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A Pequena Fadette

George Sand
Título original: Le Petit Fadette
Editorial Publica, LisboaSinopse:
Misturar cenas reais da vida rural francesa do século 19 a elementos que só cem
anos depois
iriam se tornar a matéria-prima do realismo fantástico é apenas uma das proezas de
A Pequena
Fadette, romance campestre da George Sand.
A história gira em torno de Franchon Fadette, uma menina criada sem pai nem mãe,
quase
selvagem, cuja vida se transforma quando se apaixona por Landry Barbeau, um jovem
abastado e
irmão gêmeo do ciumento Sylvinet. Neta da curandeira Fadet, ela enfrenta a
resistência da
família do rapaz não só pela pobreza mas também pelo estigma de ser considerada uma
bruxa.
Vencer esses obstáculos exige da pequena Fadette passar por um processo de
adaptação para a
vida civilizada.
Ao descrever esta trajetória, George Sand faz um acerto de contas pessoal. Filha de
uma
mulher do povo e neta de uma aristocrata, ela desnuda sensações que experimentou de
perto
como o enfrentamento entre a marginalidade e o prestígio social, a selvageria e o
refinamento da
civilidade. A rejeição de Fadette não é diferente daquela que viveu quando acabou
com seu
casamento fracassado e assumiu a criação dos dois filhos.O nascimento dos gêmeos
A vida não corria mal ao tio Barbeau, de Cosse, e a prova disso é que pertencia ao
conselho
municipal da comuna e possuía dois campos que forneciam a alimentação da família
para além
dum certo lucro. Colhia dos seus prados bom feno e a forragem era considerada de
primeira
qualidade.
A casa do tio Barbeau era de boa construção, estava bem situada, com um jardim bem
tratado, uma excelente vinha e um belo pomar, onde a fruta abundava.
Era um homem enérgico, boa pessoa, muito dedicado à família e bom vizinho.
Tinha já três filhos quando a tia Barbeau, concluindo que sem dúvida possuía bens
suficientes para cinco e que era preciso despachar-se, pois a idade avançava,
tratou de lhe dar
dois ao mesmo tempo; dois belos rapazes tão parecidos, que se tornava quase
impossível
distingui-los um do outro. Ao primeiro deram o nome de Sylvain, mas em breve se
tornou
Sylvinet, para o distinguirem dum irmão mais velho, que era seu padrinho; ao
segundo
chamaram Landry.
O tio Barbeau ficou um tanto surpreendido quando, ao regressar do mercado, viu duas
cabecinhas no berço. — Estás a trabalhar tão bem, mulher, que me dás coragem. Eis
mais duas crianças para
alimentar; isto significa que não posso descansar e que tenho de continuar a
cultivar a terra e a
criar gado. Está descansada que trabalharei.
A tia Barbeau, repentinamente, desatou a chorar: — Oh! Meu Deus! Estou tão
preocupada!
Disseram-me que não havia nada mais penoso que educar gêmeos. Fazem mal um ao
outro. E
que é necessário morrer um para que o outro passe bem. — Será verdade? — exclamou o
pai. — Quanto a mim, são os primeiros gêmeos que vejo.
Mas está aqui a tia Sagette, que percebe disso e nos vai dizer ao certo como é.
A tia Sagette, interrogada a esse respeito, respondeu: — Vão por mim; estes gêmeos
viverão
e não serão mais doentes que as outras crianças. Há cinquenta anos que sou parteira
e vi nascer,
viver ou morrer todas as crianças desta terra. Não é pois a primeira vez que vejo
gêmeos. Em
primeiro lugar, a parecença em nada lhes prejudica a saúde. O que mais acontece é
um ser forte e
o outro fraco; o que faz que um viva e o outro não; mas olhem para os vossos, são
os dois tão
belos e bem feitos como se fossem filhos únicos. São lindos e só pedem que os
deixem viver.
Anime-se, tia Barbeau, há de ser um prazer para si vê-los crescer, e, se não
mudarem, só vocês e
aqueles que os virem todos os dias poderão distingui-los, pois nunca vi gêmeos tão
parecidos. — Ainda bem! — exclamou a tia Barbeau. Mas ouvi dizer que os gêmeos
tomam tanta
amizade um ao outro que, quando são separados, não podem viver mais e que um deles
se deixa
consumir pelo desgosto. — É verdade — respondeu a tia Sagette —, mas oiçam com
atenção e não se esqueçam do
que uma mulher de experiência vos diz. Assim que os vossos gêmeos se comecem a
reconhecer,
tratem de não os deixar sempre juntos. Levem um para o trabalho enquanto o outro
fica em casa.
Quando um for pescar, mandem o outro à caça; quando um guardar as ovelhas, o outro
que vá
guardar o gado na pastagem. Não castiguem os dois ao mesmo tempo; não os vistam de
igual;
quando um usar chapéu, que o outro use boné. Enfim, por todos os meios que possam
imaginar,
impeçam-nos de se confundirem um com o outro e de se acostumarem a não passar um
sem o
outro. Tenho receio de que o que vos estou a dizer vos entre por um ouvido e saia
pelo outro; ese assim for, virão a arrepender-se.
A tia Sagette falara tão calorosamente, que acreditaram nela. Prometeram-lhe fazer
como
dizia e deram-lhe um belo presente antes de partir.
Quanto aos gémeos, iam crescendo sem terem mais doenças que as outras crianças, e
tinham um temperamento doce e pacífico.
Eram os dois louros. Tinham um aspecto saudável, grandes olhos azuis, ombros
largos, o
corpo bem desenvolvido, e todas as pessoas das redondezas que passavam pelo burgo
de Cosse
paravam a contemplá-los e comentavam: Mas que belo par de rapazes!
Assim os gêmeos desde cedo se habituaram a ser examinados e interrogados e não eram
nem envergonhados nem apatetados. Sentiam-se à vontade com toda a gente e, em vez
de se
esconderem, como fazem os rapazes quando avistam um estranho, respondiam às
perguntas sem
baixarem a cabeça nem se fazerem rogados. No primeiro momento, não se notava
qualquer
diferença entre um e outro. Mas, após observados atentamente, reparava-se que
Landry era um
pouco mais alto e forte, que tinha o olhar mais vivo e um ar mais decidido.
Landry dava ideia de ser mais alegre e corajoso, mas Sylvinet era tão afetuoso e
tão fino de
espírito que não era menos amado do que o irmão. Durante três meses ainda se pensou
em
impedi-los de se habituarem demasiado um ao outro. Mas, não se notando qualquer
alteração, a
pouco e pouco, foi-se esquecendo o prometido. A primeira vez que lhes tiraram as
roupas de
criança para os levar à missa, vestiram-nos de igual, pois o tecido de uma saia da
mãe serviu para
os dois fatos.
Depois, mais crescidos, notou-se que tinham os mesmos gostos e quando a tia Rosette
os
quis presentear com uma gravata a cada um, ambos escolheram a mesma gravata lilás
ao
vendedor ambulante que andava com a mercadoria de porta em porta. A tia perguntou-
lhes se era
por causa de quererem andar sempre vestidos de igual.
Sylvinet respondeu que era a cor mais bonita e Landry garantiu que todas as outras
gravatas
eram feias. — E a cor do meu cavalo — perguntou o vendedor, a rir —, como a acham?
— Horrível — respondeu Landry. — Perfeitamente horrorosa — acrescentou Sylvinet.
No decurso do tempo tudo foi ficando na mesma, e os gêmeos vestiam-se de uma
maneira
tão igual que ainda davam mais motivo a serem confundidos. Além disso, fosse por
malícia de
crianças, fosse por força das leis da Natureza, quando um partia a ponta do
tamanco, bem
depressa o outro quebrava o seu do mesmo pé; quando um rompia o casaco ou o boné,
não
tardava que o outro imitasse tão bem o rasgão que dir-se-ia ter sido ocasionado
pelo mesmo
acidente.
A amizade foi aumentando com a idade, e no dia em que souberam raciocinar um pouco,
os
rapazes concluíram que não se podiam divertir com os outros estando um deles
ausente; e
quando o pai tentou manter um deles junto de si todo o dia, enquanto o outro ficava
com a mãe,
ambos ficaram tão tristes e tão moles no trabalho que os julgaram doentes, e quando
à noite se
encontraram de novo, foram passear de mãos dadas, não querendo regressar a casa, de
tão felizes
que estavam por se encontrarem juntos, e também porque estavam um pouco zangados
com os
pais por estes os terem separado. Nunca mais se repetiu a tentativa, pois é preciso
notar que os
pais, os tios, as tias, os irmãos e as irmãs tinham pelos gêmeos uma ternura que se
aproximava
muito de fraqueza. Orgulhavam-se deles, pois eram duas crianças que não eram nem
feias, nem
parvas, nem más.
De vez em quando, o tio Barbeau inquietava-se um pouco com o hábito de estarem
semprejuntos e, relembrando as palavras de Sagette, tentava arreliá-los para lhes
provocar ciúmes. Se
cometiam alguma falta, puxava as orelhas a Sylvinet, por exemplo, dizendo a Landry:
Por esta
vez, estás perdoado, porque és o mais sensato. Mas o ver que o irmão fora poupado
consolava
Sylvinet e Landry chorava como se tivesse recebido o corretivo. Também tentaram dar
apenas a
um o que ambos desejavam; mas logo a partilhavam se fosse coisa boa para comer; e
se era
algum brinquedo ou ferramenta, usavam-no em comum. Se elogiavam o bom comportamento
dum, não fazendo justiça ao outro, logo o outro ficava contente e orgulhoso por ver
o gémeo
encorajado e acarinhado, ficando ele também a lisonjeá-lo. Enfim, era tarefa vã
querer separálos, e como geralmente ninguém gosta de contrariar as crianças amadas,
mesmo quando é para o
seu próprio bem, rapidamente se abandonou o intento.
A família Barbeau aumentava, graças às duas filhas mais velhas, que não paravam de
dar à
luz belas crianças. O filho mais velho, Martin, um belo e bravo rapaz, cumpria o
serviço militar;
os genros trabalhavam, mas o serviço não abundava sempre. E, então, houve no país
uma série
de anos maus para as colheitas. Como o tio Barbeau não era suficientemente rico
para conservar
toda a família consigo, tornou-se urgente arranjar colocação para os gêmeos.
O tio Caillaud, de Priche, ofereceu-se para ficar com um para lhe tratar dos
animais, pois
tinha uma grande propriedade para explorar e os seus filhos eram demasiado grandes
ou
demasiado pequenos para essa tarefa. A tia Barbeau teve medo e sentiu um grande
desgosto
quando o marido Lhe falou nisso pela primeira vez. Dir-se-ia que nunca previra que
tal
aconteceria aos gémeos, e todavia sempre se inquietara com isso. O pai estava
preocupado por
causa deles, e preparou tudo com antecedência.
Primeiro, os gêmeos choraram e passaram três dias a percorrer bosques e prados, e
só os
viam à hora das refeições. Lamentavam-se, agarrados um ao outro, como se tivessem
receio de
serem separados à força. Mas o tio Barbeau nunca o faria. A decisão teria de partir
deles. Assim,
no quarto dia, os gémeos, vendo que não os contrariavam, encontravam-se mais
assustados com
a vontade paterna do que se tivessem sido ameaçados ou castigados. — Temos mesmo de
aceitar — disse Landry. Resta resolver qual de nós irá, pois deixaramnos a escolha
e o tio Caillaud disse que não podia aceitar os dois. — Que me importa partir ou
ficar — lamentou-se Sylvinet —, se temos de nos separar?
Não é a questão de ir viver para outro sítio; se fosse contigo, não me custava
nada. — Mas, no entanto, o que ficar em casa terá mais consolação e menos tristeza
do que aquele
que não vir nem o irmão gêmeo, nem os pais, nem os outros irmãos, nada do que nos
causa
prazer.
Landry disse isto com um ar decidido; mas Sylvinet desatou a chorar; a ideia de
tudo perder
e tudo deixar ao mesmo tempo causou-lhe tanta tristeza que não pôde conter as
lágrimas.
Landry também chorava, mas não tanto, e assim percebeu que Sylvinet tinha mais medo
do
que ele de ir viver num lugar estranho e de se dar com uma família que não fosse a
sua. — Olha, mano — disselhe —, se conseguirmos separarmo-nos, é melhor que seja eu
a
partir. Sabes que sou mais forte que tu e, quando adoecemos eu resisto mais. Por
isso prefiro
saber-te com a nossa mãe, que te consolará e tratará de ti. E depois também não
ficaremos longe
um do outro. As terras do tio Caillaud confinam com as nossas, e ver-nos-emos todos
os dias. Eu
gosto de trabalhar e isso distrair-me-á, e como corro melhor que tu, virei mais
depressa
encontrar-me contigo logo que o dia acabe.Acentuam-se as diferenças
Sylvinet não quis aceitar tal sacrifício por parte do irmão e após longa discussão
decidiram
à sorte, que, mau grado de Sylvinet calhou a Landry. — Estás a ver que a sorte
assim o quer! — disse Landry. — E bem sabes que não se deve
contrariar a sorte.
Sylvinet ainda chorou mas Landry não cedeu. Tinha um pouco mais de amor-próprio que
o
irmão. Depois de ouvir tantas vezes repetir que nunca passariam de meios homens se
não se
habituassem a separar-se, Landry, que começava a sentir orgulho nos seus catorze
anos, tinha
vontade de mostrar que já não era uma criança. Conseguiu pois tranquilizar o irmão
e, à noite, ao
regressar a casa, declarou ao pai que se submetiam ao dever, e já tinham tirado à
sorte e que
calhara a ele, Landry, levar a pastar os animais de Priche.
O tio Barbeau abraçou os dois filhos, e falou-lhes deste modo: — Meus filhos, estão
na
idade da razão, reconheço-o na vossa submissão, e isso alegra-me imenso. Lembrem-se
de que
quando os filhos dão prazer aos pais também o dão ao bom Deus e que, mais dia menos
dia,
serão recompensados.
Em seguida levou os gêmeos junto da mãe para que esta os felicitasse, mas a tia
Barbeau
teve tanta dificuldade em reter as lágrimas que nada conseguiu dizer e contentou-se
em os
abraçar.
O tio Barbeau sabia muito bem qual dos dois era o mais corajoso e qual era o mais
afetuoso.
Não quis de modo algum arrefecer a boa vontade de Sylvinet, pois via que Landry
estava
decidido e que só o desgosto do irmão o poderia fazer vacilar.
Chamou Landry antes do nascer do dia, tendo cuidado em não acordar o outro, que
dormia
ao lado. — Vamos, pequeno — chamou baixinho —, temos de partir para Priche antes
que a tua mãe
desperte, pois sabes como tudo isto a entristece. Vou levar-te a casa do teu novo
patrão, com as
tuas coisas. — Não posso dizer adeus ao meu irmão? — perguntou Landry. — Ficará
aborrecido se
partir e não o fizer. — Se teu irmão acorda e te vê partir, desata a chorar, e
acorda a vossa mãe, que chorará
ainda mais, por causa do vosso desgosto. Vamos, Landry, cumpre até ao fim o teu
dever, meu
filho; parte como se nada fosse. Ainda esta noite levo lá o teu irmão, e, como
amanhã é domingo,
poderás vir visitar a mãe durante o dia.
Landry obedeceu corajosamente e seguiu o pai sem olhar para trás.
A tia Barbeau não estava tão adormecida nem tão sossegada que não ouvisse o que o
marido
dissera a Landry. A pobre mulher, entendendo as razões do marido, não se mexeu e
afastou
apenas um pouco a cortina para ver o filho partir. Sentiu um aperto tão grande no
coração que
saltou da cama para o ir abraçar, mas parou diante da cama dos gémeos, onde
Sylvinet dormia
profundamente. O pobre rapaz chorara tanto durante três dias que estava morto de
fadiga e
parecia um pouco febril.
Então, a tia Barbeau, olhando o único dos gêmeos que lhe restava, não pôde impedir-
se de
reconhecer que era aquele que teria visto partir com maior pena. Era o mais
sensível dos dois,
talvez por ter um temperamento menos forte. O tio Barbeau tinha um nadinha de
preferência por
Landry, porque ele era mais trabalhador e corajoso.Mas a mãe tinha preferência pelo
mais carinhoso e meigo, que era Sylvinet.
Pôs-se então a observar o filho, pálido e desfigurado, e a pensar que seria uma
grande pena
empregá-lo tão cedo; o seu Landry tinha mais coragem para suportar o trabalho e a
separação. É
uma criança que tem um grande sentido da responsabilidade, pensava; <<e, no
entanto, se não
fosse um pouco duro de coração, não teria partido assim, sem voltar a cabeça e sem
derramar
uma única lágrima. Não teria tido força para dar dois passos sem cair de joelhos
implorando
coragem a Deus e ter-se-ia aproximado do meu leito, onde eu fingia dormir, nem que
fosse só
para me lançar um último olhar ou mandar um beijo com a ponta dos dedos. O meu
Landry É
mesmo um verdadeiro rapaz. Só quer é viver, mexer, trabalhar e mudar de lugar. Mas
este, tem
um coração de rapariga; é tão terno e tão meigo, que não podemos evitar amálo com
toda a
ternura.
Assim pensava a tia Barbeau, ao voltar para a cama, sem mais conseguir adormecer,
enquanto o tio Barbeau levava Landry através dos prados em direção a Priche. Quando
chegaram
a uma pequena colina, de onde já mal se distinguiam as casas de Cosse, Landry parou
e voltouse. O coração apertou-se-lhe e teve de sentar-se, incapaz de andar. O pai
fingiu não notar e
continuou. Ao fim de um momento, chamou-o suavemente: — Começa a fazer dia, meu
Landry;
temos de apressar-nos, para chegarmos antes do nascer do Sol.
Landry levantou-se, e como jurara não chorar diante do pai, susteve as lágrimas que
lhe
marejavam os olhos e chegou a Priche sem mostrar o seu desgosto, que não era
pequeno.
O tio Caillaud, vendo o mais forte dos gémeos, ficou todo satisfeito por o receber.
Sabia bem que tal decisão não fora tomada sem pena, e comó era bom homem e muito
amigo do tio Barbeau, esforçou-se por acarinhar e encorajar o jovem rapaz. Mandou
servir-lhe
uma sopa bem quentinha para Lhe dar ânimo, pois bem via o desgosto dele.
Levou-o em seguida consigo para tratar dos animais e mostrou-lhe como o costumava
fazer.
Na verdade, Landry não era novato nessa tarefa, pois o pai tinha um belo par de
bois que ele
várias vezes havia tratado. Assim que o rapaz viu os grandes bois do tio Caillaud,
que eram os
mais bem tratados, os mais bem alimentados e os de melhor raça de toda a região e
arredores,
sentiu-se satisfeito por ter animais tão belos para cuidar. E também estava
orgulhoso por mostrar
que não era desajeitado nem medricas e que sabia o que lhe estavam a ensinar.
Quando chegou a
altura de partir para os campos, todos os filhos do tio Caillaud, rapazes e
raparigas, grandes e
pequenos, vieram saudar o gémeo, e a mais nova das raparigas prendeu-lhe um raminho
de flores
com fitas no chapéu, porque era o seu primeiro dia de serviço e um dia de festa
para a família
que o recebia.
Antes de o deixar, o pai fez-lhe as últimas recomendações em presença do novo
patrão,
ordenando-lhe que obedecesse a tudo e que cuidasse dos animais como se fossem seus.
Landry prometeu esforçar-se ao máximo e foi para o trabalho, onde mostrou boa
vontade e
eficiência durante o dia. Regressou com grande apetite, pois era a primeira vez que
trabalhava
tão duramente — e um pouco de fadiga, que sempre foi um bom remédio contra a
tristeza.
Mas o mesmo não aconteceu ao pobre Sylvinet. Nesse dia reinou grande desolação em
casa
dos Barbeau.
Mal Sylvinet acordou e não viu o irmão ao lado desconfiou da verdade, mas nem
queria
acreditar que Landre tivesse partido sem lhe dizer adeus; e, no meio da sua dor,
uma enorme
zanga começou a dominar-lhe o espírito. — Mas que Lhe fiz eu e em que lhe
desagradei? — perguntou à mãe. — Fiz tudo o que me
aconselhou; quando me recomendou que não chorasse na sua frente, querida mãe,
retive as
lágrimas, tanto, que a minha cabeça parecia estoirar. Até me prometeu não se ir
embora sem medizer algumas palavras de encorajamento! Queria arranjar umas coisas e
dar-lhe a minha
navalha, que é melhor que a dele... Não me diga, mãe, que lhas arranjou ontem à
noite, sem me
dizer nada, e sabia que ele se queria ir embora sem se despedir de mim? — Cumpri a
vontade de teu pai. — respondeu a tia Barbeau.
E disse-lhe tudo o que conseguiu imaginar para o consolar, embora em vão. Só quando
a viu
chorar, também, é que se agarrou a ela aos beijos, pedindo perdão por lhe ter
aumentado o
sofrimento, prometendo ficar com ela para a compensar. Mas, mal ela o deixou
sozinho, Sylvinet
desatou a correr em direção a Priche, sem sequer pensar para onde ia, deixando-se
arrastar pelo
instinto.
Teria ido até Priche se não tivesse encontrado o pai, que regressava e lhe agarrou
na mão,
dizendo: — Iremos vê-lo à noite. Não deves distrair teu irmão durante o trabalho;
aliás, tua mãe
está muito triste, e conto contigo para a conformares.
Chegados a casa, Sylvinet agarrou-se de novo às saias da mãe, como uma criancinha,
e não
mais a largou durante o dia, falando sem cessar de Landry, passando por todos os
sítios e
recantos onde costumavam estar juntos.
À noite foi a Priche com o pai. Sylvinet estava como louco, iria abraçar o irmão e
nem
conseguira jantar, tal a pressa de partir. Contava que Landry viesse ao seu
encontro e a todo o
momento esperava vê-lo aparecer. Mas Landry, embora cheio de vontade de o fazer,
não se
mexeu. Receava o escárnio da rapaziada de Priche, por causa dessa afeição de
gémeos,
considerada como uma espécie de doença. De modo que Sylvinet foi encontrá-lo ainda
à mesa, a
beber e a comer, como se tivesse passado toda a vida com a família Caillaud.
Contudo, mal Landry o viu entrar, sentiu o coração rejubilar de alegria, e se não
se tivesse
refreado, teria derrubado a mesa e o banco para mais depressa o poder abraçar.
Mas não ousou fazê-lo, em vista de todos o fitarem com curiosidade.
Assim, quando Sylvinet se lançou sobre ele, abraçando-o e chorando, Landry, apesar
de se
sentir feliz, fez sinal ao irmão para se moderar, o que muito espantou e agastou
Sylvinet. Como o
tio Barbeau se pusera a conversar e a beber com o tio Caillaud, os dois gêmeos
saíram juntos,
pois Landry queria ficar a sós com o irmão. Mas os outros rapazes observavam-nos de
longe, e a
pequena Solange, a filha mais nova do tio Caillaud, que era esperta e curiosa, foi
atrás deles,
rindo com ar embaraçado quando eles olhavam para trás, mas nunca os largando de
vista.
Embora Sylvinet tivesse ficado admirado como ar tranquilo com que o irmão o
recebeu, não
pensou em censurá-lo, de tal modo se sentia feliz por estar com ele.
No dia seguinte, como o tio Caillaud o havia dispensado de todo o serviço, Landry
partiu
cedo pen sando surpreender o irmão na cama. Mas, embora Sylvinet fosse o mais
dorminhoco
dos dois, acordou no momento em que Landry transpôs a cancela da casa e saiu a
correr,
descalço, ao seu encontro.
Foi para Landry um dia de felicidade: sentiu prazer em rever a família e a casa,
pois sabia
que não os poderia visitar todos os dias. E Sylvinet esqueceu toda a sua dor.
Tratou do gémeo e acarinhou-o com toda a dedicação, dando-lhe o que havia de melhor
para comer, a melhor fatia de pão, as mais tenras folhas de alface, e depois
preocupou-se com a
sua roupa, e o calçado, como se ele fosse partir para muito longe e fosse digno de
ser lamentado,
sem suspeitar que dos dois era ele o mais digno de lamentar, porque era o mais
infeliz.
A semana seguinte passou de modo igual, com Sylvinet a visitar Landry todos os dias
e
Landry a parar para estar com ele um ou dois minutos quando vinha para os lados de
Cosse;
Landry, aceitando cada vez melhor a sua situação, e Sylvinet aceitando-a cada vez
pior, contando
os dias e as horas como uma alma penada.Só havia uma pessoa no mundo capaz de o
chamar à razão: Landry. Por isso, a mãe recorreu
a ele para tranquilizar Sylvinet, dado que, dia a dia, a tristeza da pobre criança
aumentava. Já não
brincava e só trabalhava quando obrigado. Mal tiravam os olhos de cima dele, partia
sozinho e
escondia-se tão bem que não sabiam onde encontrá-lo. Entrava em todos os campos e
em todas
as ravinas onde costumava brincar com Landry e sentava-se nos troncos onde se
haviam sentado
juntos; metia os pés nos riachos onde haviam chafurdado como dois patinhos. Ficava
contente
quando encontrava algumas aparas de madeira que Landry havia cortado com a navalha,
ou
algumas pedras de que se servira como malha. Recordava a todo o momento a
felicidade perdida.
Em nada o preocupava os tempos que estavam para vir. Só pensava no tempo passado e
consumia-se num delírio sem fim.
Por vezes julgava ver e ouvir o irmão; então falava sozinho, julgando estar a
responder-lhe.
Outras, adormecia onde estava, sonhando com ele; e quando acordava, não conseguia
reter as
lágrimas, chorando de desespero.
Certo dia, vagueando pelas matas de Champeaux, descobriu à beira do riacho um
daqueles
pequenos moinhos que as crianças costumam fazer com gravetos, e que giram com a
corrente da
água. Sylvinet reconheceu-o facilmente, por ser obra do irmão. Ficou radiante por
descobri-lo, e
logo o levou um pouco mais para baixo, onde o riacho fazia um desvio, para o ver
girar e
recordar o entusiasmo que o irmão experimentara da primeira vez. Depois, partiu,
antevendo a
alegria que sentiria por ali voltar no próximo domingo com Landry e mostrar-lhe
como o moinho
era sólido e bem construído.
Mas, entretanto, não conseguiu resistir e voltou lá sozinho, no dia seguinte,
encontrando a
margem do riacho toda revolvida e calcada por patas de animais que certamente foram
beber ao
riacho. Tinham pisado o moinho, reduzindo-o a migalhas.
Sylvinet ficou desolado e, cismando que naquele dia algo de mau iria acontecer ao
irmão,
correu até Priche para se assegurar de que ele estava bem. Aí, sabendo que Landry
não gostava
de o ver por ali de dia, por recear que o patrão se zangasse, contentou-se em
observá-lo de longe,
enquanto ele trabalhava. Acabou por regressar sem nada lhe dizer, envergonhado do
impulso que
tivera.
Como se tornara pálido, dormindo mal e quase não comendo, a mãe andava aflita e não
sabia o que fazer para o consolar. Tentava levá-lo ao mercado ou mandá-lo às feiras
com o pai ou
com os tios, mas nada o interessava nem divertia. O tio Barbeau, sem nada lhe
dizer, tentava
incessantemente convencer o tio Caillaud a tomar os dois gêmeos ao seu serviço.
Porém, este
respondia sempre da mesma forma. — Mesmo que aceitasse os dois por uns tempos, isso
não poderia durar muito, pois não
precisaria sempre dos dois. Ao fim dum tempo, você tinha de o empregar de novo.
O certo é que, mais cedo ou mais tarde, eles vão ter de se separar. Assim, é melhor
começar
já a habituá-los a não andarem sempre juntos. Seja razoável, meu amigo, e não dê
tanta atenção
aos caprichos de uma criança demasiado mimada. O mais difícil está feito, e pode
crer que ele se
habituará ao resto, se você não ceder.
O tio Barbeau reconhecia perfeitamente que quanto mais Sylvinet via o irmão, mais
vontade
tinha de o ver. E prometia a si próprio arranjar-lhe emprego na próxima feira, a
fim de que,
vendo cada vez menos Landry, ele tomasse o hábito de viver como os outros e não se
deixasse
arrastar por uma amizade que se estava a transformar em obsessão.
Mas ainda era cedo para falar nisso à tia Barbeau, pois, mal se puxava pela
conversa,
rompia num pranto interminável dizendo que Sylvinet não resistiria a tal provação,
de modo que
o tio Barbeau não insistia.Landry, aconselhado pelos pais, não deixava de chamar à
razão o seu infeliz irmão. Sylvinet
não se defendia, prometia tudo, mas não conseguia dominar-se. Para além da tristeza
havia agora
um outro sentimento inexplicável: crescia-lhe no fundo do coração um ciúme terrível
em relação
a Landry. Se por um lado estava contente por ver toda a gente estimá-lo e os novos
patrões
tratarem-no amigavelmente, por outro, afligia-o e ofendia-o ver Landry retribuir
demasiado,
segundo ele, essas novas amizades. Não podia suportar que, a uma palavra do tio
Caillaud, ele
corresse prontamente a cumprir a sua vontade, abandonando pai, mãe e irmão, mais
preocupado
em não faltar ao dever do que à amizade pela família.
Então, a pobre criança meteu na cabeça que era o único a amar e que o seu afeto já
não era
correspondido, pois que o irmão tinha encontrado noutro lugar pessoas que lhe
agradavam mais.A fuga
Landry não fazia a menor ideia do ciúme do irmão, pois jamais tivera ciúmes fosse
de quem
fosse. Quando Sylvinet ia visitá-lo a Priche, Landry, para o distrair, mostrava-lhe
os bois e as
vacas, o rebanho de ovelhas e as searas do tio Caillaud, pois gostava e apreciava
tudo aquilo, não
por inveja, mas pelo amor ao trabalho bem feito e pela beleza e perfeição das
coisas do campo.
Não podia suportar que tudo o que pudesse viver e prosperar fosse abandonado,
desleixado ou
desprezado. Sylvinet olhava para tudo com indiferença e arreliava-se pelo irmão
levar tão a peito
coisas que não lhe pertenciam.
Irritadiço, dizia a Landry: — Estás muito afeiçoado a estes animais! Já nem sequer
te lembras dos nossos, tão meigos
e tão nossos amigos. Vê lá se pediste notícias da nossa vaca, que dá um leite tão
bom e me olha
com um ar tão triste, pobre animal, quando lhe dou de comer, como se compreendesse
que estou
sozinho e quisesse perguntar pelo outro gêmeo! — Sim, é verdade, é um bom animal —
dizia Landry —, mas olha para estas! Nunca na tua
vida viste tanto leite. — É possível — continuou Sylvinet —, mas a ser um leite tão
bom e uma nata tão cremosa
como a da Brunette, aposto que não, porque as pastagens de Cosse são melhores do
que estas.
Discutiam, assim, por tudo e por nada. De um lado, uma criança contente por
trabalhar e
viver onde quer que fosse e como fosse e, do outro, a que não podia compreender que
o irmão
tivesse momentos de alegria e tranquilidade.
Se Landry o levava ao jardim do patrão e, enquanto conversava com ele,
inconscientemente,
se interrompia para cortar um ramo morto ou arrancar uma erva daninha, Sylvinet
zangava-se por
ele ter sempre na ideia o trabalho em vez de estar como ele, atento ao menor gesto,
à menor
vontade do irmão. Não deixava transparecer porque tinha vergonha de se sentir tão
sensível a
tudo; mas no momento da partida, dizia-lhe frequentemente: — Bom, por hoje já
chega! Se
calhar, até já estás farto.
Landry não compreendia o significado daquelas censuras que o mortificavam e, por
sua vez,
repreendia o irmão, que não queria nem podia explicar-se.
Se o pobre rapaz tinha ciúmes das mais pequenas coisas que entretinham Landry,
sentia-os
mais fortemente ainda com as pessoas por quem Landry mostrava afeto. Não suportava
ver
Landry em franca camaradagem ou de bom humor com os outros rapazes de Priche, e
quando o
via tomar conta da pequena Solange, censurava-o por se esquecer da irmã Nanette,
que no seu
entender era cem vezes mais engraçada, mais limpa e mais amável que aquela
desenxabida.
Mas, como um coração devorado pelo ciúme perde todo o sentido da justiça, quando
Landry
vinha a casa, parecia também, segundo ele, ocupar-se demasiado da irmãzinha.
Sylvinet
censurava-o por só ligar à pequena, acusando-o de se sentir aborrecido na sua
companhia.
Enfim, a sua amizade tornou-se pouco a pouco tão exigente e o seu humor tão triste,
que
Landry começou a sofrer com isso e a espaçar as visitas. As incessantes acusações
começavam a
saturá-lo, pois dir-se-ia que Sylvinet se sentiria menos infeliz se pudesse fazer o
irmão tão infeliz
como ele. Landry tentou fazer-lhe compreender que a amizade, quando demasiada, pode
por
vezes tornar-se um mal. Sylvinet nem quis ouvir, considerando mesmo uma rudeza o
que o
irmão Lhe dizia; de modo que começou a amuar, e a passar semanas inteiras sem ir a
Priche mas
morrendo de desejo de o fazer.Aconteceu que, de palavras em palavras, de zangas em
zangas, Sylvinet levando sempre a
mal tudo o que Landry lhe dizia para o chamar à razão, o pobre Sylvinet chegou a
sentir tanto
despeito, que imaginou por momentos odiar o irmão. E, um domingo, saiu de casa para
não
passar o dia com ele.
Esta maldade infantil entristeceu sobremaneira Landry. Gostava do prazer e da
agitação,
porque cada dia se tornava mais forte e desembaraçado. Em todos os jogos era o
primeiro e o
mais esperto. Era, pois, um pequeno sacrifício que fazia pelo irmão abandonar os
alegres rapazes
de Priche, todos os domingos, para passar o dia inteiro em Cosse, onde não podia de
modo algum
falar a Sylvinet em irem brincar para o largo, nem sequer passear até um sítio
qualquer. Sylvinet,
que ficara mais criança de corpo e espírito do que o irmão e só tinha uma ideia, a
de o amar e ser
amado de igual modo, queria que fossem sozinhos para os seus sítios, como dizia,
para os
recantos e esconderijos onde tinham brincado a jogos que já não eram próprios da
idade: fazer
moinhos, armadilhas para os pássaros, casinhas de pedra, etc. .
Estes divertimentos já não eram ao gosto de Landry, que preferia agora conduzir um
grande
carro de seis bois, a montar uma armadilha para os pássaros, ou ir bater-se com os
rapazes mais
fortes da terra, jogando o chinquilho, visto que se tornara um hábil jogador.
Quando Sylvinet
consentia em acompanhá-lo, em vez de ir brincar, mantinha-se a um canto sem falar,
pronto a
aborrecer-se e a lamentar-se, quando Landry parecia demasiado entusiasmado com o
jogo.
Landry também já aprendera a dançar em Priche, e embora este gosto tivesse chegado
tardiamente, por causa de Sylvinet nunca o ter tido, já dançava tão bem como
qualquer outro. Era
considerado bom dançarino de bourré e embora não sentisse ainda grande prazer em
ter de beijar
as raparigas, como é costume em cada dança, não se furtava a fazê-lo, pois
significava que estava
a abandonar o estado de criança.
Sylvinet viu-o dançar uma vez, e isso foi a causa de uma das suas maiores brigas.
Ficara tão encolerizado por o ver beijar uma das filhas do tio Caillaud, que
chorava de
ciúmes e achara a coisa perfeitamente inadmissível.
Assim, cada vez que Landry sacrificava a diversão à amizade do irmão, passava um
domingo bem pouco divertido, e, apesar disso, nunca faltava, sabendo quanto
Sylvinet lhe ficava
agradecido, jamais lamentando o aborrecimento que suportava, pois sabia o prazer
que
proporcionava ao gêmeo.
Por conseguinte, quando soube que o irmão, que durante toda a semana procurara
discórdia,
saíra de casa para não se reconciliar com ele, ficou triste e, pela primeira vez
desde que deixara a
família, chorou escondido com verdadeiro desgosto, pois tinha vergonha de mostrar a
mágoa aos
pais, temendo entristecê-los.
Se alguém devia sentir ciúmes, esse alguém seria Landry. Sylvinet era o preferido
da mãe, e
até o tio Barbeau, embora tivesse uma ligeira preferência por Landry, se mostrava
mais
complacente para com Sylvinet. Este último, sendo o menos forte e o menos razoável,
era
também o mais mimado e receavam contrariá-lo mais do que ao outro. Tinha mais
sorte, pois
estava com a família.
Landry fez pela primeira vez este raciocínio e achou o gémeo injusto para com ele.
Até aí, o seu coração havia-o impedido de o julgar ou de o acusar, condenando-se a
si
próprio por ter boa saúde e demasiado amor ao trabalho e por não saber dizer
palavras tão doces
como o irmão. Mas desta vez não lhe encontrava qualquer desculpa, pois, para não
faltar nesse
dia, renunciara a uma bela pescaria com os rapazes de Priche, que até lhe haviam
prometido um
bom divertimento se fosse com eles. Resistira portanto àquela tentação, o que,
naquela idade, era
digno de louvar.Chorava quando também ouviu alguém chorar não longe dali. Landry
depressa reconheceu
a mãe e correu ao seu encontro. — Oh Meu Deus! Porque será que esta criança me dá
tantos cuidados? — perguntava ela a
soluçar. — Qualquer dia ainda se mata. — Minha mãe, sou eu, que lhe dou tanto
cuidado? — interrogou Landry, atirando-se-lhe ao
pescoço. — Se sou eu, castigue-me, mas não chore. Se a magoei, peço-lhe perdão.
Aí, a mãe reconheceu que Landry não tinha tão mau coração como frequentemente
imaginara. Abraçou-o com força, explicando-lhe que era de Sylvinet, e não dele, que
se
queixava. Pediu desculpa por às vezes ser injusta com ele, mas Sylvinet parecia
estar a ficar
louco, e por isso estava preocupada, pois ele partira sem comer, antes da alvorada;
o dia estava
prestes a terminar e ele não regressava; haviam-no visto para os lados da ribeira,
e temia que
tivesse decidido pôr termo à vida.
A ideia de que Sylvinet pudesse ter tido vontade de morrer assustou Landry, que
imediatamente partiu à procura do irmão. Enquanto corria, sentia enorme desgosto e
pensava:
Talvez a mãe tivesse razão ao censurar-me o mau coração. Mas, neste momento, o de
Sylvinet
deve estar bem doente para causar esta dor à nossa pobre mãe e a mim.
Correu por todos os lados sem o encontrar, chamando-o sem obter resposta,
perguntando
por ele a toda a gente sem qualquer resultado. Parou por fim em frente do prado do
Juncal e
lembrou-se de que havia ali um lugar muito do agrado de Sylvinet.
Era uma grande fenda, que a ribeira fizera nas terras, desenraizando dois ou três
troncos que
ficaram atravessados na água. O tio Barbeau não os retirara porque, da maneira como
estavam
caídos, ajudavam a segurar as terras.
Landry aproximou-se da fenda, nome que o irmão e ele davam àquela zona do juncal.
Não
perdeu tempo a ir até ao canto onde tinham feito umas escadinhas para facilitar a
descida. Saltou
do ponto mais alto para chegar mais rapidamente ao fundo da fenda, porque havia
frente à
margem da ribeira tanta ramagem e tantas ervas altas que se o irmão se encontrasse
ali não o
veria.
Entrou impressionado, pois não lhe saía do pensamento o que a mãe lhe dissera.
Revistou e tornou a revistar toda a folhagem e bateu todas as ervas, chamando
Sylvinet e
assobiando pelo cão, que sem dúvida andava com ele, pois também havia desaparecido.
Mas Landry chamou e procurou inutilmente; estava sozinho na fenda. Como era um
rapaz
esperto, consciente do que fazia, examinou toda a margem para ver se havia pegadas.
Foi uma
busca triste e também embaraçosa, pois havia algum tempo que Landry não ia àquele
sítio; e,
embora o conhecesse bem, havia pequenas mudanças.
Toda a margem direita estava arrelvada, o junco havia crescido tão abundantemente
que não
deixava lugar para procurar uma pegada. Todavia, à força de pesquisar o local,
Landry encontrou
a pista do cão, e até um lugar com ervas pisadas, como se o Finot ou outro cão
qualquer se
tivesse aí espojado.
Isto deu-lhe que pensar, tendo ido examinar a margem da ribeira. Pareceu-lhe
distinguir um
sulco ainda fresco, como uma marca feita por um pé ao saltar, e embora não tivesse
a certeza,
pois também podia ser obra de uma dessas grandes ratazanas de água, que devastam,
escavam e
esburacam semelhantes locais, ficou tão triste, tão triste, que, sentindo as pernas
a tremerem, caiu
de joelhos, como a implorar forças a Deus.
Ficou assim durante algum tempo, sem força nem coragem para contar a alguém a sua
angústia, fitando a ribeira com os olhos cheios de lágrimas, como à espera de uma
resposta sobre
o irmão.Mas a ribeira corria tranquilamente, agitando-se nos ramos que pendiam e
mergulhavam nas
águas, deslizando com pequenos gorgulhos, como alguém que ri e goza à socapa.
O pobre Landry começou a desesperar, subjugado por aquela ideia de desgraça, tão
forte
que o deixava sem forças.
Este malvado rio não fala, pensava, é bem capaz de me deixar chorar um ano inteiro
sem
me devolver o meu irmão. Meu Deus! O meu pobre gémeo estará talvez no fundo da
água, a dois
passos de mim, sem que eu o possa ver ou encontrar no meio destes ramos e juncos
Então
desatou a chorar e a repreender ao mesmo tempo o irmão, pois nunca tivera tamanho
desgosto.
Veio-lhe por fim à ideia ir consultar uma viúva a quem chamavam tia Fadet, e que
vivia ao
fundo do prado do Juncal, perto do caminho que levava até ao vau. Essa mulher, que
não possuía
outra terra nem outros bens que não fossem o jardinzinho e a casinha, ganhava a
vida graças aos
seus preciosos conhecimentos sobre as virtudes das plantas; e de todos os lados iam
consultá-la.
Sabia curar feridas, entorses e qualquer outro mal. Tomava ares de importante, pois
libertava as
pessoas de doenças como dores de estômago, de barriga, de cabeça, etc.
E assim, com os bons remédios que conhecia e aplicava no corpo, como os soberbos
emplastros que aplicava nos cortes e queimaduras; com as beberagens que fazia para
tirar a
febre, não havia dúvida de que ganhava bom dinheiro e curava muitos doentes que os
médicos
não conseguiriam salvar com um tratamento normal. Era pelo menos o que ela dizia, e
aqueles
que curava preferiam acreditá-la do que arriscar-se.
Como no campo ninguém é sábio sem ter um pouco de feiticeiro, muita gente pensava
que a
tia Fadet sabia mais do que confessava, e atribuíam-lhe mesmo o poder de encontrar
coisas
perdidas, até pessoas; enfim, pelo facto de possuir grande clareza de espírito e
sensatez, pediamlhe frequentemente conselhos.
Como as crianças acreditam facilmente em todas as histórias que lhes contam, Landry
ouvira dizer em Priche que a tia Fadet, com o auxílio de certa semente, que atirava
à água e
pronunciando certas palavras, podia encontrar o corpo de uma pessoa afogada. Essa
semente
boiava e deslizava na água, e onde parasse era seguro encontrar-se ali o corpo.
Landry decidiu então ir até à casa da tia Fadet, contar-lhe a sua desgraça e rogar-
lhe que
fosse com ele até à fenda, para tentar encontrar com a semente o irmão, vivo ou
morto.
Mas a tia Fadet, que não executava os seus talentos sem mais nem menos, zombou dele
e
mandou-o embora com dureza, pois tinha um certo rancor pela sua família, por terem
outrora
chamado a tia Sagette, em vez dela, aquando do parto dos gêmeos.
Landry, orgulhoso por natureza, noutra altura ter-se-ia talvez queixado ou zangado,
mas
estava tão acabrunhado que nada disse e partiu direito à fenda, decidido a entrar
na água, apesar
de não saber nadar. Entretanto ao avançar, cabisbaixo e de olhos fixos no chão,
sentiu que
alguém lhe batia no ombro e, voltando-se, deu de caras com a neta da tia Fadet, a
quem todos
chamavam a pequena Fadette , e tanto por ser o nome de família como por pretenderem
que ela
era também um pouco feiticeira. Todos sabem que o duende, ou o diabrete, é um
espírito muito
gentil, mas um pouco travesso. O certo é que toda a gente, ao vê-la passar, pensava
ver um
duende, de tal modo era pequena, magra, desgrenhada e atrevida. Era uma
rapariguinha muito
faladora e trocista, viva como uma borboleta, curiosa como um pardalito e escura
como um grilo.
Comparar a pequena Fadette a um grilo é subentender que não era bonita, pois esse
pobre
bichinho é bem pouco agradável ao olhar. No entanto, se nos recordarmos, em
criança, de ter
brincado com ele, fazendo-o enraivecer e gritar, sabemos que tem um aspecto bem
tolo e que dá
mais vontade de rir do que irritar. Assim, as crianças de Cosse, que não são mais
patetas do que
as outras, sabendo observar as semelhanças e encontrar comparações, chamavam à
pequenaFadette grilo quando a queriam fazer zangar, e até às vezes por amizade,
pois, embora a
temessem por causa da sua malícia, não a detestavam porque ela sabia contar toda a
espécie de
histórias e ensinava-lhes jogos novos que ela própria inventava.
Mas, fossem quais fossem os apelidos que lhe davam, o nome que ela recebera no
batismo
era Françoise; a avó chamava-lhe sempre Fanchon.
Como existia há muito uma desavença entre a família Barbeau e a tia Fadet, os
gêmeos
pouco falavam com a pequena Fadette, e nunca haviam brincado de bom grado com ela
nem com
o irmão mais novo, o saltão, que era ainda mais espigado e mais travesso que ela,
sempre
pendurado a seu lado, zangando-se quando ela corria sem esperar por ele, atirando-
lhe pedras
quando se ria dele, numa raiva desmedida. Certas pessoas, e particularmente a
família do tio
Barbeau, imaginavam que a tia Fadet, o grilo e o saltão lhes trariam azar se
travassem amizade
com eles. Isso, porém, não impedia a pequena Fadette de abordar os gêmeos com toda
a espécie
de gracinhas e alcunhas, assim que os via, troçando da sua semelhança.
Assim, Landry ao virar-se, um pouco aborrecido por causa da palmada que acabava de
receber no ombro, deparou com a pequena Fadette e, não longe dela, Jeanot, o
saltão, a coxear,
pois era deficiente de nascença.
O primeiro gesto de Landry foi não prestar atenção e continuar caminho, pois não
estava
com disposição para brincadeiras, mas Fadette disse, tocando-lhe no ombro: — Olha o
lobo!
Olha o lobo! Olha o gémeo parvo, meio rapaz, que perdeu a outra metade!
Nisto, Landry, que não estava disposto a ser insultado nem arreliado, deu uma
reviravolta e
atirou um soco rápido à rapariga, que lhe teria acertado violentamente se ela não
se tivesse
esquivado, pois o gémeo ia fazer quinze anos e era bastante vigoroso; e ela, que ia
fazer catorze e
nem doze aparentava, era tão miudinha e tão pequena que parecia quebrar-se ao menor
toque. Só
que geralmente estava atenta e alerta para aparar os golpes, e o que perdia em
força no jogo de
mãos ganhava em rapidez e manha. Saltou para o lado tão oportunamente, que, por
pouco,
Landry não batia com o punho numa grande árvore que ficou entre eles. — Malvado
grilo! — exclamou o gémeo, irado. — É preciso não teres coração para vires provocar
alguém que sofre como eu. Há muito
tempo que andas a arreliar-me, chamando-me meio rapaz. Hoje tenho grande vontade de
te partir
em quatro, a ti e ao teu maldito saltão, para ver se os dois fazem um quarto de
alguma coisa. — Ora essa, belo gémeo, senhor do Juncal à beira-rio! — respondeu a
pequena Fadette,
sempre a rir. — Bem parvo és em te zangares comigo, eu que vinha justamente dar-te
notícias do
teu gémeo e dizer onde se encontra. — Bom, assim já é diferente! — reconsiderou
Landry, mais calmo. — Se o sabes, Fadette,
diz-me e ficarei contente. — Não há Fadette nem grilo que tenham von tade de te
contentar neste momento -
replicou a rapariguita. — Disseste-me palermices e ter-me-ias batido se não fosses
tão
pesado e tão desajeitado. Procura, pois, sozinho a tua metade, já que és tão
esperto para o
encontrar. — Bem parvo sou em te dar ouvidos, malvada rapariga! — exclamou Landry,
virando-lhe
as costas e recomeçando a andar. — Não sabes mais do q eu onde está meu irmão e não
tens
mais conhecimento sobre isso do que a tua avó, que é uma grande mentirosa e
matreira.
Mas a pequena Fadette, puxando pelo saltão, que conseguira pendurar-se na sua saia
toda
rota, seguia Landry, sempre a gracejar, dizendo-lhe que sem ela nunca encontraria o
irmão. De
modo que Landry, não podendo desembaraçar-se dela e imaginando que através de
alguma
feitiçaria a avó ou até ela, por meio de algum pacto com o duende do rio, o
impediriam deencontrar Sylvinet, resolveu sair do Juncal e regressar a casa.
A pequena Fadette seguiu-o até à paliçada do prado e aí, quando ele começou a
descê-la,
empoleirou-se numas estacas e gritou: — Então adeus, belo gémeo sem coração, que
abandona o
irmão. Hás de fartar-te de esperar por ele, não o verás hoje, nem amanhã, pois lá
onde está nunca
o encontrarás.
Vem aí a tempestade, e ainda esta noite hão-de cair árvores ao rio, e o rio há-de
transbordar
e arrastar Sylvinet para longe, tão longe que nunca mais o verás.
Todas estas más palavras, que Landry escutava contrariado, provocaram-lhe um suor
frio
por todo o corpo. Não acreditava nelas, mas, como ouvira dizer que a família Fadet
mantinha
pactos com o diabo, não podia ter a certeza que tudo era mentira. — Vamos, Fanchon
— insistiu Landry, parando —, queres ou não deixar-me em paz ou
dizer-me se é verdade que sabes alguma coisa do meu irmão? — E que tenho eu em
troca se, antes da chuva começar a cair, te fizer encontrá-lo? — inquiriu Fadette,
esticando-se nas estacas, e abanando os braços como se quisesse levantar
voo.
Landry hesitava no que prometer-lhe e começava a acreditar que ela o queria enganar
para
lhe arrancar algum dinheiro. Mas o vento que soprava nas árvores e a trovoada que
ameaçava,
começavam a inquietá-lo. Não que temesse a tempestade, mas porque viera tão de
repente e de
uma maneira que não lhe parecia natural. É possível que, no seu tormento, Landry
nem a tivesse
sentido aproximar. Mas, de facto, só reparara nela quando a pequena Fadette lha
anunciara, e
imediatamente os seus horríveis cabelos pretos, saindo da touca, que trazia sempre
mal apertada
e torcida, se ergueram como crinas; o boné do saltão foi levado por uma rajada de
vento, e só
com grande custo Landry conseguiu impedir o seu de voar também.
E depois o céu, em dois minutos, tornou-se negro, e Fadette, em cima das estacas,
pareciaLhe ter o dobro do tamanho; enfim, numa palavra, Landry teve medo. —
Fanchon! — disse —, entrego-me a ti se me entregares o meu irmão. Talvez o tenhas
visto; talvez saibas onde está. Sê boa rapariga. Não sei que satisfação podes ter
com a minha
aflição. Mostra-me que tens bom coração e acreditarei que vales mais do que esse
teu ar gozão. — E porque hei de ser eu boa rapariga, se me chamas malvada quando
nada te fiz? — perguntou. — Porque hei de ter bom coração para com dois gêmeos
orgulhosos como pavões, que
nunca me demonstraram a menor amizade? — Vá lá, Fadette — insistiu Landry. — Queres
que te prometa alguma coisa? Diz-me o que
desejas e dar-te-ei. Olha, por exemplo, queres a minha navalha nova? — Mostra-me! —
disse Fadette, saltando para ao pé dele.
Quando viu a navalha, que não era má e pela qual o padrinho de Landry pagara bom
preço,
ficou um momento tentada; mas logo, achando pouco, perguntou se não lhe dava antes
aquela
galinha branca, do tamanho de uma pomba, que tinha penas muito bonitas. — Não te
vou prometer a galinha branca, porque é da minha mãe — respondeu Landry —,
mas vou pedi-la para ti. Penso que ela não ta negará, pois ficará tão contente por
poder tornar a
ver Sylvinet, que nada lhe parecerá demasiado. — É mesmo? — inquiriu, a pequena
Fadette. E se eu quisesse o vosso cabrito com o
focinho preto, a tia Barbeau também mo dava? — Meu Deus! Como levas tempo a
decidir-te, Fanchon! Olha, se o meu irmão está em
perigo e tu me conduzires já até ele, não haverá em nossa casa nada que o meu pai e
a minha mãe
não te quererão dar em agradecimento, tenho a certeza.— Bom, depois veremos, Landry
— rematou Fadette, estendendo a mãozinha seca ao
gémeo, para que ele a apertasse em sinal de acordo, o que ele fez não sem hesitar
um pouco,
pois, naquele momento, ela tinha uns olhos tão brilhantes que parecia um autêntico
diabrete. —
Não te digo agora o que quero de ti, ainda não o sei; mas lembra-te bem do que me
estás a
prometer, e se falhares, toda a gente saberá que não se pode ter confiança na
palavra do gêmeo
Landry. Agora vou-me embora, e não te esqueças de que não te exigirei nada até ao
dia em que
decidir ir ter contigo para que me dês o que me aprouver. — Até que enfim, Fadette!
Está prometido e combinado — disse Landry, apertando-lhe a
mão.— Muito bem! — exclamou ela, com um ar orgulhoso e contente. — Volta para trás
e
segue sempre a margem do rio; desce-a até ouvires um balido, e quando vires um
cordeiro
castanho, logo verás o teu irmão; se tal não acontecer, a tua promessa fica sem
efeito.
Então o grilo, levando o saltão nos braços, sem reparar que isso não lhe agradava
nada e se
debatia como uma enguia, saltou para o meio das moitas e Landry deixou de a ver.
Não perdeu tempo a pensar se a pequena Fadette estava a brincar, e numa rápida
corrida
chegou ao fundo do Juncal; seguiu-o até à fenda e ia a passar diante dela, sem
descer, pois tinha
quase a certeza de que Sylvinet não se encontrava ali, quando, ao afastar-se, ouviu
um cordeiro
balir.
Deus da minha alma, pensou, aquela rapariga avisou-me; ouço o cordeiro, o meu irmão
também lá deve estar; mas em que estado, não sei.
Saltou para a fenda, mas o irmão não estava lá. Seguiu o curso da água, e sempre a
ouvir os
balidos, Landry avistou na outra margem o irmão sentado, com um cordeirinho ao colo
que, de
facto, era castanho, desde o focinho até à ponta da cauda.
Como Sylvinet parecia estar bem, não apresentando sinais anormais, Landry ficou tão
contente que agradeceu interiormente a Deus aquela felicidade, sem se lembrar de
lhe pedir
perdão por ter recorrido à ciência do Diabo para encontrar o irmão. Quando ia
chamar por
Sylvinet, que ainda não o vira, nem parecia ouvi-lo, por causa do barulho da água
que naquele
sítio batia com força nas pedras, parou para o observar, espantado por o encontrar
como a
pequena Fadette previra, no meio das árvores que o vento fustigava furiosamente e
imóvel como
uma pedra.
No entanto toda a gente sabia o perigo que aquele local representava quando se
levantavam
fortes ventanias. Todas as margens estavam ocas por baixo e não havia tempestade
que não
abatesse sempre alguns amieiros, mais curtos de raízes, e que podiam cair muito
facilmente em
cima de uma pessoa, sem avisar. Mas Sylvinet, sem ser mais tolo nem mais louco que
qualquer
outro, não se apercebia do perigo. Fatigado de correr todo o dia e de andar à
aventura, se, por
felicidade, não se afogara na ribeira, mergulhava agora no desgosto e no despeito,
quedo que
nem um cepo, com os olhos fixos na ribeira, o rosto pálido como cal, a boca
entreaberta, os
cabelos desgrenhados pelo vento, sem ao menos atentar no cordeirinho, que
encontrara perdido
num prado e do qual tivera pena. Tinha-o enfiado na camisa para o levar a casa;
mas, no
caminho, esquecera-se de perguntar a quem ele pertencia. Segurava-o nos joelhos e
deixava-o
berrar sem o ouvir, apesar do balido desolado do pobrezinho e dos olhares que
lançava em redor,
espantado por não ser ouvido por ninguém da sua espécie e não reconhecendo nada do
que o
rodeava, naquele lugar sombrio, diante de um grande curso de água que lhe causava
medo.
Se Landry não estivesse separado de Sylvinet pelos quatro ou cinco metros de
largura da
ribeira, que em certos sítios também era tão profunda, teria por certo saltado sem
mais pensar,
agarrando-se ao pescoço do irmão. Mas como Sylvinet ainda não reparara nele, teve
tempo parapensar na maneira como o despertaria daquela prostração e como, pelo
convencimento, o levaria
para casa, pois, se ele não tivesse vontade de regressar e se afastasse para outro
local, Landry iria
perder tempo a procurar um caminho para ir ter com ele, sujeitando-se a perdê-lo de
novo.
Tendo pensado durante um bocado, Landry perguntou-se como agiria o pai, reflectido
e
prudente, em semelhante circunstância. Lembrou-se que o tio Barbeau atuaria dum
modo suave e
sem nada dar a entender, ocultando a Sylvinet a angústia que lhe havia causado e
fazendo-o
sentir-se arrependido, desencorajando-o de uma nova tentativa.
Landry pôs-se então a assobiar distraidamente como se estivesse a chamar os melros
para os
fazer cantar, o que fez Sylvinet erguer a cabeça. Ao ver o irmão, ficou todo
envergonhado e
levantou-se rapidamente, julgando não ter sido visto. Mas aí Landry fez como se
tivesse reparado
nele apenas naquele momento e disse-lhe num tom de voz despreocupado: — Eh,
Sylvinet, então
estás aí? Esperei por ti toda a manhã, e como não havia meio de apareceres, vim dar
um passeio
por aqui. Até pensava encontrar-te já em casa, mas, enfim, já que aqui estás,
voltemos juntos.
Vamos descer a ribeira, um de cada lado, e juntamo-nos no vau das Roulettes, em
frente à casa
da tia Fadet. — Vamos. — Disse Sylvinet, agarrando o cordeiro.
E os dois irmãos desceram a ribeira não olhando um para o outro, como que receosos
de
deixarem transparecer a dor que sentiam por estarem zangados e o prazer que tinham
por se
terem encontrado. De vez em quando, Landry, sempre para parecer que não havia
qualquer
problema entre ambos, dizia-lhe uma ou duas palavras.
Perguntou onde apanhara aquele cordeirinho castanho, mas Sylvinet não queria
adiantar
muita coisa, pois não podia confessar que fora até muito longe, sem saber o nome
dos sítios por
onde passara. Então, Landry, vendo-o atrapalhado, ajudou-o: — Contas-me tudo mais
tarde, o
vento está muito forte e não é bom estar debaixo das árvores perto da água. Olha,
louvado seja
Deus! Está a começar a chover e assim, talvez o vento não tarde a abrandar.
E pensava para si: É mesmo verdade! O grilo afirmou-me que o encontraria antes da
chuva
começar. Essa rapariga sabe mais do que nós.
Mas também se lembrou que passara um bom quarto de hora a explicar-se com a tia
Fadet,
enquanto lhe pedia auxílio e ela lho recusava, a pequena Fadette, que apenas o vira
sair de casa,
podia muito bem ter visto Sylvinet durante esse tempo. Mas como saberia ela o que o
fazia sofrer
quando o abordara, se não estava presente enquanto ele falou à velhota? Desta vez
não lhe veio à
ideia que perguntara pelo irmão a várias pessoas e que alguém pudera falar nisso à
pequena
Fadette; ou, ainda, que a miúda podia ter escutado a conversa com a avó, escondida
como era seu
hábito para saber tudo o que lhe podia satisfazer a curiosidade.
Por seu turno, o pobre Sylvinet pensava igualmente na maneira de explicar o seu mau
comportamento em relação ao irmão e à mãe. Não sabia o que inventar, ele, que nunca
escondera
coisa alguma ao irmão. Por isso, sentia-se pouco à vontade passado o vau, pois
chegara até ali
sem encontrar solução para sair da encrenca.
Assim que chegou à margem, Landry abraçou-o com maior ternura do que era costume,
mas
evitou interrogá-lo, pressentindo que ele não saberia que responder, e levou-o para
casa, falandolhe de outros assuntos menos daquele que Lhe ia no coração.
Ao passarem pela casa da tia Fadet, Landry tentou avistar a pequena Fadette, pois
gostaria
de lhe agradecer, mas a porta estava fechada e não se ouvia outro ruído além da voz
do saltão,
que gritava porque a avó lhe batera, o que sucedia todas as noites, tivesse ele
merecido ou não.
Sylvinet apiedou-se ao ouvir chorar o garoto e disse ao irmão: — Que casa horrível!
Só se
ouvem gritos e pancadas. Bem sei que o saltão é um traquinas terrível, e o grilo
não é melhor,mas aqueles miúdos são infelizes por não terem pais e por dependerem
de uma velha feiticeira,
que nunca lhes perdoa nada. — Não é como em nossa casa! — acrescentou Landry. — O
pai e a mãe nunca nos bateram,
e até quando nos ralhavam, por causa das nossas traquinices de crianças, era com
tanta doçura e
firmeza ao mesmo tempo, que os vizinhos nada ouviam. Há gente assim, demasiado
feliz, que
por vezes nem sabe dar o valor ao que teve ou tem. E a pequena Fadette, que é uma
criança
infeliz e maltratada, está sempre a rir e nunca se queixa seja do que for!
Sylvinet compreendeu a censura e sentiu arrependimento pelo erro cometido. Já de
manhã,
por várias vezes se sentira invadido pelo remorso e com vontade de regressar, mas a
vergonha
impedira-o. E nesse momento não conseguiu dominar-se e lacrimejou, mas o irmão
pegou-lhe na
mão, dizendo: — Vem aí uma grande chuvada, Sylvinet; vamos depressa para casa.
Desataram então a correr, com Landry a tentar fazer rir Sylvinet, que se esforçava
por lhe
agradar.
Contudo, quando iam a entrar em casa, Sylvinet mostrou certa hesitação, com temor
da
reprimenda do pai. Mas o tio Barbeau, que não levava as coisas tão a sério como a
mulher,
limitou-se a gracejar com a escapadela. A tia Barbeau, a quem o marido tinha dado a
lição,
tentou esconder o tormento por que passara. Mais tarde, quando ocupada a secar os
gêmeos
diante do lume e a dar-lhes de comer, Sylvinet reparou que a mãe estivera a chorar
e que, de vez
em quando, o fitava com ar preocupado e desgostoso. Se estivessem sozinhos, ter-
lhe-ia pedido
perdão, lançando-se-lhe nos braços, e ela acabaria por ficar consolada. Mas o pai
não gostava
dessas pieguices, e o rapaz viu-se obrigado a ir para a cama, após o jantar, pois a
fadiga vencerao por completo. Não tinha comido nada em todo o dia, e mal acabou de
engolir o jantar sentiu-se
como que embriagado e teve de se deixar despir e deitar pelo gémeo, que permaneceu
a seu lado,
sentado na beira da cama e segurando-lhe a mão.
Quando o viu bem adormecido, Landry despediu-se dos pais, não se apercebendo que a
mãe
o abraçava com mais ternura que das outras vezes. Continuava porém a acreditar que
ela não
podia amá-lo tanto como ao irmão, o que achava normal, não sentindo por isso
ciúmes, em vista
do temperamento mais afetuoso do gêmeo. Aceitava o facto por respeito à mãe e por
amor ao
Irmão, que tinha, mais do que ele, necessidade de carinho e consolo.
Na manhã seguinte, Sylvinet correu para a cama da tia Barbeau, antes de ela se
levantar, e,
abrindo o coração, confessou o seu arrependimento e a sua vergonha. Disse como se
sentia
infeliz de há uns tempos para cá, não tanto por estar separado de Landry, mas sim
porque
imaginava que Landry já não o amava. Mas quando a mãe o interrogou sobre essa
injustiça, não
soube explicar os motivos, pois resultavam de uma espécie de doença que não podia
evitar. A
mãe compreendia-o melhor do que desejaria dar a entender, porque ela própria ficara
várias
vezes ressentida ao ver Landry tão tranquilo na sua coragem e virtude. Não podia
contudo deixar
de reconhecer que os ciúmes são maus conselheiros em todos os amores, mesmo nos que
Deus
mais abençoa, e não encorajou Sylvinet. Fez-lhe ver o desgosto que causara ao irmão
e a
bondade deste por não se queixar nem se mostrar chocado. Sylvinet, arrependido,
também o
reconheceu e concordou que o irmão era muito mais franco que ele. Parecia sincero
ao prometer
tentar curar-se daqueles ciúmes terríveis.
Mas, apesar de ter apresentado um ar consolado e satisfeito, de a mãe lhe ter
enxugado as
lágrimas e respondido a todos os lamentos com palavras reconfortantes, ficou-lhe no
coração
uma certa amargura. A minha mãe, pensava ele, tem razão ao dizer que o meu irmão é
o mais
franco e o mais recto de nós dois, mas se ele me amasse tanto como eu a ele, não
reagiria tão
calmamente.E recordava o ar tranquilo e quase indiferente de Landry ao encontrá-lo
na margem do
ribeiro. Lembrava-se de como o ouvira assobiar aos pássaros, no preciso momento em
que
pensava realmente em atirar-se à água. Julgava que o irmão nunca lhe perdoaria por
ter amuado e
ter fugido da sua companhia. Se tivesse sido ele a fazer-me esta afronta, pensava,
nunca me
consolaria. Estou muito contente por ele me ter perdoado, mas pensava que não seria
tão fácil.
Continuava, assim, o infeliz rapaz a suspirar e a debater-se com tristes
pensamentos.
Porém, como Deus recompensa e ajuda sempre, até os mais pecadores, Sylvinet tornou-
se
mais razoável durante o resto do ano; absteve-se de provocar ou aborrecer-se com o
irmão,
passando a amá-lo de uma forma mais calma, e a sua saúde, que sofrera com todas
aquelas
angústias, melhorou e restabeleceu-se. O pai fê-lo trabalhar mais, apercebendo-se
de que quanto
menos o filho pensasse em si, melhor andava. É claro que o trabalho em casa dos
pais nunca é
tão rude como em casa dos outros, de modo que Landry, que não se poupava ao
trabalho, tomou
mais força e corpo nesse ano do que o irmão. As pequenas diferenças que existiam
entre ambos
tornaram-se mais evidentes.
Depois de terem feito quinze anos, Landry tornou-se num belo rapaz e Sylvinet
manteve-se
um simpático rapazinho, mais fino e mais pálido do que o irmão. Por isso já não
Lhes trocavam
os nomes e, embora continuassem a ter vincadas parecenças, já não se assemelhavam
do mesmo
modo que até ali. Landry, que era considerado o mais novo por ter nascido depois de
Sylvinet,
parecia mais velho um ano ou dois. E isto aumentava a amizade do tio Barbeau, que,
como todas
as pessoas do campo, apreciava a força e a robustez acima de tudo.A promessa de
Landry
Nos primeiros tempos que seguiram à sua aventura com a pequena Fadette, Landry
ainda se
preocupou com a promessa que lhe fizera. Na altura em que ela o ajudou
comprometera-se, em
nome do pai e da mãe, a dar tudo o que houvesse de melhor em casa; mas, quando viu
que o tio
Barbeau não levara muito a sério a escapadela de Sylvinet e não mostrara qualquer
inquietação,
receou que, quando a pequena Fadette viesse reclamar a recompensa, o pai a pusesse
na rua,
troçando da sua ciência e da promessa que Landry fizera.
Tal temor envergonhava Landry, e, à medida que o desgosto se dissipava, o rapaz
julgava
ter sido bem tolo por ter acreditado que havia feitiçaria no que lhe acontecera.
Não tinha a certeza da pequena Fadette ter feito pouco dele, mas também não
encontrava
razões válidas para provar ao pai que fizera bem em aceitar um compromisso
daqueles; por outro
lado, não sabia como romper semelhante promessa, pois jurara por sua honra e
fizera-o
conscientemente.
Verdade se diga que, para admiração sua, nem no dia seguinte, nem durante o mês,
nem
durante a estação, ouviu falar da pequena Fadette em Cosse ou em Priche.
Nem se apresentou em casa do tio Caillaud a pedir para falar com Landry, nem em
casa do
tio Barbeau a reclamar alguma coisa, e quando Landry a viu uma vez, ao longe, no
campo, ela
não foi ter com ele nem pareceu prestar-lhe atenção, o que era pelo menos estranho,
pois corria
sempre atrás de toda a gente, fosse por curiosidade, fosse para rir e brincar com
quem estivesse
bem disposto, fosse para arreliar e provocar os que assim não estavam.
No entanto a casa da tia Fadet era próxima de Priche e de Cosse, daí a
inevitabilidade, mais
dia menos dia, de Landry se cruzar com a pequena Fadette no caminho. E foi o que
aconteceu
num fim de tarde em que a pequena Fadette recolhia os gansos, sempre com o saltão
agarrado a
ela, e Landry, que fora buscar os cavalos ao prado e os levava tranquilamente para
Priche.
Landry ficou vermelho com medo de se ver obrigado a cumprir a promessa, e sem
coragem para
enfrentá-la, assim que a avistou saltou para cima de um cavalo e picou-o para o
lançar a trote.
Chegado perto da pequena Fadette não ousou fitá-la, virando a cara, fingindo olhar
para os
cavalos que o seguiam. Quando olhou de novo, já Fadette o ultrapassara sem lhe
dirigir a
palavra.
Ficou mesmo sem saber se tinha olhado para ele. Só viu o saltão, que, sempre
travesso e
malvado, apanhou uma pedra para atirar às pernas do cavalo, e Landry sentiu uma
grande
vontade de Lhe dar um açoite, mas teve medo de parar e ter de encarar a irmã, pelo
que fingiu
não se aperceber disso, indo-se embora sem olhar para trás.
E de todas as outras vezes que Landry encontrou a pequena Fadette, passou-se mais
ou
menos a mesma coisa, ainda que, pouco e pouco, se fosse atrevendo a fitá-la, pois,
à medida que
o tempo passava, já não se preocupava tanto com uma coisa tão sem importância. Mas
quando
ganhou coragem para a olhar francamente, como que à espera dela se resolver a
falar, ficou
espantado por verificar que a rapariga virava a cara de propósito para o lado. Essa
atitude
confundiu-o e interrogou-se se não fizera mal em nunca Lhe ter agradecido a
felicidade que, por
ciência ou por sorte, lhe causara. Tomou a resolução de a abordar em futuro
encontro.
E assim, ao reencontrá-la, caminhou decidido na sua direção, notando todavia que, à
medida
que se aproximava, a pequena Fadette assumia um ar orgulhoso, quase arrogante, e
decidindo-se
finalmente a olhar para ele, mas fazendo-o duma maneira tão desdenhosa que
Landry,completamente desconcertado, não ousou dirigir-lhe a palavra.
Foi a última vez que Landry se cruzou com ela, pois a partir desse dia a pequena
Fadette,
evitou-o tão bem que, assim que o avistava ao longe, afastava-se no sentido
contrário ou fazia
um grande desvio para não o ver. Landry pensou que ela estava zangada por causa da
sua
ingratidão; mas sentia uma relutância tão grande que não conseguiu decidir-se a
dizer algo para
reparar a falta. A pequena Fadette não era uma criança como as outras. Não era
medrosa nem
acanhada, pois gostava de provocar as injúrias ou as troças, de tal modo sabia ter
a língua bem
afiada para replicar e ter sempre a última palavra e a mais mordaz. Nunca a tinham
visto amuar e
censuravam-lhe a falta de orgulho que convém a uma rapariga de quinze anos.
Comportava-se
como um rapaz e atormentava constantemente Sylvinet, aborrecendo-o e chegando a
fazer-lhe
perder a paciência, quando o surpreendia mergulhado nos sonhos que por vezes ainda
tinha.
Seguia-o quando o encontrava, troçando e martirizando-o, dizendo que Landry não
gostava
nada dele e que ria do seu desgosto. Assim, o pobre Sylvinet, que, ainda mais que
Landry, a
julgava feiticeira, admirava-se por ela lhe adivinhar os pensamentos e detestava-a
por isso. Sentia
desprezo por ela e toda a sua família e, do mesmo modo que ela evitava Landry, ele
evitava o
malvado grilo, e dizia que mais cedo ou mais tarde ela seguiria o exemplo da mãe,
que levara
uma má vida, abandonando o marido e fugindo com os soldados. Partira como feirante
pouco
depois do nascimento do saltão e, desde então, nunca mais se ouvira falar dela. Foi
por isso que a
velha tia Fadet se vira a braços com duas crianças, das quais cuidava muito mal,
tanto por causa
da sovinice como por causa da idade avançada que não lhe permitia vigiá-las nem
trazê-las bem
arranjadas.
Por todos estes motivos, Landry, apesar de menos orgulhoso que o irmão, sentia
desdém
pela pequena Fadette e, lamentando tê-la contactado evitava que alguém o soubesse.
Até o
ocultou ao gémeo, não lhe querendo confessar a preocupação que sentira por sua
causa.
Por seu lado, Sylvinet escondeu-lhe todas as maldades da pequena Fadette para com
ele,
tendo vergonha de confessar que ela adivinhava os seus ciúmes.
Mas o tempo passava. Com a idade dos gêmeos as semanas são como meses e os meses
como anos. Em breve Landry esqueceu a aventura e, após uns tempos angustiado com a
recordação de Fadette, deixou de pensar nisso.
Havia já cerca de dez meses que Landry trabalhava em Priche. Aproximava-se o S.
João,
que era a época do final do seu contrato com o tio Caillaud. O bom homem estava tão
contente
com ele que preferiu aumentar-lhe o salário a deixá-lo partir. E Landry não
desejava mais do que
ficar na vizinhança da família e continuar com a gente de Priche, de quem gostava
muito. Além
de que começava a sentir uma certa amizade por uma sobrinha do tio Caillaud,
chamada
Madelon, que era uma bela rapariga. Tinha mais um ano do que ele e tratava-o ainda
um pouco
como a uma criança; mas isso ia diminuindo de dia para dia e, enquanto ao princípio
troçava
quando ele tinha vergonha de a beijar, nos jogos de dança, agora corava em vez de o
provocar e
já não ficava sozinha com ele.
Madelon não era pobre, e um casamento entre eles poderia ser um caso interessante.
As
duas famílias eram bem vistas e estimadas em toda a região. O tio Barbeau, vendo as
crianças a
procurar-se, dizia ao tio Caillaud que fariam um belo casal e que não haveria mal
em os deixar
travar um bom e longo conhecimento.
Ficou pois combinado, uns dias antes do S. João, que Landry ficaria em Priche e
Sylvinet
em casa dos pais, pois o tio Barbeau estava acamado com febre, e o rapaz era muito
útil no
cultivo das terras. Sylvinet temera muito ser mandado para longe, e essa
inquietação agira nele
como um bem, pois esforçava-se cada vez mais por vencer o excesso de amizade que
tinha porLandry, ou pelo menos para não o dar tanto a entender. A paz e a alegria
tinham regressado a
Cosse, apesar dos gêmeos só se verem uma ou duas vezes por semana. O S. João foi
para eles um
dia de alegria, indo ambos à vila assistir à festa na praça principal. Landry
dançou várias vezes
com a bela Madelon e Sylvinet, para lhe dar prazer, também tentou dançar. Não se
saiu muito
bem, mas Madelon, simpaticamente, pegou-lhe na mão e ajudou-o a marcar o passo.
Sylvinet,
vendo-se assim tratado com tanta deferência, prometeu aprender a dançar, a fim de
partilhar um
prazer a que até ali se negara.
Não sentia muitos ciúmes de Madelon, porque Landry era comedido com ela. Aliás,
Madelon elogiava e encorajava Sylvinet.
Estava à vontade com ele e alguém que desconhecesse o caso julgaria que ele era o
gémeo
preferido. Landry não sentia o menor ciúme. Pensava que Madelon procedia assim para
lhe dar
prazer e ter mais oportunidades de se encontrar com ele.
Tudo correu de vento em popa durante cerca de três meses, até ao dia de Santo
Andoche,
santo padroeiro do burgo.
Esse dia, que era sempre esperado com impaciência pelos dois gémeos, pois havia
danças e
jogos de toda a espécie debaixo dos grandes castanheiros da paróquia, trouxe-lhes
novos e
inesperados desgostos.
Recebendo autorização do tio Caillaud para na véspera ir dormir a Cosse, a fim de
poder
assistir à festa logo pela manhã, Landry partiu antes do jantar, todo contente por
ir surpreender o
irmão, que só o esperava pela manhã. Estava-se em Setembro, mês em que os dias já
são mais
curtos e a noite cai depressa. Landry não receava nada em pleno dia, mas não
gostava de andar
sozinho à noite, sobretudo naquela época do ano, em que os bruxos e os duendes
começam a
divertir-se, graças aos nevoeiros que os ajudam nas suas travessuras e malefícios.
Landry, que costumava sair sozinho a qualquer hora para levar ou guardar o gado,
não
sentia mais inquietação, nessa noite, do que nas outras, mas caminhava depressa e
cantava alto,
como costumava fazer quando estava escuro, buscando maior coragem.
Quando chegou ao vau das Roulettes, arregaçou um pouco as calças, receoso de haver
água
e prestou atenção para caminhar sempre em frente, pois o vau era todo aos
ziguezagues e, tanto à
direita como à esquerda, havia buracos perigosos. Landry conhecia bem o vau e era
impossível
enganar-se. Através das árvores via-se uma pequena claridade que saía da casa da
tia Fadet. E,
guiando-se por essa claridade, por pouco que andasse nessa direção não havia
hipótese de se
enganar no caminho.
Contudo, como estava tão escuro debaixo do arvoredo, Landry foi primeiro tacteando
o vau
com o cajado antes de avançar. Ficou admirado por encontrar mais água do que era
habitual,
além de que ouvia o barulho das comportas, abertas há mais de uma hora. Todavia,
como
avistava a luz da janela de Fadette, arriscou-se. O certo é que ao fim de dois
passos já tinha água
acima do joelho e retrocedeu, julgando ter-se enganado. Tentou um pouco mais acima
e um
pouco mais abaixo, e tanto num como noutro, encontrou covas ainda mais profundas.
Não
chovera, as comportas continuavam abertas... no mínimo, era pois surpreendente.
Devo ter seguido caminho errado, pensou Landry, porque agora, vejo à direita a luz
da tia
Fadet, que devia estar à esquerda.
Refez todo o caminho e andou à roda de olhos fechados para se desorientar; e só
depois de
ter observado bem as árvores em volta encontrou o bom caminho e regressou para a
beira da
ribeira. Mas, embora o vau lhe parecesse conveniente, não ousou dar mais de três
passos, porque
avistou de repente, quase atrás de si, a claridade da casa de Fadette, que deveria
ficar em frente.
Voltou para a margem e a claridade pareceu-lhe estar novamente no sítio certo.
Retomou o vaunoutro sentido e, desta vez, ficou com a água quase até à cintura.
Todavia, continuava a avançar,
julgando sair em breve do buraco.
Teve porém de parar, pois o buraco era cada vez mais profundo, e já tinha os ombros
cobertos. A água estava fria e ele ficou a pensar se devia voltar para trás, pois a
luz parecia-lhe
ter mudado de lugar e até parecia vê-la agitar-se, a correr e saltitar, a passar de
uma margem para
a outra e, finalmente, a desdobrar-se ao refletir-se na água, assinalando a sua
presença com
ligeira crepitação.
Desta vez, Landry teve medo e ia perdendo a cabeça, pois ouvira dizer que não há
nada
mais enganador do que esse fogo; que tinha prazer em fazer extraviar os que o viam
e em
conduzi-los às águas mais profundas, rindo e troçando da sua angústia.
Landry fechou os olhos para não o ver, e dando rapidamente meia volta, saiu do
buraco e
voltou à margem. Aí, atirou-se para a erva e observou o duende, que prosseguia na
sua dança e a
rir. Era uma visão diabólica. Ora se afastava como um louco, ora desaparecia
completamente.
Ou, às vezes, ficava grande como a cabeça de um boi e depois pequeno como um olho
de gato; e
corria para junto de Landry, girava à sua volta tão depressa que ele ficava
fascinado; e,
finalmente, vendo que este não o seguia, voltava a agitar-se no canavial, parecendo
zangar-se.
Landry não ousava mexer-se, pois voltar para trás não afastava o duende de si.
Estava visto, ele obstinava-se a correr atrás dos que correm e atravessava-se no
seu caminho
até os enlouquecer. Tremia de medo e de frio, quando ouviu atrás de si uma vozinha
suave, que
cantava: Duende, duende, duendezinho, Leva a tua candeia e o teu guizo, Eu trouxe a
minha capa
e o meu barrete, Toda a diabinha tem o seu diabrete.
E logo surgiu a pequena Fadette, que se preparava alegremente para atravessar a
água sem
mostrar qualquer receio ou surpresa pelo fogo-fátuo. Chocou contra Landry, sentado
no chão, e
afastou-se praguejando e injuriando como um rapaz mal educado. — Sou eu, Fanchon —
disse Landry, erguendo-se —, não tenhas medo! Não sou teu
inimigo!
Falava assim porque tinha quase tanto medo dela como do fogo. Ouvira a canção e
percebera que ela estava a esconjurar o fogo-fátuo, dançando e contorcendo-se como
um louco
diante dela, como se estivesse contente por a ver. — Estou a ver, belo gémeo! —
disse então a pequena Fadette depois de uma breve
hesitação. Estás a ser simpático comigo porque estás meio morto de medo; a voz
treme-te na
garganta, tal qual a de minha avó. Confessa lá, pobre coitado: à noite as pessoas
são bem menos
orgulhosas do que de dia, e aposto que não tens coragem de atravessar o rio sem
mim, é assim ou
não é?— Por amor de Deus! Acabo de sair de lá, disse Landry —, e quase me ia
afogando. Tu vais
arriscar-te a atravessar, Fadette? A sério que não tens medo? — E porque havia de
ter? Mas estou a ver o que te preocupa — respondeu a pequena
Fadette, rindo. — Anda, dá-me a mão, medricas! O duende não é tão mau como julgas,
e só faz mal aos
que têm medo dele. Já nos conhecemos bem.
Dizendo isto, puxou Landry pelo braço com mais força do que ele esperava duma
criatura
tão magricela e arrastou-o a correr, cantando: Eu trouxe a minha capa e o meu
barrete, Toda a
diabinha tem o seu diabrete.
Landry nem por isso se sentia mais à vontade na companhia da pequena feiticeira do
que na
do duende. Todavia, como preferia ver o diabo com aparência de gente do que um fogo
tão
manhoso e fugaz, não opôs resistência e depressa ficou tranquilizado ao sentir que
Fadette olevava por bom caminho e que andava em seco sobre as pedras.
Em todo o caso, embora avançassem a bom passo, o fogo-fátuo continuava a persegui-
los.
Muito provavelmente a tia Fadet tinha ensinado a neta a não recear esses fogos da
noite, ou
então, à força de os ver, visto que apareciam nas imediações do vau das Roulettes,
ainda que
Landry nunca visse nenhum de perto, talvez a rapariga tivesse adquirido a ideia de
que o espírito
que os animava não era malvado e só lhe queria bem.
Sentindo que Landry tremia à medida que o duende se aproximava, disse: — Pateta!
Este
fogo não queima! Se fosses suficientemente hábil a manejá-lo, verias que nem sequer
deixa
marca.
Pior ainda, pensou Landry; fogo que não queima, não se sabe o que é; e não pode vir
de
Deus, pois o fogo de Deus é para aquecer e queimar.
Até ali não deu a conhecer o seu pensamento à pequena Fadette, e quando se viu são
e
salvo, na outra margem, sentiu enorme vontade de a abandonar ali e fugir para
Cosse. Mas, como
não era ingrato, não a quis deixar sem lhe agradecer. — É a segunda vez que me
ajudas, Fanchon — disse-lhe —, e eu seria um traste se não te
dissesse que me lembrarei disso toda a vida. Via-me completamente transtornado
quando me
encontraste. o duende tinha-me dominado e encantado. Nunca teria atravessado a
ribeira, ou
então nunca de lá teria saído. — Talvez até tivesses passado sem problemas se não
fosses tão palerma — acusou Fadette.
Nunca pensei que um rapagão de dezessete anos, quase com barba, fosse tão fácil de
assustar! E
estou contente por te ver assim! — E porque é que estás contente com isso, Fanchon?
— Porque não gosto nada de ti! – respondeu em tom de desprezo. — E porque não
gostas de mim? — Porque não tenho consideração por ti — respondeu. — Nem por ti,
nem pelo teu gémeo,
nem pelo teu pai, nem pela tua mãe orgulhosos de serem ricos, e porque julgam que

cumprimos a nossa obrigação estando às vossas ordens.
Ensinaram-te a ser ingrato, Landre; esse é o pior defeito de um homem depois do de
ser
cobarde.
Landry ficou fortemente humilhado com a sarabanda da rapariga, mas reconhecia que
ela
não era completamente injusta, e defendeu-se: — Se sou culpado, Fadette, atribui
somente a
mim. Nem o meu irmão, nem os meus pais nem ninguém lá em casa, sabe do auxilio que
já me
prestaste. Mas desta vez vão sabê-lo, e terás a recompensa que desejares. — Ah, ah,
tão orgulhoso que ele é! — continuou Fadette. — Imaginas que com os teus
presentes ficarás pago? Julgas que sou como a minha avó, que, desde que lhe dêem
algum
dinheiro, suporta todas as arrogâncias? Eu não preciso nem tenho vontade das tuas
ofertas e
desprezo tudo o que vier de ti, uma vez que não tiveste uma palavra de gratidão e
amizade para
comigo depois de te ter evitado um grande desgosto. — Sou culpado, já o confessei,
Fadette — disse Landry, que não podia abster-se de ficar
admirado com a veemência das suas palavras. — Mas também tens algumas culpas.
Não deve ter sido através de feitiçaria que me fizeste encontrar o meu irmão, pois
já o tinhas
visto antes, sem dúvida, enquanto eu falava com a tua avó; e, se fosses
verdadeiramente boa, tu,
que me acusas de não o ser, em vez de me fazeres sofrer e esperar, em vez de me
obrigares a
fazer uma promessa, ter-me-ias dito logo: Desce o prado e vê-lo-ás à beira do rio.
Isto não te
teria custado muito, e preferiste antes divertir-te maldosamente com a minha dor.
A pequena Fadette, sempre com resposta pronta, ficou pensativa mas logo adiantou: —
Bem vejo que fizeste o possível por afastar a gratidão do teu coração e por te
convenceres de que
não me devias nada. De novo o teu coração é injusto e mau, pois não te fez notar
que eu não
reclamava nada de ti e nem sequer censurava a tua ingratidão. — Isso é verdade,
Fanchon — respondeu Landry, franco —, vejo que estava errado, e
envergonho-me disso. Devia ter-te falado, essa era a minha intenção, mas tu
fizeste-me uma cara
tão irritada que não soube como atuar. — Se tivesses vindo no dia seguinte dar-me
uma palavra de amizade, nunca me terias visto
irritada e logo saberias que não queria paga alguma e seríamos amigos. Em vez
disso, agora,
tenho muito má opinião de ti, e devia ter-te deixado desembaraçar sozinho do
duende. Adeus,
Landry, Vai secar essa roupa e diz a teus pais Sem aquele malvado grilo, esta noite
teria dado um
bom mergulho na ribeira.
Foi assim que a pequena Fadette lhe virou costas e se dirigiu a casa, cantarolando.
Com efeito, Landry sentiu um enorme arrependimento. Não que se dispusesse a
qualquer
espécie de amizade com uma rapariga que parecia ter mais esperteza do que bondade e
cujas más
maneiras não agradavam a ninguém, nem mesmo aos que se divertiam com isso. Mas ele
tinha
uma alma nobre e não queria ficar com tal injustiça na consciência. Correu atrás
dela, agarrou-a
pelo braço e disse-lhe: — Então, Fanchon, é preciso resolver e arrumar este assunto
entre nós.
Estás aborrecida comigo e eu também não estou contente. Diz-me o que desejas e, o
mais tardar
amanhã, dou-te. — Desejo nunca mais te ver — respondeu Fadette severamente —, e
tudo o que me
trouxeres, podes ficar certo que to atiro à cara. — Não achas que são palavras
demasiado duras para quem te oferece uma reparação? Se
não queres uma oferta, talvez haja maneira de te fazer qualquer préstimo e com isso
te mostrar
que só te quero bem. Anda, diz-me o que tenho a fazer para te agradar. — És capaz
de me pedir perdão e desejar a minha amizade? — inquiriu Fadette, parando. —
Perdão, é pedir muito! — contestou Landry, não conseguindo evitar uma certa altivez
em
relação à rapariga, que não tinha de modo algum comportamento próprio da sua idade.

Quanto à tua amizade, Fadette, o teu espírito é tão estranho que não sei se
conseguiria ganhar-lhe
alguma confiança. Pede-me antes uma coisa que te possa dar já e que eu não precise
de reaver. — Pois bem — disse Fadette numa voz clara e seca —, será como desejas,
Landry.
Ofereci-te o perdão, e não o quiseste. Sendo assim, vou reclamar-te o que me
prometeste,
que é o de obedeceres à minha vontade, no dia em que to exigir. Esse dia não será
mais tarde do
que amanhã, no Santo Andoche, e eis o que quero: dançarás comigo três danças,
depois da missa,
duas depois das vésperas e ainda mais duas depois das trindades. Sete no total. E
durante o dia
inteiro, do levantar até ao deitar, não dançarás com mais ninguém, seja rapariga ou
mulher. Se o
fizeres, ficarei a saber que tens três defeitos muito feios: a ingratidão, o medo e
a falta de palavra.
Boa-noite e espero por ti amanhã para abrir o baile, à porta da igreja!
A pequena, que Landry seguira até sua casa, abriu o ferrolho e entrou tão depressa
que o
rapaz nem teve tempo de abrir a boca.O baile
De início, Landry achou a ideia da Fadette tão cômica que se sentiu mais inclinado
a rir do
que a zangar-se. Está visto, é mais tola do que má e mais desinteressada do que
parece, pelo que
a sua exigência não arruinará a minha família, pensou. Contudo, pensando melhor,
achou o
pagamento da dívida mais duro do que parecia. A pequena dançava muito bem, já a
tinha visto
aos saltos pelos campos ou na berma dos caminhos, com os miúdos, agitando-se como
um
diabinho, tão rápida que era difícil seguir-lhe o compasso. Mas era tão pouco
bonita e tão
burlesca, que nenhum rapaz da idade de Landry dançaria com ela, especialmente em
público.
Quando muito, achavam-na digna de ser convidada pelos guardadores de porcos ou
pelos rapazes
que ainda não tivessem feito a primeira comunhão; e as raparigas mais espigadonas
da terra não
gostavam muito da sua companhia. Landry, sentiu-se portanto humilhado por estar
ligado a
semelhante dançarina; e ao lembrar-se de que conseguira obter pelo menos três
danças da bela
Madelon, interrogou-se como iria ela receber a desfeita que ele seria forçado a
fazer-lhe.
Como se sentia com frio e fome e continuava receoso de ver outra vez o duende
correr atrás
de si, andou depressa, sem pensar muito e sem olhar para trás.
Mal chegou a casa, secou-se, contando que não encontrara o vau por causa da noite
cerrada
e por isso se molhara todo. Teve vergonha de confessar o medo que tivera e não
falou nem no
fogo-fátuo, nem na pequena Fadette. Deitou-se, pensando que no dia seguinte teria
tempo para se
preocupar com as consequências daquele mau encontro.
Porém, por mais que se esforçasse, dormiu muito mal. Teve pesadelos em que viu a
pequena Fadette às cavalitas do duende, que era uma espécie de grande galo
vermelho,
segurando numa das patas uma lanterna, cujos raios iluminavam todo o juncal. E
então a
pequena Fadette transformava-se num enorme grilo e gritava-lhe, também numa voz de
grilo,
uma canção que ele não conseguia compreender. Sentia a cabeça tonta e a
luminosidade do
duende era tão viva e tão ardente que, quando acordou, ainda lhe parecia ver
estrelinhas à sua
volta.
Landry ficou tão fatigado por causa dessa noite, quase sem descanso, que adormeceu
no
decorrer da missa e nem ouviu sequer uma palavra do sermão do padre, louvando e
enaltecendo
as virtudes do bom Santo Andoche. À saída da igreja, Landry estava tão sonolento
que esqueceu
a pequena Fadette. E ela lá estava diante do pórtico, mesmo ao pé da bela Madelon,
que
esperava, certa, de que o primeiro convite seria para ela: Mas quando ele se
aproximou para lhe
falar, o grilo deu um passo em frente e disse-lhe bem alto, com ousadia sem igual:
— Vamos,
Landry, já que me convidaste ontem para a primeira dança, espero que não vás agora
faltar ao
combinado.
Landry ficou tão embatocado e vermelho que, vendo Madelon também corada, arranjou
coragem para enfrentar a pequena Fadette e dirigiu-se a ela, dizendo-lhe: — É
possível que tenha
prometido dançar contigo, grilo, mas tinha pedido a outra antes; por isso só depois
de eu cumprir
o meu primeiro compromisso é que será a tua vez. — Isso é que não! — respondeu
Fadette com firmeza. — A tua memória anda a falhar,
Landry. Não prometeste nada a ninguém antes de mim, já que a dívida que reclamo
data do ano
passado, e ontem limitaste-te apenas a renová-la. Se Madelon tem vontade de dançar
contigo,
que o faça com o teu gémeo, que é igual a ti e tomará o teu lugar. Tão bom é um
como é o outro. — O grilo tem razão — respondeu Madelon com orgulho, agarrando na
mão de Sylvinet. —Já que tens uma promessa tão antiga, terás de cumpri-la, Landry.
Também gosto de dançar com o
teu irmão. — Sim, pois claro, é a mesma coisa — disse Sylvinet, ingenuamente. —
Dançaremos os
quatro.
Não adiantaram mais o assunto, para não chamar a atenção das pessoas, e o grilo
começou a
rodopiar com tanto orgulho e agilidade que jamais uma dança foi tão bem compassada
e tão bem
conduzida. Se ela fosse graciosa e simpática, causaria prazer vêla, pois dançava
maravilhosamente e não havia rapariga que não desejasse ter a sua ligeireza
e a sua audácia. Mas, coitada, estava tão mal ataviada que parecia dez vezes mais
feia do que
habitualmente.
Landry, que não se atrevia a olhar Madelon, de tal modo se sentia atormentado face
ao que
se passou, observou a preceito a sua parceira e achou-a ainda mais feia do que
anteriormente.
Julgara pôr-se bonita, mas, afinal, a sua indumentária, antes provocava o riso e o
desdém.
Trazia uma touca amarelada pelo bolor que, em vez de ser pequena e bem levantada
atrás,
conforme moda da terra, formava de cada lado da cabeça duas grandes orelhas, largas
e chatas; e,
na parte de trás, o folho caía até ao pescoço, dando-lhe o aspecto da avó e
fazendo-lhe a cabeça
larga como uma abóbora, para cúmulo apoiada num pescoço delgado como uma vara. A
saia era
demasiado curta, pois crescera muito durante o ano; os braços magros, queimados
pelo sol,
saíam das mangas como patas de aranha. Trazia, contudo, um avental vermelho de que
muito se
orgulhava, que herdara da mãe, mas do qual se esquecera de tirar o peitilho, fora
de moda há
anos. Não era daquelas raparigas demasiado coquetes, pobrezinha, nem o era
minimamente e
vivia como um rapaz, sem se preocupar com a aparência, mas prezando a paródia e a
risota.
Por isso, com aquele ar de velha endomingada, desprezavam-na talvez mais por causa
da
sua arrogância e não tanto devido à miséria, esta mais provocada pela sovinice e
mau gosto da
avó.
Sylvinet achava muito estranha aquela fantasia do gémeo por Fadette, de quem, pela
parte
que lhe tocava, ainda gostava menos do que Landry. Este último não sabia como havia
de
explicar o ocorrido e desejava poder desaparecer sem deixar rasto.
Madelon andava descontente, e, apesar da animação com que Fadette dançava, as caras
de
ambos eram tão tristes que pareciam carregar o diabo na Terra.
Assim que acabou a primeira dança, Landry escapou-se e foi esconder-se longe.
Mas, ao fim de uns momentos, Fadette, seguida do saltão, foi no seu encalço, para o
censurar, e levando atrás de si um grupo de raparigas mais novas, porque as mais
velhas não Lhe
ligavam. Quando Landry a viu com todo aquele grupo, que ela tomava por testemunha
em caso
de recusa, cedeu e levou-a para debaixo dos castanheiros, onde desejava encontrar
um cantinho
mais isolado para dançar com ela sem ser notado. Para seu contentamento, nem
Madelon, nem
Sylvinet, ou ninguém seu conhecido ali se encontrava; pôde assim aproveitar a
ocasião para
cumprir a promessa e dançar uma terceira vez com Fadette. Estavam apenas rodeados
de
estranhos, que não lhes prestavam atenção.
Logo que terminou, correu em busca de Madelon para a convidar a lanchar à sombra
das
ramadas. Mas ela já tinha dançado com outros, a quem prometera acompanhar, pelo que
recusou
com certo desdém. Depois, vendo que ele se mantinha a um canto, com os olhos rasos
de
lágrimas — o despeito e o orgulho tornavam-na ainda mais bonita —, comeu depressa,
levantouse da mesa e perguntou em voz alta: — Estão a tocar às vésperas, com quem
vou dançar agora?
Voltara-se para Landry, contando que ele exclamasse imediatamente: Comigo!.
Mas, antes de ele descerrar os lábios, outros se ofereceram e Madelon, sem se
dignar lançar-lhe um olhar de censura ou de piedade, seguiu para as vésperas com os
seus novos admiradores.
Assim que as vésperas foram cantadas, Madelon começou a dançar com os seus
acompanhantes. Landry observava-a pelo canto do olho. A pequena Fadette ficara na
igreja,
debitando longas orações, umas após outras. Todos os domingos fazia o mesmo.
Para uns, prova de grande devoção, para outros, uma forma de esconder o seu jogo
com o
Diabo.
Landry ficou muito contristado por ver que Madelon não mostrava qualquer interesse
por
ele, que estava vermelha de prazer como uma papoila e que se consolava lindamente
da
desfaçatez que ele se vira forçado a fazer-lhe. Veio-lhe então a ideia que ela
talvez fosse um
pouco vaidosa e arrogante e que não devia ter por ele grande afeição, uma vez que
se divertia tão
bem sem ele.
Evidentemente que era ele quem estava em falta, pelo menos aparentemente; mas ela
vira-o
tão triste, debaixo do arvoredo, que podia ter adivinhado que se passava qualquer
coisa que ele
bem gostaria de lhe explicar. Todavia, isso não a preocupou absolutamente nada e
agora andava
alegre como um passarinho, enquanto ele sentia o coração a sangrar.
Após ter satisfeito os dançarinos, Landry aproximou-se dela, desejoso de se
justificar. Não
sabia porém como levá-la a afastar-se, pois ainda estava na idade em que não se tem
muito à
vontade para lidar com raparigas; mesmo assim, sem palavras apropriadas, pegou-lhe
na mão
para ela o seguir; então ela perguntou-lhe, com um ar de meio ressentida e de meio
perdão. — Então, Landry, sempre me vens convidar para dançar? — Não é para dançar —
respondeu, pois não sabia fingir, nem tencionava faltar à palavra —, mas sim para
te dizer uma coisa que não podes recusar ouvir. — Oh! se tens um segredo para me
contar, Landry, deixa-o para outra altura! — zombou
Madelon, retirando a mão. — Hoje é dia de nos divertirmos e dançarmos. Ainda posso
bem com
as pernas, e já que o grilo cansou as tuas, vai-te deitar, se quiseres, porque eu
fico.
Dito isto, apressou-se a aceitar o convite de Germain Audoux para dançar. E, quando
voltou
as costas a Landry, este ouviu Germain Audoux dizer, falando dele: — Não me digas
que o tipo
estava convencido que esta dança era para ele? — Talvez! — foi a resposta de
Madelon, encolhendo os ombros.
Landry ficou grandemente chocado e permaneceu perto do baile para observar as
atitudes
da rapariga, tão orgulhosa e desdenhosa que ele se sentiu despeitado. Em certo
momento, quando
ela passou ao seu lado, vendo que a fitava com olhar meio cínico, disse-lhe,
provocante: —
Então, Landry, já não arranjas parceira? Ou será que tens de voltar para o grilo? —
Com muito prazer — respondeu Landry —, pois, se não é a mais bela da festa, é pelo
menos a que dança melhor!
E dirigiu-se para os arredores da igreja, buscando Fadette e trazendo-a para o
recinto de
dança e rodopiando na frente de Madelon, por duas vezes seguidas. Ai, como o grilo
estava
orgulhoso e contente! Seus olhos negros e maliciosos brilhavam de prazer, e erguia
o pequeno
rosto e a touca grosseira como uma galinha empertigada.
Lamentavelmente, contudo, o seu triunfo irritou cinco ou seis garotos que
costumavam
dançar com ela e que, não podendo agora fazê-lo, começaram a criticá-la, a
censurar-lhe a sua
vaidade e a murmurar à sua volta: Vocês não veem o grilo, que julga seduzir Landry
Barbeau!
Grilo, saltão, diabrete, bruxa!, e outras patetices semelhantes.
Além disso, quando a pequena Fadette passava perto deles, puxavam-lhe pela manga ou
punham-se à sua frente para a fazer tombar, e havia alguns, ainda mais mal-
educados, que lhe
puxavam pelo laço da touca, gritando: Puxa a touca, puxa a touca da Fadette.O pobre
grilo distribuiu cinco ou seis estalos à direita e à esquerda, mas isso apenas
serviu
para atrair a atenção do seu lado e para as pessoas começarem a comentar: Olhem só
o nosso
grilo, hoje está cheio de sorte! Landry Barbeau não para de dançar com ela! É
verdade que ela
dança bem, mas anda toda empertigada.
Alguns, dirigindo-se a Landry, perguntavam: — Ela lançou-te algum feitiço, pobre
rapaz,
para só olhares para ela? Ou quererás ser feiticeiro?
Landry estava envergonhado; mas Sylvinet, para quem não havia ninguém mais
excelente e
mais estimável do que o irmão, ainda o ficou mais ao ver que ele era alvo de troça
de tanta gente,
e de estranhos, que começavam também a meter-se, a fazer perguntas e a comentar: É
um belo
rapaz; mas que ideia a dele de só se meter com a mais feia de todo o grupo.
Madelon, orgulhosa
e triunfante, escutava aquela zombaria e, sem piedade, também se atreveu a algumas
indiretas: —
Não percebo a vossa admiração! — exclamou. — Landry é ainda uma criança, e, com a
sua
idade, desde que se tenha alguém com quem falar, nem se repara se é cabeça de burro
ou se tem
cara de gente.
Sylvinet, logo que pôde, segurou Landry pelo braço e disse-lhe baixinho: — Vamos
embora
mano, senão isto vai a mais, até porque as troças dirigidas à pequena Fadette são
mais para ti.
Não sei que ideia foi essa de dançares tantas vezes seguidas com ela. Até parece
que procuras o
ridículo; acaba com a brincadeira, por favor! Ela que se exponha às palavras duras
e ao desprezo
se isso lhe dá prazer, mas não a nós.
Vamos embora! Voltaremos depois das trindades e dançarás então com Madelon, que é
uma
rapariga como deve ser. Sempre disse que essa tua paixão pela dança um dia traria
problemas!
Landry fez menção de o seguir, mas voltou-se imediatamente ao ouvir um grande
alarido.
Viu então Madelon e as outras raparigas rodeando a pequena Fadette, a quem os
garotos,
encorajados pela risota que provocavam, acabavam de tirar a touca. Os seus longos
cabelos
negros caíam-lhe sobre os ombros, e ela debatia-se, louca de cólera e desgosto,
porque desta vez
nada fizera para merecer tal tratamento. Chorava de raiva, sem conseguir recuperar
a touca, que
um malandrim levava na ponta de um pau.
Landry achou aquela ação muito feia e, levado pelo seu coração, revoltou-se contra
tal
injustiça. Agarrou o rapaz, tirou-lhe a touca e o pau, com o qual lhe aplicou uma
pancada no
traseiro, pondo-o a fugir com os restantes mariolas. Depois, pegando a mão do pobre
grilo,
entregou-lhe a touca.
A vivacidade de Landry e o medo dos garotos provocaram gargalhadas na assistência.
Landry foi aplaudido, mas, como Madelon decidiu ridicularizar a situação, houve
outros rapazes
que desataram a rir à sua custa.
O jovem não hesitou em enfrentar a situação; sentia-se corajoso e forte, e qualquer
coisa
dentro de si dizia-lhe que cumpria o seu dever, não deixando maltratar uma mulher,
feia ou
bonita, pequena ou grande, que escolhera por companhia. Apercebeu-se do modo como o
grupo
de Madelon o mirava e avançou, perguntando: — Então, têm algo a comentar? Se me
agrada dar
atenção a esta rapariga, em que é que isso vos ofende? E se isso vos desagrada,
porque o dizem
baixinho? Estou na vossa frente. Não me veem? Disseram aqui que eu era ainda um
miúdo. mas
haverá aqui um homem que mo diga na cara? Vá lá, falem, e veremos se alguém toca na
rapariga
que convidei para dançar!
Sylvinet não abandonara o irmão, e embora não o aprovasse por ter suscitado tal
discussão,
estava pronto a defendê-lo. Havia ali quatro ou cinco rapazes muito mais velhos do
que os
gémeos; mas quando os viram tão resolutos, não disseram nada e olharam uns para os
outros,
como que a perguntar quem é que tinha a intenção de se medir com Landry. Este, que
não largaraa mão de Fadette, disse-lhe então: — Enfia essa touca, Fanchon, e vamos
dançar. Veremos se
alguém se atreve a tirar-te. — Não! — respondeu a pequena Fadette, limpando as
lágrimas. — Já chega de dança por
hoje! Cumpriste a tua promessa! — Oh! Isso é que não! Temos de dançar mais —
insistiu Landry, inflamado pela coragem e
orgulho. — Não quero que andem por aí a dizer que não posso dançar contigo quanto
me
apetecer sem que sejas insultada!
Dançaram mais uma vez e ninguém se atreveu a perturbar o par. Madelon e os seus
apaixonados foram dançar para outro lado.
Terminada a dança, a pequena Fadette disse baixinho a Landry: — Por hoje, chega,
Landry.
Estou contente contigo e estás quite da tua palavra. Vou para casa. Agora já podes
dançar com
quem quiseres.
E foi buscar o irmão, que andava na brincadeira com outras crianças, afastando-se
tão
depressa que Landry nem viu para onde ela seguiu.
Landry regressou a casa com o irmão. Como este continuasse preocupado com tudo o
que
se passara, contou-lhe o encontro da véspera com o fogo-fátuo e como Fadette o
salvara, fosse
por ousadia ou por artes mágicas, e lhe pedira em recompensa que dançasse com ela
na festa:
Não lhe falou no resto, no medo que tivera de o encontrar afogado no ano anterior,
e do
compromisso que nessa altura assumira...
Sylvinet aprovou o irmão por ter mantido a palavra. Mas, apesar de ficar assustado
com o
perigo que Landry correra na ribeira, não sentiu qualquer gratidão para com a
pequena Fadette.
Sentia tanta aversão por ela que não acreditava que se encontrasse ali por acaso,
nem que o
tivesse socorrido apenas por bondade. — Foi ela que ordenou ao duende para te
perturbar o espírito e te fazer afogar; mas Deus
não o permitiu, porque és um bom cristão. Então esse maldito grilo, abusando da tua
gratidão,
obrigou-te a fazer uma promessa que sabia ser bem desagradável para ti.
Aquela rapariga é muito má e todas as bruxas gostam do mal. Ela sabia perfeitamente
que te
ias zangar com Madelon e com os teus melhores amigos. Também queria que andasses à
luta.
Podias ter arranjado sérios problemas e acontecer-te alguma desgraça.
Landry, que via por vezes as coisas pelos olhos do irmão, pensou que talvez ele
tivesse
razão e não defendeu Fadette. Conversaram os dois sobre o duende, que Sylvinet
nunca vira e
pelo qual sentia muita curiosidade, sem todavia desejar encontrá-lo. Mas não
falaram nele à mãe,
porque ela tremia de medo só de pensar nele; nem ao pai, porque ele logo troçaria,
dizendo que
já o vira dezenas de vezes sem lhe ligar importância.
O baile continuou pela noite dentro; mas Landry, que estava muito triste, pois
desta vez
estava realmente zangado com Madelon, não quis aproveitar a liberdade que Fadette
lhe
devolvera e decidiu ajudar o irmão a recolher os animais do pasto. Como isto o
conduzia até
meio caminho de Priche, despediu-se do irmão, no fim do juncal.
Sylvinet, preocupado, não quis que ele passasse pelo vau das Roulettes, com medo
que o
duende ou o grilo lhe pregassem outra má partida. Obrigou-o a prometer que tomaria
o caminho
mais com prido para evitar o vau.
Landry fez como o irmão pediu, apesar de nada recear porque havia barulho no ar
devido à
festa. Mesmo fraco, conseguia ouvir a música e a vozearia dos dançarinos do Santo
Andoche, e
sabia muito bem que os espíritos só fazem travessuras quando toda a gente dorme.
Quando chegou ao sopé da encosta, mesmo em frente à pedreira, ouviu uma voz gemer e
chorar. Julgou primeiro tratar-se do barulho da água a correr, mas, conforme se
aproximava,pareceu-lhe mesmo gemidos humanos; como não lhe faltava coragem, quando
se tratava de
enfrentar seres humanos, principalmente em apuros, desceu ousadamente até ao fundo
da
pedreira.
Contudo, a pessoa que se lamentava daquela forma calou-se ao ouvi-lo aproximar-se.
Daí
que ele perguntasse firmemente: — Quem é que aí está a chorar?
Não obteve resposta. — Está alguém doente? — insistiu.
E, como continuou sem resposta, pensou em regressar, mas não sem dar uma vista de
olhos
por entre as pedras e os grandes cardos que entulhavam o local. Pouco depois
avistou, à claridade
da Lua, alguém deitado ao comprido no chão, com o rosto oculto.
Não se mexia, parecia um corpo inerte, morto.
Landry jamais tocara um cadáver. A ideia de que talvez fosse um, causou-lhe
arrepios; mas
dominou-se, porque, para si, estava primeiro auxiliar o próximo. Avançou
resolutamente para
apalpar a mão do vulto desconhecido, o qual, surpreendido, deu um salto e ficou de
pé.
Então Landry reconheceu a pequena Fadette.A confissão do grilo
Compreensivamente, Landry ficou aborrecido por encontrar mais uma vez a pequena
Fadette no seu caminho, e também por ela não lhe responder. Mas superando a
contrariedade,
compadeceu-se dela: — Então, grilo, porque choravas assim? Alguém te bateu ou te
atacou mais
alguma vez? — Não, Landry! Ninguém me provocou mais desde que me defendeste tão
corajosamente;
e, aliás, eu não tenho medo nem receio ninguém. Escondi-me para chorar, é tudo! Não
há nada
mais ridículo que andar a mostrar o nosso desgosto aos outros. — Mas porque é que
estás tão desconsolada? É por causa das maldades que te fizeram hoje?
Tu também tiveste alguma culpa; mas o melhor é não pensares mais nisso. — Porque é
que dizes que eu tive culpa? É um insulto por acaso eu querer dançar contigo?
Serei a única rapariga que não tem o direito de se divertir? — Nada disso, Fadette!
Não te censuro por teres querido dançar comigo. Fiz o que querias e
portei-me bem contigo. A tua culpa é mais antiga, não vem de hoje... — Não, Landry,
sinceramente não conheço essa culpa. Nunca pensei em mim, e se tenho
algo a censurar-me foi ter-te causado problemas contra minha vontade. — Não falemos
de mim, Fadette, não me estou a queixar de nada. Falemos antes de ti; e se
julgas que não tens qualquer defeito, queres que, como amigo, te diga o teu mal? —
Sim, Landry, quero, e considerarei isso como o melhor castigo ou a melhor
recompensa
que possas dar-me por todo o mal que te causei. — Pois bem, Fanchon Fadet, já que
estás a falar tão acertadamente e que, pela primeira vez,
te vejo calma e razoável, vou dizer-te porque não te respeitam como uma rapariga de
dezasseis
anos deve ser respeitada. É que tu não tens nada de rapariga e, pelo contrário,
tudo de rapaz, no
aspecto e nas maneiras; porque não te preocupas com a tua pessoa. Para começar, não
tens um ar
muito cuidado, nem muito limpo e tornas-te feia com essa roupa e com a linguagem
que usas.
Achas normal, com dezasseis anos, ainda não te pareceres com uma rapariguita?
Trepas às
árvores como um esquilo, e quando saltas para cima de um cavalo sem rédeas, sem
sela, galopas
como se tivesses o diabo no corpo. É bom ser forte e ágil e também é bom não ter
medo de nada,
mas tudo isso é essencialmente vantajoso quando se é homem. Mas, numa mulher, o que
é de
mais não presta e parece que queres fazer-te notar. E não há dúvida de que reparam
em ti,
arreliam-te e gritam, atrás de ti. Tens um espírito vivo e respondes impertinências
que provocam
o riso naqueles a quem não são dirigidas. Também é bom ter mais espírito do que os
outros, mas,
de tanto o provar, arranjam-se inimigos. És curiosa e, quando descobres os segredos
dos outros,
atiras-lhes à cara maldosamente, logo que tens oportunidade. Isto torna-te temida,
e as pessoas
detestam aqueles a quem temem.
Finalmente, bruxa ou não, acredito que tenhas conhecimentos, mas espero que não te
tenhas
entregue aos maus espíritos; tentas parecê-lo, para assustar os que te irritam, e
isso também te
cria fama. São estes os teus defeitos, Fanchon, e é por causa deles que as pessoas
não te poupam.
Pensa bem nisto e verás que, se quiseres parecer-te um pouco mais com as outras,
ganharás em
apreço de toda a gente. — Obrigada, Landry — respondeu Fadette, com ar sério,
depois de ter escutado o gêmeo.
Disseste-me mais ou menos o que toda a gente me censura, mas de forma honesta e
delicada,sem me magoar. Mas, agora, se não te importas, senta-te um bocadinho a meu
lado para te
responder. — Isto aqui não é mesmo nada agradável — protestou Landry, que não tinha
grande desejo
de se atardar com ela. — Não achas o sítio agradável — continuou ela —, porque
vocês, os privilegiados, são uns
esquisitos. Precisam de um bom relvado para se sentarem, e podem escolher nos
vossos campos
e jardins os melhores lugares e as melhores sombras. Mas os que nada possuem, não
exigem
tanto e contentam-se com a primeira pedra para repousar a cabeça. Os espinhos não
lhes ferem os
pés, e onde quer que se encontrem, observam tudo o que há de bonito e agradável.
Não há sítios
feios ou desagradáveis, Landry, para aqueles que reconhecem todas as coisas boas
que Deus fez.
Eu, que não sou bruxa, sei para que servem todas essas ervas que esmagas com os
pés; e
reconhecendo o seu uso, olho para elas e não menosprezo o seu odor nem o seu
aspecto. Digo-te
isto, Landry, para te provar que se menospreza frequentemente o que não nos parece
belo nem
bom e que, por essa razão, por vezes, nos privamos do que é útil e salutar. —
Gostaria de entender onde queres chegar — adiantou Landry, sentando-se ao pé dela.
Silenciaram-se por momentos. A pequena Fadette mergulhara em profundos pensamentos.
E Landry, embora sentindo a mente um bocado confusa, não podia impedir-se de sentir
prazer
em ouvir aquela rapariga, pois a voz era-lhe agradável e as palavras pareciam
sensatas. — Ouve, Landry — continuou ela —, eu devia ser mais lamentada do que
censurada; e se
tenho culpas para comigo, nunca tive nenhumas de grande importância para com os
outros. Se
este mundo fosse verdadeiramente justo, prestaria mais atenção ao meu bom coração
do que ao
meu mau aspecto e à minha roupa! Pensa na minha sorte desde que nasci. Não culparei
minha
pobre mãe, que toda a gente censura e insulta, apesar de ela não estar presente
para se defender e
sem que eu o possa fazer, eu, que nem sei bem o que ela fez de mal nem o que a
levou a fazê-lo.
Vê bem: as pessoas são tão funestas, que mal a minha mãe me abandonou e eu ainda a
chorava
amargamente, logo começaram a lançar-me à cara o seu pecado, para me marcarem para
sempre.
Talvez no meu lugar, uma rapariga razoável, como tu dizes, se tivesse refugiado no
silêncio,
capitulando na defesa da mãe e permitindo toda a casta de injúrias para se proteger
a si própria.
Mas eu não sou desse calibre. Seria de mais para as minhas forças. A minha mãe é
minha mãe, e,
seja ela o que quiserem, mesmo que a não volte a ver mais, amá-la-ei sempre. Assim,
quando me
chamam filha de galdéria ou feirante, fico logo com raiva, não por causa de mim,
pois isso não
me pode ofender, visto que nada fiz de mal, mas por causa dessa pobre mulher que
tenho a
obrigação de defender. E como não sei como proceder, vingo-a, dizendo aos outros as
verdades
que merecem e mostrando-lhes que não valem mais do que aquela a quem atiram pedras.
É por
isso, só por isso, que me acusam de bisbilhoteira e insolente, porque lhes descubro
os segredos
para os espalhar. Se gostar de descobrir coisas ocultas é curiosidade, então sim,
sou curiosa. Mas,
se tivessem sido humanitários comigo, eu não me lembraria de satisfazer a minha
curiosidade à
custa dos outros e ter-me-ia contentado em aprender os segredos que me ensina a
minha avó para
curar o corpo humano. As flores, as ervas, as plantas, todos os segredos da
natureza chegariam
para me ocupar e entreter, eu, que tanto gosto de vaguear por toda a parte.
Estaria sempre sozinha, sem me aborrecer. O meu prazer é ir para os locais onde
ninguém
vai e sonhar sobre uma infinidade de coisas ao abrigo das maldades e dos ciúmes.
Quando me
quis aproximar mais das pessoas, por causa da vontade que tinha de ser prestável
através dos
pequenos conhecimentos que tinha adquirido, em vez de me agradecerem honestamente o
que fiz
pelas crianças da minha idade, a quem curava as feridas e as doenças e a quem
ensinava alguns
tratamentos sem nunca pedir o que quer que fosse em troca, chamaram-me bruxa, e
aquelas quemansamente me vinham pedir auxílio, mais tarde, na primeira ocasião,
insultaram-me. Toda essa
maldade me enfurecia e podia tê-los prejudicado, pois se conheço coisas para fazer
bem, também
conheço outras para fazer mal; mas nunca as usei. Não sou rancorosa, e se me vingo
em palavras,
é porque fico aliviada dizendo tudo o que me vem à cabeça. Depois já não penso mais
nisso e
perdoo, como Deus manda. Quanto a não me preocupar com a minha pessoa, nem com as
minhas maneiras, isso só prova que não sou tão idiota ao ponto de me julgar bonita.
Sei pelo
contrário que sou tão feia que ninguém é capaz de olhar para mim. Já mo disseram
bastas vezes.
E vendo como as pessoas são más e altivas para aqueles que Deus não favoreceu, fiz
questão de
lhes desagradar, consolando-me com a ideia de que o meu aspecto nada tinha de
repelente para
Deus. Não sou dos que, quando veem algum bicho, exclamam Oh que bicho horroroso!
Que
feio! É preciso matá-lo! Eu não esmago a pobre criatura, antes pelo contrário,
ajudo-a. Por causa
disso, dizem que gosto dos bichos maus e que sou bruxa, porque não gosto de fazer
sofrer
nenhum animal. Se tivesse que se matar tudo o que é feio, eu não teria mais direito
de viver do
que os bichos.
Landry ficou emocionado como a pequena Fadette falava humilde e tranquilamente da
sua
falta de beleza. Daí que, recordando a sua cara, na ocasião dissimulada pela
obscuridade da
pedreira, lhe dissesse, sem pensar em lisonjeá-la: — Ouve, Fadette, tu não és feia
como julgas.
Há algumas bem mais feias do que tu e ninguém as critica. — Posso ser um pouco mais
ou um pouco menos, mas não podes dizer, Landry, que sou
uma rapariga bonita. Não precisas consolar-me, porque isso não me entristece. —
Quem sabe como serias se te vestisses e penteasses como as outras? Se não tivesses
a
pele tão escura, serias porventura mais atraente. Mas há uma coisa com a qual toda
a gente
concorda: não há olhos como os teus, e, se não tivesses um olhar tão trocista,
seria agradável serse observado por eles.
Landry falava sem se dar muito bem conta do que dizia. Estava a recordar-se dos
defeitos e
das qualidades da pequena Fadette; e, pela primeira vez, prestava a isso uma
atenção e um
interesse de que não se julgaria capaz momentos antes. — Os meus olhos veem o que é
bom e o que não é. Assim, consolo-me de irritar a quem
não me agrada. Não compreendo porque é que as raparigas bonitas cortejadas são
vaidosas com
toda a gente, como se todos fossem ao seu gosto. Por mim, se fosse bela, só
gostaria de o parecer
para aquele que me agradasse.
Landry pensou em Madelon, mas Fadette impediu-o de se atardar nesse pensamento,
continuando a falar: — Toda a minha culpa para com os outros, Landry, é de não
procurar a
piedade ou a indulgência com a minha fealdade. É mostrar-me sem qualquer disfarce,
e isso
escandaliza-os e fá-los esquecer que lhes fiz sempre bem, nunca mal. Por outro
lado, mesmo que
me aperaltasse, onde arranjaria eu o dinheiro para me vestir bem? Alguma vez
mendiguei,
embora sem um centavo de meu? A minha avó dá-me alguma coisa mais que comida e
dormida?
E, se não sei tirar partido dos trapos que minha mãe me deixou, será culpa minha,
se ninguém me
ensinou e se desde os dez anos vivo abandonada, sem amor nem piedade de ninguém?
Bem
conheço a censura que me fazem! Dizem que tenho dezasseis anos e que podia muito
bem
empregar-me, tendo assim possibilidade de me sustentar, mas que a preguiça e a
vagabundice me
retêm junto de minha avó, que todavia não gosta nada de mim e que tem meios para
pagar a uma
criada. — E então, Fadette, não é mesmo assim?perguntou Landry. — Pois é verdade,
acusam-te de
não gostares de trabalhar, e é a tua própria avó que diz a quem quer ouvi-la que
lhe ficaria muito
mais em conta se metesse uma criada no teu lugar.— A minha avó não diz isso do
coração. Gosta é de ralhar e de se lamentar. Tanto que,
quando falo em deixá-la, retém-me, porque sabe que lhe sou mais útil do que quer
confessar. Já
não tem os olhos nem as pernas de quando tinha quinze anos para procurar as ervas
com que
prepara as poções e os pós, e algumas só se encontram bem longe daqui e em locais
difíceis.
Além de que, como já disse, eu própria descubro nas ervas virtudes que ela
desconhece, e fica
espantada quando preparo poções das quais vê em seguida o bom efeito. Sobre os
nossos
animais, estão tão catitas e saudáveis que as pessoas se surpreendem ao saberem que
o rebanho
pertence a gente como nós. A minha avó bem sabe a quem deve ovelhas com tão boa lã
e cabras
com tão bom leite! Eu sei que ela não tem vontade nenhuma que a deixe, e eu gosto
dela, embora
me maltrate e me prive de muitas coisas. Mas ainda tenho outra razão para não a
deixar. — e fez
uma extensa pausa. — Então, Fadette?! — despertou-a Landry. — A minha mãe deixou-me
a braços, quando eu tinha apenas dez anos, com uma pobre
criança muito feia, tão feia como eu e ainda mais desgraçada, pois é coxa de
nascença, enfezada,
doente, vivendo sempre no desgosto e na maldade, em contínuo sofrimento! Toda a
gente a
arrelia e repele, é o meu pobre saltão! A minha avó está constantemente a ralhar-
lhe e bater-lheia também se eu o não defendesse, fingindo bater-lhe no seu lugar.
Tenho sempre o cuidado de o não magoar, e ele bem o sabe. Tanto que quando faz uma
asneira, vem logo esconder-se nas minhas saias e pede-me: Bate-me antes que a avó
me apanhe.
E eu bato-lhe a brincar, enquanto ele grita a fingir. E depois também trato dele;
nem sempre o
posso impedir de andar esfarrapado, coitado; mas, quando tenho alguns trapos,
arranjo-os para
ele vestir; trato-o quando está doente, enquanto a minha avó o deixaria morrer,
porque ela não
tem jeito para cuidar de crianças. Enfim, tento manter, com vida, aquele
enfezadinho, que sem
mim seria bem mais infeliz e não tardaria a morrer. Nem sei se estou a ajudá-lo
fazendo-o viver,
deformado como é; mas é mais forte do que eu, Landry, e quando penso em arranjar
alguma
coisa para ter dinheiro meu e sair da miséria em que vivo, o meu coração enche-se
de piedade,
como se fosse sua mãe e o abandonasse, deixando-o morrer por minha culpa. Eis todos
os meus
defeitos e as minhas culpas! Agora, Deus me julgue; eu perdoo àqueles que não me
conhecem!Uma amizade sincera
Landry escutou a pequena Fadette com o maior dos interesses, e quando, por último,
ela
falou do irmãozinho, o saltão, sentiu de repente um enorme carinho por ela,
desejando tomar o
seu partido contra toda a gente. — Desta vez, Fadette — disse —, quem não te der
razão será o primeiro a não ter razão
alguma, pois com tudo o que disseste, ninguém pode duvidar do teu bom coração e do
teu bom
raciocínio. É pena que não te dês a conhecer tal como és. Ninguém falaria mal de ti
e muitos te
fariam justiça. — Já te disse, Landry. Não preciso de agradar a quem não me agrada.
— Mas então, se mo dizes a mim, é porque me tens alguma estima? — admirou-se
Landry. — A verdade é que eu julgava que me detestavas por causa de nunca ter sido
bom para ti. — Admito que te tenha odiado um pouco respondeu a pequena —, mas, se
isso aconteceu,
não voltará a suceder e vou dizer-te porquê: Julgava-te orgulhoso, e és; mas sabes
dominar o teu
orgulho para cumprir a tua obrigação, e isso tem muito mérito; julgava-te ingrato,
mas és tão fiel
à tua palavra que tudo fazes para a cumprir; enfim, julgava-te poltrão e isso
levou-me a
desprezar-te, mas vejo que não te falta coragem, quando se trata de defrontar um
perigo real; e
dançaste hoje comigo, apesar disso te humilhar; até foste buscar-me ao pé da
igreja, quando já te
tinha perdoado e não pensava mais em te atormentar; defendeste-me contra aqueles
malvados
rapazes e provocaste alguns que, sem ti, me teriam maltratado; finalmente, ao me
ouvires chorar,
vieste ajudar-me e consolar-me. Não penses, Landry, que alguma vez esquecerei estas
coisas.
Terás toda a vida a prova de que te fico reconhecida, e poderás sempre exigir de
mim o que
quiseres, em qualquer momento.
Assim, para começar, sei que hoje te causei um grande desgosto. Se soubesse que
estavas
apaixonado por Madelon, não teria provocado uma zanga entre vocês, como fiz ao
forçar-te a
dançar comigo.
Concordo que me deu gozo ver que, para dançares com uma feiosa como eu, puseste de
lado uma bela rapariga, mas julgava que não passava apenas de uma pequena ferroada
no teu
amor-próprio.
Quando, pouco a pouco, compreendi que sofrias realmente, que, embora sem querer,
olhavas continuamente para o lado de Madelon e que o seu desprezo te dava vontade
de chorar,
também chorei.
É verdade, Chorei no momento em que quiseste lutar com os amigos dela, e tu
julgaste que
eram lágrimas de arrependimento. Eis a razão por que estava a chorar tão
amargamente quando
me surpreendeste e chorarei até ter reparado o mal que te causei. — E supondo,
minha pobre Fanchon — perguntou Landry, emocionado com as lágrimas
que de novo lhe saltavam —, que tenhas provocado uma zanga com a rapariga por quem
estava
apaixonado, que poderias então fazer para me reconciliares com ela? — Confia em
mim, Landry. Não sou tão parva que não me saiba explicar como deve ser.
Madelon ficará a saber que fui a culpada de tudo. Confessar-me-ei, e se ela não te
devolver a sua
amizade amanhã, é porque nunca te amou e... — E que não a devo lamentar, não é,
Fanchon? E como, realmente, ela nunca me amou,
vais ter um trabalho inútil. Olha, não faças isso. Consola-te antes do pequeno
desgosto que mecausaste. A mim já me passou. — Tais dores não passam tão depressa —
retorquiu Fadette. — Pelo menos é o que dizem.
É o despeito que fala por ti, Landry. Amanhã andarás tão triste que não descansarás
enquanto
não fizeres as pazes com essa bela rapariga. — É possível — disse Landry —, mas
neste momento não o entrevejo. Parece-me que és tu
que me queres fazer acreditar que tenho uma grande amizade por ela. Pois se a tive,
era tão
pequena que já quase não me lembro dela. — Então é assim que os rapazes amam?
indagou Fadette. — Ora essa! As raparigas também não são melhores, já que se
escandalizam tão facilmente
e se satisfazem tão depressa com o primeiro que aparece. Mas estamos a falar de
coisas que
ainda não compreendemos bem, pelo menos tu, que estás sempre a troçar dos
namorados. Tenho
a impressão que te estás a divertir à minha custa, querendo reconciliar-me com
Madelon. Insisto
que não o faças, pois ela poderia julgar que fui eu que te pedi para o fazeres. E
depois, talvez
fique zangada, porque a verdade é que nunca lhe disse uma palavra de amor, e embora
me agrade
estar ao pé dela e fazê-la dançar, ela nunca me encorajou. Por isso, deixemos
passar o tempo, e
se ela quiser, que volte por si própria, mas também, se não voltar, acredita que
não morro. — Acredito-te ao dizeres que nunca manifestaste a Madelon a tua amizade.
Mas também
seria preciso muita ingenuidade para ela não o perceber nos teus olhos, sobretudo
hoje. Uma vez
que eu fui a causa da vossa zanga, é justo que seja também a causa do vosso
entendimento e é
uma boa ocasião para dar a entender a Madelon que a amas. Confia na pequena
Fadette, Landry,
no malvado grilo que não tem o interior tão feio como o exterior. E perdoa-me por
te ter
atormentado. Ficarás a saber que, se é bom ter o amor de uma bela, é útil ter a
amizade de uma
feia, visto que as feias são desinteressadas e nada lhes provoca despeito nem
rancor. — Isso de belezas, não é importante, Fanchon — disse Landry pegando-lhe na
mão. — Importante é ter uma certeza: a tua amizade é uma coisa muito boa; tens um
coração
generoso, pois fiz-te uma grande afronta, a que não fizeste referência, e quando
dizes que me
conduzi bem contigo, acho que me comportei grosseiramente. — Como foi isso, Landry?
Não estou a ver... — É que nem um único beijo te dei no baile, Fadette, e no
entanto era meu dever e meu
direito. Pois é costume. Tratei-te como se fosses uma miúda de dez anos, e contudo
tens quase a
minha idade. Isso foi uma ofensa, e se não fosses tão boa rapariga, terias
apercebido. — Nem sequer me lembrei disso — respondeu Fadette, que se levantou,
pois sentia que
mentia e não queria dá-lo a entender. — Escuta — exclamou, tentando parecer alegre
— como
os grilos cantam e chamam pelo meu nome; e também a coruja, ali, a gritar-me as
horas que as
estrelas marcam no quadrante do céu! — Também a ouço e tenho de voltar a Priche;
mas antes de partir, Fadette, não me queres
perdoar? — Mas eu não te desejo mal por isso, Landry, e não tenho nada a perdoar-
te. — Sim — disse Landry, agitado desde que ela lhe falara em amor e amizade, numa
voz tão
suave.— Sim, deves-me um perdão, deixando-me dar-te o beijo que não te dei quando
devia.
A pequena Fadette estremeceu. Depois, retomando o bom humor: — Tu queres que eu te
perdoe o erro com um castigo. Considero-te desobrigado. Já foi muito teres dançado
com a feia.
e seria demasiado doloroso querer beijá-la! — Não digas isso — exclamou Landry,
pegando-lhe na mão. — Acho que dar-te um beijo
não é castigo nenhum. a não ser que isso te desagrade, partindo de mim.Assim que
disse isto, sentiu tal desejo de beijar Fadette, que tremeu com receio de ela não
consentir. — Escuta, Landry — disse-lhe ela, na sua voz suave e meiga —, se eu
fosse bela, dir-te-ia
que não é sítio nem hora de andarmos aos beijos. Se fosse vaidosa, pensaria, pelo
contrário, que
são horas e o sítio ideais, porque a noite esconde a minha fealdade e não há
ninguém para te
envergonhar da tua fantasia. Mas, como não sou vaidosa, nem bela, antes pelo
contrário, vamos
apenas apertar as mãos em sinal de boa amizade e ficarei contente por ser tua
amiga. — Está bem — respondeu Landry —, aperto-te a mão com todo o gosto. Mas a
mais
honesta amizade, que é a que tenho por ti, não impede de trocarmos um beijo. Se me
negas isso,
vou pensar que ainda tens qualquer coisa contra mim.
E Landry tentou dar-lhe um beijo de surpresa; mas ela ofereceu resistência e, como
ele
insistisse, desatou a chorar, dizendo: — Larga-me, Landry, estás a ser mau.
Landry parou, espantadíssimo e penalizado com a sua reação. — Estou a ver — disse —
que não falas verdade quando dizes que a minha amizade é a
única que te interessa. Tens uma maior que te impede de me dares um beijo. — Não,
Landry — respondeu ela a soluçar —, mas tenho medo que, se me beijares de
noite, sem me ver, me odeies quando me vires de dia. — Então eu nunca te vi? —
perguntou Landry impaciente. — Não te estou a ver neste
momento? Olha, aproxima-te mais da claridade da Lua. Agora estou a ver-te bem e não
sei se és
feia, mas gosto da tua cara porque gosto de ti, pronto!
E em seguida beijou-a, primeiro a tremer, mas depois repetiu-o com tanto gosto que
ela
assustou-se e disse-lhe, empurrando-o: — Basta, Landry! Basta! Parece que me
abraças com
braveza ou que pensas em Madelon. Acalma-te, falarei com ela amanhã, e amanhã
poderás beijála com mais alegria do que aquela que eu te posso dar.
Dizendo isto, deixou rapidamente a pedreira e partiu no seu passo ligeiro.
Landry ficou como louco, com vontade de correr atrás dela. Hesitou três vezes antes
de se
resolver a seguir para os lados da ribeira. Depois, desatou também a correr e só
parou em Priche.
Ao alvorecer do dia seguinte, quando levou os animais para a pastagem, pensou na
conversa
que tivera na pedreira com Fadette. Ainda sentia a cabeça um pouco tonta devido aos
acontecimentos da véspera. E estava perturbado e quase assustado pelo que sentira
pela rapariga,
que Lhe aparecia diante dos olhos feia e mal vestida, como sempre a conhecera.
Considerou por
momentos ter sonhado o prazer que tivera de a beijar, e o contentamento que sentira
ao apertá-la
contra ele como se, de repente, ela lhe tivesse parecido mais bela e mais amável do
que qualquer
outra rapariga do mundo.
Deve ser feiticeira, como dizem, pensava, por certo que me enfeitiçou ontem à
noite, porque
nunca em toda a vida senti pelos meus pais, nem pela bela Madelon, nem mesmo pelo
meu
querido Sylvinet, um impulso de amizade semelhante ao que, durante dois ou três
minutos, essa
diabinha me inspirou. Se Sylvinet conseguisse ler o que me ia na mente; de certeza
que morria de
ciúmes. A afeição que eu tinha por Madelon em nada prejudicava o meu irmão, mas se
tivesse de
ficar o dia inteiro transtornado e irrequieto como fiquei junto daquela Fadette,
dava em doido
num instante.
E Landry sentia-se envergonhado, fatigado e impaciente. Sentado junto dos animais,
receava que a feiticeira lhe tivesse roubado a coragem, a razão e a saúde.
O pior foi quando os trabalhadores de Priche começaram a troçar por ele ter dançado
com o
grilo, e a fizeram tão feia, tão mal educada, tão mal ataviada, com as suas
zombarias, que ele não
sabia onde se meter, tal a vergonha que sentia, não só por aquilo que eles viram,
mas também doque guardava só para si.
Contudo, fez por não ligar, porque as pessoas de Priche eram suas amigas e as suas
brincadeiras eram sem maldade. Teve até a coragem de lhes dizer que Fadette não era
o que
julgavam, que valia o mesmo que as outras e que era capaz de ser bondosa.
Foi o bonito, ainda troçaram mais dele: — A mãe, não digo que não — ouviu-se —, mas
ela
é uma criança que não sabe nada e, se tiveres algum bicho doente, não te sugiro que
sigas os seus
tratamentos, pois é uma fala-barato que não tem nenhum segredo para curar. Mas, ao
que parece,
tem o de seduzir rapazes, já que tu não a largaste no dia de Santo Andoche. Será
bom que tomes
cuidado, meu pobre Landry, senão, em breve, chamar-te-ão o grilo ou o duende da
Fadette.
Mais tarde, quando Landry se ocupava das sementeiras, Fadette passou, ao longe, na
estrada. Ia a bom passo, dirigindo-se para uma mata onde Madelon estava a apanhar
ervas para
as ovelhas. Landry parou a olhá-la, tão ligeira que nem parecia pisar o chão.
Lembrou-se, e curioso de saber o que ela ia contar a Madelon, em vez de se apressar
a ir
almoçar, pois estava na hora, avançou antes silenciosamente ao longo da mata, para
escutar a
conversa das duas raparigas. Não as conseguia distinguir, Madelon resmungava em voz
surda,
sem se perceber o que dizia; já a voz de Fadette era perceptível, suave e bem
nítida e ele não
perdeu nenhuma das suas palavras. Falava dele a Madelon e informava-a de que
prometera a
Landry, do compromisso feito dez meses antes: estar às suas ordens para qualquer
coisa que ela
exigisse. Falava de uma forma tão humilde e gentil que era um prazer ouvi-la. E
depois, sem
falar no duende nem do pavor de Landry, contou como ele quase se afogara, na
véspera do Santo
Andoche. Enfim, demonstrou que todo o mal viera dela, da fantasia e da vaidade que
tivera em
dançar com um rapaz, ela, que sempre dançara só com os da sua laia.
Então, Madelon, encolerizada, elevou a voz. — E que tenho eu a ver com isso? Podes
continuar a dançar com os gémeos, pois não
julgues, grilo, que com isso me causas qualquer desgosto, ou inveja. — Não sejas
tão cruel para com o pobre Landry, Madelon, pois o seu coração pertence-te e
se não quiseres reconciliar-te, ele terá um desgosto que nem podes imaginar.
E continuou a falar, utilizando palavras tão bonitas e num tom tão carinhoso,
louvando de
tal modo Landry, que ele corava de prazer ao ouvir-se elogiado assim.
Madelon também ficou admirada com a fluência da pequena Fadette. Mas desprezava-a
demasiado para lho testemunhar. — Tens um belo palavreado, não haja dúvida! —
disse. — Parece que aprendeste bem a
lição com a tua avó para enganar as pessoas. Mas eu não gosto de falar com bruxas,
dá azar, por
isso faz o favor de me deixares, feiosa. Arranjaste um galã, fica com ele, minha
querida, pois é o
primeiro e o último a quem a tua cara agradará. Quanto a mim, querida, bem vês, não
me ficaria
bem tomar os teus restos. O teu Landry não passa de um asno e deve ser um tipo sem
interesse
para que tu, julgando me teres tirado, me venhas já pedir que o receba. Mas que
rica prenda para
mim, se nem à pequena Fadette interessa! — Se é isso que te ofende — refutou
Fadette num tom que emocionou profundamente
Landry —, e se és orgulhosa ao ponto de só seres justa depois de me humilhares,
alegra-te e pisa
o orgulho e a coragem deste pobre grilo. Julgas que desprezo Landry e que, se assim
não fosse,
não suplicaria que lhe perdoasses. Pois fica sabendo que o amo há já muito tempo,
que é o único
rapaz em quem alguma vez pensei. Mas também sou suficientemente sensata e orgulhosa
para
pensar poder vir a ser amada por ele. Sei o que ele é e o que eu sou. Ele é belo,
rico e afamado.
Eu sou feia pobre e desesperada. Sei portanto que ele não é para mim. E deves ter
visto como ele
me desdenhava na festa.Alegra-te pois, visto que aquele a quem Fadette nem sequer
ousa fitar, vê-te com os olhos
cheios de amor. Castiga-me recuperando aquele que eu nunca ousaria disputar.
Se não for por amizade por ele, pelo menos que seja para castigar o meu
atrevimento; e
promete-me que, quando ele vier pedir-te desculpas, o receberás bem e o consolarás
da melhor
maneira.
Em vez de se apiedar com tanta submissão e dedicação, Madelon mostrou-se cruel e
despediu a pequena Fadette, continuando a dizer que Landry era exatamente aquilo
que lhe
convinha e que, quanto a ela, o achava demasiado infantil e já não Lhe interessava.
Mas o
enorme sacrifício de Fadette deu os seus frutos, apesar do mau acolhimento da bela
Madelon. O
coração das mulheres é assim feito: um rapaz começa a parecer-lhes um homem assim
que o
vêem admirado e acarinhado por outras mulheres.
Madelon, que nunca pensara muito a sério em Landry, começou a considerá-lo doutra
maneira assim que Fadette partiu. Relembrou tudo o que esta lhe dissera sobre o
amor de Landry
e, ao pensar que Fadette estava apaixonada por ele ao ponto de lho ousar confessar
vangloriou-se
de poder tirar vingança daquela pobre rapariga.
À noite foi até Priche, pouco distante de sua casa, e fingindo procurar um dos seus
animais,
que fugira para o mato, aproximou-se de Landry, encorajando-o com o olhar a falar
com ela.
Landry apercebeu-se perfeitamente disso, pois, desde que tivera aquela conversa com
Fadette, tinha as ideias mais claras. Fadette é mesmo feiticeira, pensou,
recuperoume as atenções de Madelon e fez mais por mim, num quarto de hora, do que
eu faria num
ano. Tem um espírito surpreendente e um coração de uma bondade rara.
Enquanto pensava nisto, observava Madelon, mas tão calmamente que ela se afastou
sem se
ter decidido a falar. Não por sentir vergonha diante dela — a vergonha desaparecera
sem ele
saber como — mas porque lhe desapareceu também o prazer que costumava sentir ao vê-
la e o
desejo de ser amado por ela.
Assim, logo que acabou de jantar, em vez de ir dormir, saiu para a rua, deslizando
ao longo
dos muros, na direção do vau das Roulettes. Passou o vau sem qualquer receio, sem
se enganar, e
foi até à casa da tia Fadet, olhando para todos os lados. Ficou por ali à espreita,
durante tempo
infinito, mas não viu luz nem ouviu qualquer ruído.
Estavam todos deitados. Esperava que o grilo, como saía muitas vezes à noite depois
da avó
e do irmão adormecerem, andasse por aí a vaguear. Atravessou o Juncal, foi até à
pedreira,
assobiando e cantando para ser ouvido. Mas nada mais encontrou a não ser uma
coruja, piando
numa árvore. Viu-se assim forçado a regressar a casa e gorada a oportunidade de
agradecer à boa
amiga o que por ele fez.Uma nova Fadette
A semana passou-se sem que Landry conseguisse encontrar Fadette, o que o preocupou.
Vai
julgar-me outra vez ingrato, pensava, e, no entanto, se não a vejo, não é por falta
de a procurar.
Devo tê-la ofendido ao beijá-la quase à força na pedreira, apesar de ser sem má
intenção da
minha parte.
E durante toda a semana andou pensativo, agitado, confuso, tentando ver as coisas
com
clareza. Obrigava-se a trabalhar, pois nem os potentes animais, nem a charrua
reluzente, nem a
boa terra para lavrar, encharcada pela chuva de Outono, eram agora suficientes para
lhe
preencher os dias.
Foi visitar o irmão na quinta-feira à noite e encontrou-o tão preocupado quanto
ele. Sylvinet
era de carácter diferente, mas semelhante em muitos pontos. Dir-se-ia que
adivinhava que algo
perturbava a paz de espírito do irmão, e todavia estava longe de desconfiar do que
se tratava.
Perguntou-lhe se já tinha feito as pazes com Madelon e, pela primeira vez, ao
responder
afirmativamente, Landry disse uma mentira. O facto era que Landry não trocara uma
palavra
sequer com Madelon e pensava ter muito tempo para isso. Não tinha pressa.
Finalmente, chegou o domingo e Landry foi dos primeiros a aparecer na missa.
Entrou antes do sino tocar, pois sabia que a pequena Fadette tinha o costume de ir
mais
cedo, porque fazia sempre longas orações. Viu uma pequena, ajoelhada na capela,
que, de costas
voltadas, escondia a cara entre as mãos para rezar em recolhimento. Se era
exatamente a postura
da pequena Fadette, não eram nem as suas roupas, nem o seu aspecto, e Landry saiu
para ver se a
encontrava debaixo do pórtico. Também ali não a encontrou.
Ouviu a missa começar sem a descobrir, e só no final é que, ao olhar para aquela
rapariga
que rezava com tanta devoção, na capela, a viu levantar a cabeça e reconheceu, mas
vestida de
forma bem diferente da habitual. Eram na mesma trajes muito humildes, mas tinham
embranquecido e estavam ajustados à sua medida e tudo isso feito durante a semana.
O vestido
estava mais comprido e caía mais certinho sobre as meias, muito branquinhas, assim
como a
touca, à qual dera o feitio que agora se usava, graciosamente atada sobre os seus
cabelos negros
bem penteados; o lenço que trazia ao pescoço era novo, de um lindo tom amarelo, que
fazia
realçar a sua pele morena. Também alongara o corpete e agora, em vez de parecer uma
vara
vestida, tinha a cintura fina e flexível, como uma vespa. Além disso, com que
mistura de flores
ou plantas teria lavado a cara e as mãos? O rosto pálido e as mãos delicadas
pareciam tão limpos
e suaves como uma manhã de Primavera.
Ao vê-la assim transfigurada, Landry deixou cair o missal, cujo barulho fez a
pequena
Fadette voltar-se, fitando-o, cruzando-se os olhares. Ela corou ligeiramente, o que
a fez parecer
mais bonita, tanto mais que os olhos negros, lindos de verdade, deixaram escapar um
brilho tão
claro que irradiava simpatia. E Landry pensou uma vez mais: É feiticeira. De feia
que era, quis e
ficou bela, e eis o milagre. Agradavelmente surpreso e até com desejo de se
aproximar e de lhe
falar, ficou, porém com o coração aos pulos de impaciência.
Mas ela não tornou a mirá-lo, e em vez de se pôr a brincar e a correr com as outras
crianças
após a missa, foi-se embora tão discretamente que as pessoas mal tiveram tempo de
ver aquela
brusca mudança. Landry não se atreveu a segui-la, tanto mais que Sylvinet não o
largava, mas,
ao fim de uma hora, conseguiu escapar-se e foi dar com a pequena Fadette a conduzir
tranquilamente os animais num pequeno carreiro.Ao chegar junto dela já a viu
entretida com um passatempo bem conhecido de Landry.
Procurava trevos de quatro folhas, muito raros e que as raparigas dizem dar sorte a
todos aqueles
que lhe deitarem a mão. — Encontraste algum, Fanchon? — perguntou Landry. — Já os
encontrei muitas vezes – respondeu —, mas nunca me deram sorte, ao contrário do
que se julga, e de nada me serve ter três no meu livro.
Landry sentou-se a seu lado, como se fosse conversar. Mas de repente sentiu-se
dominado
por uma timidez como nunca tivera junto de Madelon, não conseguindo sequer
articular palavra,
das muitas que tinha para dizer.
Fadette também se sentiu intimidada, pois, embora o gémeo não dissesse nada,
fitava-a
todavia com olhar estranho. Até que lhe perguntou porque parecia espantado ao olhar
para si. — Surpreende-te o meu novo aspecto? — disse. — Decidi seguir o teu
conselho e pensei que, para ter um ar razoável, era preciso começar
por me vestir razoavelmente. Mas receio mostrar-me, pois temo que agora me censurem
por
causa disso e digam que me quis tornar menos feia sem o conseguir. — Digam o que
quiserem — disse Landry. A metamorfose resultou e a verdade é que estás
bonita. Só um cego o não veria. — Não brinques, Landry — pediu a pequena. — Dizem
que a beleza dá a volta à cabeça das raparigas e que a fealdade faz o desgosto das
feias. Não gostaria de tornar-me tola julgando agradar. Mas não era disto que me
vinhas falar, e
espero que me digas se Madelon te perdoou. — Não venho para te falar de Madelon.
Não sei se me perdoou ou não, e estou pouco
interessado nisso. Só sei que falaste com ela, e estou-te muito agradecido por
isso. — Como é que sabes que falei com ela? Então ela disse-te? Nesse caso, fizeram
as pazes. — Não fizemos pazes nenhumas! Mas também não gostamos suficientemente um
do outro
para andarmos em guerra. Sei que falaste com ela porque ela o contou a alguém que
mo contou.
Fadette corou profundamente, o que a tornou ainda mais bonita, pois nunca até esse
dia
tivera na face essa bonita cor de receio e prazer que compõe as mais feias. Mas, ao
mesmo
tempo, inquietou-se ao pensar que Madelon poderia ter divulgado as suas palavras e
expô-la à
zombaria de todos por causa do amor que ela confessar a sentir por Landry. — Que
disse então Madelon de mim?atreveu-se a perguntar. — Disse que eu era um asno, que
não agradava a nenhuma rapariga, nem mesmo à Fadette,
a qual me desprezava e fugia e se escondera de mim durante toda a semana para não
me ver,
enquanto eu a procurava e corria tudo que era sítio na esperança de a encontrar.
Sou portanto eu
o alvo de troça de toda a gente, Fanchon, porque toda a gente sabe que eu te amo e
que tu não me
amas.— Que palavras essas! — respondeu Fadette, muito admirada, pois não
descortinou que,
naquele momento, Landry estivesse a ser mais fino do que ela. — Não sabia que
Madelon era tão
mentirosa e tão pérfida. Mas deves perdoar-lhe isso, Landry, pois é o despeito que
a faz falar
assim, e o despeito significa amor. — Talvez seja assim — replicou Landry. — É por
isso que não te sentes despeitada comigo,
Fanchon. Perdoas-me, porque de mim desprezas tudo. — Não sejas ingrato, Landry. Não
mereço isso. Nunca fui suficientemente louca para dizer
mentiras como essas. Falei de outro modo com Madelon. O que lhe disse era só para
ela, mas
não te podia prejudicar, pelo contrário, deveria provar-lhe a estima que tenho por
ti. — Bom, Fanchon — disse Landry —, não vamos agora discutir sobre o que disseste
e o quenão disseste. Quero-te pedir conselho, a ti, que és sensata. Domingo
passado, na pedreira,
comecei a tomar por ti, sem saber bem como, uma amizade tão forte que em toda a
semana não
comi nem dormi de jeito. Não te vou esconder nada, porque a uma rapariga tão ladina
como tu
não escapa nada. Confesso que tive vergonha desta súbita amizade na segunda-feira
de manhã, e
desejava ir para muito longe para não tornar a cair na mesma loucura. Mas, à noite,
já estava na
mesma, de tal forma que passei o vau já escuro, sem me preocupar com qualquer
duende. Desde
segunda-feira que pareço um imbecil, com todos a troçarem de mim por causa da minha
inclinação por ti; e todos os dias esta inclinação é cada vez mais forte. E
finalmente hoje, vejo-te
tão mudada e com um aspecto tão agradável. Toda a gente vai ficar admirada! E se
continuas
assim, em menos de quinze dias, não só me perdoarão estar apaixonado por ti, como
surgirão
outros caidinhos por ti. Mas se te lembrares de domingo passado, dia de Santo
Andoche, também
te lembrarás que te pedi, na pedreira, permissão para te beijar e que o fiz como se
não fosses feia
e odiosa. Diz-me se isto não conta e se isso te chateia em vez de te convencer.
Fadette escondera a cara entre as mãos e não deu resposta. Landry, pelo que tinha
ouvido da
sua conversa com Madelon, estava convencido que era amado por ela. Mas, ao ver a
sua atitude
envergonhada e triste, começou a temer que ela tivesse contado histórias a Madelon
para, com
boa intenção, conseguir a reconciliação. Isso tornou-o ainda mais apaixonado e mais
triste.
Retirou-lhe as mãos do rosto e viu-a tão pálida que parecia ir desfalecer.
E como a acusava por não responder ao que sentia por ele, Fádette deixou-se cair no
chão,
suspirando, desmaiada.
Landry ficou muito assustado e bateu-lhe nas mãos para a fazer voltar a si. As mãos
estavam frias e rígidas. Aqueceu-as, esfregando-as durante muito tempo nas suas e,
quando ela
pôde de novo falar, disse: — Estás a divertir-te à minha custa, Landry. Mas há
coisas com que
não se deve brincar. Deixa-me tranquila e nunca mais me fales, a não ser que
precises de me
pedir algo, nesse caso estarei sempre ao teu dispor. — Fadette, Fadette — exclamou
Landry —, o que dizes não é justo. Foste tu que troçaste de
mim. Detestas-me, e no entanto fizeste-me crer noutra coisa. — Eu! — ripostou ela,
aflita. — Que te fiz eu crer? Dei-te uma franca amizade, como a que
o teu gémeo tem por ti, e talvez até melhor, pois eu não tenho ciúmes e, em vez de
te estorvar nas
tuas outras amizades, até te ajudei. — É verdade — concordou Landry. — Foste boa
como um anjo e eu comportei-me mal,
censurando-te. Perdoa-me, Fanchon, e deixa-me amar-te como puder. Prometo-te nunca
mais te
beijar, se isso te desagrada.
E Landry convenceu-se de que a pequena Fadette só tinha por ele uma pacífica
amizade.
Isso deixou-o tão receoso e tão acanhado junto dela como se não tivesse escutado a
sua conversa
com Madelon.
Quanto a Fadette, era suficientemente esperta para reconhecer, finalmente, que
Landry
gostava mesmo dela, e fora por causa dessa emoção tão intensa que desmaiara.
Mas temendo perder demasiado depressa uma felicidade tão depressa ganha, não queria
revelar imediatamente os seus sentimentos a fim de dar tempo a Landry de desejar
vivamente o
seu amor.
Ficou junto dela até ao anoitecer, e embora já não ousasse dirigir-lhe elogios,
estava tão
encantado e tinha tanto prazer em olhá-la e ouvi-la falar que não conseguia
decidir-se a deixá-la.
Brincou com o saltão, que nunca andava muito longe da irmã.
Mostrou-se bom para com ele e logo se percebeu que a pobre criança, tão maltratada
por
toda a gente, não era nem parva, nem má com quem a tratava bem. Ao cabo de uma hora
estavatão cativado e tão reconhecido que beijava as mãos do gémeo e lhe chamava meu
Landry como
chamava à irmã minha Fanchon. Landry enternecia-se pelo pequeno, achando toda a
gente e ele
próprio grandemente culpados em relação às duas pobres crianças da tia Fadet, as
quais só
careciam, para serem as melhores de todas, de um pouco de amor como qualquer
criança.
Nos dias seguintes, Landry conseguiu ver a pequena Fadette, ora à noite, ora de
dia, e então
podia conversar um pouco com ela, procurando-a nos campos. E embora ela não pudesse
parar
muito tempo, sob pena de faltar às suas obrigações, ele ficava contente por lhe
dizer algumas
palavras e devorá-la com os olhos. E ela continuava a ter modos gentis no falar, a
ser cuidadosa
no vestir e no tratamento com toda a gente, o que fez que as pessoas se
acautelassem e em breve
mudassem o seu comportamento para com ela. Aos seus olhos já não fazia nada de
condenável, e
por isso deixaram de a injuriar. Em contrapartida, ela, como deixou de ouvir
insultos, nunca mais
teve a tentação de provocar ou arreliar alguém.
Mas, como a opinião das pessoas não muda assim tão rapidamente, ainda iria decorrer
algum tempo antes que passassem do desprezo à consideração. De início não fizeram
grande
caso do aprumo da pequena Fadette.
Quatro ou cinco bons velhinhos, daqueles que gostam de observar o crescimento da
juventude com indulgência, cavaqueavam por vezes entre si observando todos aqueles
jovens
fervilhando em seu redor, uns jogando ao chinquilho, outros dançando. E
deles se ouviu: — Este dará um bom soldado, se continuar assim, pois tem boa
estatura; aquele será esperto
e sabido como o pai; aqueloutro terá o juízo e a tranquilidade da mãe; a jovem
Lucette promete
ser uma boa trabalhadora; olha para o grande Louis, que bonitão; e quanto à pequena
Marion,
deixem-na crescer e será como as outras.
E quando chegou a vez dos comentários à pequena Fadette, ouviu-se: — Anda fugida —
dizia um —, nem quer dançar, nem brincar. Ninguém lhe põe mais a vista em cima.
Parece que
ficou muito zangada por os rapazes lhe terem tirado a touca no baile; por isso
modificou aquela
enorme coisa e, agora, não parece mais feia do que outra qualquer. — Repararam como
anda com a pele mais branca? — observou por sua vez uma velhota.
A cara parecia um ovo de codorniz, de tanta sarda, mas da última vez que a vi de
perto
fiquei admirada por a encontrar tão branca e tão pálida, que lhe perguntei se não
estava doente.
Vendo-a como está agora, parece que tudo se vai compor, e, quem sabe?
Há feias que se tornam belas quando atingem a adolescência. — Também ficam mais
atinadas — continuou um outro velhote. — Uma rapariga, ao sentilo, aprende a
tornar-se elegante e agradável. Já era tempo do grilo se aperceber que não era
nenhum rapaz. Meu Deus, toda a gente pensava que se iria portar mal, o que seria
uma vergonha
para a aldeia. Mas há de ter juízo e emendar-se como as outras. Háde sentir que tem
de se fazer perdoar por ter tido uma mãe tão ingrata, e verão que nunca
mais se falará dela. — Deus queira — disse outro —, pois é feio uma rapariga
parecer um bicho selvagem.
Mas tenho esperanças nessa Fadette, pois encontrei-a anteontem, e em vez de se pôr,
como
era seu hábito, atrás de mim a imitar o meu coxear, deu-me os bons-dias e perguntou
pela minha
saúde com muita delicadeza. — Essa pequena de que estão a falar é mais louca do que
má — interrompeu outro. -
Não tem mau coração; a prova é que muitas vezes ficou com os meus netos no campo,
por
simples gentileza, quando a minha filha estava doente. Tratou tão bem deles, que
não a queriam
deixar.— É verdade o que dizem — interrogou uma velhinha —, que um dos gêmeos do
tio
Barbeau ficou maluco por ela na festa? — Ora, ora! — responderam-lhe. — Não se pode
levar isso a sério! Foi uma brincadeira de
crianças e os filhos Barbeau não são mais parvos do que os pais, estão a ouvir?
Assim se falava acerca da pequena Fadette e outras vezes nem isso se dizia, pois já
quase
não a viam.
Mas quem a topava amiudadas vezes e lhe prestava muita atenção era Landry Barbeau.
Ficava irritado quando não conseguia falar-lhe à vontade, mas, assim que se
encontrava a sós
com ela, sossegava e ficava feliz, porque ela consolava-o com a linguagem da razão.
A pequena Fadette, que mantivera durante tanto tempo a aparência de criança,
possuía uma
razão e uma vontade muito acima da idade. E para isso era preciso ter uma admirável
força de
espírito, pois o seu coração era muito mais carente que o de Landry.
Amava-o loucamente e todavia comportava-se com muito juízo. Embora pensasse nele a
toda a hora e morresse de impaciência por o ver e abraçar, assim que o via assumia
um ar
tranquilo, ocultando as batidas loucas do seu coração, fingindo não conhecer o fogo
do amor.
Landry estava de tal modo enfeitiçado, que andava sempre receoso de lhe desagradar
e com
dúvidas de ser amado.
Para o distrair da sua paixão, ela ensinava-lhe as coisas que sabia e em que o seu
espírito e
talento natural haviam ultrapassado o ensinamento da avó. Não queria fazer segredo
de nada a
Landry e, como ele continuava um pouco receoso da feitiçaria, ela empenhou-se em
lhe fazer
compreender que o diabo nada tinha que ver com os segredos do seu saber. — Ora,
Landry, a intervenção do espírito do mal não serve para nada. Só há um espírito, e
esse é o de Deus. O diabo é invenção dos padres, dos bruxos e também das velhas do
campo.
Quando era pequena, acreditava, e tinha medo dos segredos da minha avó. Mas ela
ria-se de mim
e dizia-me que aquele que duvida de tudo, é aquele que faz crer tudo aos outros. E
ninguém
acredita menos no diabo do que os feiticeiros, que os invocam por tudo e por nada.
Nunca o
viram, nem nunca receberam qualquer ajuda deles. — Mas — dizia Landry —, isso de
dizeres que o diabo não existe, não é muito cristão,
querida Fanchon. — Eu sei lá disso! — respondeu. — Mas se existe, tenho a certeza
de que não tem poder
nenhum para vir à Terra enganar-nos e roubar-nos a alma. Não o poderia, uma vez que
a Terra é
de Deus, e só Deus pode governar as coisas e os homens que nela habitam.
E Landry, acalmados os seus receios, admirava Fadette pela defesa dos seus ideais
católicos, mostrando uma devoção bem mais profunda que as outras. Amava a Deus do
fundo do
coração, e ao falar desse amor a Landry, este surpreendia-se por ter sido ensinado
a seguir
práticas que nunca tentara analisar, respeitando-as apenas pela ideia do dever, sem
que no
entanto o coração tenha sentido algo de semelhante ao que Fadette sentia pelo
Criador.
Também com ela foi conhecendo as propriedades das ervas e o receituário para a cura
das
pessoas e animais. Aliás, não tardou que fizesse uma experiência numa vaca do tio
Caillaud, que
apareceu com uma inflamação por ter comido demasiada erva. O
veterinário desistiu de a salvar, não lhe dando mais de uma hora de vida. E Landry
às
escondidas fez-lhe ingerir uma beberagem que Fadette lhe ensinara a compor. De
manhã, quando
o lavrador se dispunha a ir buscar a vaca para a enterrar, encontrou-a de pé, e,
surpreendentemente, agarrada à comida e de olhar mais vivo e quase sem inflamação.
Outra vez, um potro foi mordido por uma cobra, e Landry, seguindo os métodos de
Fadette,
salvou-lhe a vida. Quase logo a seguir também experimentou o remédio contra a raiva
num cãode Priche, livrando-o da morte e de morder em alguém. Como Landry escondia o
seu
relacionamento com a pequena Fadette e não se vangloriou do seu saber, as pessoas
atribuíam as
curas dos animais simplesmente ao extremado cuidado que ele punha no que fazia.
Mas o tio Caillaud, que também percebia do assunto, como bom caseiro que era,
andava
intrigado e comentava: — O tio Barbeau não tem jeito, nem sorte com os animais,
pois perdeu
muito gado o ano passado e, infelizmente, não foi a primeira vez. Já Landry tem boa
mão para
isso.
Afinal, é uma coisa que já nasce com a pessoa. Mesmo que se vá para as escolas,
isso de
pouco serve se não se tem jeito de nascença. Ele, está visto, recebeu esse dom da
Natureza, e serlhe-á bem mais útil que o dinheiro para gerir uma quinta.
O tio Caillaud enganava-se ao atribuir aquele dom da Natureza a Landry, sem embargo
das
qualidades que possuía em ser cuidadoso e competente a aplicar as receitas que
aprendera. Mas o
dom da Natureza é real, uma vez que a pequena Fadette o possuía e que, com tão
poucas lições
que a avó lhe dera procurava, descobria e adivinhava, as virtudes que Deus deu a
certas ervas e a
maneira de as empregar. Não era feiticeira por causa disso, e tinha razão para
protestar. Tinha
espírito observador, fazendo comparações, reparos, experiências, e isso sim, era
dom da
Natureza. O tio Caillaud levava a coisa um pouco mais longe. Pensava que um
lavrador tinha a
mão mais ou menos boa e que, unicamente pela sua presença, fazia bem ou mal aos
animais. No
entanto, não deixava de ser inegável que os bons cuidados, a limpeza, o trabalho
feito com
consciência, tudo isso, tem a virtude de levar a bom êxito o que a negligência ou a
estupidez
fazem piorar.
A amizade que Landry concebeu por Fadette aumentou com o reconhecimento que lhe
devia pelo ensino e seu talento. Por isso ficou gratíssimo por ela ter partilhado
os seus
conhecimentos, de grande utilidade para ele.
Landry ficou tão apaixonado que esqueceu a vergonha de mostrar o seu amor por uma
rapariguita considerada feia, má e mal-educada. Se ainda tomava algumas precauções,
era por
causa do irmão gémeo, ciumento que já anteriormente aceitara de mau grado a
paixoneta que ele
tivera por Madelon, incomparável à que agora sentia por Fanchon.
Se Landry estava demasiado animado com o seu amor para agir com prudência, a
pequena
Fadette, que tinha um espírito aberto ao mistério, queria evitar expor Landry às
impertinências
das pessoas. Ela amava-o demasiado para lhe causar quaisquer tormentos com a
família e exigiu
dele um segredo tão grande, que decorreu cerca de um ano a ser descoberto. Landry
habituara
Sylvinet a não vigiar todas as suas andanças, e a região pouco povoada mais cortada
por ravinas
e rodeada de árvores, tornava-se adequada aos encontros secretos.
Sylvinet, vendo que Landry já não ligava a Madelon, embora de início tivesse
aceitado essa
partilha da sua amizade como um mal necessário, regozijou-se ao pensar que Landry
não tinha
pressa de lhe retirar a sua amizade para a dar a uma mulher e, sem ciúmes, deixou-o
mais livre
nas suas ocupações e passeios. Landry passava a vida a arranjar motivos para ir e
vir e, sobretudo
nos domingos à noite, saía de casa dos pais cedo e só regressava a Priche por volta
da meia-noite.
Dessa maneira, Landry tinha sempre o domingo só para si, até segunda-feira de
manhã, porque o
tio Caillaud e o filho mais velho, que eram excelentes pessoas, costumavam ficar
com o encargo
e a vigilância da quinta nos dias de descanso, a fim de que, diziam, todo o pessoal
da casa, que
trabalhava mais do que eles durante a semana, naquele dia pudesse folgar e
divertir-se em
liberdade, segundo a vontade de Deus.
No Inverno, em que as noites são frias e dificilmente se pode andar no campo, havia
para
Landry e para Fadette um bom refúgio na torre de Jacot, um antigo pombal,
abandonado pelospombos há longos anos, bem coberto e bem fechado e pertencente à
quinta do tio Caillaud.
Serviam-se dele para guardar o excesso de gêneros. Landry tinha a chave e situava-
se nos
confins de Priche, de modo que era de supor que ninguém se lembrasse de ali
importunar os
jovens namorados.
Passavam naquele refúgio momentos inesquecíveis, falando do futuro e do dia em que,
finalmente, poderiam amar-se livremente. Ali, as horas decorriam demasiado rápidas
e a
separação era-lhes sempre difícil.
Mas, como não há segredo que sempre dure, num belo domingo, ao passar ao longo do
muro, Sylvinet ouviu a voz do gémeo a falar do outro lado do muro. Landry falava
baixinho, mas
Sylvinet conhecia-lhe bem a voz, mesmo naquele tom. — Porque não queres vir dançar?
— perguntava a alguém que Sylvinet desconhecia. -
Há tanto tempo que não te vêem por lá, que ninguém achará mal que eu dance contigo.
Eu sou suposto quase não te conhecer. Ninguém dirá que é por amor, mas sim por
delicadeza, e porque estou curioso de saber se, após tanto tempo, ainda sabes
dançar. — Não, Landry, não! — respondeu uma voz que Sylvinet não reconheceu, pois
Fadette
andava afastada de toda a gente, particularmente dele. Não, é melhor não dar nas
vistas, e se
dançasses comigo uma vez, quererias recomeçar todos os domingos, e não seria
preciso mais
para começarem a falar. Acredita no que sempre te disse, Landry: no dia em que
souberem do
nosso amor, surgirão problemas. Deixa-me ir embora, e depois de passares uma parte
do dia com
a tua família, virás então ter comigo ao sítio do costume. — Mas olha que é triste
nunca poder dançar — exclamou Landry. — Tu gostavas tanto da
dança e danças tão bem! Que prazer não seria pegar-te na mão e fazer-te girar nos
meus braços e
ver-te, tão leve e tão gentil, dançando comigo! — É justamente o que não deve
acontecer!replicou ela. — Tens saudades de dançar, meu
Landry, e não sei porque renunciaste. Vai dançar um bocadinho, eu ficarei feliz por
saber que te
estás a divertir e assim esperarei por ti mais resignadamente. — Oh! Tu tens mas é
paciência de mais — disse Landry numa voz que não a mostrava. —
Preferia que me cortassem as pernas a dançar com raparigas de quem não gosto e que
não
beijaria por todo o ouro do mundo. — Está bem, mas se eu fosse dançar — replicou
Fadette —, também tinha de dançar com
outros rapazes e deixar-me beijar por eles. — Vai-te embora, vai depressa! —
exclamou Landry. — Isso não! Não quero que ninguém
te beije.
Sylvinet não ouviu mais nada além de passos que se afastavam e, para não ser
surpreendido
pelo irmão, escondeu-se até ele passar.
Tal descoberta foi como que uma facada no coração de Sylvinet. Não tentou descobrir
quem
era a rapariga que Landry amava tão apaixonada mente. Bastava-lhe saber que havia
uma pessoa
pela qual Landry o abandonava e para quem iam todos os seus pensamentos, ao ponto
de os
esconder do irmão gêmeo. Deve desconfiar de mim, pensou, e essa rapariga de quem
gosta tanto
deve levá-lo a evitar-me e a detestar-me.
Não é de admirar que ande sempre tão aborrecido em casa e tão inquieto quando quero
dar
um passeio com ele. Eu não insistia, julgando que gostava de estar só, mas agora
evitarei a todo
o custo incomodá-lo. Nem lhe direi nada; ficaria zangado se soubesse que descobri o
que não me
quis confiar. Sofrerei sozinho, enquanto ele se congratulará por se ter
desembaraçado de mim.
Sylvinet cumpriu o que prometera e foi até mais longe, pois não só nunca mais
tentou reter
o irmão a seu lado, mas também, para não o atrapalhar, passou a ser o primeiro a
sair de casa e irpassear sozinho à volta da casa, não querendo ir para o campo:
Porque, pensava, se por acaso aí
o encontro, ele vai imaginar que ando a espiá-lo e dar-me- ia a entender que o
incomodo.
E, assim o seu antigo desgosto, do qual estava praticamente curado, voltou tão
pesado e tão
afincado, que não tardou a refletir-se lhe na cara. A mãe preocupou-se, mas, como
ele tinha
vergonha, aos dezoito anos, de ter as mesmas fraquezas de espírito que aos quinze,
nunca quis
confessar o que o atormentava.
Foi isso que o salvou de adoecer, pois aquele que tem a coragem de guardar a sua
dor é
mais forte contra ela do que aquele que se queixa. O pobre gémeo começou a andar
triste e
pálido, e embora fosse sempre crescendo um bocadinho, manteve-se magro e com um ar
frágil.
Não era resistente no trabalho, apesar de não fugir a ele, pois sabia que o
trabalho era um bom
remédio contra a tristeza e não queria prejudicar o pai com a sua indiferença.
Deitava então mãos
à obra e trabalhava com raiva contra si próprio. Assim, com frequência, realizava
mais do que
podia suportar, e no dia seguinte estava tão cansado que não conseguia fazer nada.
— Nunca será um trabalhador robusto — dizia o tio Barbeau —, mas faz o que pode e
quando pode. É por isso que não o quero empregar longe; com o medo que tem das
repreensões e
a pouca força que Deus lhe deu, depressa se arruinaria, e eu ficaria para sempre
com esse peso na
consciência.
A tia Barbeau, obviamente, concordava com essas razões e fazia os possíveis por
animar
Sylvinet. Consultou vários médicos sobre a sua saúde. Uns disseram-lhe que o deviam
tratar com
muitos cuidados porque estava fraco. Outros, que deviam obrigá-lo a trabalhar,
alimentando-o
bem, porque, como estava fraco, precisava de se fortificar. A tia Barbeau não sabia
que
prescrições seguir, tais os conselhos recebidos.
Felizmente, na dúvida, não seguiu nenhum e Sylvinet prosseguiu a vida que Deus lhe
havia
traçado, carregando o seu mal sem grandes percalços até ao momento em que os amores
de
Landry vieram à baila e Sylvinet viu a sua dor aumentada.Desvendado o segredo
Foi Madelon quem descobriu o segredo, e embora o tenha feito sem maldade, tirou
disso
mau partido. Resignara-se facilmente de Landry, e não tendo perdido muito tempo a
amá-lo, não
lhe custou a esquecê-lo. E mais, ficara-lhe no coração um pequeno rancor, que ainda
aguardava
uma oportunidade para se dar a conhecer.
E aconteceu. Madelon, considerada pelo seu ar assisado, era no fundo bem vaidosa e
menos
razoável e fiel nas suas amizades que o desafortunado grilo, de quem tão mal
falavam. Afinal,
Madelon já tivera dois namorados, sem contar Landry, e namoriscava agora um
terceiro, que era
o filho mais novo do tio Caillaud. Sendo vigiada por este último e temendo algum
escândalo,
sem saber onde se esconder para conversar à vontade, deixou-se persuadir pelo filho
Caillaud a ir
para o pombal, onde justamente Landry tinha os encontros com Fadette.
Com essa intenção, o jovem Caillaud rebuscou tudo à procura da chave do pombal, mas
não
a encontrou. Quem a trazia no bolso era Landry. De modo que desistiu de a pedir a
alguém, pois
não tinha motivos que justificassem a sua posse. Assim, o pequeno Caillaud,
julgando-a perdida
ou que o pai a trazia com ele, não esteve com meias medidas: foi-se à porta do
pombal e
arrombou-a. Mas, no dia em que o fez, Landry e Fadette encontravam-se lá, e os
quatro
namorados ficaram extremamente embaraçados ao confrontarem-se ali. Claro, nessas
circunstâncias, resolveram calar-se e nada divulgar.
Só que Madelon teve um acesso de ciúmes e de raiva ao ver que Landry, então já um
dos
mais belos rapazes da terra, se mantinha fiel àquela feiosa da Fadette, e decidiu
vingar-se. Para
isso, sem nada contar ao filho Caillaud, pediu ajuda a duas amigas, indo elas, de
si também
despeitadas pelo desprezo e indiferença que Landry parecia votar-lhes, por não as
convidar para
dançar, pôr-se à coca dos dois jovens, para se assegurarem das suas relações.
Depois de os verem
uma ou duas vezes juntos, fizeram estardalhaço disso por toda a parte, dizendo que
Landry
andava perdido de amores pelo feioso grilo.
Foi, por conseguinte, dessa forma que todas as raparigas se intrometeram no
assunto, pois,
quando um rapaz de bom aspecto e com posses se vira para uma pessoa daquelas, é
como que
uma injúria a todas elas, e havendo possibilidades de criticar ninguém o evita.
Assim, quinze dias depois do encontro na torre de Jacot, sem que fosse questão de
Madelon,
que tivera o cuidado de não se envolver no assunto e que até fingiu tomar
conhecimento do
escândalo que fora a primeira a revelar, toda a gente estava a par dos amores de
Landry, o
gémeo, com Fanchon, o grilo.
Portanto, a notícia chegou aos ouvidos da tia Barbeau, que muito se afligiu e não
quis falar
nisso ao marido. Mas este soube-o por outras bocas, e Sylvinet, que tão
discretamente guardara o
segredo do irmão, teve o desgosto de ver que todos o conheciam.
Assim, uma noite em que Landry se preparava para sair cedo de casa, como era
hábito, o pai
disse-lhe, na presença da mãe e dos irmãos: — Não tenhas tanta pressa, Landry!
Pretendo falar
contigo e só estou à espera que o teu padrinho chegue, pois é diante dos membros da
família que
mais se interessam por ti que quero pedir-te uma explicação.
E quando o padrinho, tio Landriche, chegou, o pai Barbeau começou o responso: — O
que
tenho para te dizer causar-te-á alguma vergonha, meu Landry; também não é sem
vergonha, que
eu próprio me vejo obrigado a falar-te diante da família. Mas espero que essa
vergonha te seja
salutar e te cure de uma fantasia que poderá trazer-te desgraças. Diz-se por aí que
andas com unsencontros há quase um ano. Logo no primeiro dia me falaram disso, pois
acharam inconcebível
ver-te dançar toda a festa com a rapariga mais feia, mais desmazelada e de pior
fama da nossa
terra. Não liguei importância ao caso, pensando que não passava de uma brincadeira,
apesar de
não aprovar, porque, se não se deve frequentar as pessoas duvidosas, também não se
deve
aumentar a sua humilhação e a infelicidade de serem odiadas. Não te falei do caso,
pensando, ao
ver-te triste no dia seguinte, que te censuravas pelo que tinhas feito. Mas eis
que, há cerca de
uma semana, ouço dizer uma coisa completamente diferente e, embora vindo de pessoas
de
confiança, não quero acreditar nisso, a menos que tu próprio mo confirmes. Se
procedi mal,
suspeitando de ti, apenas se deve ao interesse que te dedico e ao dever que tenho
de vigiar a tua
conduta, pois, se não passa de uma calúnia, proporcionar-me-ás um grande prazer
dando-me a
tua palavra de honra e declarando-me que te difamaram injustamente. — Pai —
respondeu Landry —, nesse caso diga-me de que me acusa e eu responder-lhe-ei
conforme a verdade e o respeito que lhe devo. — Acusam-te, Landry, e creio que to
dei a entender, de manteres relações desonestas com a
neta da tia Fadet, que é uma mulher duvidosa, sem contar que a mãe dessa pobrezinha
abandonou o marido, os filhos... Acusam-te de passeares por todo o lado com a
pequena Fadette,
o que me faz recear te teres envolvido num namoro, do qual virás a arrepender-te
durante toda a
vida. Entendes agora? — Entendi muitíssimo bem, meu pai — respondeu Landry —, mas
permita-me que lhe
pergunte antes de responder: é por causa da família ou apenas por causa dela que vê
a Fanchon
Fadet como má companhia para mim? — É sem dúvida por causa de ambas — retorquiu o
tio Barbeau com mais severidade do
que empregara no começo, pois esperara que Landry ficasse embaraçado e via-o
tranquilo e com
ar resoluto. — Em primeiro lugar, um mau parentesco é uma nódoa e nunca uma família
honrada
como a nossa quereria aliar-se à família Fadet. Depois, a pequena Fadette não
inspira estima nem
confiança a ninguém. A vimos crescer e sabemos o que vale. Ouvi dizer, e reconheço-
o, que de
há um ano para cá se comporta melhor, já não anda na brincadeira com os miúdos, nem
responde
mal a ninguém...
Como vês, não desejo afastar-me da justiça! Mas isso não basta para acreditar que
uma
criança que foi tão mal-educada possa tornar-se numa mulher honrada, e conhecendo a
avó como
a conheci, tenho todos os motivos para recear que haja por aí uma armadilha
qualquer para te
arrancar promessas e causar-te vergonha e embaraço.
Landry, que prometera a si próprio ser prudente e explicar-se com calma, perdeu a
paciência. Ficou vermelho como um pimento e, erguendo-se, protestou. — Pai, quem
lhe disse isso, mentiu, e fê-lo com quantos dentes tem na boca.
Insultaram de tal modo Fanchon Fadet que, se aqui estivessem, teriam de se haver
comigo,
até um de nós ficar no chão. Essa gente é cobarde. Que me venham dizer na cara o
que andaram
a insinuar pelas costas, e veremos o que acontece. — Não te zangues assim, Landry —
disse Sylvinet, abatido pelo desgosto. — O pai não te
acusa de teres agido mal com essa rapariga; mas receia que ela ande a preparar
alguma para te
apanhar.
A voz do gémeo serenou um pouco Landry; mas este não pôde deixar passar as palavras
dele: — Irmão — disse —, não percebes nada disto. Sempre andaste de pé atrás com a
pequena
Fadette e não a conheces. Ainda não me preocupei com o que dizem de mim, mas não
consentirei que digam mal dela, e quero que o meu pai e a minha mãe saibam, pela
minha boca,
que não há cá na terra outra rapariga tão honesta, tão ajuizada, tão boa, tão
desinteressada, comoela. A infelicidade de pertencer a uma família como a que tem,
mais mérito lhe dá em ser como
é, e eu nunca julgaria possível que almas cristãs pudessem censurar a infelicidade
do nascimento.
O tio Barbeau levantou-se, para mostrar que não consentiria que as coisas fossem
mais
longe entre eles. — Vejo, pelo despeito, que estás mais afeiçoado a essa Fadette do
que eu pensava.
Uma vez que não te envergonhas nem te arrependes, não falaremos mais nisso. Vou
pensar
no que devo fazer, para evitar o trambolhão. Agora, segue para o teu patrão. — Não
nos deixes assim — disse Sylvinet, retendo o irmão, que se ia embora. — Pai,
Landry sente tanta pena por lhe ter desagradado, que não consegue dizer nada.
Conceda-lhe o seu perdão e beije-o, pois está prestes a chorar e o seu
descontentamento
seria um castigo demasiado grande.
Sylvinet chorava, todos os outros choravam também. Só o tio Barbeau e Landry tinham
os
olhos secos, mas em desespero. O pai não exigiu nenhuma promessa, pois sabia que
nesses casos
as promessas são duvidosas, mas deu a entender a Landry que ainda não acabara e que
voltaria
ao assunto. Landry foi-se embora encolerizado e desolado. Sylvinet pensou em segui-
lo mas não
ousou, porque desconfiou que ele ia dar conta do seu desgosto a Fadette; foi
deitar-se, e, de
infeliz, mais não fez durante toda a noite senão suspirar e sonhar com a desgraça
da família.A separação
Landry foi bater à porta da pequena Fadette. A tia Fadet tornara-se tão surda que,
uma vez
adormecida, nada a acordava, e desde há algum tempo que Landry, após a bronca, só
podia
conversar com Fanchon à noite e no quarto onde ela dormia com a velhota e o pequeno
Jeanet; e
mesmo ali se arriscava, pois a velhota não o suportava e seria mais natural
desancá-lo à
vassourada do que despedi-lo com cumprimentos.
Landry contou a sua mágoa a Fadette, achando-a compreensiva, submissa e corajosa.
Ela
ainda tentou persuadi-lo de que faria melhor, no seu próprio interesse, em reatar
as pazes e não
mais pensar nela. Mas, quando viu que ele se afligia e revoltava ainda mais,
aconselhou-o à
obediência, dando-lhe esperanças no futuro. — Escuta, Landry — disse-lhe —, já
tinha previsto tudo isto e pensei muitas vezes no que
faríamos, neste caso. O teu pai não deixa de ter razão e não lhe quero mal, pois é
por gostar
muito de ti que receia ver-te ligado a uma pessoa tão pouco merecedora como eu sou.
Perdôo-lhe
o orgulho e a injustiça, pois não pretendo negar que a minha primeira juventude foi
louca, e tu
próprio ma censuraste no dia em que me começaste a amar. De há um ano para cá
emendei-me,
mas não é tempo suficiente para que ele adquira confiança. É necessário esperar e,
pouco a
pouco, as acusações que tinham contra mim desaparecerão e as mentiras de agora de
nada
valerão. O teu pai e a tua mãe verão que eu sou ajuizada e que não te quero
desencaminhar.
Acreditarão na sinceridade dos meus sentimentos e poder-nos-emos ver e falar sem
nos esconder
de ninguém. Entretanto, tens de obedecer a teu pai, que, estou certa, te vai
proibir de me veres. — Nunca terei essa coragem! — exclamou Landry. — Preferia
morrer! — Pois bem, se não a tens, tê-la-ei eu — replicou a pequena Fadette. —
Partirei, deixarei a
terra por algum tempo. Há dois meses que andam a oferecer-me um bom lugar na
cidade. A
minha avó está tão surda e tão idosa que já quase não pode vender os remédios. Tem
uma
familiar muito boa que se oferece para vir viver e cuidar dela, assim como do pobre
saltão.
A voz da pequena Fadette falhou um momento à ideia de deixar a criança, que era,
com
Landry, quem ela mais amava no mundo; mas tomou coragem e continuou melancólica: —
Agora, já é suficientemente forte para passar sem mim. Vai fazer a primeira
comunhão e o
divertimento de ir à catequese e brincar com as outras crianças distraí-lo-á do
desgosto da minha
ausência. Os outros rapazes deixaram de o atormentar tanto.
Portanto, é preciso, Landry; é preciso que me esqueçam um pouco, pois neste momento

uma grande raiva. Após um ou dois anos longe e quando regressar com boas maneiras e
boa
reputação, nunca mais nos atormentarão e seremos melhores amigos do que nunca.
Landry discordou daquelas razões. Ficou desesperado e regressou a Priche em estado
francamente lastimoso.
Dois dias depois, quando se dirigia para a vindima, o jovem Caillaud abordou-o: —
Vejo,
Landry, que estás zangado comigo à algum tempo e não me falas. Julgas porventura
que fui eu
quem divulgou os teus encontros com a pequena Fadette. Estou chateado por creres
nisso, numa
vileza dessas. Juro-te por Deus que nunca contei nada e é-me bastante penoso que te
tenham
causado esses aborrecimentos, pois sempre te considerei e jamais injuriei Fadette.
Para ser
franco, até estimo essa rapariga, pois ela podia ter comentado o nosso encontro no
pombal e
nunca ninguém soube de nada. E, em desespero de causa, até o podia ter feito, mais
que não
fosse para se vingar de Madelon, que se sabe perfeitamente ser a autora de todo o
falatório. Éverdade, Landry, não nos devemos fiar nas aparências e nas reputações.
Fadette, que passava por
má, foi boa; Madelon, que passava por boa, foi desleal e intriguista, não só para
contigo, mas
também para comigo, tendo eu já muitas queixas a fazer da sua fidelidade.
Landry aceitou com prazer as explicações do jovem e recebeu de bom grado as suas
palavras de conforto. — Causaram-te muitos desgostos, meu pobre Landry mas a
conduta da pequena Fadette
deve consolar-te. Faz bem em se ir embora, para acabar com as inquietações da tua
família, e
acabo de lho dizer, aliás, ao despedir-me dela no caminho. — Que estás a dizer,
benjamim? — exclamou Landry. — Ela vai-se embora? Partiu? — Não sabias? — perguntou
este. — Pensava que tinha sido combinado entre vocês e que
não a acompanhavas para não seres censurado. Mas ela vai-se embora, de certeza;
passou pela
nossa casa há menos de um quarto de hora e levava um embrulho debaixo do braço.
Landry abandonou a parelha de bois que levava para a vindima e desatou a correr, só
parando quando alcançou a pequena Fadette, no caminho. Aí, completamente esgotado
pelo
desgosto e pelo cansaço da corrida, caiu de joelhos sem conseguir falar, dando-lhe
a entender por
gestos que não passaria dali.
Quando já quase restabelecido, Fadette disse-lhe: — Queria evitar-te este desgosto,
meu
querido Landry, e tu esforças-te por me tirar a coragem. Sê homem e ajuda-me a ter
ânimo; me
és necessário mais do que julgas, e quando penso no meu pobre saltão, que, a esta
hora, deve
andar à minha procura, sinto-me enfraquecer. Ah! suplico-te, Landry, ajuda-me a
trilhar o meu
caminho; se não vou hoje, nunca mais irei, e estaremos perdidos, meu querido. —
Fanchon, Fanchon, não precisas de grande coragem! — respondeu Landry. — Só tens
saudades de uma criança, que em breve se consolará, porque não passa de uma
criança. Não te
preocupas com o meu desespero. Não sabes o que é o amor. Não sentes nenhum por mim
e vais
esquecer-me depressa, o que fará com que talvez nunca mais regresses. —
Regressarei, Landry! Deus é testemunha de que voltarei dentro de um ano ou dois o
mais
tardar, e que não te esquecerei, tão pouco terei outro amigo ou namorado! — Outro
amigo, é possível, Fanchon, porque nunca encontrarás um tão dedicado como eu,
mas outro namorado, já não sei, quem sabe? — Sei eu! — Tu própria não sabes nada,
Fanchon, nunca amaste, e quando sentires o amor nunca mais
te lembrarás do teu pobre Landry. Ah! se me amasses como eu te amo, não me
deixarias assim! — Achas, Landry? — perguntou Fadette, fitando-o com um olhar
triste e sério. — Eu acho
que o amor me obrigaria mais do que a amizade. — Pois bem, se for o amor que te
obriga, não terei tanto desgosto. Oh! sim, Fanchon, acho
que quase seria feliz na minha infelicidade! Teria confiança na tua palavra e
esperança no futuro
Teria á coragem que tu tens, a sério. Mas não é amor, disseste-me muitas vezes e
vi-o na tua
grande tranquilidade junto de mim! — Então achas que não é amor? — perguntou a
pequena Fadette. — Tens a certeza
absoluta?
E, continuando a fitá-lo, os seus olhos encheram-se de lágrimas, que rolaram pelas
faces,
enquanto sorria de um modo estranho. — Oh, meu Deus — exclamou Landry, tomando-a
nos braços. — Se eu pudesse estar
enganado! — Eu acho que estás — respondeu a pequena Fadette. — Desde os treze anos,
o pobre grilo
reparou em Landry e de aí em diante nunca mais olhou para outro. Acho que, quando
ela oseguia pelos campos dizendo-lhe tolices e impertinências para o forçar a
reparar nela, não sabia
ainda o que a impelia para ele. Acho que, quando um dia partiu à procura de
Sylvinet, sabendo
que Landry sofria e o encontrou à beira-rio, mergulhado nos seus pensamentos e com
um
cordeirinho nos joelhos, armou-se em feiticeira para forçá-lo ao reconhecimento.
Acho que,
quando o injuriou no vau das Roulettes, fê-lo por despeito e desgosto por ele nunca
mais lhe ter
falado. Acho que, se quis dançar com ele, foi porque estava louca por si e esperava
agradar-lhe
com o seu fato para a dança. Acho que, quando estava a chorar na pedreira o fazia
por
arrependimento e pena de lhe ter desagradado. Finalmente acho que, quando ele a
queria beijar e
ela o recusou, quando ele lhe falava de amor e ela lhe respondia com palavras de
amizade, era
com medo de perder esse amor, aceitando-o demasiado depressa. Se ela, angustiada,
parte com o
coração despedaçado, é na esperança de regressar mais digna dele e aos olhos de
toda a gente
poder ser sua mulher, sem macular nem humilhar a sua família.
Landry julgou ficar louco. Ria, gritava, e chorava; beijava as mãos, o vestido de
Fanchon e
ter-lhe-ia beijado os pés se ela tivesse consentido. Mas ela ergueu-o e deu-lhe um
verdadeiro
beijo de amor, o primeiro que recebia dela. Depois, pegando no embrulho, vermelha e
confusa,
fugiu proibindo-o de a seguir e jurando voltar.
De retorno às vindimas, Landry ficou surpreendido por não se sentir tão infeliz
como
pensava, tal a doçura de se saber amado e a confiança que sentia por amar
intensamente. Estava
tão contente que não pôde impedir-se de falar nisso ao Benjamin Caillaud, que
louvou a pequena
Fadette por ter sabido defender-se tão bem de qualquer fraqueza ou imprudência,
desde a altura
em que passou amar Landry e era amada por ele. — Estou contente por saber que essa
rapariga tem tantas qualidades — disselhe —, pois,
pelo que me diz respeito, nunca a julguei mal. E com aqueles olhos, sempre me
pareceu mais
bela do que feia e, desde há certo tempo, toda a gente poderia ver, se ela tivesse
aparecido, que se
tornara dia a dia mais atraente. Mas só a ti amava, Landry, e contentava-se em não
ser
desagradável para os outros. Só lhe interessava a tua aprovação, e digo-te que uma
rapariga com
tal carácter faria as delícias de muitos rapazes. Aliás, como a conheço desde
criança, sempre
achei que tinha um grande coração, e se pedíssemos às pessoas que dissessem em boa
verdade o
que cada uma pensa e o que sabe, todas seriam obrigadas a testemunhar em seu favor.
Só que o
mundo é feito assim, e quando duas ou três pessoas andam atrás de uma outra, todos
se
intrometem, atirando-lhe pedras e criando-lhe má fama sem saberem bem porquê,
talvez pelo
prazer mórbido de rebaixar quem não se pode defender.
Landry sentiu um grande alívio ao ouvir o jovem falar daquele modo e, desde esse
dia,
tornaram-se amigos.
Alguns dias depois Landry fez-lhe uma proposta: — Não penses mais nessa Madelon,
que
não vale nada e causou desgostos a ambos, meu caro benjamim. Temos a mesma idade e
nada te
apressa a casar. Ora, eu tenho uma irmã, Nanette, que é linda como uma flor, bem-
educada,
meiga, graciosa e vai fazer dezasseis anos. Vai visitar-nos mais frequentemente.
Meu pai gosta
de ti e, quando conheceres bem a nossa Nanette, verás que não te sairá mais da
ideia te tornares
meu cunhado. — Bom, não digo que não — respondeu o outro. — Se ela não estiver já
prometida a outro,
irei a tua casa todos os domingos.
Na noite da partida de Fanchon, Landry foi ver o pai para lhe dar a conhecer a
honesta
conduta daquela rapariga que ele julgara tão mal. Sentiu grande tristeza ao passar
diante da casa
da tia Fadet; mas encheu-se de coragem, pensando que, sem a partida de Fanchon, não
teria
talvez sabido até que ponto era amado por ela. Viu a tia Fanchette, a parenta, que
tinha vindopara cuidar da velha e do miúdo no seu lugar.
Estava sentada à porta, com o saltão nos joelhos. O pobre Jeanet chorava e não
queria ir
para a cama, porque a sua Fanchon ainda não voltara para casa, dizia, e era ela que
o costumava
deitar. A tia Fanchette reconfortava-o o melhor que podia e Landry ouviu com prazer
que ela lhe
falava com muita doçura e amizade. Mas, assim que o saltão viu passar Landry,
escapou-se das
mãos de Fanchette e correu a atirar-se às pernas do gémeo, abraçando-o e
interrogando-o sobre a
sua Fanchon. Landry tomou-o nos braços e, a chorar, consolou-o como pôde. Quis dar-
lhe um
cacho de uvas, que levava num cestinho, da parte da tia Caillaud, para a mãe, mas
Jeanet, que era
habitualmente guloso, não quis nada senão que Landry lhe prometesse ir buscar a sua
Fanchon e
foi preciso que Landry lho prometesse a suspirar, para ele se tornar mais dócil com
a tia.
O tio Barbeau não contava com a grande resolução da pequena Fadette. Ficou
contente, mas
como era um homem justo e de bom coração, quase lamentou o que ela fizera. — Estou
zangado, Landry — disse —, por não teres tido a coragem de renunciares a vê-la.
Se tivesses agido como era tua obrigação, não terias sido a causa da sua partida.
Deus queira que essa criança não sofra na sua nova condição e que a sua ausência
não
prejudique a avó e o irmão; pois se muita gente diz mal dela, também há alguns que
a defendem
e que me garantiram que era boa e prestável com a família. E eu, pessoalmente, nada
tenho
contra ela, só que não desejo é que cases com ela. — Meu pai — respondeu Landry —,
cada um de nós vê o assunto de maneira diferente e,
de momento, só lhe peço é que me perdoe o desgosto que lhe causei. Falaremos dela
mais tarde,
como me prometeu.
O tio Barbeau aceitou essa condição, de não insistir mais. Era demasiado prudente
para
precipitar as coisas e, para já, estava contente com o que havia obtido.
A partir de então a pequena Fadette nunca mais foi assunto de conversa. Até
evitaram
pronunciar o seu nome, pois Landry tornava-se vermelho, e depois pálido, quando
alguém
deixava escapar o seu nome diante dele, e logo a seguir ficava contente por
verificar que não a
esquecera mais do que no primeiro dia.Sylvinet adoece
Primeiro, Sylvinet sentiu um prazer egoísta ao tomar conhecimento da partida de
Fadette,
convencendo-se que doravante o gémeo só o amaria a ele e não o deixaria por
ninguém.
Mas não foi assim. Sylvinet era de facto aquele que Landry mais amava no mundo
depois
da pequena Fadette; mas não podia sentir muito prazer na sua companhia, porque
Sylvinet não
abandonava a sua aversão por Fanchon. Assim que Landry tentava falar-lhe nela,
Sylvinet
exaltava-se, e repreendia-o por se obstinar numa ideia tão repugnante para os pais
e tão penosa
para ele próprio. Landry, desde então, nunca mais lhe tocou no assunto; mas, como
não podia
viver sem falar nisso, dividia o seu tempo entre o benjamim Caillaud e o pequeno
Jeanet, a quem
levava a passear e instruía, consolando-o o melhor que podia. Quando o encontravam
com aquela
criança, as pessoas talvez desejassem troçar dele, se ousassem. Mas Landry não se
deixava
escarnecer no que quer que fosse, e estava mais orgulhoso do que envergonhado em
mostrar a
sua amizade pelo irmão de Fanchon, sendo assim que demonstrava aos que pretendiam
que o tio
Barbeau, na sua sensatez, vencera a resistência do seu amor.
Sylvinet, notando que o irmão não lhe fazia tanta companhia como desejava, achava-
se
reduzido a dirigir os ciúmes contra o pequeno Jeanet e contra o benjamim Caillaud;
apercebendo-se, por outro lado, que a irmã Nanette, que, até então, sempre o
consolara e alegrara
com cuidados e atenções carinhosas, começava a demorar-se muito na companhia do
benjamim
Caillaud, e que as duas famílias aprovavam, o pobre Sylvinet, cujo capricho era
possuir só para
si a amizade dos que amava, caiu num aborrecimento mortal, num torpor singular, e o
seu
carácter azedou-se tanto que já não sabiam que fazer para o consolar. Já não ria
nem se
interessava por nada, como não conseguia trabalhar, tal o enfraquecimento. Chegaram
a recear
pela sua vida, pois a febre já quase não o deixava, e quando era maior, dizia
coisas sem razão e
cruéis para o coração dos pais. Sustentava que não lhe ligavam, a ele, que sempre
haviam
acarinhado e mimado mais do que qualquer outro da família. Desejava a morte,
dizendo que não
servia para nada e que o poupavam por compaixão, sendo um fardo para os pais e que
o maior
auxílio que Deus lhe poderia dar era levá-lo dali.
Às vezes, o tio Barbeau, ao ouvir tais disparates, repreendia-o com severidade,
todavia sem
resultado. Outras vezes, o tio Barbeau suplicava-lhe, pesaroso, que lutasse pela
vida. Era ainda
pior: Sylvinet chorava, arrependia-se, pedia perdão ao pai, à mãe, ao gémeo, a toda
a família; e a
febre voltava mais forte assim que dava livre curso ao excesso de ternura do seu
coração doente.
Consultaram novos médicos, que não aconselharam grande coisa. Via-se, pela atitude,
que
achavam que o problema era de foro psicológico e por serem gémeos, atacando o mais
fraco.
Consultaram também a curandeira de Clavières, mulher de nomeada na região, após a
morte de
Sagette e a tia Fadet começar a ficar senil. — Só uma coisa pode salvar o vosso
filho — declarou a curandeira —, é que ele goste das
mulheres. — De facto, ele não as suporta — respondeu a tia Barbeau. — Nunca vi
rapaz tão orgulhoso
e tão ajuizado, e no entanto, desde que o amor se meteu na cabeça do irmão, diz mal
de todas as
raparigas. Culpa-as a todas por causa de uma delas, e infelizmente não é a melhor,
Lhe ter
roubado, como afirma, o afeto do gêmeo. — É verdade — continuou a curandeira —,
quando o vosso filho amar uma mulher, amá-laá ainda mais do que ama o irmão. É o
que eu vaticino. Ele ama em excesso, e por causa de oconcentrar no irmão, esqueceu
os que o circundam, faltando à lei de Deus, que quer que o
homem ame uma mulher mais do que aos pais e irmãos. Descansem, porque é provável
que a
Natureza atue brevemente; e não hesitem em dar-lhe em casamento a mulher que ele
amar, seja
pobre, feia ou má, pois tudo indica que não amará duas na vida. O seu coração é
excepcionalmente afetivo, do que resulta a necessidade de um milagre da Natureza
para que se
separe um pouco do gêmeo.
A opinião da curandeira pareceu sensata ao tio Barbeau. De modo que os pais
inventaram
todos os pretextos para levar Sylvinet às casas amigas onde havia moças casadoras.
Mas, embora
Sylvinet fosse um bonito rapaz e bem-educado, o seu ar indiferente e triste não
alegrava o
coração de qualquer delas. Por ser muito tímido, imaginava, à força de as temer,
que as
detestava.
O tio Caillaud, bom amigo e um dos melhores conselheiros da família, propôs então:

Sempre vos disse que a ausência era o melhor remédio. Vejam Landry! Estava a ficar
doido por
causa da pequena Fadette, e no entanto, depois desta partir, ele não perdeu a razão
nem a saúde, e
anda até menos triste do que andava. Agora é um moço razoável e submisso.
Aconteceria por
certo o mesmo a Sylvinet se, durante cinco ou seis meses, não visse o irmão. Posso
dar uma ideia
de o separar sem ser bruscamente. A minha quinta de Priche vai bem, o que não
acontece com a
minha outra propriedade para os lados de Arthon. O caseiro está doente e não há
meio de se
restabelecer. Não o quero mandar embora, porque é bom homem. Mas se pudesse enviar-
lhe um
bom trabalhador para o ajudar, ele certamente recuperaria, pois a sua doença não
passa de
cansaço e excesso de trabalho. Se concordarem, mandarei Landry ajudá-lo até ao
final da época.
Não diremos a Sylvinet que E por muito tempo. Dir-lhe-emos, pelo contrário, que é
por oito dias.
E depois, passados esses dias, acrescentaremos mais oito, e por aí fora até se
habituar. Sigam o
meu conselho, e deixem de encorajar as fantasias de uma criança demasiado mimada e
que nunca
foi contrariada.
O tio Barbeau anuiu ao conselho, mas a tia Barbeau ficou assustada. Receava que
fosse para
Sylvinet um golpe fatal. Foi preciso fazer um acordo com ela! Quis primeiro que
tentassem
conservar Landry quinze dias em casa, para saber se o irmão, vendo-o a toda a hora,
não se
curaria. Se pelo contrário piorasse, então sim, concordaria com a ideia do tio
Caillaud.
Fez-se assim. Landry veio de bom grado passar os quinze dias a casa. Mandaram-no
chamar
sob pretexto de que o pai carecia da sua ajuda para malhar o resto do trigo, em
vista de Sylvinet
não poder trabalhar. Landry pôs em tudo o melhor empenho e bondade para fazer o
irmão feliz.
Via-o a toda a hora, ajudava-o nos mais ínfimos préstimos e cuidava dele como se
fosse uma
criancinha. No primeiro dia Sylvinet ficou muito contente; no segundo, afirmou que
Landry se
aborrecia junto dele, e este não conseguia tirar-lhe essa ideia da cabeça; no
terceiro dia, Sylvinet
encolerizou-se porque o saltão veio ver Landry e este não teve coragem de o mandar
embora;
finalmente, ao cabo de uma semana chegaram a uma triste conclusão: Sylvinet
tornava-se cada
vez mais injusto, exigente e ciumento da sua sombra, pelo que decidiram pôr em
execução o
plano do tio Caillaud, e, embora Landry não tivesse vontade de ir para Arthon, meio
que lhe era
estranho, aceitou tudo o que lhe aconselharam a fazer no interesse do irmão.
No primeiro dia, Sylvinet ia quase morrendo; no segundo, ficou mais tranquilo; e no
terceiro, a febre abandonou-o. Ao fim da primeira semana, reconheceram que a
ausência do
irmão lhe era mais benéfica do que a sua presença. Encontrava, nos seus raciocínios
doentios, um
motivo para estar quase satisfeito com a ausência de Landry.
Pelo menos, pensava, no sítio para onde foi não conhece ninguém e não fará logo
novas
amizades; aborrecer-se-á um pouco, pensará em mim e terá saudades, de modo que,
quandovoltar, ainda gostará mais de mim.
Havia já três meses que Landry se ausentara, e cerca de um ano que a pequena
Fadette
deixara a terra, quando esta teve de voltar repentinamente, porque a avó
paralisara. Tratou dela
com grande zelo, mas, como a idade é um flagelo irreversível, ao fim de quinze
dias, a tia Fadet
sucumbiu, entregando a alma sem dar por isso. Três dias após o enterro e já depois
de ter
arrumado a casa e deitado o irmão, retirando-se para dormir, a pequena Fadette
ouviu lá fora o
canto dum grilo dos campos. Fanchon pensava no namorado quando bateram à porta,
ouvindo-se
uma voz perguntar: — Fanchon Fadet, estás aí?
Ela precipitou-se a abrir a porta e a sua alegria foi grande quando o seu amigo
Landry a
apertou de encontro ao coração.
Landry tomara conhecimento da doença da avó e do regresso de Fanchon. Não pudera
resistir ao desejo de a rever e viera de noite para regressar ao amanhecer.
Passaram toda a noite a conversar ao canto da lareira, calmamente, imensamente
felizes por
estarem juntos e reconhecerem que o amor não esfriou.
À medida que o dia se aproximava, Landry começava, no entanto, a não ter coragem de
partir e pediu a Fanchon que o escondesse no celeiro, para que pudesse continuar a
vê-la no dia
seguinte. Como sempre, ela chamou-o à razão, dizendo-lhe nomeadamente que já não
iam estar
separados por muito tempo, visto estar resolvida a ficar de vez. — Tenho para isso
razões das quais te informarei mais tarde e em nada prejudicarão a
esperança que tenho no nosso futuro. Vai acabar o trabalho que o teu patrão te
confiou, pois que
a tua ausência é necessária à cura do teu irmão. — Só essa razão me pode decidir a
deixar-te — respondeu Landry —, pois o meu irmão
causou-me muitos sofrimentos e receio que me cause ainda mais. Tu que és tão
inteligente,
Fanchon, devias encontrar uma maneira de o curar. — É o seu espírito que lhe torna
o corpo doente. Tem tanta aversão por mim, que é
impossível essa oportunidade de falar com ele e o consolar. — E, contudo, tens
tanto espírito, falas tão bem, tens um dom tão particular para
convenceres do que queres, que, se falasses com ele, ainda que por pouco tempo, ele
seria
sensível ao efeito. Tenta, peço-te! Não te deixes desencorajar com o seu orgulho e
o seu mau
humor! Obriga-o a escutar-te! Faz isso por mim, minha Fanchon, e pelo triunfo do
nosso futuro
também, pois a oposição do meu pai não será o mais pequeno dos obstáculos!
Fanchon prometeu e eles separaram-se, repetindo vezes sem conta, um ao outro, que
se
amavam e sempre se amariam.Fadette em casa dos Barbeau
Ninguém soube, na aldeia, que Landry tinha ido visitar Fadette. Senão, alguém
poderia
dizê-lo a Sylvinet e este não perdoaria ao irmão que tivesse vindo ver a rapariga e
não ele.
Dois dias depois, Fadette vestiu-se a rigor, pois agora já não andava sem dinheiro.
Atravessou o burgo, e como crescera muito, os que a viram passar não a reconheceram
de
imediato. Embelezara consideravelmente na cidade; mais bem alimentada, ganhara
cores e
corpo, como convinha à sua idade, e já não podia ser tomada por um rapaz
disfarçado, de tal
modo o seu aspecto era belo e agradável de ver. O amor e a felicidade haviam-se
estampado no
seu rosto, e na sua pessoa havia um não sei quê que se nota mas não se explica.
Enfim, não era a
rapariga mais bonita do país, como Landry imaginava, mas a mais graciosa, a mais
bem feita, a
mais fresca e talvez a mais sedutora que havia por ali.
Levava no braço um grande cesto e entrou na quinta onde pediu para falar com o tio
Barbeau. Foi Sylvinet quem a viu primeiro e desviou-se, tal era o desprezo que
sentia por ela.
Mas ela perguntou-lhe pelo pai com tanta delicadeza que ele foi obrigado a
responder e a
conduzi-la à granja, onde o tio Barbeau estava ocupado a rachar lenha.
Como Fadette lhe pediu para falarem num sítio onde pudessem estar à vontade, ele
fechou a
porta da granja e disse que podia dizer-lhe ali mesmo tudo o que quisesse.
A pequena Fadette não se deixou intimidar pelo ar frio do tio Barbeau. Sentou-se
num fardo
de palha, e ele noutro. — Tio Barbeau, embora a minha família tenha tido queixas
contra vocês e vocês queixas
contra mim, não é menos verdade que eu o reconheço como o homem mais justo e mais
honesto
da terra. Afinal tudo isso não passava de pequenos conflitos, e mesmo a minha avó,
embora
censurando-vos o orgulho, vos fazia a mesma justiça. Além disso, como sabe, tenho
uma grande
amizade pelo seu filho Landry. Ele falou-me muitas vezes em si e sei por ele, ainda
melhor do
que por qualquer outra pessoa, o que é e o que vale.
É por isso que lhe venho pedir um favor e dar-lhe a minha confiança. — Fala,
Fadette — respondeu Barbeau. Nunca recusei auxílio a ninguém, e se for algo que
a minha consciência não me proíbe, podes contar comigo. — Eis do que se trata —
disse a pequena, erguendo o cesto e colocando-o entre as pernas do
tio Barbeau. — A minha defunta avó ganhou, durante toda a vida, a dar consultas e a
vender
remédios, mais dinheiro do que se pensava; como não gastava quase nada, ninguém
podia saber
o que ela tinha num velho buraco da despensa, que me mostrou várias vezes, dizendo:
Quando eu
já não existir, é aqui que encontrarás o que eu te tiver deixado. São os teus bens,
assim como os
do teu irmão. Se eu vos privo um pouco agora, é para ficarem com mais um dia. Mas
não deixes
os homens da lei tocar nisto, comer-lhe-iam em impostos. Guarda-o bem guardado,
esconde-o
toda a vida, para te servires dele na velhice e nunca te faltar. Quando a minha
pobre avó foi
sepultada, obedeci à sua ordem, e retirei os tijolos da parede no sítio que ela me
mostrara.
Encontrei lá o que vos trago neste cesto, tio Barbeau, e peço que o empregue como
entender
depois de satisfazer a lei, que eu não conheço, e me preservar dos grandes
impostos, que me
assustam. — Fico-te reconhecido pela confiança, Fadette — disse o tio Barbeau sem
abrir o cesto,
embora estivesse cheio de curiosidade —, mas não tenho o direito de receber o teu
dinheiro, nem
de zelar pelos teus negócios. Não sou teu tutor. Sem dúvida, a tua avó deixou algum
testamento.— Não fez testamento nenhum, e a tutora que a lei me dá é a minha mãe.
Ora, bem sabe que
não tenho notícias dela há anos, nem sei se está morta ou viva. Depois dela, não
tenho outro
parente além da minha tia Fanchette, que é uma boa e honesta mulher, mas
perfeitamente incapaz
de gerir os meus bens e mesmo de os conservar. Não conseguiria evitar falar neles e
mostrá-los a
toda a gente, e daí recear que ela os empregasse mal, pois, coitada, nem sequer os
sabe contar. — Trata-se então de uma coisa importante?perguntou o tio Barbeau.
Realmente, apesar de contrafeito, os olhos não largavam a tampa do cesto; e pegou
nele
pela asa para o erguer. Mas achou-o tão pesado que ficou admirado e disse: — Isto é
quase uma
carga para um cavalo.
Fadette, que tinha um espírito levado do diabo, divertiu-se interiormente com a
vontade que
ele tinha de espreitar o cesto. Até fez menção de o abrir, mas o tio Barbeau
julgava ser falta de
dignidade permitir que ela o fizesse. — Isso não me diz respeito. Se não quero
tomar conta dele, também não quero saber o
valor.— Mas é preciso, tio Barbeau — disse Fadette —, que me preste pelo menos esta
ajuda.
Não pense que sou mais inteligente que a minha tia, e só posso confiar em si para
me dizer
se sou rica ou pobre e saber ao certo a quantia da doação. — Está bem — concordou o
tio Barbeau, sem se poder conter mais. — Não quero deixar de
prestar-te este serviço.
Então Fadette levantou lentamente a tampa do cesto e tirou dois grandes sacos, cada
um
deles contendo dois mil francos em moedas. — Ora, ora! Bem bom! — exclamou o tio
Barbeau. — É um pequeno dote que te fará
desejada por muitos. — Não é tudo — respondeu a pequena Fadette. — No fundo do
cesto, há ainda uma coisita
que não conheço.
E tirou uma bolsa, que despejou no chapéu do tio Barbeau. Havia dentro dela cem
moedas
de ouro, que fizeram arregalar os olhos do bom homem. Quando ele as contou e as
meteu
novamente na bolsa, ela tirou uma segunda com o mesmo conteúdo, uma terceira, e
depois uma
quarta, finalmente, tanto em ouro como em prata; havia, no cesto, perto de quarenta
mil francos!
Era cerca de um terço a mais do que todos os bens que o tio Barbeau possuía, e,
como a
gente do campo tem dificuldade em aforrar, nunca ele vira tanto dinheiro junto.
Por mais honesto e desinteressado que seja um camponês, não se pode dizer que a
vista do
dinheiro não lhe desperte interesse. Assim, o tio Barbeau, durante um momento, suou
frio. Após
ter contado tudo, disse: — Para teres quarenta vezes mil francos, só te faltam meia
dúzia de
moedas, o que faz de ti o melhor partido da região, Fadette! O teu irmão, o saltão,
bem pode ser
enfezado e coxo toda a sua vida! E poderá visitar as suas riquezas de carroça!
Quanto a ti, ficaste
rica e poderás gritá-lo aos quatro ventos se desejas arranjar depressa um marido. —
Não tenho pressa — respondeu a pequena Fadette —, e peço-lhe, pelo contrário, que
guarde segredo desta riqueza, tio Barbeau. Tenho o capricho, feia como sou, de não
querer ser
desposada pelo meu dinheiro, mas pelo meu coração e pelo meu comportamento, e como
nesta
terra não sou muito bem vista, quero deixar passar algum tempo para que se
apercebam de que se
enganam a meu respeito. — A tua fealdade, Fadette? — perguntou o tio Barbeau,
erguendo os olhos, que ainda não
haviam largado o cesto. — Posso dizer-te que te transformaste tão bem na cidade,
que agora és
uma rapariga bem atraente. Quanto ao comportamento, sei que já não mereces essa
reserva. Por
mim, aprovo a ideia de ocultares por agora a tua riqueza.Não faltariam rapazes a
quem ela deslumbraria, ao ponto de te pedirem em casamento, e
talvez sem terem por ti o respeito que uma mulher deve esperar do marido. Agora,
quanto ao
dinheiro que queres depositar nas minhas mãos, seria contra a lei e poderia estar a
exporte mais
tarde a suspeitas e incriminações, pois as más-línguas não faltam. E supondo que
tens o direito
de decidir do que te pertence, já não o tens de dispor do que pertence ao teu irmão
menor. Tudo o
que eu posso fazer é ir consultar alguém, sem te nomear. Dir-te-ei então a maneira
de colocar em
segurança a tua herança e dela tirares bom proveito, sem passar por mãos desleais.
Levas de
volta tudo isso para casa e guarda-o outra vez até eu te ter dado uma resposta.
Era tudo o que a pequena Fadette queria. O tio Barbeau saberia como havia de
proceder. Se
se sentia um pouco orgulhosa diante dele, por ser rica, era porque ele já não a
podia acusar de
querer lograr Landry.
O tio Barbeau, vendo-a tão prudente e compreendendo como era esperta, apressou-se a
indagar da reputação que ela adquirira na cidade, onde passara um ano.
Embora aquele dote o tentasse e o fizesse esquecer a sua péssima família, o mesmo
não
acontecia quando se tratava da honra da rapariga que desejava ter por nora. Foi
portanto ele
próprio à cidade tirar as devidas informações. Foi-lhe dito que ela se comportara
tão bem que
não havia a menor censura a fazer-lhe. Estivera ao serviço de uma velha religiosa
nobre, que
gostara muito dela pelo seu comportamento, bons modos e inteligência. Tinha muitas
saudades
dela e dizia que era uma perfeita rapariga, corajosa, limpa, cuidadosa e de um
carácter tão
amável que nunca mais encontraria outra igual.
Como essa velha senhora era bastante rica, dedicava-se a obras de caridade, no que
Fadette
a secundava maravilhosamente no tratamento dos doentes e na preparação dos
remédios. Por
isso, a velha senhora ainda hoje a lamentava.
O tio Barbeau ficou muito satisfeito e voltou para Cosse, decidido a esclarecer a
coisa até ao
fim. Reuniu a família, encarregou todos os familiares de procederem a um inquérito
discreto
sobre a conduta que a pequena Fadette tivera desde que atingira a idade de mulher,
a fim de que
fosse apurado se todo o mal que haviam dito dela só tivesse por causa
infantilidades. Ao passo
que, se alguém pudesse afirmar tê-la visto cometer uma má ação, ele pudesse manter
a proibição
que fizera a Landry de a namorar. A investigação foi feita com a prudência desejada
e sem que a
questão da herança fosse divulgada, pois ele não dissera uma palavra sobre isso,
nem mesmo à
mulher.
Entretanto, Fadette vivia muito retirada e recatada na sua casinha, onde nada quis
mudar, a
não ser mantê-la sempre limpa. Vestiu decentemente o pequeno saltão e alterou a
alimentação de
todos, e que surtiu de imediato bom efeito na criança: recuperou francamente e a
sua saúde em
breve ficou estável. A felicidade depressa melhora o carácter! Não sendo mais
atormentado e
castigado pela avó, só recebendo agora afagos e bom trato, tornou-se um rapaz
gentil, amável e
já não desagradava a ninguém, mesmo sendo coxo.
Por outro lado, operara-se tão radical mudança na pessoa e hábitos de Fanchon
Fadet, que a
maledicência acabou, e mais de um rapaz, ao vê-la passar, ligeira e graciosa,
desejava que ela
aliviasse luto, para a poder cortejar e convidá-la a dançar.
Só Sylvinet não mudava de ideias. Desconfiava que alguma coisa se tramava a
propósito
dela na família, pois o pai, agora, falava muitas vezes dela, e quando ouvia algum
elogio a seu
respeito, congratulava-se com isso, no interesse de Landry, alegando não suportar
que tivessem
difamado o filho por andar com uma jovem tão inocente.
Também se falava do próximo regresso de Landry, e o tio Barbeau desejava que o tio
Caillaud concordasse. Enfim, Sylvinet apercebia-se que já não seriam tão contrários
ao namorode Landry, daí que o seu desgosto voltasse. A opinião, era desde há pouco
tempo favorável a
Fadette. Sylvinet continuava a ver nela a rival do seu amor por Landry.
De vez em quando o tio Barbeau deixava escapar a palavra casamento e dizia que os
gêmeos não tardariam a estar em idade de pensar nisso. O casamento de Landry sempre
fora uma
ideia desoladora para Sylvinet, o desfecho final da sua separação.
Voltaram-lhe as febres e a mãe consultou uma vez mais os médicos.
Um dia, encontrou a tia Fanchette, a qual, ao ouvi-la lamentar-se, lhe perguntou
porque é
que ia a consultas tão longe, gastando tanto dinheiro, quando tinha ao alcance da
mão a
curandeira mais hábil de toda a região, que não exercia por dinheiro, como fizera a
avó, mas
somente por bondade e piedade para com o próximo. E nomeou a pequena Fadette.
A tia Barbeau falou nisso ao marido, que não se opôs. Ele disse-lhe que na cidade,
Fadette
tivera grande fama e que de todos os lados a iam consultar. A tia Barbeau pediu
então a Fadette
que fosse ver Sylvinet, acamado, e lhe prestasse assistência.
Fanchon procurara mais de uma vez ocasião de lhe falar, como havia prometido a
Landry,
mas ele sempre recusara. De sorte que não se fez rogada e correu a ajudar o gêmeo.
Sylvinet,
febril, dormia. A jovem pediu à família que os deixassem a sós. Como era costume as
curandeiras agirem em segredo, ninguém a contrariou.
Fadette pousou uma mão sobre a do gémeo, que pendia na beira da cama; fê-lo tão
suavemente que ele nem se apercebeu. A mão de Sylvinet queimava como fogo. Agitou-
se um
pouco, mas não a repeliu. Então Fadette pôs a outra mão sobre a sua testa, também
com
suavidade, e ele agitou-se de novo. De verdade, pouco a pouco, foi acalmando, a
fronte e a mão
foram refrescando, e o seu sono tornou-se calmo como o de uma criança. Então,
retirou-se do
quarto e antes de partir disse à tia Barbeau: — Vá ver o seu filho e dê-lhe de
comer, que já não
tem febre. E, sobretudo, não lhe fale em mim, se quer que o cure. Voltarei de novo
à noite.
A tia Barbeau ficou deveras admirada ao ver Sylvinet sem febre, apressando-se a
dar-lhe de
comer, que ele engoliu com apetite. E como havia vários dias que a febre não o
deixava e não
conseguira comer nada, todos se admiraram com o saber extraordinário de Fadette,
que, sem o
acordar, teve dons de o pôr no caminho da cura.
À noite, Fadette voltou. Como de manhã, ficou sozinha com ele, não fazendo outra
magia
senão segurar-lhe as mãos e a cabeça muito ao de leve e respirar com frescura junto
da sua cara
em fogo. E como de manhã, tirou-lhe o delírio e a febre.
Quando se retirou, voltou a recomendar que não falassem a Sylvinet da sua vinda.
Foram dar com ele mergulhado num sono calmo, já não tendo o rosto vermelho nem
parecendo doente.
O certo é que, ao fim de três dias, Fadette livrou Sylvinet da febre, e ele nunca
teria sabido
como isso sucedera se, ao acordar um pouco precipitadamente, não a tivesse visto
inclinada
sobre ele, exatamente quando retirava suavemente as mãos.
Primeiro julgou que era uma aparição e fechou os olhos para não a ver, mas depois,
quando
perguntou à mãe se Fadette estivera no seu quarto ou se fora um sonho, a tia
Barbeau, a quem o
marido revelara finalmente alguma coisa dos seus projetos, desejando ver Sylvinet
finalmente
renunciar à sua aversão por ela, respondeu que, com efeito, viera três dias
seguidos, de manhã e à
noite, e que lhe tirara milagrosamente a febre, tratando dele em segredo.
Sylvinet pareceu não acreditar em nada. Disse que a febre se fora por ela própria e
que as
palavras e segredos de Fadette não passavam de manias e loucuras. Começou a andar
mais calmo
e de boa saúde durante alguns dias e o tio Barbeau julgou bom aproveitar a ocasião
para lhe falar
na possibilidade do casamento do irmão, sem contudo nomear a pessoa que tinha em
vista.— Não é preciso esconder-me o nome da noiva que lhe destina — interrompeu
Sylvinet. —
Sei muito bem que é essa Fadette, que vos enfeitiçou a todos.
Com efeito, a investigação secreta do tio Barbeau fora tão favorável à pequena
Fadette, que
ele já não estava imbuído da menor hesitação e desejava imenso poder mandar vir
Landry. Só
receava agora os ciúmes do gémeo e esforçava-se por curá-lo dessa mania, dizendo-
lhe que o
irmão nunca seria feliz sem a pequena Fadette. Ao que Sylvinet respondia: — Que
assim seja! O
meu irmão não pode ser infeliz.
Só que a febre voltou a atacar Sylvinet, apesar dele parecer ter aceite os factos.
No espírito do tio Barbeau instalara-se a dúvida que a pequena Fadette guardasse
rancor a
Sylvinet das injustiças passadas e que, tendo-se consolado da ausência de Landry,
pensasse agora
noutro qualquer. Daí que, quando ela veio a casa tratar de Sylvinet, tentasse
falar-lhe de Landry;
mas ela fingiu não ouvir e ele ficou embaraçado.
Para desfazer a confusão que Lhe ia na alma, uma manhã resolveu-se e foi falar com
a
pequena Fadette. — Fanchon Fadet, venho fazer-te uma pergunta à qual te peço que me
respondas com toda a
sinceridade. Antes da morte da tua avó, fazias ideia da grande fortuna que ela te
ia deixar? — Sim, tio Barbeau — respondeu a pequena Fadette. — Tinha-a visto várias
vezes contar o
ouro e a prata e ela dizia-me sempre, quando as outras raparigas troçavam de mim:
Não te
preocupes com isso, pequena, serás mais rica do que todas elas e um dia chegará em
que poderás
andar vestida de seda dos pés à cabeça, se for esse o teu desejo. — Falaste nisso a
Landry? Não seria por causa do teu dinheiro que meu filho dizia estar
apaixonado por ti? — Quanto a isso, tio Barbeau — respondeu a pequena Fadette —,
sempre quis ser amada
pelos meus belos olhos, que são a única coisa que nunca ninguém me negou e,
portanto não ia
ser tão tola ao ponto de contar a Landry. No entanto, tenho a certeza que poderia
tê-lo dito sem
perigo, pois Landry ama-me tão honestamente e tão sinceramente que nunca se
preocupou em
saber se eu era rica ou miserável. — E depois que a tua avó morreu, Fanchon, dê-me
a tua palavra de honra que Landry não
foi informado por ti ou por outra pessoa do que se passou? — Dou, sim! — disse
Fadette. — Tão verdade como eu amar Deus O senhor é a única
pessoa do mundo que tem conhecimento disto. — E quanto ao amor de Landry, pensas
que ele continua a amar-te? — Oh! Sim! Sem dúvida! — respondeu. — Até lhe confesso
que ele veio ver-me três dias
depois do funeral e jurou-me que ou casava comigo ou morria de desgosto. — E que
lhe respondeste, Fadette? — Respondi-lhe que ainda tínhamos tempo de pensar em
casar e que não me decidiria
facilmente por um rapaz que me fizesse a corte contra a vontade dos pais.
E como a pequena Fadette dizia aquilo num tom bastante orgulhoso e desprendido, o
tio
Barbeau ficou alertado. — Não tenho o direito de te interrogar, Fadette — disse. —
Não sei se tens intenção de
fazer o meu filho feliz ou infeliz para toda a vida, mas sei que ele te ama muito,
e se eu estivesse
no teu lugar, com a ideia que tens de ser amada por ti própria, diria: Landry
Barbeau amou-me
quando eu andava vestida de farrapos, quando toda a gente me repelia e quando os
próprios pais
procediam mal chamando a isso um grande pecado.
Ele achou-me bela quando toda a gente me repelia; amou-me a despeito dos
sofrimentos
que esse amor lhe causava; enfim, amou-me tão bem que não posso desconfiar dele e
que nãoquero outro para marido. — Há muito tempo que disse isso a mim própria, tio
Barbeau — respondeu a pequena
Fadette. — Mas, teria grande repugnância em entrar para o seio de uma família que
teria vergonha
de mim e só me aceitasse por fraqueza ou compaixão. — Se é isso que te impede,
decide-te, Fanchon — continuou o tio Barbeau —, pois a
família de Landry estima-te e aceita-te. Não julgues que mudou de ideias por seres
agora rica.
Não era a pobreza que nos repugnava, mas os comentários que faziam de ti. Se
tivessem
fundamento, nunca, mesmo que o meu Landry morresse, eu consentiria em te chamar
minha
nora; mas quis saber o fundo de verdade dessas maledicências e fui de propósito à
cidade, onde
me asseguraram que eras uma pessoa ajuizada e honesta, tal como Landry afirmava com
tanto
ardor. Assim, Fanchon, venho pedir-te que cases com o meu filho e, se concordares,
ele estará
aqui dentro de oito dias.
Esta proposta, prevista por ela, deixou Fadette muito contente. Mas, não quis
demonstrá-lo,
porque queria ser respeitada para sempre pela futura família e respondeu
cautelosamente. Então
o tio Barbeau retorquiu-lhe: — Vejo, minha filha, que te ficou no coração alguma
coisa contra
mim e contra os meus. Não exijas que um homem de idade te peça desculpa; contenta-
te com
uma boa palavra, e quando te digo que serás amada e estimada em nossa casa, confia
no tio
Barbeau, que nunca enganou ninguém. Então queres dar o beijo da paz ao tutor que
escolheste,
ou ao pai que te quer adotar?
A pequena não se conteve por mais tempo; atirou os dois braços ao pescoço do tio
Barbeau,
cujo velho coração exultou de alegria.Sylvinet transforma-se num homem
Os acordos fizeram-se rapidamente. O casamento efetuar-se-ia assim que o luto de
Fanchon
terminasse. Só faltava mandar chamar Landry. Mas quando a tia Barbeau foi ver
Fanchon nessa
mesma noite, para a abraçar e lhe dar a sua benção, informou-a de que ao saber da
notícia do
casamento do irmão, Sylvinet tornara a cair doente e pedira que esperassem mais
dias para ele se
restabelecer. — Cometeu um erro, tia Barbeau — disse a pequena Fadette —, ao
confirmar a Sylvinet
que não sonhara ao ver-me a seu lado naquela noite. Agora o pensamento dele
contrariará o meu
e já não terei o mesmo poder para o curar durante o sono. Até é possível que me
repudie e que a
minha presença piore o seu mal. — Não penso assim — respondeu a tia Barbeau —, pois
há pouco, sentindo-se mal, deitouse e disse: Então onde está essa Fadette? Julgava
eu que me tivesse aliviado. Será que volta?
Respondi que vinha buscar-te, e pareceu contente e até impaciente. — Já vou —
respondeu Fadette. — Só que desta vez tenho de agir de outra maneira, pois o
tratamento resultava quando não me sabia lá. — E não levas contigo drogas ou
remédios?admirou-se a tia Barbeau. — Não — respondeu Fadette. — O seu corpo não
está muito doente. É com o seu espírito
que tenho de lutar. Vamos aguardar pacientemente o regresso de Landry sem o
prevenir, e antes
de tudo tentaremos devolver a saúde ao irmão. Landry recomendou-me com tanto
empenho que
sei que me aprovará por ter propositadamente retardado o seu regresso.
Quando Sylvinet viu a pequena Fadette junto do seu leito, pareceu descontente e não
quis
dizer como estava. Ela quis tomar-lhe o pulso, mas ele retirou a mão e voltou a
cara para o lado
da parede. Então Fadette fez sinal para que os deixassem a sós. Quando toda a gente
saiu, apagou
a luz e deixou apenas entrar no quarto a claridade da Lua.
Depois voltou para junto de Sylvinet e num tom de comando, ao qual ele obedeceu
como
uma criança, disse-lhe: — Sylvinet, põe as tuas mãos nas minhas e responde-me
francamente,
pois eu não me incomodei por dinheiro, e se me dei ao trabalho de vir curar-te, não
é para ser
mal recebida e mal agradecida. Presta atenção ao que te vou perguntar e ao que me
vais
responder, pois não te será possível enganar-me. — Pergunta o que julgares
oportuno, Fadette — respondeu o gémeo, aparvalhado por ouvir
falar tão severamente aquela trocista da pequena Fadette, à qual, em tempos, tantas
vezes
respondera com pedradas. — Sylvinet Barbeau — prosseguiu —, é verdade que queres
morrer?
Sylvinet hesitou um pouco antes de responder e, como a jovem lhe pressionava a mão
com
bastante força, para lhe fazer sentir a sua grande vontade, disse um tanto confuso:
— Seria o que
me poderia acontecer de melhor, morrer, quando vejo que sou um fardo e um embaraço
para a
minha família, por causa da minha má saúde e por causa... — Conta tudo, Sylvinet,
não deves ocultar nada. — devido ao meu espírito inquieto, que
não posso mudar — concluiu o gémeo, acabrunhado. — E igualmente por causa do teu
mau coração — acrescentou Fadette num tom tão duro
que ele sentiu cólera e medo. — Porque é que me acusas de ter mau coração? —
perguntou. — Dizes-me injúrias, quando
vês que não tenho forças para me defender.— Digo-te verdades, Sylvinet — continuou
Fadette —, e vou dizer-te muitas mais. Não
tenho pena nenhuma da tua doença, porque percebo o suficiente para ver que não é
muito séria e
que, se outro perigo há para ti, é o de ficares louco, no que te esforças ao
máximo, sem saber
para onde te leva a maldade e a fraqueza de espírito. — Censura a minha fraqueza —
disse Sylvinet —, mas quanto à minha maldade, é uma
censura imerecida. — Não tentes defender-te — replicou Fadette. — Conheço-te um
pouco melhor do que tu próprio, Sylvinet, e digo-te que a fraqueza gera a
falsidade. Por isso, és egoísta e ingrato! — Se pensas tão mal de mim, Fanchon
Fadet, é sem dúvida porque Landry andou a dizer-te
mal de mim e te mostrou a pouca amizade que me dedicava, pois, se me conheces, ou
julgas
conhecer, só pode ser através dele. — Era aí que eu queria chegar, Sylvinet! Já
sabia que não dirias três palavras seguidas sem
te queixar do teu gémeo e sem o acusar, pois a amizade que tens por ele, por ser
demasiado
abstrusa, tende a transformar-se em despeito e em rancor. Nisso, reconheço-te meio
louco e
malsão. Pois bem! Eu digo-te que Landry te ama mil vezes mais do que tu a ele; a
prova é que
nunca te censurou seja no que for, por mais que o faças sofrer, por mais que o
tortures, enquanto
tu o censuras de tudo, quando ele não faz outra coisa senão ceder e servir-te. Como
queres tu que
eu não veja a diferença entre os dois? Assim, quanto melhor Landry me falava de ti,
pior eu
pensava, porque considero que um irmão tão bom só pode ser menosprezado por uma
alma
injusta. — Que ódio me tens, Fadette! Está visto, não me enganei! Bem sabia que me
havias de
roubar o amor de meu irmão, dizendo-lhe mal de mim. — Também não me surpreendes com
essa, caro Sylvinet, e rejubilo por me acusares
finalmente. Pois bem! Quero dizer-te que és um mentiroso sem coração, porque
desprezas e
insultas uma pessoa que sempre te ajudou e defendeu, sabendo no entanto que lhe
eras adverso.
Uma pessoa que se privou cem vezes do maior e único prazer que tinha no mundo, o
prazer de
estar com Landry, para que ele estivesse junto de ti, dando-te assim a felicidade
que retirava a ela
própria. E não te devia nada. Sempre foste meu inimigo confesso, e, tanto quanto me
lembro,
nunca encontrei criatura tão dura e altiva como tu eras comigo. Podia ter-me
vingado disso, e
ocasiões não me faltaram. E se não o fiz, se paguei sem saberes o mal com o bem,
foi por
simples piedade, porque uma alma cristã deve perdoar ao próximo, em atenção a Deus.
Mas, está
claro, não devo falar-te em Deus, não compreendes, és ateu e perverso. — Consinto
que me digas muitas coisas, Fadette, mas é demasiado. Acusas-me de não amar
Deus?— Não me disseste ainda há pouco que desejavas a morte? Achas que isso é ideia
de
católico? — Não disse isso, Fadette, disse que...
Sylvinet parou, assustado, ao pensar no que dissera.
Mas ela não o deixou tranquilo e continuou a admoestá-lo: — É possível que as tuas
palavras não correspondam ao pensamento, pois parece-me que não desejas tanto a
morte como
te agrada fazer crer, a fim de controlares a família, de atormentares a tua pobre
mãe, que anda
desolada, e o teu gémeo, que é suficientemente ingênuo para acreditar que queres
acabar com a
tua vida. Eu não sou parva, Sylvinet. Acho que tens medo da morte como qualquer
outro e que
brincas com o medo que fazes àqueles que te amam. Agrada-te ver que as resoluções
mais
sensatas e necessárias cedem sempre perante a ameaça que fazes de morte. É, com
efeito,extremamente cômodo e agradável bastar dizer uma palavra para todos se
dobrarem à tua volta.
Desse modo, és senhor de todos. Mas como isso é contra a Natureza, e lográ-lo
através de meios
que Deus reprova, és pois castigado, tornando-te ainda mais infeliz do que serias
se obedecesses
em vez de mandar. E estás tu aborrecido com uma vida repleta de facilidades! Vou
dizer-te o que
te faltou para seres um bom e sensato rapaz: teres tido uns pais mais rudes, muita
miséria, e falta
de pão todos os dias com pancada muitas vezes. Se tivesses sido educado na mesma
escola que
eu e o meu irmão, em vez de seres ingrato, estarias agradecido pela menor coisa.
Olha, Sylvinet,
não te desculpes com o facto de seres gêmeo. Sei que se falou bastante dessa
amizade de gêmeos
e de uma lei dita natural, que os faria morrer se a contrariassem, e tu acreditaste
obedecer ao teu
destino levando essa amizade ao extremo. Fica sabendo que Deus não é assim injusto,
que nos
marque com uma má sorte no ventre das nossas mães. Isso não passa de superstição.
Nunca, a
menos que sejas louco, acreditarei que não possas combater os teus ciúmes, se
quiseres. E de
verdade tu não o queres, porque te mimaram demasiado.
Segues a fantasia e renegas o teu dever.
Sylvinet não respondeu. Deixou Fadette repreendê-lo durante muito tempo sem lhe dar
réplica. Sentia que ela, no fundo, tinha razão e só não era indulgente num ponto,
que era o de
estar convencida que ele nunca tentara combater o mal, isto é, que nunca se dera
conta do seu
egoísmo. Isso penalizava-o e humilhava-o. Ele desejaria poder dar-lhe uma ideia
mais agradável
da sua consciência. Quanto a ela, sabia que exagerava e fazia-o com o intento de o
culpabilizar
antes de o cativar pela doçura e consolo. Esforçava-se por lhe falar duramente e
parecer
encolerizada, quando, na realidade, sentia tanta piedade e amizade por ele que a
farsa a deixava
quase doente.
A verdade é que Sylvinet não estava tão doente como parecia e se comprazia em fazer
crer.
A pequena Fadette, ao tomar-lhe o pulso, verificara em primeiro lugar que a febre
não era muito
forte, e se ele estava um pouco delirante, era porque o espírito estava mais doente
e mais
enfraquecido do que o corpo. Decidiu portanto dominá-lo pelo espírito, fazendo-o
ter receio dela.
De manhã cedo voltou para junto dele. Contou-lhe que não dormira nada, mas estava
tranquilo, embora um pouco abatido. Assim que a viu, estendeu-lhe a mão. — Porque é
que me ofereces a tua mão, Sylvinet? — perguntou. — É para ver a febre?
Vejo pela tua cara que já não a tens.
Sylvinet, envergonhado por ter de retirar a mão que ela não quisera apertar, disse:
— É para
te desejar os bons dias, Fadette, e para te agradecer todo o trabalho que tens por
mim. — Nesse caso, aceito os teus cumprimentos — disse ela, pegando-lhe na mão e
conservando-a na sua —, pois nunca rejeito uma cortesia e não te julgo tão falso
que mostres
interesse por mim sem o sentir.
Sylvinet sentiu um grande bem-estar, e disselhe num tom muito suave: — No entanto,
ontem à noite trataste-me com aspereza, Fanchon, e não sei como é que não te tenho
raiva. Até
acho muita bondade tua vires visitar-me, depois de todas as censuras que me
fizeste.
Fadette sentou-se junto da cama e falou-lhe de um modo completamente diferente do
da
véspera. Empregou tanta bondade, tanta doçura e ternura, que Sylvinet sentiu um
alívio e um
prazer indescritíveis. Chorou amargamente, confessou todos os erros e pediu-lhe o
seu perdão e a
sua amizade com tanto amor e honestidade que ela reconheceu que ele tinha o coração
melhor
que a cabeça. Deixou-o desabafar, e quando quis retirar a mão, ele reteve-a, pois
parecia-lhe que
aquela mão o curava da doença e do desgosto ao mesmo tempo.
Ela deixou-o desabafar e depois ordenou: — Agora vou-me embora e tu vais levantar-
te,
Sylvinet. Já não tens febre e não deves aceitar mimos, enquanto a tua mãe se fatiga
a servir-te eperde tempo a fazer-te companhia. Em seguida vais comer o que a tua
mãe te prepara. É carne!
Eu sei que não gostas muito e que preferes legumes, mas agora tens de esforçar-te,
e mesmo que
não te agrade, não o dês a entender. Tua mãe sentirá enorme prazer e alívio nisso.
Adeus.
Espero que não me mandem chamar tão cedo por tua causa, pois sei que não ficarás
doente,
se quiseres! — Então não voltas esta noite? — perguntou Sylvinet. — Eu que julgava
que sim! — Não sou médica, Sylvinet, e, bem vês, tenho mais que fazer do que tratar
de ti, que não
estás doente. — Tens razão, Fadette, mas o desejo de te ver, e sem que isso seja
egoísmo, é grande! Sinto
enorme alívio em falar contigo! — Não és inválido e sabes onde moro. Não
desconheces que vou ser tua cunhada e amiga.
Portanto, podes muito bem ir conversar comigo, sem que nisso haja algo de
repreensível. — Irei, visto que aceitas! — disse Sylvinet. Até breve, Fadette! Vou
levantar-me, embora
esteja com uma grande dor de cabeça, por não ter dormido. — Vou tirar-te essa dor
de cabeça — disse ela —, mas será a última vez e ordeno-te que
durmas melhor na próxima noite.
Pôs-lhe a mão na testa e, passados cinco minutos, ele sentiu-se tão refrescado e
tão
consolado, que deixou de sentir qualquer dor. — Ainda bem que te falei na dor de
cabeça, Fadette, pois, de verdade, és boa curandeira e
sabes lidar com a doença. Se eu te disser que as outras só me fizeram mal com as
drogas! Ao
menos, tu, é só me tocares! Se pudesse estar sempre contigo, nunca andaria doente!
Mas diz-me,
Fadette, já não estás zangada comigo? Acreditas em mim, quando digo que seguirei os
teus
conselhos? — Acredito! — respondeu ela. — E, a não ser que mudes de ideias, amar-
te-ei como se
fosses meu irmão. Bom, e agora vamos, Sylvinet; levanta-te, come, conversa, passeia
e dorme.
São ordens, ouviste? Amanhã trabalharás. — E irei ver-te — acrescentou Sylvinet. —
Está bem — anuiu ela, despedindo-se e lançando-lhe um olhar de amizade e perdão,
que
lhe deu subitamente força e vontade de saltar da cama para fora.
A tia Barbeau estava verdadeiramente maravilhada com a habilidade da pequena
Fadette e,
à noite, disse ao marido: — Sylvinet está melhor do que nunca. Comeu tudo o que lhe
servi, sem
fazer as caretas do costume, e ainda mais extraordinário, fala de Fadette como se
fosse um ente
superior. Está desejoso do regresso e do casamento do irmão. Que milagre! Até já
duvido se
estou a dormir ou acordada! — Milagre ou não — respondeu o tio Barbeau —, essa
rapariga tem grandes dons e deve
dar sorte tê-la na família.
Sylvinet partiu daí a três dias, indo buscar o irmão a Arthon. Pedira ao pai e a
Fadette, como
uma grande recompensa, que o deixassem ser o primeiro a anunciar-lhe o seu
casamento. — Que boas notícias me chegam ao mesmo tempo! — exclamou Landry caindo
louco de
alegria nos seus braços. — És tu que me vens buscar e pareces tão contente como eu!
Regressaram juntos sem pararem no caminho, e em Cosse não houve família mais feliz
do
que aquela, quando se sentaram à mesa para jantar com a pequena Fadette e o pequeno
Jeanet
entre eles.
A vida decorreu-lhes agradavelmente durante meio ano.
A jovem Nanette ficou noiva do jovem Caillaud, que era o melhor amigo de Landry.
Ficou
resolvido que as duas bodas se fariam na mesma altura.Sylvinet tomara por Fadette
uma amizade tão grande, que não fazia nada sem a consultar; e
ela tinha sobre ele tanto poder, que ele parecia olhar para ela como para uma irmã.
Já não estava
doente e os ciúmes haviam desaparecido. Se por vezes ainda parecia triste e
sonhador, Fadette
reprendia-o e imediatamente ficava sorridente e comunicativo.
Os dois casamentos realizaram-se no mesmo dia. Como os meios não faltavam, as bodas
foram fartas e requintadas, de tal sorte, que o tio Barbeau normalmente de sangue-
frio, não
conseguiu, nos três dias, deixar de se impressionar e até perturbar.
Nada estragou a alegria de Landry e de toda a família e até da terra, pois as duas
famílias,
que eram ricas, e a pequena Fadette, que o era tanto como os Barbeau e os Caillaud
juntos,
convidaram toda a gente. Fanchon tinha o coração demasiado bom para não pagar o mal
com o
bem a todos os que a haviam julgado mal. E quando Landry comprou uma bela
propriedade, que
governava o melhor possível com o seu saber e o da mulher, ela mandou construir uma
linda
casa, a fim de recolher todas as crianças infelizes da terra, durante quatro horas
todos os dias, as
quais ela própria, com o irmão Jeanet, se encarregou de instruir e de ensinar a
verdadeira religião
e até de socorrer os mais necessitados. Recordava-se de ter sido uma criança
infeliz e
desamparada e as belas crianças que deu à luz foram ensinadas desde cedo a serem
amáveis e
sensíveis aos que não eram ricos nem acarinhados.
Mas que aconteceu a Sylvinet no meio daquela felicidade familiar? Uma coisa que
ninguém
conseguiu compreender e deu muito que pensar ao tio Barbeau.
Cerca de um mês após o casamento do irmão e da irmã, quando o pai o aconselhava
também a procurar e a arranjar mulher, respondeu que não sentia inclinação nenhuma
pelo
casamento, mas que queria, desde há algum tempo, ser soldado e alistar-se.
Toda a gente ficou admiradíssima com tal resolução, para a qual Sylvinet não dava
outra
justificação senão a de um capricho e o gosto por coisas militares, que, com
surpresa, nunca
ninguém lhe conhecera.
Cada um dos membros da família tentou dissuadi-lo da ideia, e foram até forçados a
fazer
apelo a Fanchon, a melhor conselheira da família.
Ela conversou duas longas horas com Sylvinet, e quando se separaram, viu-se que os
dois
haviam chorado. Contudo, pareciam tranquilos e tão resolutos, que não houve mais
objecções
quando Sylvinet persistiu na sua resolução e Fanchon a aprovou, dizendo que só iria
fazer-lhe
bem.
Landry ficou desesperado, mas a mulher disselhe: — É a vontade de Deus e o dever de
todos, deixar partir Sylvinet. Acredita que sei o que digo e não me perguntes mais
nada.
Landry acompanhou o irmão até onde pôde, e quando lhe entregou a trouxa, que
quisera
levar até ali ao ombro, pareceu-lhe que entregava o seu próprio coração. Voltou
para junto da
mulher, que teve de tratar dele, pois durante um mês o desgosto tornou-o
verdadeiramente
doente.
Quanto a Sylvinet, caminhou até à fronteira, pois era o tempo das grandes guerras
do
imperador Napoleão. E embora nunca tivesse tido o menor gosto pelo estado militar,
impôs-se
tão bem que rapidamente foi notado como bom soldado, bravo na batalha como homem
que
procura o ensejo de morrer, mas no entanto brando e obediente à disciplina, ao
mesmo tempo
que duro com o próprio corpo. De tal modo que, em dez anos de coragem e de conduta
exemplar,
tornou-se capitão, recebendo a medalha da Legião de Honra. — Ai se ele pudesse
finalmente voltar — exclamou a tia Barbeau para o marido na noite do
dia em que haviam recebido uma carta cheia de amor para eles, para Landry, para
Fanchon e
finalmente para todos os novos e velhos da família. — Está quase general e já era
tempo dedescansar um pouco. — O posto que tem já é bem bonito, sem precisar de o
aumentar — disse orgulhosamente o
tio Barbeau —, e não dá menos honra a uma família de camponeses. — Fadette bem
previra que a coisa aconteceria — continuou a tia Barbeau. — É bem
verdade que o anunciou. — Em todo o caso — disse o pai —, nunca conseguirei
perceber como é que a opinião dele
mudou tão repentinamente e como se deu semelhante mudança no seu espírito, ele que
era tão
tranquilo e amigo das suas comodidades. — Marido — respondeu a mãe —, a nossa nora
sabe mais do que quer dizer, mas não se
engana uma mãe como eu e creio que sei tanto como Fadette. — Nesse caso já é tempo
de mo dizeres!exclamou o tio Barbeau. — Pois bem — replicou a tia Barbeau —, a
nossa Fanchon é demasiado feiticeira, ao ponto
de ter enfeitiçado Sylvinet mais do que desejaria. Quando viu que o feitiço operava
com
demasiada força, quis refreá-lo, mas não conseguiu. O nosso Sylvinet, vendo que
pensava
demasiado na mulher do irmão, partiu com grande honra e virtude, no que Fanchon o
apoiou e
aprovou. — Se é assim — disse o tio Barbeau, coçando a orelha —, receio bem que
nunca venha a
casar, pois a curandeira disse um dia que quando ele se enamorasse de uma mulher
deixaria de
ter tanta amizade pelo irmão, e que só amaria uma na vida, porque tinha o coração
demasiado
sensível e apaixonado.
FIM

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