos seus próprios olhos como
aos meus, entregando-o à justiça quando compreendeu a sua infâmia.
— Eu disse os meus cúmplices, exclamou César com um modo
sardônico, tinha dois.
— Quais?
— Aquela que me atraiçoou, e que parece ter comprado a impunidade
com a traição, e depois ainda outro.
— Quem? Nomeie o infame!
— Chama-se o Duque Henrique de Chaslin!
Ao ouvir estas palavras, Helena oculta com os reposteiros, reprimiu um
grito de terror, e levou ambas as mãos ao coração oprimido pela angústia.
O senhor de Logeryl tomou-se pálido e aproximou-se do preso. — O
Duque de Chaslin seu cúmplice! repetiu ele com uma segurança mais
aparente que real, o que está a dizer! Mente, infame!
— Tenho a prova do que avanço.
— A prova! repetiu o substituto aterrado.
— Material, indiscutível.
— Que prova? perguntou.
— Uma carta que eu tirei do quarto da menina de Lasseny, a quem era
dirigida. Uma carta datada da Roche-sur-Loire, toda escrita pelo senhor de
Chaslin e assinada! Uma carta tão clara em suma, que depois de a ler, não
duvidará da cumplicidade do velho Duque e da dama de companhia.
Helena não pôde conter-se por mais tempo, deixou o abrigo protetor dos
reposteiros, e correu para o quarto exclamando:
— Mentira e calúnia! Imponha silêncio a esse celerado! Ordeno-lhe que
respeite meu pai.
— A carta existe, menina, replicou Fossaro.
— É falso, não creio.
— Tome cuidado, menina! A sua incredulidade daria em resultado a
perda do Duque de Chaslin.

CLI - O PODER DA ASTÚCIA

Helena tornou em delírio:


— Armando, li no olhar desse homem que ele queria mentir-lhe Em
lugar de me afastar, pus-me à escuta. Ah! a minha desconfiança era bem
fundada. Não o acredite! file procura aterrá-lo envolvendo o nome do Duque
nesse crime monstruoso! A prova de que ele fala nunca existiu.
— Pois assim será! disse Fossaro com um sangue frio terrível que a
justiça siga o seu curso! Instrua o meu processo, interroguem-me,
responderei entregando aos juízes a carta cuja existência negam! Senhor,
lembre-se do agente Daniel Gaillet, e que ele me conduza não à prisão da
Santé, mas a Mazas.
O senhor de Logeryl conservava-se calado.
No rosto lia-se-lhe a angústia.
— Cala-se. Armando! disse a jovem. Que espera, dê ordem para levarem
esse infame, zomba do senhor, bem vê.
— Defendo a minha vida, menina, replicou o cego. Ou não houve crime,
ou há três criminosos. Se subir ao cadafalso não quero subir só.
— Ao cadafalso! repetiu a menina de Chaslin, abalada por um tremor
convulso. Fala do cadafalso! Armando. Imponha-lhe silêncio. Que o
reconduzam!
O magistrado dirigiu-se para o cordão de uma campainha.
— Que vai fazer, senhor? perguntou então Fossaro.
— Entregá-lo às mãos dos agentes.
— Tome cuidado! É mandar o Duque à guilhotina, e desonrar o nome
dos seus filhos!
Armando deteve-se.
— Prove-me da existência da carta que fala, murmurou ele com uma voz
abafada.
— Dá a sua palavra de honra de que a não destrói se lha apresentar?
— Comprometo-me a isso.
— Dê ordem para me tirarem as algemas, e terá a carta. O senhor de
Logeryl chamou Daniel.
— Sobe as mãos do preso, disse-lhe.
— O agente olhou estupefato para o magistrado.
— Obedeça, ordenou o senhor de Logeryl. Daniel não podia resistir.
Tirou uma chavinha do seu "porte-monaie". e abriu os cadeados que
fechavam as cadeias.
— Agora deixe-nos. continuou Armando.
O inspetor retirou-se muito impressionado, não compreendendo nada do
que se passara. Quando a porta se fechou atrás dele. o senhor de Logeryl
tirou da algibeira um revólver e continuou:
— À primeira tentativa de violência ou de fuga, far-lhe-ei saltar os
miolos. Fique sabendo.
O zarolho encolheu os ombros, replicando:
— Não tenho medo, não tenho desejos nem de o matar, nem de fugir.
— Essa prova?
Fossaro tirou o sobretudo, desfez a costura do colete de veludo e tirou
uma carta, que abriu e apresentou aberta ao magistrado.
— Será ou não a letra do senhor de Chaslin? perguntou, será ou não a
sua assinatura?
— Sim, respondeu Armando, mais com o gesto do que com a voz. —
Ouça agora o que escrevia o Duque à sua amante, a menina Adriana de
Lasseny.
E Fossaro leu em voz alta:
"La Roche sur Loire, sexta à noite.
"Minha muito amada.
"Falta-me a força para continuar uma luta que me despedaça o coração,
não resisto, não hesito mais... Tudo quanto quiser quero-o eu, e querê-lo-ei
sempre... Por muito louco e cruel que seja o seu ciúme, cedo, não sem pesar,
"porque é uma ação criminosa que vamos cometer, sacrificando uma
inocente que nos amava", cedo, porém, porque é preciso que seja feliz, a
senhora, o meu único amor...
"Suprima, pois, o obstáculo imaginário que se ergue entre nós... Quero
votar o resto da minha vida à sua felicidade absoluta...
"Que se realize, pois, sem demora, o que a senhora deseja, e não haja
dentro em pouco, no palácio Chaslin, senão dois corações estreitamente
unidos...
"Seu do fundo d'alma.
"Henrique de Chaslin."

***

O zarolho, durante a leitura, apoiara as frases mais significativas, dando-


lhes um terrível valor.
No fim, perguntou num tom de feroz triunfo:
— Então, está ou não claro?
O senhor de Logeryl e Helena tinham escutado até ao fim sem
interromperem, trêmulos, aterrados.
A jovem soltou um grito de desespero.
— Ah! é horrível, balbuciou em seguida... Queria vingar minha mãe... e
mandava meu pai para o cadafalso! Armando, que Deus o julgue e lhe
perdoe... alucinava-o a loucura e impelia-o ao crime. Mas não o devemos
fazer sentar no banco dos réus, ao lado desse infame... Oh! eu também
perderia o juízo... Morreria de desgosto.
— Helena... querida Helena, sossegue, peço-lhe.
— Esse homem tinha razão, continuou a menina de Chaslin... Nenhum
crime se cometeu... Eram falsas as aparências que o acusavam... está
inocente... Ele que se retire, e a honra do nome fique salva!
O senhor de Logeryl estremeceu...
— Que me pede, Helena? perguntou com voz quase indistinta, pegando
nas mãos da sua prometida.
— Peço-lhe a liberdade de um infame que levaria meu pai ao cadafalso.
O senhor de Logeryl exclamou:
— E o meu dever? Sou magistrado... devo alcançar e ferir os culpados...
sejam eles quem forem, estejam onde estiverem.
— Fará castigar meu pai?
— A lei ordena-o...
— Que me importa a lei? Não, não fará isso... O senhor que me ama,
evitará uma mancha no meu nome...
— Ser sua mulher, depois do senhor fazer prender e condenar meu pai...
ah! isso é que nunca!...
— Mas seu pai decidiu e ordenou a morte do anjo que nós choramos!
não merece comiseração...
Helena exclamou:
— Cale-se! cale-se! Se minha mãe pudesse reviver, não perdoaria ela?
Armando, peço-lhe. salve meu pai! piedade para ele, piedade para mim!
Imploro-lho de joelhos!
Efetivamente a jovem levantava-se e apertava o peito com as mãos.
Armando levantou-se e disse:
— A senhora despedaça-me o coração! Bem sabe que a amo mais que
coisa alguma no mundo, mas, se transijo com a minha consciência, deixarei
de ser digno de si.
— Mate-me, pois, se a sua consciência ordena que me mate, porque eu,
juro-lhe, não sobreviverei à prisão de meu pai.
O magistrado baixou a cabeça com um gesto de desespero. Durante esta
cena curta e terrível, César de Fossaro conservara a aparência de uma
impassibilidade completa.

***

Quando viu Armando prestes a fraquejar, disse a Helena: — Aqui está a


carta, minha senhora... O senhor de Logeryl que a ama, salvará o senhor de
Chaslin.
Helena não se atreveu a fazer um movimento para pegar no bilhete fatal.
Com os olhos inquietos e suplicantes, interrogava o noivo.
— Armando!... Armando! murmuravam os seus lábios. O jovem
magistrado levantou a cabeça. Inundavam-lhe as faces as lágrimas.
— Se eu lhe der a liberdade, que fará? perguntou de repente a Fossaro.
— Irei para longe de Paris.
— O senhor está sob a vigilância da polícia.
— Nimes fora designada para minha residência... Dirigir-me-ei a
Nimes...
— O senhor violou o local que lhe tinha sido prescrito, por conseguinte
prendê-lo-ão...
— Então que hei de fazer?
— Receberá esta noite um passaporte para a América, e dez mil francos.
— Onde os receberei?
— No café da gare do Havre, debaixo das arcadas...
— Quem me dará o passaporte e o dinheiro?
— Eu mesmo, mas lembre-se do que lhe vou dizer. Se voltar a França,
coitado de si!
— Não voltarei...

***
Helena apoderara-se avidamente da carta.
Para lha tornar a tirar, seria agora preciso despedaçar-lhe as mãos.
O senhor de Logeryl continuou:
— Esta noite, às sete horas, estarei no local designado.
— Lá me encontrará, senhor.
— Está livre.
— Por onde posso sair?
— Por onde nós entramos... conhece muito bem o caminho!
— As chaves?
— Não precisa delas... as portas estão abertas...
Fossaro não esperou que lhe repetissem que estava livre, e desapareceu
no gabinete contíguo ao quarto ocupado pela falsa Adriana. Helena lançou-
se nos braços do noivo.
— Armando... Armando... balbuciou ela, como eu sou infeliz, mas
quanto o amo!... O terrível segredo vai morrer entre nós... deixou de existir a
única prova...
E aproximando-se do candieiro, a jovem queimou e reduziu a cinzas a
carta datada de Roche sur Loire.
O ajudante do procurador soltou um prolongado suspiro, enxugou os
olhos umedecidos, depois dirigiu-se para o cordão da campainha e agitou-o.
— Que vai fazer? perguntou a menina de Chaslin.
— Explicar em voz muito alta o meu procedimento, e justificar Adriana
de Lasseny.
Helena sentiu um calafrio.
— Justificar essa infame! balbuciou.
— Assim é preciso! A senhora o disse, o monstruoso segredo deve
morrer entre nós! O próprio Rogério deve ignorar o crime de seu pai...
— Mas não duvidando da inocência dessa rapariga, vai amá-la mais que
nunca!
— Representando a justiça dos homens, fui cobarde... volveu Armando.
Esperamos tudo agora da justiça de Deus. Querida Helena, cometemos
ambos uma falta... O castigo principia...

***

Abriu-se neste momento a porta do quarto.


Rogério e a falsa Adriana entraram seguidos de Daniel Gaillet e do seu
colega.
Ao verem sós Armando de Logeryl e Helena, retratou-se-lhes no rosto
profundo assombro.
Que fora feito do preso?
— Que se passa aqui? exclamou Rogério. Onde está, Pedro Rédon?
— Pedro Rédon está livre... respondeu o ajudante do procurador.
— Livre! repetiram ao mesmo tempo Rogério, Branca e Daniel, com
entoações e comoções diferentes.
— E longe já daqui... continuou Armando.
— Então, perguntou o irmão de Helena, demonstrou-te a sua inocência?
— Fez mais, provou-me até à evidência que nenhum crime fora
cometido...
— É impossível! murmurou Daniel bastante alto para ser ouvido O
senhor de Logeryl olhou para ele severamente.
O polícia baixou a cabeça com uma profunda decepção uma cólera
abafada.
O magistrado disse:
— Podem retirar-se, senhores.
Os agentes inclinaram-se e saíram.
— Livre! repetiu Daniel falando consigo mesmo. O celerado to: -na a
fugir-me. Preciso de saber quem é essa Adriana de Lasseny, quem é essa
Genoveva Leinen, ambas as quais o conhecem?
Quando a porta se fechou após os polícias, Rogério exclamou:
— Era então verdade! Esse Pedro Rédon demonstrou-lhe que as
suspeitas que pesavam sobre ele e faziam pesar sobre outra pessoa... não
tinham fundamento?
— Sim, meu irmão, respondeu Helena contrafeita, era absurda a
acusação de que falavas...
— Oh! minha senhora, tornou o mancebo, como me fazem bem a tuas
falas!
E voltando-se para Branca, continuou:
— Adriana, levante a cabeça, querida noiva; nunca duvidei de si, bem
sabe, agora pode entrar de fronte erguida na nossa família!
— Na nossa família! principiou a menina de Chaslin indignaria.
— Helena... Helena... interrompeu o senhor de Logeryl.
— Que tem a dizer à menina de Lasseny? perguntou Rogério com
sequidão. Não acaba agora de dizer que a acusação era absurda, e não havia
crime, e por conseguinte não havia criminosos.
A jovem contendo-se a custo, replicou:
— É verdade, disse, mas...
Os olhares imperiosos de Armando contiveram nos lábios de Helena as
palavras prestes a serem proferidas.
— Perdão, senhor de Chaslin, exclamou Branca com uma dignidade
comovente, devo, quero retirar-me...
— Ah! minha irmã, é demasiado ódio injusto! exclamou Rogério, não te
julgava tão cruel!
— Tem razão, tornou a menina de Chaslin. Andei mal...
Aproximou-se da falsa Adriana e continuou:
— Repito que ninguém deve ser suspeito...
Depois acrescentou, de maneira que só Branca a pudesse ouvir:
— Juro, porém, que nunca terá o nome de Chaslin! A filha de Carnot
inclinou-se sorrindo provocantemente.
— Senhor de Logeryl, perguntou ela em seguida ao magistrado, julga
que para o futuro não terei nada a recear desse bandido?
— Não mais o verá, menina, volveu Armando. Amanhã sairá da França!
— Que Deus o ouça! Adeus, senhores! Minha senhora, sou uma sua
criada.
— Adriana, disse Rogério com vivacidade, vou ter a honra de a
acompanhar.
E saiu com a jovem. Armando e Helena trocaram um demorado olhar de
uma eloqüência muda e desoladora.

CLII - O TIGRE À SOLTA

Tendo encontrado o caminho livre, Fossaro chegou rapidamente à porta


do jardim.
Aquele homem encarnava em si o gênio do mal.
Só um minuto o abandonara o sangue frio, e soubera tirar partido
daquela mesmo momento de perturbação.
Quando ia a sair, parou.
— Contudo que não seja perseguido! Seria para admirar que me
armassem um laço. O ajudante do procurador andou com sinceridade, mas
sempre é prudente tomar as suas precauções.
Entreabriu a porta, meteu a cabeça e olhou: Não descobriu coisa alguma
suspeita na avenida Gabriel. Saiu e deitou a correr para a estação de trens
próxima. Saltou para um trem e disse ao cocheiro:
— Rua de Saint-Louis-en-Ile, e é bater! quarenta souls de gorjeta.
O veículo parou.
Pelo pequeno postigo da traseira, o Barão certificou-se de que nenhuma
carruagem seguia a sua.
Portanto, não o espionavam.
Na rua de Saint-Louis-en-Ile, pagou ao cocheiro, dirigiu-se a pé para a
Bastilha, entrou na estação telegráfica do boulevard Beaumarchais, e dirigiu
a Malpertuis um telegrama assim concebido:
"Cheguei a porto e salvamento... Espere-me de um momento para o
outro.
P. R.

Expedido o telegrama, chamou outro trem, fez-se conduzir ás


Batignolles, onde jantou num pequeno restaurante, e dirigiu-se em seguida à
gare Saint-Lazare.
— É aqui que a prudência é de rigor... murmurou. O substituto deu a sua
palavra de honra, e não acho verossímil que ele queira faltar a ela. Mas,
desconfio... Se ele cumprir a sua palavra, tanto melhor... Recebo dez mil
francos e um passaporte para a América... Finjo que parto... julga-me longe...
fico em Paris, termino os meus negócios e vingo-me! Ah! Branca, rapariga
maldita, veremos se vens a ser mulher de Rogério Chaslin! Foi por amor que
me atraiçoaste! Esse amor fará a tua desgraça!
Às sete e cinco minutos Fossaro chegava à gare.
Deitou em roda um olhar investigador, não viu nenhuma cara suspeita
debaixo das arcadas, aproximou-se do café, e através da vidraça examinou o
interior do estabelecimento.
No compartimento estreito e comprido que conduz ao restaurante Felix,
estava Armando de Logeryl sentado a uma mesa.
César entrou, foi instalar-se muna mesa próxima da dele, e mandou vir
um copo de vinho.

***

O noivo de Helena reconhecera-o.


Sem dizer uma palavra, tirou da algibeira um envelope espesso e largo e
deu-lhe.
Em seguida levantou-se, pagou ao balcão e saiu do botequim.
O zarolho agarrara no envelope.
Despejou o copo, atirou com um franco para cima da mesa, saiu também,
subiu para um coupé que passava sem ninguém, e disse ao cocheiro:
— Square de la Chapelle.
Dali a duas horas. Pedro Rédon tinha readquirido a aparência
irrepreensível de um homem da sociedade, e o Barão César de Fossaro
voltava para o seu palácio da rua de Provence.
Fechou-se no gabinete de trabalho, e pós o aparelho elétrico em ação.
Avisado pelo telegrama. Malpertuis esperava.
Já tinha dado meia noite, e os dois homens ainda estavam reunidos.
César concluiu a narrativa dos fatos que os nossos leitores conhecem.
— Que vamos agora fazer? perguntou Malpertuis.
— Continuar e concluir a nossa obra.
— Não tens medo?
— Nenhum. No Barão de Fossaro não pôde recair suspeita alguma.
Amanhã, ou antes hoje mesmo, escreverás ao nosso correspondente do
Havre para que faça expedir ao senhor de Logeryl o telegrama que te vou
ditar:

"Cheguei ao Havre. Parto amanhã para New York.


"Pedro Rédon."

Malpertuis escrevera o que lhe fora ditado. César continuou:


— O mesmo correio levará uma carta tua, dirigida ao nosso
correspondente da América para que mande ao mesmo Armando de Logeryl
o seguinte telegrama:

"Estou em New York. Em poucos dias receberá revelações importantes a


respeito da menina de Lasseny.
"Pedro Rédon."

***

— Que projetas tu? exclamou o agente.


— Branca faz-nos perder os milhões de Chaslin... Quero vingar-me!
— É tua filha!
— Clara Gaillet era minha amante, e eu matei-a... volveu Fossaro com
uma voz abafada. Agora passemos a outra coisa. Fala-me de Picolet.
— Não o tornaram a ver. É impossível descobri-lo... Deixou a sua antiga
vivenda sem dizer para onde ia. Fiz vigiar o palácio da rua de Francisco I, e
ele não aparece...
— Talvez ele na verdade esteja na província. Veremos. Agora ainda
outra coisa.
— O que?
— O Conde de Vergis?...
— Continua em Berne... Recebi ontem um telegrama pedindo-me
notícias.
— A Condessa Maria?
— Não deixa as Épines-Blanches. Temos um agente na aldeia próxima...
— Arnoldo de Trois-Monts?
— Faz de tempos a tempos curtas e noturnas aparições no palácio.
— Tens informações a respeito da fortuna da Condessa?
— Sei que no contrato matrimonial o senhor de Vergis deu-lhe um dote
de dois milhões, dos quais ela pôde dispor com toda a liberdade.
— E Arnoldo de Trois-Monts?
— Possui dois milhões, e até um pouco mais.
— Vamos tratar com toda a diligência dos nossos negócios por este lado,
e em seguida ocupar-nos-emos do Príncipe Heitor de Castel-Vivant. O
negócio de Chaslin foi por água abaixo, mas não nos empobrece... Hoje
mesmo falarei com Genoveva. Preciso de conhecer o motivo da sua presença
no gabinete do substituto... Até já...
Os dois sócios separaram-se.

***

Nenhum deles tinha ainda conhecimento do drama de vitríolo de que


fora teatro o Ambigu, vítima a Marquesa de la Tour-du-Roy, e que de um
modo extraordinário comprometia outra combinação sua.
Peruando Volnay possuía no mais alto grau o que Nestor Roqueplan
chamava cínica e espirituosamente a independência do coração.
Lazarine desfigurada, em perigo de morte, não podendo dali em diante,
segundo todas as aparências, dispor do menor milhão, já não existia para ele,
e deixava o lugar livre a Genoveva, a quem o comediante tencionava
explorar o melhor que pudesse.
Na mesma noite, depois do espetáculo, conduziu Genoveva à vivenda
Montespan, ao palácio que lhe dera a Marquesa de la Tour-du-Roy!
A ex-amante de Heitor sentia por Fernando Volnay uma dessas paixões
sensuais que tornam certas raparigas capazes de todos os sacrifícios.
Naquele momento não existia para ela senão o ator. O resto do mundo
desaparecera.
Por isso não pensava em Fossaro, cuja aparição sob a forma de Pedro
Rédon. algemado, profundamente a impressionara na antecâmara do
substituto.
Horas depois da conversa de César e de Malpertuis, Fernando almoçava
em casa de Genoveva no boulevard Malesherbes.
Soou a campainha.
— Não estou em casa para ninguém, bradou Genoveva à sua criada de
quarto.
A criada saiu.
Pouco depois tornava a entrar com um ar embaraçado.
— Senhora, disse, é o senhor de Fossaro. Quer por força falar à senhora.
Segue-me.
Efetivamente César entrava atrás dela. No limiar parava um pouco
estupefato.
No fim de um segundo exclamou com voz alegre:
— Mas espera lá, vim cair num ninho de amantes! Quem o havia de
dizer? Perdoem-me, meus amigos, o chegar tão fora de propósito! Devo
bater em retirada?
— Não faça tal, Barão? responderam ao mesmo tempo Genoveva e
Fernando mostrando boa cara.
Genoveva acrescentou:
— Ponha-se à mesa e almoce conosco.
— É impossível, não posso almoçar duas vezes... saio do Bignon.
— Que tem feito. Barão; há séculos que não o vêem? perguntou o ator.
— Acabo de fazer uma pequena viagem para negócios de família. Oh!
meu caro artista, o demônio me leve se esperava encontrá-lo aqui. Que dirá
Lazarine se souber?
Fernando fez-se pálido.
— Barão, interrompeu Genoveva, dar-me-á uma grande satisfação se não
falar mais nessa Marquesa, senão para me participar a sua morte.
— A sua morte? repetiu Fossaro estremecendo, que significa esse
lúgubre gracejo? Por que havia ela de morrer?
— O quê, pois da terra donde o senhor vem não se liam jornais? Como é
que ignora o que toda a gente sabe?...
— Explique-se. porque nada sei.
Genoveva contou a trágica aventura. César escutou-a com visível
comoção.
— Mas espera! exclamou a cocotte depois de concluir a sua narrativa; o
senhor está branco como a cal da parede. Era o senhor por acaso rival de
Fernando?
— Isso é que não, mas eu conhecia muito bem a senhora de la Tour-du-
Roy e não posso deixar de ter pena da desgraçada...
— Demasiada sensibilidade de emenda. Barão. Pois eu não tenho dó
nenhuma dessa velhaca que pretendia desfigurar-me! A sua patifaria voltou-
se contra ela, e foi bem feito. Se morrer, como é provável, que lhe faça muito
bom proveito!

***

Com dificuldade se restabelecera Fossaro do golpe que acabava de o


ferir.
Tudo parecia desabar, tanto do lado dos Chaslin, como do lado de
Lazarine! O assassinato do filho de Marcel tornara-se num crime inútil.
O amor absurdo que Fernando inspirava a Genoveva, bastara para minar
pela base, e aniquilar talvez planos tão bem concebidos!
O Barão reprimiu conforme pode a cólera que lhe rugia no íntimo.
— As coisas não chegaram ainda a um estado desesperado, disse, e
quero querer que a Marquesa viverá.
— De que lhe serve ficar desfigurada? retorquiu Genoveva olhando para
o ator.
— Vou deixá-los, mau grado meu, disse Fernando; esperam por mim no
teatro... tenho uma leitura...
Apoiou os lábios nos lábios que a sua nova amante lhe estendia. apertou
a mão de Fossaro e retirou-se.
— Explica-me agora a tua presença naquele sitio no outro dia... disse
Genoveva, assim que se achou a sós com o Barão.
— Um erro de curta duração... tomavam-me por outro.
— Ah! Senti um calafrio ao ver-te entre dois gendarmes, e algemado a
preceito.
— Não deixas perder um beijo?
— Que queres, estou doida por Fernando!
— Toma cuidado!
— Em que?
— Corres para a ruína... Aquele rapaz é um sorvedouro. Em menos de
três meses estarás sem recursos.
— Muito bem, e os milhões do Príncipe? Tu receberá o teu quinhão, e eu
ficarei com a liberdade de dispor da minha...
— Para a dar a Fernando, não é verdade?
— Dar-lhe-ei se quiser! Parece-me que tenho o direito de o fazer?...
— Com certeza, minha filha, por pouco que te tente o hospital e a
Morgue! Cada qual tem o seu gosto... Lembra-te porém disto: És minha
cúmplice na morte de Lucilia Gonthier, por conseguinte és minha escrava, e
faça eu o que fizer, proíbo-te que sirvas de obstáculo à minha vontade, senão
coitada de ti, coitado do teu amor! Nunca ameaço debalde! Amas Fernando
Volnay... É valendo-me de Fernando Volnay que te hei de ferir. Adeus! não
te esqueças!

***

César pegou no chapéu, deixando Genoveva dominada por um indizível


terror, subiu para o coupé que o esperava, e fez-se conduzir ao palácio da
Marquesa de la Tour-du-Roy, onde perguntou pela criada de quarto de
Lazarine.
— Adeus, senhor Barão, exclamou a jovem ao vê-lo, bem sabe o que
sucedeu à senhora.
— Sim, minha filha; foi uma terrível desgraça. Soube disto quando
cheguei a Paris, depois de um certo tempo de ausência, e venho buscar
notícias da sua ama.
— Infelizmente são más notícias... Um dos olhos ficou perdido, e o outro
está em perigo... Contudo o doutor não perde as esperanças de salvar a
senhora, salvo se houver complicações como ele receia.
— Faço votos sinceros para que não haja nenhuma complicação, e
voltarei dentro em pouco. Tenha a bondade de dizer à senhora Marquesa que
interesse doloroso e profundo me inspira o seu estado.
Fossaro voltou à rua de Provence.
Tinha que se entender com Malpertuis a respeito dos acontecimentos,
que iam agora desenrolar-se com uma rapidez infernal.
A vivenda das Épines-Blanches, para onde se retirara a Condessa Maria
de Vergis, era situada no meio de um parque muito vasto, cercado de muros
pelos três lados, e descia até às margens do Loiret.
Uma distância de quase dois quilômetros separava-o da aldeia mais
próxima.
A jovem ocupava o seu quarto de costume.
Parecia-lhe muito grande e muito triste, e por isso ocupou o rez-de-
chaussée de um pavilhão, onde se sentia menos isolada.
Magdalena, a mulher de Pedro, o factótum, servia-lhe as refeições nesse
pavilhão, que só abandonava para dar uns pequenos passeios por baixo das
velhas e frondosas árvores.
Empregava o resto do tempo em preparar com as suas próprias mãos um
enxoval para a criança.
Arnoldo de Trois-Monts só de tempos a tempos aparecia.
Por prudência, as suas visitas só se efetuavam de noite.
Apeava-se do caminho de ferro de Orleans, e dirigia-se a pé para as
Épines-Blanches.
Entrava ali por uma portinha, cuja chave Maria lhe dera, e retirava-se
muito antes do romper do dia.
A gravidez seguia o seu curso.
Mais dois meses, e a senhora de Vergis conheceria as dores do parto e as
alegrias da maternidade.
Pensava constantemente na inocente criatura cujo nascimento seria para
o marido o mais imperdoável dos ultrajes.
Pensando nisso chorava, mas com as suas lágrimas misturava-se uma
espécie de amarga voluptuosidade.

CLIII - CONTINUAÇÃO
Maria de Vergis desejaria criar o filho.porém compreendia muito bem
que isso seria impossível.
Magdalena tinha uma sobrinha, casada havia um ano com um cultivador
dos arredores de Orleans, e que acabava de ser mãe.
A criada fiel entendera-se secretamente com a jovem, que de muito bom
grado aceitava o encargo de criar o recém-nascido.
Dias depois da instalação da Condessa nas Épines-Blanches, um homem
de uns cinqüenta anos, com aspecto de oficial reformado, condecorado, e
dizendo chamar-se Raquin, alugara uma casinha toda mobiliada na aldeia
próxima, e tratara de obter licença para caçar e para pescar.
O tenente Raquin, que não se clava de abancar quase todas as noites na
taberna a fumar no seu cachimbo e a beber de sociedade com os
camponeses, no fim de oito dias só contava amigos na aldeia.
Passava os dias a correr pelos campos, ou pelas margens do Loiret, com
uma espingarda ao ombro, ou uma linha na mão. mas coisa singular, caça e
pesca não parecia agradarem-lhe senão nos arredores do parque das Épines-
Blanches.
De tempos a tempos, depois de se cerrar a noite, introduzia-se no parque
por uma portinha cuja fechadura em mau estado só fraca resistência opunha
a um homem hábil, e espionava horas inteiras o pavilhão habitado pela
senhora de Vergis.
Duas ou três vezes por semana ia deitar na porta de Orleans cartas
dirigidas ao senhor Malpertuis, ex-advogado, rua da Victoria, em Paris.
Esta última particularidade, basta para informar os leitores de que o
suposto tenente Raquin era um agente do procurador.
Os frios chegaram.
Uma espessa camada de neve desdobrou-se como um lençol sobre o
campo, ao mesmo tempo que uma crosta de gelo cintilante cobria o Loiret.
A pesca tornava-se impraticável, mas o caçador entusiasta, muito bem
agasalhado e calçado de grandes botas, não deixou por isso de freqüentar a
margem do rio que costeava o parque e de caçar aves aquáticas.
Uma noite de frio muito intenso tornara o gelo bastante sólido para
sustentar, sem se quebrar, o peso de um homem.
No dia que se seguiu àquela noite, Raquin dirigindo-se de tarde para o
teatro das suas façanhas cinegéticas, vi de longe alguém sair do parque,
atravessar o rio por cima do gelo e dirigir-se para uma aldeia situada a uns
três quilômetros da margem esquerda do Loiret.
Curioso por índole e observador também por índole, o pseudo-tenente
tirou da bolsa um óculo de que se serviu para examinar aquele indivíduo.
— Mas espera lá, disse, é Pedro, o facto, um da Condessa! Onde
demônio vai ele tão depressa?
Pedro levava grande dianteira para que fosse possível alcançá-lo.
No fim de cinco minutos desaparecia por trás de uma elevação do
terreno.
Caía em abundância a geada.
Raquin não parecia preocupar-se com isso.
Atravessou por seu turno o rio, e foi postar-se de observação no ângulo
do parque, cujo muro ocultava a todos os olhares.
No fim de uma hora dois vultos apareceram no ponto onde Pedro cessara
de ser visível.
O óculo tornou a pôr-se em movimento.
Era o marido de Magdalena que voltava, acompanhado de um segundo
personagem.
Avançaram rapidamente, chegaram ao Loiret que atravessaram sobre o
gelo e entraram no parque.
Pedro trouxe um médico, pensou o agente de Malpertuis; no palácio
deve passar-se alguma coisa anormal.
Feita esta reflexão, dirigiu-se rapidamente para a portinha o transpôs
também a porta do parque.
Efetivamente nas Épines-Blanches passava-se alguma coisa de
extraordinário.
Dois dias antes, a senhora de Vergis. querendo tirar um livro da
biblioteca, colocado em lugar aonde não chegava, tinha subido a uma
cadeira.
Um movimento mal calculado, fizera tombar a cadeira.
Atraída pelo ruído de uma pesada queda, Magdalena foi achar a ama
estendida no tapete e desmaiada.
Os cuidados da velha criada reanimaram bem depressa a Condessa, que
se pôde levantar.
Apenas, porém, se achou de pé, sentiu dores violentas interiores, e soltou
fraco gemido.
— Meu Deus! exclamou Magdalena, que imprudência a senhora
cometeu! Bastaria uma queda dessas para ocasionar um parte antes de
tempo.
— E a criança poderia viver? perguntou Maria toda trêmula.
— Por certo, se o acidente se desse aos sete meses...
— Sete meses... murmurou a Condessa, sim, há sete meses... Quem sabe
se não seria um favor da Providência?

***

Decorreram quarenta e oito horas na maior tranqüilidade.


A senhora de Vergis não pensava na sua queda, mas ao terceiro dia foi
acometida repentinamente de dores agudas que lhe cortaram a respiração, e
lhe encheram os olhos de lágrimas.
Felizmente Magdalena achava-se ao pé dela para a despir e metê-la na
cama.
— O que é que sinto? perguntou a Condessa, que me sucede?
— Vai ter o seu parto antes de tempo; é preciso ir quanto antes buscar
um médico.
— Um médico! repetiu Maria cheia de terror. Mas isso é dar a saber o
segredo da minha falta!
— Ai, senhora, eu só nada posso aqui fazer! Mas sossegue... O doutor
Jousselin, a quem Pedro vai buscar, é um homem de bem por quem
responderia como por mim mesma. Não dirá nada.
— Então apressem-se, porque sofro o mais possível.
A velha criada correu a prevenir o médico.

***

Vimos Pedro partir, e assistimos ao seu regresso em companhia do


médico.
A noite cerrara-se de todo.
Magdalena fechara as taboinhas do pavilhão, e acendera as velas dos
candelabros.
No momento em que o doutor entrava, a Condessa contorcia-se com as
dores que precedem a crise suprema.
Mal deu pela presença do médico.
Este perguntou logo:
— O parto é de tempo?
— Não. respondeu Magdalena, é de sete meses, resultado de uma queda.
Tomemos então as nossas precauções... Prepare algodão em grande
quantidade, e previna a ama, se tem alguma. Depressa, não perca um
minuto... fico ao pé da doente...
Pedro e a mulher saíram.
Magdalena voltou dali a um momento, trazendo o que o doutor pedira.
Pedro pôs um trem e partiu a trote rasgado, para ir procurar a jovem ama
e trazê-la.
Raquin não perdia nenhuma das suas voltas, mas ainda não adivinhava o
motivo.
Aproximava-se o momento terrível.
De repente a Condessa exclamou, como em delírio:
— Arnoldo... Arnoldo! Não quero morrer sem o tornar a ver! escrevam-
lhe... que venha! Oh! meu Deus. como eu sofro!
— Uma terrível convulsão deteve as palavras nos lábios desmaiados de
Maria.
Após alguns minutos de dores inexprimíveis. por entre os lamentos
desesperados da Condessa, soou um vagido.
A Condessa caiu para trás, aniquilada.
— É um menino... murmurou o doutor. Maria de Vergis ouviu-o.
Ao seu rosto, desfigurado pelo sofrimento, assomou uma expressão
quase alegre.
Decorreu uma hora.
Raquin, todo trêmulo de frio, os dedos entorpecidos, as guias do espesso
bigode ornadas de gelo, permanecia heroicamente no seu posto.
Ouviu subitamente ranger a neve sob rápidas passadas.
Viu dois vultos encaminharem-se para o pavilhão.
A noite estava clara como quase sempre o estão as noites muito frias,
contribuindo muito para essa claridade a reverberação da neve.
O pseudo tenente reconheceu Pedro, acompanhado de uma rapariga
trazendo uma criança nos braços.
— Que significa isto? perguntou.
Continuou a ficar na expectativa, cada vez mais intrigado.
A sobrinha de Magdalena entrara no pavilhão.
A senhora de Vergis estendeu-lhe as mãos, e atraiu-a a si para a abraçar.
O anjinho está ali. disse-lhe Magdalena. Dá-lhe depressa de mamar,
Brígida.
A ama aproximou-se do berço, pegou no filho de Maria, cujo lugar
passava momentaneamente a ser ocupado pelo seu, e ofereceu-lhe o seio.
A criança aceitou com avidez.
— Louvado sejais, meu Deus! murmurou a Condessa com lágrimas de
comoção.
A tarefa do médico terminara, pelo menos por aquela noite. Escreveu
uma receita, fez as suas recomendações à parturiente e à ama, e anunciou
que voltaria no dia seguinte.
— Senhor doutor, disse-lhe Pedro, vou acompanhá-lo até ao Loiret...
Pôde perder-se no parque.
O médico aceitou o oferecimento, e seguiu o marido de Magdalena.
Deixaram o pavilhão, e internaram-se pelo bosque. De repente o
factótum perguntou ao médico:
— Que lhe parece o estado da senhora Condessa?
— A senhora de Vergis não corre nenhum perigo grave.
— E a criança?
— Talvez venha a ser enfezada, mas nada até agora se opõe a que viva.
O espião não perdeu nenhuma das palavras proferidas quando passaram
por ele.
Quando ao longe cessou o ruído dos passos, o espião abandonou o seu
posto, saiu do parque, e voltou para casa a toda a pressa.
Em lugar de ir meter-se na cama, como era o seu direito depois de uma
tarde e de uma noite tão fatigantes, escreveu a Malpertuis a fim de lhe dar
conta dos acontecimentos que acabavam de se passar.
Depois saiu e foi deitar a sua missiva na caixa do correio, cuja abertura
era ao romper do dia.
Quase à mesma hora Pedro dirigia-se a Orleans, donde mandava a
Arnoldo fie Trois-Monts um telegrama nestes termos:
"É um pequeno... Venha.
"Maria."

***

Que era de Stanislau Picolet enquanto se passavam os acontecimentos a


que acabamos de assistir?
Como sabemos. Malpertuis debalde o mandara procurar à sua antiga
morada.
O falso policia, depois de uma viagem sem resultado à residência de
Vezelay, tratara de mudar de domicílio, precisamente para se subtrair às
pesquisas que ele supunha deverem ser feitas pelo seu ex-patrão.
Inteiramente dedicado ao Príncipe Totor, que lhe prometia uma fortuna,
e não querendo voltar ao escritório da rua Victoria, sentiu a imperiosa
necessidade de ocultar o seu rasto a fim de operar em toda a liberdade.
Morava por isso provisoriamente num pequeno quarto da rua de Chaillot,
quarto que abandonava pela manhã, para só aí voltar à noite, depois de ter
dedicado todo o dia a pesquisas que não davam resultado nenhum.
Estes repetidos contratempos não o desanimavam.
Metera-se-lhe em cabeça descobrir Lucilia, e apesar dos numerosos
insucessos que o perseguiam, não desanimava.
No momento em que a Condessa Maria de Vergis tinha o seu parto nas
Épines-Blanches, Sta-Pi voltava para casa, punha em ordem alguma
papelada, consultava o relógio, e vendo que não eram duas horas, tornava a
descer os seus cinco andares, e encaminhava-se para a rua Francisco I, para o
palácio do Príncipe de Castel-Vivant, cujo limiar não transpunha havia
muitos dias.
Heitor encerrado no seu gabinete, cismador e sombrio, recebeu-o
imediatamente, e o seu rosto pálido iluminou-se logo de um raio de
esperança.
Perguntou-lhe com avidez:
— Traz-me finalmente notícias?
— Infelizmente ainda não, meu senhor. Apagou-se o fulgor da
esperança.
— Então, balbuciou o Príncipe desesperado, está tudo acabado... Lucilia
morreu.
— Nada o afirma, senhor! Fiei de supô-la viva, enquanto não tiver
encontrado o seu cadáver... Vou todas as manhãs à Morgue, e graças a Deus
não encontro lá rapariga, que se pareça com ela... Acho-me em frente de um
mistério impenetrável, mas basta um incidente para me pôr no rasto, e para
fazer brilhar a luz em meio das trevas.
— Pois que apareça esse incidente! exclamou Heitor. Quanto mais os
dias correm, mais o desgosto me prostra! Faça-se a luz, aliás serei eu quem
morra.
Sta-Pi muito comovido, exclamou:
— Coragem, senhor!
— Já não a tenho! Faltam-me as forças. Daria toda a minha fortuna, e
sem pesar, a quem me restituísse Lucilia! De que me serviriam os milhões
sem ela, pois que sem ela não poderia viver?
E o Príncipe deixou-se cair numa poltrona, derramando abundantes
lágrimas.
— Olhe, Príncipe, proferiu Sta-Pi, sossegue, peço-lhe, e escute-me...
Heitor fez sinal de que escutava.
O ex-empregado de Malpertuis continuou:
— Até hoje tenho ficado a ver navios, é verdade, e não me gabo; mas
hoje começo a compreender a causa deste azar persistente. Julgava-me
esperto, e procedia como um calouro. Procurava mal... Julgando que me,
benzia, partia os narizes!
— O que, o senhor! exclamou Heitor olhando para ele.
— Eu, sim, meu senhor, e eu lhe digo como e porque...

CLIV - NOVAS PESQUISAS

— Tenho culpa, tenho muita culpa, continuou o polícia fingido, e vou-


lhe provar, meu senhor. Se eu tivesse discorrido mais logicamente, teria dito
o seguinte: — "A menina Lucilia recebeu duas cartas uma atrás da outra,
uma do Príncipe, e outra do patife que pretendia atraí-la ao laço em que ela
caiu..."
— Canalha! interrompeu Heitor cerrando os punhos.
— Ora, a menina Lucilia, continuou Sta-Pi, saiu de casa para cair no
laço, e esse laço estava com certeza armado em algum lugar afastado de
Beleville, onde toda a gente conhecia a Toutinegra e a houvera defendido.
Será evidente?
— É evidente, confirmou o Príncipe.
— Mas, para se dirigir àquele lugar distante, que havia ela de fazer?
Tomar um trem. Segundo todas as aparências onde é que o alugou?
O Príncipe escutava com ansiedade. Sta-Pi prosseguiu:
— Na estação mais próxima da sua residência, e essa estação é a que se
acha na barreira de Belleville. Era portanto ali, se tivesse um bocado de
senso comum, que me devia ter dirigido logo no dia seguinte.
— Mas na estação como saberá se Lucilia tomou um trem? perguntou
Heitor com vivacidade.
— Interrogarei todos os cocheiros que das oito para a meia noite de lá
saíram.
— Isso é difícil...
— É difícil, mas não é impossível...
— Quem lhe designará os cocheiros?
— Cada guarda de estação inscreve num registro especial os números
dos trens e a hora a que ele sai... Basta-me- consultar esse registro... Em
seguida irei procurar cada um dos cocheiros, interrogá-los-ei, e se algum me
responder que àquela hora uma jovem subiu para o seu trem. farei com que
me apresente a sua folha do dia, e saberei aonde conduziu àquela jovem.
Será um rasto. Não peço mais para atingir o fim que desejo.
— E o cocheiro lembrar-se-á?
— Ajudar-lhe-ei a memória. Demais, a menina Lucilia é muito bonita
para passar despercebida. Sem falar na fisionomia muito transtornada que ela
devia ter naquela noite, e que devia atrair a atenção de toda a gente.
— Ande, ande, meu bom Sta-Pi, e que Deus o auxilie!
— Prometa-me ter coragem, meu Príncipe, e isso duplicará o meu zelo.
— Terei, prometo-lhe.
Heitor abriu a gaveta de um móvel e continuou:
— O senhor vai ter que despender dinheiro... Tome...
E meteu algumas notas de banco na mão do polícia fingido. Sta-Pi voltou
à rua de Chaillot, muito resolvido a pôr o seu plano em execução no dia
seguinte.

***

Malpertuis não fora o único a procurar, ou a mandar procurar Picolet.


Daniel Gaillet, como os nossos leitores não devem ter esquecido,
convencido de que Pedro Rédon conhecia Genoveva Leinen, escrevera na
sua agenda o nome e a morada desta última.
Por outro lado, enquanto assistiu à confrontação de Pedro Carnot e da
menina de Lasseny, admirara-se da coincidência existente da época, em que
o assassino da filha deixara as galés, e o momento em que ele conhecera
Adriana.
Lembrou-se de que Pedro se dirigia ao colégio de Courbevoie para aí
visitar a filha de um dos seus amigos.
Perguntou a si próprio se Genoveva Leinen não seria por acaso Fanny
Vernaut transformada, e se Pedro não iria ver ao colégio Adriana de Lasseny
transformada?
Quem sabia se aquela Adriana, oculta sob um falso nome, firmado em
documentos mentirosos, não seria a própria filha de Clara Gaillet, e de Pedro
Carnot?
O inspetor da segurança linha o mais ardente desejo de esclarecer todos
aqueles pontos obscuros, mas como o havia de conseguir?
Daniel compreendia muito bem que existia um segredo terrível entre
Pedro Rédon, posto em liberdade contra toda a justiça, e o senhor de
Logeryl, representante da família de Chaslin.
O substituto fizera o muito, duas ou três perguntas e respeito de Fanny
Vernaut.
Para aprofundar o problema, cuja solução ele queria achar, o polícia
devia trabalhar as ocultas, porque não tinha àquele respeito nenhuma ordem
legal.
Como era natural, o inspetor lembrou-se de Sta-Pi, a quem falara de
certas pesquisas relativas a Fanny Vernaut e a Pedro Carnot.
Em conseqüência disso, procurou-o sucessivamente na casa onde deixara
de residir, e no escritório, onde lhe responderam que estava com licença.
Numa palavra, já não contava com a sua colaboração, quando uma
manhã tocaram vigorosamente a campainha à porta do pequeno quarto que
ele ocupava havia um ano, na calçada de Clignoncourt, ao pé do boulevard
Ornano.
Daniel abriu a porta.
Viu diante de si Picolet.

***

— Olá! é você. Picolet! exclamou alegremente.


— Em pessoa, meu querido mestre, para o servir.
— Entre, pois, e seja bem aparecido! Disseram-lhe, de certo, na rua de Ia
Victoire que eu o procurava?
Nada disso... Já lá não vou. Larguei o escritório Malpertuis... Aquilo é
um ninho! Em suma, cá estou.
— Por que é que me procurava?
— Tenho necessidade do senhor...
— A propósito de que negócio?
— Sempre a respeito da mesma coisa, de Fanny Vernaut.
— A infanticida de Courbevoie! Anda-lhe na pista?
— Talvez.
— O que diz, talvez? Pois não tem a certeza?
— Só tenho desconfiança a esse respeito. Desconfio de que uma mulher
da moda, uma cocote muito chic, é a Fanny Vernaut
— E como se chama ela?
— Genoveva Leinen.
Picolet deu um pulo muito surpreendido.
— Genoveva! exclamou.
— Conhece-a? perguntou Daniel com vivacidade.
— Se conheço! É a ex-amante do jovem Príncipe de Castel-Vivant, que
me honra com uma benevolência muito particular. E é dela que desconfia?
— É dela.
— Pois, parece-me, meu querido mestre, que se engana redondamente.
— Explique-me então porque é que essa Genoveva Leinen conhece o
antigo forçado Pedro Carnot e se perturba ao vê-lo?
— Tornou a encontrar Pedro Carnot?
— Encontrei-o, prendi-o... julgava que o tinha bem seguro, e escapou-me
por entre os dedos.
— Fugiu?
— Não... Puseram-no em liberdade, o miserável o zarolho!
Picolet tornou a estremecer.
— Zarolho murmurou lembrando-se do moço de recados que levara a
carta ao príncipe Totor à rua Julien Lacroix... Ah! não tinha pensado nisso!
— Então em que pensou?
— Em nada, senhor Gaillet. É uma reflexão que me açode ao espírito, e
não tem relação com o seu negócio... Diz então que Pedro Carnot foi posto
em liberdade?
— Sim, e declarado inocente, sem investigações, sem instrução de
processo, e eu quero tornar a encontrá-lo... Quero perguntar-lhe o que foi
feito de minha neta, da filha de Clara Gaillet.
— Outrora, se bem me lembro, respondeu que ignorava.
— É mentira! Estou certo de que não a perdeu de vista, e julga até
adivinhá-la sob um nome que não é o seu.
— É preciso pôr mãos à obra.
— Não posso... Não tenho ordem legal. Por-me-ia numa situação pouco
conveniente se fizesse polícia por minha própria conta... Contei consigo.
— A sua disposição, senhor Gaillet...
— Que é preciso indagar?
— Primeiramente, se Pedro Carnot ou Pedro Rédon, a quem se deu um
passaporte para a América, deixou ou não Paris... Não se me dava de afirmar
que não.
— Depois?
— Se Genoveva se chamou cm outros tempos Fanny Vernaut?
— Bem.
— Uma vez orientados a este respeito, saberemos por ele ou por ela, se a
menina Adriana de Lasseny não é filha de Clara Gaillet.
— Quem é essa menina Lasseny? perguntou Picolet, a cujos ouvidos este
nome chegou pela primeira vez,
— Aparentemente, é uma órfã de família nobre... O que ela é realmente,
o senhor o descobrirá, e descobrirá também se Genoveva Leinen é há muito
conhecida sob este nome.
— Pelo menos, querido mestre, nada desprezarei para isso, e por-me-ei a
trabalhar assim que desenredar o negócio que aqui me traz. O tempo urge,
está em jogo a vida de uma mulher.
— A vida de uma mulher! repetiu Daniel estupefato.
— Sim, aceito a tarefa que me propõe, mas só daqui a oito dias posso
principiar... concede-me oito dias?
— Não posso deixar de conceder.
— Agora,ouça o que pretendo... Tenho necessidade de consultar na
prefeitura de polícia, na repartição dos trens da praça, o livrete do guarda da
paz da estação do boulevard de Belleville, da data de 24 de outubro deste
ano. Estes livretes. enviados diariamente à prefeitura, acumulam-se nos
arquivos. Não posso pedir quem os deixem ver, sem um motivo plausível, e
tenho razões muito sérias para ocultar o motivo que me faz proceder... A
situação não é a mesma... A um polícia não se pode recusar o que eu peço.
Portanto, tirar-me-á nota das carruagens que das oito horas e meia até à meia
noite transportaram gente, e dar-me-á esses esclarecimentos.
— Mais nada?
— Mais nada.
— Venha então já comigo à polícia, e consultaremos juntos os livretes.
Vou calçar as botas e vestir um sobretudo, e ponho-me à sua disposição.
Daniel desapareceu.

***

Picot pôs-se a refletir.


— Se esse zarolho conhecido de Genoveva, não fosse, outro senão Pedro
Carnot disfarçado em moço de recados? disse ele em voz baixa consigo,
podia muito bem ser que efetivamente Fanny Vernant fosse uma criatura
capaz de tudo! Nesse caso teria feito mal a Lucilia Gonthier para se vingar
do Príncipe... Isto nada tem de inadmissível. Demônio! Demônio! isto
complica-se, ou por outra, simplifica-se.
Neste momento entrou Daniel.
— Estou pronto... disse.
Sta-Pi levantou-se e dirigiu-se na sua companhia à prefeitura de polícia.
Aí, entraram na repartição dos trens de praça.
— Quem o traz aqui, senhor Gaillet? perguntou o chefe ao polícia.
— Certas pesquisas...
— De que espécie?
Daniel expôs em poucas palavras o que pretendia.
— Bem, volveu o chefe, vou recomendá-lo ao meu colega dos arquivos.
Os livretes do mês precedente ainda não devem estar classificados...
Escreveu três linhas e deu-as ao inspetor, que depois de ter mostrado a
sua gratidão, subiu ao segundo andar com Picolet, transpôs a entrada dos
arquivos, e apresentou o seu bilhete de introdução a um empregado.
Passados cinco minutos, o empregado trazia-lhe um livrete com a data de
24 de outubro e estas palavras impressas: "Estação do boulevard de
Belleville."
Daniel abriu o livrete.
Sta-Pi tirou ao mesmo tempo da algibeira um livro de lembranças e um
lápis, e preparou-se para escrever.
— Das oito à meia noite,não é verdade? perguntou o agente.
— Sim.
— Pronto. O primeiro trem deixou a estação às oito e um quarto.
— O número?
— 13.
— Espera lá! murmurou Picolet. O fiacre n.° 13... No Petit Journal li eu
um romance que se chamava assim, e que me interessou
extraordinariamente... Depois, até à meia noite? continuou:
— 567, 934, 5:035, 872, 4:087, 5:002, 914, 1:007, 756, 1:702, 1:812,
1:134... Mais nada...
Basta! disse Stanislau fechando o livro de lembranças. Preciso agora de
saber onde são as cocheiras de todos esses trens...
— Isso vai levar algum tempo, mas arranja-se.

***
Os dois desceram ao primeiro andar, e Daniel introduziu Sta-Pi na
repartição da numeração.
Ali se conservaram duas horas.
No fim deste tempo deixaram a prefeitura, munidos de todas as
informações de que precisava o ex-empregado de Malpertuis.
— Oh! com a fortuna! exclamou o último parando de repente no cais.
Esqueci-me de perguntar se os cocheiros guardam as folhas que lhes são
distribuídas pela manhã, e nas quais devem inscrever o lugar onde tomam o
freguês, e o lugar onde o deixam.
— Eu posso responder a isso, disse Gaillet. Todo o cocheiro é obrigado
pelos regulamentos a conservar as folhas durante três meses, para que a
polícia possa consultá-los, se lhes for preciso.
— É o que eu quero saber... Obrigado, senhor Gaillet; resta-me
agradecer-lhe, repelir-lhe, que dentro de oito dias poderá contar comigo, e
pedir-lhe que aceite de almoçar sem cerimônia num pequeno restaurante que
eu conheço na praça de Saint-Michel, onde não se cozinha muito mal.
Daniel não rejeitou.
Depois de almoçar, Picolet ficou só, e classificou as direções dos
diversos cocheiros com que tinha de falar.
Dos treze trens cujos números citamos, cinco pertenciam à Companhia
Geral, três recolhiam-se na rua de Chemin-Vert, e dois da rua Chaummant...
Os outros eram a propriedade de alugadores particulares espalhados por
muitos bairros de Paris.
Sta-Pi tomou um trem e fez-se conduzir primeiramente à rua do Chemin-
Vert.
Os cocheiros tinham principiado o seu serviço pela manhã às sete horas e
meia, e disseram-lhe que os acharia no depósito no dia seguinte às sete
horas.
Picolet partiu para a rua das Ruttes Chaummant, onde apenas obteve um
resultado negativo.
De noite visitou todas as cocheiras, mas só falou com um dos cocheiros.
e adquiriu a certeza de que aquele não conduzira Lucilia Gonthier.

CLV - UM RASTO

No dia seguinte, logo pela manhã. Picolet deu começo à sua tarefa, mas
essa tarefa levava tempo.
Durante o dia todo apenas pode falar com sete cocheiros dentre doze. e
não obteve nenhuma indicação útil.
No outro dia, às sete horas, dirigiu-se à rua Ordoner.
Era ali que se recolhia o trem que tinha o número 872.
O dono. como era também o cocheiro. ajudava um moço a pôr o trem.
Sta-Pi disse-lhe com o seu mais gracioso sorriso:
— Senhor, venho rogar-lhe que me dê uma informação.
— Se não é coisa que leva muito tempo, estou às suas ordens, retorquiu
o patrão, mas se levar muito tempo, adeus! parto, e não quero perder o dia.
— Talvez leve muito tempo.
— Então, volte esta noite.
— Pois tomo-o às horas, exclamou o falso polícia sorrindo novamente, e
pago a primeira hora por estes dez francos.
— Então, aonde é que o devo conduzir?
— É preciso ficar aqui, ouvir-me e responder-me. O senhor é quem guia
o trem n.° 872?
— Sim, senhor.
— Sempre?
— Sempre, de inverno e com mau tempo. De verão tenho um trem
descoberto, uma vitória muito chic. Aqui, com os pés sobre a neve, faz muito
frio. Logo que temos que conversar, não seria melhor entrarmos para casa?
— Com todo o gosto.
O cocheiro morava no rés-do-chão.
Na primeira casa roncava um fogão, onde a dona da casa estava
preparando a comida.
Os dois homens sentaram-se.
— Agora, disse o cocheiro, conversamos... Picolet principiou:
— No dia 24 de outubro o senhor estava com o seu trem na estação do
boulevard de Belleville das oito para a meia noite?
— Olá, meu querido senhor, está a pedir-me muito! Como quer o senhor
que me lembre do que se passou há tanto tempo...
— Consulte a sua folha desse dia, e verá que tenho a certeza do que
digo...
O cocheiro tirou de uma pasta um maço de folhas escuras, amarrotadas,
maculadas.
Consultou as datas, escolheu uma e exclamou:
— Palavra, que o senhor tem razão! Sta-Pi consultou o livrete, e tornou:
— O senhor tomou um freguês às dez horas?
— Sim, senhor, é exato.
— Aonde foi?
— Ao caminho de ferro de Vincennes.
Picolet tomava notas a lápis. Depois continuou:
— Lembra-se então da pessoa que subiu para o seu trem?
— Isso é que não.
— Procure bem.
— Posso estar a procurar dez anos, que não me servirá de nada.
— Ajudando-o um pouco, lembrando-lhe certas particularidades? A
mulher do cocheiro, imóvel ao lado do fogão, escutava.
— Procura, disse ela, talvez te lembres.
— Vejamos, no dia 24... Como estava o tempo? perguntou o cocheiro.
— Muito mau, pelas onze horas e meia desencadeou-se uma verdadeira
tempestade.
— Sim, sim, lembro-me disso, voltei aqui diretamente do caminho de
ferro de Vincennes, estava como uma sopa.
— Procure agora lembrar-se se foi um homem ou uma mulher a quem
conduziu?
— Uma mulher! repetiu o cocheiro.
— Sim, uma mulher, ou antes uma rapariga loura, muito bonita, parecia
com este retrato.
E dizendo isto, Sta-Pi tirava da sua carteira a fotografia de Lucilia, e
apresentava-a ao cocheiro.
O cocheiro olhou para ela com atenção.
— Ora espere lá, disse ele cocando na cabeça. Sim, era uma mulher, e
parece-me quando ela se apeou da carruagem e me pagou a corrida...
A mulher do cocheiro, que se debruçara para ver a fotografia,
interrompeu o marido:
— Deve ser a rapariguinha de que me falaste ao voltar, exclamou ela.
Lembra-te, dizias-me que ela tinha o ar espantado, e que parecia um pouco
doida, e que chorava, e que te deu vinte sous de gorjeta.
— Ah! sim, palavra, é isso, exclamou com vivacidade o cocheiro a quem
as suas recordações voltavam em multidão; agora tenho a certeza de que é
ela.
Sta-Pi tremia de comoção e alegria.
Finalmente, pensava ele, tenho um ponto de partida, tenho um rasto, e
acrescentou em voz alta:
— Não pôde dar-me nenhuma outra informação?
— Palavra que não, senhor, a rapariguinha entrou na gare e eu parti...
— Ia só?
— Sim, senhor.
— Ninguém a esperava?
— Não creio, porque se dirigiu logo para o lugar onde vendem os
bilhetes.
Picolet olhou para o relógio.
— Uma hora em ponto, disse ele. Agora vai conduzir-me ao caminho de
ferro de Vincennes.
— Com todo o gosto, senhor.
Vinte minutos depois, Sta-Pi apeava-se na gare e pedia um bilhete para
Saint-Mandé.
Não o seguiremos, pelo menos, neste momento.

***

Arnoldo de Trois-Monts recebera às nove horas da manha, o telegrama


lacônico expedido de Orleans, e assinado: Maria.
Lendo este bilhete, Arnoldo fez-se pálido.
A alegria e a angústia dominavam por final a sua alma.
Nascera-lhe um filho, mas tendo vindo ao mundo antes do tempo,
viveria?
O seu nascimento não poria em perigo a vida da mãe?
Arnoldo quisera partir naquele mesmo momento, mas era uma
imprudência, ou antes uma loucura, chegar de dia às Épines-Blanches.
Era preciso esperar a noite, esperá-la com incerteza e terror.
Que suplício!
Por volta das cinco horas, o senhor de Trois-Monts começou os seus
preparativos.
Meteu um pouco de roupa branca numa pequena mala, muniu-se de um
revólver, de dinheiro, e de um livrinho de cheques, e fez-se conduzir à gare
de Orleans, em cujo bufete jantou.
Às sete horas e três quartos subia para o expresso, e chegava às dez horas
e doze minutos à gare de Orleans.
Portanto, um pouco antes da meia noite, podia achar-se ao pé de Maria.
Perto do meio dia. Malpertuis recebera a carta de Raquin.
Vendo que as coisas caminhavam com uma rapidez infernal, esfregou as
mãos, mas não podia tomar determinação alguma sem Fossaro.
Teve de esperar por ele para lhe comunicar a notícia.
Ora o Barão só voltou à meia noite.
— Bem, disse ele depois de ler, o acaso mostra-se nosso aliado! não
podíamos esperar um desenlace tão rápido! Dentro de três dias quando a
Condessa tiver recuperado forças suficientes para me ouvir, irei lá falar-lhe
de negócios. O senhor de Trois-Monts deve estar a caminho. Conservar-se-á
um dia ou dois nas Épines- Blanches... Depois dele se retirar, apareço eu.

***

O pseudo-tenente com baixa, continuava a desempenhar o seu papel de


espião, com irrepreensível consciência.
No dia que se seguiu ao parto, por volta das quatro horas, viu o médico
passar como na véspera, pelo Loiret gelado, e entrar no parque onde já não
precisava segui-lo.
— O amante deve estar prevenido... disse consigo, portanto é preciso
vigiar, mas vigiar em pleno campo com este frio, seria pouco agradável...
Conheço os costumes do sujeito... vou de passeio até Orleans, e tratarei de
ver em que comboio ele vem.
Raquin discorria às mil maravilhas.
Às dez e doze minutos, viu Arnoldo sair da gare
Correu à estação telegráfica, e mandou a Malpertuis o seguinte
telegrama:
"A. de T. chegou esta noite."
Minutos antes da meia noite, o senhor de Trois-Monts abria a portinha
do muro das Épines-Blanches, e dirigia-se para o pavilhão
Ninguém se tinha deitado.
Maria, à espera de Arnoldo, não dormiu.
Magdalena velava no quarto da Condessa.
Admirava o bebê que a ama embalava sobre os joelhos com uma canção
de um ritmo lento e monótono.
Pedro, muito agasalhado com três casacos por cima uns dos outros, fazia
sentinela na estrada por onde o senhor de Trois-Monts devia chegar.
A Condessa, com o rosto pálido, mas alegre, passava o melhor possível.
Pela manhã, recebera uma carta do Conde anunciando-lhe que se
prolongaria pelo menos por mais dois ou três meses.
Era a impunidade... era a salvação...
A jovem tinha toda a confiança no futuro.
Esperava o amante com impaciência febril.
O relógio acabava de dar maia noite.
À porta soaram três leves pancadas espaçadas regularmente.
Este sinal de antemão combinado, não assustou ninguém.
Magdalena apressou-se a abrir, ao mesmo tempo que Maria se sentava
na cama, com os olhos cintilantes, a garganta palpitante.
Arnoldo apareceu.
A Condessa estendeu os braços para ele, e depois de um ardente
amplexo, murmurou-lhe suavemente ao ouvido:
— E o teu filho... não vais beijá-lo?
O senhor de Trois-Monts voltou-se.
A ama apresentou-lhe a enfezada criatura, profundamente adormecida.
Arnoldo tocou-lhe com os lábios nos olhos fechados, e nas mãozinhas
rosadas e enrugadas.
Chegou em seguida a vez da mãe pegar na criança.
A senhora de Vergis balbuciou com voz indistinta:
— Querida criatura, minha felicidade e minha vergonha, prova viva do
meu amor e da minha falta, como eu te amo...
Magdalena e a ama deixaram o quarto onde a senhora de Vergis ficou só
com Arnoldo.
— És feliz, não é verdade? perguntou a Condessa as amante estendendo
as mãos para ele e fitando-o.
— Sim, muito feliz, respondeu, sobretudo depois de ter sofrido tanto...
Este parto antes de tempo assustava-me... a afeição enlouquecia-me. Que se
passou?
Maria contou como tinha caído ao ir tirar um livro da biblioteca.
O senhor de Trois-Monts murmurou beijando as mãos da jovem:
— Deus protegeu-nos! É preciso cuidarmos agora do nosso filho.
— Terá também o nome de Arnoldo, o teu nome. não é assim?
— Sim, se queres, mas não é do seu nome que eu falo...
— Então...
— Falo do seu futuro. Não podemos ir declarar o seu nascimento à
"mairie" das Épines-Blanches. Seria deitar tudo a perder...
— Isso é verdade... Que resolução tomar?
— Voltarei para Paris, e a ama acompanhar-me-á com a criança que eu
darei na "mairie" do meu bairro como meu filho. O essencial é afastá-lo
daqui o mais cedo possível.
A senhora de Vergis fez-se pálida.
— Já mo queres tirar? balbuciou.
— Assim é preciso... Se o Conde voltasse!...
— A sua ausência deve prolongar-se por muito tempo ainda. Recebi dele
esta manhã uma carta que me dá a certeza disso.
— Pode haver uma indiscrição!
— Quem a há de cometer? Pedro. Magdalena e a sobrinha, são-me
absolutamente dedicados, o médico é um homem de bem, incapaz de trair
um segredo confiado à sua honra... Não há nada a recear... Não me tires
ainda o meu filho. A declaração pode-se demorar... Ficarás aqui comigo oito
dias. bem oculto... Verás o nosso filho readquirir forças, e em seguida levá-
lo-ás contigo, visto que assim é preciso, mas peço-te. se me amas, concede-
me o que te peço.
— Querida Maria, replicou o senhor de Trois-Monts, não te posso
recusar nada; só te digo que é uma grande imprudência!... passar oito dias ao
pé de ti, e conservar aqui a criança, é correr a um perigo certo...
— Não creio nesse perigo... Depois, não me importa arrojá-lo.
— Em suma. seja feita a tua vontade!... O tempo corria.
A Condessa estava prostrada de fadiga.
Arnoldo beijou-a na fronte, e retirou-se para o quarto preparado para ele
na residência.
Decorreram quarenta e oito horas sem haver o menor incidente.
Ao terceiro dia, Arnoldo resolveu ir a Orleans para certas compras
indispensáveis, e voltar só no outro dia à noite.
Ao anoitecer, Pedro pôs um trem e conduziu o senhor de Trois-Monts.
Raquin, sempre de observação, viu os passos, e julgou que o amante da
Condessa voltava para Paris.
Tomou também o caminho de Orleans, correu à estação telegráfica, e
mandou a Malpertuis o seguinte telegrama:
" A. de T. partiu esta noite."

CLVI - BOLSA OU HONRA


Às oito e meia, o ex-procurador recebeu o telegrama do seu agente, e
comunicou-o imediatamente ao Barão.
— É chegado o momento de me pôr em ação... disse Fossaro. Amanhã
partirei.
— E tu conheces bem a residência de Épines-Blanches?
— Não, mas que importa? Bem sabes que sou esmiuçador... Dá-me os
papéis relativos ao negócio Vergis. Tenho precisão de os estudar.
— Vou buscá-los.
—Entretanto vou ver quais são as horas da partida.
Fossaro consultou o indicador do caminho de ferro.
Em vista dele, resolveu que se poria a caminho às duas e trinta e cinco
minutos, e chegando às seis e quatro minutos a Orleans, podia, apesar da
neve, achar-se nas Épines-Blanches pelas sete horas e meia.
No dia seguinte, depois do almoço, César metia um revólver na
algibeira, tomava um trem de praça, fazia-se conduzir ao square de la
Chapelle, chegava a pé à rua de Philippe-de-Girard, à casa de duas saídas, e
ao fim de uma hora tornava a aparecer, tão completamente transformado,
que o próprio Malpertuis não o reconheceria.
Estava vestido de preto, de gravata branca, e tinha uma ampla capa de
peles que lhe dava um aspecto de personagem oficial.
Um chapéu baixo de grandes abas cobria-lhe a cabeça calva, apenas
emoldurada por umas compridas guedelhas grisalhas.
Ocultavam-lhe os olhos, completando metamorfose, uns óculos de ouro,
de vidros levemente azulados.
Um segundo trem levou-o a toda a brida à gare de Orleans.
Partiu de Paris às duas horas e trinta e cinco minutos, e às seis horas o
comboio parava na cidade de Joana d'Arc.
Fossaro perguntou pela estrada das Épines-Blanches, recebeu indicações
exatas, acompanhadas da certeza de que precisava caminhar mais de uma
hora antes de chegar ao seu destino.
Pôs-se a caminho imediatamente.
A noite estava clara. O frio era muito intenso. A neve estalava debaixo
dos pés.
De ambos os lados da estrada os troncos e os ramos das árvores cobertas
de caramelos recortavam-se sobre o tom pardacento do céu.

***

César percorrera metade da distância, quando lhe chegou aos ouvidos um


ruído.
Parou e voltou-se.
Ao longe, na neve deslumbrante, sobressaía um vulto negro, ao mesmo
tempo que se fazia ouvir o trote de um cavalo, e o rodar de um trem.
O Barão tornou a pôr-se a caminho.
O trem, um cabriolet de aparência rústica, depressa a alcançou e lhe
passou adiante.
César deitou um olhar para o trem, mas não pôde distinguir nada.
— Gente do campo que volta de Orleans, disse ele apressando o passo.
No cabriolet iam dois homens.
Eram Arnoldo de Trois-Monts e Pedro, o marido de Magdalena.
Pedro murmurou:
— É preciso ter o diabo no corpo para viajar a pé, de noite, com frio
destes! murmurou Pedro. Aquele sujeito dá ares de um médico...
— Ou de um tabelião... replicou o amante da Condessa. Fossaro. esse,
não dava pelo frio.
Caminhando apressadamente sobre a neve escorregadia, suava
copiosamente sob as peles da capa.
Finalmente, soltou um uf de satisfação.
Achava-se defronte de uma alta grade de ferro forjado encimada por uma
coroa de Conde.
De uma das pilastras pendia uma corrente.
Ao lado da pilastra, no muro, havia uma porta de um só batente.
O Barão puxou a corrente, e ouviu-se uma campainha.
Este ruído inesperado fez estremecer no pavilhão do parque, Maria,
Arnoldo, Magdalena e Pedro.
A senhora de Vergis levantara-se da cama por espaço de uma hora, e
descansava numa chaise-longue.
— Quem poderá ser? perguntou fazendo-se pálida.
— Se fosse o senhor Conde? perguntou Magdalena.
— É impossível... replicou a jovem. Meu marido não tem idéias de
voltar.
— Talvez seja aquele homem que encontramos na estrada, e que parecia
um tabelião ou um médico, disse Pedro.
— O que virá ele aqui fazer?
A sineta interrompeu outra vez o diálogo, mas com mais violência que
da primeira vez.
— É preciso responder a esse chamamento, disse a Condessa. Vá, Pedro,
e lembre-se das recomendações...
Pedro deixou o pavilhão, levantando uma lanterna.
Fossaro impacientava-se.
Ia puxar a campainha pela terceira vez, quando viu ao longe brilhar uma
luz, que se dirigiu para o seu lado.
Dali a um instante,o marido de Magdalena aparecia à grade, e
perguntava:
— Quem está aí?
— Eu, respondeu César.
— Quem é o senhor?
— Um homem que tem pressa.
— O que quer?
— Falar quanto antes à Condessa de Vergis.
— A senhora Condessa está muito incomodada, e não recebe ninguém.
— Fará uma exceção em meu favor...
— Duvido muito...
— Pois eu tenho a certeza.
— Ora essa!
— Vá ter com a sua senhora... diga-lhe que sou um desconhecido para
ela, mas que venho expressamente para a salvar, entenda-me! que é preciso
que eu a veja, e lhe fale imediatamente, vai nisso o seu repouso, a sua honra,
talvez a sua vida!
— A sua vida! repetiu Pedro aterrado.
— Sim, a sua vida! Vá! vá depressa!...
O fiel servidor deitou a correr.
Quando chego à porta do pavilhão, estava pálido e mal respirava.
— Que há de novo? perguntou Arnoldo com vivacidade.
— É o homem da estrada, disse Pedro com uma voz sufocada.
— Que quer ele?
O marido de Magdalena deu o seu recado, repetindo textualmente as
palavras do desconhecido.
— Meu Deus! Meu Deus! murmurou a Condessa meio louca-que
desgraça nos ameaça?
— O que decide? perguntou o senhor de Trois-Monts.
— É preciso receber esse homem; a certeza, qualquer que ela seja, vale
mais que a dúvida.
— Onde o recebe?
— Aqui mesmo... encontrar-me-á só...
— E eu estarei aqui pronto a acudir ao seu primeiro chamado, disse
Arnoldo designando o quarto próximo...
Pedro foi procurar o visitante noturno, fez-lhe atravessar uma parte do
parque, e introduziu-o no pavilhão onde Maria o esperava, esforçando-se por
ocultar a sua perturbação e a angústia.
Depois retirou-se.
Fossaro inclinou-se respeitosamente entrando no quarto.
— É à senhora de Vergis a quem tenho a honra de falar? perguntou.
— Sim, senhor. A sua visita nas Épines-Blanches, de noite, com um
tempo tão rigoroso, e a sua insistência para ser admitido à minha presença,
quando eu não recebo ninguém, fazem-me crer que o senhor tem coisas
muito graves e muito urgentes a comunicar-me.
— Muito urgentes e muito graves, sim, senhora, disse César, tornando-se
a inclinar-se.
— Explique-se, senhor.
— Venho, senhora, livrá-la de um grande perigo, de um perigo terrível.
— Um perigo terrível! repetiu Maria que suspeitava haver algum laço e
queria evitá-lo. Não o compreendo... Neste retiro onde ninguém entra, e
onde me rodeiam dedicados servidores, nenhum perigo me pode alcançar.
— Mesmo se o senhor Conde de Vergis chegasse de repente perguntou o
Barão baixando a voz.
Maria sentiu um suor frio molhar-lhe a fronte, e um calafrio percorrer-
lhe as carnes.
Fez contudo boa cara e replicou:
— Não tenho nada a recear do senhor de Vergis... ainda que ele
aparecesse inesperadamente.
— Talvez... volveu Fossaro, carregando na palavra. Isso depende da
nossa entrevista.
As palavras do visitante eram um enigma, mas a explicação do enigma
devia ser terrível.
César, a quem não escapavam as perturbações da Condessa, continuou:
— Vou explicar-me, senhora, serei muito breve e muito claro, a senhora
casou com o senhor de Vergis por ele ter uma grande posição e uma fortuna
considerável... O Conde adora-a, e a senhora não o ama, o que é muito
natural, dada a diferença das idades. Como não o ama, ama um outro, o que
é muito natural.
— Mas senhor, exclamou Maria vermelha de pudor e de cólera.
— Oh! minha senhora, peço-lhe não me interrompa. Digo a verdade,
bem sabe, e é para a dizer que eu estou aqui... Houve um dia em que o
senhor de Vergis teve suspeitas...
— Suspeitas! repetiu a jovem alucinada.
— Sim, senhora! mas muito nobre para descer à espionagem, e querendo
contudo saber o que devia pensar, dirigiu-se a uma agência que encarrega de
proceder a minuciosas investigações por conta dos maridos ciumentos.
Dirijo essa agência, senhora, o senhor de Vergis comprometeu-se a pagar-me
um milhão no dia em que eu lhe fornecesse a prova de que a senhora tinha
um amante, ou lho entregasse.
Maria estava gelada de susto.
Não obstante, olhou para o seu interlocutor com um esmagador
desprezo, deitando-lhe então estas palavras em rosto:
— E o senhor encarregou-se dessa infame tarefa!
— Sou um homem de negócios, senhora, e um milhão é bom de apanhar.
— Pois esse milhão perdê-lo-á! É fácil mentir, caluniar, mas difícil
provar o que não existe. Sou inatacável, senhor. Desafio-o a que me
prejudique na minha honra! Saia!
E com um gesto enérgico Maria indicava a porta do pavilhão.
Fossaro comprimentou, sorriu, mas não se mexeu.
— A senhora de Vergis julga-se inexpugnável, disse ele com uma voz
insinuante. Parece completamente esquecer-se das suas estações na igreja de
S. Suplício, as suas saídas pela porta lateral que dá para a Rua Feron, as suas
meditações num genuflexório, cujo recosto formava uma espécie de depósito
de cartas, na verdade muito engenhoso, mas guarda infiel dos segredos que
lhe confiavam.
Maria tornou-se lívida e vacilou. Fossaro continuou:
— Bem vê, senhora Condessa, que sei tudo... O senhor de Vergis,
seguindo conselho que eu lhe dava, prevendo o futuro, aceitou uma missão
diplomática. A sua ausência permitiu à senhora ocultar a sua gravidez na
residência das Épines-Blanches, aonde a senhora vem por vezes passar
algumas horas... Deu-se um acidente que a fez ter o seu parto antes de
tempo. A criança que veio ao mundo há quatro dias, é um menino... está ali,
no quarto próximo.
A senhora de Vergis estendeu as mãos para o seu interlocutor.
— Tenha piedade de mim, senhor, balbuciou. O Barão continuou com
frieza:
— O senhor Conde está em Berne... Bastava mandar-lhe Um telegrama
para ganhar um milhão...
— O senhor não mandará esse telegrama...
— Isso depende do partido que tomar...
— Pois bem. senhor, fale, que devo fazer? que quer que eu faça? Bem
deve saber que fico doida...
— Não desgosto de tomar o partido das mulheres contra os maridos,
contudo, já se vê, que os meus interesses não Sofram com isso. O Conde dá
um milhão pela certeza da sua vergonha. A sua salvação, a salvação do seu
filho, valem bem o dobro dessa quantia... Dê-me dois milhões... ser-lhe-ei
completamente dedicado, e torná-la-ei branca de neve aos olhos do senhor
de Vergis. Se este negócio lhe parece oneroso, não falemos mais nele, e
cumprirei aquilo a que me obriguei.
— E se eu o matar? perguntou de repente Arnoldo entrando no quarto.
Maria soltou um grito de terror.
Fossaro estremeceu, surpreendido, mas não aterrado, apesar de ver
diante de si o senhor de Trois-Monts, armado de um revólver que lhe
apontava ao peito.
— Se me mata, senhor, volveu ele com o mais completo sangue frio,
amanhã o meu primeiro empregado, não tendo recebido de mim nenhum
telegrama antes do meio dia, expedirá ao senhor Conde Vergis em Brene,
um telegrama que ficou em Paris metido num envelope, e cujo conteúdo o
senhor adivinhará. Além disso sabe-se que eu estou aqui, é portanto aqui que
me hão de procurar não me vendo aparecer, e o meu cadáver há de ser bem
incomodativo.
— Ah! miserável! exclamou Arnoldo.
— Nada de palavrões, se faz favor, interrompeu o Barão, seria preciso
pegá-los a parte. Não se esfalfe com palavras inúteis, com baldadas cóleras.
Dei-me ao incômodo de me deslocar donde estava para propor uma
combinação... Se não lhe convém, tenho a honra de o cumprimentar.
No terrível impasse em que se achavam os amantes, era impossível a
hesitação.
Vinte minutos depois, o senhor de Fossaro deixava as Épines-Blanches,
voltava para Orleans, dali para Paris, trazendo dois cheques de um milhão
cada um, pagáveis à vista e assinados, um pelo senhor de Trois-Monts, o
outro pela senhora de Vergis, senhora absoluta do seu dote por disposição do
seu contrato de casamento.
No dia seguinte, antes do meio dia, os dois cheques estavam pagos.

CLVII - O BOM E O MAU


Após um tão rude sobressalto, Arnoldo concluiu que não podia, sem
imprudência louca, passar nas Épines-Blanches o dia seguinte, e que
portanto partiria naquela mesma noite com a ama e a criança, para tomar em
Orleans o primeiro comboio que se dirigia para Paris.
Compreendendo a absoluta necessidade daquela retirada, a senhora de
Vergis não fez objeções.
Resignou-se, com o coração despedaçado.
Pedro recebeu ordem de aprontar para as quatro da manhã um trem
fechado.
À meia noite veio prevenir Arnoldo do que se passava.
— É impossível pôr o seu projeto em execução, senhor. O vento sopra
violentamente, torcendo e arrancando as árvores; a neve cai sem tréguas; as
lufadas levantam-na e amontoam-na nas depressões do terreno... Em menos
de uma hora haverá pela estrada obstáculos invencíveis. Devo pôr o trem,
apesar de tudo?
— Não! não! exclamou a Condessa. Não partirá. Seria pôr a vida de meu
filho em perigo. Prefiro arruinar a minha.
Arnoldo saiu do pavilhão e convenceu-se pelos seus próprios olhos de
que os caminhos se achavam impraticáveis.
A tempestade durou toda a noite, e continuou no dia seguinte.
A neve, cujos flocos não diminuíam, formava em certos lugares
abrigados do vento, uma espessa camada de mais de um metro.
O termômetro marcava dezesseis graus.
Nas Épines-Blanches estava-se bloqueado.
À noite o carteiro rural chegou, com atraso de nove ou dez horas.
Não trazia nenhuma carta do senhor de Vergis, que escrevia em dias
certos com perfeita regularidade.
Este silêncio inexplicável inquietou de tal modo a Condessa, que durante
toda a noite não pôde dormir.
No dia seguinte pela manhã, mandou a Pedro que se dirigisse a Orleans a
cavalo, apesar das dificuldades do trajeto, e levasse ao telégrafo um
telegrama concebido nos seguintes termos:
"Conde de Vergis. Hotel de França. Berne. Suíça.
"Não recebi carta ontem. Por quê? Responda imediatamente.
"Maria."
— Esperará pela resposta, meu bom Pedro... acrescentou a mulher.
— Sim, senhora.
O marido de Magdalena pôs-se a caminho vinte minutos depois.
Voltou de tarde e trouxe à senhora de Vergis o telegrama seguinte:
"A carta foi deitada no correio muito tarde. — Recebê-la-á amanhã. —
Ternura.
"Conde de Vergis."....
Maria respirou desafogadamente.
Parecia não haver que recear nenhum perigo imediato, e por isso a
permanência de Arnoldo e de seu filho nas Épines-Blanches podia
prolongar-se um pouco.
Apesar da temperatura siberiana do nefasto inverno de 1879 a 1880,
Estanislau Picolet não afrouxava nas suas investigações.
Entregue a um rasto que o seu instinto de polícia lhe dizia ser bom, não
tinha um momento de descanso.
Depois de explorar Vincennes e Saint-Mandé, visitara minuciosamente
Montreuil-sur-Bois, Nogent, Joinville, interrogando, multiplicando as suas
investigações, nada conseguindo saber, mas apesar disso sem desanimar.
Resolveu continuar por Saint, Maur-les-Fossés e Port-Creteil, meteu-se
no caminho de ferro, apeou-se pelas nove horas da manhã na gare de Saint-
Maur-les-Fossés, esperou que o encarregado da recepção dos bilhetes
houvesse terminado a sua tarefa, e ao mesmo tempo que lhe entregava o seu
bilhete, disse-lhe:
— O senhor poderia dar-me uma informação?
— Darei, se puder, respondeu o empregado,
— Tem boa memória?
— Sofrível... conservo por muito tempo idéia daquilo que me
impressiona.
— Ora bem, lembra-se de ter visto apear-se aqui, na noite de 24 de
outubro, pelas onze horas, uma jovem loura, que não era do sítio. e cuja
fotografia é esta que aqui está?
O empregado olhou para o retrato, piscou o olho e respondeu: —
Efetivamente, parece-me que me lembro dessa bonita cara... até que ela me
perguntou qual era o caminho da ponte de Creteil.
— Outra coisa, tornou Picolet radiante, principiando a distinguir um
rasto, viu um homem de estatura mediana, de uns quarenta anos de idade, e
cego do olho esquerdo?
— Lá isso é verdade, senhor... vi um homem cego de um olho... lembro-
me de que nessa noite se desencadeou uma terrível tempestade...
— Em 24 de outubro? perguntou Sta-Pi.
— Talvez, e de noite, esse homem passou por aqui em companhia de
uma mulher...
— De uma mulher? repetiu Picolet ofegante.
— Sim, senhor, de uma mulher moça, bonita, cabelos arruivados. vestida
de camponesa, com um capuz pela cabeça, mas que não tinha ares de mulher
de campo.
— E depois não voltaram?
— Não, senhor.
— Mil vezes obrigado pelas suas informações; o senhor acaba de me
prestar um grande serviço.

***

Picolet afastou-se muito satisfeito.


— Com certeza que Lucília viera a Saint-Maur, pois que o cego de um
olho ali fora visto, e o empregado julgava reconhecer o retrato da
Toutinegra, mas quem poderia ser a companheira de Pedro Rédon?
— Sabê-lo-ei... disse Estanislau Picolet dirigindo-se para Port-Creteil,
onde chegou um pouco antes do meio dia.
A fome apertava com ele.
Entrou no restaurante da ponte, restaurante que os leitores conhecem
muito bem, e que era dependência da pequena hospedaria onde Lazarine
passara uma parte da lua de mel na companhia de Fernando Volnay.
Ali encomendou um modesto jantar, e ao mesmo tempo que almoçava ao
pé do fogão da sala inferior, entabulou conversa com os donos da casa.
— Por acaso, conhecem nos arredores, perguntou um homem de uns
quarenta anos, de estatura mediana e cego do olho esquerdo?
— Não, senhor, respondeu o dono do restaurante, por estes sítios não há
só um zarolho, afianço-lhe.
— Lembra-se do dia 24 de outubro último?
— Bem me lembro! Foi nesse dia que principiaram as grandes
inundações.
— Recorde-se... Não viu o homem de que eu talo no dia 24?
— Senhor, tenho a certeza do contrário... No dia 24 de outubro estava eu
aqui com meia dúzia de fregueses e uma mulher de capuz que nós não
conhecíamos, e que bebericava enquanto parecia esperar alguém. Já tinham
dado onze horas havia bastante tempo. Estava uma tempestade dos
demônios! Fazia relâmpagos e trovões! A casa tremia! Só entrou aqui uma
jovem...
— Uma jovem? exclamou Sta-Pi.
— Sim, senhor... e até vinha muito esquisita, espantada, como doida.
— Que queria ela?
— Informações a respeito do chalet da ilha Basse.
— E deu-lhas?
— A mulher do capuz ofereceu-se para a guiar, e partiram juntas. — E
que aspecto tinha?
— Era loura, bonita, e teria uns dezesseis ou dezessete anos, o muito,
pelo que pude avaliar.
Picolet tinha febre. Mostrou a fotografia.
— Reconhece este retrato? perguntou.
— Sim, senhor, sim. Ah! é ela, é a jovem!
— E o senhor diz que ela se dirigiu ao chalet da ilha Basse?
— De certo, porque ela se informava do caminho que havia a seguir...
— E por onde é o caminho? tornou o policia particular atirando um luís
para cima da mesa onde estava a sua refeição por acabar. Pague-o... parto...
corro ao chalet... interrogarei aí, e não terão remédio senão responder-me?
— Mas, senhor, replicou o dono do restaurante, o chalet da ilha já não
existe...
Já não existe! repetiu Estanislau aterrado.
— Não, senhor... Afundou-se, derrubado pela cheia. Sta-Pi tornou-se
pálido.
— E o desabamento do chalet fez vítimas? perguntou ele com voz
transtornada.
— Não se sabe nada, senhor, mas supõe-se que a louca da ilha Basse
podia muito bem estar no chalet à hora do sinistro.
— Quem é a louca da ilha Basse?
— Uma jovem desconhecida, que no dia seguinte recolheram não longe
da ilha, em meio do Marne, agachada sobre, o tronco de um salgueiro
desarraigado...a pobre criança enlouquecera.
— Era loura? era bonita? Viu-a?
— Não, senhor... portanto, não sei nada, mas o comissário de Creteil dar-
lhe-á informações, por pouco que o caso lhe interesse... tirou auto de corpo
de delito.
— Meu Deus! meu Deus! murmurou Sta-Pi. Se fosse ela! Não sei que
instinto me adverte que é ela... Ah! sim, vou a casa do comissário... vou já...
Repito-lhe, pague-se!
O ex-empregado de Malpertuis meteu o troco no bolso sem contar,
dirigiu-se para a ponte, e atravessou sobre a neve em direção à vila de
Creteil, onde procurou pelo comissariado.
— Senhor, perguntou ao comissário, entrando de vez no assunto,
disseram-me que entre as vítimas da inundação de 24 de outubro último, se
acha uma louca?
— Efetivamente, senhor, uma jovem salva por salvadores corajosos
junto de um chalet desmoronado pertencente a uma parisiense, uma tal
Fanny Vernaut, e intitulado chalet da ilha Basse.
Picolet deu um pulo.
Enviava-lhe o acaso uma preciosa informação de que esperara tirar
bastante partido.
— Fanny Vernaut! repeliu.
— Conhece essa senhora?
— Somente de nome...
— Voltemos à louca... Viu-a?
— De certo.
— Reconhecê-la-ia?
— Perfeitamente.
— Olhe.
Pela terceira vez Sta-Pi mostrou o retrato. O comissário exclamou:
— É ela! é ela exatamente!
Não pôde haver dúvida. Picolet ria e chorava ao mesmo tempo e
balbuciou:
— Eu também lhe devo parecer doido. Mas afianço-lhe que estou com
todo o meu juízo; é a alegria que me embriaga.
— Essa jovem é sua parenta?
— Não, senhor. Mas conheço muito bem a sua família. Onde é que
encerraram a pobre criança?
— Ignoro. Por certo lhe podem dizer na casa de saúde do doutor Auger,
que provisoriamente teve a bondade de lhe dispensar o tratamento de que ela
precisava.
— Onde mora esse excelente homem! esse digno médico?
— Siga a estrada de Creteil, e a três quilômetros daqui no campo, à
esquerda descobrirá o estabelecimento.
— Obrigado, senhor,obrigado de todo o meu coração! Vou a casa do
doutor Auger.
E Picolet pôs-se novamente a caminho.

***

César de Fossaro fechado no seu gabinete de trabalho, tinha diante de si


um indicador aberto,e estudava as horas de partida do caminho de ferro de
Orleans.
Escreveu num pedaço de papel as indicações seguintes:
Partida de Paris Chegada a Orleans
5 h. 15 9 h. 15.
7 h. 45 10 h. 12.

Em seguida disse:
— Isto vai perfeitamente... É preciso que Jacques Sureau parta pelo
comboio de passageiros das cinco e um quarto, e Castel-Vivant pelo
comboio das sete e quarenta e cinco.
"Jacques conhece as Épines-Blanches, porque em serviço do Conde fez
ali muitas viagens. Encontrará imediatamente a porta.
"Quanto ao principezinho, conhece também a residência. Caminhará
tudo perfeitamente.
César pegou então em duas folhas de papel para cartas, sem cifra nem
coroa, e escreveu as linhas seguintes em uma das folhas, tendo o cuidado de
disfarçar a letra:

"A Condessa Maria de Vergis está nas Épines-Blanches. "Reside só no


pavilhão do parque, e recebe aí o amante. "Hoje à meia noite, o homem a
quem adora irá ter com ela. "Entrará no parque pela portinha do muro, à
esquerda, exatamente defronte dos canis.
"Basta um empurrão para abrir a porta.
"Para hoje pelo comboio das cinco e um quarto.
"Um amigo.

— Este pagaria bem caro o conselho que lhe dou, proferiu Fossaro ao
acabar, infelizmente não é milionário.
Meteu a carta no envelope, e sobrescritou:
Senhor Jacques Sureau
Picador
Em casa do senhor Tony Montei
Avenida dos Campos Elyseos
Feito isto, César pegou numa folha de papel, e com a mesma letra
redigiu este bilhete lacônico:
"Aquela a quem ama, que o ama, desapareceu. Alguém quer fazer cessar
os seus sofrimentos e os dela."
"O covarde raptor recebeu do Conde de Vergis autoridade para dispor do
pavilhão situado no parque das Épines-Blanches. É ali que ele encerra
Lucília, e quer constrangê-la à sua brutal paixão.
"Irritado com a sua resistência, resolveu empregar a força na falta da
persuasão.
"Hoje, à meia noite, introduzir-se-á no pátio pela portinha do muro à
esquerda, exatamente defronte dos canis.
"Esta porta nunca está fechada.
"Parta para Orleans no comboio das sete e quarenta e cinco, e salvará
Lucilia.
"Um amigo."

No segundo envelope escreveu a direção do príncipe Heitor de Castel-


Vivant, fez tocar a campainha elétrica, esperou o sinal do costume, passou
aos aposentos de Malpertuis, e perguntou-lhe:
— Raquin escreveu?
— Sim, as tuas ordens serão executadas. Esta noite há de lá estar, e
assim que tiver assistido à execução voltará pelo primeiro comboio.
— Lembraste-te de Fernando Volnay?
— A notícia está pronta, e aparecerá nos jornais quando for ocasião.
Tenho todos os papéis da Marquesa, a doença faz rápidos progressos. Está
perdida, é preciso apressar-mo-nos.
— Tudo corre perfeitamente, disse César esfregando as mãos.

CLVIII - DUPLA CILADA

Fossaro almoçou rapidamente.


Depois vestiu-se e dirigiu-se para os Campos-Elyseos. Avistando um
moço de recados à esquina da rua de l'Oratoire du Rule, disse-lhe:
— Esta carta ao seu destino... É a dois passos daqui... não tem resposta,
mas é preciso entregá-la ao próprio destinatário, e se ele tiver saído, esperá-
lo. Pago-lhe para isso.
— Bem, senhor.
Cinco minutos depois, Jacques Surea entrava na posse da misteriosa
carta.
O Ruy Blas da avenida de Villars, como lhe chamava César, estava
muito mudado.
A paixão insaciada, devorava-o. As suas faces cavadas davam-lhe um
estranho aspecto.
Nos olhos encovados tinha um brilho sombrio que lembrava a expressão
da loucura.
Abriu a carta e leu a primeira linha:
"A Condessa Maria de Vergis está nas Épines-Blanches."
Fez-se primeiramente pálido, depois muito vermelho, e levou a mão ao
coração, cujas palpitações o sufocavam.
— Está nas Épines-Blanches, balbuciou ele com voz rouca, vou
finalmente tornar a vê-la.
— Depois continuou:
"Habita só no pavilhão do parque, e recebe aí o amante." Uma espécie de
tremor convulso agitou-lhe o corpo. O rosto magro decompôs-se-lhe; o olhar
tornou-se-lhe terrível.
— Um amante! repetiu ele. Tem um amante! Ah! eu bem o sabia!
Depois de ler até ao fim, fez um gesto de resolução feroz, meteu a carta
na algibeira, e foi dizer ao escritório do estabelecimento que não deviam
contar mais com ele, porque um negócio de família o obrigava a deixar Paris
naquele mesmo dia.

***

Subiu ao seu quarto, vestiu-se, perguntando no seu íntimo, mas sem


obter resposta, quem podia ser o amigo desconhecido que o informava,
meteu na carteira algumas notas de banco que constituíam as suas
economias, saiu, e como já eram duas horas da tarde, e ele estava quase em
jejum, entrou numa casa de comida e fez-se servir.
Quanto mais o momento se aproximava, mais sombrio se tornava
Jacques Sureau.
A idéia de que ia matar um rival, e em seguida se veria na presença da
Condessa, lhe falaria de seu amor, e por vontade ou por força ela lhe
pertenceria, fazia vertigens ao miserável.
Pelos olhos passavam-lhe clarões avermelhados.
Bebeu excessivamente para combater os pensamentos sinistros que o
preocupavam, mas o vinho e o álcool deviam produzir e produziram o
contrário do efeito esperado.
Embrutecido por uma embriaguez feroz, tinha concentrado no cérebro,
Jacques pagou a importância da refeição, e dirigiu-se para a gare de Orleans.
No caminho entrou num armeiro, comprou por vinte e cinco francos uma
espingarda de dois tiros em muito bom estado, e fez carregar os dois canos
com cartuchos de balas cônicas.
— É para atirar a um lobo, disse ao armeiro.
Quando chegou à gare de Orleans, faltava mais de uma hora para a
partida do comboio.
Sentou-se a uma mesa do botequim, e pôs-se novamente a beber.
A sua embriaguez aumentava, mas nenhum sinal exterior lhe denunciou
os progressos.
O espírito fraquejava, mas o corpo mantinha-se direito.
Jacques comprou uma garrafa de aguardente, que esperava despejar pelo
caminho, comprou um bilhete e entrou na sala de espera da segunda classe.
Dali a quinze minutos o vapor levava-o para Orleans.

***

Neste momento um personagem embuçado num amplo pardessus cuja


gola de peles ia levantada até aos olhos, saiu da gare, dizendo:
— Eis o primeiro a caminho! Agora ao outro... Isto fica arranjado com
mão de mestre, e desempenho com perfeição o papel de fatalidade!
Este personagem era Fossaro.
Às quatro horas, antes de se dirigir â gare. encarregara um moço de
recados da avenida de Antin, de levar ao palácio da rua Francisco I a carta
que conhecemos.
Heitor, na véspera à noite, não vira Picolet, o qual, como nada tivesse a
dizer-lhe de satisfatório, e prostrado de fadiga pelos seus passos quotidianos,
deitara-se logo que chegara a Paris.
Este silêncio parecia de mau agouro ao Príncipe. Triste e desanimado,
sem esperança alguma de melhor futuro já não tinha coragem de sair de casa.
O criado de quarto entrou com uma bandeja na mão, e disse:
— Uma carta para o senhor Príncipe, trazida por um moço de recados.
Heitor rasgou com mão indiferente o envelope, e olhou distraidamente
para as primeiras linhas, mas de repente a expressão da sua fisionomia
mudou.
Apoderou-se dele um tremor nervoso,ao mesmo tempo que uma ardente
vermelhidão lhe invadia as faces pálidas.
Dominado por uma comoção indescritível, balbuciou:
— Lucilia! é de Lucilia que esta carta trata.
O principezinho leu, ou antes devorou a carta até ao fim, e de segundo
para segundo se modificava a expressão da sua fisionomia
Quando acabou, levantou-se, atravessou muitas casas correndo como um
doido, abriu ma porta, e grito com voz entrecortada:
— Senhora Gonthier, senhora Gonthier! Lucilia!
— Acharam-na? Está aí? perguntou a cega estendendo as mãos para
Heitor.
— Ainda não, respondeu ele. Mas não tardará. Tenho notícias suas!
Roubada por um patife, está nas Épines-Blanches, onde espera que eu a vá
libertar. Parto. À meia noite entrarei no palácio onde farei justiça ao raptor!
Amanhã abraçará a sua querida Toutinegra.
— É Lucilia que o chama? perguntou a senhora Gonthier inquieta.
— É um amigo que me previne...
— Amigo em quem tem a confiança?
— Não diz o nome.

***

A velha estremeceu.
— Ah! tome cuidado... balbuciou. Tome cuidado! Se fosse um laço!
— Um laço! Qual! que laço? Picolet tinha razão, tudo se explica! e é
muito simples... Um certo patife amava Lucilia... Não podendo fazer-se
amar, raptou-a! Esse patife será punido esta noite, e esta noite estará Lucilia
livre. Espere amanhã por nós, senhora Gonthier... Eu parto... Resta-me.
apenas o tempo necessário para tomar o comboio. Até amanhã, e peça a Des
por mim.
Heitor voltou para o seu gabinete, ao mesmo tempo que a cega caía de
joelhos e orava. Atirou com a carta para cima da sua secretária, chamou, deu
ordem de pôr o trem, sem perda de um minuto, embuçou-se num grande
paletó forrado de peles, meteu na algibeira o dinheiro e dois revólveres, e
disse ao criado de quarto:
— Preparem o palácio para a festa, porque trarei amanhã a menina
Gonthier, a minha noiva!
Subiu para o trem e exclamou:
— Gare de Orleans!
César de Fossaro perdido entre a multidão, viu-o comprar o bilhete e
transpôs o limiar da sala de espera da primeira classe.
— Agora só me resta cruzar os braços, pensou, dirigindo-se para uma
estação de trens. A neve há de ficar vermelha esta noite no parque das
Épines-Blanches!
Retrocedamos algumas horas e voltemos a Picolet no momento em que,
completamente sem fôlego, acabava de bater à porta da casa de saúde
próxima de Creteil.
A porta abriu-se.
O ex-empregado de Malpertuis dirigiu-se para o cubículo do porteiro.
— O senhor doutor Auger? perguntou-lhe.
— O doutor não recebe ninguém neste momento... vai jantar. Volte
dentro de uma hora.
Estanislau volveu com a voz mais persuasiva:
— Peço-lhe, senhor, não deixe de prevenir o senhor doutor de que
alguém lhe pede a graça de lhe falar imediatamente... depende de uma
família inteira, e posso jurar-lhe que de um grande personagem, um Príncipe.
Sim, senhor, um verdadeiro Príncipe lhe demonstrará o seu
reconhecimento...'
O contador olhou para Picolet, perguntando se aquele desconhecido
estaria no uso de todas as suas faculdades.
O polícia nem por sombras dava ares de doido, e o porteiro
experimentando a influência da sua linguagem insinuante. resolveu-se a
responder:
— Vou prevenir o senhor doutor.
E dizendo isto dirigiu-se para o interior da casa. Um momento depois
tornava a aparecer.
— Venha daí, disse ele a Sta-Pi, o senhor Auger vai recebê-lo. Minutos
depois, Picolet apresentado ao diretor da casa de saúde, pedia desculpa da
sua insistência, e acrescentava:
— Com certeza não tomaria a liberdade de o incomodar, senhor, se não
se tratasse de uma coisa grave que traz suspensas a vida e a felicidade de
muitas pessoas.
— Explique-se, senhor, peço-lhe...
— Venho de casa do comissário de polícia de Creteil, e é ele que aqui
me manda...
— Por quê?
— Por causa de uma jovem caridosamente recolhida pelo senhor em
seguida às inundações do dia 24 de outubro... a louca da ilha Passe...
O doutor acudiu logo com vivacidade:
— O senhor faz parte da sua família!
— Não faço parte, mas conheço-a... É por causa da sua família e do seu
noivo que procuro a pobre menina. O comissário não pode dizer-me para
onde ela tinha sido levada depois de sair daqui, e venho pedir-lhe que me
diga.
— Se a pessoa que o senhor procura é realmente a jovem recolhida na
manhã de 25 de outubro, na ponta da ilha Passe, ainda aqui está.
— Aqui! exclamou Picolet no cúmulo da alegria.
— Sim, senhor, está a jantar, neste momento, junto da senhora Auger,
minha mulher.
Sta-Pi fez um gesto de espanto.
— À sua mesa... balbuciou. Mas, nesse caso, já não está doida?
— Infelizmente ainda está. apesar de se manifestar notável melhoria no
seu estado mental... A senhora Auger tomou-lhe amizade... A sua loucura
meiga e melancólica não é daquelas que repelem... Estou convencido de que
a vista das pessoas a quem ela ama bastaria para a curar.
— Se assim é, senhor, dentro de algumas horas a menina Lucilia terá
recuperado a razão... o tempo necessário para ir buscar uma carruagem, para
a levar a casa do Príncipe de Castel-Vivant, seu noivo, que a julga perdida
para sempre, e que se fina de desgosto com a idéia de não a tornar a ver.
— Essa jovem é efetivamente aquela que o senhor procura?
— Parece-me fora de dúvida. Demais é fácil averiguarmos a verdade.
— Venha, senhor.

***

Picolet seguiu o doutor.


Lucilia estava sentada à mesa, ao lado da senhora Auger que tratava
dela... como se fosse sua própria filha.
Lucilia silenciosa e meiga obedecia à mulher do doutor como uma
criança, mas sem ter consciência disso, e de um modo inteiramente
maquinal.
Quando entrou na sala de jantar e deparou com Lucilia, Picolet soltou
um grito de alegria.
— É ela, senhor, exclamou com uma profunda comoção, é ela
efetivamente.
A senhora Auger interrogava com um olhar.
Bastaram duas palavras do marido para a porem ao fato da situação.
Ao grito de Sta-Pi, Lucilia levantara a cabeça e fitava no recém-chegado
uns olhos sem expressão.
Picolet aproximou-se dela,pegou numa das mãos que ela lhe abandonou
passivamente, e disse então ao doutor:
— Perguntou-lhe alguma coisa?
— Sim, fiz-lhe algumas perguntas, mas essencialmente banais. Nada
conhecendo da sua vida, ignorando as causas da catástrofe, procedia
vagamente, ao acaso.
— Ela não profere nenhum nome?
— Nenhum.
— Nem o de Heitor?
Um repentino estremecimento agitou os membros de Lucilia; os seus
olhos amortecidos animaram-se repentinamente; agarrou no braço de
Estanislau, fitou-o, e repetiu com uma voz agitada:
— Heitor... Heitor...
O doutor exclamou:
— O efeito produzido é maravilhoso! O seu olhar recuperou a animação!
parece que ela se lembra. Que nome proferiu o senhor?
— É o do mancebo que ela ama, e deve esposá-la. O nome do Príncipe
de Castel-Vivant.
Ao ouvir este nome Lucilia repetiu, mas desta vez com desvario:
— O Príncipe de Castel-Vivant, o Príncipe atraído a um laço. ferido,
moribundo, morto, talvez. Ah! quero salvá-lo... quero...
Lucilia calou-se.
Levantara-se e estendera os braços para a frente.
Com certeza que no seu pensamento, que no seu espírito, se operava um
imenso trabalho.
Isto durou apenas um instante.
A Toutinegra tornou a deixar pender os braços ao longo do corpo,
inclinou a cabeça para o peito, e tornou a sentar-se.
— Mais nada... murmurou o doutor, a centelha apagou-se. e a chama não
brilhou.
E dirigindo-se a Picolet acrescentou:
— Onde mora o senhor de Castel-Vivant?
— Em Paris... Mora no seu palácio da rua Francisco I.
— Tem razão, senhor; Lucilia não deve conservar-se aqui nem mais um
momento, visto que a salvação a espera noutra parte. Vou eu pessoalmente
conduzi-la ao Príncipe.
A senhora Auger perguntou muito comovida:
— Que esperar?
— A cura... respondeu o doutor.
— Ah! que Deus o ouça! exclamou Picolet.
— Agasalha bem a pobre pequena... tornou o médico. Envolve-a na tua
capa de peles... Vou pôr o trem, e partiremos para Paris.

CLIX - CONTINUAÇÃO

Ficando só enquanto Auger e a esposa tratavam de vestir Lucilia. Picolet


pensava:
— Está feita minha fortuna e a do bom doutor ao mesmo tempo. A
pequena com certeza que fica boa! Contanto que o Príncipe, vendo-a não
perca também a cabeça!
No fim de dez minutos o irem estava posto.
Era uma boa caleche antiga, bem fechada, bem estofada, destituída de
toda a elegância, mas muito confortável.
A senhora Auger instalou Lucilia no assento do fundo, beijou-a com
ternura repetidas vezes, e com os olhos úmidos, porque no momento da
separação o coração oprimia-se-lhe.
Os dois homens sentaram-se em frente da jovem, e o trem tomou o
caminho de Paris.
Apesar do estado deplorável das estradas, os cavalos caminharam
rapidamente.
Chegaram à ponte de Charenton às sete e meia da noite.
Às oito e um quarto, o trem parou na rua Francisco I. defronte do palácio
do Príncipe Totor.
Picolet saltando da almofada. tocou a campainha com toda a força.
O guarda-portão estupefato com semelhante barulho, acudiu ao mesmo
tempo que as cabeças curiosas de dois ou três criados apareciam detrás dos
vestíbulos.
— Mas que há então de novo? perguntou o guarda-portão reconhecendo
o agente do Príncipe.
— Depressa, depressa, abram o portão para deixarem entrar no pátio
uma carruagem que traz alguém.
— Alguém? quem?
A menina Gonthier... Nem mais, nem menos! Ao ouvir este nome, o
guarda-portão apressou-se a obedecer. Picolet galgava a escadaria, e entrava
como um furacão no vestíbulo.
— Previna o Príncipe de que eu estou aqui. e não perca um minuto! disse
ele ao criado de quarto. Trago uma notícia, uma grande notícia.
— O Príncipe não está aqui. senhor Picolet.
— Saiu? Está a chegar?
— Não. senhor Picolet. Partiu para Orleans... ia salvar a menina Lucilia e
trazê-la, parecia doido.
O ex-empregado de Malpertuis encolheu então os ombros.
— O que está para aí a dizer? O Príncipe só estando doido, não quase,
mas completamente, é que pode ter ido a Orleans salvar a menina Lucilia,
que encontrei em Creteil e que eu trago nesta carruagem em companhia do
bom doutor que a tratou, e há de pô-la boa.

***

A caleche parava diante da escadaria. O senhor Auger apeava-se e


parava diante dos degraus. Ao ouvir falar Picolet. o criado de quarto muito
dedicado a Heitor, sentira-se possuído de imenso terror.
— A menina Lucilia está aqui? exclamou.
— Com certeza.
— Mas então o que significa a carta que motivou a partida do senhor
Príncipe, e que na sua perturbação deixou em cima da secretária.
— Que carta?
— Vou buscá-la.
Três segundos depois, lia a carta anônima escrita por Fossaro, quando
acabou soltou então uma espécie de rugido.
— Que se passa? perguntou o doutor.
— Uma coisa terrível, respondeu o falso polícia, serviram-se do nome da
menina Lucilia para atrair o Príncipe a uma cilada, como se tinham servido
do nome do Príncipe para conduzirem a menina Lucilia à sua perda. Porque
o fim que se pretende é a morte de ambos.
Todos os rostos exprimiam a consternação.
— Que fazer? perguntou o médico.
— Procurar arrancar o Príncipe ao perigo que o ameaça... respondeu
Picolet. A que horas partiu o senhor de Castel-Vivant daqui?
— Bastante cedo para tomar o comboio das sete horas e quarenta e
cinco.
— A fim de estar nas Épines-Blanches à meia noite... exclamou
Estanislau... e eu não posso tomar senão o comboio das dez e cinco, que me
porá em Orleans à uma e meia da manhã. Vou partir e o senhor acompanhar-
me-á, se faz favor, senhor Auger.
— Eu! exclamou o doutor.
— Com a menina Lucilia, já se vê.
— Mas o que está a dizer não tem senso comum! replicou o médico.
— Não, senhor Auger, muito pelo contrário... Jurei entregar a menina
Gonthier às mãos do seu noivo. Se ele estivesse no fim do mundo, conduzi-
la-ia ao fim do mundo... Mas como está nas Épines-Blanches, conduzo-a até
lá. Suponhamos o Príncipe (o que Deus não permita), ferido, moribundo...
Pelo menos teria a alegria de tornar a ver por última vez aquela a quem ama!
O doutor refletiu durante um segundo e disse:
— Segui-lo-ei.
— Então apressemo-nos! Não temos muito tempo de avanço. Subamos
para o trem. e depressa para a gare de Orleans!
— Precisa de dinheiro, senhor Picolet? perguntou o criado de quarto.
— Obrigado, tenho dinheiro comigo. A
carruagem partiu.
Às dez menos vinte minutos.chegava à gare de Orleans.
Sta-Pi alugou um compartimento em que ele e o doutor se instalaram
com Lucilia, que depois da sua retirada da casa de saúde não proferira uma
palavra.

***

Jacques Sureau apeara-se em Orleans às nove horas r quinze minutos da


manhã.
Em viagem despejara até à última gota a garrafa de aguardente comprada
no bufete de Paris.
Aquela fera resolvida a cometer um crime, queria atordoar-se para ter
coragem.
Meteu-se pela estrada que ele conhecia muito bem em direção às Épines-
Blanches.
O frio que ia em aumento havia seis dias, tornara a neve tão dura como o
solo.
Como os pés já não se enterravam, a marcha era menos difícil.
O ex-artista dos cavalinhos ia quase a correr.
Impeliam-no o ardor da vingança e a sede do amor.
Tinha a cabeça em fogo, batiam-lhe as fontes, arfava-lhe o peito.
corriam-lhe pelo rosto grossas bagas de suor.
Tendo a certeza de àquela hora não encontrar ninguém, não tomava
nenhuma precaução,e caminhava pelo meio da estrada.
Quanto mais se aproximava da residência, quanto mais caminhava sobre
aqueles terrenos revestidos pelo alvo lençol da neve, por onde tantas vezes
acompanhara a Condessa. com mais força se desencadeava a tempestade que
lhe rugia no cérebro.
Defronte da grade da entrada principal parou.
Estendendo a mão, não para a residência, cujas linhas arquiteturais se
recortavam sobre o fundo do céu, mas para o pavilhão, cuja forma sombria
sobressaia vigorosamente a meia colina, disse quase em voz alta:
— É ali que finalmente vou ser feliz! Ter esta mulher, e morrer depois!...
Terei pelo menos vivido. Ela espera-o a ele... fia ele que ela abrirá a porta
daqui a pouco... Sou eu quem entrará.
Tornou a pôr-se a caminho.
Dirigiu-se para a portinha, fê-la ceder com um pequeno empurrão, entrou
no parque, consultou o relógio à viva claridade do luar, e certificou-se de
que, segundo as indicações da carta anônima, tinha quase meia hora a
esperar.
Procurou então um lugar favorável para se colocar de observação.
Encontrou-o a uns trinta passos de distância, junto do muro, ao pé de um
maciço de arbustos de folhagem perene.
Agachou-se detrás da folhagem, de um modo a ficar quase invisível,
armou os dois tiros da espingarda, e com os olhos dirigidos para a portinha
onde devia aparecer (pelo menos assim o julgava), o amante da senhora de
Vergis, esperou.
O relógio do palácio deu meia noite menos um quarto.
Jacques redobrou de atenção.
— Ele agora pôde chegar de um momento para o outro, pensou.
Decorreram dez minutos.
O primo de Fernando Volnay ouviu ao longe na estrada um passo
apressado.
— É ele! disse consigo.
E meteu a arma à cara.
As mãos tremiam-lhe um pouco.
Um esforço de vontade tornou-lhas firmes.
O ruído dos passos ia-se aproximando.
Agora já não era sobre a estrada que se ouviam os passos; costeavam o
muro; a final chegaram à portinha que se abriu.
Apareceu uma forma humana.
Jacques Sureau fez pontaria e deu ao gatilho.
Ouviu-se uma detonação; um relâmpago brilhou em meio d? noite; o
vulto humano caiu de chofre sobre a neve soltando um gemido abafado, e
não se tornou a mover.
O assassino respondeu ao gemido com um grito de triunfo, endireitou-se,
atirou para longe de si a sua espingarda, agora inútil, e seguiu para o
pavilhão.
Sucedeu então uma coisa singular.
Um homem muito agasalhado com vestes muito fortes, e botas até ao
meio da perna, deixou o abrigo protetor de um montículo de neve que o
ocultava aos olhares, e dirigiu-se a passo firme para a vítima de Jacques
Sureau.
Inclinou-se para o corpo inanimado, pôs-lhe a mão no peito, no sítio do
coração, depois procurou o ferimento, donde saia o sangue que a
avermelhava a neve.
O ferimento era na fonte esquerda.
A bala cônica atravessara-lhe o crânio, causando uma morte
fulminadora.
O desconhecido ergueu-se.
— Mesmo na cabeça! Boa pontaria! disse. Tudo está acabado! Para
Orleans agora, e amanhã para Paris!
— Ah ainda bem, porque principiava a apodrecer aqui! E dirigiu-se para
a portinha.
Os leitores hão de ter adivinhado, senão reconhecido, o pseudo-tenente
Raquin, que segundo uma expressão de Malpertuis, acabava de assistir à
execução.

***

No pavilhão da Condessa ainda ninguém estava deitado.


O senhor de Trois-Monts velava Maria.
A ama acalentava sobre os joelhos a criança adormecida.
Entretanto a senhora de Vergis fizera sinal a Arnoldo que era tempo de a
deixar só.
Pedro com uma lanterna na mão, esperava o mancebo para o conduzir ao
aposento que ele ocupava nas Épines-Blanches.
A detonação da arma de Jacques Sureau seguida de um grito
extraordinário. Fez correr um calafrio de terror nas veias de todos.
— Parece que acabaram de assassinar alguém no parque... murmurou o
senhor de Trois-Monts.
— Que sucede? perguntou Maria.
— Foi do lado da portinha que veio o ruído, disse a ama.
— Vamos saber o que isto significa. Pedro, acompanhe-me.
—Segui-lo-ei, disse Magdalena.
— Arnoldo, peço-lhe. tome cuidado... não se exponha, balbuciou Maria
suplicante.
— Não há o menor perigo. listamos em número. Viremos dentro em
pouco trazer-lhe notícias.
E o senhor de Trois-Monts deixou o pavilhão na companhia de
Magdalena e de Pedro.
A senhora de Vergis deu ordem à ama para se retirar para,o quarto
próximo, que ela ocupava com a criança, e correu os ferrolhos interiores da
porta.
Enquanto Arnoldo se afastava para ir ver o que se passava. Jacques
Sureau aproximava-se lentamente do pavilhão, mas não segui;: para aí se
dirigir a rua principal traçada por entre os maciços com uma irrepreensível
correção.
Ébrio de sangue, álcool e de luxuria, o miserável embrenhava-se por
entre a espessura, ferindo as mãos e o rosto nos espinhos. sem dar sequer por
isso.
Explica-nos isto a razão porque ele não encontrou as três pessoas cuja,
marcha era iluminada por uma lanterna.

**

Jacques chegou ao pavilhão, e fez alto por um momento. No interior,


Maria. de Vergis escutava os ruídos exteriores. Ouviu uns passos pararem
repentinamente, e perguntou:
— Arnoldo, é o senhor?
Apenas a jovem acabava de formular esta pergunta, a porta abriu-se
precipitadamente, ou para melhor dizer brutalmente, e entrou um homem de
cabeça descoberta, com o rosto e as mãos ensangüentadas.
A senhora de Vergis recuou, louca de terror, com os olhos fixos na
terrível aparição.
— Jacques Sureau! murmurou em seguida com susto, reconhecendo o
recém-chegado... Jacques Sureau!
O ex-escudeiro olhou para a Condessa, imóvel e silenciosa, com os
lábios afastados por um rictus de fera, os olhos cintilantes de concupiscência,
o coração animado de bestial paixão.
— Sim, volveu com uma voz abafada, Jacques Sureau.
— Que quer? que vem aqui fazer?
— O que quero? o que venho aqui fazer? Vim para lhe dizer o que fiz...
Acabo de matar o seu amante, e quero dizer-lhe que a amo!
—Matou-o! repetiu a Condessa assustada, o senhor matou Arnoldo!
E deitou em roda um olhar desvairado.
— Oh! tornou Jacques, não procure fugir... seria inútil! Estamos sós...
Não virá ninguém... A senhora há de ouvir-me, a senhora há de pertencer-
me!!

CLX - NOVOS SUCESSOS

O terror paralisou as forças da senhora de Vergis.


Quis gritar, mas os seus lábios agitavam-se sem articularem nenhum som
imperceptível.
Queria aproximar-se do quarto onde a ama se achava com a criança.
Parecia que tinha os pés pregados no solo.
As suas pernas vacilantes recusavam suportar o peso do corpo.
Para não cair. teve que se apoiar a uma das colunas do grande leito de
dossel.
Jacques Sureau, com os olhos escandecidos, as ventas dilatadas, cada vez
se aproximava mais dela.
Com uma voz trêmula a princípio, mas que se foi tornando firme,
exclamou: — Há dois anos que a amo, sem me atrever a dizer-lho. Foi aqui
nestes bosques, onde todos os dias a acompanhava, que este amor teve
origem... Amava-a então sem esperança. A minha única alegria era viver
junto da senhora, e não julgava que um dia me atreveria a sonhar com uma
completa ventura. De então para cá, o meu amor mudou de natureza.
Aguilhoado pelo sofrimento e nela esperança aumentou, aumentou até ao
delírio, até à loucura, até ao crime! Hoje não sou tímido, já não tenho medo.
Ouso falar e proceder. Tinha um rival, matei-o! Adoro-a, e há de ser minha
Podem guilhotinar-me em seguida, se quiserem, para mim torna-se-me
indiferente! Terei vivido...
Ao ouvir estas palavras, Maria compreendeu todo o perigo que a
ameaçava.
A sós com aquela fera enraivecida pela cólera, e que falava cinicamente
do seu amor levado até ao crime, tinha tudo a recear,
A certeza e a iminência de um perigo monstruoso, restituíram-lhe a
presença de espírito.
— Não sabe com quem está falando perguntou com altivez.
— Não me esqueço nada. Estou falando com a Condessa de Vergis, e
não passo de um criado! redarguiu o ex-artista de circo, mas falo com a
mulher a quem amo, e o amor torna iguais as pessoas! Era minha senhora,
minha senhora vai ser também. Não haverá mudança! O criado tornar-se-á
amante, mais nada!

***
E Jacques estendeu as mãos para agarrar a Condessa, que recuou como
se se aproximasse dela um réptil.
— Deixe-me! deixe-me! balbuciou procurando contornar o leito.
— Ah! escusa de se cansar. Quero possuí-la, e hei de possuí-la!... Correu
para a jovem, e agarrou-a pelo penteador com que estava vestida.
Maria recuou violentamente, mas o infame segurava-a pela roupa e não a
largava.
O penteador rasgou-se, deixando a descoberto os ombros e a garganta da
Condessa.
A vista daquelas carnes deslumbrantes, levou ao delírio a embriaguez
lúbrica e bestial que dominava Jacques Sureau.
O miserável tornou-se cor de púrpura, e os olhos injetaram-se de sangue.
Tornou a aproximar-se de Maria, que cruzava os braços sobre o peito
para o velar.
Agarrou-a pelos ombros, cujas mãos tocaram na epiderme fremente.
A Condessa quis debater-se, mas ele enlaçou-a brutalmente, e levantou-a
apesar da sua resistência e dos seus gritos...

***

Voltemos a Arnoldo de Trois-Monts, que deixamos no momento em que


ele ia explorar o parque, precedido de Pedro com uma lanterna na mão e
seguido de Magdalena.
A alguns passos da portinha, Pedro soltou uma exclamação de terror.
Acabava de distinguir estendido sobre a neve, o corpo do desgraçado
ferido por Jacques Sureau.
— Acolá... acolá... está um homem...
Arnoldo precipitou-se, inclinou-se para o corpo inanimado, apalpou-o e
disse:
— Este homem está morto: Estava há pouco um assassino no parque!
Quem será a vítima? Pedro alumia-me.
O marido de Magdalena baixou a lanterna; o rosto do cadáver achou-se
em plena luz.
Soaram ao mesmo tempo três gritos, e os nossos três personagens
recuaram assustados.
Em seguida Arnoldo exclamou com indizível terror:
— O Conde de Vergis! O Conde de Vergis assassinado! A portinha
girou sobre os gonzos, e uma voz repetiu:
— O Conde de Vergis assassinado!
Ao mesmo tempo entrava um homem no parque, aproximava-se do
grupo.
Assim que este recém-chegado se achou no círculo de luz projetado pela
lanterna, cruzaram-se duas exclamações:
— O senhor de Trois-Monts!
— O Príncipe de Castel-Vivant!
— Perturba-os a minha presença, senhores? perguntou Heitor num tom
alterado pela cólera. Estavam longe de me esperar ao pé do cadáver do
homem que lhes emprestou a casa para fazerem dela um uso infame! O
senhor é o assassino do Conde! Tenho o direito de o supor, porque o julgo
capaz de tudo. Mas isso é com a justiça.
Entretanto sem compreender. Arnoldo perguntava se o Príncipe de
Castel-Vivant estaria no pleno uso da sua razão. Heitor continuou:
— O que me pertence é arrancar-lhe a vítima, e castigá-los em seguida.
— Conduzam-me aonde está Lucília!
— Lucília! Minha vítima! repetiu o senhor de Trois-Monts, cuja
admiração aumentava a cada palavra do Príncipe.
— Oh! nada de subterfúgios, nada de mentiras! continuou Heitor com
violência. Lucília Gonthier, minha noiva, vilmente raptada pelos senhores,
está nas Épines-Blanches onde a conservam presa e perdia a esperança de a
seduzir, querem violentá-la esta noite! Bem vêm que nada ignoro!
— O que vejo. é que está louco! volveu Arnoldo. O senhor vem procurar
uma mulher?
— Lucília Gonthier bem sabe!
Fossara — Aqui só existe a Condessa de Vergis, viúva há um momento
pelo crime de um celerado.
— A senhora de Vergis está nas Épines-Blanches?
— Pois ignora-o?
— E está só?
— Só, juro-lho.
— Não conhece Lucília Gonthier? Não está na morada dela?
— Ouço esse nome pela primeira vez na minha vida.
— Então adivinho tudo, compreendo tudo! exclamou o principezinho
com ímpeto, era eu que devia estar estendido aí onde está esse cadáver.
— O senhor!
— Eu mesmo.
— Tinham armado um laço. Uma caria anônima avisava-me que eu
acharia Lucília no pavilhão do parque, onde o seu raptor tencionava desonrá-
la esta noite, e me indicava a porta por onde eu poderia introduzir-me.
— O Conde de Vergis recebeu a bala que me era destinada.

***
A evidência impunha-se. Ninguém disse nada.
Passado um momento. Pedro, aterrado com o que acabava de nu vir,
murmurou:
— Não podemos deixar o corpo de meu infeliz amo estendido sobre a
neve, é preciso levá-lo para o palácio.
— Sim, volveu Arnoldo aterrado.
— Eu ajudo, disse Heitor.
— Os três homens levantaram o cadáver, e Magdalena pegou na lanterna
a fim de os alumiar.
Para chegar ao palácio, deviam passar perto do pavilhão.
Ouviram sair dali gritos desesperados.
Arnoldo e o Príncipe abandonando aos cuidados de Pedro e de
Magdalena o seu lúgubre ferido, acudiram.
A porta fechada pela banda de dentro cedeu aos seus esforços,
exatamente no momento em que o primo de Fernando Volnay levava a
Condessa nos braços para o leito.
Ao ver entrar os dois homens, largou a presa.
Maria com uma voz estrangulada, balbuciou:
— Salvem-me. salvem-me!
— Não tem mais nada a recear, exclamou Heitor apontando o seu
revólver para o patife. Se ele se mexe mato-o!
— É Jacques Sureau! exclamou o senhor de Trois-Monts, é o cocheiro
do Conde.
— É o seu assassino, ia jurá-lo, acrescentou Heitor.
— O assassino do Conde! repetiu Maria com terror, o que está dizendo?
— Infelizmente, senhora, respondeu Arnoldo, temos uma triste notícia a
dar-lhe.
— O tiro que nos alvoroçou há pouco, foi atirado sobre o Conde. A
senhora Condessa está viúva.
A senhora de Vergis deixou-se cair de joelhos, derramando sinceras
lágrimas.
Abismos insondáveis do coração feminino!

***

Desde a entrada dos salvadores da Condessa, Jacques Sureau ficara


mudo e como idiota. Repetia maquinalmente:
— Estou perdido, estou perdido.
O senhor de Trois-Monts perguntou-lhe:
— Quem o colocou de emboscada ao pé da porta do parque?
— Ninguém, respondeu Jacques com uma voz abafada.
— Quem o informou da presença da senhora de Vergis nas Épines-
Blanches?
— Nada direi, nada responderei.
— Responderás aos juízes, disse Arnoldo.
— É preciso pôr este homem em lugar seguro até amanhã, disse o
Príncipe.
Pedro acabava de entrar.
— Fechemo-lo numa das adegas do palácio, disse Pedro, desafio-o a que
fuja! Se estes senhores querem vamos aí conduzi-lo.
— Caminha, ordenou Heitor, e lembra-se que se fazes um movimento
para fugir morres!
Jacques Sureau seguiu Pedro, escoltado pelo senhor de Trois-Monts e
pelo Príncipe de Castel-Vivant.
Fizeram-no subir a um subterrâneo sem saída e fecharam-no.
Arnoldo e Heitor voltaram ao pavilhão, onde encontraram a Condessa
mais sossegada.
— Há de perdoar-me a minha presença aqui, quando souber e motivo,
disse-lhe Heitor.
Contou em poucas palavras o que os nossos leitores já sabem, e
desculpou-se com o senhor de Trois-Monts por haver um momento
desconfiado dele.
Arnoldo estendeu-lhe a mão e replicou-lhe:
— Essas suspeitas foram a conseqüência natural da carta anônima que o
senhor recebeu, nada tenho que lhe perdoar, e aquela a quem ama ser-lhe-á
bem depressa restituída, tenho essa esperança.
— Deus há de com certeza restituir-lha, apoiou Maria. Heitor abaixo a
cabeça balbuciando:
— Infelizmente, minha senhora, esta decepção será a última... perdi toda
a esperança... é impenetrável a obscuridade.
Talvez Jacques Sureau a desfaça.
— Duvido, mas tudo é possível! Vai entregá-lo à justiça, não é verdade?
— Amanhã mandaremos a Orleans prevenir o procurador da república...
volveu o senhor de Trois Monts. e estimo que o senhor esteja aqui para
servir de testemunha.
Maria tomou a palavra.
— Príncipe, disse ela, o senhor é meu hóspede... Vão-lhe preparar um
quarto no palácio, ao lado do senhor de Trois-Monts.
Heitor inclinou-se.

***
Os dois mancebos deixaram o pavilhão.
Foram ter com Pedro que velava no quarto do Conde, metamorfoseado
em capela ardente.
O senhor de Vergis estava estendido no seu leito, em roda do qual Pedro
acendera grande número de velas.
Tinha a cabeça apoiada em duas almofadas.
Haviam-lhe posto um crucifixo sobre o peito.
Apresentava no rosto uma palidez azulada.
Via-se-lhe na fronte esquerda um pequeno orifício vermelho escuro.
Deslizava-lhe um fio de sangue por trás da orelha.
— Como é que o senhor de Vergis que todos julgavam no estrangeiro,
chegou repentinamente em meio da noite, entrando por uma portinha escura
do parque? perguntou o príncipe.
— Não sei respondeu Arnoldo.
— A Condessa esperava o marido de um momento para o outro? —
Longe disso. O Conde não devia voltar senão daqui a dois ou três meses, o
muito.
Heitor compreendeu, ou antes adivinhou, e não fez mais perguntas.

***

É muito provável que os nossos leitores façam a mesma pergunta, que o


Príncipe acabava de dirigir ao senhor de Trois- Monts.
Porque razão o Conde voltara para casa, sem ser esperado, não entrando
pela porta principal, e vindo morrer às mãos de Jacques Sureau?
Eis a breve explicação do fato:
O diplomata, desconfiado e agitado, perguntava continuamente a
Malpertuis. por meio de telegramas, notícias, da missão de que o
encarregara.
O ex-advogado só uma vez respondera, e a sua retirada para América
viera suspender toda a correspondência telegráfica.
Este silêncio não podia deixar de parecer suspeito ao marido ciumento e
de avivar-lhe as desconfianças, mas o breve telegrama da Condessa pareceu-
lhe ainda mais comprometedor que tudo.
Fez esta reflexão consigo mesmo:
— Se a demora de uma carta causa uma tal inquietação à Maria, é
porque ela receia que eu volte sem a prevenir...
Respondeu imediatamente.
Sabe-se qual foi a sua resposta.
A idéia de surpreender a mulher, nunca mais lhe saiu do espírito.
No dia seguinte deixava Berne, voltava para França, chegava a Orleans
por volta das onze horas da noite, e tomava a pé o caminho das Épines-
Blanches.
Esperava-o e alcançara-o a bala de um assassino.
Esta bala era destinada por César de Fossaro ao Príncipe Heitor de
Castel-Vivant.
O Príncipe dispunha-se a tomar posse do quarto preparado para ele por
Magdalena ao lado do de Arnoldo, quando a sineta da entrada principal,
agitada por mão impaciente, soltou um ruidoso apelo.

CLXI - O ENCONTRO

O senhor de Trois- Monts tremeu ao inesperado som da sineta.


— Esta noite, disse, tudo se deve esperar. Pedro vai ver quem é... Vamos
para junto da senhora de Vergis, a quem este ruído deve ter inquietado.
Magdalena ficará aqui.
Pedro pôs-se imediatamente a caminho, e viu junto à grade do parque um
trem puxado por dois cavalos, e pertencente a um aluga-dor de Orleans.
Ao pé da grade estava um homem à espera.
Aquele homem era Sta-Pi.
Na carruagem estavam Lucília e o doutor Auger.
— Depressa, depressa, senhor, responda-me, disse Picolet a Pedro assim
que o criado se achou, ao alcance da sua voz. Há pouco cometeu-se um
crime, não é verdade?
— Sim, infelizmente, senhor, respondeu o marido de Magdalena.
Sta-Pi exclamou desesperado:
— Tinha adivinhado! Chego muito tarde!
— Sabe então que o Conde de Vergis devia aqui vir esta noite?
— O Conde de Vergis! replicou Estanislau admirado.
— De certo! O meu pobre amo. entrando no parque, foi assassinado pelo
seu antigo cocheiro, Jacques Sureau.
— O senhor de Vergis foi assassinado! Que grande desgraça!
— Mas o Príncipe?
— Que príncipe? perguntou Pedro.
— O Príncipe de Castel-Vivant? Vínhamos salvá-lo...
— Está tão bom como nós ambos, porque quando chegou já o senhor
Conde estava estendido morto sobre a neve.
— Deus fez um milagre! pensou Sta-Pi radiante, porque, não
conhecendo o senhor de Vergis, só pensava, como era natural, em Heitor.
Pedro abriu a grade, e a carruagem entrou.
***

Arnoldo escutava no limiar da porta.


Ouviu um ruído de vozes, o rodar de um trem, e preveniu Maria.
— Meu Deus! balbuciou a jovem já trêmula. É talvez a justiça.
— Não pode ser, respondeu o senhor de Trois-Monts. Um crime
cometido há apenas uma hora, não pode ser conhecido.
Pedro precedera os vizinhos noturnos.
— Senhora Condessa, disse, estão aqui dois senhores que vêm de Paris
para salvar o senhor de Castel-Vivant.
— Para me salvar! exclamou Heitor estupefato. Mas parece-me...
— Mande entrar esse senhores, interrompeu Maria, e que se certifiquem
pelos seus próprios olhos, de que não corre nenhum perigo.
O marido de Magdalena introduziu no pavilhão Sta-Pi e o doutor Auger.
— Picolet! murmurou Heitor aflito. Como foi que encontraram o meu
rasto? que me vem dizer?
O ex-empregado de Malpertuis mostrou o bilhete anônimo esquecido
pelo príncipe na sua secretária, e respondeu:
— Esta carta infame era explícita... Bastava seguir as suas indicações
para o encontrar. Em todo o caso sossegue, as notícias que eu trago não são
más. Príncipe, tenho a honra de lhe apresentar o doutor Auger...
— Um médico! murmurou dolorosamente Heitor. Meu Deus!...
encontrou Lucília. Está doente, não é verdade? Está talvez moribunda:
— Encontrei-a, sim. senhor, e esteve doente, bem doente, mas hoje o
perigo já não existe... O doutor Auger, o excelente doutor Auger, combateu o
mal, apressou a convalescença, e obteve finalmente a cura completa...
— Senhor Príncipe, disse o médico com uma voz grave; fiz pelo corpo, o
que o senhor, com o auxílio de Deus, fará pela inteligência.
Heitor empalideceu. Receava compreender.
— Louca! balbuciou com terror, Lucília está louca?
— Em resultado de um grande terror, a razão da pobre criança
transtornou-se, respondeu o médico. Mas o seu nome proferido na sua
presença, produz um súbito despertar do pensamento e da memória; a sua
presença vai tornar definitivo o despertar. Tenho a firme esperança disso.
— Portanto, senhor doutor, perguntou Heitor com vivacidade, julga
possível a cura?
— Mais, julgo-a quase certa.
— Então, partamos depressa... a experiência far-se-á amanhã.
— É escusado partir... Se a senhora Condessa dá licença, a experiência
pode fazer-se já.
— Permito, disse Maria.
— Então Lucília está aqui! exclamou o Príncipe mal podendo acreditar
no testemunho dos sentidos.
— Está aqui, e dentro de alguns segundos vê-la-á diante de si. Heitor
cambaleou sob a peso da comoção.
— Príncipe, sossego! disse Arnoldo.
— Sobretudo, nada de mostrar fraqueza diante dela, acrescentou o
doutor, tudo se comprometeria!
O mancebo fez apelo à sua energia.
— Não receie nada, redarguiu ele, mostrando aprumo, mostrarei
tranqüilidade e fortaleza!
A um gesto do doutor que Picolet compreendeu, saíram ambos do
pavilhão.
Decorreram três ou quatro minutos, durante os quais reinou profundo
silêncio, depois a porta do quarto tornou a abrir-se, e o medico reapareceu,
seguido de Estanislau e conduzindo Lucília cujo rosto adorável apresentava
a alvura mate e a imobilidade do mármore.

***

A Condessa e o senhor de Trois-Monts contemplavam com ansiedade


aquela pálida aparição.
Heitor sentia o coração deixar de bater.
O médico afastou-se da jovem, deixando-a em frente dos três
personagens.
Lucília dirigiu os olhos sem expressão para a senhora de Vergis,
perpassaram por Arnoldo, e fitaram finalmente o Príncipe, que mais lívido
ainda que a órfã, se agarrava às costas de uma cadeira para não cair.
— Heitor, disse-lhe de repente em voz baixa ao ouvido.
A criança estremeceu e repetiu:
— Heitor...
— Aproxime-se dela, Príncipe, disse o senhor Auger. Fale-lhe...
A jovem inclinou um pouco a cabeça, e pareceu escutar, como se
escuta um eco longínquo, as palavras que o Príncipe acabava de escutar.
De repente levou as mãos à fronte.
O véu que lhe cobria a razão, rasgou-se subitamente.
— Heitor, repetiu ela, Heitor... o chalet da ilha Basse... o homem cego de
um olho.
Calou-se, toda trêmula.
Soltou depois um grito abafado, e caiu quase desfalecida nos braços do
Príncipe.
— Ela falou num homem cego de um olho! pensava Picolet.
O doutor pegou nas mãos de Lucília, puxou-a brandamente, e fê-la sentar
numa poltrona.
A Toutinegra ergueu os grandes olhos para ele, e com uma voz muito
fraca, mas falta de entoação, perguntou:
— Onde estou?
— Em meio de pessoas amigas, minha senhora, respondeu o médico,
fazendo sinal à Condessa e ao senhor de Trois-Monts, para que se
aproximassem.
— No meio de pessoas amigas? repetiu a jovem.
— Sim, minha querida filha, tornou Maria, em meio de amigos sinceros
que querem a sua felicidade.
— A minha felicidade! Estão a falar na minha felicidade. Então eu não
estou no chalet da ilha Basse?
Picolet avançou e disse:
— Não, minha menina.
— A inundação... as ameaças de morte... o desabamento... o frio lençol
das águas que me arrebatavam, não passava de um sonho?
— Era a realidade, menina, proferiu o doutor.
— E esse perigo que ameaçava Heitor? Essa infame a quem eu queria
arrancá-lo?
— Mentira, tudo era mentira! Serviam-se do seu amor para lhe armar um
laço... O senhor de Castel-Vivant nunca deixou de a amar.
— E ama-a, adora-a cada vez mais.
E o Príncipe dizendo isto, ajoelhou diante de Lucília pegando-lhe nas
mãos e cobrindo-a de beijos.
— Ali! compreendo... compreendo... balbuciou a jovem, cujas faces se
inundaram de lágrimas. Heitor, querido Heitor, há muito que isso se passou,
não é verdade?
— Sim, há muito.
— Então estive doida!... Esquecera-me de tudo, mas lembro-me agora...
— Conte, conte o que se passou, acudiu Picolet. Lucília continuou com
voz fraca:
— Recebi uma carta, noticiando-me a ida do Príncipe para o seu palácio
de Vezelay, e depois recebi outra, dizendo-me que ele me atraiçoava com
uma mulher perigosa, capaz de tudo, e que para o salvar daquela mulher,
para recuperar a sua posse, seria preciso dirigir-se a Creteil, ao chalet da ilha
Basse... Alucinada, desesperada, parti... Depois da meia noite, em meio de
uma terrível tempestade, cheguei à ponte de Creteil, onde perguntei pelo
caminho que devia seguir. Apareceu-me uma mulher que se ofereceu para
me conduzir... Era a cúmplice do cego que me esperava tio chalet da ilha
Basse para me matar.
Os ouvintes estavam ofegantes e pálidos de comoção.
Lucília continuou:
— Ergueu sobre mim a mão com que empunhava uma faca. Julguei que
ia morrer e desmaiei. Quando tornei a mim, as águas geladas envolviam-me
por todos os lados... Contraíra as mãos sobre os ramos de uma árvore
desarraigada. Detrás de mim ouvia-se um ruído formidável... o chalet da ilha
Basse acabava de desabar... Soltei um grito. e depois... não me lembro
mais... Bem vê que estava louca...
Os ouvintes da breve e terrível narrativa de Lucília tremiam.
— Ah! murmurou Sta-Pi, havemos de tornar a encontrar os vis
assassinos! O homem cego de um olho deve ser Pedro Rédon, e ia jurar que
a sua cúmplice é Fanny Vernaut, a infanticida de Courbevoie! Paciência!

***

Ao romper do dia Pedro partiu para Orleans, levando ao -procura, dor da


república uma carta da senhora de Vergis
Telas dez horas o magistrado acompanhado de um juiz de instrução, de
um comissário d? polícia, e de dois gendarmes. chegava às Épines-Blanches.
Conduziram até junto do cadáver os representantes da justiça, contaram-
lhes os dramas da noite precedente, e acompanharam-nos ao teatro do crime.
A espingarda do assassino foi encontrada a trinta passos do lugar onde o
sangue da vítima avermelhava a neve.
Feito isto, o procurador da república voltou para o palácio, instalou-se
numa casa onde tinham acendido bom lume. e deu ordem para lhe trazerem
Jacques Sureau.
Os dois gendarmes preparavam as algemas.
Pedro desceu com ele aos subterrâneos, e disse designando uma pesada
porta:
— Está acolá!
— Abra! voltou-lhe o gendarme. O marido de Magdalena obedeceu.
Foi o primeiro a entrar, e levando a lanterna para alumiar o interior do
subterrâneo, recuou soltando um grito pavor.
— O que é? perguntou o gendarme.
— Ali... ali... balbuciou Pedro apontando para um ponto da parede, por
baixo de um respiradouro sòlidamente gradeado.
Jacques Sureau conseguira pendurar-se de um dos varões, valendo-se de
dois lenços solidamente amarrados um ao outro.
O corpo estava frio, a face roxa convulsionada!
Foram logo prevenir os magistrados.
Estes desceram imediatamente, e procederam à verificação do suicídio.
— Revistem-no! ordenou o procurador da república.
— Eu me encarrego desse serviço de boa vontade, disse Picolet.
— Então ande.
Sta-Pi tirou sucessivamente das algibeiras do patife vários cartuchos de
balas cônicas, várias chaves, um "porte-monaie" bem fornecido, e uma
carteira muito recheada.
Vendo aquilo, o procurador da república disse:
— Eu já examino isso, disse o procurador da república... Desprendam
esse corpo e levem-no para uma granja. Eu darei ordens para o seu enterro.

***

Os magistrados voltaram ao rés-do-chão do palácio.


A carteira continha bilhetes do banco, certificados e uma carta.
— Eis uma preciosa informação! exclamou o magistrado depois de ler a
carta. O bandido não veio aqui unicamente impelido pelo seu instinto!
Valendo-se para isso de uma calúnia odiosa, à qual a senhora de Vergis
estava superior, mandavam-no aqui matar um homem, e esse homem era o
senhor Príncipe de Castel-Vivant. Ah! os seus inimigos são hábeis? Quer
confiar-me a carta que recebeu?
— Ei-la, senhor, respondeu Picolet.
Depois da confrontação das duas missivas anônimas, o magistrado
continuou:
— É idêntica a letra! é evidente que a mesma mão escreveu estas
cartas...
— A mão de Pedro Carnot, ou de Pedro Rédon, que vem a ser o mesmo,
replicou Picolet, esse zarolho evadido, que valendo-se de uma certa Fanny
Vernaut, quis matar a menina Lucília.
— Havemos de nos ocupar desses dois celerados, mas para esse fim
tenho de me pôr em relações com a tribunal de Paris.
— Senhor procurador da república, atreveu-se a dizer Picolet, se me é
permitido formular a minha opinião, creio que para os apanhar, poderia dar
algumas indicações úteis...
— Como? Explique-se, senhor. A justiça não deve desprezar coisa
alguma.
— É preciso proceder em conformidade com o velho adágio policial:
"Procurar a pessoa a quem o crime aproveita!" Quiseram matar o Príncipe...
Quiseram-no matar até por mais de uma vez... portanto, alguém havia com
muito interesse em que ele morresse... ora parece-me que conheço o tal
alguém...
CLXII - DESVENDA-SE O MISTÉRIO

O procurador da república perguntou logo:


— De quem suspeita?
— Suspeito de Fanny Vernaut, a infanticida de Courbevoie, de se haver
transformado em Genoveva Leinen, e encarrego-me de ter dentro em pouco
a prova disso, respondeu Picolet.
— Genoveva! exclamou Heitor.
— Sim, senhor... Essa Genoveva é Fanny, temos nas unhas a cúmplice
de Pedro Rédon.
— Mas, tornou o magistrado, não vejo que interesse essa pessoa seja em
todo o caso qual for a sua identidade, podia ter na morte do senhor de Castel-
Vivant.
— Já achei; a menina Genoveva foi amante do Príncipe.
O procurador da república deitou um olhar para Heitor que respondeu
com um sinal afirmativo. Picolet continuou:
— O Príncipe dignou-se confiar-me que tinha por costume fazer
testamentos pelos quais enriquecia as amantes uma após outra... Portanto
teve de fazer testamento em favor da menina Genoveva, cujo reinado durou
muito tempo.
— É verdade, balbuciou o Príncipe, não sem embaraço. Envergonho-me
hoje da minha loucura! Deixava por um ato ológrafo, toda a minha fortuna a
essa rapariga.
— Ora, como o Príncipe para que o testamento produzisse os seus
efeitos.
— Isso parece-me muito lógico, disse o magistrado.
— Genoveva ignorava as minhas idéias, ou antes, as minhas manias,
replicou o Príncipe.
— E o senhor não fez essa confidencia a nenhum dos seus amigos?
perguntou Estanislau.
— Só a um...
— Quem?
— O Barão de Fossaro.
Heitor bateu na testa, e acrescentou com vivacidade, sentindo um
princípio de inquietação:
— Lembro-me de que um dia, durante a minha convalescença, o Barão
serviu-me de secretário. Entrou no meu gabinete, onde até se conservou por
muito tempo. Pôde portanto apoderar-se do testamento que eu queria destruir
e julgava perdido por entre uma balbúrdia de papéis e de apontamentos.
— Bravo, senhor, abre aos nossos olhos horizontes de que nem mesmo o
senhor suspeita... exclamou Picolet.
E puxando por urna carteira, apresentou um envelope e continuou:
— Esse sobrescrito que lhe parecia traçado de uma forma contrária aos
seus hábitos, esse susto, tudo se explica, imitaram a sua letra, serviram-se de
um sinete seu, para enganar a menina Lucília! O seu inimigo, ia jurar-lho
agora, é Fossaro, o amigo de Pedro Rédon e de Genoveva. Foi ele que
roubou o testamento, e que queria fazê-lo matar para repartir a fortuna do
Príncipe com os seus cúmplices.
— O documento de que se trata está datado? perguntou o procurador da
república.
— Não, respondeu Heitor.
— Então, tornou o magistrado, é que puseram uma data imitando a sua
letra, e tencionavam apresentar o documento.
Picolet deu um pulo.
— Que idéia triunfante! exclamou, apresentam-no, esteja certo. O senhor
de Fossaro, há de entregar-se pessoalmente, e fornecer-lhe as provas dos
crimes.
— É impossível, porque o Príncipe está vivo.
— Pelo contrário, é muito possível, e eis como: Ninguém, exceto nós e
os criados do palácio, sabe da morte trágica do senhor de Vergis... Deixemos
correr o boato de que o Príncipe de Castel-Vivant pereceu vítima de um
acidente, de um equívoco. Que se oculte em Paris, no fundo do seu palácio,
que os seus criados tomem luto, os jornais falem do enterro como se se
tivesse efetuado nas Épines-Blanches, que o juiz de paz se apresente na Rua
Francisco I para pôr os selos, e eu lhes certifico que o assassino e o ladrão
não tarda a cair num laço tão bem armado!
O magistrado refletiu um instante.
—A idéia é excelente, e perfeitamente realizável... disse ele em seguida.
Irei a Paris entender-me a esse respeito com o tribunal, e os culpados,
espero, não escaparão.
Horas depois o procurador da república partia efetivamente para Paris.

***

Heitor, Picolet, Lucília, e o doutor, iam no mesmo comboio.


No dia seguinte efetuava-se no cemitério da aldeia a cerimônia fúnebre
do Conde de Vergis e do seu assassino.
No palácio da Rua Francisco 1. a septuagenária cega entregava-se à
alegria de haver recuperado Lucília. os criados tornavam a ver o amo a quem
amavam, a alegria inundava todos os corações, e contudo a casa parecia
envolvida por uma atmosfera de tristeza.
Obedecia-se às ordens recebidas, fingindo chorar o amo.
O procurador da república dirigiu-se ao palácio da justiça, e
conferenciou por muito tempo com o senhor de Logeryl, que estava
substituindo o seu chefe hierárquico ainda com licença.
No dia seguinte a maior parte dos jornais reproduziam um artigo do
"jornal do Loiret", anunciando que acabava de se sepultar o jovem Príncipe
de Castel-Vivant, morto acidentalmente numa caçada.
Além disso o Galois continha a seguinte notícia:
"Acabamos de ter à vista um documento curioso, e sobretudo
escandaloso... Um ator muito em voga, aplaudido todas as noites pelo
público parisiense, é um gatuno vulgar, e ainda alguma coisa pior.
"O documento donde se deriva esta triste conclusão, é uma declaração
escrita e assinada pelo próprio ator, de haver cometido uma falsificação em
prejuízo de um comerciante de província.
"Parece-nos que este patife fará justiça a si próprio desaparecendo, e não
constrangerá o possuidor dos papéis falsificados a levá-lo a um tribunal no
interesse da moral pública..."
Esta notícia não era seguida de comentário algum.
Só Fernando Volnay podia surpreender o sentido e o alcance daquilo.
Malpertuis e Fossaro estavam reunidos no gabinete do ex-procurador.
César tinha na mão o número do Gaulois, e dizia:
— O nosso homem já leu estas poucas linhas, afianço-te. Não tarda que
bala à tua poria. Já sabes o que lhe deves responder.
— Perfeitamente. Que tencionas tu fazer pelo testamento do Príncipe?
— Nada, enquanto o juiz de paz não tiver procedido ao inventário dos
papéis e encontrado o testamento feito em favor de Lucilia Gonthier.
Intervirei e apresentarei o segundo testamento, o único que vale, graças à sua
data.
— Onde está a carta que te nomeia testamenteiro?
— Está já pronta e selada com as armas do Príncipe.
— Viste Genoveva?
— Vi; está cheia de confiança, e conta, graças à fortuna de Heitor,
prender a seus pés Fernando, por quem está cada vez mais louca. Vigiam o
palácio da Rua Francisco I, não é verdade?
— Sim. encarreguei disso Raquin. Assim que se apresentarem o juiz de
paz e o seu escrivão, seremos avisados.
— Bem... dirigiste ao substituto Armando de Logeryl, o que te
entreguei?
— A remessa chegar-lhe-á dentro de uma hora.
Fossaro murmurou com uma voz abafada:
— Será a vingança! Branca quis deitar-me a perder, ela é que ficará
perdida!
Neste momento bateram devagar à porta do gabinete. César desapareceu.
Malpertuis abriu a porta.
— Senhor, disse-lhe o contínuo, é o senhor Fernando Volnay.
— Mande entrar...
Segundos depois, o comediante transpunha o limiar da porta.
Pálido de morte, não cumprimentou Malpertuis, que se, levantara para o
receber.
Tirou da algibeira o número do Gaulois, e com os olhos cintilantes, a
fisionomia ameaçadora, deu-o ao procurador.
— Queira dizer-me, senhor, perguntou com uma voz rouca, o que
significa a notícia inserta neste jornal?
— Ah! ah! Leu... perguntou o procurador o motivo de uma tal infâmia!
— É muito simples, meu querido senhor... O senhor comprometeu-se a
dar-me um milhão no dia seguinte ao do seu casamento com a Marquesa de
la Tour-du-Roy, vítima, e eu pretendo obrigá-lo, por todos os meios ao meu
alcance, a cumprir uma promessa que me parece esquecer...
Fernando encolheu os ombros.
— Então o senhor ignora que a marquesa de la Tour-du-Roy, vítima do
seu ciúme, ficou mortalmente ferida, e só lhe restam dias de vida?
— Bem sei, replicou Malpertuis, bem sei que a Marquesa não sofre só
das feridas do corpo, mas das do coração, sei que ela o espera, que ela o
chama! Sei que dentro de dois dias, por meio de um casamento in extremis,
pode ser esposo de Lazarine, receber o dote e pagar o meu milhão... Sei
mais, que isto se há de realizar, senão todos os jornais dirão ao público ávido
de escândalos, que o comediante a quem mira a notícia de hoje, é o grande
artista Fernando Volnay.
— Mas, murmurou o ator, dominado, vencido, considerando impossível
toda a resistência, abandonei Lazarine por outra mulher, não posso agora
voltar para junto dela...
— Eu me encarrego de lá o levar, e apressar o seu casamento...
— Então ande, senhor, que eu obedeço.
— Muito bem! Mais uma palavra. Se, como estou persuadido, continua a
ver Genoveva, não lhe dirá nada a respeito dos meus projetos, pelo menos
antes da sua realização.
— Isso, senhor, juro-lho...
— Então vamos.

***
Malpertuis pôs o chapéu, meteu debaixo do braço esquerdo uma pasta
cheia de papéis, saiu na companhia de Fernando, e tomou um trem.
Meia hora depois, os dois homens chegaram à Rua Murillo.
O ex-procurador tocou a camainha.
Um criado introduziu-o com o seu companheiro no vestíbulo, e foi
prevenir a criada de quarto.
Esta soltou um grito de surpresa, reconhecendo o comediante.
— Ah! senhor Fernando, disse ela, vem ver a senhora?
— Sim, minha filha...
— Faz muito bem, senhor Fernando! Há três dias que a senhora pode
falar, está sempre com o seu nome nos lábios, pergunta pelo senhor, chama-
o...
— Como lhe explica a minha ausência?
— Mentia, senhor, para não penalizar a minha pobre ama, e o doutor
fazia como eu... Dizíamos à senhora que lhe era proibido receber fosse quem
fosse, mas que o senhor vinha todas as manhãs sem nunca faltar.
— Anuncie-me, minha filha, disse Malpertuis.
— O senhor só?
— Sim, devo preparar a senhora Marquesa para a alegria de tornar a ver
o seu amigo.
— Então, sigam-me, senhores... Anunciarei à senhora o senhor
Malpertuis, e o senhor Volnay esperá-lo-á no gabinete...
Um instante depois, o ex-procurador entrava no quarto de Lazarine, e
aproximava-se do leito.
A infeliz tinha o rosto meio oculto pelas ligaduras e compressas.
Um dos olhos estava perdido; o outro apesar de gravemente
comprometido, permitia-lhe quase ver o que se passava no meio da
escuridão estabelecida de propósito em volta dela.
Descansava a cabeça num monte de almofadas.
Pendia-lhe fora do leito um dos braços.
— É o senhor Malpertuis? perguntou com uma voz que mal se percebia.
— Sim, senhora Marquesa. Sabendo que o doutor levantava hoje a
proibição rigorosa de receber alguém.apressei-me a vir tratar dos seus
negócios.
Lazarine suspirou.
— Dos meus negócios? suspirou ela com amargura. Para que? Estou
muito perto do túmulo, para me interessar seja pelo que for! Que me importa
agora a fortuna? Já não existe para mim nem alegria nem felicidade. Deus
amaldiçoou-me...
— Faz mal em falar assim, minha querida senhora, disse Malpertuis em
tom melífluo, o doutor tem grandes esperanças...
— Viver desfigurada, viver cega talvez, triste esperança! replicou
Lazarine amargamente.
— Resta-lhe o futuro.
— Que futuro? A perda da minha beleza despedaçou o único laço que
me prendia à vida.
— Quem lhe disse que esse laço se quebrou?
— Essa pergunta prova-me que não me compreende.
— Pelo contrário, compreendo-a maravilhosamente. Pensa em Fernando
Volnay.
— Sim, em Fernando, por quem sofro... Em Fernando, por quem Deus
me puniu... e que já não pensa em mim!
— Engana-se, afirmo-lhe.
— Se ainda me amasse, viria ver-me.
— Veio, minha senhora, mas teve de se retirar, em vista das ordens
inquebrantáveis dadas pelo doutor.
— Mas hoje deixaram de existir essas ordens... e ele não aparece...
— Talvez não tarde...
— Oh! se o senhor falasse verdade! balbuciou Lazarine com transporte.
— Seria a ventura, não é assim?
A Marquesa abanou a cabeça e respondeu:
— Ou antes o desespero...
— O desespero? Que está a dizer, minha senhora?
— Olhe para mim! Estou horrível, e Fernando só amava a minha beleza!
— Não suponha tal... Fernando é um homem de sentimento... Não
deixou nunca de a amar...
— Quem lhe disse isso?
— Ele próprio... Está disposto a realizar os projetos de união que a
senhora tinha imaginado.
— Quer ser meu marido? exclamou Lazarine.
— Sê-lo-á dentro de três dias se a senhora Marquesa quiser. Incumba-me
deste negócio, que tudo caminhará depressa...
— Ah! cale-se. balbuciou a Marquesa. Se as esperanças que dá têm de
falhar, seria uma grande crueldade...
— Se costumo falar com conhecimento de causa... retorquiu Malpertuis.
Tenho os seus papéis. Terei esta noite os de Fernando. Amanhã visitarei a
mairie do seu bairro... Convertê-lo-ei dizendo-lhe que se trata de um
casamento in extremis (o que não é exato, e depois de amanhã poderá ser a
senhora Volnay).
— Ah! senhor Malpertuis, parece-me que vou reviver!
— Há de viver, sim, minha senhora, e há de viver muito tempo para ser
feliz...
CLXII - UM CASAMENTO

Decorreu um momento de silêncio. Malpertuis tornou:


— Vou fazer redigir pelo meu tabelião um contrato de casamento que
lhe será submetido amanhã, e que assinará ao mesmo tempo que o auto do
casamento.
— Desde já o aprovo, volveu Lazarine.
— Será conveniente, parece-me, pôr nesse documento dote sério ao seu
futuro marido.
— Quero que tudo o que eu possuo lhe pertença, e ele de tudo possa
dispor...
— Às mil maravilhas! Redigir-se-á o contrato do casamento nesse
sentido...
Neste momento a senhora de la Tour-du-Roy ouviu um leve ruído no
quarto próximo.
— Está então alguém aí? perguntou ela à sua criada de quarto?
— Sim, senhora, respondeu a camareira a quem Malpertuis fazia um
sinal.
— É alguém que me vem visitar?
— Sim, é alguém que vem visitar a senhora, é preciso que a senhora
prometa que há de estar muito sossegada.
— É Fernando exclamou a Marquesa com indizível alegria..
— É ele, efetivamente, minha senhora. Bem vê que eu tinha razão, disse
Malpertuis rindo.
— Fernando! Fernando! chamou a Marquesa com uma voz entrecortada,
mais ainda distinta.
Abriu-se a porta, e o comediante. — comediante tanto no teatro como
fora dele, — precipitou-se no quarto, e veio ajoelhar junto do leito da
senhora de la Tour-du-Roy.
Lazarine, desfalecida, abandonava as mãos àquele a quem ela amava
mais que a vida. e deixou-se cair de cabeça para trás.
O desfalecimento foi de curta duração.
Mas sempre deu tempo a que Fernando verificasse que as devastações do
vitríolo excediam todo o crédito, e que a Marquesa estava condenada sem
apelo.
— O menos que posso fazer é esperar de boa vontade esta pobre mulher
que vai morrer, enriquecendo-me, disse.
A Marquesa tinha-se reanimado.
— Tu! tu! exclamou ela atraindo aos lábios o rosto de Fernando e
beijando-o na fronte.
O comediante redarguiu:
— Sim, eu que te amo sempre, e nunca cessarei de te amar...
— Então o que me disse Malpertuis?...
— Estou pronto a fazê-lo.
— Oh! é muita alegria, é muita felicidade... E Lazarine perdeu
completamente os sentidos.

***

Malpertuis não se esquecera de mandar para o tribunal os documentos


que Fossaro lhe confiara.
Quando esses papéis chegaram ao palácio da justiça, estava Armando de
Logeryl em conferência com Daniel Gaillet e com Sta-Pi.
O procurador da república em Orleans fizera-lhe um tal elogio da
inteligência e da sutileza de Gaillet, que Armando logo o mandara chamar, e
o interrogara a respeito do rapto de Lucilia Gonthier e do assassinato do
Conde de Vergis.
— Poderia, disse, fazer prender imediatamente o Barão de Fossaro e
Genoveva Leinen, que deve ser efetivamente Fanny Vernaut ; mas privar-
me-ia assim das provas que os próprios bandidos nos hão de trazer. O Barão
de Fossaro, homem muito hábil de certo, não há de conservar em casa coisa
alguma comprometedora, e portanto uma busca em casa dele não daria
resultado. É preciso deixá-lo comprometer. A ocasião não se fará esperar,
porque o Barão não deixará de se apresentar, quando souber da presença do
juiz de paz no palácio do príncipe de Castel-Vivant... Eu lá estarei. Senhor
Picolet. conto com a sua habilidade para ao mesmo tempo levar Genoveva
Leinen à Rua Francisco I, porque Genoveva deve ser cúmplice de Pedro
Rédon...
Sta-Pi inclinou-se.
— Mas Pedro Rédon. senhor, não se ocupa dele? perguntou Daniel
Gaillet.
— Está na América.
— Duvido, não o posso crer.
— E eu afirmo-lho. Recebi esta manhã um telegrama datado de New
York. no qual me anuncia revelações concernentes à menina de Passem'.
Daniel estremeceu.
O substituto continuou:
— E em presença de certos fatos que estão quase a realizar-se, tenho
pressa, confesso, de receber estas revelações. Deus queira que elas não
cheguem muito tarde!
Armando de Logeryl pensava no contrato de casamento de Rogério de
Chaslin, e de Adriana de Lasseny, que devia ser assinado no dia seguinte.

***

Naquele momento o contínuo entrou no gabinete. Trazia um pequeno


maço de papéis, cuidadosamente atados? lacrados.
— Para o senhor substituto, disse. O portador declarou que era urgente.
Armando apressou-se logo a quebrar os sinetes e a cortar os cordéis,
dizendo ao mesmo tempo a Daniel e a Picolet:
— Esperem um momento, senhores... Talvez vá completar as suas
instruções...
Em meio dos papéis havia um frasco de grânulos e uma carta.
O magistrado abriu a carta e leu:

"Senhor substituto.
"Prometi edificá-los a respeito da menina de Lasseny. Leia e verá que
cumpro a minha promessa.
"Pedro Rédon."

Armando pôs a carta de lado, e pegou nos papéis que se achavam


classificados por ordem.
Deitou-lhes um olhar e fez um gesto de estupefação...
Era uma informação escrita por Branca, e que os nossos leitores
conhecem, destinada a Fossaro e depositada no musgo da jarra de Delft, no
quiosque do palácio de Chaslin.
Continha a cópia da carta queimada por Helena, depois de Pedro Rédon
ser posto em liberdade.
No alto da cópia achavam-se estas palavras escritas pela dama de
companhia:
"Carta da Roche-sur-Loire, e recebida esta manhã pela senhora
Duquesa."
Armando não podia acreditar no que via.
Tornou a ler a carta, e vendo os comentários com que a acompanhava, a
menina de Lasseny compreendeu que Pedro Rédon explorara com uma
audácia e uma habilidade diabólica, certas frases de duplo sentido, para fazer
pesar sobre o senhor de Chaslin uma suspeita de cumplicidade.
O coração dilatou-se-lhe.
Graças a Deus, o velho Duque, unicamente culpado de um amor indigno,
estava inocente de um crime abominável!
— Quão feliz será Helena! murmurou.
Depois passou a outro documento.
Era uma folha de papel selado contendo unicamente as seguintes linhas:

"Prometo pagar ao senhor Pedro Rédon a quantia de três milhões, um


mês depois do dia em que eu ficar viúva do Duque Henrique de Chaslin, que
ele se compromete a fazer-me desposar.
"Adriana de Lasseny."

O terceiro documento era uma certidão de óbito, assinada e legalizada


pelas autoridades inglesas.
Provava que Adriana Maria, filha do Conde Heitor de Lasseny e de
Luciana Aurélia de Pont-Landry, morrera em Londres, na idade de dois
anos.
— Morta! exclamou o jovem magistrado, Adriana de Lasseny morta! E
tenho a prova disso nas minhas mãos!
Daniel aproximou-se da secretária com vivacidade.
— Senhor substituto, permita-me, suplico-lhe, que faça uma pergunta,
balbuciou ele com uma voz sufocada: Que disse? Adriana de Lasseny
morreu! Tem a prova disso?
— Eis a sua certidão de óbito...
— Meu Deus! continuou Gaillet, era verdade o que eu supunha?
— O que tem? perguntou o senhor de Logeryl surpreendido da visível
comoção do agente.
— Senhor, senhor, qual é o verdadeiro nome de Adriana de Lasseny?
— Este documento vai de certo dizê-lo.
O substituto pegou na última folha do maço.
Era uma certidão de nascimento, tirada numa das "mairies" de Paris
devidamente legalizada.
Armando deitou um olhar para o papel, e tomou de repente uma
expressão de terror.
— Oh! meu pobre pai, e murmurou, meu pobre pai!
— Tinha razão, não é verdade, senhor? tornou Daniel cujos soluços lhe
abafavam a voz, a falsa Adriana de Lasseny é filha de Clara Gaillet, minha
filha, e assassinada por Pedro Carnot?
— Sim, filha e cúmplice de Pedro Carnot, o assassino da Duquesa de
Chaslin.
O infeliz Gaillet levou as mãos à fronte com desespero.
— Pobre pai! repetiu o substituto.
— Não me lastime, senhor de Logeryl, disse o agente no fim de alguns
segundos, já chorei, está tudo acabado! A bastarda de Pedro Carnot não
passa para mim de uma estrangeira. Ordene-me que a vá prender e irei!
Quero ir até!
— Irá, prometi-lho... volveu o noivo de Helena com toda a simplicidade.
— Obrigado, senhor.
Os dois homens retiraram-se.

***

— Vou pois resgatar a minha falta, e viver em paz com a minha


consciência! murmurou o senhor de Logeryl que ficara só. Amanhã a
senhora de Chaslin será vingada!!
Juntou os papéis que acabava de ler, meteu-os da mesma forma que a
carta de Pedro Rédon e o frasco de grânulos, na sua pasta de magistrado, e
dirigiu-se para o palácio do arrabalde Saint-Honoré,
Helena estava ao pé do pai.
A razão do velho ia declinando de dia para dia.
Quase não reconhecia os filhos.
O rosto do substituto estava radiante.
Helena disse-lhe com vivacidade:
— Vejo nas suas feições uma expressão alegre de que tinham perdido o
hábito.
— É que sinto uma alegria extraordinária, minha bem amada Helena, e
vai partilhá-la comigo.
A jovem abanava a cabeça com um ar incrédulo.
— Oh! continuou o substituto, não duvide! Vamos poder vingar sua mãe,
e poder também restituir a esse ancião cobardemente caluniado toda a nossa
ternura e todo o nosso respeito...
— Armando, não compreendo, exclamou Helena ofegante, ou por outras
palavras, não me atrevo a acreditar o que as suas palavras parecem dizer.
Meu pai teria sido falsamente acusado?
— Sim.
— Tem disso a prova?
— Tenho e ei-la...
Armando apresentou à noiva o papel escrito por Branca, contendo o
rascunho da carta dirigida pelo Duque à mulher.
— Leia! disse.
Helena pegou com a mão trêmula na folha que lhe dava Armando, e
devorou-a com o olhar.
De repente desatou a soluçar, e caiu de joelhos diante do Duque, cujo
olhar se conservava velado e indiferente.
— Oh! meu pai, balbuciou ela beijando-lhe as mãos frias e cobrindo-lhas
de lágrimas ardentes, meu pai, perdoe-me o ter duvidado do senhor!
Esta voz comovida fez vibrar uma fibra no coração do velho. Nas trevas
da sua inteligência brilhou um passageiro clarão. Inclinou-se para Helena e
balbuciou:
— Que tens, minha filha? Perguntou, Choras?
— Sim, meu pai. Choro, e jamais me consolarei de ter sido culpada para
o senhor.
— Culpada, tu? Isso nunca.
— Perdoe-me, meu pai. Peço-lho em nome de minha mãe.
— Tua mãe... repetiu o Duque por duas vezes, tua mãe? Parecia querer
falar.
Helena e o noivo esperavam ansiosos.
O ancião não concluiu.
Os olhos tornaram-se-lhe fixos, e o lábio pendeu-lhe novamente.
Acabara de se apagar o passageiro clarão.
— Infelizmente! murmurou o substituto, o pensamento adormeceu para
sempre!
— Que importa? replicou a menina de Chaslin. Meu pai será testemunha
como nós do castigo da culpada. Verá cair a máscara, e ta! vez então o seu
pensamento desperte, talvez compreenda.
— Em todo o caso, talvez se faça amanhã justiça. Livraremos seu irmão
da vergonha de uma aliança monstruosa. Deus queira que ele nos perdoe.
— Há de perdoar-nos, tenho a certeza disso, Armando. Rogério é um
grande coração, uma alma nobre... Nele o desprezo matará o amor...
Havemos de captar todo o seu reconhecimento, porque teremos salvo a
honra da família!

CLXIV - O INESPERADO

Rogério de Chaslin desprezando a opinião da sociedade, calcando a pés


as mais simples conveniências, não se importando com os conselhos de
Armando, as lágrimas e as súplicas de Helena, resolvera apressar o seu
casamento com a menina de Lasseny e a razão decadente do velho Duque
não lhe permitia recusar um simulacro de consentimento.
Para assim proceder, era preciso que Rogério estivesse doido.
Estava-o com efeito, doido de amor!
No dia que se seguiu àquele em que o senhor de Logeryl recebera as
declarações do Pedro Rédon, que ele julgava em New York, devia assinar-se
o contrato de casamento de Rogério e da falsa Adriana no palacete do
boulevard Flandrin, onde Branca se recolhera, e onde vivia como reclusa,
não recebendo ninguém com exceção do seu noivo.
Esperavam o tabelião às oito horas da noite. Rogério chegou um pouco
antes das sete e meia. Num tom apaixonado disse à jovem:
— Querida Adriana, damos hoje o nosso primeiro passo para a ventura.
Dentro de um bem pequeno número de dias será Duquesa de Chaslin. Dá-se
por feliz, não é verdade?
— Sim, meu amigo... murmurou a falsa Adriana com uma voz
melancólica.
Ao mesmo tempo a fronte avincava-se-lhe.
— Que tem? perguntou Rogério com vivacidade. Como está sombria!
Dir-se-á que a assusta a idéia de me pertencer em breve.
— Não pode imaginar semelhante coisa! exclamou Branca fitando o
noivo.
— Por que essa tristeza, então? por que essa expressão de pesar?
— Custa-me ser sua mulher contra a vontade de sua família... Custa-me
ser tratada pelos seus como uma estranha, como uma inimiga... Custa-me,
finalmente, vê-lo aqui só esta noite, no momento em que se vai realizar o
primeiro ato da nossa união próxima. Parece-me isto de mau agouro... tenho
medo...
— Medo! repetiu Rogério, supersticiosa?
— Não, não, bem sabe; mas parece-me que alguma coisa ameaça a nossa
felicidade...
— Alude a esse homem, a esse Pedro Rédon?
— Não... não... replicou Branca, estremecendo à lembrança evocada pelo
seu noivo. Sei que poderia ele contra mim, visto que tenho Rogério a meu
lado, e me pode defender?...
— E ter-me-á sempre! Afugente pois depressa todos esses pensamentos
sombrios, e não pense senão em mim, porque eu não penso senão em você.
A chegada do tabelião interrompeu a conversa.
Rogério foi receber este sujeito à porta da sala, e conduziu-o a uma
pequena mesa sobre a qual se devia colocar o contrato entre dois
candelabros.
— Eis-me chegada ao momento da vida com que eu sonhava, disse
Branca consigo. Vou desposar o homem a quem amo, possuir uma grande
fortuna, e obter um grande nome! Entre mim e o future, a que aspiro, já não
existe obstáculo. Desafio a fatalidade.
O tabelião veio cumprimentar a sua graciosa cliente, que o acolheu
sorrindo, e trocou com ele algumas palavras.
Depois foi sentar-se, e ia principiar a sua leitura quando a criada de
quarto, abrindo repentinamente a porta, anunciou:
— O senhor Duque de Chaslin.
Rogério fez-se pálido.
Adriana fez um movimento de terror.
O próprio tabelião, muito ao fato da situação, pareceu estupefato.
A criada de quarto continuou:
— A menina Helena Chaslin... O senhor Armando de Logeryl
Efetivamente aparecia o Duque, amparado de um lado pela filha, e do outro,
pelo sobrinho.
Receando um escândalo, Rogério correu para a irmã.
— Helena, perguntou, que significa isto?
A jovem respondeu então com uma voz serena, firme e alta:
— Nada que o deva inquietar, meu irmão... A assinatura do seu contrato
de casamento é um ato solene, e é dever dos parentes mais próximos assistir
a esse ato. Esqueça o passado, meu irmão, como nós mesmos o esquecemos.
Falo tanto por si, como pela menina de Lasseny.
— Oh! minha irmã, oh! meu pai! exclamou o mancebo, cuja surpresa era
substituída pela alegria, quão feliz me torna!
Branca, ao ouvir as palavras de Helena, recuperara todo o seu sangue
frio e firmeza.
Dirigindo-se à sua futura cunhada, disse-lhe:
— Creia, minha senhora, na minha profunda gratidão. Helena, olhando
bem fito para ela, replicou:
— Não tem que ser grata. Ofendi-a mais de uma vez, menina de
Lasseny.
— Não me lembro disso, volveu Branca com um sorriso.
— Caluniei-a...
— Não me lembro.
— Fui cruel consigo. Por terceira vez repetiu:
— Não me lembro.
— Lembro-me eu! tornou Helena, e peço-lhe perdão.
— Oh! menina!
— Peço-lhe perdão, e de hoje em diante serei para a senhora o que devia
sempre ter sido. Agora, meu irmão, esperamos a leitura do contrato. E eu, o
senhor de Logeryl e meu pai, dar-lhe-emos as nossas assinaturas.
O Duque, com o olhar velado, e sem expressão, olhava em roda de si
sem compreender o que se passava, e quando dirigiu a vista para a falsa
Adriana, pareceu não a reconhecer.

***

O tabelião saudou com o gesto o auditório, tossiu levemente para


desimpedir a voz, e pôs-se a decifrar o documento oficial redigido por ele.
O contrato estipulava o regimem de bens comuns.
Rogério trazia a fortuna que lhe vinha da mãe.
O dote de Branca era constituído pelos quinhentos mil francos, cuja
origem conhecemos.
Terminada a leitura. Rogério foi o primeiro a assinar, depois passou a
pena a Branca, que assinou com mão firme: Adriana de Lasseny.
O senhor de. Logeryl só esperava por aquele momento.
— Em nome da lei, disse ele pondo a mão sobre o documento, apreendo
este contrato.
Branca cambaleou.
— Que significa isto? exclamou Rogério fremente.
O magistrado replicou:
— Significa que esta senhora assinando este documento com um nome
que não é seu. acaba de cometer uma falsificação cuja prova guardo.
— Uma falsificação! repetiu Rogério fazendo-se pálido. Ah! cale-se,
Armando!
— Aqui não sou Armando de Logeryl, replicou o substituto, sou um
magistrado. Represento a lei. perante a qual tudo se deve inclinar. Esta
mulher não se chama Adriana de Lasseny, mas Branca Gaillet, é filha natural
de Pedro Carnot e de Clara Gaillet, assassinada pelo amante.
Rogério interrompeu com extraordinária violência:
— Isso é uma infame calúnia!
— Belo contrário, está provado, é indiscutível... A filha única do conde
de Lasseny morreu na Inglaterra. Aqui está a sua. certidão de óbito. Branca
Gaillet existe. Eis a sua certidão de nascimento, e era a senhora que se
comprometia a dar três milhões no dia em que entrasse na posse da fortuna
do Duque de Chaslin, a quem tinha de seduzir primeiro, e depois tornar
viúvo, para ser sua mulher! Eis uma das peças da correspondência que a
senhora trocava com Pedro Rédon, e que é esmagadora para si... Eis
finalmente os grânulos com que envenenava a Duquesa de Chaslin. Não
acha isto completo!
— Adriana, responda! bradou Rogério. Não ouve que a acusam de ter
envenenado minha mãe? Responda, Responda!
— De que serve responder? murmurou Branca, estou perdida...
Rogério ocultou nas mãos o rosto lívido, e caiu aniquilado numa cadeira.
O senhor de Logeryl disse então:
— Branca Gaillet, prendo-a em nome da lei.
Naquele momento entrava na sala um homem pálido de morte, mas
aparentemente sossegado, aquele homem era Daniel Gaillet.
Aproximou-se de Branca, e pôs-lhe a mão no ombro, como para tomar
posse da sua pessoa em nome da lei e da justiça.
Branca voltou-se e compreendeu.
Com um movimento inesperado, agarrou no frasco quase cheio de
grânulos venenosos, levou-o aos lábios e engoliu o conteúdo.
Em seguida disse ao agente da segurança:
— Eis-me pronta a segui-lo...
Levantou-se, deu um passo à frente, e soltando um grito abafado, caiu
sobre o tapete.
Morrera de um modo fulminante.

***

Sta-Pi passara na véspera algumas horas, em segredo, no palácio da Rua


Francisco I, em meio dos três entes por ele reunidos, e que o abençoavam.
Lucilia apesar de prostrada por tantos abalos e sofrimentos, readquiria as
forças a olhos vistos, e a cega enternecia-se perante o futuro de felicidade
que esperava a sobrinha.
Mas essa felicidade não se podia dar como segura, enquanto os inimigos
do Príncipe se conservassem de pé e no caso de poderem prejudicar.
Picolet dissera:
— Amanhã terá desaparecido todo o perigo.
E nem Lucilia. nem Heitor, nem a septuagenária duvidavam da palavra
de Sta-Pi.
No dia seguinte, logo ao romper do dia, o ex-empregado de Malpertuis
dirigira-se a casa de Daniel Gaillet.
O inspetor estava mais triste e mais sombrio que de costume.
Nas pálpebras avermelhadas viam-se-lhe vestígios de lágrimas recentes.
Picolet compreendera que na véspera se devia ter passado alguma coisa
terrível, mas não lhe passava pela idéia o terrível fim da filha de Clara
Gaillet.
Interrogou.
Daniel soluçando respondeu:
— Não me fale mais nela. não me fale nunca! Morreu! Picolet deixou-o
chorar, sem tentar sequer dar-lhe quaisquer consolações banais.
Quando se desvaneceu um pouco a crise paternal. o inspetor lembrou-se
de que os seus deveres reclamavam a sua presença.
Por isso perguntou a Sta-Pi:
— Vem buscar-me?
— Não. O senhor deve acompanhar o senhor de Logeryl a casa do
Príncipe de Castel-Vivant. Eu só tenho que me ocupar de Genoveva Leinen.
— É verdade, disse Daniel com uma voz entrecortada. Já não sei onde
tenho a cabeça... esqueço tudo... Qual é o fim da sua vinda?
— As necessidades da sua profissão obrigam-no algumas vezes a
transformar-se, não é verdade?
— Muitas vezes até.
— Ponha à minha disposição, peço-lhe, um dos seus disfarces.
— Venha!
Daniel levou Sta-Pi ao seu quarto de dormir, onde ele próprio o ajudou a
disfarçar-se.
No fim de meia hora Picolet tornava a aparecer desconhecível.
Trazia o traje de um empregado subalterno da mairie, bonet
regulamentar, casaca azul com botões de metal, colete e calça da mesma cor.
Não trazia o rosto menos modificado que o traje. Genoveva Leinen, que
só uma vez o vira em companhia de Heitor, não poderia com certeza
reconhecê-lo.
— Até já, no palácio da Rua Francisco I, disse a Gaillet, apertando-lhe a
mão depois de lhe ter agradecido.

***

Depois dirigiu-se para os lados do boulevard Malesherbes; mas como era


muito cedo para se apresentar em casa da ex-amante do Príncipe, lembrou-se
de almoçar.
Entrou para esse fim numa taberna inglesa, mandou vir uma costeleta,
uma fatia de fiambre, um pedaço de queijo de Chester, uma garrafa de pale-
ale, almoçou muito descansadamente, e em seguida pôs-se a percorrer os
jornais.
Deparou com um jornal americano.
Sta-Pi entendia mal o inglês.
Houve uma notícia que lhe atraiu a atenção..
A tradução da notícia era como se segue:
"Uma fortuna considerável, cerca de doze milhões, que ficou disponível
por morte de um dos nossos respeitáveis compatriotas, acaba de passar para
a França.
"Edgard Sidney deixara em testamento tudo quanto possuía a uma
comediante francesa.
"Segundo informações obtidas, esta comediante morreu há alguns anos,
e a fortuna acaba de ser obtida pelo mandatário da filha, Lucília Gonthier."
— Mas espera lá, que significa isto? exclamou Sta-Pi quase em voz alta.
Lucília Gonthier mandou receber na América doze milhões por um
procurador! Que procurador? Esta agora é nova! A Toutinegra nunca me
disse palavra a respeito desta fortuna, e com a breca! valia a pena! doze
milhões!...
Sta-Pi era perspicaz.
Depois de refletir durante um instante, tornou:
— Eis-me talvez na pista de outro mistério! Não quereria o tal
procurador fazer desaparecer Lucília para conservar os doze milhões" E não
seria ele algum desses descobridores de heranças como Roch e Fumei, a
quem servi em outros tempos, ou como Malpertuis, a quem acabo de deixar?
"O patife fez algum famoso carapetão à pequena, e apoderou-se da
fortuna... Alto lá. meu amigo? Isso há de ser mais devagar. Ah! meu amigo
Sta-Pi. tenho na idéia de que viverás dentro em pouco das tuas rendas!
Depois de encontrar a jovem, encontrarás o dote. Doze milhões! uma
bagatela! Choraste no ventre de tua mãe, amigo Sta-Pi! Parece-me que o
Príncipe e a Princesa de Castel-Vivant poderão em grande cerimônia
oferecer-te uma casinha e um pedaço de terra, e com que comprares o
tempero para as couves da tua horta!

CLXV - UMA ARMADILHA

Picolet chamou o criado.


— Precisava deste jornal... disse mostrando a folha americana.
— Meu senhor, a casa não se pode privar dele.
— Aqui estão vinte francos para comprar outro. Dirá que desapareceu.
O criado meteu os vinte francos no bolso, e voltou as costas, enquanto
Sta-Pi metia na algibeira o número do New York Herald. O ex-empregado de
Sta-Pi olhou para o relógio.
— Já passa do meio dia, murmurou. Juiz deve chegar agora à Rua
Francisco I. É ocasião de ir a casa de Genoveva.
Pagou o almoço.
Saiu e dirigiu-se para a casa onde morava a amante de Fernando Volnay.
Havia dois dias que a rapariga estava de um insuportável humor. O seu
novo amante raras vezes vinha ao boulevard Malesherbes.
Quando ia caçá-lo à vila Montespan, respondiam-lhe que assistia ao
ensaio de uma peça nova, ou que andava em voltas urgentes.
Genoveva era terrivelmente ciumenta.
Como não podia desconfiar de que Fernando voltasse a casa da marquesa
de la Tour-du-Roy, debalde procurava qual era a outra mulher que lho
arrebatava.
Picolet tocou a campainha.
A criada veio abrir.
Tomou-o por um empregado de algum grande armazém.
— A menina Leinen? perguntou.
— É aqui, respondeu a criada. Traz alguma conta à senhora?
— Não, menina, venho simplesmente falar-lhe.
— Da parte de quem?
— Da parte do juiz de paz do bairro dos Campos-Elyseos. Tenha a
bondade de dizer à senhora que se trata de negócio urgente.
— Entre, senhor, vou prevenir minha ama.
Picolet sentou-se num banco da antecâmara.
A criada de quarto desapareceu no interior dos aposentos.
Genoveva acabava de almoçar.
— Senhora, disse a rapariga, está lá fora um homem que lhe vem falar da
parte do juiz de paz.
— Que juiz de paz? perguntou Genoveva carregando o sobrolho.
— O juiz do bairro dos Campos-Elyseos. A jovem soltou uma
exclamação de alegria.
— Depressa! depressa! mande entrar esse homem para o gabinete, disse
ela levantando-se.
Acrescentou mentalmente:
— Fossaro não perdeu tempo! Trata-se sem dúvida alguma da herança
do Príncipe.
A. idéia desta herança dissipou como por encanto o mau humor de
Genoveva.
Picolet foi introduzido.
A ex-amante de Heitor não o reconheceu sob o seu traje de contínuo e a
sua cara de empréstimo.
Perguntou-lhe:
— Vem da parte do juiz de paz do bairro dos Campos-Elyseos?
— Sim, senhora. O senhor de paz deseja falar-lhe quanto antes.
— Pode dizer-me sobre que?
— Segundo percebi, trata-se de uma herança que a senhora tem a
receber.
Genoveva fingiu-se admirada.
— Uma herança! Para mim?
— Sim, senhora. O senhor juiz de paz acha-se neste momento na Rua
Francisco I, no domicílio do falecido Príncipe de Castel-Vivant.
— Que foi lá fazer?
— Foi pôr os selos. Ora, certos papéis encontrados numa móvel, e outros
apresentados pelo testamenteiro do defunto, tornam indispensável a sua
presença no palácio, e é ali que a esperam o mais depressa possível.
— O senhor falou do testamenteiro, tornou Genoveva. Quem é ele?
Sabe?
— Ouvi proferir o nome do senhor Barão de Fossaro.
Um novo raio de alegria brilhou nas pupilas da cúmplice de César.
— O tempo indispensável para me vestir, senhor, disse, e já me ponho a
caminho.
— Tenho ordem de a acompanhar, senhora.
— Espere, pois, um momento por mim. Picolet inclinou-se.
Genoveva desapareceu e voltou no fim de pouco menos de dez minutos,
com uma toilette de luto pesado.
O cocheiro que nunca punha o trem antes das três horas, tinha saído para
os seus negócios particulares, mas a menina Leinen mandara buscar um trem
de praça.
— Se o senhor Fernando vier na minha ausência, disse ela à criada de
quarto, previna-o de que o espero para jantar.
Picolet esboçou um singular sorriso.
Genoveva subiu para o trem, e o ex-agente de Malpertuis instalou-se na
almofada.

***

O pseudo-tenente Raquin, de regresso das Épines-Blanches, e disfarçado


em moço de recados, fazia sentinela conscienciosamente nos arredores do
palácio da Rua Francisco I, esperando a chegada do juiz de paz.
Ao meio dia em ponto viu um trem parar diante do palácio.
O magistrado apeou-se, acompanhado do seu secretário, e dois escribas
adjuntos.
Raquin precipitou-se para o fim da rua. onde estacionava um coupé de
aluguel, puxado por um bom cavalo.
Raquin meteu-se no coupé, o qual rodou para a rua da Vitória.
O juiz de paz acaba de chegar, disse Raquin a Malpertuis.
O agente despediu o seu empregado, pôs em jogo o aparelho elétrico, e
servindo-se do telefone transmitiu estas palavras:
— Juiz de paz, Rua de Francisco I.
— Bem, respondeu a voz de Fossaro.
Malpertuis pôs tudo em ordem, e consultou o relógio. Em seguida
murmurou:
— É preciso estar às três horas na rua Murillo; tenho ainda duas horas e
meia à minha disposição.
Havia dois dias que depois das dez horas da manhã, o coupé do Barão
estacionava à sua porta.
César meteu na carteira alguns papéis já preparados, saiu do gabinete,
subiu para o trem, e deu ordem para o conduzirem à "mairie" do oitavo
bairro; o bandido ligava-se ao primeiro, e não queria um só momento dar
motivo a suspeitas.
Na "mairie" perguntou pelo juiz de paz, acrescentando que tinha que
falar com ele a propósito de um negócio urgente.
Responderam-lhe que o magistrado se achava no palácio do falecido
Príncipe de Castel-Vivant.
César observou:
— Mas eu vinha justamente falar ao senhor juiz de paz do testamento do
Príncipe.
— Então a sua presença é indispensável no palácio da Rua Francisco I, e
convido-o a apresentar-se ali imediatamente.
— Vou seguir o seu conselho, senhor.
Dez minutos depois, o Barão chegava a casa de Heitor. O criado de
quarto, de luto carregado e fisionomia triste, recebeu-o respeitosamente.
— Acabam de me dizer na "mairie" que o juiz de paz se achava nesta
casa, disse-lhe César.
— Sim, senhor Barão. Está procedendo ao inventário dos papéis do meu
querido e chorado amo.
— Queria anunciar-me. Tenho uma participação séria e urgente a fazer-
lhe.
— Bem, senhor Barão.
— Ao ouvir as palavras, o inventário dos papeis, Fossaro estremecera.
O juiz de paz devia ter encontrado o testamento a favor de Lucilia
Gonthier.
Ele César, tinha em seu poder o testamento que constituía Genoveva
Leinen legatária universal.
Este documento era datado da semana precedente ; demais, Lucília
Gonthier morrera ou desaparecera.
César seguiu o criado de quarto até à porta do gabinete de trabalho.
— Senhor juiz de paz, disse o criado abrindo a porta, o senhor Barão de
Fossaro que tem uma comunicação importante a fazer-lhe-pede-lhe que o
receba imediatamente.
O magistrado replicou:
— Mande entrar o senhor Barão de Fossaro. César entrou, fez um
cumprimento, e esperou. O juiz perguntou-lhe:
— Tem alguma coisa a dizer-me?
— Sim, respondeu César com uma grande serenidade exterior, apesar de
na palidez do rosto se notar uma profunda comoção.
— A que respeito? tornou o juiz.
— A respeito do falecido Príncipe Heitor.
— Ah!
— Eu estava ausente de Paris. Chegando esta manhã, soube da morte
trágica do mais caro, do melhor dos meus amigos.
O juiz de paz inclinou-se.
Fossaro prosseguiu:
— Possuidor de um testamento que ele confiara ao meu cuidado,
escrevendo há alguns dias uma carta tocante, na qual me nomeia seu
testamenteiro, e que eu terei a honra de lhe mostrar, julguei que era do meu
dever depor nas suas mãos as últimas vontades do Príncipe. Dirigi-me à
"mairie", onde esperava falar-lhe, e da "mairie" mandaram-me aqui.
— Não posso deixar de o aprovar senhor, redarguiu o juiz de paz, mas
nós já encontramos um testamento datado e assinado.
— Talvez o duplicado deste, replicou Fossaro. E deu ao juiz de paz um
maço selado com cinco sinetes, uma carta aberta e acrescentou.
— Esta carta, assim como acabo de ter a honra de lhe dizer.
acompanhava a remessa do testamento.

***

Assim que o juiz de paz se achou de posse da carta e do maço selado,


abriu-se uma porta e o Príncipe Totor apareceu, tendo Lucília à direita.
Armando de Logeryl à esquerda e atrás Daniel Gaillet e dois polícias.
Heitor exclamou:
— Mentiu, senhor de Fossaro, o senhor é um falsário e um assassino!
César soltou o rugido da fera caída no laço e quis fugir.
Mas a todas as portas apareceram policias de revólver em punho.
— Barão de Fossaro, disse o substituto, o senhor é acusado do crime de
falsificação e do de assassino. Quis fazer matar o Príncipe de Castel-Vivant
pelo cocheiro Jacques Sureau, nas Épines-Blanches.
Aniquilado, esmagado, César baixava a cabeça pela primeira vez na sua
vida.
— E eu, disse Lucília que não cessara de olhar para o celerado e de lhe
estudar as feições, eu acuso este homem de ter tentado assassinar-me no
chalet da ilha Basse.
— Ele, exclamaram ao mesmo tempo Heitor e Daniel Gaillet, ele!
— Sim. ele, cujo rosto ficou gravado na minha memória, e que apesar do
seu disfarce eu conheço muito bem. Juro-o. É ele o homem cego de um olho.
Daniel saltou para Fossaro. Com uma das mãos arrancou-lhe a cabeleira,
com a outra fez-lhe saltar fora da órbita o olho de vidro.
— Pedro Carnot! Pedro Rédon! disse ele num tom de feroz triunfo,
finalmente!
— E eis a sua cúmplice, amigo Daniel! acrescentou Picolet que acabava
de entrar empurrando diante de si Genoveva assustada.
— Reconhece-a, menina Lucília?
— É a mulher da ponte de Creteil, sim reconheço-a.
— É a proprietária do chalet da ilha Basse, continuou Sta-Pi, Fanny
Vernaut, a infanticida de Courbevoie, rusga completa!
— Ponha-lhe as algemas, ordenou o senhor de Logeryl.
— Senhor substituto, disse Picolet em voz baixa ao ouvido de Armando,
se tivesse a bondade de perguntar a Pedro Rédon, quem foi o mandatário
autorizado que acaba de receber doze milhões por conta da menina Lucília
Gonthier?
Fossaro ouvira.
Levantou a cabeça ao mesmo tempo que uma expressão de raiva
indizível lhe assomava ao rosto.
— Doze milhões! repetiram os circunstantes surpreendidos, e Lucília
estupefata.
— Sim, menina. Depois de a encontrar parece-me que lhe trago uma
fortunazinha bem boa? Doze milhões! Quando temos doze milhões,
escusamos de sofrer privações; leia, senhor substituto.
Picolet tirou da algibeira o New York Herald, desdobrou-o, e deu-o a
Armando, designando-lhe a notícia que apresentamos aos nossos leitores.
— Efetivamente, minha senhora, exclamou o magistrado depois de ler,
herda doze milhões.
— Não ignorava essa herança, senhor, volveu a Toutinegra, mas julgava-
a de trezentos mil francos o mais, e não falava nisso, para fazer uma surpresa
a Heitor no dia do nosso casamento.
— Nesse caso assinou uma procuração a um agente?
— Sim, senhor.
— Quem era ele?
— Malpertuis, na Rua da Vitória.
— Malpertuis, o meu antigo patrão! exclamou Estanislau Picolet com
voz esganiçada. Ah! que monstro!
— Vamos, murmurou Fossaro, está tudo por terra. Estamos
irremediavelmente perdidos!
Armando de Logeryl sentou-se à secretária do Príncipe, tirou da carteira
uma folha de papel meio coberta de linhas impressas e desiguais, preencheu
os espaços em branco e assinou.
Em seguida disse ao inspetor:
— Senhor Gaillet, aqui está uma ordem de prisão. Faça-se acompanhar
de dois polícias, proceda à prisão do senhor Malpertuis. Acompanhe-os ao
cárcere, e depois vá ter comigo ao tribunal.
Uma hora depois, Malpertuis era engaiolado ao mesmo tempo que
Fossaro e Genoveva Leinen, ou para melhor dizer, Fanny Vernaut.
CLXVI - CENAS FINAIS

O ex-procurador preparara tudo para o casamento in extremis da


Marquesa de la Tour-du-Roy e de Fernando Volnay.
Um dos dois adjuntos da "mairie" do bairro, tinha prometido dirigir-se às
três horas do palácio da rua de Murillo com o livro do estado civil, para
receber e registrar o sim dos esposos.
O tabelião de Malpertuis devia ali ir um quarto de hora antes e fazer
assinar contrato, o que apenas levaria alguns minutos.
O sócio do Barão de Fossaro recomendara a mais estrita exatidão às
testemunhas da sua escolha.
Além disso, ele tencionava assistir pessoalmente àquela união.
Fora fruto laborioso da sua atividade, e esperava dali grandes benefícios.
Já sabemos porém que ele contava ser o seu hóspede, ou por outras
palavras, sem a ordem de prisão, lançada contra ele por Armando de
Logeryl.
Lazarine declinava cada vez mais.
Bem longe de melhorar o seu estado, a alegria causava nela uma febre
violenta, de natureza a apressar o desenlace fatal.
A desgraçada lutava porém com todas as forças do seu corpo e do seu
coração, contra o mal que então a devorava.
Fernando passara duas noites numa poltrona perto do leito.
Ela olhava para ele, e ele falava-lhe; ora, olhando para ele e escutando-o,
Lazarine sentira-se consolada.
Na manhã daquele dia em que o casamento devia efetuar-se, o artista
mandou flores, e deu ordem para ornar o quarto da amante, como se fosse
um dia de festa.
Efetivamente, era festa para ele.
Não ia, com sacrifício de algumas horas apenas, de alguns dias, d muito
apanhar uma fortuna, e de escapar ao tirano do Malpertuis?
Como a senhora Marquesa de la Tour-du-Roy não se podia levantar, era
natural que o casamento se celebrasse naquele mesmo aposento.
Por volta da uma hora, Fernando calçou as luvas e pegou no chapéu.
Ta a casa. à vila Montespan, vestir o traje regulamentar de noivo.
— Dá-me um beijo antes de te ires embora, disse-lhe Lazarine com uma
voz fraca. E sobretudo recomendo-te que voltes depressa! Quando me
deixas, parece-me que é para sempre.
Fernando inclinou-se para o leito, e tocou com os lábios na única parte
intacta do rosto de Lazarine.
— Afugenta essas idéias tristes... volveu ele. Só o tempo de me vestir e
já volto.
A Marquesa agarrou-lhe na cabeça, beijou-o na fronte com uma
verdadeira fúria de paixão.
Depois, assim que se viu só, chamou pela criada de quarto e deu-lhe
ordem para preparar um penteador branco guarnecido de rendas, e ajudá-la a
vestir.
— Isso vai fatigar muito a senhora Marquesa, observou a jovem.
— Talvez me incomode um pouco, mas que me importa? Sou mais forte
que se julga. Apressa-te. filha.

***

No momento em que Fernando Volnay deixava Lazarine, um homem


moço ainda, acompanhado de uma criança muito interessante, apeava-se do
comboio na gare de Paris-Lyon-Mediterrâneo.
Chegavam ambos da Suíça.
Subiram para um trem.
— Aonde vamos? perguntou o cocheiro, depois de acomodar a bagagem,
aliás muito ligeira, dos viajantes.
— Rua Murillo, número.....
— Com o demo! a corrida é formidável!
— Tomo-o às horas.
O trem pôs-se a caminho.
O homem estava com o rosto sombrio, a criança com o rosto trave.
— Raul, perguntou o homem de súbito, lembras-te do que te disse, não é
verdade?
— Sim, meu pai.
— De tudo?
— De tudo.
— E tens a certeza de que não te faltará a coragem?
Por única resposta, a criança fez um gesto repassado de resolução viril.
O pai beijou-o ternamente.
Submergiu-se novamente no seu silêncio.
O trem não ia depressa.
As ruas estavam obstruídas por grandes porções de neve, de que os
parisienses hão de estar lembrados.
Davam duas horas no momento em que parou no lugar indicado.
O homem apeou-se do trem. fez apear o filho, e disse ao cocheiro:
— Espere-nos...
Depois encaminhou-se para a porta.
O coração batia-lhe com violência; a palidez do se\i rosto denunciava a
comoção que o dominava, mas tinha a mão firme.
Tocou a campainha.
Abriu-se uma das batentes do portão.
Pai e filho entraram no pátio.
Naquele momento a criada de quarto acabava de vestir à Marquesa o
penteador branco guarnecido de rendas.
— Estão a tocar, disse Lazarine, serão horas?
— Ainda não, minha senhora. Faltam cinqüenta minutos.
— Vá ver. Se forem testemunhas que vêm adiante, dê ordem para as
fazer entrar para a sala.

***

A criada de quarto desceu e achou-se em frente dos recém-chegados, que


um criado grave acabava de introduzir no vestíbulo.
— Que deseja, senhor? perguntou ela ao homem.
— Desejo falar à senhora Marquesa de la Tour-du-Roy.
— A senhora Marquesa está na cama e bem doente.
— Sei isso.
— O senhor é talvez alguma das testemunhas que devem assistir ao
casamento da senhora de Volnay?
O visitante estremeceu.
Uma súbita crispação transtornou-lhe as feições.
— A senhora de la Tour-du-Roy casa com Fernando Volnay? murmurou
com voz abafada.
— Sim, senhor. Às três horas em ponto, um dos adjuntos do senhor
"maire" há de chegar para comparecer à cerimônia.
— Trata-se então de algum casamento in extremis? exclamou o
desconhecido.
— Sim, senhor.
— Então a senhora Marquesa está condenada?
— Condenada, senhor, irrevogavelmente perdida.
— Razão de mais para que eu a veja sem demora. Queira dizer à senhora
Marquesa que desejo muito ser recebido por ela.
— O seu nome?
— O meu nome nada significa para ela...
— Então a senhora não o receberá com certeza.
— Diga-lhe que venho da parte de seu cunhado, o Conde de Gordes.

***

A criada de quarto conduziu o pai e o filho a uma pequena sala que fazia
parte dos aposentos de Lazarine, deixou-os sós e entrou no quarto de dormir.
— Foi Fernando que tocou? perguntou a Marquesa.
— Não, minha senhora. É um desconhecido.
— Um desconhecido!
— Sim, acompanhado de uma criança...
— Que quer?
— Falar com a senhora.
— O nome?
— Recusa dizê-lo, mas afirma que vem da parte do senhor de Gordes, o
cunhado da senhora.
— Oh! é que me traz notícias da minha irmã, da minha querida Joana,
que não me esqueceu... que pensa em mim... que me ama. apesar das minhas
loucuras... mande entrar esse visitante.
A jovem criada de quarto saiu, e voltou no fim de um minuto,
acompanhando o homem e o pequeno.
As cortinas das janelas tinham sido levantadas.
A luz penetrava em ondas no vasto aposento cheio de flores.
O rosto dos visitantes ficou perfeitamente iluminado.
Lazarine encostada às pilhas das almofadas que a sustentavam, dirigira
para os recém-chegados um dos olhos, cuja visão não estava completamente
extinta.
De repente apoderou-se dela um tremor convulso.
Estendeu as mãos para a frente, como para repelir algum objeto de
horror, e balbuciou:
— Não, não, é impossível, é um sonho.
O recém-chegado perguntou então:
— Segundo vejo reconhece-me!
— Marcel Laugier! exclamou a Marquesa expelindo um grito de susto.
A criada de quarto que se afastava, ouviu aquele grito e apressou-se a
voltar.
O ex-tenente de hussardos voltou-se para ela e disse-lhe com uma voz
tranqüila mais imperiosa:
— Ande... a senhora Marquesa bem sabe que não tem nada a recear de
mim.
Dominada pelo tom do seu interlocutor, e como o silêncio de Lazarine
apoiasse a afirmativa que acabava de ouvir, a criada baixou a cabeça e saiu.
À senhora de la Tour-du-Roy batiam-lhe os dentes.
— Marcelo Laugier! repetiu, o senhor aqui?
— Sim, aqui. Não me esperava?
— Oh! não! cale-se, retire-se. A sua presença mete-me medo A sua voz
faz-me mal.
— Contudo ficarei, e há de me escutar, não me calarei.
— Tenha piedade!
— E a senhora teve piedade de mim! Teve piedade do seu filho? Por que
eu hei de ter piedade da senhora?
Lazarine torceu os braços e balbuciou:
— Oh! é o castigo, é o castigo.
— O castigo! replicou Marcelo, foi a senhora que o infligiu a si própria!
Quis mal, o mal recaiu sobre si! Deus é justo! Castiga-a... Vai morrer, mas
eu não quis que partisse deste mundo sem me ter visto, sem ter tornado a ver
seu filho...
— Meu filho! repetiu Lazarine louca de terror, meu filho já não existe.
Marcelo estendeu a mão para Raul e respondeu:
— Ei-lo!...
— Vivo!
— Vivo para mim, não para a senhora! Não para a senhora que o julgava
morto, tendo ordenado e pago a sua morte.
— É horroroso o que me está a dizer!
— O que a senhora fez é ainda mais horroroso! O seu filho pereceu
assassinado pelas suas ordens, e a sua certidão de óbito põe-na de posse de
uma fortuna de que Deus não lhe permitirá gozar! O seu filho está sepultado
nos abismos de Léman, mas o filho de Marcel Laugier vive para Marcel
Laugier.
— Leve-o, leve-o! exclamou Lazarine cuja voz mal se ouvia, e cuja
febre ardente se agravava com começo de delírio. Leve-o! mete-me medo.
Fernando amo-te! Marcel odeio-te! Raul, Raul, meu filho.

***

Ao ouvir o seu nome, criança aproximou-se com vivacidade do leito da


Marquesa.
Lazarine estremecendo, repeliu-o com o gesto.
— Vai-te! bradou ela. Deus vinga-te, estou amaldiçoada.
A voz faltou-lhe.
Uma convulsão sacudiu-a e contorceu-lhe os membros.
Com os dedos contraídos arrancou as ligaduras que lhe serviam de
máscara, expondo à vista o horror do seu rosto. Ergueu meio corpo, soltou
um suspiro prolongado, e não se tornou mais a mexer.
Raul chorava.
Perante aquela morte horrível, Marcel curvara a cabeça. O pequeno
pegou-lhe na mão, ajoelhou-se, e obrigou-o por assim dizer a ajoelhar como
ele junto da cama fúnebre.
Ambos oraram em voz baixa.
Passados alguns segundos bateram de vagar à porta.
Marcel e o filho levantaram-se.
A criada de quarto abriu a porta.
Parou.
— Senhora Marquesa, disse, são horas...
Com um gesto imperioso o ex-tenente impôs-lhe silêncio e apontou-lhe
para o leito.
A rapariga compreendeu.
Com o rosto banhado de lágrimas, aproximou-se da ama, que já não
podia ouvi-la nem responder-lhe,e ajoelhou-se também.
O pai e o filho inclinaram-se diante do corpo imóvel daquela que fora
Lazarine de la Tour-du-Roy, e saíram do quarto.
Entraram na sala.

***

Estavam ali reunidos Fernando de Volnay com traje de noivo casaca


preta, gravata branca, e luvas brancas; o tabelião com a sua pasta de
marroquim; o adjunto do "maire", trazendo a faixa oficial por baixo do
paletó; o secretário da "mairie", munido de um volumoso registro, e as
testemunhas, e pessoas sem importância.
Faltava Malpertuis.
Já se sabe a razão.
Marcel aproximou-se do oficial civil, facilmente reconhecível pela franja
de ouro da facha que saía para fora do paletó.
Cumprimentou-o e perguntou-lhe:
— O senhor vem aqui celebrar um casamento in extremis?
— Sim, senhor.
— É muito tarde.
— Muito tarde? repetiu o adjunto.
O comediante tremeu pelos milhões que o seu Éden Teatro exigia
imperiosamente.
— Muito tarde? exclamou ele também.
Marcello Laugier respondeu gravemente:
— A senhora de la Tour-du-Roy morreu neste instante.
Os dois personagens oficiais murmuraram algumas dessas frases banais,
vulgarmente chamadas clichês, e retiraram-se em companhia das
testemunhas.
O ator ficou só no meio da sala, com uma cara de quem tinha apanhado
uma sova.
Desvanecera-se o seu sonho.
Então Marcel chegou-se e tocou-lhe no ombro, perguntando-lhe:
— O senhor é que se chama Fernando Volnay?
— Sim, senhor.
— A senhora de la Tour-du-Roy ia casar com o senhor... Foi uma
fortuna para ela o morrer... Saia, senhor!
Fernando teve uns vagos desejos de se revoltar contra a expulsão.
Porém Marcel falara com um tom que não admitia resposta.
O comediante encolheu os ombros para se dar uns ares, pegou no chapéu
e saiu.
No dia seguinte só um homem e uma criança seguiam o préstito fúnebre
de Lazarine.
Eram Marcel e seu filho.
O Conde e a Condessa de Gordes não tinham sido avisados, e Júlio
Leroux, o melhor dos pais, foliava em Mônaco com uma formosa
pequerrucha.

***

Pouco depois o tribunal do departamento do Sena, condenava Pedro


Carnot à morte; Fanny Vernaut, ou por outra Genoveva Leinen, a reclusão
perpétua, e Malpertuis a trabalhos públicos.
Lucilia Gonthier, empossada da fortuna legada à mãe pelo americano
Sidney, tornou-se Princesa de Castel-Vivant.
Os dois jovens possuem vinte cinco a trinta milhões, sem contar os poços
de petróleo; uma bonita conta, mas que lhes importa?
Para eles, o Ouro e o Amor, não eram demônios, eram deuses!
Sta-Pi, promovido às honrosas funções de intendente, administra-lhes a
grande fortuna como homem hábil e honrado.
A tia cega é feliz.
Daniel Gaillet pediu a sua demissão, e vive, ou antes vegeta na
província.
O Duque Henrique de Chaslin finou-se num estado de absoluto
idiotismo, poucos dias depois do casamento de sua filha Helena com
Armando de Logeryl.
Mariana Gilberto (será preciso dizê-lo?) voltou ao palácio de Chaslin, e
não tornara a sair de lá.
Rogério não se consola da perda do seu ídolo.
Continua a amar a falsa Adriana, ama-a mais que nunca... Aquele amor
insensato por uma morta, torná-lo-á louco.
Fernando Volnay continua a acumular as boas fortunas de ator vitoriado,
e de bonito rapaz, sem escrúpulos.
No teatro aplaudem-no todas as noites; cá fora vaporiza a enorme fortuna
de uma pessoa de idade madura, viúva de um fabricante, e muito vaidosa,
por suceder nas boas graças do artista à Marquesa dela Tour-du-Roy.
Nas Épines-Blanches, no dia seguinte ao do fatal acontecimento,
passava-se uma cena comovente.
Maria de Vergis, de luto carregado, chorava sentada num sofá.
No colo tinha uma criança.
Junto dela achava-se Arnoldo de Trois-Monts em traje de viagem.
No rosto tinha impressa uma tristeza profunda e grave.
Em frente destes dois personagens achava-se a ama.
— Assim é preciso, Maria, dizia Arnoldo. A sorte dessa criança exige-o.
— Mas meu Deus, meu Deus! Quão cruelmente castigais a minha falta.
— Deus castiga, mas ao mesmo tempo inspira a necessária resignação e
paciência para o suportar, volveu Arnoldo. Expiemos as nossas culpas, e
depois poderemos gozar a tranqüilidade e a paz da consciência.
Maria de Vergis estreitou com frenesi a criança contra o peito.
— Não sejas inexorável, Arnoldo.
— É indispensável, tornou este com o seu ar grave. Salvemos o teu
crédito, salvemos o nome futuro desta criança. Ninguém deve saber que ela
nasceu em tão vergonhosas condições.
— Mas quem adivinharia o que se passou aqui?
— Oh! saber-se-ia! Não deves esquecer o ruído que este acontecimento
terá produzido.
— E para onde levas o fruto do nosso amor?
— Na Bretanha vive uma tia minha que me adora loucamente...
— E depois?
— Levá-la-ei para sua casa. Contar-lhe-ei tudo. Será amada como pela
sua própria mãe. Crescerá e desenvolver-se-á naquele clima fortificante,
naquele meio salutar para a alma e para o corpo, e quando tornarmos a ver
nosso filho, será já com o ânimo despreocupado de tristezas e de apreensões
sociais.
— Mas quando sucederá isso? perguntou Maria de Vergis, erguendo os
olhos quase enxutos para o amante.
— Bastará que decorra um ano.
— Mas que devo fazer até lá?
— Voltarás para Paris quanto antes. Eu só mais tarde apareço.
— Só mais tarde! volveu Maria de Vergis com mágoa.
— Sim. só mais tarde. Tornarei a freqüentar a tua casa muito
naturalmente, na minha qualidade de antigo amigo do dono da casa. Depois
far-te-ei a corte...
— Simples comédia...
— Mas necessária, observou Arnoldo. A uma corte assídua e respeitosa,
seguir-se-á, o que é natural, o que sucede tantas vezes, um casamento.
Arnoldo de Trois Monts, antigo amigo do Conde de Vergis, no seu regresso
de longa ausência da Bretanha, ter-se-á apaixonado pela Condessa de Vergis
e terá casado com ela.
— E esta criancinha, já se sabe, irá para a nossa companhia?
— Não.
— Não! retorquiu Maria de Vergis com espanto.
— Não, porque iremos ter com ela.
— E na Bretanha, como interpretarão estes fatos?
— De uma maneira muito simples e natural. Considerar-nos-ão o que
realmente somos, dois indivíduos casados, com um filho. Não sabendo a
época em que nós casamos, julgarão que é filha de matrimônio.
— Como é porém possível ignorarem a época em que nos casamos?
— Porque não faremos ruído com o nosso consórcio. Não casaremos
como nobres, mas simplesmente como pessoas que se amam e não se
importam com o mundo.
— Faze o que quiseres, Arnoldo, porque tudo será bem feito.
— Então, adeus, querida Maria, resignação e paciência.
— Sim, resignação e paciência; que isto sirva de expiação às minhas
faltas.
— Às nossas faltas, dize antes. Ambos pecamos, ambos devemos ser
castigados.
Os dois amantes caíram nos braços um do outro.
Foi dolorosa a separação.
A Condessa dificilmente desprendeu a criança dos braços.
Passados momentos, Arnoldo, a ama, e a criança, achavam-se
confortavelmente instalados numa caleça de viagem.
Dali a um ano, pouco mais ou menos, outra caleça partia para a
Bretanha.
Mas desta vez só levava dois viajantes, Arnoldo e Maria de Vergis.
Cumprira-se à risca o programa de Arnoldo.
Maria fora encontrar uma criança esbelta e sadia, filha de uns amores,
cuja índole pecaminosa, fora expiada por muitas lágrimas e muitos remorsos.
Quando muito mais tarde voltaram para Paris, ninguém investigou a
história v a época do nascimento daquela criança.
A grande cidade é um labirinto onde se perde o vestígio de muitos
acontecimentos e de muitas faltas.
Fim da segunda parte
I - OS FANTOCHES

Voltemos ao alto da torre, donde o Diabo, de óculo em punhos,


costumava contemplar a longa série de dramas que acabamos de desenrolar
aos olhos do nosso leitor.
— Então, senhor, perguntou-lhe Eloa, que diz da minha invenção ou da
minha lembrança?
— Famosa, esplêndida, respondeu o Diabo.
— Durante todo este tempo tem-lhe apetecido voltar à terra, para
contratar atores que representem no seu teatro?
Satanás olhou desconfiado para Eloa.
Seriam aquelas palavras mais uma alusão ao caso malfadado de
Rosalinda?
Não obstante, apressou-se a responder:
— Não tenho tido apetite de ir a inferno pior do que este onde impero.
Acho os nossos domínios um céu, comparados com a terra.
— Pois para o inferno hão de vir parar os indivíduos que o divertiram.
— Tem razão, Eloa. Lazarine, a famosa, a diabólica Lazarine, já cá há de
estar a estas horas, devendo dentro em pouco ser seguida de mais alguém.
E Satanás acrescentou no seu intimo:
— Só Lazarine é que me interessa. Um demônio desta ordem é digno do
próprio demônio.
Como se vê, Satanás, não estava emendado.
O seu entusiasmo pelo belo sexo terrestre, não esfriava.
— Bem, meu Príncipe, disse Eloa, voltemos a descansar; se lhe
aprouver, mais uma vez, tornarei a encomendar nova coleção de fantoches, e
volveremos ao alto desta torre.
— Sim, minha Eloa adorada, voltarei muitas e muitas vezes, tantas
quantas quiser. Não há nada que recreie tanto o diabo, como o espetáculo das
torpezas dessas criaturas a que lá embaixo chamam o gênero humano. É uma
comédia divertidíssima.
— Tão divertida, que os próprios sujeitos que figuram nela se hão de rir
e recrear por se verem retratados a si próprios. Xavier de Montépin, por
exemplo, escreverá uma obra, muito estimada, cujo assunto não será outro,
senão o que acabamos de presenciar do alto desta torre.
— Folgo muito com isso, e para os escritores franceses terem matéria
para os seus livros de sensação, escusam de se cansar, basta que peçam à
minha Eloa que atire novo fornecimento de fantoches por esse mundo fora.
— Se o meu marido e senhor o ordenar, eu obedecerei.
— Eu é que obedeço, adorada Eloa, retorquiu o Diabo todo amável e
cheio de doçura.

***

O velhaco, como se costuma dizer nas regiões terrestres, já a tinha


fisgada.
Eloa não cabia em si de contente.
Julgava ter completamente avassalado o Diabo com a lembrança que lhe
fora inspirada por Flor de Enxofre.
Satanás, por uma hipócrita formalidade, tornou a assestar o óculo em
direção ao globo terrestre.
Fez um gesto de surpresa e curiosidade.
— Veja. veja, Eloa.
— O que é? perguntou ela, sorrindo complacentemente ante a
curiosidade aparentemente pueril do velhaco do marido.
— Numa praça de Paris apinha-se o povaréu. Ao meio da praça ergue-se
um cadafalso vermelho. Aparece um pobre diabo em cima do cadafalso. Lá
o agarram. Zás, lá cai estatelado. Brilha como um relâmpago uma espécie de
meia lua. Pronto, ficou sem cabeça. Sabe quem era?
— Imagino, respondeu Eloa.
— O famoso Barão de Fossai o, Pedro Carnot ou Pedro Rédon.
— A justiça da terra cumpriu o seu dever. Não tarda que o tenhamos por
cá.
— Má peça! exclamou Satanás com um gesto de enfado. Hei de o
mandar torrar nas grelhas, ou guisar a fogo lento em caldo de betume
derretido.
— A justiça de vossa majestade seja cumprida, disse Eloa, sem grande
entusiasmo.
— Espera, lá! outra novidade.
— Que mais temos? perguntou Eloa encantada por ver que o esposo
cada vez mostrava mais gosto pelo espetáculo inventado por ela.
— Num palácio da rua de Francisco I, há uma grande festa. Celebram-se
os anos de Lucilia Gonthier. Banquete opíparo, iguarias irresistíveis, vinhos
de primeira classe. Todos comem e bebem a mais não poder. Um
personagem de grande estima na casa bebe desesperadamente champanhe
gelado. Vacila, não se tem nas pernas. De súbito, berra como um possesso: já
não preciso de dinheiro, já não preciso de Roch e Fumel! e cai para o lado.
Grande balburdia. Sta-Pi teve uma congestão! gritam de todos os lados.
Arrebentou de farto! murmuram os maliciosos.
— Pobre sujeito! murmurou Eloa. Esse não vem para o inferno.
— Quem sabe! proferiu o diabo com uma voz grave. Ri de si para si:
— Aquela agência. Roch e Fumel comprometeu-o sofrivelmente. Deixou
de ser uma alma impoluta. Em todo o caso poupá-lo-emos. É um homem
sagaz, e ando desconfiado de Flor de Enxofre...
O diabo passou o óculo para as mãos do mágico, que o recebeu
respeitoso, e senhor de si, como mágico de merecimento que era.
Em seguida convidou o Diabo a descer adiante dele a comprida escada
de caracol.
A diabinha teve suas razões para se deixar ficar para trás.
O Diabo tomou a dianteira.
Eloa arregaçou-se coquetemente.
Na primeira volta Lúcifer olhou para trás.
Não se arrependeu de ter sido o primeiro a descer.
Uma meia rubra e finíssima ajustando sobre contornos suaves e
deliciosos, um sapato de cetim branco,estreito e pequeno, de alto tacão
petulante, encerrando um pé arqueado e breve, precioso como a jóia no seu
estojo, constituíam um espetáculo que Satanás achou tanto ou mais
interessante que o dos fantoches do alto da torre.
A descida foi por isso demorada, e só tarde os dois diabólicos esposos
chegaram aos seus aposentos.

II - O CONFIDENTE

Sua majestade acompanhou a esposa até à porta do quarto dela. Não


entrou.
Cingiu amorosamente a franzina cintura de Eloa, e deu-lhe um beijo na
face acetinada.
— Até já, disse.
— Aonde vai? perguntou-lhe madame diabo ternamente.
— Vou mudar de toilette. Bem vê em que estado me põe aquela maldita
torre velha, — arqueológica, como se diz na terra, — todas as vezes que lá
vou acima.
— E depois?
— Depois voltarei para ao pé de si, tomaremos juntos o chá.
— Bem, não me esquecerei do rum. Sei que gosta de rum no chá, como
se usa em França. Não esqueço que tem decidido gosto por tudo quanto é
francês.
O diabo teve novo sobressalto.
— Eloa continuará desconfiada? Dava o meu reino, não por um cavalo,
mas por saber quem é que me intrigou com a rainha, quando foi aquela
aventura de Rosalinda.
Não obstante, Satanás disfarçou.
— Fará muito bem, Eloa; o rum deitado por suas mãos deve saber-me
muito melhor. Até já.
Novo ósculo, mas desta vez galantemente deposto na pequenina mão de
Eloa, foi o sinal de uma despedida definitiva.
Satanás encaminhou-se para o seu quarto.
Esperava-o ali o seu criado de confiança, Tibério.
Tibério curvou-se respeitosamente, com um grande ar solene, próprio de
criado de boa casa, e seguiu o amo.
Satanás entrou no guarda-roupa.
Havia ali trajes de todas as épocas e de todos os países.
Porque é de saber que no inferno não se segue uma só moda, seguem-se
diversíssimas.
Assim como em todos os países se imita a moda decretada pela França,
no inferno copiam-se com a mais caprichosa seleção as modas que na terra
se usam e se tem usado.
Por isso, umas vezes o rei dos infernos veste os trajes -elegantíssimos e
brilhantes do século XVIII, outras vezes os fatos mais sombrios, mais
sensaborões, porém mais cômodos do século atual.
E não se admire o leitor se lhe dissermos que por vezes o diabo tem
vestido os graves trajes talares dos romanos, e muitas tem seguido os
costumes ligeiros, e ate negativos, de recônditas regiões selvagens do orbe
terrestre.
E é neste traje que na Terra malevolamente o tem retratado os pintores
da Idade Média, e tem descrito os padres nos seus sermões e pastorais, e os
empresários de mágicas o tem apresentado nos palcos e tablados de teatros
populares.
Pura maldade inútil de que o Diabo depois lhes toma contas quando os
apanha no inferno, e que dá em resultado ser ele apresentado sob o seu
aspecto mais desfavorável, isto é, com a sua cor de azarcão, os seus pés de
bode, e a sua cauda repelente.
Desta vez ainda, o traje proferido foi o do século passado.
Era sob essas vestes garridas e multicores, que o Diabo se sentia mais
amoroso, mais petulante, mais estróina, e em que melhor disfarçava o seu
cheiro o enxofre com os perfumes de Pivert e de Lubin derramados
profusamente sobre as sedas, os veludos e as rendas com que se ataviava.
— Que novidades temos, imperador dos tempos que já lá vão? perguntou
o Diabo num tom levemente irônico no momento em que Tibério lhe
compunha os bofes da camisa.
— Pouco mais ou menos o costume, meu irresistível senhor, respondeu
Tibério num tom que atrevidamente afinava com o do Diabo, muitas almas
depravadas, criminosas, e sobretudo reles, a que se deu o devido destino.
— Quer dizer que a Terra cada vez está mais baixa. Acabou a época dos
Borgias, dos Torquemadas, das Lucrécias, dos criminosos de encherem o
olho.
— Tem vossa majestade muita razão no que diz. Às vezes, porém,
aparece alguma exceção. Hoje, por exemplo...
— Que exceção houve hoje, dize lá.
— Uma mulher dos diabos, com perdão de vossa majestade. — nada
menos que uma mãe que mandou matar o filho...
— Ah! disse o diabo recordando-se.
Tibério notou certo alvoroço de bom agouro no rosto do Satanás.
— Olá! disse ele consigo, o maganão já farejo um bom bocado que hoje
recebemos. — Mulher notável, continuou em voz alta. Uma beleza de
arregalar o olho! Vinha muito desfigurada, mas segundo as ordens de vossa
majestade com relação ao belo sexo, restituiu-se-lhe a beleza primitiva.
Repito, é um famoso bocado, é um bocado digno de um rei.
E Tibério olhou para Satanás.
— Havemos de ver isso, tornou o rei.
— Já?
— Não acho prudente.
— É imprudentíssimo, acrescentou Tibério com um tom grave que muito
surpreendeu o Diabo.
— Explica-te, Tibério. Que queres dizer?
— Vossa majestade permite uma confidencia?
— Fala.
Tibério foi cautelosamente verificar se os escutavam. Depois de um
exame escrupuloso nas salas próximas, Tibério voltou para junto do amo.
— Vossa majestade é espiado!
— Que me dizes?
— A verdade.
— É singular!
— Vossa majestade lembra-se de Rosalinda?
— Se me lembro! respondeu o diabo com um ar garoto. Há coisas que
não esquecem. Infelizmente não logrei o que desejava.
— Por culpa de quem, senhor?
Satanás teve um calafrio.
— Não me fales nisso, retorquiu. Há casos que podem mais que as leis,
costuma-se dizer. Foi uma coisa mais forte que eu.
— Bem, senhor, não me alargarei em reflexões, mas ouvi alguma coisa
que não posso calar.
— Sim, disseste que me espiam; que motivos tens para avançar
semelhante asserção?
— Surpreendi algumas palavras trocadas entre as damas da rainha que
me fizeram desconfiar.
— Que palavras foram?
— Aspásia e Ninon Lenclos estavam esta manhã a cochichar na
antecâmara de vossa esposa e diziam...
Tibério hesitou.
— Fala, que receias?
— Receio que vossa majestade se escandalize.
— Por que, o que elas diziam ofende-me?
— Conforme a disposição com que vossa majestade receber certo gênero
de confidencias.
— Estás-me impacientando deveras. Fala, já te disse, senão mando-te dar
um mergulho no rio de pez derretido para te espertar a língua.
Tibério não queria outra coisa senão que lhe puxassem pela fala.
Se hesitava era por simples formalidade.
— Senhor, são desnecessários tamanhos rigores. O meu dever é
obedecer a quem pertence mandar. Nos meus tempos de imperador era essa a
lei que se mantinha nos seus estados. Ninon e Aspásia diziam que Flor de
Enxofre, estava muito nas graças de vossa esposa...
— Isso para mim é velho. Eloa sempre gostou desse endiabrado. Não
vejo nisso coisa de espantar.
— Espere vossa majestade. Ninon e Aspásia disseram mais que Flor de
Enxofre prestara à sua senhora um serviço importante por ocasião das
últimas estroinices de vossa majestade em Paris.
— Um serviço importante! Mas que serviço poderá ter sido?
— Do que ouvi depreendo que Flor de Enxofre transtornou ou queria
transtornar os amores de vossa majestade.
— Mas como?
— Isso é o que eu ignoro.
— Estou deveras intrigado! exclamou o Diabo principiando irritado a
tocar um repique no sobrado com os seus tacões vermelhos. Dar-se-á caso de
que Eloa me ande a vender? Raios do inferno! exclamou Satanás, se tivesse
a certeza... ia tudo comigo mesmo, quero dizer, ia tudo com o demônio.
E dos olhos de Satanás principiavam a sair pequeninas faíscas.
Uma das faíscas até saltou para um olho de Tibério, que se afastou
precipitadamente levando um lenço aos olhos que lhe choravam a bom
chorar.
— Safa! disse Tibério consigo. Já está em ponto. Basta. Preciso de deitar
água na fervura. Falemos-lhe do que ele gosta.
E em voz alta, disse:
— Que ordena vossa majestade com relação à beldade recém-chegada?
— Quem?
— Refiro-me à Marquesa de la Tour-du-Roy.
— Uma formosura esplêndida, uma mulher de truz! O que se costuma
ordenar com respeito a mulheres assim. Ficará pertencendo ao serviço da
câmara de sua majestade...
— Sua majestade?... interrogou Tibério.
Havia no seu tom um ressaibo de malícia.
— De sua majestade a rainha, já se vê, respondeu o rei fazendo-se
desentendido. Convém que minha esposa seja servida por um grupo
brilhante de mulheres formosas e diabólicas, o mais formoso e diabólico que
se encontrar no gênero, e Lazarine está nesses casos.
— Bem te percebo, disse Tibério por boca pequena.

***

A este tempo sua majestade acabara de mudar de toilette.


Estava uma lindeza, podia-se gabar de irresistível, porque o tom rubro e
especial da sua cútis, tom que não se encontra na pele de nenhum dandy da
terra, dava-lhe um cunho de distinção puramente infernal.
Ninguém, em vista daquele colorido, deixaria de dizer que sua majestade
tinha um temperamento vulcânico.
Na antecâmara encontrou em grupo Ninon e Aspásia. Cochichavam e
pareciam conspirar.
Assim que viram o rei, dirigiram-se para ele com uns ares
hipocritamente respeitosos.
— Como vão, pequenas? perguntou-lhe o rei.
E ao mesmo tempo beliscou o braço escultura! da grega, e focou com o
seu régio dedo no sinalzinho preto que a francesa tinha no rosto provocante.
— Sempre satisfeitas, principalmente quando temos a ventura devermos
muito a miúdo vossa majestade, respondeu Ninon com a sua volubilidade
essencialmente francesa.
— Sempre lisonjeiras. era o que devias dizer.
— Protesto, volveu Aspásia, que também quis dizer alguma coisa. Não
somos lisonjeiras. porque não é lisonja dizer que se sente satisfação ao ver
vossa majestade. Como não há de ser assim, se vimos não só o rei e senhor,
o que já não é pouco, como também o cavalheiro gracioso e amável.
— Apoiado, apoiado, apoiado, reforçou Ninon.
— Ah! o que aí vai de falatório! exclamou o rei. Nunca vi gente mais
tagarela que os franceses, e principalmente as francesas.
— Por isso vossa majestade antipatiza tanto com elas, observou-lhe
atrevidamente Ninon.
— Mau! proferiu interiormente Satanás. Novas alusões! hei de saber que
é isto! É em voz alta:
— Bem se tem visto como tenho antipatizado com as francesas que já cá
temos.
— Resta saber se vossa majestade antipatiza com as que chegam de
novo, observou Ninou.
— Por que, chegou alguma? perguntou o rei.
— Pois que, então vossa majestade não sabe, retorquiu Aspásia. Temos
mais uma francesa, e de alto coturno.
— Não sabia. E é formosa?
— Nem por isso, respondeu Ninou com o ciúme próprio das mulheres.
— Bem, não será bonita, tornou Satanás, mas como dizem que é de alto
coturno, deve entrar para o serviço da rainha. Terão pois mais uma
companheira.
— Permitam os fados que nos demos bem, disse Aspásia.
— "Hão de se dar. Espero que a nova camareira tenha as necessárias
qualidades diabólicas para fazer convosco um bom terceto.
As duas fizeram uma mesura mais irônica que respeitosa.
O rei seguiu o seu caminho transpondo os umbrais do aposente de Eloa.
A nossa comprovada discrição, não nos permite penetrar naquele recanto
de vulcânicos amores.

III - UMA CONSPIRAÇÃO FEMININA

Assim que as damas viram desaparecer o rei, cercaram Tibério.


— Que novas nos dás, Tibério? perguntou Ninon.
— Desempenhaste a comissão de que te encarregamos, colega?
acrescentou Aspásia.
— À risca, respondeu o ex-imperador.
— Conta lá o que se passou, disse Ninon.
— Coisa pouca. Segundo a vossa incumbência, não fiz mais que avivar
no espírito do rei as desconfianças que ele sempre tem nutrido contra o
garoto da Flor de Enxofre.
— E o rei? perguntaram ambas.
— O rei ficou, já não digo como uma bixa, mas como um foguete. Ia-me
arranjando. Olhem.
E Tibério mostrou o olho direito arregalando as pálpebras.
— Que é isso? perguntou Ninon que era a mais endiabrada, tens algum
argueiro. Chega-te que eu sopro
E a travessa dispunha-se a fazer o que dizia.
— Zomba, enquanto não te sucede algum dia a mesma coisa.
— Mas o que foi que te sucedeu? perguntou a ateniense.
— Sua majestade ficou tão raivoso, que os olhos faiscaram-lhe. Uma das
faíscas...
— Percebo, interrompeu Ninem. Isso mesmo é o que se quer. Sua
majestade que tanto se enraiveceu, alguma há de fazer àquele patife de Flor
de Enxofre. O rei não disse que idéias tinha a respeito do traidor?
— Não, mas não espero coisa boa. Agora hás de permitir uma pergunta,
Ninon.
— Que pergunta?
—Porque estás tanto a ferro e fogo contra Flor de Enxofre, quando
dantes bebias os ares por ele?
— Caprichos.
— Não creio.
— Não creias, não, Tibério; Ninon está agora nestas más disposições
contra o diabinho, porque ele se faz cada vez mais tolo com todas as
diabinhas que encontra pela Averno, e desejaria que Flor de Enxofre fosse
unicamente para ela.
— Isso é pasmoso, Ninon, exclamou Tibério; pois tu querias encontrar a
constância no inferno, coisa que nunca encontraste, coisa de que nunca deste
provas na Terra?
— Nunca dei provas de constância, mas dei provas de vaidosa. e a minha
vaidade exige que tenham comigo mais atenção.
— Bravo! Isso é que é ter gênio.
— Portanto, Tibério, se o rei não anular de uma vez para sempre esse
garoto, dar-te-ei novas instruções, que espero também cumprirás.
— Mas o que entendes tu por anular?
— Entendo que o diabrete não deve gozar nem da confiança do rei, nem
da rainha.
— Da rainha? interrompeu Tibério. Tá, tá, tá. agora sei onde te dói.
E soltando uma gargalhada zombeteira. Tibério voltou as costas e
retirou-se para os aposentos de messire Satanás.

IV - INTRIGAS NA CORTE

Como já uma vez sucedeu, Satanás retirou-se muito cedo dos aposentos
de Eloa, e essa só tarde se levantou.
Como então acontecera, alguma idéia se agitava no espírito de messire
Diabo, que o não deixava esquecer-se por muito tempo nos braços amantes
da esposa.
Efetivamente, assim que de novo se achou nos seus aposentos
particulares, Satanás mandou chamar Flor de Enxofre.
O diabinho de amareladas asas compareceu logo com a rapidez de quem
não anda, voa.
— Flor de Enxofre, quero mais uma prova do teu zelo.
— Vossa majestade bem sabe que tenho até hoje dado sobejas
demonstrações, da minha dedicação pelo seu infernal serviço, volveu
hipocritamente o velhaco. Tenha vossa majestade a bondade de ordenar, que
prontamente será obedecido.
— Sabes que deu entrada nos infernos uma dama precedida de grande
fama de infernal maldade, e de satânica beleza.
— Duas qualidades que muito a recomendam ao agrado e atenção de
quem aqui tudo pode e tudo manda.
— Bem, menos palavras e mais obras.
— Ordenai, ordenai, senhor.
— Preciso de que essa criatura compareça nos meus aposentos para
verificar se ela vale o que dizem.
— Nada mais fácil.
— Mas que ninguém o saiba.
— Isso é que é um pouco difícil.
— Difícil? volveu então sua majestade carregando o gesto.
— Consta logo tudo quanto se faz nos aposentos de vossa majestade,
principalmente o que se faz para não constar.
— Então sou espiado.
— Assim parece.
— E não desconfias de quem seja o espião, meu pequeno volveu el-rei
com uma voz muito melíflua e batendo no ombro de Flor de Enxofre.
O diabinho não gostou de tantas doçuras. Já conhecia o amo à légua.
— Mau! o diabo traz-me entre dentes. Que a diaba me valha.
E em voz alta.
— Não posso desconfiar. Entretanto se vossa majestade quer que se
proceda a um inquérito...
— Não, isso é uma moda muito em uso no globo terrestre, e que não dá
lá resultado nenhum... Cá sucederia o mesmo. O que preciso é que Lazarine
aqui venha. Avia-te.
— Obedeço. Se ela não comparecer foi porque houve algum obstáculo
insuperável.
— Vem logo participá-lo. Que entre por aquela porta secreta.
E o diabo apontou para um enorme espelho de Veneza que revestia
grande porção de parede.
Flor de Enxofre ausentou-se tão rapidamente como viera.

***

Dali a instantes, Flor de Enxofre batia à porta dos aposentos da rainha.


Apareceu Ninon.
— Que pretendes, endiabrada Flor? perguntou.
— Primeiramente prestar-te as minhas homenagens, minha endiabrada
francesa.
E Flor de Enxofre abrindo as asas como que quis envolver Ninon em
amoroso amplexo.
— Alto! disse Ninou. Guardemos as homenagens para outra ocasião.
— Preciso que me digas qual ocasião, volveu Flor de Enxofre com ar
garoto.
— Não posso dizer, tornou-lhe Ninon; não me sobra o tempo para dar
audiência a sujeitos da tua casta. Passemos por isso adiante. Que pretendes?
Flor de Enxofre viu que perdia tempo, porque Ninon tinha mau gênio.
Quando estava zangada, não transigia.
Ninon, segundo observava, anda havia muito mal disposta com ele, o
que não lhe causava um desgosto por aí além, porque o seu pensamento,
como sabemos, estava ocupado por outro ideal.
Flor de Enxofre padecia de amor platônico, sentimento que seria sempre
inocente, se não pecasse pela maldade de não desejar outra coisa senão
passar a ser maldoso.
Por isso não estava com delongas.
— Pretende falar com a rainha, respondeu.
— A rainha só mais tarde dá audiência, volveu Ninon com mau modo.
— Mas eu preciso de falar-lhe imediatamente, negócio de estado.
— Bem, visto que se trata de coisa tão séria, vou participar-lhe o que
desejas.
E Ninon voltou costas.
Dali a pouco tornava a aparecer.
— Sua majestade ainda está deitada. Dizendo que lhe querias falar para
negócio de estado, respondeu-me que estava com uma leve enxaqueca, e por
isso não podia quebrar a cabeça com questões tão pesadas.
Flor de Enxofre reconheceu que tinha de jogar as últimas, se queria
realizar o seu plano.
— Ouve, Ninon, como eu, tu és devotada à rainha.
— Se sou, voltou Ninon. mas o que queres dizer com isso?
— Trata-se de evitar uma grande desgraça.
— Que desgraça? perguntou Ninon deveras admirada.
— Uma nova perturbação no sossego doméstico de nossos amos.
— Oh! Oh! Muito me dizes? exclamou Ninou cheia de malévola
curiosidade. Mas explica-te melhor; dá-me pormenores. Temos alguma nova
infidelidade de messire Satanás?
— Em projeto, pelo menos. E é preciso, minha Ninou, que não passe de
projeto. Devemos evitar desgostos à nossa querida ama.
— Oh! isso com certeza, confirmou Ninon hipocritamente. Ainda, não
me disseste, porém, de que se trata.
— Vais saber tudo. Sua majestade quer nada menos que se apresente nos
seus aposentos...
— Quem? interrompeu avidamente Ninon.
— Aspásia, respondeu Flor de Enxofre, mentindo arrojadamente.
— Ah! Ah! Ah! exclamou Ninon soltando uma gargalhada. Sua
majestade sempre tem caprichos... Quererá Satanás aprender agora o grego?
— Não sei se sua majestade quer agora dar-se ao estudo das línguas
antigas, o que sei é que devemos evitar novos dissabores à nossa querida
ama. Por isso quero preveni-la do que se passa, e ela que faça o que
entender. Deixa-me entrar, apesar da enxaqueca real.
— Para um fim tão justo, por que não? A enxaqueca só existia na minha
imaginação. Julguei que querias falar com a rainha para...
— Para que, interrompeu.
— Tinha ciúmes, meu querido Flor de Enxofre, respondeu Ninon
languidamente, mas agora compreendo a excelência do teu coração. Podes
entrar.
Flor de Enxofre transpôs o limiar dos aposentos reais.
Assim que ele desapareceu. Ninon murmurou em tom de maldade:
— Bem te percebo. Não se trata de Aspásia, trata-se de outra. Que
grande embrulhada eu vou fazer. Agora, meu querido Flor de Enxofre, podes
dizer adeus ao teu valimento.

V - NA ALCOVA REAL

Dali a pouco o diabinho era introduzido no quarto de dormir da senhora


dos infernos.
Apanhava nada menos que a honra de assistir ao que se chamava na
nossa antiga corte de França, o levantar da rainha.
Os nossos leitores haviam por certo de desejar agora uma descrição
minuciosa e superiormente colorida do quarto de dormir da formosa Eloa.
Era um desejo muito razoável, mas pela nossa parte de difícil senão de
impossível satisfação.
E isto por duas razões muito simples.
Em primeiro lugar não podemos ser minuciosos, porque a uma vista
deslumbrada como a nossa está pelo brilho, pelo luxo, pelo esplendor
daquele recinto, escapam as minuciosidades, os pormenores os traços sutis
para uma miúda descrição.
Em segundo lugar, na nossa palheta terrestre, faltam as tintas próprias
para reproduzir fielmente as cores e os tons especiais do cenário infernal.
Nesse cenário abundam os tons vermelhos, rubros, cor de chama de
ponche, de boca de fornalha, de suspiro de cratera, de bocejo de vulcão, com
todos os seus cambiantes, e em todas as suas gradações.
Eloa sobressaía, brilhava em meio de uma como auréola esplêndida,
intensa, deslumbrante.
O seu leito era um trono, e nesse trono viu Flor de Enxofre, não uma
simples rainha, mas uma deusa.
Outro qualquer que não fosse um diabo, e um diabo de boa e atrevida
tempera como era Flor de Enxofre, teria logo. estonteado, assombrado como
por um raio, caído de chofre nos tapetes da Pérsia, nas peles de animais raros
que cobriam o sobrado.
Mas Flor de Enxofre tinha um belo sistema nervoso, e além disso era
fino como os que o são.
Velou discretamente o rosto com as asas. já para conveniência do seu
órgão visual, já para não ofender a rainha com uma manifestação demasiado
eloqüente do seu pasmo e da sua comoção.
Não perdeu porém, como se costuma dizer, por carta de menos,
Eloa observou o efeito produzido, que a lisonjeou sobremodo, porque
primeiro que tudo era mulher, e avaliou a discrição do pajem, a qual mereceu
a sua plena e decidida aprovação.
Compondo-se o melhor que pôde no leito com as roupas e as rendas,
exclamou:
— Tão cedo no meu quarto!
— Assim é preciso, minha rainha e senhora...
— Alguma novidade já? interrompeu Eloa com leve ansiedade,
— Efetivamente assim é, respondeu o diabrete com voz penalizada.
— Explica-te então.
— O rei chamou-me aos seus aposentos para... Flor de Enxofre hesitou.
— Fala, nada receies, disse-lhe Eloa.
— Nada receio por mim, mas sim por vossa majestade. Há desgostos
superiores às forças do coração.
— Desde muito que estou disposta a tudo, voltou-se Eloa em tom
amargo.
— Vossa majestade permitia-me a liberdade de lhe dar um conselho?
— Dize.
— Vossa majestade poderia fazer encomenda de novos fantoches?
— Para que? perguntou Eloa compreendendo e mordendo os lábios com
despeito.
— Para continuarem a ocupar o espírito de messire.
— Tratarei disso, mas primeiro quero saber toda a verdade, entendes?
E estas palavras foram proferidas num ímpeto de indignação.
— Cumpre-me obedecer, embora o cumprimento do dever seja para mim
bastante doloroso. Como ia dizendo, sua majestade chamou-me ao seu
quarto para me significar que desejava fosse aos seus aposentos a dama
recém-chegada do orbe terrestre, recomendando-me que a fizesse entrar pela
porta secreta.
— Para que se ignorasse que se passava, não é verdade?
— Assim parece...
— Sua majestade é incorrigível, exclamou Eloa, soltando um profundo
suspiro. Bem me dizia o Senhor, quando soube que eu amava aquele pérfido.
— Efetivamente parece que messire Satanás já toma algum interesse por
essa filha da Terra, acrescentou Flor de Enxofre comprazendo-se em
revolver o punhal na ferida.
O velhaco não desgostaria que Eloa se aborrecesse deveras do marido.
— Basta! acudiu a diaba, não me faças sofrer mais.
— Mas que resolução devo tomar, senhora?
— Preciso refletir...
E Eloa ficou efetivamente absorta. Passado um momento ergueu a
cabeça.
— Não darás a essa dama esse recado.
— Obedecerei com todo o prazer, senhora, embora fique
irremediavelmente perdido no conceito do rei. Mas que importa, se toda a
minha ventura consiste em servir a minha ama e senhora.
E a voz de Flor de Enxofre era um pouco mais comovida que as
conveniências em rigor exigiam.
— Não quero que te sacrifiques por minha causa, acudiu a rainha.
— Já o tenho dito, senhora da minha alma, não me importa servir vossa
majestade, ainda com sacrifício próprio.
— Agradeço-te, mas dispenso sacrifícios inúteis. Não ficarás
irremediavelmente perdido no conceito de meu esposo, como dizes.
Flor de Enxofre fez um gesto de assombro, que significava claramente:
não sei como isso possa ser.
— Eu me explico melhor, tornou Eloa. Dirás a meu esposo que destes o
recado.
— Mas não aparecendo a dama...
— Foi porque ela não quis aparecer.
— Em todo caso, senhora, pode facilmente haver uma explicação entre
ambos.
— Eu prevenirei tudo. Quando isso suceder, a dama dirá que foi
convidada por ti, mas não aceitou.
— Vossa majestade tudo pode, e na verdade que é poder muito, fazer
com que uma das suas damas não aceite a corte a messire Satanás.
— Agora, retira-te. meu filho, disse Eloa. Vai sossegado que amor do
seu adorado.
— Oh! Se eu fosse o seu adorado, que milagres ela não faria por minha
causa! disse mentalmente o pajem.
— Agora, retira-te. meu filho, disse Eloa. Vai sossegado que eu velo por
ti.
E como galardão a tão devotados serviços, a rainha deitou um braço fora
da roupa para que o pajem lhe beijasse a mão.
Foi um instante de suprema ventura para Flor de Enxofre.
Nunca vira nem imaginara um tal primor, como aquele braço escultural e
mimoso, semi-velado por alvas e delicadíssimas rendas.
Assim que Flor de Enxofre se retirou, Eloa chamou por Ninon
Ninou surgiu no mesmo instante detrás de um reposteiro.
A sua aparição seguiu-se tão prontamente ao chamamento da ama, que
se esta estivesse desconfiada, havia de julgar que Ninon estava bem perto, e
podia ter escutado o que ali se passara.
E talvez tivesse razão em assim julgar, lembrando-se do ditado de que as
paredes têm ouvidos.

VI - CONTRARIEDADES

— Tibério, dizia Satanás ao seu criado de quarto, prepara as caçoilas e


deita nelas os melhores perfumes, afofa os coxins do meu divã mais
confortável, e estende no chão as peles mais ricas do meu tesouro. Tenho
hoje uma visita que é a primeira vez que aqui entra, e preciso inebriá-la,
enlouquecê-la com toda a casta de seduções e encantos. Transmitistes ao
cozinheiro as minhas recomendações?
— Sim, meu senhor. Lúculo disse-me que se havia de esmerar e que o
banquete de hoje há de exceder aquele com que se deliciava lá na Terra. E
vossa majestade bem sabe que a fama de Lúculo é merecida como poucas.
— Se sei! Não há ninguém para cozinhar como ele. Faz um guisados
deliciosos; se bem que um pouco picantes.
— Não pode deixar de ser, nestas regiões infernais tudo é ardente e
estimulante, está em harmonia com a temperatura do ambiente.
— Não te esqueceste de dizer-lhe que preparasse um banquete
essencialmente francês?
— Recomendei-lhe isso especialmente, e a prova de que Lúculo não se
esqueceu, está no menu que ele me apresentou. Veja vossa majestade.
E Tibério puxou de um pequeno cartão pouco maior que um bilhete de
visita, e apresentou-o ao rei.
Sua majestade leu-o com atenção.
Era um menu em que entravam iguarias de fazer crescer água na boca a
um gastrônomo do inferno.
Figuravam nele hors-d'oeuvre ardentíssimos, patês de foie gras
preparados pelas harpias, aves deliciosas que tinham sido caçadas pelo cão
Cérbero e peixes au gratin pescados no rio Letes e outros rios das regiões
infernais. Os vinhos eram enxofrados, mas por um sistema especial, só
próprio daquelas regiões do enxofre, que lhes dava um gosto superlativo, um
bouquet como o do melhor Porto ou Madeira.
Satanás mostrou-se satisfeito.
— Quero que tu nos sirvas de maitre de hotel; por conseguinte arranja-te
como puderes.
— Farei diligência para que vossa majestade não sinta a falta de criado
mais experiente. Se vossa majestade me permitisse fazia-lhe uma
observação.
— Faze.
— Nas refeições íntimas, os melhores criados somos nós mesmos. Os
franceses nisso sempre foram bem entendidos.
— Tens razão, mas só ao dessert, quero dizer só à sobremesa.
— Quando eu apresentar o champanhe frappé?
— O champanhe frappé! acho graça; daqui a pouco não falamos senão
francês.
— Que quer vossa majestade! A língua francesa tem-se espalhado tanto,
que até chegou ao inferno.
— Não admira! Depois que apanhei cá Voltaire, fiz estabelecer um curso
de francês para adultos, que ele, diga-se com verdade, rege de um modo
magistral.
— Esmera-se, por atenção a vossa majestade com quem sempre
simpatizou, tanto assim que bastantes almas para cá lhe mandou com As
suas doutrinas.
— Mas deixemo-nos de devaneios; está tudo preparado?
— Saiba vossa majestade que sim. Só falta uma coisa, o melhor.
— Que falta?
— A pessoa por quem espera. Tem vossa majestade a certeza de que ela
vem?
— Não sei porque não há de vir?
— Sucedem às vezes coisas tão extraordinárias!
— Tens razão, eu que o diga.
E Satanás carregou o gesto.
Acudiu-lhe à idéia o que se passara em casa de Rosalinda.
— Se não viesse, disse ele, só podia atribuir a culpa a Flor de Enxofre, a
quem incumbi desta comissão delicada.
— E portanto o vosso pajem ficava irremediavelmente perdido, observou
Tibério.
— Isso com toda a certeza. A propósito, tens ouvido dizer mais alguma
coisa contra ele?
— Apenas uns zuns-zuns, coisa sem importância. A prova decisiva
contra o seu valimento, e é esta comissão de que vossa majestade o
incumbiu.
— Decerto, e o que vejo é que ele fica comprometido, observou Satanás,
já um pouco iracundo.

***

Mas naquele momento ouviu-se por trás do grande espelho de Veneza


três pancadas discretas.
Os dois ficaram alegres e alvoroçados.
Não era para menos o caso.
Momentos depois girava o grande espelho, ao impulso que lhe imprimia
Tibério.
Entrava uma mulher deslumbrante e majestosa.
Satanás e Tibério soltaram uma exclamação de assombro, o olharam um
para o outro.
— Aspásia! disse Satanás. Que queres aqui?
— Que quero? voltou-lhe a grega com um gesto admirável o soberbo. A
mim é que me pertencia perguntar: que pretende vossa majestade desta sua
humilde criada?
Satanás, apesar do sexo a que aquela criatura pertencia, e da beleza de
que era dotada, principiava a sentir-se deveras zangado. Parecia-lhe aquilo
uma mistificação. Resolveu sair de dúvidas, apurar a verdade.
— Dize-me, Aspásia, quem te mandou vir aqui?
— Ainda vossa majestade mo pergunta?
— Parece-me que me assiste esse direito...
— Não contesto. Em todo o caso peço permissão a vossa majestade para
me sentar, tomando a liberdade de dizer que me parece não ter neste
momento diante de mim o cavalheiro galante e amável para com as damas,
como é messire Satanás.
— Oh! Aspásia, foi a perturbação proveniente da contrariedade que
acabo de sofrer, que me fez esquecer a cortesia que mereces. Descansa e
reclina-te, grega beldade.
Aspásia reclinou-se soberanamente num divã suntuoso, pousando os
delicados pés revestidos unicamente de sandálias sobre a pele de um leão
que servia de tapete.
— Segundo ouvi, continuou Aspásia, vejo que a minha presença
contraria vossa majestade. Não costumava suceder isso em outros tempos.
— Eu me explico. A tua presença sempre foi e continua a ser-me
agradável; mas verdade, verdade, não te esperava.
— Não compreendo como isso possa ser, tendo sido chamada por vossa
majestade!
— Ora aí é que está o quiproquó, acudiu Satanás. Não me lembro de te
haver mandado chamar nestas últimas vinte e quatro horas.
— É singular! afianço porém a vossa majestade, que não sonhei que era
chamada. Recebi um recado muito positivo para aqui vir, com a
recomendação de entrar pela porta secreta.
— E por quem te foi transmitido esse recado?
— Foi Flor de Enxofre quem o levou ao aposento das damas. Se vossa
majestade duvida, posso dar por testemunha a minha companheira Ninon.
— Basta. Não preciso de saber mais. Está tudo explicado.
— Menos para mim que nada entendo do que se passa, voltou a dama
grega. Entretanto, preciso de explicações. Só quero que vossa majestade me
diga uma coisa...
— O que?
— Que devo agora fazer, sair ou ficar?
— Sair, Aspásia, respondeu hipocritamente o rei; que diria Eloa se aqui
ficasses!
— Tem razão, messire, deve-se respeitar o domicílio conjugal. E Aspásia
fazendo uma mesura à moda dos atenienses, encaminhou-se para o espelho.
— Não, por aí não.
— Então por onde? perguntou Aspásia parando.
— Por aquela porta. Espera-nos ali uma ceia. Também se devem
respeitar as ceias não as deixando esfriar.
Tibério foi correr um amplo reposteiro. Apareceu uma mesa posta
esplendidamente.
Nos cristais facetados brilhavam vinhos cor de fogo.
No ar recendiam os perfumes das flores raras e estranhas que enfeitavam
e coroavam os centros da mesa de metal precioso.
Sobre grandes pratos de ouro ostentavam-se as mais delicadas iguarias.
Serviam à mesa eunucos cor de azeviche, com trajes cor de púrpura.

VII - NO DIA DO DESPACHO

A ceia terminou tarde, e por isso sua majestade, para se desforrar da


noite perdida, passou toda a manhã na cama.
Não teve porém remédio senão levantar-se.
fira dia de despacho, e sua majestade tinha de despachar com os
ministros.
Era uma grande massada aquilo, que muito enfadava Satanás.
Por isso sentou-se na cama, bocejando horrorosamente e tocou a
campainha para que o viessem vestir.
Apareceu o imprescindível Tibério.
— As auras incandescentes do inferno conservem a preciosa vida de
vossa majestade por muitos séculos e séculos! disse o ex-imperador.
— Isso é blague! volveu o rei com mau modo, pois ignoras, estúpido,
que eu sou eterno?
— Ai que não está hoje macio! disse Tibério no seu íntimo. E depois em
voz alta:
— Isto é uma simples fórmula de cortesia. No meu tempo de imperador
também ouvia destas frases, mas tomava-as tanto ao pé da letra, que às vezes
mandava em seguida enforcar quem as proferia. Ah! bons tempos! bons
tempos!
E Tibério enxugou uma lágrima de comoção. Satanás sentiu-se também
enternecido ao ver quão boa alma era a daquele sensível Tibério.
Com o rosto mais prazenteiro, disse:
— Veste-me!
Tibério já vinha munido do indispensável para entrajar sua majestade.
Como estava muito pratico, vestiu o amo num abrir e fechar de olhos.

***

— Que ministros quer vossa majestade receber? perguntou Tibério.


— Quem está aí?
— Estão o ministro da guerra, da fazenda e da justiça.
— O ministro da guerra pôde ir tratar da sua vida: tendo acabado as
guerras com o Altíssimo, não há nada que despachar por aquele ministério,
que se tornou uma verdadeira inutilidade e que um dia hei de suprimir.
— E o ministro da fazenda?
— Esse escusa também de entrar; dize-lhe da minha parte, que vá
continuando no sistema seguido até hoje: não pague o que deve e lance
impostos.
— Falia o ministro da justiça, observou Tibério. Que quer vossa
majestade se lhe diga?
Satanás refletiu um momento.
— Esse é que eu não posso deixar de atender, disse afinal. Traz sempre
na pasta o relatório das almas condenadas. Que entre Lusbel, o ministro da
justiça.
Lusbel era o diabo mais assanhado do inferno. Podia-se chamar, não o
ministro, porém mais propriamente, o carrasco, o executor das altas obras do
inferno.
— Que temos hoje? perguntou-lhe Satanás assim que o viu na sua
presença.
— Coisa pouca, não quanto à quantidade, porque a terra nunca é escassa
nas almas condenadas que nos manda, graças à atividade que vossa
majestade desenvolve em tentar as criaturas sublunares, mas quanto à
qualidade. Cada vez parece serem mais mesquinhas e mais reles as remessas
do orbe terráqueo.
— Tem paciência. É a humanidade que vai degenerando.
— Recebemos, continuou Lusbel, alguns anarquistas condenados à
morte, por se quererem dar à inocente distração de matarem os reis, como se
a ordem natural das coisas estivesse invertida, alguns banqueiros
pertencentes a sindicatos fraudulentos e vários simples ladrões e assassinos
de todas as classes e categorias.
— Bem, bem, aplicar-lhes-ás as penas comuns, banhos de azeite a ferver
e pez derretido pela boca abaixo.
— Agora me lembro, temos uma alma chegada de fresco, e a quem
pouco falta para ter a pureza do arminho.
— Quem é essa raridade?
— Um que na terra foi da polícia secreta, e segundo parece fino como o
coral. Estava agora vivendo à grande, e foi a fartura que lhe fez mal. Morreu
de uma indigestão.
— Ah! bem sei, redarguiu Satanás, recordando-se. Chamava-se Sta-Pi...
— Vossa majestade está muito bem informado.
— Pudera! Se pertenceu ao grupo dos fantoches que eu e Eloa
arremessamos para a Terra.
Lusbel esbugalhou muito os olhos.
— Não compreendo, disse.
— Nem precisas de compreender; é uma história muito comprida.
— Adiante! Queira porém vossa majestade dizer que pena hei de aplicar
a esse Sta-Pi?
— Que culpas tem?
— Coisa pouca. Foi um sujeito todo de boas intenções. Mas, como o
inferno está cheio de boas intenções...
— Tenho idéias reservadas a respeito desse inocente. Não o maltrates e
manda-mo cá.
Lusbel tomou várias notas a lápis nuns papéis que trazia na pasta.
Afinal fez uma vênia e retirou-se.

VIII - NOVAS FORTUNAS DE STA-PI

Não tardou muito que o nosso antigo Sta-Pi se achasse na presença do


senhor supremo dos infernos.
Satanás mandara retirar Tibério, e portanto estava a sós com ele.
Sta-Pi fizera alguma mudança.
Estava mais nutrido, e adquirira certa distinção no aspecto.
Ambas as coisas podiam-se atribuir com razão à mudança que
ultimamente tivera na sua sorte.
A convivência com gente do tom e uma nutrição mais esmerada,
haviam-lhe influído no físico e no moral.
Mas, como havemos de ver, essa influencia não lhe fizera perder o que
no moral tinha de apreciável, a sagacidade, a astúcia, o faro especial que nele
constituía uma espécie de sexto sentido.
Como era natural, não pôde subtrair-se a uma violenta comoção quando
se viu na presença daquele temeroso personagem que ele tão bem conhecia,
não pessoalmente, mas por fama e tradição.
Ponha-se o leitor no seu lugar, — o que aliás não desejamos nem
esperamos que suceda, porque à paciência com que nos tem aturado em
tantos livros e tantas páginas, vai direitinho para o céu, — ponha-se o leitor
no seu lugar, e dirá o que sente.
Mas bem depressa se tornou senhor de si.
Esperando encontrar um diabo corpulento, vermelho, deitando lume
pelos olhos, pelas ventas, pela boca, de chavelhos enormes e rabo muito
comprido, com algumas formidáveis tenazes em punho, deparava afinal,
agradável desapontamento, com um sujeito de aparência quase bonacheirona
mas distinguêe, bem tratado, delicadamente nutrido, com robe-de-chambre
de precioso estofo, gorro elegante de trazer por casa, e calçando cômoda e
burguesamente umas ricas chinelas de marroquim.
— Estarei sonhando! disse Sta-Pi consigo, ou terá a relaxação dos
costumes chegado a tanto no próprio inferno, que o rei diabo já não passe de
um rei Bobeche? Nada, hei de saber o que devo pensar, ou eu já não sou Sta-
Pi.
E o velhaco, mostrando no rosto uma expressão de apavorado e profundo
respeito, lançou-se de bruços, cruzando os braços, e tocando com o nariz em
terra.
— Senhor, exclamou, não façam mal a quem sempre vos temeu e vos
deu tamanha consideração, que mais acreditava em vós, que no próprio pai
do céu!
E dizendo isto insinuou um olhar disfarçado por baixo rio robe-de-
chambre de sua majestade.
Estava satisfeita a sua curiosidade; estavam desfeitas as sitas dúvidas.
Sta-Pi lobrigara a extremidade de uma cauda felpuda e negra. Tinha
diante de si o Diabo.
Agora é que Sta-Pi precisava de recorrer a toda a finura de que tão bom e
eficaz uso fizera na terra.
Com o demônio não se brinca, por muito inofensivo que seja o seu
aspecto.
As aparências iludem.
Por baixo do robe-de-chambre lá tinha ele a cauda; nos sapatos de
marroquim havia de ocultar a garra adunca.
— Levanta-te, disse Satanás.
— Pronto, senhor dos infernos; a minha divisa sempre foi obediência aos
meus superiores.
— Que fazias tu na Terra? perguntou Satanás.
— Espantosa ignorância para o rei do Averno. disse Sta-Pi no seu
íntimo. Talvez seja para me experimentar. A verdade, visto não saber se
posso mentir.
E em voz alta:
— Tinha uma profissão honrosíssima. Era polícia particular; isto é,
investigava o que era preciso por conta de quem me pagava. Sempre
descobri coisas... quer vossa majestade saber...
— Não tenho vagar para histórias, interrompeu el-rei; e depois, sei mais
do que tu julgas.
— Bem me parecia a mim, volveu Sta-Pi.
— O que é que parecia? perguntou o Diabo muito admirado.
— Que vossa majestade devia saber muito. Costuma-se dizer na terra:
porque sabe o diabo muito? Porque é velho.
— Achas-me velho? retorquiu Satanás, um pouco picado.
— É velho com relação a nós os mortais, mas com relação à eternidade,
vossa majestade é uma criança, o que logo se vê pelo seu aspecto juvenil, e...
permite-me vossa majestade uma opinião?
— Dize.
— E irresistível. Vossa majestade deve ser o terror das famílias.
O Diabo sorriu-se.
— Apanhei-lhe o fraco, disse Sta-Pi com os seus botões. E em voz alta:
— A bondade que me tem mostrado até aqui, anima-me a novas
ousadias. Vossa majestade permite-me mais uma pergunta?
— Fala, mas não sejas muito massador.
— Quando, à vinda para os reinos de vossa majestade, atravessei o rio
Letes, vinha no mesmo barco um sujeito que eu conheci na terra, e se
chamava Pedro Carnot. Posso saber que destino ele teve...
— Foi para banhos.
— Para banhos?...
— Sim, em caldeiros de chumbo derretido.
Sta-Pi fez uma careta de terror.
— Não te assustes, disse o diabo: a ti não te sucede o mesmo se me
servires bem.
— Porque, eu posso servir tão alto personagem como vossa majestade
em alguma coisa? perguntou Sta-Pi cobrando ânimo. Em que?
— Vais saber. Ouve primeiramente.
E o Diabo contou o que passara ultimamente com relação às suas
pretensões amorosas, como fora mal sucedido, e como já há muito
desconfiava de Flor de Enxofre.
— Ora como tu tinhas na terra uma habilidade diabólica, é possível que
possas fazer alguma coisa cá por estes diabólicos sítios. Dou-te plenos
poderes.
— Acossa majestade cumula-me de favores. Hei de fazer diligência de
bem o servir, e talvez o consiga, de mais a mais conhecendo tão bem como
conheci na terra a dama a que vossa majestade rende culto. Hoje mesmo vou
trabalhar. Mas...
E Sta-Pi hesitou.
— Mas o que? — Vossa majestade é tão bondoso... Eu, porém precisava
também de cinqüenta francos...
O Diabo deu uma gargalhada.
— Isso era a tua cantilena costumada lá na Terra! Cá não se usam
francos. Não perdes porém com isso. Toma lá.
E indo a um contador italiano, antigo, de grande valor artístico, abriu-o e
tirou um punhado de brilhantes e pedras preciosas.
Deu tudo a Sta-Pi.
Deslumbrado, Sta-Pi guardou aquelas preciosidades, dizendo consigo:
— Decididamente nasci para ser rico. E isto, pelo que vejo, a avaliar pela
vida de reinação, de luxo e de amoricos que por cá se passa, é o céu no
inferno!

IX STA-PI EM CAMPO

— Já é fatalidade! dizia dali a pouco Sta-Pi consigo mesmo, reclinado


comodamente numa poltrona forrada de veludo cor de pele do diabo, em
solitária antecâmara do palácio infernal, nem no inferno escapo ao ofício de
agente de polícia! Em todo o caso resignemo-nos; na Terra rendeu-me a
profissão bem bons lucros, e no inferno também vai prometendo; depois,
convém-me não esquecer o ditado, de que até no inferno é bom ter amigos, e
que melhor amigo posso eu ter que o próprio diabo? Mas, como hei de servi-
lo? Parafusemos. Satanás tem um capricho pela francesa, como ele lhe
chama, mas empatalham-lhe as vasas a mulher, as damas, e Flor de Enxofre,
velhaquete que suspeito faz o seu bocado de corte a todas elas, isto é,
conspiram todos! É preciso portanto fazer com que o rei consiga o que
pretende, a despeito de todos os conspiradores e conspiradoras. Mas como,
se o rei é espiado por todos os lados? Aqui é que bate o ponto. Cismemos,
repito.
E Sta-Pi cerrou os olhos, e deitando a cabeça para trás, mergulhou na
mais profunda meditação.
— Na verdade, tornou ele. prosseguindo nas suas locubrações em voz
alta, para que hei de eu ter indisposições seja com quem for? Satanás já trás
má vontade contra Flor de Enxofre, e nada mais fácil do que eu demonstrar a
sua culpa no malogro das últimas pretensões de sua majestade, e perdê-lo
completamente, como também deitar a perder a camarilha feminina que
igualmente contribuiu para aquele mau resultado. Mas, que lucrava eu com
isso? Nada! Seria melhor, seria ouro sobre azul, satisfazer os caprichos de
sua majestade, a despeito da má vontade geral, a despeito da própria esposa,
e sem que ninguém percebesse coisa alguma! Oh! com a fortuna! se tal
conseguisse, seria, já não digo ouro sobre azul, seria realizar o que parece
impossível, o que parece absurdo, o que parece desconchavo, o céu no
inferno, a bem-aventurança da paz, do prazer, da sublime harmonia que lá na
terra me diziam só reinar nas regiões celestes. Mas como? E Sta-Pi revolvia-
se na poltrona, como se o inquietasse algum sonho mau, cocava a cabeça e
esfregava a testa à procura de uma idéia, da resolução do problema.
— Valha-me a cauda felpuda do demônio, que não acho nada,
prosseguia consternado. Pois eu hei de vir a perder no inferno, não só o bom
conceito que fazia de mim próprio, como também o conceito que de mim faz
o Diabo? Sta-Pi, puxa, puxa pelas idéias; isto não é já uma questão de vida
ou morte para ti, porque por estes sítios não se morre, mas uma questão em
que está empenhada a tua reputação tão justamente adquirida na terra, e o teu
futuro, pois podes vir a ser nada menos que comissário geral de polícia do
inferno, lugar que deve render, não milhares de franco?, mas milhões e
trilhões em brilhantes e pedras preciosas, a avaliar pela pechincha de há
pouco.
Sta-Pi calou-se e novamente mergulhou em silenciosas locubrações.
Mas de repente abriu os olhos com um pequeno sobressalto.
— Ora adeus! parece que a jornada do mundo para o inferno me
embotou completamente o bestunto! Onde tinha eu a cabeça que não
encontrava a coisa mais fácil de encontrar? Quando uma mulher concede a
ocultas uma entrevista, que é que prepara a ocasião, proporciona os meios,
aplana as dificuldades, se as há, quem é que tem espírito inventivo, para
estas coisas, senão a mulher? portanto, nada mais simples, vou ter com a
Marquesa, faço-a sabedora da chama que ateou no coração vulcânico do real
personagem, estimulo-lhe o capricho dizendo que todo o inferno,
principalmente o feminino, tem uma inveja e um ciúme infernais da honra e
distinção que sua majestade lhe concede querendo fazer-se amado por ela,
digo-lhe que é preciso conduzir esta aventura em segredo, pelo menos a
princípio, e veremos se a antiga Marquesa terrível, bafejada a inspiração por
estas auras infernais, não acha meio, — a inocente! — de encontrar-se a sós
com o imperador do inferno.
Sta-Pi esfregou as mãos de contente.
— Bem, muito bem! está resolvido, continuou, é preciso falar
pessoalmente com a beleza. Surge porém nova dificuldade. Como
aproximar-me dela? Como chegar aonde ela está? Achando-se ao serviço da
rainha, é nos aposentos desta que a devo procurar, e ali arranjar meio de lhe
dirigir a palavra sem ninguém nos ouvir. Se isto se passasse na terra, nada
mais fácil, porque lá temos, além dos meios extraordinários, os meios
ordinários de se mandar prevenir qualquer pessoa pelo correio ou por um
moço de recados. Mas aqui? Pouco ao par dos costumes do sítio, não sei
como por cá se arranjar estas coisas. Veremos. Talvez a sorte me favoreça.
Tratemos em todo o caso de não estar aqui parado, e vamo-nos chegando
para os aposentos da rainha, que por certo nada hei de perder.
E Sta-Pi levantou-se, espreguiçou-se, e refletindo que estava em régios
aposentos, compôs-se o melhor que pôde as melenas, revestiu-se do ar mais
grave e destingué que pôde arranjar, e posse a caminho através de ante-
câmaras, salas, salões e corredores.
Foi perguntando aos serviçais que encontrava onde eram os aposentos da
rainha e das damas.
Guiado pelas indicações que lhe iam dando, conseguiu aproximar-se do
sítio desejado.
Quando entrava num compartimento que lhe disseram proceder o
boudoir de Eloa, deparou com um personagem seu conhecido.
Era nada menos que o imperador Tibério, agora criado do seu colega, o
imperador dos infernos.
— Salve César! exclamou Sta-Pi muito reverentemente, lembrando-se
dos seus tempos de rapaz de escola.
— Ora viva lá, meu amigo, voltou o ex-imperador já deveras
democratizado pela corrente das idéias modernas. Que faz por estes sítios?
Que pretende?
— Uma coisa que eu não saberia como obter se o não encontrasse.
— Diga, explique-se.
— Entrou um dia destes para o serviço de Eloa uma dama fidalga que eu
conheci lá na Terra.
— Bem sei de quem fala. Depois?
— Como me é de certo vedado transpor os umbrais dos aposentos
particulares, desejava que alguém transmitisse a essa pessoa um recado...
— Venha de lá o recado.
— Diga-lhe que alguém recém-chegado no comboio expresso do globo
terrestre, lhe quer dar lembranças de uma pessoa a quem ela muito amou.
— Não vejo nisso inconveniente nenhum. Vou lá dentro e dir-lhe-ei que
você aqui a espera...
— Não, aqui, não.
— Aqui não, por quê?
— Seríamos ouvidos, e bem sabe que as damas sempre tem acanhamento
finando lhes falam em certas coisas diante de estranhos.
— Percebo. Você vai bem. Há de chegar longe. O que eu não queria era
estar na pele de Flor de Enxofre, com um adversário como você pela proa.
— Como te enganas. Tenho melhor fiados que julgas.
E em voz alta:
— Portanto, diga-lhe que a espero esta noite nos jardins do palácio, junto
do lago do betume inflamado, por baixo das ramadas da figueira do inferno.
— Sossegue, que lhe direi tudo isso.
— Para fazer mais força, acrescente que a pessoa que lhe quer falar
freqüentava muito os teatros.
— Perfeitamente. E para que ninguém desconfie, não fará mistério e
transmitirei o seu recado na presença das damas.
— Muito bem. Vejo que é obsequiador, e no que lhe poder servir estou
ás suas ordens.
X - UMA ENTREVISTA

De noite o lago era esplêndido com as suas ondas incandescidas, sobre as


quais perpassava um esbraseado fulgor.
Os vagos e trêmulos clarões que dimanavam dele iluminavam a
passagem circunjacente, produzindo fantástico efeito sobre as massas de
verdura, de um tom profundo e melancólico.
Pelas sombras misteriosas do arvoredo, adejavam os noitibós soltando as
notas do seu canto plangente.
Ia avançada a noite, quando se encaminhou para aquelas paragens um
vulto que parecia de mulher.
Chegando próximo do lago, parou como para se orientar.
Lançou em roda um olhar perscrutador.
— Ah! exclamou ela após um momentâneo exame, é acolá Aquela
árvore muito copada é a figueira do inferno de que me falaram.
E encaminhou-se para a árvore a que se referia.
Por baixo dela, cingindo o tronco, havia um banco de cortiça.
O vulto dirigiu-se para o banco e sentou-se.
— Ninguém mais! exclamou, será por acaso uma mistificação? Em todo
o caso, esperemos um pouco.
Enganava-se porém no que dizia.
Não estava tão só como imaginava.
Se em vez de somente olhar em roda, olhasse para cima, para os espaços
infernais, teria visto um vulto adejar nas proximidades como que seguindo-a
e observando-a.
Graças à luz difusa que lhe iluminava um pouco as asas, via-se que eram
amareladas, lembrando a cor do enxofre.
Era evidentemente espiada.

***

Não esperou muito tempo.


Nas proximidades do lago aparecia novo vulto. Não parava indeciso.
Conhecendo de certo o terreno, dirigiu-se imediata e afoitamente para a
figueira do inferno.
Assim que se achou junto da pessoa que o esperava disse:
— É à marquesa de la Tour-du-Roy que tenho a honra de estar falando?
— Exato. Mas desejava saber também com quem falava.
— Está tratando, minha senhora, com um pobre ator de segunda ordem,
que um dia destes caiu desastradamente por um alçapão do teatro onde
trabalhava, levando-o a breca.
— E veio em seguida para o inferno! rematou a Marquesa. — Grandes
pecados tinha então?
— Tinha grandes pecados, efetivamente, mas só de um gênero.
— Qual?
— Desempenhava pouco conscienciosamente os seus papéis.
A Marquesa deu uma gargalhada que acordou os ecos da noite e
espantou os noitibós.
— Tratemos porém de coisas sérias. Disseram-me que me queria falar?
— Não a enganaram.
— Explicaram-me que era para me dar noticias de certa pessoa que eu
deixei na terra?
— Nisso é que houve uma pequena peta.
— Zombaram de mim? voltou a dama indignada.
— Não, minha senhora, não foi zombaria. Dão-se porém casos de força
maior. Este foi um deles.
— Explique-se.
— Venho da parte de um alto personagem desempenhar junto da senhora
Marquesa uma missão delicadíssima.
— Não posso imaginar o que seja!
— Vai saber. A senhora é amada e é invejada.
— Amada por quem?
— Primeira, permita-me lhe diga por quem é invejada.
— Como queira.
— Invejam-na todas as damas, inveja-a toda a corte, a própria rainha a
inveja.
— Olhe, senhor ator de segunda ordem, se veio para o inferno por
desempenhar mal os seus papéis, foi mui bem merecido castigo.
— Que quer dizer, minha senhora? perguntou Sta-Pi com a cara a uma
banda.
— Encarregaram-no junto de mim do papel de mensageiro de amores, e
tão bem o desempenha, que vai como veio. Diga a quem o manda que perde
o seu tempo...
— Minha senhora... interrompeu Sta-Pi,
— Deixe-me continuar. A Marquesa de la Tour-du-Roy foi na terra uma
grande estróina, mas verdadeiramente só amou uma vez na vida, e o rio
Letes, o rio do esquecimento, por onde passou ao vir para aqui, não foi capaz
de lhe fazer olvidar esse amor único e sincero.
— Ou traz o papel muito bem estudado, ou eu me enganei
redondamente, disse Sta-Pi consigo. Dissimulemos em todo o caso.
E em voz alta:
— Minha senhora, não fiz mais que obedecer a quem pode mandar; se
não obedecesse, qual não seria a minha sorte?
— Não digo que andasse mal, entretanto, a figura que vai fazer, dando
conta do revés, não é das mais engraçadas. E se incorrer no desagrado de
quem tudo pode?
— Oh! será horrível a minha sorte. Nem quero pensar nela. A senhora é
que me poderia salvar...
— Como?
— Dando resposta favorável...
— Repito-lhe, só uma vez amei na vida, e por toda a eternidade não
tornarei a amar.
— Afiança isso? perguntou Sta-Pi ironicamente.
— Afianço, salvo...
— Salvo?
— Se Fernando na eternidade me viesse acompanhar.
Sta-Pi deu um pulo e bateu na testa.
— Oh! que idéia exclamou no seu intimo.
— Que é isso, que tem? perguntou a jovem condenada ao notar-lhe a
comoção.
— Não foi nada, minha senhora.
— Mas bateu na testa...
— É uma maldita dor na cabeça que me apoquenta há um tempo para cá.
— Enxaqueca?
— Nada, parece que é reumático, originado pelo frio que apanhei no
maldito caixão de chumbo onde me encerraram quando morri.
— Então recolha-se que a noite está úmida, tornou-lhe a dama com uma
voz zombeteira.
— Obrigado, minha senhora, e sigo o seu excelente conselho.
— Recomende-me a quem o mandou aqui.
— Por que não?
E Sta-Pi afastou-se.
Naquele momento ouviu-se uma risada nos ares. Sta-Pi olhou para cima
e viu um vulto de amareladas asas adejar por cima dele.
— Ah! maroto! espiavas-me! murmurou Sta-Pi. Pois não te hás de rir por
muito tempo.
E desapareceu no escuro.

XI - DUAS MULHERES QUE AMAM

Dali a momentos achavam-se no quarto de Eloa, Lazarine e Flor de


Enxofre.
Eloa estava para se deitar.
Chamara uma dama para a ajudar a despir, e em vez de Ninou ou de
Aspásia, aparecera-lhe a nova dama francesa.
Eloa, mostrara-se muito admirada quando a viu.
— Então não compareceste à entrevista? perguntou.
— Já fui e já vim.
— E então?
— Efetivamente, o esposo de vossa majestade dignou-se ter a lembrança
inconvenientíssima de me fazer a corte.
— Indigno! exclamou Eloa exasperada.
— Que quer vossa majestade! As criaturas do sexo masculino são
sempre assim. Lá na terra os homens fazem tanto ou pior.
— Escuso de te perguntar qual foi a tua resposta?
— A que eu prometera a vossa majestade, e, deixe-me falar com
franqueza, a que o coração me ditou.
— Pois que, se Satanás fosse livre, tu não aceitarias a corte de tão
poderoso senhor?
— Não, senhora, afianço. Só amei uma vez na terra, e esse amor trouxe-
o para a eternidade.
— Compreendo-te, porque também eu sou constante. Só amei e só amo
Satanás, apesar da sua inconstância e de quanto me faz sofrer.
— Também eu sofri bastante com a inconstância do único homem a
quem amei, foi até essa inconstância que me ocasionou a morte, e contudo
ainda o amo. O amor tudo perdoa.
— Às vezes custa-lhe muito a conceder o perdão, acrescentou Eloa em
tom amargo.
— E vossa majestade não tenciona hoje perdoar?
— Se Satanás mostrar-se arrependido...
— Por que, vossa majestade tem idéia de lhe dizer alguma coisa do que
se passou?
— Não me poderei conter, por certo.
— Oh! Que vai vossa majestade fazer? acudiu Lazarine com voz
consternada.
— Que vou fazer!
— Sim, não vê vossa majestade que deitará a perder o seu mais fiel
servidor!
— Referes-te a Flor de Enxofre?
— Sim, senhora. Se vossa majestade falar no que se passou, poderá
comprometer o seu pajem mais do que ele se acha comprometido.
— Tens razão. Conterei a minha indignação, dissimularei o meu
ressentimento.
— Isso prova quão magnânimo é o coração de vossa majestade. Flor de
Enxofre tudo merece. E se me permite, pedirei uma mercê para ele.
— Fala.
— Flor de Enxofre está na antecâmara; parecia um ato de toda a justiça
que vossa majestade o mandasse chamar e lhe dirigisse algumas palavras
agradáveis.
— Dizes bem, manda-o entrar.
Lazarine obedeceu prontamente.
Flor de Enxofre entrava no mesmo instante, e ajoelhava aos pés da sua
senhora.
Eloa dava-lhe a mão a beijar.
Flor de Enxofre, — o que não admira. — conservou o mais tempo que
pôde a mão da rainha chegada aos lábios.
Mas aquela ventura não pôde deixar de ter um termo.
— Flor de Enxofre reconheço a tua dedicação, disse. Eloa; peço-te agora
uma coisa.
— Vossa majestade não pede, ordena.
— Ouve. Fernando Volnay não é um imortal, e está muito longe de ser
um santo, quando souberes que ele dá entrada no meu reino, dize-o a
Lazarine. Ela ama-o.
— Vossa majestade será obedecida. Todas as vezes que ouvir o cão
Cérbero ladrar, anunciando que alguém entra no inferno, voarei logo a ver
quem é.
— Bem, bem, agora retira-te. Marquesa despe-me. Flor de Enxofre
retirou-se com grande mágoa. O seu gosto era conservar-se ali eternamente.
— Vossa majestade recebe hoje el-rei?
— Não, por mais que faça, por melhores que sejam os teus conselhos,
não poderei recebê-lo hoje. Dize-lhe que estou com a minha enxaqueca.
E a rainha despiu-se e meteu-se na cama.
Escusado será dizer que lhe custou imenso a conciliar o sono.

XII - MAIS UM PLANO

A este tempo Tibério tinha introduzido Sta-Pi no quarto do rei.


Sua majestade estava em trajes ligeiros e um pouco fantasiosos.
Trajava gibão, calça justa, de cor vermelha, tudo com um corte à Idade
Média, o que lhe dava aspecto mefistofélico.
Efetivamente, com disposição de Mefistófeles, estava ele, não para tentar
as mulheres por procuração, e com atrativos alheios, como o da lenda, mas
por conta própria e com os seus atrativos pessoais.
Tinha naquela ocasião uns ares verdadeiramente conquistadores.
Mal sabia ele o desapontamento que o esperava.
Por isso fez uma cara de verdadeiramente quizilado, quando Sta-Pi lhe
disse:
— Saiba vossa majestade que nada consegui.
— Que dizes? volveu ele.
— A verdade, senhor, infelizmente.
— Não imaginas, meu habitante da terra, quão grande desilusão acabo de
sofrer! Fazia outra idéia de ti. Afinal estou tão mal servido contigo, como
estava com Flor de Enxofre.
— Vossa majestade penaliza-me deveras com essas palavras. Desconfia
da sinceridade com que Flor de Enxofre o serve, por acaso desconfiará
também da minha sinceridade? Far-me-á tamanha injustiça?
— Não digo tanto. Apenas desconfio da tua habilidade.
— Tenha vossa majestade um pouco de paciência. Há generais muito
hábeis que não ganham todas as batalhas. Nas empresas em que me metia
quando era um simples mortal, nem sempre me caía bem à primeira
tentativa.
— Bem, estás desculpado; mas vamos agora aos pormenores. Que se
passou?
— Eu vou contar tudo a vossa majestade.
E Sta-Pi referiu o que lhe sucedera na entrevista noturna. Quando
concluiu, Satanás exclamou:
— Com que então a endemoniada Marquesa é um modelo de constância?
Está o inferno perdido!Até há nele exemplares de virtude! Onde irá parar
esta degeneração?
— Admira-se! Pois saiba vossa majestade que não perdi a esperança de
ver o inferno transformado num céu.
— Isso não seria muito bom, retorquiu o diabo em tom chocarreiro; o
Todo Poderoso podia querer mudar-se para cá e pôr-me a mim na rua.
— Não tenha vossa majestade esse receio, porque é um céu como eu o
entendo.
— Voltemos, porém, ao nosso assunto. Que tencionas fazer? Achas-te
porventura resolvido a dar novo assalto à praça?
— Sim, senhor, e um assalto eficaz.
— Isso é o que imaginas. Olha não te enganes.
— Afigura-se-me que não. Tenho um plano muito simples e que me
parece seguro.
— Qual é?
— Eu o exponho a vossa majestade.
***

E Sta-Pi explicou em poucas palavras o seu plano. Satanás mostrou-se


encantado.
— Nada mais simples, efetivamente, disse ele, simples e prometedor.
— Encontro porém uma dificuldade, observou Sta-Pi.
— Saibamos qual é.
— Diga-me vossa majestade primeiramente uma coisa. Existe já no
inferno a instituição da imprensa?
— Que pergunta! pois eu caía lá nessa! O meu governo é absoluto, e a
imprensa não é compatível com essa peste inventada pela humanidade
ingovernável.
— Tem vossa majestade muita razão, eu é que não pensei bem.
— Mas a que vem essa pergunta?
— É que se houvesse jornais no inferno, podia Lazarine saber por eles da
chegada de Fernando a estes sítios. Ora não os havendo, como há de isso
constar-lhe?
— Não te dê cuidado. Quando chega algum condenado ao inferno, o cão
Cérbero anuncia-o, ladrando. Pisarei o rabo ao Cérbero, e ele atroará os
infernos com os seus latidos. Verás amanhã.
— Bem, visto isso não acho motivo para que o nosso plano não tenha um
êxito esplêndido, para que não seja um verdadeiro sucesso, como dizemos
em França.
— Assim o espero. Agora retira-te. Amanhã será posta em prática a tua
idéia.

XIII - A BEM AVENTURANÇA

Baixara a noite. Eram densas as trevas; no meio da profunda escuridão


em que jaziam mergulhadas as regiões infernais, só se destacava o lago
ardente que servia de ornato aos jardins de Eloa. e cujas irradiações
iluminavam de um modo estranho a cor verde negra da vegetação que o
rodeava.
Devemos mencionar vários fatos singulares que naquele dia se tinham
dado.
Latira desesperadamente o cão Cérbero.
Caron, o velhíssimo barqueiro do rio Letes, transportara no seu barco um
condenado, mancebo ainda, vestindo elegantemente um traje vistoso e que
lembrava a toilette dos atores que fazem no teatro o papel de galã de ópera
cômica.
Assim que se ouvira ladrar o Cérbero, o pajem da rainha desferira o vôo
e fora aos formidáveis portões do inferno ver quem chegava.
Parecera satisfeito com a aparição do galã teatral, e voltara logo na
direção do alto palácio cristalino onde residia Eloa.
E naquela noite, nas proximidades do ardente lago, aparecera um vulto
gentil, vestindo cândidas e ligeiríssimas vestes de linho, que deixavam
adivinhar e quase entrever formas sedutoras de mulher, como que aureoladas
pelo rubro clarão que derivava do lago.
Encaminhou-se para a figueira do inferno, e sentou-se no banco que a
circundava.
E coisa estranha, o mancebo de teatral aspecto que de manhã atravessara
o Letes, encaminhou-se também para aquele ponto, e os dois ao verem-se,
lançaram-se nos braços um do outro, com o arrebatamento de dois entes
apaixonadíssimos.
Eram, porém, espiados.
Outro vulto de mulher acercara-se deles subitamente, como esposa ou
amante, coisa que espiasse ávida os passos do ente amado em quem
suspeitasse traidor procedimento.
Não era, porém, assim, porque a última das damas contemplou com
expressão de deleite as expansões apaixonadas dos dois amantes.

***

— Vossa majestade está satisfeito? perguntou Sta-Pi a Satanás, ri cujo


recolher por altas horas assistiu naquela noite memorável.
— Estou, e realmente bem mereces do teu senhor. Quero condecorar-te
pelos teus serviços.
— Oh! meu senhor, balbuciou Sta-Pi, o meu peito...
— Na terra, interrompeu Satanás, é que põem as condecorações no peito,
aqui põem-se nas costas.
— Nas costas!...
— Sim, arranquei as asas a Flor de Enxofre, e tê-las-á tu amanhã.
— O que, poderei amanhã passear pelos ares, como se tivesse descoberto
a direção dos balões?
— Exatamente.
— Oh!, exclamou Sta-Pi concentrando nesta interjeição todo o seu
reconhecimento.
Sta-Pi serviu-se muitas vezes das asas para contemplar uma mesma cena
que bastante o deliciava: O grupo do traidor Satanás com a sua amante
iludida, espiados pela crédula Eloa, que ateava fogo do seu profundo amor
com o espetáculo daquele enternecedor idílio.
— Isto é obra minha! dizia Sta-Pi cheio de orgulho; em vista de tanta
paz, de tamanha harmonia, posso gabar-me de ter realizado um prodígio: a
ventura do céu nas horrorosos regiões do inferno?

FIM

Você também pode gostar