style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">JOÃO E
MARIA</span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Ângelo dos Santos</span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> JOÃO E MARIA <br><br> Já tinha passado mais de dez minutos. Ele numa ansiedade que se via nas mãos. Cotovelos nas coxas, joelhos juntos, não proferiu palavra. Ela, menina demais ainda. Desajeitada. Envergonhava-a olhar e ver e deixar-se ver. Escondi(d)a (d)os olhares atrás dos grandes aros leopardeados do óculo. Baixava os olhos, ora os subia. Brincava de esconder com seu enquadramento. Sorrisos soltos, nervosos e bonitos. A mãe dele tinha feito sanduíche, tinha maionese e ele gostava de maionese. Olhava-a rindo sem jeito e sentia uma falta de ar secar-lhe o íntimo. As orelhas afundando-se corpo adentro, pescoço comido pelos ombros, cabeça feito pêndulo, sorriso talhado. Maria tinha biscoitos, não eram seus preferidos, mas ainda eram biscoitos. Limpava insistentemente migalhas cocegantes das coxas finas de criança. <br> O sinal tocou e saíram. Já chegavam à casa de João, quando viram os balcões de doces. Certeza que não estavam ali ontem. Imensas prateleiras, guloseimas mais sortidas que o paladar. Pequenos quindins, brigadeiros de tamanhos inesperados, cachoeiras de chocolate, balas de leite, de côco, de alga, pimenta, limão, nozes e avelãs, limas e raspas de laranja. Sorvetes e caramelos. Tortas holandesas, alemãs e búlgaras. Fios de ovos, baba de moça e ambrosia. Doce de leite pastoso, cremoso, em barra e maviosamente aerado.<br> _ Que loja linda! <br> _ Lê lá, você que enxerga! <br> _ "Inauguração! Degustação grátis!".<br> Não disseram outra palavra antes de atravessarem a porta de bolo trufado com creme de abacaxi boituva; ou mesmo depois. Entrando, inebriou-lhes o cheiro. Vertigem de energia e encantamento. O sorriso airado da moça detrás balcão pareceu-lhes tão bonito quanto o resto. Mais perturbador. Seguiram em direção aos doces, mariposas à lâmpada. Boiavam trespassando o ar, enfeitiçados. Os olhos violetas da moça e seu corpo esguio de ombros pontudos dançavam dança de rodopios tufados em frente e ao redor dos dois. A euforia tomou conta de suas sensações, seus sorrisos voaram pelo espaço, leves.<br> M aria viu assustada os furos no chão. Procurou por João. Encontrou-o pendurado em uma gaiola grande, não muito distante. Olhou pra cima e viu sua própria jaula. O chão muito longe. Forçou olhos para tentar se situar. Eram paredes altas, tijolos que pareciam pedras, úmidos. Lodo e algum musgo cobriam parte das entradas de luz. Viu também outras gaiolas mais, todas com crianças, todas penduradas. Gritou alto, ouviu alguém chorar e outros mandarem calar. Tentou balançar a gaiolona, mas pesada e bem grudada. Nas mãos apareceram as primeiras feridas. Nauseada, cansada e confusa, apagou. Ele abriu os olhos, assustado com a sirene. Perdido, procurou por ela. Não a reconheceu em lugar algum. As paredes altas e cinzas, a pouca luz. Tremendo muito, entrou em choque pela primeira vez. Seus espasmos assustaram os outros, que gritaram por socorro. Maria, aos prantos, quis acariciar seu amigo: mãos mais machucadas, espremidas entre os buraquinhos. Não demorou para o silêncio voltar às bocas; ao fundo os ruídos convulsivos do corpo de João se debatendo. Logo parou. Maria chamou alto, sem resposta.<br> A segunda sirene fez com que todos se levantassem. Falavam entre si. Maria conseguiu encontrar olhar de João. Quatro olhos assustados. A moça da loja de doces entrou. Algo nela mudara. Agitada, dava ordens com todo corpo, que lhes pareceu mais duro; maxilares marcados. Uma palma fez a gaiola de João descer, lentamente. Esvaiu-se o medo do menino quando ela lhe sorriu. Uma paz imensa tomou conta de sua alma. Ela o tomou pela mão, levando-o dali. <br> Maria gritou o nome de seu amigo. Uma vez, outra e outra mais. Crianças comemoravam, burburinho de alívio. <br> _ Estamos todos presos e vocês em festa? Onde está João? Quem é essa mulher? <br> _ Não pergunte tanto, boca doce. Ou você acaba descobrindo! <br> A voz de menino deslizou entre as risadas. Perdida no caminho entre bocas, paredes e ouvidos.<br> _ Mas eu preciso saber!<br> _ Contente-se em não ter sido escolhida! Você fede a açúcar! <br> Logo ouviu o barulho das correntes e sentiu sua gaiola baixar. Viu que todas baixavam. As crianças falavam alto e riam. Ratos enormes entraram no salão. Tinham o tamanho de uma criança de cinco anos. Apoiando-se nas patas traseiras, abriram uma a uma as gaiolas e foram em direção a um corredor. Todos seguiram os bichos eriçados, enquanto falavam e brincavam. O corredor dava em um grande refeitório. Mesas de cimento grande, um único e comprido banco de cada lado. As crianças eram de várias idades. Uma menina pequena mexeu com sua alma. Quis cuidar. Aproximou-se. Outras meninas empurraram Maria. Aquela pequena já estava cuidada. Voltou à sua consciência sem tê-la de fato perdido. Confusa. Os ratos agora andavam como pessoas. Serviam comida. Pão, queijo, leite e bolo de fubá. Faminta, avançou nos alimentos sem reparar os rabões semi pelados das merendeiras. <br> D epois do desjejum, uma porta se abriu para um jardim. Cuidaram umas das outras para evitar pisoteamentos. Maria viu o céu e sentiu o sol em sua pele. Bastou para que esquecesse tudo por um tempo e se deixasse brincar de queimada. Pulou corda e rolou no chão de rir. Foi pegadora no pega-pega. A porta abriu de novo. Culpou-se ao lembrar João. Chorou a mãe ao entrar na gaiola. Junto com ela, todas.<br> Quando a segunda sirene da manhã tocou, ela ficou de pé. Procurou João e encontrou-o em sua gaiola. Ele não se levantou, sentado, aparentava cansaço. A palma baixou a gaiola de uma menina que seguiu a moça. Ao ver os ratos, João começou a gritar, tentava ficar na gaiola. Maria gritou:<br> _ Tá tudo bem, João! <br> Antes de terminar a frase, dois dos roedores grunhiram às suas costas. Virou-se e viu os olhos pretos de tão perto, que pôde sentir o chorume do hálito e o pinicar dos bigodões. Calou-se por instinto. <br> Tentou sentar-se ao lado de João, impossível. Ele parecia distante, não a olhou nos olhos. Tentou indagar sobre o que acontecera na manhã anterior, mas não obteve nada além da aproximação desconfiada e ameaçadora dos ratões. Quando as portas se abriram para o pátio sentiu mais uma vez uma ansiedade feliz por sair e brincar. João também não foi brincar neste dia. Conduzido que fora pelos guardas a outro corredor longo.<br> Na manhã seguinte, Maria já estava acordada bem antes das sirenes. Atenta a tudo, procurava entender o que acontecia ali. Onde estariam? Quem era aquela mulher? Como ela controlava as crianças e as bestas? Lembrou-se demoradamente do dia na loja de doces. Passeou pelos balcões e olhou a mulher nos olhos. Começou a sentir uma certa vertigem tomar-lhe os sentidos, os movimentos dos ombros da mulher. Percebeu que ela batia palmas enquanto se movimentava. Sentiu que aquelas não eram palmas ao acaso, quase conseguiu ouvi-las falar ente os percussivos sons ocos. As palmas falavam com ela. A vertigem ficou forte demais. Acordou de um salto na primeira sirene. Concentrou- se bastante. Precisava decifrar os próximos acontecimentos. A segunda sirene já lhe soou diferente. "Alguns tons acima da primeira" pensou enquanto tentava um falsete certeiro e bem baixinho. A palma que baixou a gaiola ao lado da sua foi curta e seca. Tentou acompanhar os olhos da menina escolhida e da mulher dos doces. O pânico desapareceu com um passe de mágica ao encontrar os olhos violeta. "Aquela bruxa!" - pensou revoltosa. Viu que com a palma os ratos se enfileiraram no corredor. Ao sair, somente o som dos saltos no chão de pedra e os ratos baixaram as outras gaiolas. Tentou aproximar-se de João, mas era impossível durante o café. Os guardas. No dia seguinte esperou a primeira sirene e, na sequência, antes da segunda, soltou um falsete bem alto. Não soou como a sirene, mas, sem dúvida, acertara o tom. Todos se levantaram. Maria sorriu. No refeitório podia sentir uma vibração sonora inaudível. "Controle". Só à noite, depois de chorar a mãe no caminho da gaiola, percebeu que algo acontecia quando aquela porta abria pro pátio. Mais um dia chegava ao fim e ela não tinha conseguido falar com nenhuma das crianças. Brincavam juntas, mas não se falavam. Enfeitiçados, brincavam como loucos à luz do sol. Tampouco conseguia lembrar de outra refeição que não a primeira.<br> &nbs p;Quando a palma da bruxa baixou sua gaiola, Maria estremeceu. Esperava este momento, mas o temia, muito. Desesperou-se em performance escandalosa até olhá-la através dos olhos. Focou o olhar atrás da cabeça da bruxa. Acalmou-se e a seguiu. Depois de passarem por um corredor estreito, entraram em um enorme teatro de arena. Ao vê-las entrando, o público de homens brancos, grisalhos e carecas entrou em êxtase. Em meio a assobios, gritos e muitas palmas, Maria tentava manter-se de pé. Pernas de Maria mole. No meio do teatro, uma grande gaiola prendia vários animais. Macacos, serpentes constritoras, cavalos, porcos, cachorros, ratos gigantes, gambás enormes. Sentiu nojo e medo inenarráveis, manteve semblante morno. <br> & nbsp;_ Senhores! Hoje lhes apresento: Maria! <br> A multidão de homens enlouquecidos a fez tremer o estômago. Caixa torácica ecoou o grave dos sapatos no chão. A mulher bateu uma palma e todos os animais caminharam para um canto da gaiola. Silêncio geral. Bateu duas e a bestialidade tomou conta dos bichos. Plateia em êxtase. Bateu uma palma novamente. Sorrindo para a plateia abriu a porta da gaiola e olhou para Maria. A criança entendeu e caminhou em postura robótica. Estava entrando na gaiola, calmamente. Confiante, a bruxa mirou seus convidados em todo o teatro. Maria agarrou-lhe o braço direito puxando-a pra dentro da gaiola e empurrou-a porta adentro. Saiu e trancou a porta. <br> Os animais continuavam encantoados, os ruídos da plateia misturavam terror e êxtase extremos. A bruxa começou a sorrir, a mover-se e a olhar. Passeava seu veneno invisível pelo teatro. Os ânimos começaram a mudar. Olhou Maria. Num bater de asa de mosca azul, as mãos de Maria arrancaram os olhos(,) viole(n)tas. Pendurou-os nos ombros pelos longos nervos ópticos. A bruxa gritava, mãos no rosto. Maria bateu duas palmas secas. O macaco foi o primeiro a aproximar-se, arrancando as roupas da mulher, para o delírio espetaculoso. A enorme sucuri prendeu seu tronco e penetrou sua vagina. O porco penetrou-lhe o anus enquanto os gambás se esfregavam em seu rosto. Macaco segurou seus cabelos para a primeira entrada do pênis do cavalo. Os urros desesperados da bruxa encheram os ouvidos de Maria. Mirou a plateia de homens que se masturbavam, se penetravam e se agrediam. <br> Peito aos saltos, correu como nunca. Corria e pensava em quando João fora levado. Pensou nas incontáveis Marias. Aos prantos, concentrou-se. Desceu as gaiolas, controlou os ratos. Pediu silêncio às crianças. Pisaram o chão com cuidado. A porta oval abriu, a luz entrou e saíram em disparada: os Joãos e as Marias.</span><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div> ENFADADOS <br><br><br> Quando calçaram tênis de caminhada, ela deixou claro que não correria de jeito nenhum:<br> _ São tênis de caminhada! <br> _ Que é isso, Maria? Tênis pra caminhar ou correr são os mesmos!<br> Deu foco à função dos tênis sem saber mesmo o porquê. Há muito as conversas com João baseavam-se em argumentações frouxas, em desimportâncias. Qual se o desejo não expressado claramente os protegesse dos ocorridos. Até mesmo daqueles ainda por ocorrer. Os protegesse dos próprios desejos. Estranho fosse que o mesmo passado os unia. Nem tão estranho fosse, acomodados que estamos em finas e longas pernas de pau. Nunca questionara companhia de João, ou ele a dela. Era assim, sempre tinha sido. Cabia aos dois manter a estrutura de pé. A fragilidade de tudo dava tons de louça a toda boneca, de !!!abandono!!! a toda perda. Nesse ter-se um ao outro, caminhavam pé ante pé. Agora eram órfãos, mesmo adultos. Correr pra onde? Perguntou-se. Em solilóquio, apenas.<br> _ Colocou água na gaiola do passarinho? <br> _ Tinha esquecido. Espera que a gente já vai.<br> Calados passaram pela primeira curva do rio, depois pelo velho tamboril. Ela respirou fundo e viu alto do monte. Desde lá poderiam ver o vale, imaginar a paz desde as alturas. João pareceu- lhe diferente. Seu ritmo não era o mesmo: apressado, enquanto guardava o relógio de bolso no colete rosa de cetim. Diminuiu as passadas para obrigá-lo a lembrar-se quem era e, portanto, quem eram. Lembrar-se-ia quão perigoso era viver. Sentiu desequilíbrio largo, quase caiu, perdendo centro. O chão fez-se de rogado e não a ajudou na tarefa, ladeirando-se. Pediu ajuda às árvores, ao riachinho e às tantas e desconhecidas forças do existir, mas João parecia convicto: queria correr. <br> Puxou-o pelo braço:<br> & nbsp;_ Cara, você quer mesmo mexer nisso? Olha pra gente! <br> _ Não aguento mais! Como posso continuar a me esconder?! Vamos, corra comigo!? <br> _ João, desejos dessabidos são como natimortos, são a perfeição! Limpos, plenos, sem angústias, cheios de beleza. A única perfeição de que se terá notícia! <br> _ Mas que doem como o cão!!! Num útero que nem sei se já tive...<br> _ Pense no que será de nós! <br> _ É tudo o que penso desde sempre! Preciso pensar em mim, e depois parar, e depois pensar de novo...preciso ser! <br> Dizendo isso correu como criança. O cansaço dando-lhe mais e mais ar. Maria percebeu os próprios pés correrem, sem controle. Durante subida íngreme já conseguia ver o rosto de João contorcendo-se, pôde ouvir seus gritos de desespero. Pararam no alto, beirada. Olhou seu companheiro, embebido em aflição. Mirou vale e não lhe tocou a calma. Tomou pouca distância, olhou bem pra ele, encheu pulmão de ar e assoprou com toda força que tinha. E assim ela soprou, e bufou, e bufou, e soprou. João voou; devir de folha ao vento. Balançando ao sabor das correntes, planou voo de papel picado sobre cantos de mata verde e sobre cerradão cor de pitomba, descaindo aos poucos. Por entre embaçadas lentes de lágrimas, Maria flertou com a paz. <br><br></div><div><br></div><div>O MENINO E O RIO <br><br> Atrás dele, o rio. No corpo dele, o vento e a voz de melodia tão bonita e risadinhas curtas e divertidas. Naquela estória ensaiava ser gente. Sentar, contar um caso em primeira pessoa. Seus poucos anos não concediam à sua vida em primeira pessoa, grande leque de acontecidos epopeicos. Apesar disso, não o impediam de descrever aventuras em que cruzava o mundo debaixo d'água em sua arraia manta gigante. Os gestos crescidos voavam. Trejeitos imitados com poderosa acuidade. Ensaiava seu existir de humano falador. As primeiras apresentações da peça, ou apenas os primeiros atos? Eternamente preso em repetição, ou livre em invenção constante? <br> Constante mesmo, só o falar.<br> Falou sem parar quando o barco chegou. Falou ao deitar-se e às vezes mesmo dormindo. Falou quando conheceu Maria e quando se despediu dela. Até mesmo quando o professor de laboratório pediu pra que se calassem todos, assustariam os ratos. Importante aprendizado! Falou nas noites infinitas de vermelho. Perto da fogueira e ao ouvido. Gritou muitas vezes para assustar ratos, ou mesmo pombos. Pegou livrinho de anotação do bolso, leu um pouco e falou com o garçom. Quando o amigo do xerox chegou, falaram por horas. Riram. As palavras encontravam-se e afastavam-se em uma dança de buracos e túneis que não tinham caminho certo. Brincavam de saltar e mergulhar entre os vãos deixados e criados pelo que falavam. Fez isso muito. Muito mesmo. Era talvez este o motivo de falar sempre: acessar buracos de minhoca. Falou de jeitos quase infinitos. Com intenções múltiplas. Falou pra fazer rir, pra acordar. Falou pra fazer falar e até dormir. Falou.<br> Nesse dia, no dia mesmo, estava até bem tranquilo. Esperava já há muito. Aliás, quando Maria disse, ele nem escutou aquilo. Escutou outra coisa. Disso que acontece com palavras!?; e tranquilo dormiu sono de nuvem, de acordar sentindo mais belezas, sob imperceptível peso da juventude. Daí pra frente, cuidou. Todo o tempo, no rosto de João, via-se cuidado. Adulou a cabeça de Maria, limpando seu suor. Tentava sincronizar suas respirações. As dores da mulher o emocionavam, imaginava o peso, a coluna, o barrigão. Passou um paninho em seus braços brotados de gotas de dor saltando corpo afora. Olharam-se o quanto puderam. Depois agarraram o menino a seus corpos. Enquanto choravam, ele não falou.<br> Seguiu cuidando até em casa, ou à escola. Cuidou no banheiro, toalhinhas, cheiros e palavras. Maria cuidou de todos, sempre. Incontáveis fraldas e caras repuxadas. Por algum tempo, esteve calado. Agora olhavam a janela do quarto, calados. O menino com a boca cheia de peito, revirava os olhinhos e mãozava o corpo de Maria, os pelos de João. Olhou pra ele esvaziado de si mesmo. Seu eu perdido em passeios por aqueles corpos, que também eram o seu. Misturados viam o restinho do sol de agosto deixando a ponta do pé. De Maria? Desmilinguido, enchia de fala os espaços. Cheio de palavra, falou pra cuidar. Até a ensinar se atreveu. Pareceu-lhe um dever. Passar à frente todo seu saber. A multiplicidade de seu existir: falante cachoeirada mundo afora. Maria tentou de novo olhar a janela, mas a voz cobriu seu olhar, enchendo-o de preguiça.<br> _ Acho que ele quer água.<br> _ Deve ser. Eu busco! <br> _....<br>&nbs p; _ Quer água, Bruno?! Quer vir grudado no pai? <br> O chão estava frio e o filtro na pia. O carrapatinho quente nas ancas, babando nas costelas. Pegou a mamadeirinha de água. Chegou perto do filtro. Foi quando ouviu:<br> _ Água! <br> Quase largou o menino de tanto susto. Olhou no olhinho esperto que mirou de volta e disse:<br> _ Água! <br> João ouviu. Atrás, de relance, viu o rio.</div><div><br></div><div><br></div><div> BUSCA <div><span style="line-height: 16.5pt;"><br></span></div><div><span style="line-height: 16.5pt;"> Quando se formou em medicina, quase matou os pais de orgulho. João, o pai, chegava a ser desbocado ao falar do filho:</span></div><div><div> _ Esse canalha foi um dos melhores alunos da faculdade!!! Ah, João, seu grande filho da puta, dê cá um abraço no seu velho!</div><div> Maria, senhora simples e um tanto contida, enrubescia-se com a falta de vergonha do marido e contentava-se em agradecer com terço em mãos:</div><div> _ Obrigada, meu pai eterno! Obrigada!</div><div> João dava graças a deus por ter terminado a graduação e não queria nem pensar na residência.</div><div> _ Deixemos isso pra depois, agora é comemorar!</div><div> Ficava tão feliz em pensar que não mais teria que fazer experimentos em ratos no laboratório da faculdade, que sozinho sorria sorriso parado. Nesse dia saiu com o rapaz do xerox pra comemorar. Já se paqueravam há algum tempo, mas a partir da formatura, o namoro ficou firme. Os pais de João gostavam muito do rapaz e faziam muito gosto no namoro. </div></div><div> Dessa forma, João fez residência em neurologia, tornando-se excelente profissional. O passar do tempo, entretanto, aumentou o desconforto de João consigo mesmo. Não mais se reconhecia como homem. Passou a não cuidar de seu órgão genital. Largou o rapaz do xerox, pois não era gay. Era uma mulher. A falta de higiene, vinha do desprezo e nojo que sentia por seu pênis. Deprimiu profundamente. O mau cheiro e a inapetência o impediam de ter pessoas próximas. Só Maria, a mãe, conseguia aproximar-se do filho acamado. </div><div> _ Temos que fazer alguma coisa, João. Nosso filho está num estado deplorável, morrendo diante nossos olhos! Não aguento ver meu filho definhar daquela maneira...</div><div> Foi o pai quem sentou com filho e mãe propondo a solução: mudança de sexo. Os olhos do rapaz brilharam, amou-os mais que nunca, viu-se compreendido em sua dor, despiram-lhe a alma. Começou tratamento hormonal. Ao longo do tratamento e da cirurgia, foi surgindo Maria.</div><div> O pai às vezes trocava o nome da, agora filha, ou mal usava os pronomes. Dona Maria nunca errou. Maria era a filha que ela sempre quisera. Amável, amiga e presente. Moça de modos invejáveis, de inteligência ímpar e sagaz, além de possuidora de beleza radiante e viva. </div><div> Maria voltou a trabalhar e a cuidar de si. Muito assediada, experimentava seu corpo, na ânsia de conhecê-lo. Tinha dificuldade com os homens, posto que era muito romântica e eles<span style="line-height: 16.5pt;"> só a queriam como objeto, como depois confessaria à mãe. Foi quando apareceu o dentista. Apesar de baixinho e barrigudo, era presenteador e romântico. Com ele sentiu prazer, amor, respeito... foi mulher. Passearam de mãos dadas e viajaram em lua de mel infinita. O moço queria ter um filho com ela. Como não pudesse, adotariam um. Queria tudo, desde que fosse com ela. Acontece que depois de um tempo, Maria cansou de tanta melação e alma gemisse. Precisava de espaço pra florescer toda sua feminilidade. Sofreu demais até conseguir terminar aquela relação. Doída inteira ao ver o ex-amado sofrer, mas precisava ir em frente, precisava ser feliz.</span></div><div> Voltou à solteirice, agora mais aberta e conhecedora de seu corpo. Não demorou a conhecer Bruno. Lindo, um deus africano. Pele firme, coxas de dar inveja a futebolista e peitoral de nadador. Na cama uma voracidade animalesca, fora dela inteligentíssimo e cordial, Bruno era tudo que ela sempre sonhara. A mãe quase teve um derrame de tanta alegria ao conhecer o rapaz. Tornou-se sua maior tiete. Seu João também gostou muito de Bruno e de ver sua filha tão feliz.</div><div> Estava tudo pronto pro casório. Igreja, vestido, bolo com bonequinhos dos noivos e bem casados em quantidade exacerbante. </div><div> _ Não quero pão durismo no casamento da minha única filha! Quero todo mundo babando, ouviste? Babando! Dinheiro não é problema, dinheiro há! - Repetia o pai aos berros enquanto batia nos bolsos.</div><div> Faltavam poucos dias pro casamento, Maria estava mais linda e radiante do que nunca. Parou o carro em mão dupla pra comprar a mortadela bologna que Bruno tanto gostava e que só encontrava naquela padaria perto de casa. Felicidade era tanta, que se esqueceu de olhar o retrovisor antes de descer. Ao abrir a porta foi violentamente acertada por um ônibus, que a atirou longe. Ouvindo o barulho da batida, Bruno veio à janela e viu sua amada ensanguentada. Correu escadaria abaixo, em disparada. Segurando-a nos braços, boca e roupas cobertas pelo sangue de seu grande amor, Bruno gritou inconformado. Maria não vivera para ser beijada uma última vez. </div></div><div><br></div><div><br></div><div><br></div><div><div> NO QUARTO </div><div><br></div> <div> _ Assim eu já acho que não gosto.<div> _ Mas a mão ajuda, olha....</div><div> _ E o olho?</div><div> _ Do olho gosto eu...</div><div> _ Pois é disso mesmo que tô falando, põe esse olhão pra lá! Tão chique aqui... bato cinza aonde?</div><div> _ Pega um potinho de Milanta.</div><div> _ Qual?</div><div> _ Pega qualquer um vazio.</div><div> _ Mas pra que tantos?</div><div> _ Muita azia. Esvazia um no outro...</div><div> _ Tenho um pouco de agonia desse caldo verde...</div><div> _ Boba. Vem cá...</div><div> _ Verde, grosso... e quando seca na beirinha da boca? Ai! Diz: menta.</div><div> _ Aqui...</div><div> _ Menta não é ácido? Como pode curar acidez? Tem coisa que não entendo..</div><div> _ Para de ler o cinzeiro e olha pra mim... l<span style="line-height: 16.5pt;">evanta a sainha devagar, vai..</span></div><div> _ Safado! <span style="line-height: 16.5pt;">Minha mãe é que não me deixa mais em paz. Falação eterna, que tenho que isso e que aquilo</span><span style="line-height: 16.5pt;">. Vou falar... às vezes até penso bobagem, sabe?... sumir!</span></div><div> _ Com ela ou com você?</div><div> _ Ai, João! Como você é ruim! Sabe que nem sei!?.. E o Bruno? Nunca mais uma notícia, só quer saber daquele laboratório e dos ratos dele. Fala deles que parece de gente. Pra mim nada, nem uma florzinha, nem um bombom! Mas pros ratos,... Hã!... Acho que a gente nem dá certo mesmo... mas se ele acha que eu queria, também tá muito enganado. Se pego esse desgraçado com outra, ele vai ver comigo!</div><div> _ Deixa eu ver um pouquinho, deixa amor...</div><div> _ Fico besta com esse povo! Entra na minha casa, fala com a minha mãe, João! Depois ainda tenho que aguentar ela perguntando dele. - E Bruno, já desistiu de você também?- Que eu não seguro homem, que não sei que... importo muito!? À merda!!!</div><div> _ Falei que você fica uma delicia brava? Você não se importa?</div><div> _ Importar importo, né, João?! Que mulher quer tá sozinha? Se diz que quer é mentira. Desfilar de mão pega com alguém que te escolheu, parar frente a cartaz de cinema novo, sabe? Chupando drops? Pisando salto alto na cara dos cafajestes e das vagabundas que querem ele!? Porque o que não falta é homem pra assobiar, né?! Falta um que escute, assim... igual você. Igual não tem, viu João?!</div><div> _ Mas você sabe que ele já volta, sempre volta. Por que não o chamamos de Brunerangue?</div><div> _ Gracinha!.. <span style="line-height: 16.5pt;">Mas dessa vez não! Que já me engraço com o rapaz do xerox e aí tchau pra ele. Pode buzinar no portão quanto quiser, que faço que nem ouço. Na rua viro a cara e cuspo no chão. Você acha que não? Ah, se não! Na frente de todo mundo!</span></div><div> _ Tira o sutiã, tira...</div><div> Com os braços atrás, desabotoando.</div><div> _ Na hora de prometer mundos e fundos, já viu. Depois diz que não. Não,...sou eu que estou ouvindo coisa! - Anel? Que anel?- O do seu rabo, filho da puta! Vê se pode, João? Eu agora dei pra doida! - Nunca prometi nada, Maria!- Cara de pau! Quem foi conhecer a minha mãe? O coelho da páscoa? Esqueceu dos doces!!! </div><div> Pendurando o sutiã de bojo com cuidado no sofá.</div><div> _ Olha esse peitinho... enche a mãozinha, meia taça de conhaque... vem, rosinha...</div><div> _ Ai! Cuidado João! </div><div> _ Coisinha... mergulho de gaivota de porto, tropa galopante rumo ao sol laranja rosado de desenho de menino...</div><div> _ Não fala bonito que me encabula... Sonhei com o dentista esses dias. Que a gente era irmão e que ele virava uma aranha bem grande. Acordei e ainda via a aranhona em cima de mim. Que agonia, João! Toda peluda! Mesmo morto esse infeliz insiste em aparecer na minha cama!</div><div> _ Uai, e morreu?</div><div> _ Pra mim morreu! Ainda veio me contar da tal garçonete!? E quero lá saber? Vai, some!<span style="line-height: 16.5pt;">... e que tem coisa comigo e muito respeito e sei lá o quê... pois guarde pra suas mulher</span>, que eu já não sou! Se é que fui.</div><div> _ Aranha cabeluda lembra outra coisa...</div><div> _ É, lembra o tanto que você vale! Credo, só pensa nisso!</div><div> _ Deixa um pouquinho, deixa.. Abre as pernas, vai..</div><div> _ Hoje tô sem tempo, docinho...</div><div> _ Mas só um pouquinho... se doer eu paro, juro. </div><div> Beijinho babujado na covinha da clavícula.</div><div> _ É que não posso mesmo, precisava era falar.</div><div> _ Mas já?!</div><div> _ Tenho que ir, me espera o moço do xerox...</div><div> _ Aqui embaixo?</div><div> _ Claro! Tinha que ver um amigo e precisava carona, uai?! Moça solteira andando por aí de bonde? <span style="line-height: 16.5pt;">O povo fala!</span></div><div> Nariz quase tocando o espelho, fazendo biquinho.</div><div> _ Esse batom fica bem em você. Gosto de te ver fazendo carão e se olhando, esse bocão... tão crescida!..</div><div> _ Tchau, Baixinho! </div><div> _ Não passa pela sala, a mulher vê tv lá, tá?!</div><div> _ Eu sei, eu sei. Te ligo?</div><div> _ ...</div><div><br></div><div> </div><div><br></div><div> </div></div></div><div><br></div><div><br></div><div>TÉDIO, FAMÍLIA E PATRIARCADO <br><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> Tinha desenvolvido, ao longo dos anos, um jeito assim...conversador. Era sentar e puxar assunto com todo e qualquer um. Enquanto conversava, "expressava suas opiniões". Expressão que adorava usar. Adorava dizer que era alguém que expressava suas opiniões. Assim como a repetição dessa expressão, existiam outras. Aliás, quase tudo o que falava eram frases feitas, repetidas à exaustão por milhões à velocidade de milhares por minuto. Essa era sua opinião. A expressão do que ela imaginava ser seu eu mais profundo. Sua maneira de socializar, movimentar, de ser no mundo. </span><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> Discutia arduamente. De tudo profunda entendedora. Utilizava sempre sua própria história pra sustentar argumentações das mais diversas. Fosse como fosse, inseria seus filhos e marido nas argumentações. Era parte do momento em que alegava já ter passado por aquilo. Velha conhecida da questão em foco. Maioria das vezes, ou quase sempre, não conseguia traçar linha que realmente ligasse sua vivência familiar à questão. Mas ter uma família, no mais tradicional sentido da palavra, era argumento pra tudo em seu entendimento. Ter criado uma família, ser mãe e esposa por anos a fio, dava-lhe uma pré-vantagem sobre adversários que não se encaixassem no mesmo perfil.</span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> Quase terminando o almoço, percebeu que os garçons cumprimentavam o rapaz da mesa à frente. Chamavam- no pelo nome. </span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Puxou:</span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> _ Pelo jeito você vem muito aqui, né?!</span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> O rapaz não respondeu. Entretido com o telefone. Dedos rápidos na tela.</span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> _ Pelo jeito você vem sempre aqui, né?! Gosta de uma cervejinha! - quase gritado.</span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> O moço olhou pra ela e deu um quarto de sorriso espremendo os lábios, semicerrando os olhos. Colocou o telefone na orelha.</span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> Bastante ansiosa, pegou e mastigou os restos de batata frita do prato. Meio frias. Toda atenção voltada ao telefonema. Já não escutava tão bem quanto antes. Pegou algumas frases soltas. Falava sobre pacientes? Isso. Agenda de pacientes. Animou-se e salpicou um salzinho nas batatas. Gostou do jeito firme do rapaz. Apontador de saídas. Puxou um guardanapo pela ponta e limpou a testa. Junto a seu meio sorriso, suspirou, olhar distante. O saltitar galopante do coração não conseguia esconder a ansiedade a propósito do que previa que viria. Uma discussão com alguém interessante e firme. Colocaria suas posições sobre tudo. Caso o rapaz fosse mesmo inteligente como parecia, concordaria com todas. Caso não concordasse, poderia se mostrar um competidor à altura.</span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> A mão que tirou o telefone da orelha ainda não tinha tocado a mesa quando ela interveio:</span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> _ O senhor é médico? - deixando transparecer a ansiedade pela importância que aquela informação tinha pra ela.</span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> Ele não respondeu claramente. Mais uma vez calçou aquele sorrisinho espremido.</span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> _ Também sou da área de saúde. Aposentei-me há bem pouco. Pouco mais de um ano. Sou dentista. Adoro nossa área. Isso de ajudar as pessoas é um dom. Amo minha profissão. Sempre também fiz trabalho voluntário, né?! Desculpe, acabou que não me apresentei, Maria.</span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> _ João. </span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> _ Nossa, o nome do meu filho! Pois é, Dr. João, como estava te falando: moro aqui perto, como o senhor. Não venho tanto aqui, mas é um ótimo lugar pra vir relaxar, né?! Principalmente pra gente que trabalha muito. Agora que me aposentei percebi o tanto que trabalhava. Quanto tempo livre! Os meninos criados... já viu. Todos formados, graças a deus. Todos na federal. Impressionante como as federais são boas, né?! Pena que forma por um lado e disforma pelo outro. São ótimos profissionais, mas se afastaram muito de deus. Domingo não querem ir à missa, acredita?! Mas a índole continua muito boa, claro. Essa coisa de caráter é genético. O senhor como médico já deve ter visto isso. Já tá provado cientificamente que é assim. Esses dias vi uma menina, que foi até adotada e só sonhava com matar. Desde pequena. Mesmo indo pra outras famílias, queria só matar, impressionante. Meus filhos, graças a deus, têm bom caráter. Dei sorte com isso, mas também escolhi um marido com caráter. O menino, seu xará, já até casou, mora perto, tenho falado que precisa dar mais assistência, principalmente ao pai que vive doente. A menina, Vívian, é um doce de menina. É noiva de um rapaz muito bom também. Daqui a pouco casa, e tá feito meu trabalho! O senhor é jovem, não deve ter filho ainda, né?! Vi que não tem aliança. Pois é, muito trabalho, mas a recompensa é divina. O senhor vai ser um bom pai, vai ver. Ser pai também é bem mais tranquilo que mãe, né?! Padecer no paraíso. </span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> Via que o rapaz estava de alguma forma mobilizado por sua fala. Tinha o olhar um tanto distante e desatencioso, olhar de atravessar, mas viu que suas pernas agitaram-se. Entendeu que deveria seguir seu discurso. Tinha conseguido entrar nele. </span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> _ Muito mais fácil, com certeza. Porque tudo sobra pra mãe mesmo. O senhor, por exemplo, será um bom pai, mas tem muitos afazeres. Já pensou? Vai largar de trabalhar? Não vai! Mas lembrando sempre de abraçar os filhos e dizer que ama. Dizer sempre que aquela pessoa é especial. Tempo não é questão de tempo cronológico, é qualidade do tempo! Todo especialista diz que isso faz toda diferença. Já a mulher, consegue fazer muita coisa ao mesmo tempo. Certeza que o senhor já sabe disso. Tem muito livro sobre isso. O senhor leu aquele das mulheres de Vênus? É aquilo mesmo! Agora é esperar os netos, que venham com saúde, que o resto a gente corre atrás, né!? Querendo demais ser avó, você sabe que avó é mãe duas vezes? Minha avó sempre falava isso pra mim. Vou mimar tanto meus príncipes e princesinhas! Mas ansiosa mesmo estou pelos filhos da Vivian. Você sabe que filho de filha é muito mais próximo da gente. Filho de filho acaba indo pro lado da família da mãe. Isso é batata. Daí fico pensando se por essa razão colocamos o nome do pai como último sobrenome dos filhos. Os filhos deles vão, mas levam o nome. O das meninas fica, mas com outro sobrenome. Certeza que é isso...</span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> Agora já a ouvia bem distante.</span><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> As pernas de João debatiam-se violentamente sob a mesa</span><span style="background- color: rgba(255, 255, 255, 0);">. Virou com avidez o copo lagoinha cheio de cerveja e percebeu que tremia demais. Levando a mão ao nariz, sentiu o sangue que escorria, olhou pro fluido quente. Tentou limpar com um guardanapo, mas o tremor espalhou sangue por todo rosto. Sentindo que o corpo puxava pra esquerda com força, tentou manter-se de pé, mas não conseguiu conter o tronco. Em convulsão, rosto saltando na mesa como peixe fora d'água, pôde ver que sua amiga chegava. Queria que ela lhe falasse algo, que contasse qualquer coisa. Atrasada trinta minutos, ela só chegou perto a tempo de ouvir o último suspiro de João. Olhos revirados.</span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> </span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> </span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> </span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> </span> </div><div>A VELHA OITO </div><div><br></div><div><br></div><div><br></div><div> Primeiro dia de campeonato. Inserção social, exercício. Passado há pouco dos cinquenta, corpo avantajado e barriga proeminente, certo que recuperaria forma humana mais que logo. Dos meninos, só Bruno foi. Maria estava que era só alegria e esperança: "Agora vai!". Triste demais assistir quase calada à derrocada física de João. Gritou o quanto pôde, enquanto durou o tesão. Verdade que algumas vezes fingiu, parte da vida. Mas as crianças valiam o esforço, assim como as escapadas. Agora tudo poderia ser diferente. João entrava em campo, a oito às costas. Como naquele tempo.<span style="line-height: 16.5pt;"> Ido.</span></div><div><span style="line-height: 16.5pt;"> Animado entrou trotando forte. Cavalo de raça. Quarto de milha bêbado. Pelada em clube de vizinhança é assim, meia dúzia de gente pra gritar na arquibancada e apenas o esforço necessário dos atletas de fim de semana. Claro que uma ou outra entrada mais ríspida, alguém mais exasperado, mas nenhum carrinho por trás, isso não! A bola rolaria logo e, junto à esperança de poder honrar a velha camisa oito, de sair de casa e beber com novos amigos, enxurraram- lhe as lembranças.</span></div><div> Ambidestro falso! A molecada resenhava, tomando baré, ao lado da última quadra poliesportiva da região administrativa. Sempre era o terceiro a ser escolhido. Chutava paredão, embaixadinha, solilóquio pós-escola. Depois Maria e os meninos, os trilhões de domingos, alguns redondos outros quadrados. O peso do corpo e das responsabilidades cada vez debilitando-o mais. "E peladas de galeras infindas" pensou um dia, poetímico, mordiscando uma calabresa frita. Saudoso, ria das absurdas rotinas de aquecimento do dentista, esticando músculos inexistentes. "Dentista ruim de anatomia, e de bola". Gargalhada tossida. Já não tinha tanto pique, mas conhecia de bola, vira-a sempre de perto, intimamente. Sem vitrines que os separassem.</div><div><span style="line-height: 16.5pt;"> Olhou o menino do xerox, muito mais jovem, que aquecia a seu lado. Negro, magro e duro. Lembrou-se de trombadas antigas e sentiu como era bater em uma canela fina daquelas. Afastado que andava dos campos, João ainda não tivera oportunidade de vê-lo em ação, mas escutara que o menino era o "Novo Dener". !!!! Título dado aos talentos locais (posteriormente desperdiçados) àquele tempo. Diferente de seu tempo, quando diziam que ele seria o novo Ademir da Guia. Jogava bonito, cabeça erguida, olhos no jogo. Prevendo a passagem dos companheiros, passadas largas e passes precisos. Por pouco não foi aceito no juvenil do flamengo. Maldita entrada criminosa daquele lateral. Mas isso fora há muito tempo, agora a vida era outra. "</span><span style="line-height: 16.5pt;">Mas certamente o estilo ainda é o mesmo. Posso não correr como antes, mas comigo, quem corre é a bola!"</span></div><div> O pensamento ainda flutuava pelo menino das canelas duras e pelas frases de efeito, quando a redonda veio em direção a seu peito. Depois de memorável quizumba aprontada na ponta direita, Novo Dener meteu uma curva que virou o jogo, encontrando o peito de João no bico esquerdo da grande área. Marcado de perto pelo beque, matou com estilo na caixa torácica, virando em cima do zagueiro. Era sua primeira jogada. No quique da menina preparou a canhota. Olhou o goleiro, perto demais da trave direita. Pegou de trivela no gomo da bola que descreveu curva Nelinhística, por fora do goleiro. Pelo menos assim previa João, quando lhe faltou o ar. <span style="line-height: 16.5pt;">Caiu com dor no peito. </span><span style="line-height: 16.5pt;">Engasgou, regurgitou, espasmo, mugido alto e rouco. Microssegundo de tédio, amor de pai, de filho e de espírito; santo?</span></div><div><span style="line-height: 16.5pt;"> O corpo de João continuou estendido sobre a grama, na marca da cal na esquina esquerda de ataque da grande área. Morreu ali, morte súbita. Ninguém podia tocar seu corpo, esperavam o IML. Depois de duas horas, quando a chuva começou, Bruno correu pra conseguir um guarda sol pro pai; daqueles grandes, de beira de piscina. As gotas de água com lama do campo poderiam macular seu uniforme, intacto. Desenhada em sua retina, a bola ainda descrevia a curva perfeita, saindo das mãos do goleiro pra morrer no filó. Agora, na arquibancada, Maria já tinha seus dois filhos a ladeá-la. Olhavam João, impotentes. Meiões vermelhos até os joelhos, camisa branca de mangas verdes e o oito espremido entre as costas e a grama esmeralda. O primeiro a ser comido pelos vermes? </span></div></div></div><div><span style="line-height: 16.5pt;"><br></span></div><div><span style="line-height: 16.5pt;"><br></span></div><div><span style="line-height: 16.5pt;"><blockquote type="cite"><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">ALERGIA À VIDA </span></blockquote><blockquote type="cite"><span style="background- color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br> acordou mas não quis se levantar incômodo atrás da glote passeou a língua pela úvula enorme sentiu as várias ulcerações doloridas sabia que era alergia teve medo fosse ao álcool sem ele melhor deixar de viver fuçou as coisas tomou o primeiro comprimido do dia calculou caminhada até a farmácia resolveu fechar os olhos de novo incômodo atrás da glote era cedo ainda engoliu um bocado de saliva rasgou a laringe como gato empurrado o diabo da alergia infinita melodia alérgica tomara fosse ao ar ou à sujeira do quarto-sala incômodo atrás da glote punhado de comprimidos goela abaixo vodka empurrou pressão colesterol depressão fraqueza palpitação rasgou a laringe como gato empurrado tudo resolvido com golada haloetilopática faltava um anti alérgico teria que sair de casa infinita melodia alérgica não gostava de pedir por telefone a sensação de alguém olhar sua casa pela nesga da porta incomodava como sonho em que estamos nus na rua como gato empurrado incomodava o olhar dos outros de lugares variadíssimos um era de nesgas de portas </span><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">parte constitutiva de seu ser alergia era grande parte do que era como pensava como se relacionava derivava diretamente do fato de ser alérgico infinita melodia alérgica roupas e acessórios que usava e os que não usava incômodo atrás da glote lugares que frequentava o que comia o sexo o estilo nunca se compunha com outro nunca existira nosso sexo nosso mundo o passar do tempo trouxe outros comprometimentos físicos como gato empurrado mas todos sem exceção variações mais ou menos dissonantes da infinita melodia alérgica os últimos meses vinham sendo de caos total menos disposição à higiene incômodo atrás da glote cuidados necessários inerentes à vida alérgica como gato empurrado mais disposição às garrafas sem predileção a esta ou àquela bebida naquela manhã a vodka lhe estava mais à mão medo que a alergia fosse ao álcool mas não tanto não pararia de beber por isso ou por outra coisa o álcool era toda sua vida suportável infinita melodia alérgica de resto sofrimento ansiedade e angústia dores insuportáveis pelo corpo milhões de pequenos insetos a percorrer-lhe cada centímetro de pele como gato empurrado de tanto se estapear para matá-los transformara-se em um hematoma deambulante incômodo atrás da glote essa situação matinal o obrigaria a deambular até a farmácia pedaço de burro ficar sem antialérgico muito amadorismo puta merda como gato empurrado enquanto tentava se equilibrar para vestir calças calçou também óculo escuro e casaco de moletom cinza zíper fechando corpo vivissecado bolsos nos quais as mãos se entrelaçam à frente da barriga sem olhar o porteiro nos olhos sem olhar olhos infinita melodia alérgica caminhou ao portão cabeça baixa levantou capuz bastava atravessar a rua pedras disformes pontas semi pontas puta amadorismo pisou piso liso com faixas de lixa preta da entrada da loja não olhou a moça pediu sem olhar olhos atrás do capuz seus pequenos olhos tremeram ansiosos pelo alívio como incômodo atrás da glote cansaço inseguro ainda no caixa tomou três comprimidos com ajuda da latinha de cerveja que carregava na mão esquerda como gato empurrado encostado à parede amarelada frente ao colchão soprou fumaça no copo de conhaque o amanhecer pela janela impressionado quão rápido passara todo dia/noite incômodo atrás da glote viu-se entre as neblinas da serra da casa de seus avós avô chamando pra caminhar sorrisos verdadeiros amor de liberdade solto caminhada saltitante escolhendo pedras com prata saco de pedras de leveza nos ombros estreitos de menino estrada infinita a dar nas nuvens passeio em céu de brigadeiro de festa viu só-depois que era noite que o amanhecer nunca viera que o relógio esteve sempre certo puta amadorismo olhou garrafa de conhaque pela metade decidiu dormir alcançou os comprimidos tudo resolvido com golada haloetilopática como gato empurrado infinita melodia alérgica</span></blockquote><blockquote type="cite"><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></blockquote><blockquote type="cite"><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></blockquote><blockquote type="cite"><br></blockquote></span> O PEQUIZEIRO <div><br></div><div> _ O sol já nasceu?<div> _ Acho que já, meu filho.</div><div> _ Então quero acordar!</div><div> _ Espera mais. Fica quietinho com a mamãe...</div><div> _ Quero papai!</div><div> _ Tá no curral. Foi escuro tirar leite.</div><div> Menino mete a carinha nos peitos expostos da mãe. Bocona aberta, língua gulosa espalhando baba matinal espessa pelo mamilo rijo.</div><div> _ E você não mama mais! - segurando cabecinha pelas orelhas de abano.</div><div> _ É que eu esquecío...</div><div> Sorri forçado enquanto chupa o néctar do nariz grudado na unha preta, roída até o sabugo. Olhinho espremido. Sabe, pela gritaria dos guaribas, que o amanhecer se apressa a vir.</div><div> Corre à cancela e empurra forte. Grita pai em meio aos bezerros e vacas. Poeira que vira névoa com a dança nervosa dos pés bifurcados e corpos espremidos. Gritos fundos e suspirosos dos animais. Mexe na pilha de madeira ao lado do curral e vê escorpião amarelinho passar rápido por cima dos dedinhos gorduchos.</div><div> _ Escorpiínho!</div><div> Ouvido atento às palmas na porta da casa, tenta de longe reconhecer o visitante. Consegue ouvir o tilintar das esporas, ver barrigão imponente que esconde fivela de cinto. Mãe arruma cabelo desgrenhado com as mãos espalmadas enquanto sai pra fora. Limpa o olho, passa mão na saia. Logo entra com o homem. Corre a gritar o pai.</div><div> _ Dia! </div><div> A fala grossa do pai deixa o menino orgulhoso que só. Seu jeito de bater o pé no soalho, tirando os pedações de esterco das botinas. Carrega banquinho de um pé amarrado à cintura. Baldes de leite em ambas as mãos. Menino aboletado à nuca e ombros.</div><div> _ Oi, João - ela o recebe com beijo seco de olho fechado, apertando seus bíceps. Pé levantado? - você lembra do doutor dentista, né?!</div><div> _ Lembro não, mas agora devo de lembrar...</div><div> A presença e aridez de João pesam o ar cheiroso da manhã. Brilhante suor no peito pelado pulando pra fora dos botões de camisa abertos.</div><div> _ ...desce, menino. Cuida do leite por favor, Maria. Mas e o senhor? Tem alguém aqui com os dentes carecendo ajeito? </div><div> _ Bom dia, Seu João! - rindo fanfarronesco - Espero que não!</div><div> _ ...</div><div> Maria acomoda a garrafa com café na mesa. Destampa prato com nacos de queijo, traz o beiju. No silêncio gelado, o som do café enchendo a xícara sobe de tom junto à fumaça.</div><div> _ O doutor gostaria...</div><div> _ Nem pense, mulher!</div><div> _ Gasta não, Maria. Obrigado.</div><div> Ela entra arrastando o menino. Os olhos de João queimam o rosto do gordo que balança pezinho nervoso embaixo da mesa. João sabe pelo chin chin da espora. Pela mão trêmula e gota de suor que escorre viscosa procurando caminho entre as rugas da testa, sabe também que o moço não veio caçar passeio. Num instante já sabe tudo.</div><div> _ Vim buscar o menino.</div><div> Sorvendo ruidosamente café amargo. Sem mudar corpo ou voz um trisco:</div><div> _ Tem como não.</div><div> _ Você sabe que não é seu.</div><div> _ Pois pergunte a ele.</div><div> _ Pois pergunte à mãe dele! </div><div> Olha o homem grande nos olhos. Espuma grossa escorrendo no canino amarelo. Prevê sua reação, mão rápida na cintura. Quando enterra a faca até o cabo no coração do dentista, o revólver cai dos dedos grossos amolecidos. Com o abrir da boca no extirpar da alma, João tem tempo de admirar a dentição.</div><div> _ Perfeitos dentes! - para si. Para a mulher - O alicate, Maria, e a pá! </div><div> Na cozinha, aliviada, sorridente. Olhinho amarelo ouro de bicho no escuro vendo o homem arrancar roupa e dentes do morto.</div><div> _ Cavo onde?</div><div> _ No mesmo buraco do tal Bruno. Espero que seja o último, mulher, ou você vai se juntar a eles.</div><div> _ Era o último, amor. Certeza, viu!?</div><div> Antes de terminar de tampar de terra o corpo nu e enorme, acode à mulher que busque a muda de pequi no mato da frente. Chama o menino.</div><div> _ Ajuda, menino! Vem plantar mais o pai! Que esse pé de pequi vai dar de comer a seus netos.</div><div> _ Eu gosto de pequi, pai!</div><div> _ Eu também, meu filho.</div><div> </div><div> </div><div><br></div><div> </div></div></div><div> <div>OUTRO MESMO DIA </div><div><br></div><div><br></div><div> Pela infinitésima vez não quis falar. Novamente João era responsável único por toda merda do mundo. Não que ele não soubesse, mas que passara a vida procurando alguém com quem pudesse dividir essa culpa, ela bem sabia. Maria era muito companheira, até um ponto: nunca preocupara-se em se voltar pra ele em momentos de conflito. Voltar atrás... impossível! Perdia o latim quando em conflito. <div> Neste dia, que para João era dia importantíssimo, ela mais uma vez não fez esforço. Verdade que, para João, todo dia era importantíssimo. Vivia intensamente todos os momentos com Maria. Infantilmente imaginava que, pra ela também, todo dia com ele era inigualável. Sonhava com ela desquerendo tudo para olhá-lo, escondida a senti-los juntos. Esquecido que vivia da destrutividade da história que carregamos. Os tempos com Maria o haviam transformado num crente. Por alguns momentos, chegava mesmo a acreditar num amor musculoso. Brações de deltóides definidos que os carregariam vida de sorrisos afora. Delícia obscenamente esmigalhada aos poucos, com o gozo perverso da câmera lenta.</div><div> Agora pensava em toda sua diminuta potência diante da cultura, das relações e de si mesmo. Teve certeza sensorial de que seu corpo não tinha mais limites, e flutuou. Desrealizado do existir, chorou plainando sobre paisagens de sua terra natal. A poeira deixava tudo marrom, embelezando o pouco de verde escuro das folhas no fim da seca. A dança do gado subiu ainda mais poeira, até fazê-lo tossir. Abrindo os olhos vermelhos e ressecados, usou dedão e indicador da mão esquerda pra deslizar do osso do nariz até o canto dos olhos, ansiando por alguma lágrima salgada que lhe viesse desanuviar a vista. Apertou com força o canto do olho, mas ela não desceu. Presa que estava a seu corpo desmineralizado. Respirou mais fundo. Buscou ar onde pôde. Peito pelado pesado e fundo. Infinitos instantes se passaram, até que garrafa e comprimidos fizessem seu trabalho e lhe tirassem a consciência. </div><div> Quando, ao amanhecer, Maria o viu no sofá, ainda não tinha tido tempo de sentir sua falta na cama. Viu que ele respirava fundo, olhos movendo-se sob as pálpebras. Resolveu deixá-lo dormir. Abriu a porta e recomeçou tudo. Sem dizer palavra.</div></div></div><div><br></div><div><br></div><div><br></div><div> <div>DOIS OU UM </div><div><br></div><div><br></div><div> Àquela hora já tinham bebido um pouco. Novidade nenhuma até aí. Gostavam de beber juntos. Os olhos vidrados dela ficavam ainda mais conhaque com a meia luz da pista de dança. Olhavam-se com frequência quase integral. Pouco viam outras coisas ou pessoas. Encostavam as testas e respiravam um no outro, um pro outro. Ele adorava respirar o hálito etílico dela, ela o dele. Depois, com os narizes a um cisco de se tocarem, abriam os quatro olhos e olhavam-se longamente dentro do outro. Tanta tranquilidade e calma sentiam... seguros. Para que as mãos se encontrassem, tocavam-se desde os ombros até os dedos. Lentamente moviam os quadris, dividindo o compasso da música de fundo. Sorriram-se longamente, belos dentes tinham. Suas longas línguas tocaram-se de leve antes de entrarem uma na boca do outro. Beijaram-se sem contar ou mesmo ouvir compassos. Seus peitos e barrigas se grudaram até as coxas. <div> Quando estavam sentados, continuavam se olhando, lascivos. Riam alto muitas e muitas vezes. Hipnotiza(n)do(s) pelas cores e cheiros do outro. Contavam estórias intermináveis. Estórias sobre esta e outras vidas. Todas emendadas por um fio condutor que conheciam bem. Não poderiam detalhar este fio, sua origem e procedência. No entanto eram extremamente seguros de que podiam confiar tudo a ele. Tudo o que eram e o que seriam. Caminhavam firmemente e com extrema tranquilidade. Outros tempos andaram se equilibrando em cordas bambas. Agora viviam em pistas largas e sem tráfego. </div><div> Um rapaz intrigado se aproximou. Ainda com as mãos sujas pelo tonner da máquina de xerox, pegou um copo de whisky. Olha o casal fixamente. Esperava uma brecha em que pudesse entrar. Queria estar ali, ser eles. Qualquer um deles. Imaginou a si mesmo na pista de dança sendo devorado por olhos desejosos. Neste momento dançou um pouco sozinho. Bem pouco: um ou dois movimentos pélvicos e nada mais. Voltou novamente sua atenção ao casal que continuava sem reparar a existência dele. Chegou perto e pediu licença. </div><div> _ Pois não?!</div><div> _ Desculpe, é que não consigo tirar os olhos de vocês. </div><div> _ ...</div><div> _ É que parecem tão felizes. Como se não precisassem de mais nada. </div><div> _ Daí então você resolveu atrapalhar? Por que?</div><div> _ Não sei. Realmente não sei. Acho que não aguentei. </div><div> Eles se sorriram. Sorriram pra ele e voltaram-se um para o outro mais uma vez. O rapaz se distanciou, mas continuou a fitá-los. Lembrou-se de !!!João!!!, depois de Bruno. Seus amores. Tinha esquecido como se sentia bem àquele tempo. Agora sentiu no peito uma cócega e suspirou fundo. Talvez tenha chegado a sorrir bem de leve. </div><div> Os dois saíram dali, não muito depois disso. Por alguma razão a rua já estava clara, o sol batia na grama seca e amarelada. Olhavam o caminho e não viam seu fim. Amplo horizonte, todo deles. Maria foi quem disse: </div><div> _ Sente só, Maria! Cheiro de chuva! Tá chegando a primeira chuva!</div><div> O cheiro ficou mais forte e tomou conta de tudo. Os primeiros pingos da estação das águas caíram nos corpos dos dois. Mãos pegas, olharam para o céu.</div></div></div><div><br></div><div><br></div><div><br></div><div><br></ div><div>REENCONTRO </div><div><br><div><br></div><div><br></div><div> Já passava das três da tarde e o calor era quase insuportável. Por causa da umidade excessiva, natural àquela época do ano, os grossos cabelos de João reluziam gotas luminosas. Maria sentia tanto calor que o pai a deixara tirar toda roupa e agora soprava sua nuca. O barco já estava mais atrasado que o normal e a falta de sombra castigava os corpos de pai e filha. <div> _ Pai...não quero mais ir! Vamo não!?</div><div> _ Não é querer, filha...não é querer.</div><div> _ Então fala que você não me deixa ir!</div><div> _ Por mim não deixava mesmo. Mas sua mãe ainda é sua mãe.</div><div> _ E você deixou de ser meu pai? Até onde eu lembro, se você não deixar eu não posso...</div><div> _ Não seja esperta demais. Esse negócio de escola todo dia tá te dando excesso de latim.</div><div> Sorriu levantando a bochechona de criança e espremendo os olhinhos. Admirava o pai mais que tudo. Amava aquele jeito sério e meio tosco do grandão. João bagunçou ainda mais a linda cabeleira da menina com um adulo firme.</div><div> _ Olha o barco lá!</div><div> _ Meia hora pro barco chegar até aqui, mais meia hora pro povo descer, mais meia hora pro povo embarcar...em uma hora e meia, duas, a gente sai.</div><div> _ Quê que eu disse sobre esperteza?</div><div> Riram alto.</div><div> No colo do pai passaram a viagem conversando. Maria contou que a professora nova usava óculos e reclamou que agora tinham que escrever as datas nos trabalhinhos. Já conseguia escrever algumas coisas, quase lia.</div><div> _ Tô aprendendo meu nome em letra possível!</div><div> _ É letra cursiva, menina! Cur-si-va.</div><div> O pai contou mais uma vez a história de quando seus avós chegaram da África e de como fizeram pra sobreviver a tantas e inenarráveis torturas. Falou das estratégias para manterem sua cultura e não se esquecerem de quem eram. Contou mais uma vez como Ògún ensinou aos orixás o poder do ferro. Como quando as pessoas querem algo, prometem tudo. Lembrou a Maria do dia em que Ògún fez festa pra dividir a caça e acabou roubado. Versou sobre quando o abutre foi ao céu e o porquê dele ter ficado com a cabeça</div><div> pelada. Cantou na língua de seus ancestrais:</div><div> _ Viu, filha?! Não faça favor demais, não acredite em promessas demais. Seja forte e crie o caminho. Corte as árvores, tire as pedras.</div><div> _ Eu sei, pai...- disse se fazendo enfadada - eu sei.</div><div> _ E respeite os mais velhos! Ou o mais velho, neste caso.</div><div> Enquanto ele ria, Maria foi o mais sincera que pôde.</div><div> _ Pai, mas se você não concorda com a mãe, se acha que eu não devia ir com ela, por que você deixa? Ou você tá fazendo favor demais, ou tá acreditando em algum ganho próximo... isso não é acreditar em promessa?</div><div> _ Você pensa e argumenta como sua avó, isso é bom. Mas te falta vida, estrada. Vivian é sua mãe, e criança precisa da mãe.</div><div> _ Eu preciso é de você!</div><div> _ Você não vai me perder, filha. Não estarei com você sempre, mas sempre voltarei pro seu lado.</div><div> Grudou bem a menina a seu peito. Engoliu seco pra não chorar, pois não era disso. Avistaram o vilarejo. No porto, os cavalos ocupavam espaço de gente. </div><div> _ Tamo chegando.</div><div> Lágrimas abundantes cobriram as bochechas de Maria, que cobriu o rostinho com as mãos.</div><div> Andaram até a casa.</div><div> _ Finalmente, João! Veio a nado?</div><div> _ Vivian, o barco atrasou. Tá aí Maria.</div><div> _ Entra, menina! </div><div> _ Vai, filha.</div><div> Grudada às pernonas do pai. Muda como um dendezeiro.</div><div> _ Quê que é isso? Virou neném de novo? Se bem que essa aí nunca gostou de mim, né?!</div><div> _ Vamos, filha. Eu entro com você...posso?</div><div> _ Claro, claro...vai entrando. - Contraindo a boca com lábios cerrados e abrindo a porta com as mãos ossudas e compridas.</div><div> João conversou muito com Maria enquanto a colocava pra dormir. Contou-lhe a história de Ošun que ela tanto gostava, quando a mãe das águas fez Obá cortar a própria orelha. Menina adorava estórias de espertezas. </div><div> A criança já dormia quando Vivian perguntou a João se ele queria dormir ali, posto que já estava muito tarde e que o próximo barco só sairia depois de clarear o dia. Num misto de vergonha, esperança e gratidão, João aceitou. De rabo de olho passou olhar pelos pontudos seios da mãe de Maria. Só agora os via.</div><div> Tentou puxar conversa várias vezes. Vivian prestava alguma atenção no início, mas qualquer coisa a distraía. João fez jantar. Serviu, lavou a louça. De Vivian não ouviu obrigado. Sentiu-se um empregado, escravo de uma promessa não dita, de uma história à qual sempre serviria. Lembrou-se das palavras de Maria no barco, também de suas lutas e das de seus antepassados. Continuar com aquilo não podia. Foi para o quarto da filha e deitou-se a seu lado, olhos marejados, coração pequenininho.</div><div> Quando João ouviu os gritos e foi em direção à cozinha, não imaginava o que encontraria. Paralisou ao ver a menina ensanguentada. Com uma das mãos, Maria segurava a cabeça de Vivian, a outra empunhava o facão reluzente-fogo. Viu poder e fúria nos olhos da filha.</div><div> Às gargalhadas e saltinhos de alegria, a menina gritava repetidamente:</div><div> _ A cabeça da mãe não está mais no corpo! A cabeça da mãe não está mais no corpo! Posso voltar pra casa!</div><div> Ao amanhecer estavam no porto. Àquela hora o tempo ainda estava fresco.</div><div><br></div><div><br></div><div><br></div><div><br></ div><div><div>A MOÇA CERTA</div><div><br></div> _ Oi! <div> _ Oi, você deve ser a Maria!?</div><div> _ Sim. Foi fácil te achar, de barba e meio forte...</div><div> Quis dizer algo que coubesse, mas a magreza da moça e a corcunda que expulsava da silhueta os omoplatas, o conteve até de si mesmo.</div><div> _ Suco de laranja, pra dois? No seu perfil você não bebia...</div><div> _ Dois sucos de laranja!</div><div> _ É...que nunca faço essas coisas...</div><div> _ Também! Morria de medo. Ou morro ainda?</div><div> _ Bem que você se descreveu como engraçada! Essa foi boa!</div><div> _ Uma vez conheci um cara assim. Um folgado. Como se eu fosse uma da rua.</div><div> _ Que desgraçado! Eu nunca tive vontade de falar com ninguém, até que vi sua foto. Me encantei por seus olhos...</div><div> _ Gostei disso de você não beber. Odeio homem bêbado.</div><div> _ Só isso?</div><div> _ Claro que não, seu bobo. Não escreveu que precisava desesperadamente de aprovação.</div><div> _ Bem que você disse que era engraçada! Figura!</div><div> !!!Agora ele deixava os bíceps à mostra, dobrou a manga.</div><div> _ Mas me conte mais de você! Além de engraçada e de interessada em homens bonitos, você...</div><div> _ Você não leu meu profile?</div><div> _ Li quase tudo, Maria. Mas deixei de ler umas partes de propósito pra te sentir sem ideias prévias.</div><div> _ Se saiu bem. Algo de inteligente você tem.</div><div> _ Ahahaha...você me mata de rir!</div><div> _ Gosto de ler e viajar..</div><div> _ Eu gosto muito de viajar também. A minha família tem uma chácara aqui perto, que a gente sempre viaja pra lá, é demais! Esse meu primo, o Bruno, nó...você ia amar demais o Bruno..ele sempre vai com a gente. A gente tá sempre na maior farra lá. Meu pai também vai te amar, ele faz um churrasco inacreditável, o cara é tipo o rei do churrasco! O cara...putz!</div><div> Enquanto falava, o sorriso extremamente largo de João dava-a a sensação de que seria engolida. Após a exibição dos dentes, seguia uma risada com volume alternado em som de rá rá rá, acompanhada de leve puxar de ar por entre os dentes ao final.</div><div> _ Teve uma vez que fomos vários amigos pra lá, meu pai arranjou um leitão...na brasa, você precisava ver que absurdo. Mas guardo minha !!! saúde!!! pra esses momentos, no dia a dia, nada de glúten, lactose ou gordura.</div><div> _ Ah...claro. Já eu como pouco, mas de tudo.</div><div> _ Que você come pouco deu pra saber desde o início. Isso também me agradou em você, gosto de uns ossinhos..</div><div> Piscou o olho fanfarronesco. Ela sorriso amarelo chupava suco pelo canudo, rolou os olhos por trás das grossas armações do óculo.</div><div> _ Cara, não acredito...pai!</div><div> _ Opa! E aí, filhão! Esta lugar está muito mal frequentado!</div><div> _ E agora piorou!!!</div><div> !!!! Maria percebeu de quem João herdara a risada. De pé com mão estendida:</div><div> _ Eu sou a Maria.</div><div> _ Deixe de coisa e dê cá um abraço, menina! Eu sou João, pai do João! </div><div> Mais uma gargalhada. Em poucos segundos pai e filho já contavam sobre os incríveis finais de semana na chácara. Ela fechou os olhos e se imaginou em uma churrasqueira cheia de risadas exageradas e suspirosas, mordia boca por dentro</div><div> _ E o filho da puta do dentista! Na próxima quero ser parceiro dele no truco! </div><div> _ Vai ter que comer muito feijão com arroz,!!! meu filho! Esse!!! parceiro já é meu!</div><div> Não é possível precisar quanto demoraram para perceber que Maria já tinha deixado-os à mesa, acompanhados apenas dos copos de suco e de uma nota de dez.</div><div> _ Meu filho, você tem certeza que me trazer pra esses seus encontros é mesmo uma boa idea? As moças correm que nem diabo da cruz!?</div><div> _ Não tem jeito pai...ela já tava querendo correr há tempos. Pelo menos não fiquei sozinho aqui.</div><div> _ Calma filho, a gente vai encontrar a moça certa...</div><div><br></div><div><br></div><div><br></div><div><br></ div><div> À TARDINHA <div><br></div><div><br></div><div> Encostou a barriga nas costas quentes de Maria. Sentiu-se tão tranquilo que quase pôde dormir. Não dormia há mais tempo do que podia contar. O pensamento nela o acelerava. Fato que sua proximidade o acalmava. Mas naquele momento ainda não dormiam. Os cheiros e gostos tanto os enchiam de vida, que não desligavam. Olhos fixos nos olhos do outro, respiravam o existir. Tinham medo também, muito. Mas mais que isso, tinham alegria e tesão. Passeavam nos sorrisos, cores e estórias. Lembrou-se dos intensos momentos de encontro. As tardes de amor. Sorriu de leve e roçou barba na lisura aveludada de sua pele preta. Abraçou-a com tanto tesão, como não conhecia fora dos livros. Como nem nunca tivesse sabido nada sobre aquilo. Nada sobre tesão. Arrastou o nariz até os longos cabelos desgrenhados, lindos. Posados sobre os desenhos de suas costas largas, delineavam-na ainda mais. Fixou olhar sobre pequeno tufo a marcar o deltoide do bração esquerdo. Queria pra si todos seus cheiros e expressões infinitas. Maravilhava-se entre aqueles rostos. Enxergava em Maria tantas belezas, que em estado semi letárgico via em seu rosto muitas mulheres. Não mulheres conhecidas, mas as mais belas mulheres que já o haviam olhado. Queria-as dentro de si. Sê-las? Talvez pudesse enfim se encontrar e passar a ser. Incorporado, cavalo de vida, romperia matas e planícies a sorrir relincho de movimento imparável. !!!Exu abridor de caminhos.<div> Tinha prometido, mas não conseguiria cumprir. Tentaria de novo que ela passasse a noite. Sabia, com certa culpa, que o faria. Era mais forte que ele. Queria dar-lhe espaço, mais pistas em que ela pudesse dançar e sorrir sorrisão aberto e parado. Construir ideias para novos passos, realmente inovadores. Criar saltos espetaculares, esquisitos, brilhantes. No entanto seu desejo era também tê-la a seu lado todo o tempo. Egoísta que são os desejos, imaginava-os sendo um. Medroso de voltar a ser um-só, almejava ser a piada e a gargalhada exagerada, o cruzamento e o cabeceio. Para isso, entendia que precisavam dormir. Tentava entender por que, mas se perdia em alucinações sinestésicas conversivas, orgásticas. Caso pudessem dormir, podia ser que a ansiedade diminuísse. Verdade que talvez irrompesse em erupção eterna de infindos orgasmos múltiplos. Precisava saber, viver. Olhava os olhos grandes de conhaque, as sobrancelhas arqueadas e sabidas. Era tanta beleza que lhe roubava o ar, cocegando-lhe os brônquios acinzentados.</div><div> Quando com ela, todo o resto parecia distante e fosco. Pouco ouvia ou lia o mundo. Preenchido, sentia-a por todo o corpo, por todos os sentidos. Sentia-a tanto, que fantasiava sentir o que ela vivia. Gozava seu gozo. Amor de cuidado e de querer saber muito. Tudo não, muito. Vontade grande de não saber um monte. Vontade de mistério, de deixá-la ser. Passou a mãozona trêmula pelo peito pelado quando percebeu que daria a vida pra conhecê-la. Essa novidade ainda lhe causava estranhamento quando respirava fundo, suspiroso. </div><div> Agora a grudava por trás, testa colada às costonas. Meteu o nariz entre as omoplatas saltadas, no meio uma flor aberta. Alucinante beladona. Tanto cheiro... Falou no ouvido dela. Seu corpo respondeu com mexida aconchegante de cintura e covinha marcada na bochecha. Entre lambidas, cantou-lhe sua origem. No pensamento a mãe balançava na cadeira da varanda da fazenda velha. O cheiro da chuva juntando gente que gargalhava. Bocas e braços abertos pro céu. Alma compartilhada e leve, demorou pouco pra perceber. Olhou-a mais uma vez nos olhos, sem pressa. Respiração entrecortada, ela dormia. Profundamente.</div><div><br></div><div><br></div><div><br></div><div><br></ div><div><div>IDÍLIO URBANO </div><div><br></div><div><br></div><div><br></div> No último andar, no andar mais alto, o único apartamento era o dele. Portanto, se o elevador fosse até lá, só pra casa dele podia. A mãe dos meninos falava sempre pra não entrarem com ele sozinhos no elevador. Que andassem juntos. Sempre em mais de um. E eles eram só dois: João e Maria. No andar deles eram seis apartamentos. Curiosidade de ver o apartamento que ocupava o andar todo. <div> O dentista já era um senhor. Dir-se-ia respeitável, atencioso: sempre com balinha de goma pros meninos, cigarrinho de chocolate. Maria achava estranho que ele só usasse roupão o tempo todo. </div><div> _ Ah, Maria! Vai entender. Sei lá? Coisa de velho, de doutor! Coisa de quem tem um andar todo pra ele!</div><div> Justificava João, que gostava demais das balinhas, dos cigarrinhos, da atenção e até do cheiro do charuto do dentista.</div><div> _ E tem também a fala da mãe, João. Se ela fala, coisa tem!</div><div> _ Se isso fosse verdade, tudo tinha coisa!</div><div> Riram alto, as mãozinhas cheias de bala de goma, os dentes pretos de chocolate. A mãe trabalhava demais, preocupava-se demais, criava os meninos tentando enchê-los de regra pra quando não estivesse ao lado. Que cuidassem um do outro principalmente; pai quase sumido. </div><div> _ No meu aniversário ele ligou! No dia seguinte mas ligou!</div><div> Um amor de esperança dos meninos, que até comovia a mãe. Mesmo assim ela tratava de ensinar:</div><div> _ Não esperem príncipe em cavalo branco, porque a vida é só isso mesmo! </div><div> Olhinho brilhante de criança na janela a acompanhar gota de chuva que escorrega, não apaga com verdade amarga de adulto. No escorregar da gota, milhares de cavalos flamejantes despejavam seus trotes coloridos. Pisoteando ratos e queimando gaiolas por ínvios caminhos de pedras soltas e poeira vermelha. Na beirada olhavam sem medo, rostos vermelhos da poeira, só os olhinhos de fora. </div><div> Entraram juntos no elevador. O dentista já estava lá. Apertado o décimo terceiro andar. Antes que apertassem o andar em que moravam, perguntou-lhes se queriam cigarrinho de chocolate. João já foi metendo a mão no robe do homem, entre risadinhas. Ele riu também, fez cócegas no menino e meteu a mão nos bolsos, revirando-os.</div><div> _ Ih, João! Tô sem aqui... tem mais lá em casa! Vamos buscar? </div><div> Os quatro olhinhos se encontraram desejosos. Lembravam-se das palavras da mãe, mesmo tempo em que queriam ansiosamente entrar naquela casa. Queriam chocolate também, e balas. Certeza que lá tinha muito. Deram- se as mãos. Foi Maria quem falou, firme:</div><div> _ A gente vai!</div><div> _ Que bom! A gente vai se divertir!</div><div> Entrando na casa, viram a sala enorme. Chão de sinteco, detalhes em madeira nas paredes. Maria olhava um quadro bonito, ainda na primeira impressão emocionada, quando ouviu João gritar e viu o dentista dar- lhe um soco no rosto. O menino caiu desmaiado. Maria se virou e correu o quanto pôde em direção à porta. Um braço saiu de dentro do banheiro e a agarrou. Era um braço peludo.</div><div><br></div><div><br></div><div><br></div><div><br></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">JOÃO <br><br><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> Olhou-o mais uma vez nos olhos. Tinham sido sempre muito expressivos. Sempre mesmo, desde que o vira sair de dentro da mulher. Foi segurá-lo nos brações de pai e já veio aquele olhar. A primeira lágrima de João caiu no olhinho do Menino, bem dentro, abertão. Abriu boquinha chorar:<br> _ Você chama João, por conta de meu pai.<br> Chupou pé do menino. Fez carinho com parte detrás dos dedos, bem devagar. Daí roçou rosto.<br> _ Cuidado arranhar Menino com essa barba! <br> _ Barba de pai; machuca não...<br> Menino riu. O Homem também, bêbado de menino. <br> Peou os pezinhos com os dedos e levantou as perninhas de carpaccio. Passou algodão de leve. Menino fundou olho nele. Ele amor de coração esmagado, baratinha na sola do pé do Menino. <br> _E os cabelos?! Gente,</span><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> como parece comigo!? É um trem!!!</span><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"> Falou papai primeiro que tudo. Entravam um nos olhos do outro, igual verde brilhante de folha de pé de baru quando bate um restinho de sol bem cedo e puxa o olho da gente. Homenzarrão barbudo, suado e mole. A gente julgava.<br> _ Eu acho tão bonitinho, tão másculo! <br> _ Eu não. Um homão desse?!<br> Sorria tão verdadeiro, tanta vida. Amavam. O menino amava tudo, o pai amava o menino.<br> _ E a panturrilhazinha?! Delícia demais! Parece pessoinha já. <br> Na escola um doce, quase não criava problema. Sabido nos entendimentos das coisas e das pessoas. <br>   ;_ Olha, eu não falo isso pra todos os pais, viu?! Mas você está de parabéns. Uma criança agradável, comunicativa, amiga, perspicaz...<br> & nbsp;Fez cara de agradecido e de como quem diz já sabia. Menino chutava bola no chão de areia do parquinho. Olhos brilhantes, gargalhadas dissonantes. Olho do Pai lacrimejante. Grudou Menino. Cobriu de beijo. Brincaram de chegar primeiro.<br> &nbs p; _ Eu ganhei! É que eu corro muito rápido, não é Pai?! <br> _ É mesmo, Filho! <br> _ Você também, né? <br> _ É.<br>   ;_ É que a gente é João, né Pai!? <br> C heiro no cangote de menino. Mordidas e abraços tortos. Deu banho. Adulou menino, que adulou pai. Pularam em gargalhadas e derrubões. Cuidou do pai com lambida na barriga e coçada firme espalhada nas costas.<br> Um dia acordou a procurar o Menino no quarto. Caçou debaixo da cama e atrás das cortinas. Correu quintal todinho. Nada. <br> &n bsp; _ Não tô brincando mais, Filho. Pode sair! <br> & nbsp; Nada.<br> &nb sp; _ Não é mais esconde esconde, João! Acabou! <br> & nbsp; Nada.<br> &nb sp; Abriu a porta da rua meio abobado. Andou trocando perna, caçando sem muita direção. As ruas compridas, os olhares vazios. Bebeu com os homens faladores. Ouviu um zumbido, e só. Foi quando começou a assobiar. Fez música de assobio o dia todo. O povo olhando de lado, com os ouvidos.<br>   ; _ É que João gosta de música de assobio! <br> & nbsp; Não dormiu mais. Assobiando todo seu ar pelas ruas, rios, cantos e campos. Assobiou nos matos música meiga. <br> & nbsp; Nesses dias aconteceu que a gente foi ficando doída. Os assobios iam, fininhos, entrando nas fissuras das almas da gente. Até as árvores mostraram olhar de João, de olho vivo. As ladeiras das ruas se levantaram e juntaram a gente no vale, assobiando com João. Assim, o povo foi levando o Moço pra casa. Foram assobiando longo abraço de agudos trançados. Deitaram o homão, miúdo que nem tatu. Fecharam tudo. E foi a coisa mais bonita que já teve, a gente toda assobiando pelas frestas das portas e janelas, a ninar João.</span></div></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><blockquote type="cite"><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">MARIA <br><br><br> F alava das sobrinhas como se fossem filhas. Contasse as estórias com tanta emoção, que por pouco as lágrimas das colegas não encharcassem os petiscos. Quando a mais velha falou "titia", foi comoção generalizada. Amigas radiantes:<br> _ Você vai ser a melhor mãe do mundo!<br> _ Sorte do homem que te fisgar! <br> _ Peixão! <br> Escondia o sorriso com uma das mãos fingindo timidez. A franja muito preta cobrindo olho esquerdo. <br> _ Meninas...!!! Ainda nem penso em namorar! <br> Noivou com moço bonito. Espadaúdo, um busto de estátua de bronze em praça européia. Família respeitada. Chamava Bruno. Melhor dos noivos. Quando sozinhos, os beijos a sufocavam, não conseguia suprimir a respiração ofegante, os sons agudos e entrecortados. O moço se assustava, mas gostava. Medo que o pai de Maria ouvisse e viesse pra sala, aumentava "La Barca" na vitrola e tentava acariciar os seios firmes da mocinha.<br> _ Calma lá, Bruno! Calma, que o Brasil é nosso! <br> _ É que não me aguento!<br> _ Vai ter que aguentar, meu filho. Comigo, só casando! <br> O rapaz suava a testa e tirava lenço perfumado do bolsinho. Dizia aos amigos:<br> _ Aquilo é que é mulher pra casar! Seríssima! <br> Fato é que, com a falta de emprego e com a família falida, Bruno não conseguia marcar o casório. Por fim acabou amigado com uma dona lá pros lados de Santa Fé. Maria quase morreu, desgostosa da vida. Ouviu da mãe:<br> _ Aquilo não era homem pra você, minha filha. Descansado demais. Você merece alguém mais trabalhador.<br> & nbsp;_ Mas era dele que eu gostava, mãe! Só dele! - aos prantos.<br>   ;Após certo tempo de luto, reergueu-se. Conheceu o dentista. Galanteador, endinheirado. Gostava ser chamado de Doutor. De Maria fazia todas as vontades, capturado pelos tantos dotes físicos e morais da mocinha. No início sentiu-se importante, anel à mostra pra todos, orgulhosa rainha do mundo. Mas logo perdeu a graça pela barrigona farta, dentição perfeita, presentes caros e mão boba. Velho, sempre queria "tirar proveito" dela, como depois diria às amigas.<br> _ Sou séria! Comigo não é assim não! Aqui é pão pão, queijo queijo! É preto no branco! <br> _ Amiga, pra que tanto? Deixa um pouquinho, é bom...<br> O fendida de morte:<br> _ Me respeite! Pensa que sou qualquer uma? Não tô pra ser enrolada, nem pra ser mulher fácil! Comigo não, violão! <br> Com o tempo as companheiras foram se calando diante de tamanha retidão e moral imaculada. Maria, envaidecida, cultivava a virgindade como maior das virtudes, um oásis em pleno deserto de pouca vergonha tropical:<br> &nbs p; _ Mulher como eu não há! Digo e repito, tudo rameira! Posso não ser a mais bonita, mas mais correta não há! <br> S e o assunto era adultério, era de uma rigidez de fazer inveja a mármore bruto:<br> & nbsp;_ Bando de gente sem vergonha! Absurdo! Absurdo! Antes a morte, percebeste? A morte! <br> O passar do tempo foi lhe tirando as belezas e as companhias. As amigas casando, as irmãs cuidando dos filhos e maridos e a ela sobrou cuidar dos pais já velhos. Nunca reclamou. Justiça seja feita, cumpria essa tarefa com enorme presteza e até um certo prazer. <br> No enterro de Seu João, último progenitor vivo de Maria, houve quem dissesse que agora a jovem senhora desempacaria. Ledo engano, posto que empacada não estava. As irmãs até chegaram a lhe apresentar alguns senhores. Bons partidos, viúvos ou desquitados de moral reconhecida. Maria sempre a encontrar defeito. Não defeito qualquer, defeito gravíssimo: <br> _ Mas é careca!<br> _ E que mal tem?<br> _ Pensa que me guardei todo este tempo pra um careca?! <br> Sobrinhas crescidas, agora faziam casamentos e filhos. Tia Maria já ostentava vasta pelanca sobre os cós das saias compridas. Magra, mas pelancuda. Não encontrava prazer mesmo na comida. Sempre bem recebida na casa das sobrinhas. Cada vez menos visitada. Chamava-as de lado:<br> _ Abre o olho com seu marido! Anda perfumado demais! <br> Riam-se piedosamente da tia, pelas costas:<br> _ Difícil, tadinha gente... tão velha e sozinha. Fácil não deve de ser! <br> Cada vez mais sozinha, envelheceu de vez. Neste dia olhou a cuidadora nos olhos e entrou no banho. Recusou ajuda. Apesar de passar dos oitenta, considerava-se muito independente, mesmo pesadona (depois dos sessenta passou a acumular gordura em excesso). Quando saiu do banho, a dor no peito fora mais forte. Segurou-se à enfermeira, olhos ansiosos, cachorro pidão. A menina, desesperada, chamou os bombeiros. Em toalha, Maria olhava-a com força, pedindo atenção. A moça em sua angústia, mal se lembrava das poucas aulas: massagem cardíaca, soprava-lhe forte na boca desdentada enquanto fechava-lhe as narinas.<br>   ;Os homens chegaram de uma vez. Fortes e suados, prédio sem elevador. Maria estava nua, toda. Expunha todo seu corpo aos desconhecidos que a pegavam como a um pedaço de carne. Suas partes já um tanto peladas e abertas, não receberam olhares daqueles homens, que evitavam olhá-la ao máximo. Pesada, fardo a ser carregado pelos quatro andares escada abaixo. Ainda consciente viu-se exposta, por toda cena, impotente. Chegou morta ao hospital.</span></blockquote><blockquote type="cite"><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></blockquote><blockquote type="cite"><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></blockquote><blockquote type="cite"><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></blockquote>SOLIDÃO PRAIEIRA <div><br></div><div><br></div><div> Acordou com ruídos a noite toda. Toda noite? Resolveu que sairia da cama e se aprontou. Muitas íntimas necessidades. Corpo do mundo, alvo dos olhos. Sem parar de bocejar, caminhou descalço, dessabido, olhando areia branca. Sentado, seguiu bocejante. A fumaça do cigarro sob a intensa luz do dia desfazendo-se em microexistências. Transeuntes a mirá-lo, estrangeiro.<div> Há algum tempo, lá em sua terra, decidira a vida. Desmemoriado, João pensou em não mais exibir-se achado. Vontade moral autêntica, inundada de julgamento. Existência?</div><div> Fez como o rebanho e caminhou até o farol, pés espetados pelas finas beiradas. Sorriu ao pisar areia. Passadas nove da manhã, envaidecido da própria felicidade, sem um mísero passo de dança, pediu a porção de ostras. Explicado: "Não são frescas; congeladas." À segunda garrafa de cerveja a ostra chegou. Impensável sem pinga. Local, ruim; como todas.</div><div> À primeira bivalve, ao bafo, mastigou e mastigou. Rançosa na úvula. Gole duro na primeira das hérnias de esôfago. Sob desculpa de ler, manteve o ritmo. Doze ostras, incontáveis cervejas e pingas. Olho espelhado pro vento cor de areia. </div><div> O corpo quis vomitar, a cabeça não. Segurou o quanto pôde. A quanto custo manteve a morte viva em suas tripas! Sentiu a liberdade crescer em suas entranhas. Desde dentro pra desde fora: solução para todos os mistérios da vida.</div><div> Cansado, dormiu. Cabeça à mesa. Garçons amigos a chamar fim de expediente. João não respondeu. Avoado do tempo.</div></div><div><br></div><div><br></div><div><br></div><div>COTIDIANO <div><br></div><div><br></div><div> _ Quero ir não, mãe! Por favor...!<div><div> _ Mas tem que ir, menino! Já falei. A gente vem conversando sobre isso há um tempão, né filho?! A gente não faz só o que quer, mas o que precisa. Vamos fazer o que combinamos: depois do dentista a gente come sorvete! Tá?!</div><div> João abraçou a mãe, escondendo a cabecinha entre seios e quadris. Mãos e braços da mãe alcançavam toda a lateral do corpinho do menino, suado de medo. Pálido, seu suor empapava a barriga da mãe, que o pegou pelos ombros. Olho no olho:</div><div> _ Agora vou colocar uma camiseta pra gente ir, tá?!</div><div> Fez que sim com a cabeça, ainda trêmulo e bicudo. Limpou a testinha molhada com as costas da mão e chicoteou o sinteco com gotas salgadas. Chupou nariz com força, fazendo mais lágrimas encherem os olhinhos, espelhando-os. Maria, rosto quase colado ao espelho, limpou com força o batom que teimava em escapar dos lábios. Passou a língua nos dentes da frente. Pro menino:</div><div> _ Bonita? - girando em um dos pés ao mesmo tempo em que joga o cabelo pro lado.</div><div> _ Linda! - sorrindo boquinha sem dente na frente.</div><div> Adoravam caminhar pela cidade. Iam conversando sobre todas as coisas. Fosse conversa entre adultos diríamos que conversavam sobre a vida. Sendo entre mãe e filho pequeno, sabemos que era sobre muito mais. Conversavam sobre todas as vidas, inclusive aquelas ainda por vir. Sobre planetas, medos e vergonhas. Seres não viventes, outros espaços, mundos e tempos. Seus amores, corpos e cabelos brilhavam sob o extenuante sol de setembro. Construíam a existência e seus devires na carne dos dois. Sobre o que é ser, sobre o que será ser. Mais tarde, já velho, João sentiria suas entranhas ao lembrar-se da mãe e da família. Ao lembrar-se das pessoas que o rodearam àquele tempo. Não entenderia direito por que, tampouco se tratava de lembrança específica. Aquilo era ele. Desde o modo como arrumava sua cama à maneira como vivia as relações. O quanto sentia a força dos antepassados na carne ao ouvir atabaques e agogôs. As tantas e tantas horas em volta do fogão, o entra e sai dos amigos próximos, as vozes cantando alto. As estórias que contava pra sua filha antes de dormir. Tudo. Agora, o menino sentia imenso prazer e segurança naqueles momentos. Via a sorridente mãe ainda mais linda envolta no brilho do dia. <span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Desapercebido do ratão que passou correndo ou mesmo dos gritos das crianças que brincavam na praça, sabia</span> que ali eram capazes de entender qualquer um. Nada estava fechado e mesmo assim não se sentia exposto. Bochechas apertadinhas de felicidade verdadeira.</div><div> _ Mãe, quero te falar uma coisa... não quero ir no dentista mesmo não. - fazendo a cara que fazia quando os combinados e conversas não eram suficientes para convencê-lo. Como quem se coloca e ao mesmo tempo pede desculpas ao outro por não ter sido convencido, reconhecendo o esforço da mãe dispensado à tarefa explicativa, educativa, criativa.</div><div> _ Eu sei, meu filho, eu sei... - quase complacente.</div><div> _ Então posso não ir...?</div><div> _ Pode não. - adulando firme o cabelo, deixando a testa repuxada.</div><div> Começou a chorar bem alto, sofrido que só. Maria pegou- o no colo, bracinhos em cachecol. Apertou com força seu menino contra o peito e respirou fundo pra não chorar também. Com a mão direita abriu a porta do consultório. O ar condicionado a alegrou.</div></div></div></div><div><br></div><div><br></div><div><br></ div><div><br></div><div><br></div><div>VIDA TÃO BOA </div><div><br></div><div><br><div><br></div><div> Olhou pra ela e soube. Maior angústia possível era saber. Perto dela podia, sabia. Maria virou-se e mostrou seus grandes dentes a sorrir. A pele preta e rija. A bunda dura tocou a parte de baixo da barriga de João. Seria só isso? As infinitas marquinhas a serem lambidas? Quem dera. Questão mesmo era o indizível sabido. Lembrou-se de uma ou duas marquinhas, mas nenhuma pela qual havia esperado. Olhou-a nos olhos de novo, e de novo... sem parar. Dessabido dos olhos, assistiu ao sumiço desaparecista das marcas e, em grande parte, também das cores. As texturas o envolveram e, inesperadamente, adolesceu. Após horas ao telefone, até espinhas teve. <div> Mentiras de viver pouco. Coisas do sentir. Tudo. Mas nessa hora precisava olhar. Olharam-se. Angustiados. Medo de não saber mais. Medo de já terem sabido demais. Desmisterioso, vagaria exposto. Cego dos próprios olhos, perdido dos dela.<br><div> Agora a angústia sem tamanho o fez cheirar o menino. Seguro. Cheiro diferente. Entre milésimos de piscadas de beija flor, entendeu que o cheiro do menino tinha mudado, assim como o seu próprio. Olhou a mão trêmula. Chegou a prender respiração pra parecer normal. Sentiu o azedume do crescer. Pesado. Pegou na barriga gorda e soube... de novo. Entendimento tão rápido que não pôde dar-se conta, nem sentir. Não sentiu que de toda parte do menino pulsava vida. Bobagem? Inexistente a buscar olhos de calango. Subido, pôde esvaziar os pulmões nas costas fininhas do menino. Tão grande, já cabia sua cabeçorra esparramada. Viveu vida de vedete. O menino tão grande, Maria tão pulsante... </div></div><div> Suou frio e intensamente. No esôfago, a hérnia maior que nunca o impedia de engolir. Limpou testa suada com as costas do indicador e espirrou suor longe com chicoteado dedo. Olhos esbugalhados, um tanto amarelados. A gente correu a acudir. Sentaram-no na cadeira e deram suco de tamarindo com muito açúcar. Bebeu de um gole só. Levantou-se com certo estilo, recompondo-se. Não gostava de ser olhado por olhos que o enxergavam na tumba. Recusou veementemente ida a doutor. Qualquer que fosse. </div><div> Sentou-se e olhou pros seus braços. Na cabeça, o mundo corria rápido pro fim. Feliz mesmo sem dançar? Mirava mundo colorido para todo e qualquer lado. Luzes em festa, mato bonito e gado gordo. Menino correndo, Maria sorrindo encantada. Infinito baile? Improvável... sabia que caminhava para a desgraça total e inevitável.</div><div><br></div><div><br></div><div><br></div><div><br></ div><div> <div>JOÃO E MARIA SEGUNDO </div><div><br></div><div><br></div><div><br></div><div> Entrou em casa e ouviu o silêncio profundo. Sinal que as crianças já estariam dormindo, ou pelo menos deitadas. Abrindo a porta do quarto, deu com Vivian enfurecida. O ódio era tanto enquanto berrava, que Bruno pôde ver espuma grossa nos cantos da bocona da esposa. Raiva escorrendo pelos caninos amarelos. Falava das crianças e de quão desobedientes eram. Largaria Bruno. Jurou que o faria. Berrou palavrão, socou a parede e jogou camisola preta de renda na mala pra mostrar que não blefava. Desta feita a perderia de vez. O casal de pestes tinha enfim conseguido destruir sua vida irremediavelmente. Não que não tivessem tentado antes. Aliás, só isso haviam feito desde que saíram da barriga de Maria. De uma só tacada fizeram-no pai de gêmeos e viúvo. Desejou matá-los instantaneamente. Amassar suas carinhas de joelho até que virassem almôndegas ao molho de tomate. Sentia-se sozinho com Maria ainda viva, imagine com ela morta!? Pensou em vingança longa e dolorosa para aquelas crianças. Batizou-os João e Maria. <div> Surras diárias, afazeres pesados, pouca comida, abusos físicos e sexuais frequentes. O rei da casa. Chegava e se esparramava na poltrona: que os meninos viessem e lhe tirassem sapatos e meias; ligassem a TV. A primeira vez que viram Vivian, as crianças entreolharam-se com esperança. Mais um sonho que ficou pra trás. Bruno era ainda mais violento junto dela. Agora eram vigiados o tempo todo, posto que o casal se revezava na função de carrasco. Agora não tinham nem mesmo aqueles momentos em que ficavam sozinhos. Durante a vida, as horas em que o pai não estava em casa eram horas de delícias. Brincavam de casinha e médico. Cuidavam das dores da alma e corpo um do outro. Comidinhas deliciosas e atenção. Às vezes o ronco forte das barriguinhas vazias os chamava de volta à realidade, mas ainda encontravam força para gargalhar.</div><div> Neste dia, Bruno acordou os dois a pontapés. Machucados e famintos, os irmãos abraçaram-se em um canto do quarto. Davam-se força pra suportar mais esta noite. Jogando uns trapos que chamava de roupa de menino:</div></div><div> _ Vistam-se já!</div><div> Não tinham ideia da hora, mas devia ser tarde. As ruas vazias de pessoas, alguns carros. O pai dirigiu por muito tempo até chegar a um descampado. Desceu do carro, abriu porta traseira e arrancou as crianças do carro. Sem dizer palavra, voltou pro banco do motorista, ligou a ignição e foi embora. Deram-se as mãozinhas e João encostou o rosto no peito da irmã, que o abraçou forte pelas orelhas.</div><div> Andaram muito. As primeiras cores do dia começavam a descer do céu, quando viram uma casinha de madeira. Não que fosse bonita, mas era ajeitada o bastante pra protegê- los do frio. À ansiedade da aproximação, somou-se delicioso cheiro de brigadeiro. Muita manteiga e cheiro forte de chocolate. Salivando, as crianças bateram inseguras à porta.</div><div> O rapaz que abriu, era mais jovem que o pai deles. Sem dúvida era também mais simpático. Sorriu-lhes sorrisão parado. Com surpresa, mas sem exageros:</div><div> _ O que fazem duas crianças tão fofas no meio da floresta?</div><div> _ A gente tá perdido, moço! </div><div> _ Perdidos e com frio...ajuda a gente!?</div><div> _ Claro, meninos! Desculpem a indelicadeza...entrem e se agasalhem. No fogão tem brigadeiro com muito chocolate e manteiga. Se vocês gostarem eu faço mais.</div><div> Desesperados correram pro fogão, mãos e rostinhos lambuzados pela gordura deliciosa da manteiga e pelo preto grudento do chocolate. Chuparam os dedos e fitaram o anfitrião, que andou até eles com um cobertor e depois se dirigiu à geladeira para mais ingredientes:</div><div> _ Como prometido!</div><div> Em poucos minutos, João e Maria gargalhavam de barriga cheia e esperança renovada. A casinha parecia ainda menor por dentro. As fotocopiadoras velhas e empilhadas ocupavam quase todo espaço. Além delas, as tantas gaiolas. Maioria vazia, algumas com pássaros que lhes pareceram mortos. Contaram sua história ao rapaz. Olhando-os nos olhos, ele disse que cuidaria deles e que agora estariam seguros. No canto da sala, ratos se juntaram pra comer migalhas de pão colocadas ali cuidadosamente. Viram que o rapaz conversava com eles. Adormeceram. João sonhou que voava. Chegando às nuvens, experimentou um pedacinho. Era algodão doce. </div><div> </div><div> </div><div> </div></div><div> </div></div></div><div><br></div><div><br></div><div><br></div><div><br></ div><div><br></div><div><br></div><div><br></div><div><br></div><div><br></ div><div><br></div><div><br></div><div><br></div><blockquote type="cite"><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br><br></span></blockquote><blockquote type="cite"><span style="background- color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></blockquote><blockquote type="cite"><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></blockquote><blockquote type="cite"><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></blockquote></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br></span></div><div> </div><div> </div><div><br></div><div><br></div><div><br></div><div><br></ div><div> </div></div></div></div><div><br></div><div><br></div><div><br></ div><div><br></div><div><br></div><div><br></div><div><br></div></div><div><br></ div><div> </div></div></div><div><br></div><div><br></div><div><br></div></div>