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Ângelo do Santos é um desnascido.

Ângelo dos Santos


Outros títulos da Estereográfica: Último aceno antes do desaparecimento
De muitos e poucos anos.
na queda vazia da morte - aceno de
Sua escrita uma nova forma de gargalhismo sóbrio
Contrapunção vínculo, amor, violência, verdade
e febril. Recluso de aparições cósmicas.
Fred Smeijers e contradição - é o território da Dizem que vagueia indiferente, em silêncio.
jornada de Ângelo. E que também cruza o tempo aceso e descontrolando.
Como criar tipos Menos um épico distópico do que um Sabemos muito pouco sobre ele.

Viagem em família
Cristóbal Henestrosa, Laura Meseguer e José Scaglione diário de viagem. Disseram que se calou por séculos e que
Ângelo dos Santos
O motor da Variant que conduz estes agora falará para sempre.
O império do meio grupos tão familiares pela estrada
Viagem em família
Que revira os olhos, explode crânios, treme as
Isabela Lyrio e Arthur Monteiro entre a mata das tradições e normas, pernas e anda ansioso, escamoso. É notívago,
e o oceano vazio e imenso, queima coletivamente narcísico e desleixado consigo.
poesia / poema: Wlademir Dias-Pino moral. Combustão pós-moralista. Podia ter sido líder de gangue, dono da
Rogério Camara e Priscila Martins A esperança desliga-se do algo a feira, advogado de todas as causas, mas
mais, da busca tantalizante, pelo foi, por vacilo ou graça, escritor.
tudo. Trata-se de uma máquina de É escritor.
apagamento incandescente. Estamos Viagem em família é seu primeiro livro,
aqui e não há nada mais, ainda assim mas não sua primeira viagem.
insistimos e nos retorcemos. Talvez por isto, seja o melhor momento de lê-lo.
Não se sabe por quanto tempo estará por aqui com isso.
Foi escutado muito entediado, recitando o

João Ronaldo Stemler maior cartel de maldições não escritas


de que se tem conhecimento.
Podemos dizer isso sobre todos, mas
sobre ele especialmente.
É um ruído prestes a acabar por seu próprio impulso.
Constante e infinito.

Estereográfica
Cortando sua época, sua cidade inventada e esquecida.
Com sua pena enferrujada de tétano,
amor e cinismo otimista.
www.estereografica.com Estereográfica
Viagem em família

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Ângelo dos Santos
Viagem em família

Ilustrações de Eduardo Belga

Estereográfica
P R E FÁ C I O
por João Ronaldo Stemler
Ângelo do Santos é um desnascido.
De muitos e poucos anos.
Sua escrita uma nova forma de gargalhismo
sóbrio e febril. Recluso de aparições cósmicas.
Dizem que vagueia indiferente, em silêncio.
E que também cruza o tempo aceso e descontrolando.
Sabemos muito pouco sobre ele.
Disseram que se calou por séculos e que agora
falará para sempre.
Que revira os olhos, explode crânios, treme as pernas e
anda ansioso, escamoso. É notívago, coletivamente
narcísico e desleixado consigo.
Podia ter sido líder de gangue, dono da feira,
advogado de todas as causas, mas foi,
por vacilo ou graça, escritor.
É escritor.
Viagem em família é seu primeiro livro,
mas não sua primeira viagem.
Talvez por isto, seja o melhor momento de lê-lo.
Não se sabe por quanto tempo estará
por aqui com isso.
Foi escutado muito entediado, recitando o maior
cartel de maldições não escritas de que se tem
conhecimento.
Podemos dizer isso sobre todos, mas sobre ele
especialmente.
É um ruído prestes a acabar por seu próprio impulso.
Constante e infinito.
Cortando sua época, sua cidade inventada e esquecida.
Com sua pena enferrujada de tétano,
amor e cinismo otimista.

A família talvez seja, por seu contágio no tempo,


onipresente. Sua insistência reprodutiva,
supostamente pilar dos povos em sua epopéia de
convivência, está no livro, ligada parasitariamente
à vida. Ameaçando sufocá-la e oprimí-la enquanto
a cria, a desenvolve e a inventa.
No deslocamento do texto,
apresenta-se mais como queda.
Seus membros, em deslocamentos próprios,
apaixonam-se pelo limite: como quem toca a
primeira camada d'água, surfando no verão
infinito, ou é vivissector do filho, em carnificina
e libertação absolutas. A violência sugando
desproporção mórbida dos apaixonamentos mais
reconhecíveis e próximos.
Os ambientes são descritos do nível mais íntimo:
do corpo acostumado aos odores e texturas do
espectro familiar que impregna os móveis, os
gostos, os vínculos de vida e morte. A ligação destes
passageiros ao tecido vivencial da existencia é
sempre intensa e fluorescente, e o golpe, o corte,
seco e afiado. Ritmo e vocabulários concordantes
com a gramática do amor e da morte, do gozo e
toda essa bobagem. O fino tratamento da língua,
narrada em barris de carvalho e destradição.
Biografias descritas em relâmpagos. Eletrificando
identificação - são tipos dos mais reconhecíveis,
um jeito amaneirado e escroto de dizer "nós"- e
regurgitando indiferença.
Isso tudo parece mais uma grande promessa do que
uma opinião. O leitor talvez se decepcione.
Mas também é disso que se trata a viagem apresentada.
Uma grande promessa sem conteúdo, uma forma
de deslocamento, de casca luminosa, violenta,
ôca e cheia de vida.
Último aceno antes do desaparecimento na queda
vazia da morte - aceno de vínculo, amor,
violência, verdade e contradição - é o território da
jornada de Ângelo.
Onde a cor se torna real e finda.
Menos um épico distópico do que um diário de viagem.
O motor da Variant que conduz estes grupos tão
familiares pela estrada entre a mata das tradições e
normas e o oceano vazio e imenso, queima moral.
Combustão pós-moralista.
Foi visto falando sobre essa engenhoca por diversas
noites de 36 horas.
A esperança desliga-se do algo a mais, da busca
tantalizante pelo tudo. Trata-se de uma máquina
de apagamento incandescente. Estamos aqui e
não há nada mais, ainda assim insistimos e nos
retorcemos.
PA R T E I
V I A G E M E M FA M Í L I A
FELICIDADE OU CONTO RETO
Ninguém nunca o tinha ouvido reclamar da vida.
Também, é difícil pensar do que reclamaria Barandão.
Homem sem extravagâncias, trabalhador e pai de uma
família que poderia ser descrita como linda. Esposa
corpulenta, de belas coxas, olhos grandes e atentos.
Dois filhos risonhos e respeitadores. A Barandão não
faltava nada. À noite, naqueles minutos deitados antes
de dormir, a esposa lhe roçava a perna e sorria. Sim,
podia-se dizer que era feliz.
Funcionário concursado, salário bom e trabalho
tranquilo. Acordava não muito cedo, pois só pegava o
serviço às treze horas. Pelas manhãs tinha lá suas ma-
nias, como qualquer um. Bebia um copo de água gela-
da ainda de estômago vazio, ia ao banheiro, depois saía
para “olhar a rua” como dizia. Era querido na cidade.
Cumprimentava Seu Aldir da banca e comprava o jor-
nal do dia. Lia enquanto via a rua.
Então e só então tomava seu café da manhã. Duas
torradas de pão integral, uma com geléia de jabuticaba
e a outra com duas passadas de faca curtas de mantei-
ga. Café puro. Fazia ainda o almoço para esperar mu-
lher e filhos, almoçava com eles e descia pro trabalho
na Rua das Autarquias.
Trabalhava em uma repartição agradável. Carimba-
va e tomava café puro mais do que coçava os olhos de
cansaço. Conversava também com seus colegas. Quan-

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do ria batia a mão esquerda na perna enquanto sua ri-
sada forte aumentava e diminuía de volume juntamen-
te com sua cabeça que abaixava e levantava. Voltava
então para sua mesa e depois para sua casa. Jantava
com esposa e filhos e então ia pra cama.
Diziam que tinha uma vida perfeita, de dar inve-
ja a todos. Seus colegas de trabalho viviam repetindo
aos quatro ventos como Barandão era feliz, como tinha
tudo aquilo que todos sonhavam. Chegavam a usar seu
nome como sinônimo de felicidade.
Contudo, Barandão tinha pensamentos, nem sem-
pre felizes como se poderia supor. Nos últimos tempos
estes pensamentos vinham ocupando cada vez mais seu
interior. Uma vez, em um de seus passeios matinais,
decidiu levar consigo o filho mais novo. Arrumou tudo.
Fraldas, duas mudas de roupa, pomada para evitar as-
saduras, carrinho de bebê, banana e copinho com água.
Abriu o portão, caminhou alguns passos até o passeio,
bebê nos braços. Quando ia atravessar uma rua movi-
mentada pensou que poderia tropeçar e visualizou a
criança caindo e sendo esmagada por um carro em alta
velocidade. Afastou o pensamento com um leve balan-
çar de cabeça e atravessou. Outro dia, quando voltava
da repartição, pensou que abriria a porta e encontraria
esposa e filhos assassinados, a casa ensanguentada e
tudo revirado. No entanto, tudo ia bem, como sempre.

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Cada vez mais passou a ser tomado pelos tais pen-
samentos. Pensava em como seria então sua vida.
Chegou a se ver no enterro de sua família, com um ter-
no muito bonito, cortado à perfeição, algo entre um
azul marinho escuro e preto, com lapelas pontudas,
ajustado nos ombros. Diferente daqueles arremedos
de ternos que usava pra trabalhar. Ficava comovido só
de pensar na forma com que as pessoas o abordariam
ali, enternecidas. Ele, numa tristeza de fazer gato des-
cer de árvore, receberia os pêsames e sofreria. Passava
horas em seus devaneios. Neles podia ser triste e todos
entendiam sua tristeza. Neles era livre.
A vida continuava, como no dia anterior. Mas inter-
namente algo havia mudado. Os pensamentos não
mais incomodavam Barandão, mas lhe serviam de re-
fúgio para a felicidade do dia a dia. Imaginava insis-
tentemente sua vida depois de uma tragédia sem pre-
cedentes. Todos o olhariam com piedade, teriam mais
paciência com ele, não mais seria o baluarte da felici-
dade. Provavelmente deixaria de ir ao trabalho por um
bom tempo, talvez nunca voltasse a trabalhar. Poderia
fazer qualquer coisa de sua vida que não seria julga-
do por ninguém. Quem poderia julgar um homem que
perdeu tudo? Aquela tristeza que sentia quando esta-
va perdido em seus devaneios o comovia a tal ponto de
fazê-lo marejar os olhos.

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Acordou e beijou a mulher na testa. Dirigiu-se para
a cozinha onde tomou seu copo de água gelada. Mais
um dia começava. Quando voltou da repartição encon-
trou mulher e filhos deitados na cama do casal, liam
estórias. Cumprimentou-os e olhou longamente para
as coxas bem torneadas da esposa, linda naquele velho
vestido curto de ficar em casa.
Foi até a dispensa e pegou uma pá pesada de jar-
dim. De volta ao quarto golpeou os três o mais for-
te que pôde, deixando-os desacordados. Lavou bem a
pá. Pegou uma garrafa de álcool perto da churrasquei-
ra e voltou ao quarto. Embebeu a cama e sua família
no líquido inflamável e, da porta do quarto, jogou um
fósforo aceso. As chamas subiram, senhoras de tudo.
Enquanto saía pela porta dos fundos Barandão pôde
ouvir gritos que pensou serem do mais velho.
Abriu o portão e saiu à rua, lentamente, em direção
à loja de ternos. Estava triste, tristíssimo.

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A C R I S TA L E I R A
A casa, desde a entrada, cheirava a mato. Cheirava a
mato e a terra molhada. O avô tinha ido buscar o neto
mais velho, mas teve que levar a menina também.
“Eles são irmãos, aonde vai um vai o outro”, disse
Marta, mãe de Soninha.
Olhando de fora via-se o portão e bem ao fundo
o segundo andar da casa, escondido atrás das várias
árvores altas e da trepadeira que cobria quase comple-
tamente as paredes mofadas. O telhado de cerâmica,
já esverdeado pela umidade e pelo tempo, deitava suas
várias faces sobre as paredes imponentes. Ao tocar o
portão Soninha já sentia aquele cheiro forte de verde.
No caminho de pedras que levava até o pomar, as
orquídeas muito bem cuidadas por Avó embelezavam
ainda mais a mata atlântica nativa. O quintal era
imenso, formado pelo pomar de frutas diversificadas,
a longa entrada e ainda um banco, próximo ao portão.
Este banco, feito na pedra, estava sempre tomado
pelos musgos, nunca por gente.
Naquela casa viviam seus avós e uma tia. A tia não
havia se casado. Diziam que não conseguia mais amar,
desde que seu grande amor morrera há muito tempo.
No entanto parecia feliz. Apesar de seus mais de qua-
renta anos, criava em torno de si uma atmosfera de jo-
vialidade. Morava naquela casa desde que nascera, no
mesmo quarto. As bonecas gastas e os coloridos do-

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minavam seu quarto de mulher adulta. Sempre cerca-
da de amigos, muitas festas pra ir. Sua vida na casa era
ser filha.
Muitos eram os costumes e coisas daquela casa, que
se confundia com a própria Avó. Também imponente,
um tanto mofada e de cabelos cor de cerâmica. Todos
contavam que tinha sido muito bonita. Soninha não
entendia como. Agora lhe parecia uma velha rabugenta
e cinza. A voz tornada grave pelos muitos anos de ta-
baco assustava um pouco a menina. Sempre com olhar
desafiador, seios grandes, queixo a noventa graus dos
ombros e um chinelo disposto a cantar na bunda dos
meninos. Assim era Avó.
Soninha não era a preferida do avô, tampouco de
Avó ou da tia. O avô não largava seu neto mais velho
pra nada. As outras duas mulheres também só tinham
olhos pros homens da casa, o pai de Soninha e seu tio.
À menina cabia a tarefa de ajudar a pôr e tirar a mesa,
assim como a de limpar a casa e lavar a louça. Odiava
com todas as forças ter que ficar com as mulheres na
cozinha limpando a sujeira daqueles homens falantes
que fumavam e gritavam na sala da cristaleira depois
das refeições.
Independente da hora em que acordassem, só a ve-
lha Avó podia sair da cama antes das oito horas da ma-
nhã. Não se sabia ao certo a razão de tal regra, mas as-

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sim era. Soninha ficava acordada por muito tempo até
poder se levantar. Nesse meio tempo pensava na casa,
que falava com ela. Os longos corredores do segundo
andar, onde ficavam os cinco quartos, tinham azulejos
verdes no chão frio e ecoavam a cada passo da velha.
Nas paredes, os quadros com fotos tão antigas quanto
o próprio tempo, faziam Soninha pensar quantos anos
Avó teria. Tinha ainda a sala da cristaleira. Uma sala
pequena, quando comparada aos outros cômodos. As
crianças não podiam entrar lá. A cristaleira era o xodó
de Avó, que a mantinha sempre brilhante. Pelo menos
era o que os adultos contavam. Nestes momentos do
início da manhã era quando a menina podia melhor es-
cutar a casa.
O primeiro andar parecia um porão. Muito úmido,
escuro e pouquíssimo utilizado. Nele estavam a biblio-
teca do avô, sua coleção de armas antigas e algumas
garrafas de bebida. Havia também um sofá estranho
no qual ninguém se sentava. Inesquecível era o chei-
ro deste salão, como se a mata estivesse ali dentro. Os
meninos tinham medo do primeiro andar. A frieza das
paredes grossas e descascadas lhes dava sempre a im-
pressão de que alguma coisa, viva ou morta, sairia dali.
Naquela manhã Soninha decidiu que não fica-
ria na cama até a hora estabelecida. Pisou o mais leve
que pôde no chão. Sabia que Avó não estava por per-

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to. Tocou seu pezinho de menina no chão frio de azu-
lejos verdes e viu-se levada por eles. Enquanto os azu-
lejos corriam sob seu pés sentiu um frio no estômago.
Entrou na sala da cristaleira.
Seus olhos esbugalhados quase cegaram com a luz
que vinha dos cristais. Entendeu porque Avó não dei-
xava que as crianças olhassem aquilo. Eram muito no-
vos para tanta beleza. O sol que entrava pela janela
grande de madeira refletia nos cristais rosados criando
cores indescritíveis. Foi possível ouvir o som das cores
fluorescentes. Paralisada, talvez tenha chegado a sor-
rir. Ouviu alguma coisa e chispou escada abaixo, rumo
ao pomar.
Estava tudo diferente. As árvores altas pareciam
ansiosas por algo. Pôde perceber que a mata respirava.
As orquídeas a olharam com desconfiança. Teve medo.
Lembrou de Avó e de sua proibição. Quis voltar pra
cama, respirou fundo. A terra sob seus pés se movia
lentamente, como um grande lençol balançado a qua-
tro mãos. Equilibrou-se. Olhou para as trepadeiras que
pareciam cobrir toda a casa, rastejando parede acima.
A casa estava mesmo viva, toda ela. Ouviu chamarem
seu nome. Era Avó, estava sentada no banco de pedra
perto do portão. Tinha sido descoberta. Caminhou len-
tamente em direção ao banco enquanto pensava em al-
guma desculpa plausível.

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Avó lhe sorriu. Estava também muito diferente, as-
sim como a casa, estava mais viva. Soninha notou em
seus olhos uma doçura que nunca reparara. Parecia
mais leve. Pediu para que a menina sentasse e começou
a contar-lhe sua história enquanto lhe afagava os cabe-
los. Tinha fugido de casa, ainda bem nova, para casar.
Sua família não gostava do avô de Soninha. Era uma
estória linda, de romance de livro – pensou a menina.
Pela primeira vez imaginou que Avó não tinha nasci-
do velha. Durante estes muitos anos que se seguiram
à fuga, tinham vivido muitas coisas naquela casa, que
era também ela mesma. Disso a menina já sabia, sen-
tia. Neste momento Avó fitou-a longamente e com uma
delicadeza emocionada pediu a Soninha que cuidasse
dos cristais, quando ela não pudesse mais fazê-lo.
A menina sentiu um arrepio subindo-lhe a espi-
nha. Nada daquilo podia ser. No meio da mata respi-
rante, entre orquídeas desafiadoras, Avó a adulava e
pedia para que cuidasse dos cristais?! Não lembrava de
ter recebido carinhos de Avó, uma vez que fosse. Olhou
mais uma vez pra velha. Achou-a bonita. Seus olhos
passavam uma tranquilidade enorme. Teve medo, mui-
to medo, aquela não podia ser Avó. Correu o máximo
que pôde, deixando a velha pra trás.
Ofegante, passou pelo quintal em disparada e subiu
os degraus até a sala da cristaleira. Quando entrou viu

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Avó, deitada no chão. Seu corpo ressecado e mais velho
do que nunca. Suas mãos em forma de gancho segura-
vam a cristaleira, endurecidas. Avó, ou o que restava
dela, parecia agarrar-se àquele móvel com todas as for-
ças que lhe sobravam. Levava no rosto uma expressão
de pavor intenso, que fazia com que suas bochechas
entrassem cara adentro. A menina tremeu.
Pé ante pé, caminhou para seu quarto, abriu a por-
ta e deitou-se. Olhou o relógio do quarto, ainda era
cedo. Cobriu-se e esperou dar oito horas.

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TRIÂNGULO
D E PAU L A
Olhou bem para o telefone celular. Indecisa, fazia isso
diariamente há mais de dois anos, sem conseguir li-
gá-lo. “Nada resistiria a tanto” pensou. Incontáveis
lembranças rodopiavam sua alma. Desejos, risadas.
Imagens descontinuadas, amputadas. No entanto via
tudo com angústia e medo ímpares.
Ligou, por fim, o maldito aparelho. “Provável que
tenham até desligado a linha”. Virou as costas em dire-
ção à geladeira. Instantaneamente ouviu-o vibrar. Ago-
ra tocava, andando vibratórios passos errantes pela
mesa de vidro; passos de telefone. Chegou perto. Ina-
creditável: era ele. Já não podia com o coração no pei-
to, “vou ter um troço!”. O barulho parou. Ingenua-
mente pensou que talvez ele desistisse. Nova chamada.
Desta vez atendeu de um pulo.
– Alô?
– Paula? É o Vargas. Como você está?
– Oi. Tudo bem Vargas.
Conversaram como se também ontem tivessem tro-
cado palavras. Mais de dois anos já tinham tido seus
respectivos desfechos desde que Paula desligara o te-
lefone. Culpa de Vargas, ligava demais! O que ela sen-
tia sempre que via um daqueles aparelhos, qualquer
que fosse a marca ou modelo, era Vargas. Seu peso, sua
desconfiança. Sua infinita necessidade dela. Seus ca-
belos brancos e longos amarrados por uma chuca pre-

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ta. Sua moto, sua inconsequência. Sua inconstância?
Aquela ligação certamente falava o contrário. Fato que
sua constância grambéllica não possa ser colocada em
cheque. Mas não era disso que ela falava; mesmo tem-
po que sim, era.
Seria então assim, de novo. Nesses treze anos, não
era o primeiro episódio como esse, este certamente
mais longo, “certamente”. A insistência dele não can-
sava de surpreendê-la. “Desta vez ele se superou”, pen-
sou de novo. Culpá-la não poderíamos. Como um má-
gico de programa estrangeiro, ele fizera o telefone dela
tocar assim que ela o ligou, depois de dois anos. Dado
inquietante a deixava em pensamento livre, imaginan-
do-o ligando a todos os instantes, por anos a fio. “Que
foi de sua vida nesses anos? Pobre! Decerto perdeu em-
prego por conta dessa telefonação sem fim…” conjec-
turava, num misto de amor de novela e assustamento.
Depois de tudo isso não podia ser que ele não tivesse
entendido. Apesar do amor que dispensava a Vargas,
tinha que cuidar de seu pai, muito velho. Morava com
ele. Não sairia por aí, na garupa de uma moto! Inda
mais agora, depois da morte da mãe. Isso, por exem-
plo, ela só disse a Vargas depois de dois ou três encon-
tros. Porque sim, vieram os encontros.
Desta vez talvez fosse diferente. Afinal, esta-
vam mais velhos ainda. Não que tivessem se conheci-

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do jovens. Vargas já mais de cinquenta, há treze anos.
Chegada hora, sem dúvida. O velho pai já passava dos
noventa e cinco, tampouco duraria tanto mais. Ainda
sob esta ótica, nada mal seria, caso Vargas estivesse
próximo à triste órfã no momento fatal. Seria de ótima
coincidência para ambos.
Durante os encontros, estranho que fosse, não to-
cavam no assunto dos dois anos de desaparecimento e
telefone desligado de Paula. Vargas mostrava-se cava-
lheiro, tentava menos ansioso, enquanto ela bastava-
-se com o lugar da mulher desejada, paparicada a todo
custo, mas impossibilitada por uma questão de com-
paixão, amor de filha:
– O mais sublime dos amores! – bradava a heroína
a quantos ventos soprassem.
Continuavam a encontrar-se no sofá da sala, sob
os olhares atentos do velho, que não se afastava um
segundo. Nem mesmo pegar no sono vez em quando
como todo velho, ou como qualquer um entediado por
namoro tão sem maiores aprofundamentos. Parecia
que não largaria o osso tão cedo. Paula era dele.
Disputava-a em silêncio, em um tipo de jogo da vida.
Aquele que vivesse mais, levaria a garota, que, diante
do olhar de ambos, envelhecia e enfeiava-se a cada dia.
Já, há muito, passara dos cinquenta, presa à obrigação
e ao desejo pelos dois homens.

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Despediram-se como sempre.
– Amanhã te ligo, linda!
– Esperando…
Beijaram-se no rosto. Vargas beijou-lhe a testa e
desceu pelas escadas em espiral. Paula entrou e arru-
mou o pai na cadeira, sabia que ele estava exausto e
que dormiria agora. Foi até o telefone e desligou-o.

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OS IRMÃOS BACORÉ
Naqueles dias eles costumavam ficar quietos, lembran-
do apenas. Tentavam entender assim o que se passou.
Entreolhavam-se vez em quando buscando no outro
algum gesto de aprovação ou algo que pudesse ser lido
assim. Lembranças são peças imprecisas de um mosai-
co confuso. Por isso eles se uniam para lembrar, ou a
necessidade de lembrar os unia.
Muitas eram as coisas para se lembrar naqueles
dias. Dias diferentes dos outros, que eram para esque-
cer. Já estavam ficando velhos. Geraldo, o mais velho
dos três, se aproximava dos setenta e como os outros
irmãos não tinha constituído família. Naqueles dias, os
irmãos Bacoré sentavam em suas cadeiras de madeira
escura que rangiam insistentemente, e perdiam-se em
tarefa recordativa. Entre baforadas de fumo de rolo e
tragos de cachaça, tentavam preencher os vazios dei-
xados pela vida e pelas mortes da vida.

**************

Um menino olhava da porta enquanto a Moça e o Moço


se beijavam. Sentia um misto de desejo, culpa e ódio.
Também ele beijava o outro menino, como tinha visto
tantas vezes. Tocavam-se… tremiam-se. No paiol fala-
vam deles. Tinham medo de perder as partes como fa-
lavam. Mas também riam-se, riam-se muito. Corriam

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em brincadeiras pelas mangas; derrubavam-se, desco-
briam-se. O verde empoeirado das folhas da pitombei-
ra enchia o ar de marrom. Os bezerros corriam atrás
de suas mães. O Moço os apartava. Olhava também os
meninos. A Moça sorriu; depois parou. Tinha pitangas
em seus dentes.

**************

Chegaram naquele vilarejo já não tão novos e só os


três. Saíam e falavam pouco. Com eles vieram muitas
estórias. A verdade é que não se sabia muito sobre os
Bacoré. Sabia-se que eram homens trabalhadores, com
especial dedicação ao cultivo da mamona.
O fato de serem três homens morando sozinhos era
o que mais lhes rendia lendas. Na venda de Seu Oscar
alguns diziam que tinham sim sido casados, os três, e
que haviam matado as três mulheres e fugido pra lá.
Outros juravam já os ter visto lá pelas bandas de Santa
Fé e que, certeza, só Geraldo tinha sido casado e sua
esposa fugido com um amigo, deixando-o numa triste-
za de dar dó. Outros diziam que eles eram um tipo de
casal, um casal de três irmãos.

**************

32
Aquele menino gostava muito da Moça. Aquele e os
outros. Por que ela tinha que ir pra outras lonjuras?
O Moço também teria que ir, disso eles sabiam… que-
riam também. Não poderiam continuar todos ali, não
mais, não mais daquele jeito. O vento já soprava forte
demais àquela hora, logo ficaria fora de controle.
A casa grande da fazenda, os quartos escuros,
muitos. Sombras criadas pelas pequenas entradas de
luz no telhado alto. O cheiro quente do leite no copo
de lata de óleo… vapor de rapadura. Os meninos, os
três. Tinha também a escrivaninha no canto, em que o
Moço e seu óculo se apoiavam. Os sulcos da madeira
onde formigas trabalhavam, fortes. Farpa em dedo
curto de menino. Queijo derretido com açúcar em cima
do cavalo. Bolachas. Água e sal, peta, beiju. Cimento
vermelho frio, parede azul descascado até o meio, no
alto brancas.
Encontro puro, o olhar pútrido. A Moça agora sabe.
Sabe? Tateavam a travessia.

**************

Moravam na rua detrás da venda de Seu Oscar. Tinham


mesmo um ao outro, não eram de mais amigos. Teria
sido sempre assim? Talvez isso também gerasse fala-
tório, aquilo incomodava os outros. Fazia com que, de

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alguma forma, eles se sentissem desnecessários, prete-
ridos. Os Bacoré, gente desfeitosa.
Esse ciúme raivoso, ou mesmo o falatório, não to-
cava os Bacoré. Seguiam como se nada ao seu redor
fosse ou mesmo tivesse sido. Assim entenderia al-
guém que entrasse naquela casa naqueles dias de lem-
brar. Sentados em cadeiras dispostas como um triân-
gulo isósceles, Geraldo na cadeira próxima ao angulo
do vértice, era como se estivessem em outra dimensão.
A atmosfera onírica era composta ainda pela fumaça e
pela pouca luz. Pareciam mesmo nunca ter precisado
de outras pessoas.

**************

Era possível ouvir os gritos desesperados dos bezer-


ros apartados das mães. Algumas respondiam à angús-
tia dos seus rebentos com profundos gritos longos, ou-
tras não. O cheiro forte do curral trazia um morno até
o peito. Os meninos estavam com medo, mas certos.
A Moça não via, tinha o Moço por cima. A gritaria dos
bezerros tornara-se insuportável. Bezerros? Pedaços
de pau, pedras. Quando a Moça se virou eles pude-
ram ver-se, enfim, refletidos nas pitangas. Meninos
linchadores.

34
A estrada continuava, a perder de vista, percorrida
pela Moça e pelo Moço, que não olharam pra trás.

**************

Haviam lembrado. Pra quê? Entreolharam-se ainda


uma vez. Foi Geraldo quem se levantou em direção à
garrafa de cachaça. A ricina estava no armarinho ao
lado da cristaleira. Sacudiu bem para misturar o vene-
no e serviu a todos. Enquanto bebiam o último trago
puderam ver, entre as dores no estômago, os três me-
ninos correndo atrás da Moça e do Moço, que, desta
vez, esperaram.

35
CONTO ANSIOSO
Caminhava lentamente em direção aos cães. Sorriso
nos lábios. Nas mãos e ombros lata d’água. Ereto, pare-
cia não sentir o peso do líquido pendular a cada passo.
Músculos tesos, braços não hipertrofiados, desenhados
pelo trabalho. Dentes e olhos marcantes, esclera leve-
mente amarelada. Expressão tranquila colada ao rosto,
aos detalhes do rosto. Os muitos anos de sol, o saber
segunda-feira todas as manhãs, os incontáveis far-
dos carregados e descarregados, imprimiam-lhe ainda
mais certezas. Sabia. Firme, continuava seu andar, reto
como um bailarino.
– Vamos colocar água limpinha pra vocês meninas!?
Colocou a lata no chão sem tremer ou apressar-se.
Com uma das mãos pegou do chão a vasilha do pri-
meiro cachorro. Com a outra em concha tirou água da
lata. Pouca. Limpando vagarosamente o vasilhame jo-
gou água suja fora. Levantando a lata encheu-o com-
pletamente. Repetiu a operação com meticulosidade
enchendo a segunda vasilha. Sorridentes os cães lhe
agradeciam com seus rabos e línguas chicoteantes.
Voltava desta vez com a comida.
Passo a passo aproximou-se. Agachado encheu
cada pote e observou a caminhada dos cães até eles.
Agora só olhava.
A dois metros dali, patrão daquele dia brincava
com filho pequeno. Poderia ouvir os pássaros, ou os

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risos agudos do bebê. O cheiro das mangas-espada na
chuva, o ruído das folhas se levantando com a venta-
nia. Se soubesse como, poderia, quem sabe, sentir o
arrepio silencioso que lhe subia a espinha sempre na-
quele mês das águas. Poderia até mesmo não ouvir ou
fazer nada. Mas as pernas agitadas entregavam sua an-
siedade de que tudo acabasse. Logo.

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V I A G E M E M FA M Í L I A
Sete ou oito lugares. Era um monstro de carro. De fato
lhes soava um tanto estranho alugar um carro em uma
cidade que por tanto tempo tinha sido a deles. A famí-
lia tinha crescido e isso os orgulhava, a cada um de sua
forma. Agora naquela cidade tão familiar, Doralice e os
seus precisavam alugar um carro.
– Sete ou oito lugares! – diziam.
Há muito não viajavam juntos. Tanto que ninguém
saberia dizer assim com corretude de anos quando esse
fato teria ocorrido. A todos, no entanto, parecia ter
sido em outra vida. Ezequiel, agora pai de família, cui-
dava do Menino com uma atenção maternal. Trocava-
lhe as fraldas entre cheiros e adulos com uma alegria
enorme.
– Nasceu pra isso! – bradava a irmã, recém tia, com
os olhos sempre marejados por sua imensa e inexorá-
vel grandeza de espírito.
O evento reunidor era um batizado de algum primo
tão distante quanto a última vez em que haviam viaja-
do juntos. Uma daquelas coisas inexplicáveis, que diz
das necessidades não sabidas, fez com que entrassem
juntos naquela manhã, na locadora de veículos. De car-
teira e cartão em punhos o pai de Ezequiel era só sor-
risos. Queria o melhor veículo para a melhor família
nas melhores férias de suas vidas. Binho era homem de
simplicidade de conta de somar e firmeza de pudim.

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Havia criado aquela família como possível, na maior
das vezes à sombra de Doralice. Diferente do que so-
nhavam Ezequiel e sua amada Úrsula. Diferente do que
sonhava Ezequiel em sua batalha para não ser como
seus pais.
Poderia ter sido isso o que há muito afastara mãe e
filho. Ou talvez outra das tantas coisas e coisas dessa
vida. Fato é que se afastaram. Não que tivessem gran-
des desavenças ou não se falassem; afastaram-se na
alma. Eram e sentiam-se muito diferentes. Nem filho
nem mãe haviam ainda conseguido esquecer, ou seria
lembrar, o que lhes faltava. Continuassem a procurar
aquilo um no outro, como antes. Talvez por isso preci-
saram se afastar, para serem cada um, um; um-só.
Quando Doralice deixara sua cidade há muito, ain-
da era cidadezinha que não se acha no mapa, que só
quem já foi sabe chegar. Agora já tinha seus tantos
habitantes que era possível perder-se em seus mui-
tos bairros. Sua família ainda contava com parentes
aí e era na casa de um deles que ficariam. Gente im-
portante, de nome. Muitas estórias eram associadas
aos Guimarães e à sua galhardia. Por anos, enquanto
as crianças eram pequenas e ainda viajavam com seus
pais, Doralice e Binho fizeram questão de levá-los ali.
Naquele lugar eles se fizeram Guimarães, fortes, bons
e orgulhosos de suas origens. Mas o tempo passava e,

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a cada dia, esses laços se afrouxavam, ou talvez se
apertassem, sufocantemente.
Crianças saiam de todos os cantos, fazendo tudo
parecer pequeno. No banco de trás Úrsula dividia es-
paço com a cunhada e com seus sogros. Ezequiel diri-
gia. Os outros bancos mais pouco cabiam os filhos da
irmã, o bebê de Úrsula e as tantas bagagens exigidas
por um grupo tão heterogêneo quanto aquele. Entre
idosos, mulheres e crianças; os carrinhos de bebê, as
cadeirinhas, as fraldas e as angústias ocupavam mais
espaço do que podiam suportar os sete ou oito lugares.
Tinham sido muito muito próximos, talvez ainda o
fossem, mas não sabiam, como antes. Ezequiel e a irmã
tinham tido uma infância marcada por muitas brigas e
muito trabalho dos pais. Brigas essas, de irmãos, bri-
gas que os uniam contra um inimigo comum, o medo.
Medo de Doralice. Sua braveza era conhecida. Quando
meninos, tremiam ao ouvir o barulho das chaves da
mãe ainda do lado de fora da porta, corriam e fingiam
dormir, ainda ofegantes. Por muito tempo utilizaram-
-se desta saída. No entanto não poderiam dormir pra
sempre. Hoje, se perguntados, não saberiam dizer do
que tinham medo, mas certo é que tinham, muito.
Diziam que era sua paciência e a tão cantada gran-
deza de espírito o que a aproximava de Doralice. Sua
alma perdoativa, sua possibilidade de se emocionar

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positivamente e, sobretudo, sua fraca memória. Para
Ezequiel era a maternidade. Desde o primeiro filho da
irmã, ela e a mãe tornaram-se unha e carne, ou car-
ne e carne. Suas confidências e conversas infinitas in-
comodavam o rapaz. Também o confundiam quan-
to às razões para aquilo. Enciumado, abandonado ou
simplesmente traído, o afastamento daquelas mulhe-
res também lhe dava vida, além do mais, pensar que:
“quando a mãe ficar velha, pelo menos não é comigo
que ela vai inventar de morar!”, o confortava.
Ezequiel pensava, podia-se dizer que sabia, que a
mãe viveria muitos anos. Passava dos sessenta, mas
ninguém lhe daria tanto. Cuidava-se como poucas. Em
um tempo em que se prometia vida longa àqueles que
se cuidassem, Doralice era hipercontemporânea. Além
do mais, vinham de uma família em que as mulheres
viviam muito, diferentemente dos homens, que mor-
riam muito. Fosse cachaça ou tiro, os homens da famí-
lia Guimarães não eram longevos. Viveria então até os
noventa e tantos ou quem sabe mais ainda.
O ar condicionado funcionava no máximo, como o
calor. Corpos e cabelos suados tocavam-se, em famí-
lia. Perdigotos planavam numa atmosfera propícia en-
quanto Úrsula limpava o rosto. Pouco havia para ou-
vir naqueles fonemas invasivos. Eram três da tarde.
Continuavam, sem saber. O sinal os parou.

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Os sons de algo dito ainda ecoavam. Sem mais,
Ezequiel saltou. Abriu a porta de trás. Arrancou sua
mãe de dentro do carro. Ali, no meio do tráfego deu-
-lhe três tiros, no meio da cara, em meio à plateia
atônita.
O silêncio era absoluto, o sol torrava o chão batido
quando Úrsula desceu e afagou seu homem, tirando-
-lhe os cabelos da testa suada:
– Eu sei, meu filho, não tinha outro jeito.

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AMOR
Um passo depois da entrada, bastou isso. Sentiu o ca-
lor de ser frita por olhares de todas as direções e mes-
mas intenções. Sua silhueta quase esquálida, passos
de reboladas firmes, costas esguias, boca desafiadora.
Olhos não puderam ver, óculo escuro arrebitado em
ambas pontas faziam-na olhar de cima, loucura sóbria.
Cássio não pôde descolar olhar ou passos da moça loi-
ra, seguindo-a onde fosse.
– Gostaria falar comigo? – direta.
– Verdade, gostaria sim. Aliás, …precisaria.
– Precisaria? – Olhar desconfiado.
– Sim. Depois de vê-la, certo que preciso. – pálpe-
bras descaindo levemente, rascunho de sorriso na cara.
– Tão lindo, parecia um bichinho pidão de colo e
adulo… resolvi pegar pra cuidar; até hoje assim, gruda-
dos. – Sorri sorriso franco com olhos ávidos pelos dele.
Contavam estória a amigos. Como se conheceram.
Sorriam-se em amor de segurança, de poder contar
para tudo. Juntos, nunca faltasse rede de proteção.
Os amigos, sempre muitos. Cássio e Laura eram
anfitriões e companhia maravilhosos. Nunca briga-
vam; ou fossem discretíssimos, briga alguma houve-
ra sido presenciada por qualquer. Tinham ideias ino-
vadoras e ainda assim enquadradas na moral vigente.
Festas que não passavam dos limites do aceitável, mas
que, do inicio ao fim, brincavam bem próximas a eles.

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Anos já haviam passado, alguns diriam que muitos,
mas o tempo interno é realmente exclusivo. Laura sen-
tia que há muito tinha Cássio, segurança, amor. Para
Cássio, a insegurança insipiente ao início de qualquer
relacionamento, rondava seu sono. Combinação.
Outro ano se aproximava do fim, verão. Frente
ao computador olhavam possibilidades de ver o mar
por alguns dias. Camarões, caipirinhas e pousada
romântica.
– Só nós dois!
Não sentiu na esposa a mesma alegria, ou dispo-
sição, talvez esperasse mais aventura em seu espírito.
Pensou que talvez ficarem sozinhos já não cutucasse
parte aventureira dela.
“Será já não lhe basto mais?”
Laura, pimpona, prepara coisas e tantas coisas.
Viagem. Delírio de revigoramento compartilhado, não
só por eles. Sonhou barulho de mar e braço forte abra-
çando. Sentiu olhos na nuca e barba roçando. Arroz de
polvo no quarto.
Ele, olhão sorridente:
– Acorda, amor! Daqui no aeroporto meia hora,
mínimo!
Olhou-a abrir os olhos cor-de-folha-seca; estavam
esverdeados. Desenhados lábios carnudos sorrindo por
serem acordados. Aquela alegria pareceu-lhe dema-

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siadamente exagerada. “Com que sonhava pra acordar
assim?”
– Vamos! Taxi chegou!
Cabeça deitada no ombro, Laura dormia tranqui-
la. Esperava chegar, conhecer, sentir o cheiro e amar.
Cássio desperto tentava fechar todos detalhes. Aluguel
de carro, confirmação de reserva, previsão meteoroló-
gica, desejos de Laura.
Por mais que tentasse não conseguia deixar a ideia
de que a esposa queria mais. Sentiu medo de perdê-
-la. Sabia que não poderia suportar. Lembrou dos dois,
mão pêga, em frente cartaz de filme. Cinema novo.
Distraído, sai do devaneio ouvindo piloto avisar iní-
cio do pouso. Pensa as formas de suicídio ideais para o
momento em que fosse abandonado.
A pousada superou expectativa de ambos. Desce-
ram do transfer em êxtase. Quase correndo chegaram
à suíte. Olharam as muitas pétalas de rosa e o pro seco
posado desfalecido entre os travesseiros.
– Ai, amor, estou morta. Pescoço doído! Parece que
vim torta viagem inteira! Arruma essa cama e tira es-
ses exageros enquanto eu tomo banho… Favor, tô tão
estragadinha…
Laura banhava-se e Cássio “arrumava”, indignado,
a cama. “Deixa que eu desfaço o clima”.
Grito no banheiro.

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Ainda iniciava sua tentativa mais desesperada de
chegar, quando ouve a esposa:
– Merda de água quente! Isso não é água quente, é
tentativa de desfiguração! – já riam os dois abraçados.
Susto passado.
Entendeu com certa desconfiança a recusa de Laura
ao sexo na primeira noite. A permanência da recusa nos
dois dias seguintes quebrou-o. Cabeça revendo cada
movimento dos dias, noites, semanas e meses anterio-
res. Já estavam no quarto dia de viagem, ele há três sem
dormir. Imagens, conversas e discussões povoavam seu
pensamento incessantemente. Como grandes máquinas
de impressão, os pensamentos passavam e repassavam
por seus olhos, infinitamente. Cássio tentava encontrar
algum furo, algo que não tivesse percebido anterior-
mente. Trabalho extenuante. Laura às gargalhadas con-
versava com alguém ao telefone do lado de fora.
A tensão foi tomando conta do inseguro e ameaça-
do esposo. Pensou em sua vida sem Laura. O vazio ti-
rou o que restava de brilho em seu olhar. Encolhido na
cama de um hotel romântico, viu-se completamente
só. Fantasiava-a em sorrisos e lugares em que ele não
podia estar. Olhava e reolhava a mesa daquele restau-
rante imaginário sem conseguir colocar-se em nenhu-
ma das cadeiras, nem mesmo naquelas que margeavam
a alegria do grupo de sua amada.

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Passando saltitante Laura o tira do transe:
– Indo tomar banho, meu bem!
Resposta não ouviu, mas sentiu-o entrar no box.
– Delícia, cê veio… ensaboa minhas costas?!
– Claro, meu amor. Olhe, você precisa saber, eu te
amo demais, viu?!
– Eu sei, querido. Eu sei.
Bastou um movimento. Cássio segurou os braços
da esposa, abriu a água quente no máximo e segurou
seus longos cabelos. Os gritos de Laura queimando
rosto, colo, seios e barriga, aterrorizou o mais distraí-
do dos peixes. Até que um segurança do hotel arrom-
basse a porta durou a tortura.
Doutores, os melhores, salvaram sua vida, mas
não seus belos traços e formas. Olhava-se no espelho
com pavor de si mesma. No entanto, sentia-se aliviada
sempre que via refletida a entrada de Cássio. O mari-
do cuidava e a amava como nunca, tamanha devoção e
ternura. Seguro e carinhoso, não tornou a sentir medo
de perdê-la. Laura voltou a olhar-se no espelho, olhou
seu rosto. Pousando olho cor-de-folha-seca em uma
das rugosas marcas profundas, soube que nunca seria
tão idolatrada por outro. Deixou-se amar.

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IRMÃS
O soar da sineta tocada pelo coroinha escondido pró-
ximo ao pé esquerdo de Padre Justino fez com que to-
dos se ajoelhassem. Apesar da idade avançada, Rosa e
Jacira esforçaram-se até o genuflexório. Aquele já não
era movimento de fácil execução para as duas beatas,
mas o sacrifício tornava-o ainda mais prazeroso. Terço
firme entre indicador e polegar, eram fervorosas.
Acompanharam a consagração das hóstias, ansiosas
pelo momento em que as receberiam das mãozinhas
de Padre Justino. Para a tristeza ansiosa das duas ir-
mãs, já era Sexta-feira, o que significava que não iriam
à missa no dia seguinte, posto que se eximiam de tal
obrigação aos Sábados.
Cambaleantes, deixaram a igreja apoiando-se nas
bengalas e, claro, uma na outra. As ruas pareciam cada
vez mais íngremes, longas e irregulares com o passar
dos anos. Dentro das sapatilhas finas de borrachinha e
pano, os joanetes amontoavam-se e doíam como o cão
a cada pisada nas ruas de pés de moleque. Chovesse
canivetes faziam sempre aquele trajeto, de Domingo a
Sexta-feira, como uma penitência sem último degrau.
Passo a passo as irmãs sofriam sua fé e devoção sob os
olhares atentos dos moradores da pequena Prazeres.
Moravam em um casarão na rua Francisco Sá, per-
to da praça. Casarão térreo, colado ao chão e à casa
ao lado, ao estilo português. As janelas de madei-

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ra dispostas simetricamente davam ideia do núme-
ro de quartos daquela casa, oito no total. As paredes
claras com contornos em azul. Naqueles dias somen-
te Rosa e Jacira viviam ali, já há muito, desde que o úl-
timo dos dezesseis irmãos casou-se, deixando-as uma
com a outra. Agora, depois da morte de vários dos ir-
mãos e do envelhecimento de todos os outros, as visi-
tas eram cada vez mais raras. No entanto, mantinham
a casa sempre impecável. O chão de madeira escura es-
tava sempre encerado, os móveis e porta retratos sem
poeira alguma. Pouco abriam as muitas janelas, o que
tornava o ambiente da casa um tanto inóspito. Embora
não enxergassem bem, tropeçavam apenas em seus
próprios pés, sabiam exatamente a disposição de tudo.
O Sábado começava como todos os outros dias.
Levantavam-se ainda sob o céu escuro e encontra-
vam-se na mesa da cozinha após a higiene matinal.
Comiam queijo com café, às vezes bolos e pães de quei-
jo. Cuidavam então das plantas, da limpeza, do almo-
ço e dos muitos cafés do dia. Mas algo era diferente.
Houvesse um terceiro naquela casa, perceberia alguns
olhares fugazes, um não saber o que dizer. Perceberia
também um ar carregado de ansiedade, meio morno.
Daqueles ares que deslizam passos bailarinos pelas at-
mosferas criadas entre pessoas que sabem de algo in-
dizível, tão humano quanto o próprio medo de se ver

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imperfeito e faltante. Atmosferas paridas por lem-
branças distantes, fecundadas por segredos que, de há
tanto guardados, fossem quase esquecidos, como um
brinco que não se sabe onde foi parar. Brinco que sal-
tará do fundo do armário como um cão aprisionado
que insiste em tentar romper sua corrente. Atmosferas
que apenas as contradições e os mais profundos dese-
jos da alma humana são capazes de gerar.
O sol já se punha e a respiração das irmãs tornava-
-se mais e mais curta. As janelas foram então fechadas,
uma a uma. O mundo tinha ficado lá fora, eram só as
duas, e o casarão. Uma réstia de luz da rua forçava sua
passagem tímida pelas frestas das janelonas. Agora já
estavam ofegantes. Jacira entrou no quarto que foi de
seus pais e olhou Rosa deitada sob o lençol de algodão
cru. Rosa desviou o olhar, mas de canto de olho viu sua
irmã trocar a grande calcinha cor da pele por um cin-
turão de couro e um chicotinho curto. Veio em direção
à cama. Rosa quebrou o silêncio cortante:
“Ave Maria cheia de graça senhor é convosco, ben-
dita sois vós entre as mulheres…” – pressionando o
terço entre as mãos ossudas.

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DE PEITO ABERTO
Eu devia ter uns três anos à época. Lembro-me mais
que perfeitamente do cheiro dos cabelos dela, do seu
calor. Estávamos os três, preparando algo como uma
mochila. Meu pai sorria e me fazia cócegas enquan-
to eu gargalhava grudado ao pescoço dela. Íamos para
o parque. Acho que sempre íamos aí. Pelo menos é até
onde a memória me permite saber.
Sei que deve parecer banal e um tanto lugar co-
mum, mas ali então eu fui feliz. Mais banal ainda se-
riam os anos seguintes, ou menos. Quando ele foi em-
bora carregava uma mala muito pequena e marrom. De
dentro do carro acenei e fui correspondido. Senti uma
culpa enorme. Por alguma razão eu sabia que era res-
ponsável pela partida de meu pai e sabia também que
minha mãe não me perdoaria por isso, jamais.
Passava muito tempo sozinho, gostava de ler e ima-
ginar. Ele nunca voltou. Nessa época eu já me sentia
normal, acho. Como se sempre tivesse sido assim. O
cheiro dos seus cabelos é que tinha mudado, assim como
a distância entre os fios e meu nariz. Esperneei muito, e
o faço todavia. Mas seguro, tenho minhas razões.
Esperava pelos seus carinhos, porta aberta. Peito
tomado por uma ansiedade enorme “ela vai lembrar
de mim, vai lembrar”, como se uma mão enorme
apertasse meus brônquios enchendo-os de patoás de
chumbo. Continuei sozinho. Certa forma, tampouco

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ela voltou. Tenho tanta raiva guardada. Aqueles que
não se dispõem a cuidar dos filhos propriamente, não
deveriam ter filhos! Observava as outras crianças com
seus pais. Muitas vezes só com a mãe. Carinhosas,
sorridentes, arteiras. Eu sempre fui obediente e com-
portado, mesmo assim não tinha sua atenção. À noite,
esperava ela dormir e deitava em sua cama. Tentava
chegar perto dos seus cabelos. Não sei se ela dormia
de verdade ou se fingia, mas sei que se aproximava e
algumas vezes até sorria de olhos fechados. Sempre
desejei que fingisse.
Foi quando aquele homem começou a frequentar
nossa casa. Vejo suas mãos rosadas e peludas. Era
ruivo e muito grande. Estava sempre em casa, dizia
que para cuidar de mim. À época não disse nada a ela.
Mas ela tinha que saber! Como pôde não perceber
que entregava seu filho a um abusador? Na cama eu
ficava pensando em muitas coisas, em todas as coisas.
Contava tijolos e ouvia os sapos. Tudo para não dor-
mir. Tudo para não revê-lo também à noite. Hoje ela
diz que isso nunca aconteceu. “Carlos, este tal homem
ruivo nunca existiu, meu filho. Isso é coisa da sua
cabeça.” Claro, assim como ela nunca me abandonou.
Assim como não passou direto pela porta do meu
quarto, sem ao menos se importar em meter a cara na
fresta e ver se seu filho dormia.

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Devo retornar à minha linha de pensamento ou me
perderei, chegando, mais uma vez, a lugar nenhum.
Juro que não sei por quanto tempo este homem me fre-
quentou, diariamente. Semanas, meses? Talvez mais.
Mas partiu. Não como chegou. Ninguém nunca parte
assim como chegou. Ninguém toca sem deixar marcas
ou sorri sem expor dentes. No entanto ela não percebeu
nada, andava feliz. Eu sim a percebia, vi que sorria mais
e até me olhava como antes. Logo chegaria Marcos.
Tento entender como pude levar tanto tempo para
ver que ele já morava em nossa casa. Pra onde se diri-
gia minha atenção? Estavam sempre se beijando e rin-
do alto. Saímos os três, fomos ao parque. Fiquei sozi-
nho, pensando no meu pai. Eles não gostaram. Mamãe
disse que eu deveria me aproximar, que seríamos feli-
zes de novo. Impressionante como ela sempre conse-
gue colocar a culpa em mim. Não fui eu que me afastei!
Eu a amei! Esperei por ela todos os dias da minha vida!
Mesmo assim eles não me aceitavam de verdade.
Tentei ser o filho bom, mas eles não queriam um filho
bom. Queriam outro filho, que nasceria pouco depois.
Deste dia em diante, perdi-a de vez. Nada mais lhe im-
portava no mundo, só o bebê. Fui pra rua. Fiz amigos.
Mas a solidão e tristeza não me abandonariam. Passei a
falar tudo, tudo mesmo. Joguei várias vezes meu aban-
dono em sua cara. “Cida, até quando este seu filho vai

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ficar dando chilique? Não podemos mais jantar uma
noite em paz!”. Ele falava isso porque não conseguia
ouvir a verdade, a péssima família que eles foram e são.
Decidiram que eu deveria sair de casa. Alugaram-
me este muquifo e me jogaram aqui, como um gato
doente, um louco leproso. Vêm me visitar de quan-
do em quando e eu também vou à casa deles. Sempre
nos encontramos para almoçar aos domingos.
Costumeiramente comemos frango. Os almoços têm
sido até agradáveis, pois se dão ao trabalho de me dar
atenção uma vez por semana. Claro que algumas vezes
acabamos por trocar farpas, mas tudo em família.
Pode ser essa a razão de tantas recordações.
Quando acordei esta manhã neste lugar horroroso
nem me atentei pra que dia era. A barulheira dos fiéis
deixando a igreja da praça me despertou. Como fa-
zem barulho estes louva-deuses comedores de hóstia
compulsivos!? Para que alcancem a salvação, ninguém
pode dormir. De certa forma têm o mesmo lema que
os traficantes de cocaína: “Que hoje ninguém durma!”.
Preciso ir, me esperam; espero.
Quando cheguei, a mesa já estava servida. Um mi-
nuto a mais de demora e certamente comeriam sem
mim. O pequeno veio e me abraçou. Eu gosto deste
moleque, na verdade ele não tem culpa. Não deixarei
que façam com ele o que fizeram comigo. Sentamos.

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Minha mãe pegou a faca grande e começou a despe-
daçar o frango. Cortou os pedaços. Serviu a primeira
coxa para o pequeno e a segunda para… Marcos!? Não
é possível que esteja acontecendo de novo! Ela não me
vê aqui? Talvez não saiba que eu gosto de coxa. Nunca
me tivesse visto comer um frango! Estremeci. Cheguei
a sentir meu peito doer e uma certa falta de ar.
Levantei-me e comecei a gritar, como o louco no qual
eles me transformaram, como o louco que me veem!

**************

Cida olhou aquela cena de soslaio. Não podia contar


quantas vezes já a presenciara. Seu filho gesticulava e
gritava exasperadamente, não tinha ganhado uma coxa
do frango. Que péssima mãe ela era.
Tudo aconteceu muito rápido. A mesma mão que
cortou o frango abriu a barriga de Carlos do umbigo
até o baixo esterno. O rapaz caiu, de joelhos. No baque,
a inércia fez com que seus intestinos se espalhassem
pelo piso verde-esmeralda da sala de jantar.
Sem ofegar, Cida sentou-se novamente em seu lu-
gar. “Não quero ouvir mais um pio nesta mesa.” disse
em tom tranquilo.
Voltaram ao frango.

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AU T Ô M AT O
O casamento tinha sido espetacular. Flores saindo por
todos os buracos possíveis, quinteto de cordas, cantora
lírica grande e de vestido leve e rosa, igreja abarrotada,
mês de maio. Afinal de contas, uniam-se as duas prin-
cipais famílias da cidade. Regina estava linda, isso ele
não tinha esquecido. Inesquecíveis olhos sorriam com
um brilho que o embriagava. Hipnotizados nos olhos
um do outro. As bochechas ainda mais levantadas e ró-
seas, os passos decididos. Flutuavam. O barulho das
palmas era ensurdecedor. Depois os beijos e adulos en-
fileirados. As correntes de ar jogando vez após outra o
longo véu de Regina em seus olhos. Piscava e piscava.
“Rodando em valsa, pulando em rock”, lembrou-se.
Como se tudo tivesse sido planejado, vieram os fi-
lhos, um casal. A luta pela casa própria, o endivida-
mento eterno, as crianças em boas escolas. Infor-
mática, ballet, natação, judô, futebol. Cursinho pré
vestibular, curso de artes, cursinho pré concurso pú-
blico, curso de especialização.
Tantos anos já haviam passado e ele ainda conse-
guia lembrar de muito. Verdade que, do percurso em
si, lembrava pouco. Verdade é que tinha pouco parâ-
metro para analisar quanto lembrava. “Poucas coisas
que não podem ser quantificadas”, filosofou. Só tinha
vivido sua própria vida, nenhuma outra, e ela tinha
sido daquele jeito, naquele tempo. As vidas das inú-

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meras personagens criadas por seus autores predile-
tos eram cheias de detalhes, cheias de estórias. Mesmo
Molloy, com suas roupas sujas, seu pouco entendimen-
to e sua bicicleta velha, tinha memória de tantas ven-
turas, momentos. Já ele não.
O desenvolvimento das crianças servia de base para
algumas lembranças e associações temporais, mesmo
assim era extremamente confuso. Os anos se repetiam
exaustivamente. As paredes e portas da casa repetiam
o existir diário, com suas vivências concretas.
– Será que se tivessem sido cinco ou dez anos não
teria sido a mesma coisa?
Olhou para seu próprio corpo. Sem dúvida estava
envelhecido. Mas quando tinha sido isso? Onde estive-
ra todo este tempo? Lembrou-se de uma foto em que
estava na praia com Regina, lua de mel. A pele, o cabe-
lo. Tinha sido daquele jeito, sabia. Só não podia preci-
sar quando deixara de ser.
Agora fitava um velho. Naquela parede pendurados,
espelho e velho. Sabia, muito intensamente, que o velho
tratava-se dele mesmo, Carlos Fórceps Largado, mari-
do de Regina e pai de Junior e Clara. Velho. A barriga
pelancuda a esconder os pentelhos brancos sobre pinto
e saco murchos. “Umbigo esquisito” pensou. As pintas
brancas nos braços, “leopardo das neves” lembrando-
-se da televisão e aumentando pouco sua auto estima.

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Tomou consciência, talvez por primeira vez, que
muito tempo havia se passado. “Imprecisável, no en-
tanto” incomodado. Forçou-se quanto pôde para sa-
ber. Datas faltaram-lhe, fugiu-lhe dia da semana; afo-
garam-lhe palavras decepadas de seu contexto. Tentou
respirar fundo, “por mais tarde que seja, sempre have-
rá tempo. A partir de agora estarei desperto”. Divagou
acerca de quanto tempo perdera. Perguntou ao velho
refletido:
– O que seria deveras vida senão o dia a dia, as
obrigações? Poderia um sentir-se vivo todo tempo?
Quanto desgaste! Quanta energia!
Sentiu que seu rosto entortava pra direita. “Pra di-
reita não!” agoniado. Tentou consertar a cara. Agora
usava as mãos, segurava a cabeça que puxava seu corpo
violentamente pra trás. A coluna movimentou-se em
rotação. Sentiu o pé esquerdo levantar-se em um quase
chute. Perdia o equilíbrio. Caiu no piso de madeira.
– Carlos!!!! – gritou Regina enquanto punha os pés
no chão, procurando os chinelos ainda sonolenta.

65
CASAL
– Mas o que você sabe sobre ele que poderia
prejudicá-lo?
– Na verdade não sei nada. Coisa de casal, sabe?
Não sabia. Apesar de compor um casal há mais de
vinte anos e, em épocas anteriores, ter composto outros
casais, não sabia. No entanto perder a pose lhe era ini-
maginável. Especialmente diante daquela fala da nora.
– Claro! Coisa de casal tudo bem, a gente entende.
– Todo mundo tem uns segredos, umas coisas meio
indecorosas, impronunciáveis. Coisas sobre as quais
só falamos em casa. Nada de tanto, se nos permitirmos
não julgar.
Aquilo soou tão estranho quanto o roncar de alguém
desperto. Clara supôs não ter compreendido as pala-
vras, duvidou por um mini instante de sua sanidade.
Olhou a boca da nora mover-se sem produzir som. Con-
tinuou seu devaneio tentando lembrar algo escuso do
marido, algo que ele lhe houvesse confiado em segredo,
num momento de companheirismo do casal. Nada. No
trabalho pensativo lembrou de quanto se orgulhava por
não ter segredo algum: “minha vida é um livro aberto”.
Sentiu uma certa vergonha. Duvidou de si em essência,
na alma. Sempre tão segura, tão certa… Viu a vida pas-
sar diante dos olhos cansados: “eu não fiz nada!!!”.
Alegou horário no salão e despediu-se às presas.
Sem conseguir esperar elevador, desceu as escadas e

68
atravessou em direção à casa, queria seu quarto. O tem-
po das coisas pareceu-lhe outro. Os barulhos, as luzes.
Pessoas olhavam, inquiridoras. “Preciso me recompor”.
Há anos dava conselhos às mulheres que a rodea-
vam. “Entendia de homem!”. Certeza tão certa que in-
questionável, estruturante, fundamental:
– Homem mente. Engana. Tem que saber lidar com
o bicho!
As amigas se impressionavam com sua sagacidade
para pegar na mentira, com seus tantos e adelgaçados
sentidos. Via-se ministrando aulas acerca de como fa-
lar e lidar com homem: animal ingrato, safado; mas de
possível adestramento. A natureza do homem se lhe co-
locava tão cristalina, tão sem mistério, que a permitia
antever comportamentos. Percepção aguçada: era pes-
car em aquário limpo. Jogava iscas fosforescentes e eles
as mordiam com toda a força das mandíbulas. Como no
adestramento de qualquer besta, manter o controle era
chave. Essencial mesmo para o bem devir das coisas.
Tinha-os ao mesmo tempo como o lobo e o cordei-
ro, talhava todos à imagem do marido. Sim, eram fal-
sos, canalhas, enganadores. Mas também ingênuos,
sugestionáveis e fracos. Talvez por isso aceitasse e en-
tendesse seu companheiro. Desde que este admitis-
se suas mentiras, aceitasse sua condição de enganador
e, por vezes, se mostrasse “realmente” arrependido.

69
Verdade que, para que o marido admitisse toda sua
execrável condição masculina, eram necessárias ho-
ras de duras discussões e argumentações detetivescas.
Sofria o diabo, mas a recompensa vinha quando se via
certa, ou quando ele assim dizia.
Pensou nisso e percebeu que o prazer de desmasca-
rar o outro era sua essência, seu maior gozo. Nem toda
sua razão e corretude puderam blindá-la da própria
fragilidade. Demenciada alma. Questionamentos agora
a colocavam cara a cara consigo mesma, suas amigas e
verdades. Aos prantos se perguntava porque ninguém
lhe chamara atenção, enquanto todos os músculos do
seu corpo doíam, fazendo difícil o existir. Culpou o
mundo, de novo. Os não saberes povoavam sua respi-
ração entrecortada, quando assustou-se. Tantas recor-
dações, conversas, imagens. Teria ela nunca ouvido?
– Não! Sempre me responsabilizei por tudo o
que faço!
Certeza esmorecida.
Não que fosse uma criança. Familiarizada que era
com existência e vida dos segredos, poderia reconhe-
cê-los dentre entes animais, vegetais ou mesmo mine-
rais. Aliás, eles eram tronco em sua vida. Tanto que seu
tempo era desvendá-los. Estranhamente nunca portara
um segredo. Nunca ninguém lhe confidenciara algum,
tampouco ela criara um próprio! Mais uma vez culpou

70
os outros, péssimos amigos, maridos e parentes. Um
raio estalou na lagoa à sua frente arrepiando-lhe pelos
perna acima:
– Como escrever segredo em livro aberto? Quem
o faria?
Naquela noite não dormiu. Observou o marido, viu
seus olhos moverem-se rapidamente enquanto sonha-
va. Enganada pelos sonhos do cônjuge, desejou confi-
dências, mínimas que fossem. Ao entrar do primeiro
raio de sol, teve a ideia. A pele pessegou-se em brilho.
Olhos de maçarico, corpo pronto.
Estava tão radiante que chegou a beijar o marido
antes de sair junto com os restos da noite. Seus sal-
tos incomodaram pequenas poças de orvalho acon-
chegadas entre as pedras cinzas da rua. Tornozelos
firmes. Atravessou e bateu palmas pro porteiro do pré-
dio da frente, que, cumprimentando-a, abriu o portão.
Quando olhou os dois dormindo não titubeou. Abrindo
a bolsa, pegou a agulha de crochê e enterrou-a gargan-
ta adentro da nora, tapando-lhe a boca. Seu filho mal
se moveu, sono profundo. Saiu.
Tesão incontrolável. Ao marido demorou um pouco
acordar. Bicho de instintos sexuais aguçados, logo se
animou, apesar do estranhamento. Ela o fitava, fosfó-
rea. Sentindo-o totalmente seu, disse:
– Amor, tenho que te contar um segredo!

71
PA I D E V O TA D O
Mais uma vez olhou o teclado. Na tela, a foto de Olívia
lhe tirava e dava fôlego. Naquela foto ela não passava
dos vinte anos. As sardas delicadas, cabelo avermelha-
do assim como a boca. A pele rósea contrastava leve-
mente com o vestido branco decotado, as pintas des-
ciam pelo decote surfando seios firmes e volumosos.
Ao fundo o céu. Reparou por primeira vez uma nuvem
em forma de rosto a olhá-la. Sentiu um ciúme impro-
vável daquela nuvem, que, dali, para sempre veria suas
costas e bunda perfeitas. Lembrou-se de como as cal-
cinhas marcavam aquele vestido, tornando ainda mais
óbvias suas curvas.
Fato é que, desde a morte de sua amada, Joaquim
não escrevera mais nada, tampouco vivera para si.
Enlutou-se. “Fechado para o amor, pois nunca existirá
mulher como Olívia!”. Deixou de ser homem para ser
pai. Olivinha, cuja mãe morrera no parto, era uma do-
çura de menina. No início a família respeitou seu luto.
Logo, muito preocupada, a mãe quis mudar-se para a
casa do filho no intuito de ajudá-lo na difícil tarefa de
criar uma filha. Foi categórico:
– Agradeço a delicadeza e a preocupação, mas não
preciso de ninguém para ajudar a criar minha filha.
Afinal, não é minha filha? Filho é assim, basta nascer
pra que quem é pai saiba o que fazer! – Filosofou.

73
Preocupada, a mãe foi procurar o padrinho de
Joaquim, homem íntegro, há muito amigo da família.
Era como um segundo pai pro rapaz:
– João, você precisa fazer algo. Conversa com
Joaquim! Não pode um rapaz novo, bonito, decidir vi-
ver de viúvo!
O padrinho meteu o pé na porta. Chamou o afilha-
do na responsabilidade. Disse que precisava ser ho-
mem e outros bichos. Que homem que é homem tem
uma mulher do lado.
– Pois então deixei de ser homem, padrinho! No
dia em que morreu Olívia deixei de ser homem!
Por disparatado que fosse, a cada dia que passava,
Joaquim sentia mais orgulho de seu luto. Quanto mais
lhe importunavam, mais ele se fechava. Só andava de
preto, sempre com a filha a tiracolo, aliança dupla no
anelar da mão esquerda. Nunca descuidou de nada da
menina. Parecia uma boneca, uma boneca ruiva.
O padrinho chamou a família toda, fez drama de
novela:
– Assim não dá! Assim não dá! Desse jeito esse me-
nino acaba doido ou perdido! Isso é culpa de vocês que
ficaram enfiando na cabeça dele essa coisa de amor
eterno!! Tá danado! Tá danado!!!
Acusava a mãe e as irmãs de Quinzinho (elas o cha-
mavam assim). Filho caçula, sempre excessivamente

74
adulado, ensinado por aquelas mulheres a crer no ro-
mantismo e na alma gemisse.
– Balela de mulher! Coisa absurda, de estragar
qualquer menino!!! – bradava João.
Elas se calaram em culpa. Ele, havendo tirado cul-
pa e responsabilidade de seus ombros, seguiu sua sem-
pre atarefada rotina. Quinzinho tocou sua vida de pai
dedicado.
Olivinha crescia linda e extremamente apegada ao
pai. Respeitadora, educadíssima e cada vez mais pare-
cida com a mãe. Foi no leito de morte que sua avó lhe
disse, moribunda:
– Minha filha, seu pai deu a vida por você, pra você
ter a sua. Não cometa o mesmo erro que ele.
Olhou a avó com ternura, por respeito e criação,
mas ficou ofendidíssima. Admirava o pai acima de
tudo, deste ou de outro mundo. E seu maior orgulho
seria poder dar-lhe a vida. No enterro da avó, braços
dados com o pai:
– Prometo, nunca vou te deixar, pai. Nem morta!
Já tinha quatorze anos. Melhor aluna da classe.
Moça de poucos amigos. Amigo, amigo mesmo, só o
pai. Com ele conversava de tudo. Assistiam filmes às
gargalhadas no sofá da sala, cuidavam das roupas um
do outro pela manhã. E foi em uma dessas manhãs que
Joaquim, ao deixá-la na escola, pegou a si mesmo repa-

75
rando o rebolar de Olivinha. Assustou-se. Correu pro
trabalho, mas não pôde pensar em outra coisa. “Eu sou
um monstro! O pior dos homens!”.
O caso era tão sério que Joaquim se viu sozinho,
não poderia falar daquilo com ninguém, qualquer um
o julgaria mal “e com razão! Sou um desgraçado!”.
Assistia à menina desfilar de calcinha pela casa,
percebia-se perdido nas pintas que desciam por seu
colo, nos seios rosados e queria morrer. Passou a
agir diferente com a pequena. Disse que ela já era
uma moça e que não estava certo aquele desfile de
lingerie em casa. Ela acatou de pronto, como sempre.
Distanciava-se da menina, seu único amor, mais e
mais. Pouco a olhava nos olhos verdes ou mesmo
conversavam. Foi, aos poucos, se afastando. No
entanto o desejo impronunciável parecia ocupar cada
vez mais espaço em seu ser. Sonhava com Olivinha
praticamente toda noite, acordava suado, culpado e
doente de tesão. A culpa e a saudade da proximidade
com a filha corroíam seus intestinos. Tinha medo de
perdê-la, pavor de tê-la. Viu uma só saída. Preparou
tudo. Pendurou a corda numa viga forte, fez uma carta
de despedida em que explicava à filha o porquê de sua
morte. Colocou a carta no meio dos livros da garota.
Deixou-a na escola com um longo abraço e neste dia
não foi ao trabalho, voltou pra casa.

76
Já estava agonizando, pendurado, quando ouviu ao
longe a porta abrir e os passos desesperados da filha.
Olivinha cortou a corda que enforcava seu pai, esperou
ele recuperar o fôlego, às lágrimas:
– Seu idiota! Você não percebe que te amar é o que
eu mais quero?! Eu quero você!
– Ahh, minha Olívia!!!
Beijaram-se com avidez; extasiados, insaciáveis,
febris.

77
PA R T E I I
D E V O LTA À V I D A
INSONE
Naquela manhã levantou-se novamente como se não
tivesse dormido. O peso sobre suas sobrancelhas o
convenceu que deveria voltar a deitar-se. Olhou a cama
com asco. Nem os lençóis embolados deixando o col-
chão de estampa florida à mostra, nem as manchas
amareladas de suor nicotinado que empapavam o col-
chão o enojavam. Mas sim a própria idéia de deitar-se.
Ou seria o quarto? O cheiro de cigarro e tempo toma-
va conta do ar muitas vezes expirado e poucas circula-
do para além dos pulmões. A umidade das paredes co-
laborava com mais odores e sensações que arranhavam
garganta e olhos.
Deitou-se.
Pensava agora em como acenderia o próximo cigar-
ro sem precisar levantar-se. Olhou à sua volta pela mi-
lésima vez. O isqueiro preto estava, sem dúvida, fora
de alcance.
Mais uma olhada.
– Com certeza tenho outros isqueiros por aqui.
Tentou alcançar um palito, que não sabia se de fós-
foro ou de dentes, com o pé esquerdo. Empurrou-o
sem querer pra longe.
– Merda!
Decidiu que esperaria mais um pouco pra fumar.
Pensou em Dalila. Queria saber onde ela estava e se
ainda lembrava-se dele, afinal, tinham tido uma histó-

81
ria e ninguém pode negar a história. Alguém pode ten-
tar esquecer e, talvez, até conseguir, mas nunca negá-
-la de pronto. Olvidar, mas não matar, ah isso não. Isso
nem mesmo Dalila era capaz. Ela que era capaz de ma-
tar muito, ou quase tudo. Com a história nem ela podia.
Entre o emaranhado de lençóis encontrou um is-
queiro azul. Abriu sorriso de vitória nos acréscimos
e acendeu seu cigarro, pomposo. Soprou a fumaça no
rosto de Dalila que lhe sorriu com a ponta da língua ro-
çando os dentes da frente. Linda. O cabelo longo muito
enrolado, sua cor avermelhada e sua pele firme. Deitou
seu corpo nu em frente ao dele dando-lhe costas e ca-
belos pra cheirar, a bunda dura pra pegar. Virou-se ar-
repiada mostrando os dentes e a língua vermelha.
– Dalila, por onde você andou todo esse tempo? Te
procurei todos os dias, quase morri!
O quarto já estava feio e malcheiroso novamente.
Procurou Dalila, mas não a viu ou sentiu seu cheiro de
acerola madura. Arregalando os olhos, apagou o fogo
do colchão furado pela guimba que havia deixado cair.
Lembrou-se de quando ela disse que nunca mais o to-
caria, ou mesmo o olharia nos olhos. O aperto na altu-
ra do pescoço quase o deixou sem ar. Outro cigarro.
Viu mais uma vez aquele último olhar de desprezo.
Depois as costas e os longos cabelos foram indo em-
bora, decididos. Não esqueceria. A falta de ar agora já

82
lhe custava parte do pensamento. Um frio intenso per-
correu-lhe as pernas até o rosto. Brilho fosfóreo de la-
gartixa no teto desviou sua atenção de si mesmo. Pôde
novamente respirar. Imóvel lagartixa branca. Atentos
olhos no bicho. Percebeu o teto e suas imperfeições.
Manchas de mofo verde escuras.
– Quanta poeira nessa lâmpada.
– Você nunca se preocupou em limpar nem a reme-
la de seus olhos!
– Mãe?!
– Paulinho, você sempre foi desorganizado, um
imundo, um porco! Sempre eu correndo atrás de você e
de suas merdas, sempre eu te tirando da merda!
– Pois me deixe afundar em minha merda em paz,
cacete!!!
As gotas de suor brotavam por todo o corpo.
Pensou em como sua mãe sempre o julgara. Mesmo
morta, voltava só e apenasmente com o intuito de lhe
ferrar ainda mais a vida.
– Some daqui velha desgraçada! Volta pro inferno!
– Menino, vê se isso é jeito de falar com a sua mãe?
Olha que deus castiga.
– Mais castigo do que ter me feito sair de dentro de
você, não há. Nada pode ser pior maldição!
– Vou fingir que não ouvi isso porque sei que você
anda triste e sozinho. Que estado meu filho…

83
– Obrigado! – soluçou – Desculpe mamãe… ainda
bem que a senhora sempre está comigo.
Aos prantos, revirou a cama em busca de sua mãe.
Um punhado de feijão podre saltou do meio dos trapos
alvejando-lhe a testa. Desgrudou ansiosamente, sen-
tidos despertos. Vômito de urubu. Dor por todo o cor-
po. A cama pareceu-lhe maior e mais intimidante. Viu
seu rosto no reflexo da televisão desligada. Estava mais
murcho e ossudo que nunca. Suas mandíbulas marca-
vam a pele fina, querendo rasgá-la. O queixo pontu-
do atraiu seu olhar para a barba falhada por obra de
dedos angustiados. Não era dono de seu rosto, ou de
qualquer parte sua. Sentiu que seu braço desprendeu-
-se, rolando pra fora da cama. Mais que depressa rolou
atrás a buscar seu pedaço. Grudou-o bem.
– Agora quero ver sair!
Alguma coisa furou seu pé e entrou perna adentro.
Podia ver a pele de sua panturrilha sendo forçada pra
fora, como um rato sob um lençol. Correu a pegar uma
faca no criado mudo. Abriu o primeiro talho fundo na
panturrilha.
– Sai daí bicho desgraçado!
Apertou bastante ao redor do corte, fazendo ondas
com os polegares. Um besouro azul cintilante pôs a cara
pra fora. Continuou espremendo a ferida enquanto ten-
tava arrancar o inseto fazendo uma alavanca com a faca

84
comprida. As antenas, tão grandes quanto a própria
panturrilha, se moviam como se o olhassem. As presas
em forma de alicate abriam e fechavam, em ritmo car-
díaco. Inseto gigante ensanguentado no pé da cama.
Balançou seu corpanzão de quitina e agitou as asas.
– Puta merda, pensei que você fosse me deixar
morrer sufocado dentro do seu corpo podre!
– Você me invade a merda da perna e ainda tem co-
ragem de ficar puto?! Cadê o Baigon?
– Calma aí Paulinho, só vim porque você me trou-
xe. Sei como você pode dormir.
– Você quer é me foder, porra! Tô todo arrebenta-
do, cortado como um porco gordo!
– Você só precisa esquecer.
– E deixar de ser?
Bateu suas asas rápidas pra fora do quarto. Como
um raio azul, o besourão entrou novamente pela
janela em direção à carótida de Paulinho, cortando-
lhe a garganta. Não voltou a levantar-se, faca na mão
direita. Com a esquerda ainda conseguiu afogar o
inseto em seu sangue, que inundava o colchão florido,
colorindo a tarde.

85
Y O K N A PATAW P H A
Saí da repartição correndo. Afinal já passava das 18h02
e eu lá, carimbando aos sorrisos!? Dedicação sim, escra-
vidão não esperem de mim! Apressei o passo até o pon-
to do ônibus cheirando a chuva que estava pra molhar
o cerrado, coisa rara naquele mês. O lotação mais uma
vez fez jus ao nome e, espremido, sonhei com o chopp
gelado do Silveira. No balanço curto das pessoas, meu
babar talvez tenha molhado um ou dois desavisados.
Mais de vinte anos no mesmo boteco, praticamen-
te todo dia. Poucos podem gabar-se de tanta lealdade
e dedicação às artes cachacísticas. Ali era versão me-
lhorada de minha casa. As pessoas me respeitavam, era
prontamente atendido e, a alguma gente, minhas falas
interessavam. Cardápio não precisava há muito. Aliás
hoje em dia poderia até pedir coisas que Tina não cos-
tumava cozinhar, bastava dizer que era pra mim.
A freada brusca fez a água subir tanto que enla-
meou toda lateral do ônibus até suas janelas, talvez
mesmo o teto. Atento, busquei logo prever o melhor
caminho sob o temporal. As árvores mais baixas me
preocupavam, pois, muito baixar me descadeiraria,
maiores desvios me encheriam de água de chuva, tal-
vez até mesmo lama ou merda de pombo molhada, dar
de cara com as arvorezinhas dispensa qualquer descri-
ção mais detalhada. Acho que nunca fui jovem o bas-
tante para levar uma chicotada d’água na cara e sorrir.

87
Saltei.
Passadas entre caminhar e correr cuidadosamente,
me desviaram um pouco do caminho pré imaginado.
Esquecido que tinha sido do chão, pequeno detalhe.
Algumas poças e pisos escorregadios me alertavam e
faziam-me pular como nas aulas de educação física, ou
como o sapo doido da música do meu tempo.
Cabeça meio baixa, modo correto de andar sob
a chuva, cheguei ao Silveira. “Tudo certo” – pensei.
Ao levantar os olhos dei de cara com o motivo de
escrever-lhes hoje. A porta de ferro, dessas de descer,
prateado-fosco, impediu minha entrada. Assim, sem
explicação. Sem quê nem porque, encontrei-me tran-
cado fora de casa. Circulei a edificação atrás de algum
escrito, um sinal, um companheiro, uma nota de
falecimento que me levasse ao pranto e a outro lugar
pra beber o morto. Nada. Outra volta… nada. Traído,
passei a olhar os vizinhos.
Percebi que não conhecia nenhum deles: coiffer,
pet shop, farmácia ou panificadora. Quanto tempo
estiveram ali em silêncio? Quanto amor dediquei ao
Silveira? Apertei os olhos cansados e vi um jacaré de-
senhado em uma placa: Ali Gators – Drinks ‘n Barbie.
Entendi logo: um bar. Corri. Ainda chovia bastante.
Molhado, adentrei aquele território estranho. Senti
que todos me olharam. Percebi também que os donos

88
dos olhos trabalhavam lá e que eu representava seu
único cliente e ganha-pão. Aturdido, busquei, rapida-
mente, um lugar discreto para sentar. Avistei a máqui-
na de chopp… brahma! Provavelmente sorri, reconhe-
cendo o familiar naquele lugar estranho. Sentei e fiz
com a mão esquerda gesto de “chopp pra mim”. Mais
que de repente um garçonzão, branco, grande, de mãos
e olhos esbugalhados, trouxe-me cardápio. Disse:
– Pedi chopp!
– Sim senhor. Não tinha entendido.
O chopp veio trazido por um outro sujeito.
Também branco, menos forte. Parecia um menino.
Podia jurar tê-lo visto jogando videogame em um com-
putador de colo enquanto, atabalhoado, eu entrava:
– Meu chef é americano, então é assim, como se
você tivesse comendo nos Estados Unidos mesmo! –
sorriu-me de olhos forçadamente abertos o (agora re-
conhecido) dono do bar, ex-intercambista, de berço
negociador e banhado a ouro, enquanto coçava a so-
brancelha a especular o custo do dia.
– Ah, o tempero! – intercedi. Antes que fosse tar-
de e algum americano de quepe, cacetete e megafone
se intrometesse a me multar pelo cigarro, vício antigo,
sem importância. Mas pra americano, já viu!
“Quão diferente eram os donos de bares daquela
região” – pensei enquanto recordava Silveira. Menino

89
que fosse, entrasse seu bar, garanto, saberia de pronto
identificar Silveira como dono.
Somente no segundo ou terceiro chopp, entendi
que estes eram servidos em vários tamanhos. A cane-
cona vinha “congelada” – garantiu o grandão. Nesta
hora já virei canecona, previsivelmente. Demorei-me
mais do que devia no cardápio. Barbecue, aipo. Tudo
frito como frango. Acho que pensei demais pra pedir
um frango com pimenta. O molho estava apimentado
mesmo. No princípio não acreditei que o tal americano
fosse entender de pimenta, mas entendia. Comi, preso
à TV que passava jogo de hockey. Divertido, violento.
Algumas outras pessoas chegaram. Apesar das tra-
tavivas, pouco comunicativos mantiveram-se. Conse-
gui sim alguns sorrisos trocados, no entanto, nada que
fizesse subir e descer calafrios por minha espinha. So-
zinhamente, busquei meu destino naquela noite.
New Orleans me sorriu com jazz, o Mississipi me
devastou com o racismo. A antipatia por meus traços
latinos me deixaram atônito e por vezes paralisado por
todo aquele sul. Pessoas não são boas anfitriãs de não-
-brancos lá embaixo. Acossado, pouco falava, pois en-
tendia pouco a língua ou os contratos sociais. Certeza,
não queria complicações, ainda mais em solo estran-
geiro. Até que, por fim, recusaram-se a servir-me outro
chopp. Falei muito. Verdade seja dita, deixo escrito, bri-

90
guei em vão. Seus grandes exércitos, não que tenham
mais furor que os nossos, mas seus tecnológicos exérci-
tos, contactaram meu filho. Portanto, lá estava eu, feito
refém, sozinhamente. Foi quando avistei o menino.
Ao longe, percebi quão parecido comigo ele não
era! Comprido, braços fortes. Sentou na minha fren-
te. Disse: “Você tem que ir pra casa”. Contei-lhe que
um chopp transformara-se em questão de estado.
Obviamente não poderia deixar os Estados Unidos da-
quela forma! Sentado a me fitar, meu filho contou-me,
aos sorrisos, muitas e muitas coisas das quais não me
lembro agora, mas que me desarmaram ao ponto de
me fazer sorrir, assim como aos gringos. Ele sempre
teve este dom. Olhos cheios d’água, orgulho indescri-
tível daquele menino, recordei sua concepção e nasci-
mento, lembrei na pele os tantos anos difíceis. Quase
voltei a culpar-me. A dificuldade em tê-lo, suportá-lo,
criá-lo. Ser pai.
Reencontrei os olhos dele durante uma de suas
falas. Senti-me amado como não pensava possível
depois dos trinta. Jogado, entregue em seus braços,
ainda lembro ver seu corpo jovem carregando o pai
por fronteiras reconhecidamente hostis. Trincheiras,
tecnologias ou bombardeios não puderam parar meu
filho. Meu menino.

91
[]
Tinha clara lembrança do momento em que saía de
dentro de sua mãe. Olhou-se no espelho; pensou: “Este
rostinho lindo ficava ainda mais bonito naquela mol-
dura natural”. Aquela imagem guardada ensinou tudo
o que Higildo Ferrolobo precisaria saber para ganhar
a vida. Encontrava moldura para qualquer quadro. Seu
censo de equilíbrio e perspectiva causava inveja aos
concorrentes. Tornou-se, rapidamente, unanimidade
no mundo dos emolduradores. Seletíssimo grupo de
gente de ótimo gosto. Enxergava o mundo enquadrado.
Enquadrava o mundo para que seus clientes pudessem
melhor contemplá-lo.
Casara-se com a mulher de mais belos cabelos
já vistos por ele. Os cabelos pretos e brilhantes de
Clarice, cortados sempre acompanhando o desenho de
seu queixo alongado e arredondado, faziam dela es-
plêndida figura. Aos olhos de Higildo, nem ele mesmo
poderia ter feito melhor. Apaixonaram-se no momen-
to em que se entreolharam. Clarice nunca mais esque-
ceu aquele olhar. Desde que o viu, soube que não mais
o abandonaria. Nutria-se da força com que era admi-
rada, cuidada e desejada pelo emoldurador. Ao mesmo
tempo, nem em sua meninice, imaginara possível tan-
ta felicidade ao lado de um homem.
A posição social ocupada pelos Ferrolobo, assim
como sua prosperidade, proporcionava-lhes uma vida

94
de muitos luxos e exageros. Exageros esses, bem acei-
tos e até incentivados por seus pares. Ditado antigo
entre os emolduradores, sustentava que não existia
quadro bonito o bastante para prescindir de moldu-
ra, assim como não havia vida boa o bastante que dis-
pensasse exageros. Clarice e Higildo sempre deram-
-se muito bem. Respeito enorme um pelo outro, juntos
para o (in)imaginável. De orgias Caligulescas a pas-
seios a cavalo por campos de oliveiras, o casal estava
sempre unido e divertido, buscando e encontrando o
olhar um do outro.
Naquela noite tinham saído para mais uma festa
em que tudo seria possível. O motorista sorriu para o
Senhor Ferrolobo e elogiou sua patroa com cortesia e
discrição. A limousine atravessou o amplo e bem cui-
dado jardim, chegando a uma casa suntuosa. O fun-
cionário abriu a porta para os patrões. Mulheres e
homens elegantíssimos faziam suas entradas espetacu-
lares por uma escadaria de desenho inesperado. Foi es-
tacionar o carro junto aos outros, onde, provavelmen-
te, jogaria baralho com os demais empregados.
Gente bonita por todos os lados. Vãos das tantas
portas levavam aos tantos quartos. Recepcionados pelo
anfitrião, sentaram-se para o primeiro drink. Depois
do primeiro vieram todos os outros. Dançaram en-
tre gargalhadas deliciosas e muitos olhares. Felicidade

95
é gente bonita que dança. As estrelas rodopiavam ao
som da alegria. Um escorregão idiota, Clarice pren-
de o salto na grama esmeralda do campo de golfe.
Destrambelhada cai perto demais da fogueira. Seus be-
los cabelos desaparecem em um piscar de olhos. Como
folhas secas embebidas em álcool, os fios são destruí-
dos pelas labaredas ensandecidas, um a um. Higildo
salta sobre a cabeça de sua amada em um gesto herói-
co e de muita paixão. Usando seu blazer Versace como
única arma, consegue apagar sem muito esforço os ca-
belos da moça, que chora, desesperada.
Voltam à casa. A tristeza de Clarice amedronta
seu marido. Apesar da garantia dada pelo renomado
Dr. Ângelo dos Santos de que nada acontecera capaz
de danificar seu irretocável couro cabeludo, Madame
Ferrolobo temia por seus pretos pêlos. Lembrava do
brilho, da maciez. A leveza firme com que caíam so-
bre seu rosto, redesenhando-o à perfeição. Sofreu mui-
to, sofreu meses. Higildo firme, ao seu lado. Levava-
lhe café na cama, elogiava-a o tempo todo. Deixou um
pouco o trabalho de lado e dedicou-se à amada como à
própria vida. Trabalhava apenas em casa, quando con-
veniente fosse, quando a vida lhe permitisse.
Aos poucos Clarice começou a recuperar-se. Tentou
algumas perucas. O emoldurador criou-lhe algumas
peças interessantes. Usou-as poucas vezes. Chegou a

96
gostar de algumas, mas nenhuma conseguia aprovação
dele, que começou a trabalhar mais e mais no projeto.
Passava noites em claro, procurando a forma perfei-
ta, procurando fazer a Clarice de que se lembrava tão
bem. Os primeiros fios inseguros já pipocavam aqui e
ali na cabeça dela. Atormentado pela forma com que
tomavam, pedia para que ela os aparasse. “Para não
atrapalhar a peruca, qualquer detalhe pode estragar
tudo”. Repetidas vezes raspavam as cabeças um do ou-
tro. Estudavam suas formas, cada relevo, à exaustão.
O tempo perdeu o rumo entre as paredes da casa
do casal. Caminhões abarrotados entregavam os mais
diversos materiais para os experimentos moldurais-
-capilares de Higildo e Clarice. Obcecados em reen-
contrar a si mesmos, não saíram mais. Viraram qua-
dros, expostos àqueles transeuntes curiosos, que veem,
através das janelas da mansão Ferrolobo, o reflexo dos
dois amantes experimentando perucas, presos à mol-
dura dourada do espelho.

97
ALBERTO SOLANO
Quando cruza seu olhar ele não sofre angústia ou in-
segurança. Dentes convidativos pra frente. Lábios e
língua perdidos entre os (des)sabidos desejos orais.
Quanto, quanto nariz! Palavras delineadas nos seios
semi expostos. Palavras. Saberes? Não pôde ler, mas
soube. Amigas riam e até rimavam. Cabelos do an-
tebraço talvez loiros. Tinha ainda a boca… rósea.
Azulavam sua parte duvidativa, iluminavam aquela
partezinha de vida que ele ainda guardava em algum
lugar verde e cinza. Entre o queixo e a maquiagem se
achava viva. Mentira. Sabia-se viva. Riu de novo, atur-
dido. Queria também cuidar. Sabia um só jeito, devia
ser amor então.
Vermelhos olhos sábios. Castanhos claros de imen-
sidão, de bússola quebrada, de verde mar ao entarde-
cer. Indefinida tonalidade; próxima àquela da grama
depois da chuva de fevereiro no lugar onde nasceu. Que
foge e encontra o amarelo, envelhecida alma. Magne-
tismo de desrumar, busca à noite sem lanterna, estre-
la ou negrinho do pastoreio. Olhou de novo. Questio-
na algo que lê, sem entender. Ingênuo. Mas sentia! Ela
não? Amor; de novo. Agora está o nariz que, averme-
lhava-se aos poucos, vermelhar de nariz, rena de Noel.
Não era ingenuidade reconhecer essa descontinuidade
de saber-se si. Era e deixava de ser, como todos,a todo
momento. Mas ele sabia, sentia, doía e envergonhava-

100
-se com certa facilidade. Existir. Viver. Entender-se de
novo ingênuo. Falta no olhar, cegueira vital.
Levantou-se em direção à porta. Bem que porta não
fosse, aquele era lugar sem porta, infinito limite. Ele
pensou em correr atrás e dizer-lhe de sua importância
extrema, contato com sua parte vivente, praticamen-
te, portanto, essencial à sua não morte. Desistiu. Sen-
tia a proximidade da morte e decidiu deixá-la cumprir
sua função, com a foice cega e vestido preto esfarra-
pado. Certa forma estava preparado. Os prazeres dei-
xavam seu dia a dia paulatinamente, os sorrisos seus
dentes. Até mesmo a ironia já não lhe dava o gozo so-
berbo da sagacidade e do esconderijo no significante
de afeto deslocado.
Varava os dias como não estivesse ali. Semblante
encerado constante. Olhar de ver através, que não vê.
Mãos trêmulas, apesar de jovens ainda. As palavras já
lhe faltavam após anos de eloquência invejada. Sentia
os músculos de face e língua tropeçarem em seus pen-
samentos. Enorme zumbi trafegando espaço-tempo
como água de ribeirãozinho, que nunca deságua no
mar, mas afoga na terra. Mar? Só de areia.
Primeiro telefonema dela em semanas. Queria en-
contrá-lo. Ansioso. Neste dia até banho tomou, perfu-
me. Olhou-se no espelho e viu seu olho cor de burro
fugido brilhar. Foi pouco, mas brilhou. Partezinha de

101
vida cuidadosamente escondida, pulsar. Chegou ao lu-
gar combinado.
Ela, – sorrisos e olhares, distribuía vida, som.
Gargalhadas. “Que lindas coxas brancas, sensíveis que
arrepiam”. Não contou quanto beberam; o quanto pu-
deram. Beijaram-se. A noite só acabaria de manhã, eles
no carro, carona até em casa.
Esta altura, angústia e medo o encontraram de
frente, bateram-lhe mão aberta no peito, como tapa
em boi nelore. Ela não o manteria em contato com sua
porção de vida. Possibilidade impossível. Vida sua só
ele poderia encontrá-la, tratá-la bem e carinhosamen-
te. Quem sabe até alguns beijos poderia conceder-lhe.
Buscou ao máximo em si razão e força pra isso, com
as poucas conhecidas portas de saída esculpidas du-
rante vida inteira. Ferramentas de qualidade duvido-
sa encontradas no trajeto, pouco jeito pra marcenaria.
Encontrou nada. Covarde que era, ferramentas empo-
brecidas, nem mesmo tirar a própria vida conseguia.
Continuou vivendo vida de morto, disposto que estava
a esperar o destino da foice. Ficou ainda mais invisível.
Aos poucos, seus colegas de trabalho passaram a não
mais vê-lo, ou falar com ele. Rodas de conversa roda-
vam como se sem ele. Esvaiu-se.
Saiu um dia do banho, cedo ainda, cobrado a tra-
balhar, produzir. Coagido por si e pela cultura que o

102
criara. Passou frente ao espelho, rápido. Deu mais dois
passos e parou, como houvesse reparado algo. Voltou,
passos ansiosos. Olhou novamente e mais outra e ou-
tra vez. Seu reflexo não estava lá, sumira. Pela rua foi
olhando as pessoas nos olhos, ninguém retribuiu olhar.
As vitrines das lojas tampouco o refletiam. Invisível;
desapareceu. Liberto.

103
SOLPET
Enquadramento fechado em uma flor; a câmera abre a ima-
gem aos poucos até a vista de uma chapada, um homem,
uma mulher e duas crianças correm e sorriem [ao fundo toca
As Quatro Estações – Vivaldi] entra voz do locutor Helvécio
Rubone, um barítono de doçura incomum:
– A natureza nos emociona, nos emociona a vida. O
sofrimento dos animais nos tortura.
[A música muda, entra a canção Ninguém Presta –
Tolerância Zero] Ainda em zoom reverso, a imagem deixa
agora o olho de um cavalo, até expor seu corpo esmagado à
beira de uma estrada; Helvécio, cru:
– O abandono de animais não pode ser tolera-
do. Precisamos e podemos mudar este triste quadro.
Por isso somos a SOLPET – Soluções em Animais de
Estimação – (imagens de diversos animais mortos se re-
vezam com rostos de crianças tristes) aqui seu animal
terá seu fim assistido e será útil às próximas gerações.
Com nosso exclusivo método TEV – Transformação de
Energia Viva – seu animal terá o mais nobre dos fins!
[Volta o Vivaldi] Fotos de famílias tristes, porém resig-
nadas e orgulhosas levando seus animais na porta de um
dos abatedouros SOLPET. Helvécio caminha por rodovias
amplas e perfeitamente asfaltadas.
– A descoberta deste método de produção de as-
falto, revolucionou o planeta e a concepção de vida e
morte. Só na SOLPET seu animal de estimação se trans-

105
forma na melhor manta asfáltica que existe. Revestin-
do rodovias ao redor do mundo e fazendo nossas es-
tradas melhores e mais seguras! Venha pra SOLPET!
Tela escura, letras brancas em tamanho apenas legível:
Informamos que só aceitamos animais ainda vivos.
Sabia de cor todas as falas daquele comercial, assim
como suas músicas. Agradava-lhe o refrão da canção
do Tzero: “Eu, você, a vadia, ninguém presta! Ninguém
presta!” Cantada aos gritos guturais.
O sofá verde escuro da sala tinha a marca de seu
corpo afundando as almofadas. O aparelho de tele-
visão completava a mobília daquele cômodo. Ao lado
a única janela dava entrada para a cidade. Os muitos
prédios altos, a fumaça das fábricas em torno deles.
Naquele dia a cidade estava escura, o pó cobria tudo.
Naquele e nos outros dias. Olhou as pessoas passan-
do pequenininhas lá embaixo, carros e buzinas calmos.
Passava muito tempo em frente à televisão e os co-
merciais da SOLPET eram exibidos a cada dez minutos.
Mesmo assim, aquela última frase insistia em intrigá-
-lo. Principalmente o “ainda vivos”. Sentia-se remetido
à inevitabilidade da vida; e da morte. Está-se vivo ou
morto, de nenhuma outra forma. “As duas portanto se
equiparariam”, pensava em seu pedaço de filosofia.
Pensar na vida, no entanto, incomodava mais que
na morte. Tanto era o pra pensar. O som de máquinas

106
ao longe, seu incômodo mal disfarçado enquanto es-
perava o elevador junto a outros. A maneira irritante
como coçava atrás da orelha esquerda quando se inco-
modava pouco. O trabalho. Precisava comer, vestir, be-
ber e fumar. Trabalhava, então. Hiato de dimensão co-
lossal, lacuna impreenchível.
A fábrica de cerveja tinha sido seu trabalho desde
sempre. O primeiro, e sabia, o derradeiro. Turnos de
dez horas por dia. Entrava às seis da manhã. Passava
seu cartão:
– Bom dia, 655321; você chegou na hora hoje.
Parabéns! Você não se atrasa há sete dias.
Olhava para o computador de ponto com desprezo,
mas os chips não tinham sido programados para se
incomodarem. Chegava à sua plataforma e ajudava as
máquinas a fazer o serviço. Produzia centenas de litros
de cerveja por dia. Algumas vezes parava para pensar
se, em toda sua vida, conseguiria beber a cerveja que
produzia em um dia. Descontava mentalmente custo
para maquinário, manutenção e matéria prima. Contas
confusas, certezas soltas. Mais confusas ficavam as
contas quando nelas entravam seu salário, número
de cervejas produzidas por ele, aluguel, comida,
porcentagem do salário gasto em cerveja oferecida pela
fábrica aos funcionários com desconto de generosos
vinte por cento, valor de sua hora de serviço, custo

107
de sua hora de lazer, dedetizador, sabonete, cigarro,
higiene bucal, plano de saúde, transporte, roupas,
corte de cabelo.
– O alto preço da vida.
Deitado no sofá da sala tenta pegar no sono.
Caminha lentamente entre os vários animais. Chama
sua atenção o velho elefante de circo, deitado, aban-
donado à sorte de produtores de asfalto, urubus mo-
dernos. O peso do fardo gigante já quase o derrotava
quando chegou finalmente ao lugar iluminado onde
deveria deixá-lo. O tom avermelhado do néon traz sa-
tisfação e um perdigoto extra de energia para terminar
o trabalho. Acorda de supetão com o som do alarme.
Ainda pensando naquele sonho entra no banho rin-
do. A água do chuveiro vai trazendo à sua memória as
partes faltantes do sonho.
– Eu era uma formiga! Por isso o fardo era tão
grande!
Lembra da satisfação sentida ao avistar o letreiro
luminoso. Esforça-se para lembrar o que estava escrito.
Grita:
– TEV!!! Não, eu não sou pet! Nem serei!
Na entrada da fábrica distribui panfletos chaman-
do os colegas para uma reunião no pátio principal.
Gostaria de poder reuni-los em casa, mas ali mal cabe-
riam duas pessoas. Hora do almoço:

108
– Companheiros! Reuni vocês hoje porque não po-
demos mais aceitar nossa situação. Estamos alugan-
do nossas vidas para esta fábrica e este sistema, somos
como animais caminhando para a SOLPET por vonta-
de própria! Precisam de nós “ainda vivos”, vocês não
veem?! Uni-vos contra a repressão de um sistema pú-
trido! Tomemos nossas vidas para nós mesmos! Não há
alternativa à revolução!
Os discursos se tornariam diários e os seguido-
res cada vez mais numerosos. Exatos novecentos e
oito trabalhadores seguiram 655321 no suicídio cole-
tivo que se deu no pátio, em hora de serviço. No jornal
nada apareceu, era bom senso não noticiar suicídios,
poderia gerar mortes em cadeia, pessoas poderiam
criar coragem para morrer caso vissem tal notícia nos
jornais. A fábrica precisou reorganizar sua escala de
trabalho nos primeiros dois dias que se seguiram ao
ocorrido. Precisou em especial de seguranças, para or-
ganizar a gigantesca fila de pessoas ávidas pelas vagas
oferecidas.

109
D E V O LTA À V I D A
Culpa era o que sentia. Sobre isso dúvida alguma pai-
rava. Motivo não conhecia. Teria feito algo? De onde
mesmo estava vindo? Estava ali como que colocado,
plantado por alguma força que lhe era alheia.
(Desconforto contínuo, pouco ar nos pulmões)
Apalpa o peito. Teriam lhe roubado um pulmão?
Medo. Limpa suor frio da testona cada dia maior.
Ensopado cabelo. Enrola cigarro na palha fina. Mãos
tremulas. Precisa acalmar-se. Trago profundo; mais
outro. Sente pulmão novamente.
– Sim, (suspiro aliviado), está aqui.
Destampados ouvidos pelo terceiro trago longo.
Muitas vozes rodeiam. Olhos menos arregalados ago-
ra que antes. Olha à sua volta. Vê também as bocas.
Às gargalhadas um grupo à sua esquerda toma cerve-
ja. Bem perto, a menos de um braço de distância, ou-
tro grupo. Outros e outros e tantos outros. Garçons de
pé sobre o balcão comprido de pedra gritam segurando
pratos de fígado com jiló. Tem ele também um copo em
sua mão. O volume das vozes é alto; zumbido incorpo-
rado. Homem gordo esbarra. Braço empapado de suor.
Vira e mostra-lhe um dos mamilos.
– Gordo filho da puta!
(Risada alta do gordo)
Permanece desconfortável, talvez não mais pela
culpa, mas pelo não saber. Bebe de um trago a cachaça

111
que alcança das mãos de um garçom. Arrepio seco des-
de a nuca até a frente da cabeça.
– Cachaça boa.
– Outra?
– Por que não?
(De novo, de um só trago)
Preocupa-se menos com o que diabos teria feito.
Gargalha junto com um careca; riem de uma piada do
Joãozinho. Recebe olhar amigável e sorri. Limpa bigodão
meio ruivo com manga de camisa; gordura de torresmo.
Mulher em frente mostra os dentes. Retribui com pisca-
dela. Desvia olhar. Tenta se mexer em meio à multidão.
– Diabo de gaiola de cana!
Olha botas sujas.
– Talvez elas me digam por onde andamos.
(Tão velhas já não têm mais memória confiável)
Quanto tempo passa ali não pode dizer, pois não pode
contar. Incontável tempo, portanto. Cachaça na mão
esquerda, pito na direita. Calor a lhe corroer o corpo, a
lhe molhar a essência. Como sair dali? Possível?
A luz de uma tela grande o cega. Acostuma-se rapi-
damente. Conhece bem aquela luz. Alguma pista. Anda
em sua direção, hipnotizado. Logo, ou não, entende.
Sente que havia compreendido. O desconforto se des-
faz. Sopro de poeira no ar, nuvem assoprada e dissipa-
da pelo não saber dos ventos.

112
É erguido e carregado pra fora. Tiram-lhe os sapa-
tos e colocam-lhe roupa apropriada. Subsolo frio, es-
curidão inóspita. Sente-se feliz.
– Entre. Pode entrar e sentar aí.
Parecia uma cápsula, ou algo assim. Cadeira gran-
de, branco esmaltada, encosto para os braços. Recosta-
se. Cadeira deita suavemente. Pendurada, vê uma tela
bem grande. Como que sustentada por um guindaste,
ela desce; desce e acopla-se à cadeira. Casulo branco
esmaltado.
– Bem vindo de volta à vida. – sorri-lhe a moça
da tela.

113
MÃOS
Brilhante. Era brilhante e precisa. Errava, claro. Mas
dir-se-ia, parafraseando o poeta, que muito pouco ou
quase nada. Junto com as cartas, as mãos de Diva des-
velavam um mundo de verdades concêntricas. Sua voz
pausada e segura traduzia as figuras. Sempre em afini-
dade com seus guias, ouvia-os e dava-lhes voz.
Dom herdado da avó materna. Pôde saber, des-
de menina. Simplesmente saber o que os outros só sa-
beriam depois. Como quando deram com o corpo de
Basílio pendurado no pé de Baru perto da cerca de ara-
me liso. Nunca tinha visto comoção maior. Gostava de
Basilio tanto ou mais que os outros, mas aquilo já esta-
va decidido há tempos. Suas lágrimas já tinham seca-
do. O povo que se aglomerava no quintal de terra bem
varrido da porta de casa, pra falar com sua avó, logo
viria para falar com ela, a Menina Santa. Vinha gen-
te de longe, de cada vez mais longe, pra escutar o que
a Menina via nas cartas. As mãozinhas hábeis e a elo-
quência da pequena impressionavam qualquer um, po-
bre ou rico, preto ou branco.
Passaria ainda muitos anos morando e revelando
verdades na casa que tinha sido de sua mãe e de sua avó.
A fama da agora não mais Menina, mas Dona Diva, leva-
va legiões de romeiros a cruzar o país para, através dela,
saber um pouquinho do que aconteceria. Dona Diva
não mudava ou se propunha a mudar o destino, apenas

115
o adiantava. Sua tranquilidade e certeza cativavam os
fiéis. A resignação quanto ao que estava por vir trans-
mitia paz aos que a procuravam. Mesmo com a pior das
certezas, as pessoas deixavam a casa de Dona Diva con-
formados com o que a vida lhes proporcionaria.
Clientes, ou, “necessitados”, como preferia a viden-
te, (que tampouco apreciava este nome), já haviam lhe
oferecido fortunas. Orgulhava-se de nunca ter aceita-
do nada de valor que considerasse exagerado. Aceitava
presentes e pagamentos, claro, vivia para prever e vice
versa. A placa com os dizeres “ATENDIMENTO POR
ORDEM DE CHEGADA” pendurada desde os tempos
de sua avó, falava por si. Não concedia regalias a nin-
guém. Certo que nos últimos tempos tivera que im-
plantar um sistema automatizado de senhas, devido
ao grande aumento na demanda por visões do futuro.
Sabia que dessa forma alguns trapaceavam, vendiam
senhas ou outros golpes. Quanto a isso não podia fa-
zer muito. Algumas vezes, se tinha as cartas enquan-
to passava pela distribuição, via todo o caminho que
aquele número percorreria até chegar em suas mãos.
Caminhos muitas vezes surpreendentes, mesmo para
Diva. Assustada, constatava o negócio no qual os ho-
mens haviam transformado a vida e os quereres.
Serena, recebeu mais uma necessitada. “Moça ain-
da”, pensou. Por alguns instantes quis entender por

116
que aquela moça escolhera saber antes, ao invés de
viver o não saber. Incomodou-se com o pensamento.
O que saberia ela do não saber? Do angustiar-se com
o amanhã? Àquela altura da vida, se importava com
pouquíssimo, mas encontrou, em meio àqueles se-
gundos, um espaço pra si. Incomodou-se novamen-
te e tratou de ler logo o que viu. Mandou que esperas-
sem um pouco até a entrada do próximo necessitado.
Concentrou-se, contatou seus guias, tudo estava nor-
mal. Olhou nos olhos o senhor que entrava. Provável
que ele tenha sorrido sorriso amarelo. Comum senti-
rem-se deslocados frente Diva. Seguiu protocolo, tirou
primeira carta. Mão direita vacilou, fez movimento a
mais. Não que isso acontecesse pela primeira vez, mas
fez-se ímpar a própria fala insegura. Gaguejara. Sua
língua vacilara, como sua mão. Encerrou ali os traba-
lhos daquele dia.
Enquanto tomava banho, pensava em sua avó e em
sua história. Nunca questionara seu dom, sabia que
precisava seguir com a vida. Sempre soube. Ao tentar
alcançar o shampoo no basculante pouco mais alto que
os olhos, sua mão derrubou o frasco. Abaixou para pe-
gá-lo e sentiu dificuldade para segurar firme, tremia
muito. Olhava suas mãos tremerem tanto que pare-
ciam acenar. O nervosismo só piorava as coisas. Junto
com as mãos sentiu seu pensamento pendular. Os pen-

117
samentos iam e voltavam, como scratch em disco de
vinil, iam e voltavam, antes de terminar o raciocínio.
Sem secar-se completamente, correu até o quarto e pe-
gou as cartas. Tentou tirar a primeira e sua mão insis-
tiu em voltar e voltar. Os tremores já passavam muito
do aceitável. Tentou embaralhar as cartas e elas voa-
ram, em leque. Buscou focar-se, acalmou-se, voltou a
seus guias. Percebeu que o contato falhava, como seu
pensamento no banho.
Decidiu afastar-se do trabalho por um tempo, ti-
rar umas férias. Viajou para uma praia distante, onde
não seria facilmente reconhecida. Apesar do descan-
so, os tremores não a abandonavam. Diferentemente
de seus guias. Por mais que se concentrasse e buscasse
contato, as informações lhe vinham confusas, incom-
pletas e cambaleantes. Decidiu-se por restringir sua
alimentação e até abriu mão da cachaça do almoço e
dos dry martinis noturnos. Sofreu bastante pra pegar
no sono no inicio, mas, dedicada, passou pela falta ini-
cial. No entanto nada parecia poder mudar seu insóli-
to e trêmulo destino. Passou a sentir-se envergonha-
da em estar diante de outras pessoas, pois os tremores
eram tão violentos que assustavam os mais desavisa-
dos. Crianças olhavam-na aterrorizadas enquanto bus-
cavam guarida nas longas pernas das mães. Perplexa
diante da agressividade da natureza, Diva ensimes-

118
mou-se. Seu corpo dominara seu espírito. “Humana,
demasiadamente humana”, pensou.
Pela primeira vez em sua vida sentiu medo do que
poderia acontecer. Desamparada, viu-se entregue ao
desconhecido. Estranhou a sensação de humanidade
e pequenez, que aprendera a reconhecer desde peque-
na nos olhos dos outros. Mais que depressa correu pra
cama, fechou a porta e, no escuro, torceu pro tempo
passar, o mais rápido possível.

119
DESJEJUM
Contou-me um conhecido, alguns fatos ocorridos bem
diante dos olhos de um amigo dele. Após certo tem-
po adormecidos em minha alma, não pude evitar re-
lembrá-los e decidi relatá-los aqui pelas estranhesas e
curiosidades que os cercam. Verdade que também os
descrevo para ver se, assim, colocando-os fora, sinto-
-me de alguma maneira aliviado, livre. Pois devo aqui
confessar que esta estória, por incontáveis vezes, me
assombrou os pensamentos e me despertou com so-
nhos horríveis! Era verão em Pernambuco, há não mui-
to tempo, quando tais fatos mudariam a vida de uma
vila de pescadores, lar de um hotel beira mar.
Mal se dispôs o sol a iluminar tal pedacinho de
biosfera, ela já se alongava na varanda do chalé.
Corpo preparado pra o dia. Pensamento e entranhas
na carne seca do café da manhã. Hoje sabia da aten-
ção especial de Aparecida e Zefa a cuidar do que ela
mais amava.
Há três dias informada que seria quarta-feira dia
de carne seca e hoje era quarta. Posto que não sabia
que aquele era seu maior e talvez único amor, aqui-
lo mexia com praticamente todo seu curto aparato de
respostas. Conseguia apenas angustiar-se e ansiar pela
quarta. Quais os grandes prazeres, este driblava seus
entendimentos. Prazer indescritível sentido pela carne
seca mais de vez a cegara.

122
Vivia a sonhar amor de cinema, sonhos que manti-
nham afastado qualquer amor possível. Propor-se a co-
nhecer pessoas, como insistia sua terapeuta, era raro.
Desta vez, férias curtíssimas com rapaz distinto já lhe
garantiriam alguns pontos com a velha comportamen-
talista. Acontece, no entanto, que, primeiro dia lá, car-
ne seca aparecera no café da manhã do hotel. Foi daí
que não pôde fazer mínimo, obnubilou-se em esperar
a volta do avermelhado, diminuto e fibrado alimento.
Proteico e salgado. Rapaz já dela não sabia, ao menos
não fisicamente. Pensando agora, provável que tam-
pouco emocional ou psiquicamente soubesse.
Descoberta recente ocorrida na revista do avião,
caminho dali, ensinou-lhe drink predileto, antes mes-
mo de experimentação, a saber: Bloody Mary Maria
Bonita. Invenção de renomado barman tupiniquim em
terras da rainha. Um mix de vodka, suco de tomate, vi-
nagre balsâmico e infusão de carne seca. Gostava das
estórias do cangaço. Admirava a mulher de Lampião,
que, segundo contam, arrancara de um só golpe de
peixeira a orelha de uma moça que se engraçara com
seu marido. “Isso é que é amor” pensou.
Estava que não se continha. Cortava dias a calendá-
rios. Coqueiro não via, quiçá onda de mar. Enfurnada
até quarta, manteve-se. Exceção feita aos momentos de
descontração e conversas animadas com as cozinhei-

123
ras responsáveis pelo desjejum. Tudo pensado e mui-
to bem calculado pela extraordinária angústia e pouca
elaboração de nossa heroína.
Já passava das sete da manhã. Acordada desde qua-
tro ou desde sempre, esperava ansiosa. Tentava disfar-
çar sua ansiedade. Decidiu sair pra correr, assim não
seria a primeira a chegar ao café da manhã e não reve-
laria toda sua tórrida e descontrolada paixão ansiosa
pela carninha. Coração disparado pelo exercício, pen-
sou que daquela forma chegaria com ainda mais fome
ao refeitório.
Digo tudo isso para situá-los acerca do que está por
vir. Continuo contando-lhes tudo o mais precisamente
quanto a memória me permite. Neste ponto quero dei-
xar claro minha intenção em relatar-lhes exatamente o
que me foi dito, nem mais, nem menos.
Passou no quarto, ducha rapidíssima. Colocou seu
short mais fácil, blusinha de tactel sem manga e des-
ceu rumo ao refeitório. Pegou seu prato, entrou na fila.
Leu na plaquinha que dava subtítulo a uma das caixas
de metal “carne seca”. Sorriu sem perceber, boca cheia
d’água. Abriu a caixa, colher empunhada com vigor.
Desacreditando os próprios olhos piscou forte algumas
vezes. Quatro fiapos da carne grudavam o fundo da va-
silha. Buscou as cozinheiras com o olhar. Ouviu Zefa
lhe dizer: “já fizemos a reposição duas vezes. Acabou”.

124
Sentiu uma fúria tomar seu corpo enquanto procurava
sobre as mesas alguma pista que a levasse ao paradei-
ro do alimento. Olhava a gente: ninguém sentia o gos-
to, mas todo mundo comia. Na mesa mais afastada à
esquerda, uma família de gordos se refestelava. Fixou
o olhar, a mulher enchia a bocona com uma garfada
descomunal da carne. Passou a mão na primeira faca
que viu e caminhou em direção à gorda. Puxando-a por
trás, derrubou-a e começou a abrir sua barriga. Devido
ao pouco corte da faça de mesa, fez inúmeras incisões,
com toda sua força. Embebida em sangue, conseguiu
ultrapassar o tecido adiposo e chegar ao estômago da
mulher que ainda tinha forças para gritar. A carne seca
misturava-se à enorme quantidade de sangue e ou-
tros fluidos. Tentou comer ali mesmo, não pôde sentir
o gosto apropriadamente. Pegou um copo alto, encheu
com a mistura de sangue e carne, sentou-se à mesa ao
lado e gritou à cozinheira atônita:
– Zefa, uma dose de vodka, por favor! Maria Bonita
Sangrenta!

125
AMIGOS
Talvez não percebessem, mas ficavam insuportáveis
quando estavam juntos. Alertas feitos nesse sentido
foram incontáveis vida afora. Namoradas, amigos de
outros círculos, qualquer um que tivesse participado
dos tão celebrados encontros entre os quatro. Pessoas
têm o dom de desaperceberem-se de si mesmas. Todos
temos esta habilidade em algum grau. Verdade que,
quando em grupo, a possibilidade deste êxtase au-
menta toxicamente. Mesmo assim insisto em dizer
que estes garotos eram de fato especialmente dispos-
tos ao ridículo, à perda de individualidade e do reco-
bramento da consciência quando juntos. Desta vez ti-
nham conseguido que ninguém além deles fosse viajar.
Finalmente fariam outra vez uma viagem sem nenhum
intruso: namorada, esposa, cunhado, filho ou qualquer
afim. Assim enxergavam seus familiares a partir do se-
gundo em que estavamjuntos, como afins. Gente de
fora que queria ser da família.
– Uns dois quilos de lingüiça deve dar.
– Acho que pelo menos uns três quilos!
– Com mais uns seis de farinha, né?! Pelamordedeus!
– Gente, ainda tem a cebola toda, o alho… ooh, isso
não era uma farofa?
– É demais! Mas tem que ver que é prum monte de
gente. E por um monte de dia que a gente nem sabe.
Sabe?

128
– Mas gente, isso é só uma parte, ou vocês acham
que nós vamos comer só farofa?!
– Pra mim dá!
– Farofa sempre dá, e é a mais socialista das comi-
das. Vamos comer farofa até…! Claro gente!
– Sem farofa não há cachaça completa!
A preparação para esta viagem já vinha sendo fei-
ta há muitos meses, aliás só falavam disso em qual-
quer oportunidade que fosse. Trajeto desenhado pelo
interior do país, barracas, botas, lanternas, fogareiro.
Andariam de carro, balsa, cavalo e a pé. Dias em que
desbravariam mundo; juntos.
– Moçada, verdade, sem palavras… me emociono
toda vez que penso…
– Sempre chorão, hein Chuveiro? Dessa vez Roberto
Carlos só no seu fone! Ainda fica assobiando essas dor
de cotovelo na orelha da gente! Chuveirooooo!!! – ri-
ram em uníssono virando mais uma dose.
Os primeiros dias foram de muita festa, cachaça
e alegria. Divertiam-se contando os mesmos casos de
sempre, se abraçavam, riam e se amavam. Pelas ma-
nhãs dirigiam revezando-se ao volante, caminho em
direção ao interior. Aos poucos a paisagem ficava mais
árida, as cidades menores e mais distantes.
Viajavam há mais de dez dias. Atravessando o vale
do Jequitinhonha, a estrada de areia fazia a caminho-

129
nete verde escapar com as rodas traseiras, cobrindo a
vegetação com ainda mais poeira marrom avermelha-
da. O sol criava refrações no horizonte, no mato bai-
xo que deixava a cerca de arame farpado bem à mostra.
Carlão pisava fundo, às gargalhadas, ainda meio bêba-
do da noite anterior:
– Vai na manha aí Carlão! Porra! Quero morrer
com vocês não!
– E o pessoal do chororô não consegue ficar quieto!
Tranquilo que aqui é piloto! Aqui é Mané Ingô!!
O tempo virou rápido e a chuva que começou a cair
naquele momento não se via tanta desde o tempo lem-
brado. A gente se juntava nas portas pra ver o céu cair.
Era trovão e relâmpago, pingo grosso de doer as cos-
tas. Passou pouco e não se enxergava palmo. Alguém
disse pra Carlão parar, mas a estrada já estava que era
um rio, se parasse, atolariam. Bateram em algo. Com
dificuldade Carlão acertou o carro que quis sair de ra-
beira. Pela janela Chuveiro viu algumas casas na beira
da estrada:
– Pára o carro! A gente pode ter atropelado alguém!
– Quem estaria no meio da pista agora, Chuveiro?
Nessa chuva!?
– Sei lá! Uma criança, um bêbado! Eu que vou saber!?
Carlão, encerrando o assunto:
– Pois se alguém é imbecil o bastante pra ficar no

130
meio da estrada numa chuva dessa, tem mesmo é que
morrer. Não paro nem a poder de reza!!
Chegaram em uma vila, a chuva não dava trégua.
Buscaram lugar alto para estacionar. Chuveiro correu
pra olhar o para choques. Estava bem amassado, até o
alto, mas a chuva e o barro não deixaram outras pistas
acerca do que teriam atropelado.
– Cacete Carlão! Você devia ter parado! E se você
tiver matado alguém?
– Eu? Achei que estávamos nessa juntos! Seu traíra
de merda!
– Calma gente, não precisa tanto. Os dois estão
exagerando. Vamo segurar a onda e procurar um lugar
pra ficar. O mundo tá acabando debaixo d'água!
Estavam, de fato, cercados de água e gente. Gente
que subia o morro. Água tanto subia como descia.
Desejavam ser bóia ou tronco de árvore; devir de flu-
tuação na histórica cheia do Baixo Jequitinhonha.
Famílias inteiras desaparecidas, das casas beira-rio
só se via parte dos telhados. A água violenta já dava
na praça, arrastando árvore, bicho e construção, ala-
gando a igreja, antes ponto de encontro e abrigo.
Entreolharam-se. Reconheceram-se. Estavam juntos de
novo e nada os destruiria.
O senhor que abriu a porta não teria menos de se-
tenta anos, se bem que difícil medir a idade daque-

131
le povo: tão familiar e tão estranho. Deixou-os entrar
sem questão:
– Entra meninada! Que esse tempo não tá de deus!
Logo na entrada viram que o velho não estava só:
– Essa menina é filha minha. Traz café pros moço,
menina!
A menina demorou, olhou de lado, coçou o cal-
canhar esquerdo com a unha do dedão do outro pé.
Bastou:
– Ara, menina! Não me ouviu mandar, disgrama?
Vê se pode, agora até formiga quer ter catarro!?
Tão menina não fosse. Mas menina pra ele, isso sim
era; eram todos. O café aqueceu e aproximou. Velho
com sorriso ansioso falou de sua mulher, até agora
sem paradeiro conhecido. Muita gente em movimento,
pouca porta de saída.
– Com esse tanto de boi boiando!? Imagina gente,
que não tem valia nenhuma!?
O velho continuava bebendo a pinga que só Carlão
aceitara. Mexida e embriagada alma, via sua histó-
ria, amigos e amores adormecidos sumirem na água,
zumbizarem sua existência de palavras encurtadas
pela cultura. Saberes de sentir, cultura de saber mes-
mo, de menos falar. Os que estavam sóbrios começa-
ram a adormecer, menos Chuveiro. A infinita conversa
do velho devorava-lhe as poucas esperanças e o senso.

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Hipnotizado, perdido de si, olhou seu anfitrião mais
uma vez. Chamando Carlão de lado:
– Velho, segura a onda desse caipira de merda. Não
aguento mais ouvir a ladainha desse cara!
– Caralho, Chuveiro! Deixa o cara! O cara tá sofren-
do e ainda dando teto pra gente lixo igual a você e eu!
Carlão estava no banheiro quando ouviu barulho
de móveis a se arrastarem na sala. Um grunhido de ho-
mem com boca tapada. Foi sair e ver Chuveiro mon-
tado sobre o velho que esguichava sangue do pesco-
ço. Ainda boquiaberto viu a menina correr para a sala
e gritar o nome do pai. Carlão não vacilou: segurou os
ombros da menina com a mão esquerda, com a direi-
ta torceu seu pescoço, firme, até ouvir um qureque e
sentir a cabeça pender. Olhou Chuveiro compreensiva-
mente e deitou o corpo mole da moça: chão frio de ci-
mento vermelho. Quando os outros dois levantaram no
susto viram Chuveiro desfigurado:
– Acabou! Cala a boca, caralho!!! – ria-se em
transbordamento.
– Que porra!!!
Calados, sujos e aquecidos carregaram os corpos
pro quarto com cama de casal.
Três toques na porta da frente.
– Agora fudeu!
– Todo mundo quieto e alerta. – sussurrando.

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– Cês viram Seu Domingos mais a Menina? Parece
que acharam a mulher dele!
– Falei pra eles esperarem aqui, mas saíram doidos
atrás da mulher! – disse Chuveiro sem gota de suor ou
titubeação.
– Perigo! Vou atrás, mas cês não sai daqui osmeni-
no! O rio tá que é uma braveza. Levando aroeira e até
tamboril!
Tinham que pensar em algo. Alguém chamou ajuda
pra meter os corpos embaixo da cama, não coube tudo.
Perna, braço aparecendo. Mão no machado:
– Calma, porra! O armário, sei lá! Menos sujeira,
menos desmembramento, menos carnificina caralho!!!
– aos berros guturais.
– Se precisar eu corto esses merda tudo!
– A gente sabe. – os três, como se combinado; dedo
indicador frente aos lábios.
Mais batidas na porta. O gordo de chapéu fez men-
ção de entrar. Deixaram. Preparados, enquanto repe-
tiam a estória da procura pela mulher. Serviram café,
ofereceram cachaça.
– Mas cês já tão de casa, hein! Gosto de gente as-
sim, sem cerimônia!
Ficou pouco. A cidade e as pessoas precisavam dele
lá fora, debaixo da chuva. Cuidando da gente.

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Suspiro conjunto de alívio. Distraíram-se pouco,
coisa de segundos. Quando viram, a mulher já estava
entrando no quarto. Correram, teriam que resolver de
algum jeito. Chuveiro sentiu que estava tudo perdido,
seriam descobertos. Carlão preparou-se para quebrar
outro pescoço: media os ombros da mulher, alongou o
os braços. Aproximou-se enquanto ela olhava debai-
xo da cama. Ainda não tinha chegado a tocá-la quando
quando perceberam-na gargalhar em gozo. As garga-
lhadas altas chegavam a assustar, misturadas aos mui-
tos barulhos da chuva. A mulher de Domingos abraçou
um a um, agradecendo-os. Aos berros ria-se e chorava
em labilidade de libertação:
– Até que enfim me livrei desse bêbado e dessa ra-
pariga que eu pari!!! Vamo jogar no rio, que o rio tá
grande que só a peste! Vamo! Vamo!

135
C O M PA I X Ã O S E S S E N TA E T R Ê S
Era casada. Caminhava com uma dureza insegura. Tão
bonita que incomodou Antônio. Quando a viu entrar
na repartição pela primeira vez não soube mais falar
de outra coisa. O vestido cor de chumbo apertado nos
joelhos marcava sua pernas, juntando-as. Panturrilhas
à mostra, enrijecidas pelos saltos. O caminhar favore-
cia o rebolado preciso. Decote discreto.
– Essa mulher deve ser um colosso na cama! Ra-
paz imagine eu com uma coisa dessa! Deus não dá
asa a cobra!
Quincas ria das galhofas do companheiro. Após
anos de repartição, sabia em Antônio amigo confiável,
agora começava a preocupá-lo a obsessão do colega
com a moça casada.
– Já viu o tamanho da aliança na mão esquerda? Se
o marido for do tamanho da aliança, te mata com um
dedo só!
– E eu lá tenho medo de aliança, Quincas? Me res-
peite! Quem põe um pneu desses na mão de uma pe-
quena, ou sabe que ela não é fácil, ou não se garante!
Passados alguns meses desde a primeira entrada
triunfal de Aninha, sua silhueta lapidada ainda deixava
Antônio mareado. A cabeça perdida nos movimentos
da morena, passo após passo.
– Tenho que fazer alguma coisa Quincas! Essa mu-
lher ainda vai me deixar doido de verdade! Logo eu,

138
sem família, sem esposa pra chorar minha insanidade,
sem filho pra me levar cigarro no Pinel!
– Já te falei pra parar com isso rapaz! Antônio, nós
dois sabemos que não há mulher que te baste.
– Mas essa é diferente meu amigo – falava quase
gemendo – dessa vez é amor, é amor!
Fosse o que fosse, fato é que Antônio não era mais
o mesmo. Dispensava noitadas pra comer sorvete de
chocolate em casa de Quincas, enquanto chorava o
abandono de algo que nunca tinha tido. Dizia-se apu-
nhalado, ferido de morte pelos desolhares de Aninha.
Fez-lhe graças incontáveis, contou-lhe aventuras espe-
taculares, desregradas. Atenta, a moça escutava e até
ria com o canto da boca. Escutava-o, dir-se-ia que o
compreendia, mas não o incorporava, não fazia dele e
de suas estórias parte de si.
– Não vês Quincas? Ela me exclui, me aparta de
sua alma!
– Que alma, Antônio? Ela é casada, homem de deus!
– Minha alma Quincas! Nossas almas! Almas que já
deveriam estar juntas… meu amigo, não sei o que faço
comigo…
O tempo seguia, trabalhando sempre contra
Antônio. Naqueles poucos instantes a favor, o homem
tratava de mostrar-se inteligente, interessante, leve e
despretensioso. Aninha ria, divertia-se. Algumas ve-

139
zes olhava os lábios de Antônio mais de perto, como se
tentasse sentir seu cheiro.
– Tô falando Quincas, ela chegou tão perto da mi-
nha boca que achei que receberia um beijo. Mulher
descarada, fingida! Fica dando uma de séria, de enges-
sada, mas a gente sabe que isso é tudo estória! A gente
sabe Quincas!
– Antônio, meu amigo, eu nunca vi isso. Vi sim ela
te ouvir, ouvir seus casos. Mas também, não teria como
ela não fazê-lo. Você a encurrala no café, a pequena
fica sem saída. Sorri pra não ser deseducada!
A obsessão de Antônio parecia não ter fim.
– Já sei Quincas, vou abrir meu coração pra ela,
dizer tudo o que vem passando comigo. Certeza que
Aninha nunca conhecera amor maior. Derreterá de
lascívia e carinho assim que entender meus propósitos!
– Que seriam?
– Como “que seriam?”? Que seriam amá-la, respei-
tá-la… fazê-la feliz, enfim!
– Enfim? O que te diz que ela não é feliz, respeita-
da e amada?
– Tudo Quincas! Ela me quer! Ela não aguenta mais
a vida medíocre que leva com o marido, vida sem pai-
xão! Isso não é vida!
– Então é isso, ela largará seu marido para casar-se
contigo!?

140
– Quem falou em casamento, meu jovem? deus me
livre e guarde!
– Você disse, “amá-la, respeitá-la…” me soa como
coisa de padre.
– Pois então, que seja! Caso! Quincas, verás o
inimaginável: seu amigo Antônio casado! Casado
e feliz!
– Que assim seja! – levantando o quarto ou quinto
copo de uísque para mais um brinde – que assim seja!
Nova estratégia. Mesmas respostas. Antônio che-
gou a chorar, não uma, mas várias vezes. Olhava os
olhos esverdeados da pequena e dispunha-se a mos-
trar-lhe tudo. Chorou sua solidão, sua proximidade
da loucura e suas noites insones em que a via em seu
quarto. Descreveu-lhe suas fantasias românticas, nas
quais Aninha convulsionava-se em espasmos orgásti-
cos. Sorriu-lhe sorrisos insorríveis, aceitou o inaceitá-
vel. Mostrou-se sujeito simples e angustiado, atencioso
e entendedor. O melhor dos partidos.
Por incontáveis semanas seguiu-se a ladainha.
Antônio afetado, enrubescido, sofrido mesmo por ser
o que era, ou o que achava que era. Aninha não mudou
muito sua receptividade. Agora, diante dos apelos dra-
máticos do pretendente, chegava algumas vezes a to-
car-lhe o bíceps direito, solícita na dor do companhei-
ro. Não chegou a mostrar-lhe os dentes.

141
Foi em uma manhã de sexta-feira. Antônio esta-
va entristecido, esvaziado. Mais uma vez passaria uma
sexta solitária e sofrida, sem os odores e afagos de
Aninha. Ela o olhou de forma diferente.
– Quincas, você viu aquele olhar?
– Por favor… toda sexta é a mesma coisa, ou me-
lhor, todo dia…
– Mas é sério… reparou o movimento do ombro es-
querdo enquanto ela me olhava, a mão no cabelo…
eu sei…
Correu pra salinha do café. Esperou Aninha por
toda a manhã. Não saiu para o almoço. Pensou que era
melhor estar ali caso ela decidisse vir até ele em mo-
mento de menor movimento. A tarde chegou. As pes-
soas entravam e saíam do café como formigas, ou como
sempre. Pensou em voltar pra sua mesa, tentar bater al-
gum carimbo. Refugou:
– Sei que ela vem hoje, que hoje é o dia…
Passava das cinco da tarde quando Aninha entrou
na salinha do café. Olhou o pretendente, parecia menos
segura que sempre. Ofegante, Antônio aproximou-se:
– Te esperei a tarde toda!
– E eu, te vendo aqui o dia todo, estava que não po-
dia de ansiedade…!
Beijaram-se como em um filme, as mãos do ra-
paz não sabiam onde pegar, tantos eram atributos a

142
completar aqueles lábios. Sentiu que se encontraram.
Propôs:
– Minha casa. Nossa nova casa!
Ela consentiu com a cabeça.
Desfigurado, Antônio desceu os doze andares de
escada. Sabia que precisava causar boa impressão.
Teve medo. “Se eu falhar, ela vai sempre lembrar do
marido como melhor homem, se arrependerá de já
tê-lo traído.”
Parou o primeiro taxi que viu.
– Espera que eu já volto. Busco uma beleza no déci-
mo segundo!
Entraram no taxi. Antônio não cabia em si. Aninha,
como sempre, parecia sóbria e extremamente cons-
ciente. Chegaram.
– Chegamos, minha rainha. Nosso ninho de amor.
Ela sorriu com o canto da boca.
Abriu a porta da sala com ansiedade incomum. Bei-
javam-se desde a entrada. Olhou sua casa e assegurou-
-se. “Aqui ela é minha”. Viu o sofá. Pensou em quantas
pequenas já haviam gemido ali. Sentiu-se grande.
Aninha não se opôs a nenhum movimento.
Participou. Evitou a maioria dos olhares. Antônio mos-
trou o melhor de sua performance, seguro. Ao final
sentiu-se satisfeito.
“Se ela tivesse isso em casa, não estaria aqui.”

143
A manhã seguinte no trabalho foi de alegria incon-
tida. Quincas abraçava seu amigo como no título de
sessenta e dois. Lembrava-se das jogadas geniais do ca-
misa sete canarinho.
– Tu és o Garrincha das pequenas! É ou não é?!?!
Que orgulho de ser teu amigo!!!
Antônio, carregado nos braços vibrões dos compa-
nheiros de repartição, sentiu a glória. Aninha passou
do outro lado do vidro. Olharam-se. Ele muito gabola,
sorriso escancarado. Ela enrubesceu, olhou pro lado e
pra baixo ao mesmo tempo.
A algazarra duraria pouco tempo. Antônio encurra-
lou-a mais uma vez no café:
– Mais linda a cada dia, Aninha.
Agradeceu com cabeça. Escutou galanteios.
Despediu-se.
– Espere! Quando nos encontramos de novo? Só
nós dois!?
– Nunca mais.
Riu alto. Gargalhou. Sorrindo:
– Você quase me fez acreditar! – olhando-a – Você
não pode estar falando sério!? – olhou-a mais fixamen-
te – Não brinque com coisa séria mulher!
– Já disse Antônio, nunca mais, acabou. – Saiu do
cubículo esgueirando-se na parede para fugir dos bra-
ços trôpegos.
O calvário de Antônio tinha apenas começado.
Maltrapilho, fedendo a álcool:
– Te maltratei? Você não foi feliz comigo?
Vingativo:
– Ela vai ver só Quincas! Quem essa pessoinha acha
que é? Não é só a minha vida que vai acabar! Ah não!
No interfone atendido por um dos apartamentos
disse que estava preso fora, sem chaves. Três toques de
nós de dedo na porta, cara séria, introspectiva:
– Boa tarde.
– Por favor, o senhor Manoel?
– Estás falando com ele.
– Sou Antônio, colega de Aninha, sua esposa.
– Antônio!, claro, queira entrar. Confesso que não
te esperava.
– Queira me desculpar.
Pareceu-lhe um homem comum, mais um.
Devaneou com os olhos a buscar o que haveria Aninha
visto nele.
No sofá:
– Uísque?
– Por favor.
Tinha olhos e ouvidos somente pra casa, pras fotos
do casal, pros olhos e contornos de Aninha nas mol-
duras. “Casa bonita, bem cuidada. Aquela safada finge
bem que se preocupa com a família”.
– E a seleção?
Acordou como após um badalo alto.
– Aquele Mané é coisa séria! É de outro mundo!?
Antônio já esquecido do motivo da visita, às gar-
galhadas, ouviu o trinco da porta. Virou-se a tempo
de ver o largo sorriso de Aninha anunciando a chega-
da. “Dentes perfeitos, felicidade que aperta os olhos”.
Sentiu-se como se ao diafragma fosse-lhe tirado o
chão. Uma gota de suor do peito encontrou descanso
no umbigo.
– Veja meu amor, seu colega nos veio fazer uma
visita.
– Seja bem vindo. – replicou a moça.
Acenou com a cabeça e gesto de mão. Assistiu ao
beijo dos dois e ao sorriso aberto de Aninha enquanto
o marido lhe dizia algo ao ouvido.
Àquela hora os ruídos do mundo e o zumbizar do
uísque já tomavam sua cabeça e corpo. Quis levantar-
-se, botar tudo em pratos limpos, acender a fogueira.
Viu o olhar apaixonado de Manoel. “Desgraçada! Ela
sim é culpada. Não posso arruinar a vida de um coita-
do, um igual!”
Quando ele foi ao banheiro:
– Escute aqui, sua vigarista, desalmada! Não conta-
rei nada a ele, não por ti, mas pelo bom homem que ele
é, mas você sim viverá com esta culpa!

146
Não obteve nenhuma resposta de Aninha.
Levantou-se em direção à porta.
– Mas Antônio, já vai? Só mais um?!
– Desculpe, Mané, mas a hora me chama!
– Que pena companheiro, te acompanho até
o elevador.
No corredor, aos sussurros:
– Antônio, gostaria que você entendesse. Tentei de
tudo, juro que tentei. Quando Ana me contava de seu
sofrimento e agonia, ficava tocado, entendo o que esta
mulher pode provocar. Conversamos muito, não foi
fácil, mas ela aceitou. Pensávamos que depois de uma
noite você se tranquilizaria. Mas… bem, espero que
você entenda, por mais que eu diga e ela para ter com-
paixão, ela simplesmente diz que não quer mais… de
qualquer forma, foi bom te conhecer.
A porta do elevador fechou tão lentamente quan-
to o rodopiar do chão. As ideias e sentimentos se mis-
turavam, ficou ofegante, sentiu suas pernas fracas.
Chegou ao ponto de ônibus. “Lá vem o 438” pensou
enquanto decidia se o parava ou se se jogava sob ele.

147
VIDA
Esfregou os olhos com vontade e pressão. A vista já
cansada e turva encheu-se de pequenos pontos lumi-
nosos que cresciam como em caleidoscópio. A boca
abriu sozinha, em prazer. Continuou massageando de
leve a testa com os dedos de ambas as mãos, enfiando-
-os nas longas entradas até alcançar alguns finos fios
de cabelo.
Seu pensamento voou até ver-se sentado na cadei-
ra de balanço do avô, na fazenda velha. Estava diante
de sua mãe, que o repreendia por um copo quebrado.
Ali esfregou os olhos e sumiu. Ouviu zumbidos distan-
tes, os cavalos trotando ao fundo. A boca entreaber-
ta. Abriu os olhos e mirou seu pai. Rosto duro, marca-
do pela vida, mas de sorriso fácil e mãos carinhosas.
Roçou o rostinho na barba dele. Riu. O pai acendeu a
luz. “Meu olho não tá doendo!” – disse com sua vozi-
nha e melodia de criança, enquanto esfregava os olhos.
O pai riu sua gargalhada de trovão, fazendo tremer o
mundo. Sentiu-se seguro. Mãos dadas. “Quero colo!”
e logo o bração do pai juntou-lhe o corpinho às per-
nas içando-o ao peito grande e macio. Aconchegou-
se. Sentiu cheiro forte do pai, a mão acariciou-lhe o
rosto inteiro, afagou nuca e ombros. Fechou os olhos,
respirou fundo, a mão a apertar todo seu corpo con-
tra aquela massa de afeto que o fazia flutuar tranquilo.
Soltou-se completamente. Chegavam ao curral.

149
Eram tantas as lágrimas a cobrir-lhe a face, ne-
nhum soluço. Abriu os olhos, buscou a pele do pai. A
idade e a catarata permitiram-lhe ver apenas um vulto
de penteadeira e o balde azul sob seus pés. Água mor-
na. Não estava triste, nem feliz; estava vivo. Quis es-
fregar os olhos novamente. Último grande prazer, logo
ao alcance das mãos. Esfregou-os longamente. Iniciou
com os indicadores limpando e pressionando os cantos
de seus olhos contra o nariz. Aos poucos subia também
os braços em um misto de espreguiçamento e alon-
gamento. Empurrou então os globos oculares. Como
de dentro de si os pontos de luz foram aparecendo,
um zumbido… passou as mãos nos longos cabelos de
Maria. Tinha os olhos úmidos, o nariz avermelhado.
Mas não fungou, sorriu. Olhou seu vestido amarelo,
que, esvoaçante, exibia as panturrilhas de moça, as sa-
patilhas pretas. Esmalte não tinha. Ou tinha? Esfregou
os olhos. Cheiro de mato molhado, mato saudável.
Beijou-a com paixão retribuída, distribuída. A mão de
Maria fez delicada pressão no lóbulo de sua orelha es-
querda. A boca abrindo-se…
Sorria sorriso parado, distante. Pegou um besou-
rinho que caminhava sob suas mangas compridas.
As unhas grandes roçando as costas do bicho fize-
ram um som estranho. Coçou de novo o bichinho che-
gando a orelhona perto. Deixou-o ir. Quis pegá-lo de

150
novo, mas não pôde. Agora tinha sossego, a alma bran-
da. Lembrou-se dos meninos correndo, mas só de um
se despedindo. Esfregou os olhos, olhou bem fundo no
menino e abraçou-o com toda emoção que já sentira.
Estava orgulhoso, também medroso e cabreiro. Mais
uma vez chorava sem soluçar. Viu o trem distanciar-se
nas montanhas. Esfregou os olhos, já era noite. Puxou
a manta de quadrados grandes, subiu-a até a ponta das
orelhas e virou de lado, precisava dormir.

151
LIDA
Deixou o carro azul em fila dupla. Sabia que não de-
moraria. Apesar do bom número de pessoas no bar,
avaliou rapidamente que não tardaria a sair dali. Os
muitos anos de experiência diziam isso e, apesar deles,
Toninho não deixava de passar em uma mesa sequer.
A própria experiência ensinara-lhe que ela é falha.
Passar em todas as mesas vendendo incensos era seu
trabalho desde sempre. No início tinha algo a ver com
sua própria vida, estilo. Era, ele mesmo, um incensei-
ro. Via naquela peregrinação noturna pelos bares da
cidade algo de glamour. No entanto, nos últimos tem-
pos, passara a questionar-se sobre sua vocação. Um
dia um pensamento o invadiu: “Quem de fato escolheu
este caminho? Eu ou o incenso?”
Apesar de um tanto absurdo, tal questionamento
carregava em si algo de filosofia barata e verdade.
Aliás, após tantos e tantos anos dedicados à filosofia
barata, por fim ela lhe servia para algo. Para foder
ainda mais sua vida. Pois, caso a resposta a essa
pergunta fosse “o incenso”, ver-se-ia em uma encru-
zilhada medonha e, pior, obrigado a mover-se em
alguma direção.
Lembrava o que podia da vida que levara. O tem-
po em que as meninas de vestidos longos e coloridos
ouviam música em sua casa. As fumaças, os cabelos.
Lembrou-se de também ter tido cabelos em algum mo-

154
mento. Os tantos amigos. “Bons tempos; ali foi o auge,
o auge do incenso”. Subiu as escadas do bar de esquina
pensando que estava em queda livre, ele e o incenso.
Agora também vendia saias e vestidos “indianos” para
tentar “alavancar o faturamento” como diziam os tex-
tos de administração que lia. Figura carimbadíssima da
fauna noturna local, não lhe faltavam sorrisos e tapas
nas costas. De tanto ouvir os outros falarem, saiu uma
vez pra vereador – Toninho do Incenso. “Vai pegar!”.
Sua plataforma política falava em cultura, liberdade de
expressão e investimento em arte. Aproveitou as tantas
andanças e conhecidos para distribuir santinhos (que
traziam um incenso de brinde) e até se inflamou em
pequenos eventuais discursos nas mesas. Acabou dan-
do com os burros n’água e endividado até o pescoço. O
negócio de Toninho, assim como sua vida, o puxavam
como uma draga em direção ao incenso. À bem da ver-
dade, até mesmo carregar aquelas saias e vestidos lhe
parecia um tanto fora. Olhava por vezes seu braço co-
berto pelos panos e não se reconhecia.
Cumprimentava os conhecidos e tentava empur-
rar algum produto. Essa técnica era uma das que mais
funcionava. Olhou as mesas em perspectiva, reconhe-
ceu algumas pessoas. Pensou estrategicamente seu
deslocamento tendo as mesas com rostos conhecidos
como referência. Reagiu ao primeiro tapa nas costas:

155
– Fala meu amigo! Faz tempo que não negociamos
um incenso!
Ouviu:
– Oh, meu velho, é que mudei daquela casa…
– E onde você está agora não pode mais acender.
Entendi.
Sorriu-lhe em concordância aliviada o amigo,
Toninho já caminhava para outra mesa. Por mais im-
provável que possa soar, essa conversa da mudança da
casa já fora ouvida por ele inúmeras vezes e, junto com
outras como “minha namorada nova não gosta de in-
censo” ou “menino, desenvolvi uma alergia! Cê acredi-
ta?! Dó viu, gosto tanto, mas não posso mais.”, era das
mais utilizadas por aqueles que não conseguiam dizer
um “não” simples, sem justificativas. Recebia as nega-
tivas com naturalidade e sabia não serem definitivas.
Momentos, humores e estados etílicos diferentes mu-
dam desde alergias até moradias.
Como previsto, deixou aquele bar em tempo cur-
tíssimo. Sem nenhuma venda, ainda pensava na queda
livre do incenso, em outros mercados, outros produ-
tos, em trocar as sandálias de couro por um par de sa-
patos. Abriu a porta do seu Ford Escort 87 e sentou-se.
Deixou os panos no carona, virou-se para guardar os
incensos na caixona verde atrás do banco do motoris-
ta. Ligou o rádio. Olhou para a saída de ar do painel e

156
sorriu ao ver um pedaço de incenso enfiado. Pegou o
isqueiro do bolso e acendeu, era de jasmim.

157
PA S S A R I N H O
Desleixado. Cabelo livremente descuidado; mas que,
junto com os olhos profundos e de atenção selvagem,
passava algo que não era necessário plantar, ou
mesmo regar.
– Na cama uma gana que a gente sai morta…!
– Ai, esse olhão olhando de perto…
Tinha passado pra lá e pra cá, rido umas duas ou
três vezes. Claro que uma pra elas. Jurava: “Nada mais
que isso”. Primeiro dia é e deve ser assim, sabia. Deixar
se falar mais de si que se sabe, deixar(-)se encontrar.
Pavão de exposição, coral verdadeira.
Tirando fiapo de carne do dentinho de ouro:
– Gentes de chegada abrilhantada, de companhia
inovativa e prazerosa!
Tinham que querer muito; e sabiam; e queriam; ou
ao menos achavam. Lambu-nhangá de passo incerto,
perna branca reluzente, mas corado e vistoso. Vezes
desconfiado, vezes mulher. Achou seu olhar em meio
a tudo. “Era mesmo fundo, falava tanto”. Falava dela.
Deste dia não pensou outra coisa. Sabia dela, até falas-
se a outros, saber!?
Mulher desconfiada.
Noutro dia deu-se mais a ver. Mais e mais. Mostrou
colo nu, pele cremosa colorida de sol, marquinha. Olho
agateado, sabido e sorridente. Sorrisos. Olhos riem pe-
rigosos. Falou séria como ela só:

160
– Você mexe comigo.
Ele fez que não entendeu.
Olhinho atento a qualquer pista.
Unha coçando falha de barba. Gota de suor lenta
em queda presa. Testa bastante desenhada. Linhas fun-
das. Não continuou assunto, colocando-se à disposi-
ção. Elegância discreta.
Certa. Ele sabia! Por isso fez que não via! Sabia
de intimidades dela, de desejo mais escondido.
Como? Quem lhe contara? O que seria ele? Tudo
tudo, tudo planejado! Certeza! Outro dia disse elogio
a outra moça. Moça feia, elogio bobo, serviria qual-
quer. Descriativo disse “chique”; bem na sua frente.
“Descarado, podia mais discreto, né?! Mundo viu era
dengo pra mim! Só pra me ver de ciúme.”
Marido fora. Força encorajada. Saber confuso. Que-
rer sabido. Decidiu ir. “Com ele lá tiro tudo a limpo!”
Telefone. Amiga. Carona. Amiga angustiada.
Ele não estava lá.
– Por que me faz sofrer? Esperar e esperar sem fim?
Ele noite de amor regrado, entendido. Festa não sa-
bia. Amor de cheiro e encostar quente. Vida. Estar de
preenchimento? Amor de conhecimento, de liberda-
de (nó)(a)tada. Existe outra liberdade? Que não exija?
Nunca soube, ou mesmo questionara. Aceitava-a as-
sim, como possível.

161
Pensou nisso e riu.
Músicas para fazer gente feia dançar. Festa, alegria.
Ela linda. Circulada por libido, cores. Entremeada alma
por muito vinho. Bradou a todos os ventos possíveis,
muitas e muitas vezes. Cochichou também, a tímpanos
leais. Gente ouve; e diz. Passarinho dançou, lindamen-
te. Pés traiçoeiros, seios e mãos sorridentes. Alguns
olhares flutuantes souberam ter encontrado beleza.
Pássaro de fogo, desejado e temido. Mas ele não estava
lá, nunca esteve. E que maneira ela sabia.
Esbarraram-se na sala comum, olhou-o bem.
Sempre ocupado, a dar pouca atenção. “Sofre de algu-
ma dor. Talvez seja isso.”
Ele existiu um pouco. Instante.
Disfarçadamente, seu respirar sempre pareceu ar-
gamassado à existência dele. Depois de tanto, sabe-
ríamos disfarce falso, fantasia de criança dia diferente
na escola.
Chegou.
Tantas impossibilidades, moral à flor da pélvis; o
carro estava ali e cumpriu seu papel. Os não saberes.
As dúvidas vitais. Sentiu algo na timo, murcha como
uva passa de farofa rica.
Faltou-lhe ar às mentiras do olhar, mas seu úte-
ro desangustiou-se, achou objeto. Poderia sustentar
o mundo. Dor (de)vida. Obrigação à vida? Faltava-lhe

162
vergonha? Olhou o menino no olho. Vergonha da mãe.
Jurou que lhe acolheria de todas as formas devoráveis.
Era o que sabia, ou o que era.
Sempre agradável. Sotaque já incomodava em
profundidades abissais. Dissimuladas declarações.
Mentiras paranóides. Ela nunca seria parte. Corpo dis-
se não. Olho vacilou. De novo e de novo. Pra baixo; ve-
zes olhando desde lá. Perguntando: se.
Saltou em casa ou onde quis. Escreveu. Escreveu
pra ele; gozou mais umas vezes e dormiu, como uma
criança. Quando lá pelas seis levantou pra nadar, ria,
tropeçava-se e era. Maiô apertando polpa lisa, peitos
duros. Olhos espremidos por sorrisos. Saltitante de-
pois de despersonalizável vida em pelo, sentiu: machu-
cara alva e trôpega pata esquerda.
Ele não soube, demorou tempo de tamareira pra
saber. Pior, tinha no armarinho, grande embalagem
bege, letras garrafais: “Tala e unguento pra reluzente
pata injuriada de lambu”.

163
EPÍLOGO
VA L A C O M U M
Naquela tarde aberta de agosto era possível sentir o ar
tremer ao ser tocado pelo vozeirão de Padre Calixto.
Cemitério apinhado. Gente vinda de todo canto pro
enterro de Dona Mariazinha. Ladeando o caixão, os
mais próximos. Filhos, netos e os doze bisnetos dos
quais ela tanto se orgulhava. Cidade estava que era
choro só. Vendas e armarinhos de luto fechado. Seu
Manoel abrira a padaria só mesmo pra que o povo ti-
vesse pão que comer naquele dia de tanta tristeza e de-
solação pela perda de senhora tão devota e solidária.
A ladainha das choradeiras se estendeu até o iní-
cio da noite. Pouco a pouco a multidão dissipou-se e o
cemitério ficou apenas com seus moradores eternos.
Junto a eles a mais nova proprietária de sete palmos do
derradeiro condomínio, Dona Mariazinha.
Levantou-se do chão de terra, atordoada. Diriam
que estava perdida. Bateu a mão no vestido branco,
“toda imunda” pensou. Tentava arrumar-se minima-
mente, mas percebia algo estranho. Seus braços pare-
ciam mais leves. Tampouco sentia o pendular de tanta
pele e gordura acumuladas nos tríceps por anos. Pas-
sou a mão pelo rosto, colo, seios e quadris. “Onde es-
tão minhas rugas e pelancas?” Olhou para suas coxas.
Estavam duras, aveludadas, sem manchas ou varizes.
– Mas que diabo! – disse já tapando a boca com o
sinal da cruz e pedindo perdão em silêncio.

167
As dores que a acompanhavam desde que seu corpo
podia recordar agora não sentia. Caminhou ereta e
enxergou detalhes ao longe. Certeza, não tinha mais
que vinte e poucos anos. Assustou-se. Enquadrou me-
lhor o que via ao longe. Pareceu-lhe dois homens nus,
beijando-se e lambendo-se avidamente. Assustou-se
outra vez. Nunca vira coisa assim. Aliás, passara toda
vida ao lado do mesmo marido “Tonhão, que deus o
tenha”, nunca faltou missa Domingo, nem gostava
dessas sem-vergonhices. “Isso é uma pouca vergonha”,
forçou-se a pensar.
Percebia melhor agora o descampado em que es-
tava. Percebia também as pessoas. Muitas, diferentes;
homens, mulheres e animais misturavam-se em ce-
nas grotescas de sexo. Em alguns grupos impossível
seria identificar quantos eram, ou mesmo o que fa-
ziam. Todos, todos nus. Talvez causasse mais estra-
nheza à moça Mariazinha em tão inusitado lugar, fosse
ela não sentir repugnância, raiva, vergonha, ou outro
sentimento proveniente de algum julgamento moral.
Olhava tudo com certa naturalidade.
Andando mais, deparou-se com três garotas nuas
que conversavam sob uma sombra. Parecia conversa
animada. Aproximou-se, e pondo-se de cócoras, per-
guntou onde estava. Vestido já demonstrasse sua es-
trangeirice, fez questão dizer que não era dali.

168
Por mais que se esforçassem em explicar-
-lhe, impossível foi que Mariazinha compreendes-
se. Utilizavam palavras que soavam estranhas, ape-
sar de reconhecê-las. Além das inúmeras gargalhadas,
abraços e brincadeiras em que as moças se entreti-
nham durante o percurso daquela estranha conversa.
Mariazinha sentia-se intrigantemente bem e leve na-
quele instante. Pareceu-lhe fazer sentido todo seu não
entender. Sentiu sua cabeça menos complicada e sua
abertura para o desconhecido no outro crescer. Mesmo
tempo que se sentia ainda nauseada; “provavelmente
da viagem” pensou. Quando avistou Tonhão. Alegrou-
se imensamente em corrida desvairada até seu amor.
Lindo e jovem como quando primeiro o vira na porta
da Igreja de Lurdes, numa saída de missa. Era domingo
de muito sol e a aba de seu chapéu fazia sombra más-
cula em seu maxilar. “Tão ereto, tão forte.”.
Abraçaram-se longamente. Quis cobrir-lhe as par-
tes, mas logo se esqueceu. Apesar de toda felicidade
do reencontro, viu Tonhão meio disperso. Outras pes-
soas se aproximavam e ele também se alegrava com
elas. Falavam como as três moças da árvore. Quis en-
tender o que ele fazia ali, mas, de alguma forma, sen-
tiu sua dúvida suprida sem resposta alguma. Livrou-se
de parte incômoda de seu vestido “mas que farrapo!”
e seguiu o grupo, já era um tanto parte dele. As mui-

169
tas perguntas se acalmavam, assentando-se em suas
entranhas. Deixou-se tocar por pessoas do grupo, de
várias maneiras. Sentiu tanto prazer que se assustou.
Procurou Tonhão, mas todos já se confundiam. Aos
poucos os rostos perdiam o significado que carrega-
vam, iam simplesmente se tornando familiares. Reco-
nhecia-os no início e depois acostumava-se. Alguns de
pessoas odiáveis. Reconheceu pecadores inconfundí-
veis, como Nô de Jacira, matador famoso da região, ou
mesmo Madame Judite, cafetina que a quantas moças
de família desvirtuara, quantos maridos não acoberta-
ra! Mais estranho, em meio a tanta gente decente como
ela mesma, seu falecido, Padre Osório e até Dona Me-
nina! Assim que os via, mantinha-lhes a face, mas não
os atribuía mais desvalores, valores ou julgamentos.
Via-os, apenas, e sentia-os estranhamente familiares.
Desviou o olhar e pensar do grupo. A dúvida, a
curiosidade e a angústia a escalar suas grossas e firmes
pernas até seu estômago. Olhou para o vestido rasga-
do. Viu outras pessoas vestidas em uma fila. Voou o
mais rápido que pôde para garantir seu lugar. Falhou
em todas as tentativas de comunicação com os ou-
tros, pareciam todos extremamente confusos. Destes
não reconhecia palavra sequer, quiçá rostos e às vezes,
mesmo suas formas lhe eram estranhas. A fila dava
numa espécie de caverna. Duas pedras grandes, uma

170
de cada lado, a sustentar outra gigantesca de cobertu-
ra. “Sem dúvida isso foi feito” pensou. “Mas por que
gastar construção para construir algo que mal se apro-
xima de uma caverna?” Manteve-se em fila indiana.
Chegou sua vez.
Mariazinha passou pelas estranhas pedras e pene-
trou na caverna. Uma sensação de liberdade invadiu
seu corpo, fecha os olhos… Tenta abri-los, mas a escuri-
dão insiste em permanecer, leva as mãos às pálpebras e
se surpreende ao senti-las abertas, mais abertas do que
nunca. Mergulhada no medo, sente uma coragem a en-
volvê-la. Sua visão perde o antigo sentido, e Maria tem
certeza de não estar dentro de uma caverna, de uma
montanha, cercada por parede ou muro; nem mesmo
o céu e a terra limitam mais o seu universo. Sorri. Seus
pés não estão sobre nenhuma terra firme, nem mesmo
sabe a posição na qual se encontra: de pé, deitada, de
frente, de costas; tenta buscar nas palavras antigas uma
descrição para aquilo, e num devaneio de sensações:
– É água! Não!!! É mais suave que isso!!! Estou
voando?! Não; é mais denso!!! Cadê o peso da gravida-
de?! Não sinto pressão e ao mesmo tempo estou total-
mente envolvida por essa coisa!!! Tempo?!
Um pensamento a invade, aliás, a única coisa que
poderia invadi-la naquele lugar oco. Maria tenta falar,
mas suas palavras perderam o som. Toca a boca:

171
– Está se mexendo!!!
Continua falando seus pensamentos, mas eles já
não ecoam em nada naquele lugar. Perderam-se da
matéria e ganharam muito mais do que o velho e res-
trito singular das palavras. Respira profundamente,
está completa. Já não são os ares de outrora que pene-
tram seus pulmões. Maria sente o seu, só seu, sentido
de liberdade. Sentido tão expandido que pela primei-
ra vez pode sentir, de verdade. Conectada consigo, na-
quele vazio pode perceber o tudo.

Sua voz era de Multidão e certeza


Urgia por todos os poros
Flutuava sobre o naufrágio da grande arca
Eterno cemitério dos santos
Das promessas dos bichos
O deserto na ponta dos olhos
No oco do peito
Na bile
Ouviu a última canção
E a primeira

Irás à base do tempo


Em sua primeira matriz
Sem mãe pai ou culpa
Ou nome

172
Abrirás com as unhas o ventre
E lá sangrarás teu desejo
Em suas tantas metades
Colherás então em dois frascos
Os dois últimos fios de luz
Um será a verdade
O outro a miséria
Atravessarás de volta o claro pátio da morte
Devolverás um frasco a deus
O outro ao peito
Terás a vida gargalhada em mistério
E não mais julgarás

Terminando de rasgar os trapos caminhou nua em di-


reção ao horizonte. Falava com o solo e o ar, sentia o
todo. Sem nome, sem história a julgar. Encontrou ou-
tros. Gargalhavam alto; como gargalhavam.

173
Publicado mediante acordo com o Autor.
Direitos reservados para a língua portuguesa pela
Estereográfica Editorial, 2015.

Texto © Ângelo dos Santos, 2015.


Ilustrações © Eduardo Belga, 2015.

edição André Maya e Rafael Dietzsch


projeto gráfico André Maya, Rafael Dietzsch, Vitor Teles
revisão Plínio Arantes

S237V Santos, Ângelo dos.


Viagem em família. Ângelo dos Santos;
ilustrações de Eduardo Belga.
Brasília: Estereográfica, 2015
176 p., ilust., 21 cm.

ISBN 978-85-68809-04-4

1. Literatura Brasileira  2. Conto Brasileiro


3. Literatura Brasiliense
I. Belga, Eduardo. II. Título.

CDD B869.3
CDU 821.134.3(81)

Estereográfica Editorial Ltda.


Caixa Postal 16375
CEP 70775-980
Brasília, DF

+ informações www.estereografica.com
Este livro foi composto em Zenon, família de tipos projetada por
Riccardo Olocco e distribuída pela CAST (www.c-a-s-t.com).

Impresso em Pólen Bold Suzano 90 g/m2 e Offset Alta Alvura Suzano 240 g/m2,
nas oficinas da Athalaia Gráfica, Brasília, dezembro de 2015.

Tiragem de 1000 exemplares.

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