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A Pequena Fadette

George Sand

Título original: Le Petit Fadette


Editorial Publica, Lisboa
Sinopse:
Misturar cenas reais da vida rural francesa do século 19 a elementos
que só cem anos depois iriam se tornar a matéria-prima do realismo
fantástico é apenas uma das proezas de A Pequena Fadette, romance
campestre da George Sand.
A história gira em torno de Franchon Fadette, uma menina criada
sem pai nem mãe, quase selvagem, cuja vida se transforma quando se
apaixona por Landry Barbeau, um jovem abastado e irmão gêmeo do
ciumento Sylvinet. Neta da curandeira Fadet, ela enfrenta a resistência da
família do rapaz não só pela pobreza mas também pelo estigma de ser
considerada uma bruxa. Vencer esses obstáculos exige da pequena Fadette
passar por um processo de adaptação para a vida civilizada.
Ao descrever esta trajetória, George Sand faz um acerto de contas
pessoal. Filha de uma mulher do povo e neta de uma aristocrata, ela
desnuda sensações que experimentou de perto como o enfrentamento
entre a marginalidade e o prestígio social, a selvageria e o refinamento da
civilidade. A rejeição de Fadette não é diferente daquela que viveu
quando acabou com seu casamento fracassado e assumiu a criação dos
dois filhos.

1
O nascimento dos gémeos
A vida não corria mal ao tio Barbeau, de Cosse, e a prova disso é
que pertencia ao conselho municipal da comuna e possuía dois campos
que forneciam a alimentação da família para além dum certo lucro. Colhia
dos seus prados bom feno e a forragem era considerada de primeira
qualidade.
A casa do tio Barbeau era de boa construção, estava bem situada,
com um jardim bem tratado, uma excelente vinha e um belo pomar, onde
a fruta abundava.
Era um homem enérgico, boa pessoa, muito dedicado à família e
bom vizinho. Tinha já três filhos quando a tia Barbeau, concluindo que
sem dúvida possuía bens suficientes para cinco e que era preciso
despachar- se, pois a idade avançava, tratou de lhe dar dois ao mesmo
tempo; dois belos rapazes tão parecidos, que se tornava quase impossível
distingui- los um do outro. Ao primeiro deram o nome de Sylvain, mas
em breve se tornou Sylvinet, para o distinguirem dum irmão mais velho,
que era seu padrinho; ao segundo chamaram Landry.
O tio Barbeau ficou um tanto surpreendido quando, ao regressar do
mercado, viu duas cabecinhas no berço.
- Estás a trabalhar tão bem, mulher, que me dás coragem. Eis mais
duas crianças para alimentar; isto significa que não posso descansar e que
tenho de continuar a cultivar a terra e a criar gado. Está descansada que
trabalharei.
A tia Barbeau, repentinamente, desatou a chorar:
- Oh! Meu Deus! Estou tão preocupada! Disseram-me que não havia
nada mais penoso que educar gémeos. Fazem mal um ao outro. E que é
necessário morrer um para que o outro passe bem.
- Será verdade? - exclamou o pai. - Quanto a mim, são os primeiros
gémeos que vejo. Mas está aqui a tia Sagette, que percebe disso e nos vai
dizer ao certo como é.
A tia Sagette, interrogada a esse respeito, respondeu:
- Vão por mim; estes gémeos viverão e não serão mais doentes que
as outras crianças. Há cinquenta anos que sou parteira e vi nascer, viver
ou morrer todas as crianças desta terra. Não é pois a primeira vez que vejo
gémeos. Em primeiro lugar, a parecença em nada lhes prejudica a saúde.
O que mais acontece é um ser forte e o outro fraco; o que faz que um viva
e o outro não; mas olhem para os vossos, são os dois tão belos e bem feitos
como se fossem filhos únicos. São lindos e só pedem que os deixem viver.
Anime- se, tia Barbeau, há-de ser um prazer para si vê-los crescer, e, se
não mudarem, só vocês e aqueles que os virem todos os dias poderão
distingui-los, pois nunca vi gémeos tão parecidos.
- Ainda bem! - exclamou a tia Barbeau. Mas ouvi dizer que os
gémeos tomam tanta amizade um ao outro que, quando são separados,
não podem viver mais e que um deles se deixa consumir pelo desgosto.
- É verdade - respondeu a tia Sagette -, mas oiçam com atenção e não
se esqueçam do que uma mulher de experiência vos diz. Assim que os
vossos gémeos se comecem a reconhecer, tratem de não os deixar sempre
juntos. Levem um para o trabalho enquanto o outro fica em casa. Quando
um for pescar, mandem o outro à caça; quando um guardar as ovelhas, o
outro que vá guardar o gado na pastagem. Não castiguem os dois ao
mesmo tempo; não os vistam de igual; quando um usar chapéu, que o
outro use boné. Enfim, por todos os meios que possam imaginar,
impeçam-nos de se confundirem um com o outro e de se acostumarem a
não passar um sem o outro. Tenho receio de que o que vos estou a dizer
vos entre por um ouvido e saia pelo outro; e se assim for, virão a
arrepender-se.
A tia Sagette falara tão calorosamente, que acreditaram nela.
Prometeram-lhe fazer como dizia e deram-Lhe um belo presente antes de
partir.
8
Quanto aos gémeos, iam crescendo sem terem mais doenças que as
outras crianças, e tinham um temperamento doce e pacífico.
Eram os dois louros. Tinham um aspecto saudável, grandes olhos
azuis, ombros largos, o corpo bem desenvolvido, e todas as pessoas das
redondezas que passavam pelo burgo de Cosse paravam a contemplá-los
e comentavam: Mas que belo par de rapazes!
Assim os gémeos desde cedo se habituaram a ser examinados e
interrogados e não eram nem envergonhados nem apatetados. Sentiam-se
à vontade com toda a gente e, em vez de se esconderem, como fazem os
rapazes quando avistam um estranho, respondiam às perguntas sem
baixarem a cabeça nem se fazerem rogados. No primeiro momento, não se
notava qualquer diferença entre um e outro. Mas, após observados
atentamente, reparava-se que Landry era um pouco mais alto e forte, que
tinha o olhar mais vivo e um ar mais decidido.
Landry dava ideia de ser mais alegre e corajoso, mas Sylvinet era tão
afectuoso e tão fino de espírito que não era menos amado do que o irmão.
Durante três meses ainda se pensou em impedi-los de se habituarem
demasiado um ao outro. Mas, não se notando qualquer alteração, a pouco
e pouco, foi-se esquecendo o prometido. A primeira vez que lhes tiraram
as roupas de criança para os levar à missa, vestiram-nos de igual, pois o
tecido de uma saia da mãe serviu para os dois fatos.
Depois, mais crescidos, notou-se que tinham os mesmos gostos e
quando a tia Rosette os quis presentear com uma gravata a cada um,
ambos esco lheram a mesma gravata lilás ao vendedor ambulante que
andava com a mercadoria de porta em porta. A tia perguntou-lhes se era
por causa de quererem andar sempre vestidos de igual. Sylvinet
respondeu que era a cor mais bonita e Landry garantiu que todas as
outras gravatas eram feias.
- E a cor do meu cavalo - perguntou o vendedor, a rir -, como a
acham?
- Horrível - respondeu Landry.
- Perfeitamente horrorosa - acrescentou Sylvinet.
No decurso do tempo tudo foi ficando na mesma, e os gémeos
vestiam-se de uma maneira tão igual que ainda davam mais motivo a
serem confundidos. Além disso, fosse por malícia de crianças, fosse por
força das leis da Natureza, quando um partia a ponta do tamanco, bem
depressa o outro quebrava o seu do mesmo pé; quando um rompia o
casaco ou o boné, não tardava que o outro imitasse tão bem o rasgão que
dir-se-ia ter sido ocasionado pelo mesmo acidente.
A amizade foi aumentando com a idade, e no dia em que souberam
raciocinar um pouco, os rapazes concluíram que não se podiam divertir
com os outros estando um deles ausente; e quando o pai tentou manter
um deles junto de si todo o dia, enquanto o outro ficava com a mãe,
ambos ficaram tão tristes e tão moles no trabalho que os julgaram doentes,
e quando à noite se encontraram de novo, foram passear de mãos dadas,
não querendo regressar a casa, de tão felizes que estavam por se
encontrarem juntos, e também porque estavam um pouco zangados com
os pais por estes os terem separado. Nunca mais se repetiu a tentativa,
pois é preciso notar que os pais, os tios, as tias, os irmãos e as irmãs
tinham pelos gémeos uma ternura que se aproximava muito de fraqueza.
Orgulhavam- se deles, pois eram duas crianças que não eram nem feias,
nem parvas, nem más.
De vez em quando, o tio Barbeau inquietava-se um pouco com o
hábito de estarem sempre juntos e, relembrando as palavras de Sagette,
tentava arreliá-los para lhes provocar ciúmes. Se cometiam alguma falta,
puxava as orelhas a Sylvinet, por exemplo, dizendo a Landry: Por esta
vez, estás perdoado, porque és o mais sensato. Mas o ver que o irmão fora
poupado consolava Sylvinet e Landry chorava como se tivesse recebido o
correctivo. Também tentaram dar apenas a um o que ambos desejavam;
mas logo a partilhavam se fosse coisa boa para comer; e se era algum
brinquedo ou ferramenta, usavam-no em comum. Se elogiavam o bom
comportamento dum, não fazendo justíça ao outro, logo o outro ficava
contente e orgulhoso por ver o gémeo encorajado e acarinhado, ficando
ele também a lisonjeá-lo. Enfim, era tarefa vã querer separá-los, e como
geralmente ninguém gosta de contrariar as crianças amadas, mesmo
quando é para o seu próprio bem, rapidamente se abandonou o intento.
A família Barbeau aumentava, graças às duas filhas mais velhas, que
não paravam de dar à luz belas crianças. O filho mais velho, Martin, um
belo e bravo rapaz, cumpria o serviço militar; os genros trabalhavam, mas
o serviço não abundava sempre. E, então, houve no país uma série de anos
maus para as colheitas. Como o tio Barbeau não era suficientemente rico
para conservar toda a família consigo, tornou-se urgente arranjar
colocação para os gémeos.
O tio Caillaud, de Priche, ofereceu-se para ficar com um para lhe
tratar dos animais, pois tinha uma gande propriedade para explorar e os
seus filhos eram demasiado grandes ou demasiado pequenos para essa
tarefa. A tia Barbeau teve medo e sentiu um grande desgosto quando o
marido Lhe falou nisso pela primeira vez. Dir-se-ia que nunca previra que
tal aconteceria aos gémeos, e todavia sempre se inquietara com isso. O pai
estava preocupado por causa deles, e preparou tudo com antecedência.
Primeiro, os gémeos choraram e passaram três dias a percorrer bosques e
prados, e só os viam à hora das refeições. Lamentavam-se, agarrados um
ao outro, como se tivessem receio de serem separados à força. Mas o tio
Barbeau nunca o faria. A decisão teria de partir deles. Assim, no quarto
dia, os gémeos, vendo que não os contrariavam, encontravam-se mais
assustados com a vontade paterna do que se tivessem sido ameaçados ou
castigados.
- Temos mesmo de aceitar - disse Landry. Resta resolver qual de nós
irá, pois deixaram-nos a escolha e o tio Caillaud disse que não podia
aceitar os dois.
- Que me importa partir ou ficar - lamentou-se Sylvinet -, se temos
de nos separar? Não é a questão de ir viver para outro sítio; se fosse
contigo, não me custava nada.
- Mas, no entanto, o que ficar em casa terá
mais consolação e menos tristeza do que aquele que não vir nem o
irmão gémeò, nem os pais, nem os outros irmãos, nada do que nos causa
prazer.
Landry disse isto com um ar decidido; mas Sylvinet desatou a
chorar; a ideia de tudo perder e tudo deixar ao mesmo tempo causou-lhe
tanta tristeza que não pôde conter as lágrimas.
Landry também chorava, mas não tanto, e
assim percebeu que Sylvinet tinha mais medo do que ele de ir viver
num lugar estranho e de se dar com uma família que não fosse a sua.
- Olha, mano - disse-lhe -, se conseguirmos separarmo-nos, é melhor
que seja eu a partir. Sabes que sou mais forte que tu e, quando adoecemos
eu resisto mais. Por isso prefiro saber-te com a nossa mãe, que te consolará
e tratará de ti. E depois também não ficaremos longe um do outro. As
terras do tio Caillaud confinam com as nossas, e ver-nos-emos todos os
dias. Eu gosto de trabalhar e isso distrair-me-á, e como corro melhor que
tu, virei mais depressa encontrar-me contigo logo que o dia acabe.

2
Acentuam-se as diferenças
Sylvinet não quis aceitar tal sacrifício por parte do irmão e após
longa discussão decidiram à sorte, que, mau grado de Sylvinet calhou a
Landry.
- Estás a ver que a sorte assim o quer! - disse Landry. - E bem sabes
que não se deve contrariar a sorte.
Sylvinet ainda chorou mas Landry não cedeu. Tinha um pouco mais
de amor-próprio que o irmão. Depois de ouvir tantas vezes repetir que
nunca passariam de meios homens se não se habituassem a separar-se,
Landry, que começava a sentir orgulho nos seus catorze anos, tinha
vontade de mostrar que já não era uma criança. Conseguiu pois
tranquilizar o irmão e, à noite, ao regressar a casa, declarou ao pai que se
submetiam ao dever, e já tinham tirado à sorte e que calhara a ele, Landry,
levar a pastar os animais de Priche.
O tio Barbeau abraçou os dois filhos, e falou-lhes deste modo:
- Meus filhos, estão na idade da razão, reconheço-o na vossa
submissão, e isso alegra-me imenso. Lembrem-se de que quando os filhos
dão prazer aos pais também o dão ao bom Deus e que, mais dia menos
dia, serão recompensados.
Em seguida levou os gémeos junto da mãe para que esta os
felicitasse, mas a tia Barbeau teve tanta dificuldade em reter as lágrimas
que nada conseguiu dizer e contentou-se em os abraçar.
O tio Barbeau sabia muito bem qual dos dois era o mais corajoso e
qual era o mais afectuoso. Não quis de modo algum arrefecer a boa
vontade de Sylvinet, pois via que Landry estava decidido e que só o
desgosto do irmão o poderia fazer vacilar.
Chamou Landry antes do nascer do dia, tendo cuidado em não
acordar o outro, que dormia ao lado.
- Vamos, pequeno - chamou baixinho -, temos de partir para Priche
antes que a tua mãe desperte, pois sabes como tudo isto a entristece. Vou
levar-te a casa do teu novo patrão, com as tuas coisas.
- Não posso dizer adeus ao meu irmão? - perguntou Landry. - Ficará
aborrecido se partir e não o fizer.
- Se teu irmão acorda e te vê partir, desata a chorar, e acorda a vossa
mãe, que chorará ainda mais, por causa do vosso desgosto. Vamos,
Landry, cumpre até ao fim o teu dever, meu filho; parte como se nada
fosse. Ainda esta noite levo lá o teu irmão, e, como amanhã é domingo,
poderás vir visitar a mãe durante o dia.
Landry obedeceu corajosamente e seguiu o pai sem olhar para trás.
A tia Barbeau não estava tão adormecida nem tão sossegada que não
ouvisse o que o marido dissera a Landry. A pobre mulher, entendendo as
razões do marido, não se mexeu e afastou apenas um pouco a cortina para
ver o filho partir. Sentiu um aperto tão grande no coração que saltou da
cama para o ir abraçar, mas parou diante da cama dos gémeos, onde
Sylvinet dormia profundamente. O pobre rapaz chorara tanto durante três
dias que estava morto de fadiga e parecia um pouco febril.
Então, a tia Barbeau, olhando o único dos gémeos que lhe restava,
não pôde impedir-se de reconhecer que era aquele que teria visto partir
com maior pena. Era o mais sensível dos dois, talvez por ter um
temperamento menos forte. O tio Barbeau tinha um nadinha de
preferência por Landry, porque ele era mais trabalhador e corajoso. Mas a
mãe tinha preferência pelo mais carinhoso e meigo, que era Sylvinet.
Pôs-se então a observar o filho, pálido e desfigurado, e a pensar que
seria uma grande pena empregá-lo tão cedo; o seu Landry tinha mais
coragem para suportar o trabalho e a separação. É uma criança que tem
um grande sentido da responsabilidade, pensava; <<e, no entanto, se não
fosse um pouco duro de coração, não teria partido assim, sem voltar a
cabeça e sem derramar uma única lágrima. Não teria tido força para dar
dois passos sem cair de joelhos implorando coragem a Deus e ter-se-ia
aproximado do meu leito, onde eu fingia dormir, nem que fosse só para
me lançar um último olhar ou mandar um beijo com a ponta dos dedos. O
meu Landry É mesmo um verdadeiro rapaz. Só quer é viver, mexer,
trabalhar e mudar de lugar. Mas este, tem um coração de rapariga; é tão
terno e tão meigo, que não podemos evitar amálo com toda a ternura.
Assim pensava a tia Barbeau, ao voltar para a cama, sem mais
conseguir adormecer, enquanto o tio Barbeau levava Landry através dos
prados em direcção a Priche. Quando chegaram a uma pequena colina, de
onde já mal se distinguiam as casas de Cosse, Landry parou e voltou-se. O
coração apertou-se-lhe e teve de sentar-se, incapaz de andar. O pai fingiu
não notar e continuou. Ao fim de um momento, chamou-o suavemente:
- Começa a fazer dia, meu Landry; temos de apressar- nos, para
chegarmos antes do nascer do Sol.
Landry levantou-se, e como jurara não chorar diante do pai, susteve
as lágrimas que lhe marejavam os olhos e chegou a Priche sem mostrar o
seu desgosto, que não era pequeno.
O tio Caillaud, vendo o mais forte dos gémeos, ficou todo satisfeito
por o receber. Sabia bem que tal decisão não fora tomada sem pena, e
comó era bom homem e muito amigo do tio Barbeau, esforçou-se por
acarinhar e encorajar o jovem rapaz. Mandou servir-lhe uma sopa bem
quentinha para Lhe dar ânimo, pois bem via o desgosto dele. Levou-o em
seguida consigo para tratar dos animais e mostrou-lhe como o costumava
fazer. Na verdade, Landry não era novato nessa tarefa, pois o pai tinha
um belo par de bois que ele várias vezes havia tratado. Assim que o rapaz
viu os grandes bois do tio Caillaud, que eram os mais bem tratados, os
mais bem alimentados e os de melhor raça de toda a região e arredores,
sentiu-se satisfeito por ter animais tão belos para cuidar. E também estava
orgulhoso por mostrar que não era desajeitado nem medricas e que sabia
o que lhe estavam a ensinar. Quando chegou a altura de partir para os
campos, todos os filhos do tio Caillaud, rapazes e raparigas, grandes e
pequenos, vieram saudar o gémeo, e a mais nova das raparigas prendeu-
lhe um raminho de flores com fitas no chapéu, porque era o seu primeiro
dia de serviço e um dia de festa para a família que o recebia. Antes de o
deixar, o pai fez-Lhe as últimas recomendações em presença do novo
patrão, ordenando-lhe que obedecesse a tudo e que cuidasse dos animais
como se fossem seus.
Landry prometeu esforçar-se ao máximo e foi para o trabalho, onde
mostrou boa vontade e eficiência durante o dia. Regressou com grande
apetite, pois era a primeira vez que trabalhava tão duramente - e úm
pouco de fadiga, que sempre foi um bom remédio contra a tristeza.
Mas o mesmo não aconteceu ao pobre Sylvinet. Nesse dia reinou
grande desolação em casa dos Barbeau.
Mal Sylvinet acordou e não viu o irmão ao lado desconfiou da
verdade, mas nem queria acreditar que
Landre tivesse partido sem lhe dizer adeus; e, no meio da sua dor,
uma enorme zanga começou a dominar-lhe o espírito.
- Mas que Lhe fiz eu e em que lhe desagradei? - perguntou à mãe. -
Fiz tudo o que me aconselhou; quando me recomendou que não chorasse
na sua frente, querida mãe, retive as lágrimas, tanto, que a minha cabeça
parecia estoirar. Até me prometeu não se ir embora sem me dizer algumas
palavras de encorajamento! Queria arranjar umas coisas e dar-lhe a minha
navalha, que é melhor que a dele... Não me diga, mãe, que lhas arranjou
ontem à noite, sem me dizer nada, e sabia que ele se queria ir embora sem
se despedir de mim?
- Cumpri a vontade de teu pai. - respondeu a tia Barbeau.
E disse-lhe tudo o que conseguiu imaginar para o consolar, embora
em vão. Só quando a viu cho rar, também, é que se agarrou a ela aos
beijos, pedindo perdão por lhe ter aumentado o sofrimento, prometendo
ficar com ela para a compensar. Mas, mal ela o deixou sozinho, Sylvinet
desatou a correr em direcção a Priche, sem sequer pensar para onde ia,
deixando-se arrastar pelo ins tinto.
Teria ido até Priche se não tivesse encontrado o pai, que regressava e
lhe agarrou na mão, dizendo:
- Iremos vê-lo à noite. Não deves distrair teu irmão durante o
trabalho; aliás, tua mãe está muito triste, e conto contigo para a
conformares.
Chegados a casa, Sylvinet agarrou-se de novo às saias da mãe, como
uma criancinha, e não mais a largou durante o dia, falando sem cessar de
Landry, passando por todos os sítios e recantos onde costumavam estar
juntos.
À noite foi a Priche com o pai. Sylvinet estava como louco, iria
abraçar o irmão e nem conseguira jantar, tal a pressa de partir. Contava
que Landry viesse ao seu encontro e a todo o momento esperava vê-lo
aparecer. Mas Landry, embora cheio de vontade de o fazer, não se mexeu.
Receava o escárnio da rapaziada de Priche, por causa dessa afeição de
gémeos, considerada como uma espécie de doença. De modo que Sylvinet
foi encontrá-lo ainda à mesa, a beber e a comer, como se tivesse passado
toda a vida com a família Caillaud.
Contudo, mal Landry o viu entrar, sentiu o coração rejubilar de
alegria, e se não se tivesse refreado, teria derrubado a mesa e o banco para
mais depressa o poder abraçar. Mas não ousou fazê-lo, em vista de todos o
fitarem com curiosidade.
Assim, quando Sylvinet se lançou sobre ele, abraçando-o e
chorando, Landry, apesar de se sentir feliz, fez sinal ao irmão para se
moderar, o que muito espantou e agastou Sylvinet. Como o tio Barbeau se
pusera a conversar e a beber com o tio Caillaud, os dois gémeos saíram
juntos, pois Landry queria ficar a sós com o irmão. Mas os outros rapazes
observavam-nos de longe, e a pequena Solange, a filha mais nova do tio
Caillaud, que era esperta e curiosa, foi atrás deles, rindo com ar
embaraçado quando eles olhavam para trás, mas nunca os largando de
vista.
Embora Sylvinet tivesse ficado admirado como ar tranquilo com que
o irmão o recebeu, não pen sou em censurá-lo, de tal modo se sentia feliz
por estar com ele.
No dia seguinte, como o tio Caillaud o havia dispensado de todo o
serviço, Landry partiu cedo pen sando surpreender o irmão na cama. Mas,
embora Sylvinet fosse o mais dorminhoco dos dois, acordou no momento
em que Landry transpôs a cancela da casa e saiu a correr, descalço, ao seu
encontro.
Foi para Landry um dia de felicidade: sentiu prazer em rever a
família e a casa, pois sabia que não os poderia visitar todos os dias. E
Sylvinet esqueceu toda a sua dor. Tratou do gémeo e acarinhou-o com
toda a dedicação, dando-lhe o que havia de melhor para comer, a melhor
fatia de pão, as mais tenras folhas de alface, e depois preocupou-se com a
sua roupa, e o calçado, como se ele fosse partir para muito longe e fosse
digno de ser lamentado, sem suspeitar que dos dois era ele o mais digno
de lamentar, porque era o mais infeliz.
A semana seguinte passou de modo igual, com Sylvinet a visitar
Landry todos os dias e Landry a parar para estar com ele um ou dois
minutos quando vinha para os lados de Cosse; Landry, aceitando cada vez
melhor a sua situação, e Sylvinet aceitando-a cada vez pior, contando os
dias e as horas como uma alma penada.
Só havia uma pessoa no mundo capaz de o chamar à razão: Landry.
Por isso, a mãe recorreu a ele para tranquilizar Sylvinet, dado que, dia a
dia, a tristeza da pobre criança aumentava. Já não brincava e só trabalhava
quando obrigado. Mal tiravam os olhos de cima dele, partia sozinho e
escondia-se tão bem que não sabiam onde encontrá-lo. Entrava em todos
os campos e em todas as ravinas onde costumava brincar com Landry e
sentava-se nos troncos onde se haviam sentado juntos; metia os pés nos
riachos onde haviam chafurdado como dois patinhos. Ficava contente
quando encontrava algumas aparas de madeira que Landry havia cortado
com a navalha, ou algumas pedras de que se sevira como malha.
Recordava a todo o momento a felicidade perdida. Em nada o preocupava
os tempos que estavam para vir. Só pensava no tempo passado e
consumia-se num delírio sem fim.
Por vezes julgava ver e ouvir o irmão; então falava sozinho,
julgando estar a responder-lhe. Outras, adormecia onde estava, sonhando
com ele; e quando acordava, não conseguia reter as lágrimas, chorando de
desespero.
Certo dia, vagueando pelas matas de Champeaux, descobriu à beira
do riacho um daqueles pequenos moinhos que as crianças costumam fazer
com gravetos, e que giram com a corrente da água. Sylvinet reconheceu-o
facilmente, por ser obra do irmão. Ficou radiante por descobri-lo, e logo o
levou um pouco mais para baixo, onde o riacho fazia um desvio, para o
ver girar e recordar o entusiasmo que o irmão experimentara da primeira
vez. Depois, partiu, antevendo a alegria que sentiria por ali voltar no
próximo domingo com Landry e mostrar-lhe como o moinho era sólido e
bem construído.
Mas, entretanto, não conseguiu resistir e voltou lá sozinho, no dia
seguinte, encontrando a margem do riacho toda revolvida e calcada por
patas de animais que certamente foram beber ao riacho. Tinham pisado o
moinho, reduzindo-o a migalhas. Sylvinet ficou desolado e, cismando que
naquele dia algo de mau iria acontecer ao irmão, correu até Priche para se
assegurar de que ele estava bem. Aí, sabendo que Landry não gostava de
o ver por ali de dia, por recear que o patrão se zangasse, contentou-se em
observá-lo de longe, enquanto ele trabalhava. Acabou por regressar sem
nada lhe dizer, envergonhado do impulso que tivera.
Como se tornara pálido, dormindo mal e quase não comendo, a mãe
andava aflita e não sabia o que fazer para o consolar. Tentava levá-lo ao
mercado ou mandá-lo às feiras com o pai ou com os tios, mas nada o
interessava nem divertia. O tio Barbeau, sem nada lhe dizer, tentava
incessantemente convencer o tio Caillaud a tomar os dois gémeos ao seu
serviço. Porém, este respondia sempre da mesma forma.
- Mesmo que aceitasse os dois por uns tempos, isso não poderia
durar muito, pois não precisaria sempre dos dois. Ao fim dum tempo,
você tinha de o empregar de novo. O certo é que, mais cedo ou mais tarde,
eles vão ter de se separar. Assim, é melhor começar já a habituá-los a não
andarem sempre juntos. Seja razoável, meu amigo, e não dê tanta atenção
aos caprichos de uma criança demasiado mimada. O mais difícil está feito,
e pode crer que ele se habituará ao resto, se você não ceder.
O tio Barbeau reconhecia perfeitamente que quanto mais Sylvinet
via o irmão, mais vontade tinha de o ver. E prometia a si próprio arranjar-
lhe emprego na próxima feira, a fim de que, vendo cada vez menos
Landry, ele tomasse o hábito de viver como os outros e não se deixasse
arrastar por uma amizade que se estava a transformar em obsessão.
Mas ainda era cedo para falar nisso à tia Barbeau, pois, mal se
puxava pela conversa, rompia num pranto interminável dizendo que
Sylvinet não resistiria a tal provação, de modo que o tio Barbeau não
insistia.
Landry, aconselhado pelos pais, não deixava de chamar à razão o
seu infeliz irmão. Sylvinet não se defendia, prometia tudo, mas não
conseguia dominar-se. Para além da tristeza havia agora um outro
sentimento inexplicável: crescia-lhe no fundo do coração um ciúme
terrível em relação a Landry. Se por um lado estava contente por ver toda
a gente estimá-lo e os novos patrões tratarem-no amigavelmente, por
outro, afligia-o e ofendia-o ver Landry retribuir demasiado, segundo ele,
essas novas amizades. Não podia suportar que, a uma palavra do tio
Caillaud, ele corresse prontamente a cumprir a sua vontade, abandonando
pai, mãe e irmão, mais preocupado em não faltar ao dever do que à
amizade pela família.
Então, a pobre criança meteu na cabeça que era o único a amar e que
o seu afecto já não era correspondido, pois que o irmão tinha encontrado
noutro lugar pessoas que lhe agradavam mais.

3
A fuga
Landry não fazia a menor ideia do ciúme do irmão, pois jamais
tivera ciúmes fosse de quem fosse. Quando Sylvinet ia visitá-lo a Priche,
Landry, para o distrair, mostrava-lhe os bois e as vacas, o rebanho de
ovelhas e as searas do tio Caillaud, pois gostava e apreciava tudo aquilo,
não por inveja, mas pelo amor ao trabalho bem feito e pela beleza e
perfeição das coisas do campo. Não podia suportar que tudo o que
pudesse viver e prosperar fosse abandonado, desleixado ou desprezado.
Sylvinet olhava para tudo com indiferença e arreliava-se pelo irmão levar
tão a peito coisas que não lhe pertenciam. Irritadiço, dizia a Landry:
- Estás muito afeiçoado a estes animais! Já nem sequer te lembras
dos nossos, tão meigos e tão nossos amigos. Vê lá se pediste notícias da
nossa vaca, que dá um leite tão bom e me olha com um ar tão triste, pobre
animal, quando lhe dou de comer, como se compreendesse que estou
sozinho e quisesse perguntar pelo outro gémeo!
- Sim, é verdade, é um bom animal - dizia Landry -, mas olha para
estas! Nunca na tua vida viste tanto leite.
- É possível - continuou Sylvinet -, mas a ser um leite tão bom e uma
nata tão cremosa como a da Brunette, aposto que não, porque as
pastagens de Cosse são melhores do que estas.
Discutiam, assim, por tudo e por nada. De um lado, uma criança
contente por trabalhar e viver onde quer que fosse e como fosse e, do
outro, a que não podia compreender que o irmão tivesse momentos de
alegria e tranquilidade.
Se Landry o levava ao jardim do patrão e, enquanto conversava com
ele, inconscientemente, se interrompia para cortar um ramo morto ou
arrancar uma erva daninha, Sylvinet zangava-se por ele ter sempre na
ideia o trabalho em vez de estar como ele, atento ao menor gesto, à menor
vontade do irmão. Não deixava transparecer porque tinha vergonha de se
sentir tão sensível a tudo; mas no momento da partida, dizia-Lhe
frequentemente:
- Bom, por hoje já chega! Se calhar, até já estás farto.
Landry não compreendia o significado daquelas censuras que o
mortificavam e, por sua vez, repreendia o irmão, que não queria nem
podia explicar-se.
Se o pobre rapaz tinha ciúmes das mais pequenas coisas que
entretinham Landry, sentia-os mais fortemente ainda com as pessoas por
quem Landry mostrava afecto. Não suportava ver Landry em franca
camaradagem ou de bom humor com os outros rapazes de Priche, e
quando o via tomar conta da pequena Solange, censurava-o por se
esquecer da irmã Nanette, que no seu entender era cem vezes mais
engraçada, mais limpa e mais amável que aquela desenxabida.
Mas, como um coração devorado pelo ciúme perde todo o sentido
da justiça, quando Landry vinha a casa, parecia também, segundo ele,
ocupar-se demasiado da irmãzinha. Sylvinet censurava-o por só ligar à
pequena, acusando-o de se sentir aborrecido na sua companhia.
Enfim, a sua amizade tornou-se pouco a pouco tão exigente e o seu
humor tão triste, que Landry começou a sofrer com isso e a espaçar as
visitas. As incessantes acusações começavam a saturá-lo, pois dir-se-ia que
Sylvinet se sentiria menos infeliz se pudesse fazer o irmão tão infeliz como
ele. Landry tentou fazer-lhe compreender que a amizade, quando
demasiada, pode por vezes tornar-se um mal. Sylvinet nem quis ouvir,
considerando mesmo uma rudeza o que o irmão Lhe dizia; de modo que
começou a amuar, e a passar semanas inteiras sem ir a Priche mas
morrendo de desejo de o fazer.
Aconteceu que, de palavras em palavras, de zangas em zangas,
Sylvinet levando sempre a mal tudo o que Landry lhe dizia para o chamar
à razão, o pobre Sylvinet chegou a sentir tanto despeito, que imaginou por
momentos odiar o irmão. E, um domingo, saiu de casa para não passar o
dia com ele.
Esta maldade infantil entristeceu sobremaneira Landry. Gostava do
prazer e da agitação, porque cada dia se tornava mais forte e
desembaraçado. Em todos os jogos era o primeiro e o mais esperto. Era,
pois, um pequeno sacrifício que fazia pelo irmão abandonar os alegres
rapazes de Priche, todos os domingos, para passar o dia inteiro em Cosse,
onde não podia de modo algum falar a Sylvinet em irem brincar para o
largo, nem sequer passear até um sítio qualquer. Sylvinet, que ficara mais
criança de corpo e espírito do que o irmão e só tinha uma ideia, a de o
amar e ser amado de igual modo, queria que fossem sozinhos para os seus
sítios, como dizia, para os recantos e esconderijos onde tinham brincado a
jogos que já não eram próprios da idade: fazer moinhos, armadilhas para
os pássaros, casinhas de pedra, etc. .
Estes divertimentos já não eram ao gosto de Landry, que preferia
agora conduzir um grande carro de seis bois, a montar uma armadilha
para os pássaros, ou ir bater-se com os rapazes mais fortes da terra,
jogando o chinquilho, visto que se tornara um hábil jogador. Quando
Sylvinet consentia em acompanhá-lo, em vez de ir brincar, mantinha-se a
um canto sem falar, pronto a aborrecer-se e a lamentar-se, quando Landry
parecia demasiado entusiasmado com o jogo.
Landry também já aprendera a dançar em Priche, e embora este
gosto tivesse chegado tardiamente, por causa de Sylvinet nunca o ter tido,
já dançava tão bem como qualquer outro. Era considerado bom dançarino
de bourré 1 e embora não sentisse ainda grande prazer em ter de beijar as
raparigas, como é costume em cada dança, não se furtava a fazê-lo, pois
significava que estava a abandonar o estado de criança.
Sylvinet viu-o dançar uma vez, e isso foi a causa de uma das suas
maiores brigas. Ficara tão encolerizado por o ver beijar uma das filhas do
tio Caillaud, que chorava de ciúmes e achara a coisa perfeitamente
inadmissível.
Assim, cada vez que Landry sacrificava a diversão à amizade do
irmão, passava um domingo bem pouco divertido, e, apesar disso, nunca
faltava, sabendo quanto Sylvinet lhe ficava agradecido, jamais
lamentando o aborrecimento que suportava, pois sabia o prazer que
proporcionava ao gémeo.
Por conseguinte, quando soube que o irmão, que durante toda a
semana procurara discórdia, saira de casa para não se reconciliar com ele,
ficou triste e, pela primeira vez desde que deixara a família, chorou
escondido com verdadeiro desgosto, pois tinha vergonha de mostrar a
mágoa aos pais, temendo entristecê-los.
Se alguém devia sentir ciúmes, esse alguém seria Landry. Sylvinet
era o preferido da mãe, e até o tio Barbeau, embora tivesse uma ligeira
preferência por Landry, se mostrava mais complacente para com Sylvinet.
Este último, sendo o menos forte e o menos razoável, era também o mais
mimado e receavam contrariá- lo mais do que ao outro. Tinha mais sorte,
pois estava com a família.
Landry fez pela primeira vez este raciocínio e achou o gémeo injusto
para com ele. Até aí, o seu coração havia-o impedido de o julgar ou de o
acusar, condenando- se a si próprio por ter boa saúde e demasiado amor
ao trabalho e por não saber dizer palavras tão doces como o irmão. Mas
desta vez não lhe encontrava qualquer desculpa, pois, para não faltar
nesse dia, renunciara a uma bela pescaria com os rapazes de Priche, que
até lhe haviam prometido um bom divertimento se fosse com eles.
Resistira portanto àquela tentação, o que, naquela idade, era digno de

1
Dança popular francesa.
louvar.
Chorava quando também ouviu alguém chorar não longe dali.
Landry depressa reconheceu a mãe e correu ao seu encontro.
- Oh Meu Deus! Porque será que esta criança me dá tantos
cuidados? - perguntava ela a soluçar. - Qualquer dia ainda se mata.
- Minha mãe, sou eu, que lhe dou tanto cuidado? - interrogou
Landry, atirando-se-lhe ao pescoço. - Se sou eu, castigue-me, mas não
chore. Se a magoei, peço-lhe perdão.
Aí, a mãe reconheceu que Landry não tinha tão mau coração como
frequentemente imaginara. Abraçou-o com força, explicando-lhe que era
de Sylvinet, e não dele, que se queixava. Pediu desculpa por às vezes ser
injusta com ele, mas Sylvinet parecia estar a ficar louco, e por isso estava
preocupada, pois ele partira sem comer, antes da alvorada; o dia estava
prestes a terminar e ele não regressava; haviam-no visto para os lados da
ribeira, e temia que tivesse decidido pôr termo à vida.
A ideia de que Sylvinet pudesse ter tido vontade de morrer assustou
Landry, que imediatamente partiu à procura do irmão. Enquanto corria,
sentia enorme desgosto e pensava: Talvez a mãe tivesse razão ao censurar-
me o mau coração. Mas, neste momento, o de Sylvinet deve estar bem
doente para causar esta dor à nossa pobre mãe e a mim.
Correu por todos os lados sem o encontrar, chamando- o sem obter
resposta, perguntando por ele a toda a gente sem qualquer resultado.
Parou por fim em frente do prado do Juncal e lembrou-se de que havia ali
um lugar muito do agrado de Sylvinet. Era uma grande fenda, que a
ribeira fizera nas terras, desenraizando dois ou três troncos que ficaram
atravessados na água. O tio Barbeau não os retirara porque, da maneira
como estavam caídos, ajudavam a segurar as terras.
Landry aproximou-se da fenda, nome que o irmão e ele davam
àquela zona do juncal. Não perdeu tempo a ir até ao canto onde tinham
feito umas escadinhas para facilitar a descida. Saltou do ponto mais alto
para chegar mais rapidamente ao fundo da fenda, porque havia frente à
margem da ribeira tanta ramagem e tantas ervas altas que se o irmão se
encontrasse ali não o veria.
Entrou impressionado, pois não lhe saía do pensamento o que a mãe
lhe dissera. Revistou e tornou a revistar toda a folhagem e bateu todas as
ervas, chamando Sylvinet e assobiando pelo cão, que sem dúvida andava
com ele, pois também havia desaparecido.
Mas Landry chamou e procurou inutilmente; estava sozinho na
fenda. Como era um rapaz esperto, consciente do que fazia, examinou
toda a margem para ver se havia pegadas. Foi uma busca triste e também
embaraçosa, pois havia algum tempo que Landry não ia àquele sítio; e,
embora o conhecesse bem, havia pequenas mudanças. Toda a margem
direita estava arrelvada, o junco havia crescido tão abundantemente que
não deixava lugar para procurar uma pegada. Todavia, à força de
pesquisar o local, Landry encontrou a pista do cão, e até um lugar com
ervas pisadas, como se o Finot ou outro cão qualquer se tivesse aí
espojado.
Isto deu-lhe que pensar, tendo ido examinar a margem da ribeira.
Pareceu-lhe distinguir um sulco ainda fresco, como uma marca feita por
um pé ao saltar, e embora não tivesse a certeza, pois também podia ser
obra de uma dessas grandes ratazanas de água, que devastam, escavam e
esburacam semelhantes locais, ficou tão triste, tão triste, que, sentindo as
pernas a tremerem, caiu de joelhos, como a implorar forças a Deus.
Ficou assim durante algum tempo, sem força nem coragem para
contar a alguém a sua angústia, fitando a ribeira com os olhos cheios de
lágrimas, como à espera de uma resposta sobre o irmão.
Mas a ribeira corria tranquilamente, agitando-se nos ramos que
pendiam e mergulhavam nas águas, deslizando com pequenos gorgulhos,
como alguém que ri e goza à socapa.
O pobre Landry começou a desesperar, subjugado por aquela ideia
de desgraça, tão forte que o deixava sem forças.
Este malvado rio não fala, pensava, é bem capaz de me deixar
chorar um ano inteiro sem me devolver o meu irmão. Meu Deus! O meu
pobre gémeo estará talvez no fundo da água, a dois passos de mim, sem
que eu o possa ver ou encontrar no meio destes ramos e juncos
Então desatou a chorar e a repreender ao mesmo tempo o irmão,
pois nunca tivera tamanho desgosto.
Veio-lhe por fim à ideia ir consultar uma viúva a quem chamavam
tia Fadet, e que vivia ao fundo do prado do Juncal, perto do caminho que
levava até ao vau. Essa mulher, que não possuía outra terra nem outros
bens que não fossem o jardinzito e a casita, ganhava a vida graças aos seus
preciosos conhecimentos sobre as virtudes das plantas; e de todos os lados
iam consultá-la. Sabia curar feridas, entorses e qualquer outro mal.
Tomava ares de importante, pois libertava as pessoas de doenças como
dores de estô mago, de barriga, de cabeça, etc.
E assim, com os bons remédios que conhecia e aplicava no corpo,
como os soberbos emplastros que aplicava nos cortes e queimaduras; com
as beberagens que fazia para tirar a febre, não havia dúvida de que
ganhava bom dinheiro e curava muitos doentes que os médicos não
conseguiriam salvar com um tratamento normal. Era pelo menos o que ela
dizia, e aqueles que curava preferiam acreditá-la do que arriscar-se.
Como no campo ninguém é sábio sem ter um pouco de feiticeiro,
muita gente pensava que a tia Fadet sabia mais do que confessava, e
atribuíam-lhe mesmo o poder de encontrar coisas perdidas, até pessoas;
enfim, pelo facto de possuir grande clareza de espírito e sensatez, pediam-
lhe frequentemente conselhos.
Como as crianças acreditam facilmente em todas as histórias que
lhes contam, Landry ouvira dizer em Priche que a tia Fadet, com o auxílio
de certa semente, que atirava à água e pronunciando certas palavras,
podia encontrar o corpo de uma pessoa afogada. Essa semente boiava e
deslizava na água, e onde parasse era seguro encontrar-se ali o corpo.
Landry decidiu então ir até à casa da tia Fadet, contar-lhe a sua
desgraça e rogar-lhe que fosse com ele até à fenda, para tentar encontrar
com a semente o irmão, vivo ou morto.
Mas a tia Fadet, que não executava os seus talentos sem mais nem
menos, zombou dele e mandou-o embora com dureza, pois tinha um certo
rancor pela sua família, por terem outrora chamado a tia Sagette, em vez
dela, aquando do parto dos gémeos.
Landry, orgulhoso por natureza, noutra altura ter- se-ia talvez
queixado ou zangado, mas estava tão acabrunhado que nada disse e
partiu direito à fenda, decidido a entrar na água, apesar de não saber
nadar. Entretanto ao avançar, cabisbaixo e de olhos fixos no chão, sentiu
que alguém lhe batia no ombro e, voltando- se, deu de caras com a neta da
tia Fadet, a quem todos chamavam a pequena Fadette 2, e tanto por ser o
nome de familia como por pretenderem que ela era também um pouco
feiticeira. Todos sabem que o duende, ou o diabrete, é um espírito muito
gentil, mas um pouco travesso. O certo é que toda a gente, ao vê-la passar,
pensava ver um duende, de tal modo era pequena, magra, desgrenhada e
atrevida. Era uma rapariguinha muito faladora e trocista, viva como uma
borboleta, curiosa como um pardalito e escura como um grilo.

2
Fadet: duende
Comparar a pequena Fadette a um grilo é subentender que não era
bonita, pois esse pobre bichinho é bem pouco agradável ao olhar. No
entanto, se nos recordarmos, em criança, de ter brincado com ele, fazendo-
o enraivecer e gritar, sabemos que tem um aspecto bem tolo e que dá mais
vontade de rir do que irritar. Assim, as crianças de Cosse, que não são
mais patetas do que as outras, sabendo observar as semelhanças e
encontrar comparações, chamavam à pequena Fadette grilo quando a
queriam fazer zangar, e até às vezes por amizade, pois, embora a
temessem por causa da sua malícia, não a detestavam porque ela sabia
contar toda a espécie de histórias e ensinava-lhes jogos novos que ela
própria inventava.
Mas, fossem quais fossem os apelidos que lhe davam, o nome que
ela recebera no baptismo era Françoise; a avó chamava-lhe sempre
Fanchon.
Como existia há muito uma desavença entre a família Barbeau e a tia
Fadet, os gémeos pouco falavam com a pequena Fadette, e nunca haviam
brincado de bom grado com ela nem com o irmão mais novo, o saltão, que
era ainda mais espigado e mais travesso que ela, sempre pendurado a seu
lado, zangando-se quando ela corria sem esperar por ele, atirando-lhe
pedras quando se ria dele, numa raiva desmedida. Certas pessoas, e
particularmente a família do tio Barbeau, imaginavam que a tia Fadet, o
grilo e o saltão lhes trariam azar se travassem amizade com eles. Isso,
porém, não impedia a pequena Fadette de abordar os gémeos com toda a
espécie de gracinhas e alcunhas, assim que os via, troçando da sua
semelhança.
Assim, Landry ao virar-se, um pouco aborrecido por causa da
palmada que acabava de receber no ombro, deparou com a pequena
Fadette e, não longe dela, Jeanot, o saltão, a coxear, pois era deficiente de
nascença.
O primeiro gesto de Landry foi não prestar atenção e continuar
caminho, pois não estava com disposição para brincadeiras, mas Fadette
disse, tocando-lhe no ombro:
- Olha o lobo! Olha o lobo! Olha o gémeo parvo, meio rapaz, que
perdeu a outra metade!
Nisto, Landry, que não estava disposto a ser insultado nem
arreliado, deu uma reviravolta e atirou um soco rápido à rapariga, que lhe
teria acertado violentamente se ela não se tivesse esquivado, pois o gémeo
ia fazer quinze anos e era bastante vigoroso; e ela, que ia fazer catorze e
nem doze aparentava, era tão miudinha e tão pequena que parecia
quebrar-se ao menor toque. Só que geralmente estava atenta e alerta para
aparar os golpes, e o que perdia em força no jogo de mãos ganhava em
rapidez e manha. Saltou para o lado tão oportunamente, que, por pouco,
Landry não batia com o punho numa grande árvore que ficou entre eles.
- Malvado grilo! - exclamou o gémeo, irado.
- É preciso não teres coração para vires provocar alguém que sofre
como eu. Há muito tempo que andas a arreliar-me, chamando-me meio
rapaz. Hoje tenho grande vontade de te partir em quatro, a ti e ao teu
maldito saltão, para ver se os dois fazem um quarto de alguma coisa.
- Ora essa, belo gémeo, senhor do Juncal à beira- rio! - respondeu a
pequena Fadette, sempre a rir. - Bem parvo és em te zangares comigo, eu
que vinha justamente dar- te notícias do teu gémeo e dizer onde se
encontra.
- Bom, assim já é diferente! - reconsiderou Landry, mais calmo. - Se o
sabes, Fadette, diz-mo e ficarei contente.
- Não há Fadette nem grilo que tenham von tade de te contentar
neste momento - replicou a rapariguita. - Disseste-me palermices e ter-me-
ias batido se não fosses tão pesado e tão desajeitado. Procura, pois,
sozinho a tua metade, já que és tão esperto para o encontrar.
- Bem parvo sou em te dar ouvidos, malvada rapariga! - exclamou
Landry, virando-lhe as costas e recomeçando a andar. - Não sabes mais do
q eu onde está meu irmão e não tens mais conhecimento sobre isso do que
a tua avó, que é uma grande mentirosa e matreira.
Mas a pequena Fadette, puxando pelo saltão, que conseguira
pendurar-se na sua saia toda rota, seguia Landry, sempre a gracejar,
dizendo-lhe que sem ela nunca encontraria o irmão. De modo que Landry,
não podendo desembaraçar-se dela e imaginando que através de alguma
feitiçaria a avó ou até ela, por meio de algum pacto com o duende do rio, o
impediriam de encontrar Sylvinet, resolveu sair do Juncal e regressar a
casa.
A pequena Fadette seguiu-o até à paliçada do prado e aí, quando ele
começou a descê-la, empoleirou- se numas estacas e gritou:
- Então adeus, belo gémeo sem coração, que abandona o irmão. Hás-
de fartar-te de esperar por ele, não o verás hoje, nem amanhã, pois lá onde
está nunca o encontrarás. Vem aí a tempestade, e ainda esta noite hão-de
cair árvores ao rio, e o rio há-de transbordar e arrastar Sylvinet para longe,
tão longe que nunca mais o verás.
Todas estas más palavras, que Landry escutava contrariado,
provocaram-lhe um suor frio por todo o corpo. Não acreditava nelas, mas,
como ouvira dizer que a família Fadet mantinha pactos com o diabo, não
podia ter a certeza que tudo era mentira.
- Vamos, Fanchon - insistiu Landry, parando -, queres ou não
deixar-me em paz ou dizer-me se é verdade que sabes alguma coisa do
meu irmão?
- E que tenho eu em troca se, antes da chuva começar a cair, te fizer
encontrá-lo? - inquiriu Fadette, esticando-se nas estacas, e abanando os
braços como se quisesse levantar voo.
Landry hesitava no que prometer-lhe e começava a acreditar que ela
o queria enganar para lhe arrancar algum dinheiro. Mas o vento que
soprava nas árvores e a trovoada que ameaçava, começavam a inquietá-lo.
Não que temesse a tempestade, mas porque viera tão de repente e de uma
maneira que não lhe parecia natural. É possível que, no seu tormento,
Landry nem a tivesse sentido aproximar. Mas, de facto, só reparara nela
quando a pequena Fadette lha anunciara, e imediatamente os seus
horriveis cabelos pretos, saindo da touca, que trazia sempre mal apertada
e torcida, se ergueram como crinas; o boné do saltão foi levado por uma
rajada de vento, e só com grande custo Landry conseguiu impedir o seu
de voar também.
E depois o céu, em dois minutos, tornou-se negro, e Fadette, em
cima das estacas, parecia-Lhe ter o dobro do tamanho; enfim, numa
palavra, Landry teve medo.
- Fanchon! - disse -, entrego-me a ti se me entregares o meu irmão.
Talvez o tenhas visto; talvez saibas onde está. Sê boa rapariga. Não sei que
satisfação podes ter com a minha aflição. Mostra-me que tens bom coração
e acreditarei que vales mais do que esse teu ar gozão.
- E porque hei-de ser eu boa rapariga, se me chamas malvada
quando nada te fiz? - perguntou.
- Porque hei-de ter bom coração para com dois gémeos orgulhosos
como pavões, que nunca me demonstraram a menor amizade?
- Vá lá, Fadette - insistiu Landry. - Queres que te prometa alguma
coisa? Diz-me o que desejas e dar-te-ei. Olha, por exemplo, queres a
minha navalha nova?
- Mostra-ma! - disse Fadette, saltando para ao pé dele.
Quando viu a navalha, que não era má e pela qual o padrinho de
Landry pagara bom preço, ficou um momento tentada; mas logo, achando
pouco, perguntou se não lhe dava antes aquela galinha branca, do
tamanho de uma pomba, que tinha penas muito bonitas.
- Não te vou prometer a galinha branca, porque é da minha mãe -
respondeu Landry -, mas vou pedi-la para ti. Penso que ela não ta negará,
pois ficará tão contente por poder tornar a ver Sylvinet, que nada lhe
parecerá demasiado.
- É mesmo? - inquiriu, a pequena Fadette. E se eu quisesse o vosso
cabrito com o focinho preto, a tia Barbeau também mo dava?
- Meu Deus! Como levas tempo a decidir-te, Fanchon! Olha, se o
meu irmão está em perigo e tu me conduzires já até ele, não haverá em
nossa casa nada que o meu pai e a minha mãe não te quererão dar em
agradecimento, tenho a certeza.
- Bom, depois veremos, Landry - rematou Fadette, estendendo a
mãozita seca ao gémeo, para que ele a apertasse em sinal de acordo, o que
ele fez não sem hesitar um pouco, pois, naquele momento, ela tinha uns
olhos tão brilhantes que parecia um autêntico diabrete. - Não te digo
agora o que quero de ti, ainda não o sei; mas lembra-te bem do que me
estás a prometer, e se falhares, toda a gente saberá que não se pode ter
confiança na palavra do gémeo Landry. Agora vou-me embora, e não te
esqueças de que não te exigirei nada até ao dia em que decidir ir ter
contigo para que me dês o que me aprouver.
- Até que enfim, Fadette! Está prometido e combinado - disse
Landry, apertando-lhe a mão.
- Muito bem! - exclamou ela, com um ar orgulhoso e contente. -
Volta para trás e segue sempre a margem do rio; desce-a até ouvires um
balido, e quando vires um cordeiro castanho, logo verás o teu irmão; se tal
não acontecer, a tua promessa fica sem efeito.
Então o grilo, levando o saltão nos braços, sem reparar que isso não
lhe agradava nada e se debatia como uma enguia, saltou para o meio das
moitas e Landry deixou de a ver.
Não perdeu tempo a pensar se a pequena Fadette estava a brincar, e
numa rápida corrida chegou ao fundo do Juncal; seguiu-o até à fenda e ia
a passar diante dela, sem descer, pois tinha quase a certeza de que
Sylvinet não se encontrava ali, quando, ao afastar-se, ouviu um cordeiro
balir.
Deus da minha alma, pensou, aquela rapariga avisou-me; ouço o
cordeiro, o meu irmão também lá deve estar; mas em que estado, não sei.
Saltou para a fenda, mas o irmão não estava lá. Seguiu o curso da
água, e sempre a ouvir os balidos, Landry avistou na outra margem o
irmão sentado, com um borreguinho ao colo que, de facto, era castanho,
desde o focinho até à ponta da cauda.
Como Sylvinet parecia estar bem, não apresentando sinais
anormais, Landry ficou tão contente que agradeceu interiormente a Deus
aquela felicidade, sem se lembrar de lhe pedir perdão por ter recorrido à
ciência do Diabo para encontrar o irmão. Quando ia chamar por Sylvinet,
que ainda não o vira, nem parecia ouvi-lo, por causa do barulho da água
que naquele sítio batia com força nas pedras, parou para o observar,
espantado por o encontrar como a pequena Fadette previra, no meio das
árvores que o vento fustigava furiosamente e imóvel como uma pedra.
No entanto toda a gente sabia o perigo que aquele local representava
quando se levantavam fortes ventanias. Todas as margens estavam ocas
por baixo e não havia tempestade que não abatesse sempre alguns
amieiros, mais curtos de raizes, e que podiam cair muito facilmente em
cima de uma pessoa, sem avisar. Mas Sylvinet, sem ser mais tolo nem
mais louco que qualquer outro, não se apercebia do perigo. Fatigado de
correr todo o dia e de andar à aventura, se, por felicidade, não se afogara
na ribeira, mergulhava agora no desgosto e no despeito, quedo que nem
um cepo, com os olhos fixos na ribeira, o rosto pálido como cal, a boca
entreaberta, os cabelos desgrenhados pelo vento, sem ao menos atentar no
borreguinho, que encontrara perdido num prado e do qual tivera pena.
Tinha-o enfiado na camisa para o levar a casa; mas, no caminho,
esquecera-se de perguntar a quem ele pertencia. Segurava-o nos joelhos e
deixava-o berrar sem o ouvir, apesar do balido desolado do pobrezinho e
dos olhares que lançava em redor, espantado por não ser ouvido por
ninguém da sua espécie e não reconhecendo nada do que o rodeava,
naquele lugar sombrio, diante de um grande curso de água que lhe
causava medo.
Se Landry não estivesse separado de Sylvinet pelos quatro ou cinco
metros de largura da ribeira, que em certos sítios também era tão
profunda, teria por certo saltado sem mais pensar, agarrando-se ao
pescoço do irmão. Mas como Sylvinet ainda não reparara nele, teve tempo
para pensar na maneira como o despertaria daquela prostração e como,
pelo convencimento, o levaria para casa, pois, se ele não tivesse vontade
de regressar e se afastasse para outro local, Landry iria perder tempo a
procurar um caminho para ir ter com ele, sujeitando-se a perdê- lo de
novo.
Tendo pensado durante um bocado, Landry perguntou-se como
agiria o pai, reflectido e prudente, em semelhante circunstância. Lembrou-
se que o tio Barbeau actuaria dum modo suave e sem nada dar a entender,
ocultando a Sylvinet a angústia que lhe havia causado e fazendo-o sentir-
se arrependido, desencorajando-o de uma nova tentativa.
Landry pôs-se então a assobiar distraidamente como se estivesse a
chamar os melros para os fazer cantar, o que fez Sylvinet erguer a cabeça.
Ao ver o irmão, ficou todo envergonhado e levantou-se rapidamente,
julgando não ter sido visto. Mas aí Landry fez como se tivesse reparado
nele apenas naquele momento e disse-lhe num tom de voz
despreocupado:
- Eh, Sylvinet, então estás aí? Esperei por ti toda a manhã, e como
não havia meio de apareceres, vim dar um passeio por aqui. Até pensava
encontrar-te já em casa, mas, enfim, já que aqui estás, voltemos juntos.
Vamos descer a ribeira, um de cada lado, e juntamo-nos no vau das
Roulettes, em frente à casa da tia Fadet.
- Vamos. - Disse Sylvinet, agarrando o cordeiro.
E os dois irmãos desceram a ribeira não olhando um para o outro,
como que receosos de deixarem transparecer a dor que sentiam por
estarem zangados e o prazer que tinham por se terem encontrado. De vez
em quando, Landry, sempre para parecer que não havia qualquer
problema entre ambos, dizia-lhe uma ou duas palavras. Perguntou onde
apanhara aquele borreguinho castanho, mas Sylvinet não queria adiantar
muita coisa, pois não podia confessar que fora até muito longe, sem saber
o nome dos sítios por onde passara. Então, Landry, vendo-o atrapalhado,
ajudou- o:
- Contas-me tudo mais tarde, o vento está muito forte e não é bom
estar debaixo das árvores perto da água. Olha, louvado seja Deus! Está a
começar a chover e assim, talvez o vento não tarde a abrandar.
E pensava para si: É mesmo verdade! O grilo afirmou-me que o
encontraria antes da chuva começar. Essa rapariga sabe mais do que nós.
Mas também se lembrou que passara um bom quarto de hora a
explicar-se com a tia Fadet, enquanto lhe pedia auxílio e ela lho recusava,
a pequena Fadette, que apenas o vira sair de casa, podia muito bem ter
visto Sylvinet durante esse tempo. Mas como saberia ela o que o fazia
sofrer quando o abordara, se não estava presente enquanto ele falou à
velhota? Desta vez não lhe veio à ideia que perguntara pelo irmão a várias
pessoas e que alguém pudera falar nisso à pequena Fadette; ou, ainda, que
a miúda podia ter escutado a conversa com a avó, escondida como era seu
hábito para saber tudo o que lhe podia satisfazer a curiosidade.
Por seu turno, o pobre Sylvinet pensava igualmente na maneira de
explicar o seu mau comportamento em relação ao irmão e à mãe. Não
sabia o que inventar, ele, que nunca escondera coisa alguma ao irmão. Por
isso, sentia- se pouco à vontade passado o vau, pois chegara até ali sem
encontrar solução para sair da encrenca.
Assim que chegou à margem, Landry abraçou-o com maior ternura
do que era costume, mas evitou interrogá- lo, pressentindo que ele não
saberia que responder, e levou-o para casa, falando-lhe de outros assuntos
menos daquele que Lhe ia no coração.
Ao passarem pela casa da tia Fadet, Landry tentou avistar a pequena
Fadette, pois gostaria de lhe agradecer, mas a porta estava fechada e não
se ouvia outro ruído além da voz do saltão, que gritava porque a avó lhe
batera, o que sucedia todas as noites, tivesse ele merecido ou não.
Sylvinet apiedou-se ao ouvir chorar o garoto e disse ao irmão:
- Que casa horrível! Só se ouvem gritos e pancadas. Bem sei que o
saltão é um traquinas terrível, e o grilo não é melhor, mas aqueles miúdos
são infelizes por não terem pais e por dependerem de uma velha feiticeira,
que nunca lhes perdoa nada.
- Não é como em nossa casa! - acrescentou Landry. - O pai e a mãe
nunca nos bateram, e até quando nos ralhavam, por causa das nossas
traquinices de crianças, era com tanta doçura e firmeza ao mesmo tempo,
que os vizinhos nada ouviam. Há gente assim, demasiado feliz, que por
vezes nem sabe dar o valor ao que teve ou tem. E a pequena Fadette, que é
uma criança infeliz e maltratada, está sempre a rir e nunca se queixa seja
do que for!
Sylvinet compreendeu a censura e sentiu arrependimento pelo erro
cometido. Já de manhã, por várias vezes se sentira invadido pelo remorso
e com vontade de regressar, mas a vergonha impedira-o. E nesse
momento não conseguiu dominar-se e lacrimejou, mas o irmão pegou-lhe
na mão, dizendo:
- Vem aí uma grande chuvada, Sylvinet; vamos depressa para casa.
Desataram então a correr, com Landry a tentar fazer rir Sylvinet,
que se esforçava por lhe agradar.
Contudo, quando iam a entrar em casa, Sylvinet mostrou certa
hesitação, com temor da reprimenda do pai. Mas o tio Barbeau, que não
levava as coisas tão a sério como a mulher, limitou-se a gracejar com a
escapadela. A tia Barbeau, a quem o marido tinha dado a lição, tentou
esconder o tormento por que passara. Mais tarde, quando ocupada a secar
os gémeos diante do lume e a dar-lhes de comer, Sylvinet reparou que a
mãe estivera a chorar e que, de vez em quando, o fitava com ar
preocupado e desgostoso. Se estivessem sozinhos, ter-lhe-ia pedido
perdão, lançando-se-lhe nos braços, e ela acabaria por ficar consolada.
Mas o pai não gostava dessas pieguices, e o rapaz viu-se obrigado a ir
para a cama, após o jantar, pois a fadiga vencera-o por completo. Não
tinha comido nada em todo o dia, e mal acabou de engolir o jantar sentiu-
se como que embriagado e teve de se deixar despir e deitar pelo gémeo,
que permaneceu a seu lado, sentado na beira da cama e segurando- lhe a
mão.
Quando o viu bem adormecido, Landry despediu-se dos pais, não se
apercebendo que a mãe o abraçava com mais ternura que das outras
vezes. Continuava porém a acreditar que ela não podia amá-lo tanto como
ao irmão, o que achava normal, não sentindo por isso ciúmes, em vista do
temperamento mais afectuoso do gémeo. Aceitava o facto por respeito à
mãe e por amor ao Irmão, que tinha, mais do que ele, necessidade de
carinho e consolo.
Na manhã seguinte, Sylvinet correu para a cama da tia Barbeau,
antes de ela se levantar, e, abrindo o coração, confessou o seu
arrependimento e a sua vergonha. Disse como se sentia infeliz de há uns
tempos para cá, não tanto por estar separado de Landry, mas sim porque
imaginava que Landry já não o amava. Mas quando a mãe o interrogou
sobre essa injustiça, não soube explicar os motivos, pois resultavam de
uma espécie de doença que não podia evitar. A mãe compreendia-o
melhor do que desejaria dar a entender, porque ela própria ficara várias
vezes ressentida ao ver Landry tão tranquilo na sua coragem e virtude.
Não podia contudo deixar de reconhecer que os ciúmes são maus
conselheiros em todos os amores, mesmo nos que Deus mais abençoa, e
não encorajou Sylvinet. Fez- lhe ver o desgosto que causara ao irmão e a
bondade deste por não se queixar nem se mostrar chocado. Sylvinet,
arrependido, também o reconheceu e concordou que o irmão era muito
mais franco que ele. Parecia sincero ao prometer tentar curar-se daqueles
ciúmes terríveis.
Mas, apesar de ter apresentado um ar consolado e satisfeito, de a
mãe lhe ter enxugado as lágrimas e respondido a todos os lamentos com
palavras reconfortantes, ficou-lhe no coração uma certa amargura. A
minha mãe, pensava ele, tem razão ao dizer que o meu irmão é o mais
franco e o mais recto de nós dois, mas se ele me amasse tanto como eu a
ele, não reagiria tão calmamente.
E recordava o ar tranquilo e quase indiferente de Landry ao
encontrá-lo na margem do ribeiro. Lembrava-se de como o ouvira assobiar
aos pássaros, no preciso momento em que pensava realmente em atirar-se
à água. Julgava que o irmão nunca lhe perdoaria por ter amuado e ter
fugido da sua companhia. Se tivesse sido ele a fazer-me esta afronta,
pensava, nunca me consolaria. Estou muito contente por ele me ter
perdoado, mas pensava que não seria tão fácil. Continuava, assim, o
infeliz rapaz a suspirar e a debater- se com tristes pensamentos.
Porém, como Deus recompensa e ajuda sempre, até os mais
pecadores, Sylvinet tornou-se mais razoável durante o resto do ano;
absteve-se de provocar ou aborrecer-se com o irmão, passando a amá-lo
de uma forma mais calma, e a sua saúde, que sofrera com todas aquelas
angústias, melhorou e restabeleceu-se. O pai fê-lo trabalhar mais,
apercebendo-se de que quanto menos o filho pensasse em si, melhor
andava. É claro que o trabalho em casa dos pais nunca é tão rude como em
casa dos outros, de modo que Landry, que não se poupava ao trabalho,
tomou mais força e corpo nesse ano do que o irmão. As pequenas
diferenças que existiam entre ambos tornaram-se mais evidentes. Depois
de terem feito quinze anos, Landry tornou-se num belo rapaz e Sylvinet
manteve-se um simpático rapazinho, mais fino e mais pálido do que o
irmão. Por isso já não Lhes trocavam os nomes e, embora continuassem a
ter vincadas parecenças, já não se assemelhavam do mesmo modo que até
ali. Landry, que era considerado o mais novo por ter nascido depois de
Sylvinet, parecia mais velho um ano ou dois. E isto aumentava a amizade
do tio Barbeau, que, como todas as pessoas do campo, apreciava a força e
a robustez acima de tudo.
4
A promessa de Landry
Nos primeiros tempos que seguiram à sua aventura com a pequena
Fadette, Landry ainda se preocupou com a promessa que lhe fizera. Na
altura em que ela o ajudou comprometera-se, em nome do pai e da mãe, a
dar tudo o que houvesse de melhor em casa; mas, quando viu que o tio
Barbeau não levara muito a sério a escapadela de Sylvinet e não mostrara
qualquer inquietação, receou que, quando a pequena Fadette viesse
reclamar a recompensa, o pai a pusesse na rua, troçando da sua ciência e
da promessa que Landry fizera.
Tal temor envergonhava Landry, e, à medida que o desgosto se
dissipava, o rapaz julgava ter sido bem tolo por ter acreditado que havia
feitiçaria no que lhe acontecera. Não tinha a certeza da pequena Fadette
ter feito pouco dele, mas também não encontrava razões válidas para
provar ao pai que fizera bem em aceitar um compromisso daqueles; por
outro lado, não sabia como romper semelhante promessa, pois jurara por
sua honra e fizera-o conscientemente.
Verdade se diga que, para admiração sua, nem no dia seguinte, nem
durante o mês, nem durante a estação, ouviu falar da pequena Fadette em
Cosse ou em Priche. Nem se apresentou em casa do tio Caillaud a pedir
para falar com Landry, nem em casa do tio Barbeau a reclamar alguma
coisa, e quando Landry a viu uma vez, ao longe, no campo, ela não foi ter
com ele nem pareceu prestar-lhe atenção, o que era pelo menos estranho,
pois corria sempre atrás de toda a gente, fosse por curiosidade, fosse para
rir e brincar com quem estivesse bem disposto, fosse para arreliar e
provocar os que assim não estavam.
No entanto a casa da tia Fadet era próxima de Priche e de Cosse, daí
a inevitabilidade, mais dia menos dia, de Landry se cruzar com a pequena
Fadette no caminho. E foi o que aconteceu num fim de tarde em que a
pequena Fadette recolhia os gansos, sempre com o saltão agarrado a ela, e
Landry, que fora buscar os cavalos ao prado e os levava tranquilamente
para Priche. Landry ficou vermelho com medo de se ver obrigado a
cumprir a promessa, e sem coragem para enfrentá-la, assim que a avistou
saltou para cima de um cavalo e picou-o para o lançar a trote. Chegado
perto da pequena Fadette não ousou fitá-la, virando a cara, fingindo olhar
para os cavalos que o seguiam. Quando olhou de novo, já Fadette o
ultrapassara sem lhe dirigir a palavra. Ficou mesmo sem saber se tinha
olhado para ele. Só viu o saltão, que, sempre travesso e malvado, apanhou
uma pedra para atirar às pernas do cavalo, e Landry sentiu uma grande
vontade de Lhe dar um açoite, mas teve medo de parar e ter de encarar a
irmã, pelo que fingiu não se aperceber disso, indo-se embora sem olhar
para trás.
E de todas as outras vezes que Landry encontrou a pequena Fadette,
passou-se mais ou menos a mesma coisa, ainda que, pouco e pouco, se
fosse atrevendo a fitá-la, pois, à medida que o tempo passava, já não se
preocupava tanto com uma coisa tão sem importância. Mas quando
ganhou coragem para a olhar francamente, como que à espera dela se
resolver a falar, ficou espantado por verificar que a rapariga virava a cara
de propósito para o lado. Essa atitude confundiu-o e interrogou-se se não
fizera mal em nunca Lhe ter agradecido a felicidade que, por ciência ou
por sorte, lhe causara. Tomou a resolução de a abordar em futuro
encontro.
E assim, ao reencontrá-la, caminhou decidido na sua direcção,
notando todavia que, à medida que se aproximava, a pequena Fadette
assumia um ar orgulhoso, quase arrogante, e decidindo-se finalmente a
olhar para ele, mas fazendo-o duma maneira tão desdenhosa que Landry,
completamente desconcertado, não ousou dirigir- lhe a palavra.
Foi a última vez que Landry se cruzou com ela, pois a partir desse
dia a pequena Fadette, evitou-o tão bem que, assim que o avistava ao
longe, afastava-se no sentido contrário ou fazia um grande desvio para
não o ver. Landry pensou que ela estava zangada por causa da sua
ingratidão; mas sentia uma relutância tão grande que não conseguiu
decidir-se a dizer algo para reparar a falta. A pequena Fadette não era
uma criança como as outras. Não era medrosa nem acanhada, pois
gostava de provocar as injúrias ou as troças, de tal modo sabia ter a língua
bem afiada para replicar e ter sempre a última palavra e a mais mordaz.
Nunca a tinham visto amuar e censuravam-Lhe a falta de orgulho que
convém a uma rapariga de quinze anos. Comportava-se como um rapaz e
atormentava constantemente Sylvinet, aborrecendo-o e chegando a fazer-
lhe perder a paciência, quando o surpreendia mergulhado nos sonhos que
por vezes ainda tinha. Seguia-o quando o encontrava, troçando e
martirizando-o, dizendo que Landry não gostava nada dele e que ria do
seu desgosto. Assim, o pobre Sylvinet, que, ainda mais que Landry, a
julgava feiticeira, admirava-se por ela lhe adivinhar os pensamentos e
detestava-a por isso. Sentia desprezo por ela e toda a sua família e, do
mesmo modo que ela evitava Landry, ele evitava o malvado grilo, e dizia
que mais cedo ou mais tarde ela seguiria o exemplo da mãe, que levara
uma má vida, abandonando o marido e fugindo com os soldados. Partira
como feirante pouco depois do nascimento do saltão e, desde então, nunca
mais se ouvira falar dela. Foi por isso que a velha tia Fadet se vira a braços
com duas crianças, das quais cuidava muito mal, tanto por causa da
sovinice como por causa da idade avançada que não lhe permitia vigiá-las
nem trazê-las bem arranjadas.
Por todos estes motivos, Landry, apesar de menos orgulhoso que o
irmão, sentia desdém pela pequena Fadette e, lamentando tê-la contactado
evitava que alguém o soubesse. Até o ocultou ao gémeo, não lhe querendo
confessar a preocupação que sentira por sua causa.
Por seu lado, Sylvinet escondeu-lhe todas as maldades da pequena
Fadette para com ele, tendo vergonha de confessar que ela adivinhava os
seus ciúmes.
Mas o tempo passava. Com a idade dos gémeos as semanas são
como meses e os meses como anos. Em breve Landry esqueceu a aventura
e, após uns tempos angustiado com a recordação de Fadette, deixou de
pensar nisso.
Havia já cerca de dez meses que Landry trabalhava em Priche.
Aproximava-se o S. João, que era a época do final do seu contrato com o
tio Caillaud. O bom homem estava tão contente com ele que preferiu
aumentar-lhe o salário a deixá-lo partir. E Landry não desejava mais do
que ficar na vizinhança da família e continuar com a gente de Priche, de
quem gostava muito. Além de que começava a sentir uma certa amizade
por uma sobrinha do tio Caillaud, chamada Madelon, que era uma bela
rapariga. Tinha mais um ano do que ele e tratava-o ainda um pouco como
a uma criança; mas isso ia diminuindo de dia para dia e, enquanto ao
princípio troçava quando ele tinha vergonha de a beijar, nos jogos de
dança, agora corava em vez de o provocar e já não ficava sozinha com ele.
Madelon não era pobre, e um casamento entre eles poderia ser um caso
interessante. As duas famílias eram bem vistas e estimadas em toda a
região. O tio Barbeau, vendo as crianças a procurar-se, dizia ao tio
Caillaud que fariam um belo casal e que não haveria mal em os deixar
travar um bom e longo conhecimento.
Ficou pois combinado, uns dias antes do S. João, que Landry ficaria
em Priche e Sylvinet em casa dos pais, pois o tio Barbeau estava acamado
com febre, e o rapaz era muito útil no cultivo das terras. Sylvinet temera
muito ser mandado para longe, e essa inquietação agira nele como um
bem, pois esforçava-se cada vez mais por vencer o excesso de amizade que
tinha por Landry, ou pelo menos para não o dar tanto a entender. A paz e
a alegria tinham regressado a Cosse, apesar dos gémeos só se verem uma
ou duas vezes por semana. O S. João foi para eles um dia de alegria, indo
ambos à vila assistir à festa na praça principal. Landry dançou várias
vezes com a bela Madelon e Sylvinet, para lhe dar prazer, também tentou
dançar. Não se saiu muito bem, mas Madelon, simpaticamente, pegou-lhe
na mão e ajudou-o a marcar o passo. Sylvinet, vendo-se assim tratado com
tanta deferência, prometeu aprender a dançar, a fim de partilhar um
prazer a que até ali se negara.
Não sentia muitos ciúmes de Madelon, porque
Landry era comedido com ela. Aliás, Madelon elogiava e encorajava
Sylvinet. Estava à vontade com ele e alguém que desconhecesse o caso
julgaria que ele era o gémeo preferido. Landry não sentia o menor ciúme.
Pensava que Madelon procedia assim para lhe dar prazer e ter mais
oportunidades de se encontrar com ele.
Tudo correu de vento em popa durante cerca de três meses, até ao
dia de Santo Andoche, santo padroeiro do burgo.
Esse dia, que era sempre esperado com impaciência pelos dois
gémeos, pois havia danças e jogos de toda a espécie debaixo dos grandes
castanheiros da paróquia, trouxe-lhes novos e inesperados desgostos.
Recebendo autorização do tio Caillaud para na véspera ir dormir a
Cosse, a fim de poder assistir à festa logo pela manhã, Landry partiu antes
do jantar, todo contente por ir surpreender o irmão, que só o
esperava pela manhã. Estava-se em Setembro, mês em que os dias já são
mais curtos e a noite cai depressa. Landry não receava nada em pleno dia,
mas não gostava de andar sozinho à noite, sobretudo naquela época do
ano, em que os bruxos e os duendes começam a divertir-se, graças aos
nevoeiros que os ajudam nas suas travessuras e malefícios.
Landry, que costumava sair sozinho a qualquer hora para levar ou
guardar o gado, não sentia mais inquietação, nessa noite, do que nas
outras, mas caminhava depressa e cantava alto, como costumava fazer
quando estava escuro, buscando maior coragem.
Quando chegou ao vau das Roulettes, arregaçou um pouco as calças,
receoso de haver água e prestou atenção para caminhar sempre em frente,
pois o vau era todo aos ziguezagues e, tanto à direita como à esquerda,
havia buracos perigosos. Landry conhecia bem o vau e era ìmmpossível
enganar-se. Através das árvores via-se uma pequena claridade que saía da
casa da tia Fadet. E, guiando-se por essa claridade, por pouco que andasse
nessa direcção não havia hipótese de se enganar no caminho.
Contudo, como estava tão escuro debaixo do arvoredo, Landry foi
primeiro tacteando o vau com o cajado antes de avançar. Ficou admirado
por encontrar mais água do que era habitual, além de que ouvia o barulho
das comportas, abertas há mais de uma hora. Todavia, como avistava a
luz da janela de Fadette, arriscou-se. O certo é que ao fim de dois passos já
tinha água acima do joelho e retrocedeu, julgando ter-se enganado.
Tentou um pouco mais acima e um pouco mais abaixo, e tanto num como
noutro, encontrou covas ainda mais profundas. Não chovera, as
comportas continuavam abertas... no mínimo, era pois surpreendente.
Devo ter seguido caminho errado, pensou Landry, porque agora,
vejo à direita a luz da tia Fadet, que devia estar à esquerda.
Refez todo o caminho e andou à roda de olhos fechados para se
desorientar; e só depois de ter observado bem as árvores em volta
encontrou o bom caminho e regressou para a beira da ribeira. Mas,
embora o vau lhe parecesse conveniente, não ousou dar mais de três
passos, porque avistou de repente, quase atrás de si, a claridade da casa
de Fadette, que deveria ficar em frente. Voltou para a margem e a
claridade pareceu-lhe estar novamente no sítio certo. Retomou o vau
noutro sentido e, desta vez, ficou com a água quase até à cintura. Todavia,
continuava a avançar, julgando sair em breve do buraco.
Teve porém de parar, pois o buraco era cada vez mais profundo, e já
tinha os ombros cobertos. A água estava fria e ele ficou a pensar se devia
voltar para trás, pois a luz parecia-lhe ter mudado de lugar e até parecia
vê-la agitar-se, a correr e saltitar, a passar de uma margem para a outra e,
finalmente, a desdobrar-se ao reflectir- se na água, assinalando a sua
presença com ligeira crepitação.
Desta vez, Landry teve medo e ia perdendo a cabeça, pois ouvira
dizer que não há nada mais enganador do que esse fogo; que tinha prazer
em fazer extraviar os que o viam e em conduzi-los às águas mais
profundas, rindo e troçando da sua angústia.
Landry fechou os olhos para não o ver, e dando rapidamente meia
volta, saiu do buraco e voltou à margem. Aí, atirou-se para a erva e
observou o duende, que prosseguia na sua dança e a rir. Era uma visão
diabólica. Ora se afastava como um louco, ora desaparecia
completamente. Ou, às vezes, ficava grande como a cabeça de um boi e
depois pequeno como um olho de gato; e corria para junto de Landry,
girava à sua volta tão depressa que ele ficava fascinado; e, finalmente,
vendo que este não o seguia, voltava a agitar- se no canavial, parecendo
zangar-se.
Landry não ousava mexer-se, pois voltar para trás não afastava o
duende de si. Estava visto, ele obstinava- se a correr atrás dos que correm
e atravessava-se no seu caminho até os enlouquecer. Tremia de medo e de
frio, quando ouviu atrás de si uma vozinha suave, que cantava:
Duende, duende, duendezinho, Leva a tua candeia e o teu guizo, Eu
trouxe a minha capa e o meu barrete, Toda a diabinha tem o seu diabrete.
E logo surgiu a pequena Fadette, que se preparava alegremente para
atravessar a água sem mostrar qualquer receio ou surpresa pelo fogo-
fátuo. Chocou contra Landry, sentado no chão, e afastou-se praguejando e
injuriando como um rapaz mal educado.
- Sou eu, Fanchon - disse Landry, erguendo-se -, não tenhas medo!
Não sou teu inimigo!
Falava assim porque tinha quase tanto medo dela como do fogo.
Ouvira a canção e percebera que ela estava a esconjurar o fogo-fátuo,
dançando e contorcendo-se como um louco diante dela, como se estivesse
contente por a ver.
- Estou a ver, belo gémeo! - disse então a pequena Fadette depois de
uma breve hesitação. Estás a ser simpático comigo porque estás meio
morto de medo; a voz treme-te na garganta, tal qual a de minha avó.
Confessa lá, pobre coitado: à noite as pessoas são bem menos orgulhosas
do que de dia, e aposto que não tens coragem de atravessar o rio sem
mim, é assim ou não é?
- Por amor de Deus! Acabo de sair de ládisse Landry -, e quase me ia
afogando. Tu vais arriscar-te a atravessar, Fadette? A sério que não tens
medo?
- E porque havia de ter? Mas estou a ver o que te preocupa -
respondeu a pequena Fadette, rindo.
- Anda, dá-me a mão, medricas! O duende não é tão mau como
julgas, e só faz mal aos que têm medo dele. Já nos conhecemos bem.
Dizendo isto, puxou Landry pelo braço com mais força do que ele
esperava duma criatura tão magricela e arrastou-o a correr, cantando:
Eu trouxe a minha capa e o meu barrete, Toda a diabinha tem o seu
diabrete.
Landry nem por isso se sentia mais à vontade na companhia da
pequena feiticeira do que na do duende. Todavia, como preferia ver o
diabo com aparência de gente do que um fogo tão manhoso e fugaz, não
opôs resistência e depressa ficou tranquilizado ao sentir que Fadette o
levava por bom caminho e que andava em seco sobre as pedras. Em todo
o caso, embora avançassem a bom passo, o fogo- fátuo continuava a
persegui-los.
Muito provavelmente a tia Fadet tinha ensinado a neta a não recear
esses fogos da noite, ou então, à força de os ver, visto que apareciam nas
imediações do vau das Roulettes, ainda que Landry nunca visse nenhum
de perto, talvez a rapariga tivesse adquirido a ideia de que o espírito que
os animava não era malvado e só lhe queria bem. Sentindo que Landry
tremia à medida que o duende se aproximava, disse:
- Pateta! Este fogo não queima! Se fosses suficientemente hábil a
manejá-lo, verias que nem sequer deixa marca.
Pior ainda, pensou Landry; fogo que não queima, não se sabe o que
é; e não pode vir de Deus, pois o fogo de Deus é para aquecer e queimar.
Até ali não deu a conhecer o seu pensamento à pequena Fadette, e
quando se viu são e salvo, na outra margem, sentiu enorme vontade de a
abandonar ali e fugir para Cosse. Mas, como não era ingrato, não a quis
deixar sem lhe agradecer.
- É a segunda vez que me ajudas, Fanchon - disse-lhe -, e eu seria
um traste se não te dissesse que me lembrarei disso toda a vida. Via-me
completamente transtornado quando me encontraste. o duende tinha-me
dominado e encantado. Nunca teria atravessado a ribeira, ou então nunca
de lá teria saído.
- Talvez até tivesses passado sem problemas se não fosses tão
palerma - acusou Fadette. Nunca pensei que um rapagão de dezasset
anos, quase com barba, fosse tão fácil de assustar! E estou contente por te
ver assim!
- E porque é que estás contente com isso, Fanchon?
- Porque não gosto nada de ti! – respondeu em tom de desprezo.
- E porque não gostas de mim?
- Porque não tenho consideração por ti - respondeu. - Nem por ti,
nem pelo teu gémeo, nem pelo teu pai, nem pela tua mãe orgulhosos de
serem ricos, e porque julgam que só cumprimos a nossa obrigação estando
às vossas ordens.
Ensinaram-te a ser ingrato, Landre; esse é o pior defeito de um
homem depois do de ser cobarde.
Landry ficou fortemente humilhado com a sarabanda da rapariga,
mas reconhecia que ela não era completamente injusta, e defendeu-se:
- Se sou culpado, Fadette, atribui-o somente a mim. Nem o meu
irmão, nem os meus pais nem ninguém lá em casa, sabe do auxilio que já
me prestaste. Mas desta vez vão sabê-lo, e terás a recompensa que
desejares.
- Ah, ah, tão orgulhoso que ele é! - continuou Fadette. - Imaginas
que com os teus presentes ficarás pago? Julgas que sou como a minha avó,
que, desde que lhe dêem algum dinheiro, suporta todas as arrogâncias?
Eu não preciso nem tenho vontade das tuas ofertas e desprezo tudo o que
vier de ti, uma vez que não tiveste uma palavra de gratidão e amizade
para comigo depois de te ter evitado um grande desgosto.
- Sou culpado, já o confessei, Fadette - disse Landry, que não podia
abster-se de ficar admirado com a veemência das suas palavras. - Mas
também tens algumas culpas. Não deve ter sido através de feitiçaria que
me fizeste encontrar o meu irmão, pois já o tinhas visto antes, sem dúvida,
enquanto eu falava com a tua avó; e, se fosses verdadeiramente boa, tu,
que me acusas de não o ser, em vez de me fazeres sofrer e esperar, em vez
de me obrigares a fazer uma promessa, ter-me-ias dito logo: Desce o prado
e vê-lo-ás à beira do rio. Isto não te teria custado muito, e preferiste antes
divertir-te maldosamente com a minha dor.
A pequena Fadette, sempre com resposta pronta, ficou pensativa
mas logo adiantou:
- Bem vejo que fizeste o possível por afastar a gratidão do teu
coração e por te convenceres de que não me devias nada. De novo o teu
coração é injusto e mau, pois não te fez notar que eu não reclamava nada
de ti e nem sequer censurava a tua ingratidão.
- Isso é verdade, Fanchon - respondeu Landry, franco -, vejo que
estava errado, e envergonho-me disso. Devia ter-te falado, essa era a
minha intenção, mas tu fizeste- me uma cara tão irritada que não soube
como actuar.
- Se tivesses vindo no dia seguinte dar-me uma palavra de amizade,
nunca me terias visto irritada e logo saberias que não queria paga alguma
e seríamos amigos. Em vez disso, agora, tenho muito má opinião de ti, e
devia ter-te deixado desembaraçar sozinho do duende. Adeus, Landry,
Vai secar essa roupa e diz a teus pais Sem aquele malvado grilo, esta noite
teria dado um bom mergulho na ribeira.
Foi assim que a pequena Fadette lhe virou costas e se dirigiu a casa,
cantarolando.
Com efeito, Landry sentiu um enorme arrependimento. Não que se
dispusesse a qualquer espécie de amizade com uma rapariga que parecia
ter mais esperteza do que bondade e cujas más maneiras não agradavam a
ninguém, nem mesmo aos que se divertiam com isso. Mas ele tinha uma
alma nobre e não queria ficar com tal injustiça na consciência. Correu atrás
dela, agarrou-a pelo braço e disse-Lhe:
- Então, Fanchon, é preciso resolver e arrumar este assunto entre
nós. Estás aborrecida comigo e eu também não estou contente. Diz-me o
que desejas e, o mais tardar amanhã, dou-to.
- Desejo nunca mais te ver - respondeu Fadette severamente -, e
tudo o que me trouxeres, podes ficar certo que to atiro à cara.
- Não achas que são palavras demasiado duras para quem te oferece
uma reparação? Se não queres uma oferta, talvez haja maneira de te fazer
qualquer préstimo e com isso te mostrar que só te quero bem. Anda, diz-
me o que tenho a fazer para te agradar.
- És capaz de me pedir perdão e desejar a minha amizade? - inquiriu
Fadette, parando.
- Perdão, é pedir muito! - contestou Landry, não conseguindo evitar
uma certa altivez em relação à rapariga, que não tinha de modo algum
comportamento próprio da sua idade. - Quanto à tua amizade, Fadette, o
teu espírito é tão estranho que não sei se conseguiria ganhar-lhe alguma
confiança. Pede-me antes uma coisa que te possa dar já e que eu não
precise de reaver.
- Pois bem - disse Fadette numa voz clara e seca -, será como desejas,
Landry. Ofereci-te o perdão, e não o quiseste. Sendo assim, vou reclamar-
te o que me prometeste, que é o de obedeceres à minha vontade, no dia
em que to exigir. Esse dia não será mais tarde do que amanhã, no Santo
Andoche, e eis o que quero: dançarás comigo três danças, depois da missa,
duas depois das vésperas e ainda mais duas depois das trindades. Sete no
total. E durante o dia inteiro, do levantar até ao deitar, não dançarás com
mais ninguém, seja rapariga ou mulher. Se o fizeres, ficarei a saber que
tens três defeitos muito feios: a ingratidão, o medo e a falta de palavra.
Boa-noite e espero por ti amanhã para abrir o baile, à porta da igreja!
A pequena, que Landry seguira até sua casa, abriu o ferrolho e
entrou tão depressa que o rapaz nem teve tempo de abrir a boca.

5
O baile
De início, Landry achou a ideia da Fadette tão cómica que se sentiu
mais inclinado a rir do que a zangar-se. Está visto, é mais tola do que má e
mais desinteressada do que parece, pelo que a sua exigência não arruinará
a minha família, pensou. Contudo, pensando melhor, achou o pagamento
da dívida mais duro do que parecia. A pequena dançava muito bem, já a
tinha visto aos saltos pelos campos ou na berma dos caminhos, com os
miúdos, agitando-se como um diabinho, tão rápida que era difícil seguir-
lhe o compasso. Mas era tão pouco bonita e tão burlesca, que nenhum
rapaz da idade de Landry dançaria com ela, especialmente em público.
Quando muito, achavam-na digna de ser convidada pelos guardadores de
porcos ou pelos rapazes que ainda não tivessem feito a primeira
comunhão; e as raparigas mais espigadotas da terra não gostavam muito
da sua companhia. Landry, sentiu-se portanto humilhado por estar ligado
a semelhante dançarina; e ao lembrar-se de que conseguira obter pelo
menos três danças da bela Madelon, interrogou-se como iria ela receber a
desfeita que ele seria forçado a fazer-lhe.
Como se sentia com frio e fome e continuava receoso de ver outra
vez o duende correr atrás de si, andou depressa, sem pensar muito e sem
olhar para trás.
Mal chegou a casa, secou-se, contando que não encontrara o vau por
causa da noite cerrada e por isso se molhara todo. Teve vergonha de
confessar o medo que tivera e não falou nem no fogo-fátuo, nem na
pequena Fadette. Deitou-se, pensando que no dia seguinte teria tempo
para se preocupar com as consequências daquele mau encontro. Porém,
por mais que se esforçasse, dormiu muito mal. Teve pesadelos em que viu
a pequena Fadette às cavalitas do duende, que era uma espécie de grande
galo vermelho, segurando numa das patas uma lanterna, cujos raios
iluminavam todo o juncal. E então a pequena Fadette transformava-se
num enorme grilo e gritava-lhe, também numa voz de grilo, uma canção
que ele não conseguia compreender. Sentia a cabeça tonta e a
luminosidade do duende era tão viva e tão ardente que, quando acordou,
ainda lhe parecia ver estrelinhas à sua volta.
Landry ficou tão fatigado por causa dessa noite, quase sem
descanso, que adormeceu no decorrer da missa e nem ouviu sequer uma
palavra do sermão do padre, louvando e enaltecendo as virtudes do bom
Santo Andoche. À saída da igreja, Landry estava tão sonolento que
esqueceu a pequena Fadette. E ela lá estava diante do pórtico, mesmo ao
pé da bela Madelon, que esperava, certa, de que o primeiro convite seria
para ela: Mas quando ele se aproximou para lhe falar, o grilo deu um
passo em frente e disse-lhe bem alto, com ousadia sem igual:
- Vamos, Landry, já que me convidaste ontem para a primeira
dança, espero que não vás agora faltar ao combinado.
Landry ficou tão embatocado e vermelho que, vendo Madelon
também corada, arranjou coragem para enfrentar a pequena Fadette e
dirigiu-se a ela, dizendo-lhe:
- É possível que tenha prometido dançar contigo, grilo, mas tinha
pedido a outra antes; por isso só depois de eu cumprir o meu primeiro
compromisso é que será a tua vez.
- Isso é que não! - respondeu Fadette com firmeza. - A tua memória
anda a falhar, Landry. Não prometeste nada a ninguém antes de mim, já
que a dívida que reclamo data do ano passado, e ontem limitaste-te
apenas a renová-la. Se Madelon tem vontade de dançar contigo, que o faça
com o teu gémeo, que é igual a ti e tomará o teu lugar. Tão bom é um
como é o outro.
- O grilo tem razão - respondeu Madelon com orgulho, agarrando na
mão de Sylvinet. - Já que tens uma promessa tão antiga, terás de cumpri-
la, Landry. Também gosto de dançar com o teu irmão.
- Sim, pois claro, é a mesma coisa - disse Sylvinet, ingenuamente. -
Dançaremos os quatro.
Não adiantaram mais o assunto, para não chamar a atenção das
pessoas, e o grilo começou a rodopiar com tanto orgulho e agilidade que
jamais uma dança foi tão bem compassada e tão bem conduzida. Se ela
fosse graciosa e simpática, causaria prazer vê-la, pois dançava
maravilhosamente e não havia rapariga que não desejasse ter a sua
ligeireza e a sua audácia. Mas, coitada, estava tão mal ataviada que
parecia dez vezes mais feia do que habitualmente.
Landry, que não se atrevia a olhar Madelon, de tal modo se sentia
atormentado face ao que se passou, observou a preceito a sua parceira e
achou-a ainda mais feia do que anteriormente. Julgara pôr-se bonita, mas,
afinal, a sua indumentária, antes provocava o riso e o desdém.
Trazia uma touca amarelada pelo bolor que, em vez de ser pequena
e bem levantada atrás, conforme moda da terra, formava de cada lado da
cabeça duas grandes orelhas, largas e chatas; e, na parte de trás, o folho
caía até ao pescoço, dando-lhe o aspecto da avó e fazendo-lhe a cabeça
larga como uma abóbora, para cúmulo apoiada num pescoço delgado
como uma vara. A saia era demasiado curta, pois crescera muito durante o
ano; os braços magros, queimados pelo sol, saíam das mangas como patas
de aranha. Trazia, contudo, um avental vermelho de que muito se
orgulhava, que herdara da mãe, mas do qual se esquecera de tirar o
peitilho, fora de moda há anos. Não era daquelas raparigas demasiado
coquetes, pobrezinha, nem o era minimamente e vivia como um rapaz,
sem se preocupar com a aparência, mas prezando a paródia e a risota. Por
isso, com aquele ar de velha endomingada, desprezavam-na talvez mais
por causa da sua arrogância e não tanto devido à miséria, esta mais
provocada pela sovinice e mau gosto da avó.
Sylvinet achava muito estranha aquela fantasia do gémeo por
Fadette, de quem, pela parte que lhe tocava, ainda gostava menos do que
Landry. Este último não sabia como havia de explicar o ocorrido e
desejava poder desaparecer sem deixar rasto. Madelon andava
descontente, e, apesar da animação com que Fadette dançava, as caras de
ambos eram tão tristes que pareciam carregar o diabo na Terra.
Assim que acabou a primeira dança, Landry escapou-se e foi
esconder-se longe. Mas, ao fim de uns momentos, Fadette, seguida do
saltão, foi no seu encalço, para o censurar, e levando atrás de si um grupo
de raparigas mais novas, porque as mais velhas não Lhe ligavam. Quando
Landry a viu com todo aquele grupo, que ela tomava por testemunha em
caso de recusa, cedeu e levou-a para debaixo dos castanheiros, onde
desejava encontrar um cantinho mais isolado para dançar com ela sem ser
notado. Para seu contentamento, nem Madelon, nem Sylvinet, ou
ninguém seu conhecido ali se encontrava; pôde assim aproveitar a ocasião
para cumprir a promessa e dançar uma terceira vez com Fadette. Estavam
apenas rodeados de estranhos, que não lhes prestavam atenção.
Logo que terminou, correu em busca de Madelon para a convidar a
lanchar à sombra das ramadas. Mas ela já tinha dançado com outros, a
quem prometera acompanhar, pelo que recusou com certo desdém.
Depois, vendo que ele se mantinha a um canto, com os olhos rasos de
lágrimas - o despeito e o orgulho tornavam-na ainda mais bonita -, comeu
depressa, levantou-se da mesa e perguntou em voz alta:
- Estão a tocar às vésperas, com quem vou dançar agora?
Voltara-se para Landry, contando que ele exclamasse
imediatamente: Comigo!. Mas, antes de ele descerrar os lábios, outros se
ofereceram e Madelon, sem se dignar lançar-lhe um olhar de censura ou
de piedade, seguiu para as vésperas com os seus novos admiradores.
Assim que as vésperas foram cantadas, Madelon começou a dançar
com os seus acompanhantes. Landry observava-a pelo canto do olho. A
pequena Fadette ficara na igreja, debitando longas orações, umas após
outras. Todos os domingos fazia o mesmo. Para uns, prova de grande
devoção, para outros, uma forma de esconder o seu jogo com o Diabo.
Landry ficou muito contristado por ver que Madelon não mostrava
qualquer interesse por ele, que estava vermelha de prazer como uma
papoila e que se consolava lindamente da desfaçatez que ele se vira
forçado a fazer- lhe. Veio-lhe então a ideia que ela talvez fosse um pouco
vaidosa e arrogante e que não devia ter por ele grande afeição, uma vez
que se divertia tão bem sem ele.
Evidentemente que era ele quem estava em falta, pelo menos
aparentemente; mas ela vira-o tão triste, debaixo do arvoredo, que podia
ter adivinhado que se passava qualquer coisa que ele bem gostaria de lhe
explicar. Todavia, isso não a preocupou absolutamente nada e agora
andava alegre como um passarinho, enquanto ele sentia o coração a
sangrar.
Após ter satisfeito os dançarinos, Landry aproximou- se dela,
desejoso de se justificar. Não sabia porém como levá-la a afastar-se, pois
ainda estava na idade em que não se tem muito à-vontade para lidar com
raparigas; mesmo assim, sem palavras apropriadas, pegou-lhe na mão
para ela o seguir; então ela perguntou-lhe, com um ar de meio ressentida e
de meio perdão.
- Então, Landry, sempre me vens convidar para dançar?
- Não é para dançar - respondeu, pois não sabia fingir, nem
tencionava faltar à palavra -, mas sim para te dizer uma coisa que não
podes recusar ouvir.
- Oh! se tens um segredo para me contar, Landry, deixa-o para
outra altura! - zombou Madelon, retirando a mão. - Hoje é dia de nos
divertirmos e dançarmos. Ainda posso bem com as pernas, e já que o grilo
cansou as tuas, vai-te deitar, se quiseres, porque eu fico.
Dito isto, apressou-se a aceitar o convite de Germain Audoux para
dançar. E, quando voltou as costas a Landry, este ouviu Germain Audoux
dizer, falando dele:
- Não me digas que o tipo estava convencido que esta dança era
para ele?
- Talvez! - foi a resposta de Madelon, encolhendo os ombros.
Landry ficou grandemente chocado e permaneceu perto do baile
para observar as atitudes da rapariga, tão orgulhosa e desdenhosa que ele
se sentiu despeitado. Em certo momento, quando ela passou ao seu lado,
vendo que a fitava com olhar meio cínico, disse-lhe, provocante:
- Então, Landry, já não arranjas parceira? Ou será que tens de voltar
para o grilo?
- Com muito prazer - respondeu Landry -, pois, se não é a mais bela
da festa, é pelo menos a que dança melhor!
E dirigiu-se para os arredores da igreja, buscando Fadette e
trazendo-a para o recinto de dança e rodopiando na frente de Madelon,
por duas vezes seguidas. Ai, como o grilo estava orgulhoso e contente!
Seus olhos negros e maliciosos brilhavam de prazer, e erguia o pequeno
rosto e a touca grosseira como uma galinha empertigada.
Lamentavelmente, contudo, o seu triunfo irritou cinco ou seis
garotos que costumavam dançar com ela e que, não podendo agora fazê-
lo, começaram a criticá-la, a censurar-lhe a sua vaidade e a murmurar à
sua volta: Vocês não vêem o grilo, que julga seduzir Landry Barbeau!
Grilo, saltão, diabrete, bruxa!, e outras patetices semelhantes.
Além disso, quando a pequena Fadette passava perto deles,
puxavam-lhe pela manga ou punham-se à sua frente para a fazer tombar,
e havia alguns, ainda mais mal- educados, que lhe puxavam pelo laço da
touca, gritando: Puxa a touca, puxa a touca da Fadette.
O pobre grilo distribuiu cinco ou seis estalos à direita e à esquerda,
mas isso apenas serviu para atrair a atenção do seu lado e para as pessoas
começarem a comentar: Olhem só o nosso grilo, hoje está cheio de sorte!
Landry Barbeau não pára de dançar com ela! É verdade que ela dança
bem, mas anda toda empertigada.
Alguns, dirigindo-se a Landry, perguntavam:
- Ela lançou-te algum feitiço, pobre rapaz, para só olhares para ela?
Ou quererás ser feiticeiro?
Landry estava envergonhado; mas Sylvinet, para quem não havia
ninguém mais excelente e mais estimável do que o irmão, ainda o ficou
mais ao ver que ele era alvo de troça de tanta gente, e de estranhos, que
começavam também a meter-se, a fazer perguntas e a comentar: É um belo
rapaz; mas que ideia a dele de só se meter com a mais feia de todo o
grupo. Madelon, orgulhosa e triunfante, escutava aquela zombaria e, sem
piedade, também se atreveu a algumas indirectas:
- Não percebo a vossa admiração! - exclamou. - Landry é ainda uma
criança, e, com a sua idade, desde que se tenha alguém com quem falar,
nem se repara se é cabeça de burro ou se tem cara de gente.
Sylvinet, logo que pôde, segurou Landry pelo braço e disse-lhe
baixinho:
- Vamos embora mano, senão isto vai a mais, até porque as troças
dirigidas à pequena Fadette são mais para ti. Não sei que ideia foi essa de
dançares tantas vezes seguidas com ela. Até parece que procuras o
ridículo; acaba com a brincadeira, por favor! Ela que se exponha às
palavras duras e ao desprezo se isso lhe dá prazer, mas não a nós.
Vamos embora! Voltaremos depois das trindades e dançarás então
com Madelon, que é uma rapariga como deve ser. Sempre disse que essa
tua paixão pela dança um dia traria problemas!
Landry fez menção de o seguir, mas voltou-se imediatamente ao
ouvir um grande alarido. Viu então Madelon e as outras raparigas
rodeando a pequena Fadette, a quem os garotos, encorajados pela risota
que provocavam, acabavam de tirar a touca. Os seus longos cabelos
negros caíam-lhe sobre os ombros, e ela debatia-se, louca de cólera e
desgosto, porque desta vez nada fizera para merecer tal tratamento.
Chorava de raiva, sem conseguir recuperar a touca, que um malandrim
levava na ponta de um pau.
Landry achou aquela acção muito feia e, levado pelo seu coração,
revoltou-se contra tal injustiça. Agarrou o rapaz, tirou-lhe a touca e o pau,
com o qual lhe aplicou uma pancada no traseiro, pondo-o a fugir com os
restantes mariolas. Depois, pegando a mão do pobre grilo, entregou- lhe a
touca.
A vivacidade de Landry e o medo dos garotos provocaram
gargalhadas na assistência. Landry foi aplaudido, mas, como Madelon
decidiu ridicularizar a situação, houve outros rapazes que desataram a rir
à sua custa.
O jovem não hesitou em enfrentar a situação; sentia- se corajoso e
forte, e qualquer coisa dentro de si dizia- lhe que cumpria o seu dever, não
deixando maltratar uma mulher, feia ou bonita, pequena ou grande, que
escolhera por companhia. Apercebeu-se do modo como o grupo de
Madelon o mirava e avançou, perguntando:
- Então, têm algo a comentar? Se me agrada dar atenção a esta
rapariga, em que é que isso vos ofende? E se isso vos desagrada, porque o
dizem baixinho? Estou na vossa frente. Não me vêem? Disseram aqui que
eu era ainda um miúdo. mas haverá aqui um hómem que mo diga na
cara? Vá lá, falem, e veremos se alguém toca na rapariga que convidei
para dançar!
Sylvinet não abandonara o irmão, e embora não o aprovasse por ter
suscitado tal discussão, estava pronto a defendê-lo. Havia ali quatro ou
cinco rapazes muito mais velhos do que os gémeos; mas quando os viram
tão resolutos, não disseram nada e olharam uns para os outros, como que
a perguntar quem é que tinha a intenção de se medir com Landry. Este,
que não largara a mão de Fadette, disse-lhe então:
- Enfia essa touca, Fanchon, e vamos dançar. Veremos se alguém se
atreve a tirar-ta.
- Não! - respondeu a pequena Fadette, limpando as lágrimas. - Já
chega de dança por hoje! Cumpriste a tua promessa!
- Oh! Isso é que não! Temos de dançar mais - insistiu Landry,
inflamado pela coragem e orgulho. - Não quero que andem por aí a dizer
que não posso dançar contigo quanto me apetecer sem que sejas insultada!
Dançaram mais uma vez e ninguém se atreveu a perturbar o par.
Madelon e os seus apaixonados fóram dançar para outro lado.
Terminada a dança, a pequena Fadette disse baixinho a Landry:
- Por hoje, chega, Landry. Estou contente contigo e estás quite da tua
palavra. Vou para casa. Agora já podes dançar com quem quiseres.
E foi buscar o irmão, que andava na brincadeira com outras crianças,
afastando-se tão depressa que Landry nem viu para onde ela seguiu.
Landry regressou a casa com o irmão. Como este continuasse
preocupado com tudo o que se passara, contou-lhe o encontro da véspera
com o fogo- fátuo e como Fadette o salvara, fosse por ousadia ou por artes
mágicas, e lhe pedira em recompensa que dançasse com ela na festa: Não
lhe falou no resto, no medo que tivera de o encontrar afogado no ano
anterior, e do compromisso que nessa altura assumira...
Sylvinet aprovou o irmão por ter mantido a palavra. Mas, apesar de
ficar assustado com o perigo que Landry correra na ribeira, não sentiu
qualquer gratidão para com a pequena Fadette.
Sentia tanta aversão por ela que não acreditava que se encontrasse
ali por acaso, nem que o tivesse socorrido apenas por bondade.
- Foi ela que ordenou ao duende para te perturbar o espírito e te
fazer afogar; mas Deus não o permitiu, porque és um bom cristão. Então
esse maldito grilo, abusando da tua gratidão, obrigou-te a fazer uma
promessa que sabia ser bem desagradável para ti. Aquela rapariga é muito
má e todas as bruxas gostam do mal. Ela sabia perfeitamente que te ias
zangar com Madelon e com os teus melhores amigos. Também queria que
andasses à luta. Podias ter arranjado sérios problemas e acontecer-te
alguma desgraça.
Landry, que via por vezes as coisas pelos olhos do irmão, pensou
que talvez ele tivesse razão e não defendeu Fadette. Conversaram os dois
sobre o duende, que Sylvinet nunca vira e pelo qual sentia muita
curiosidade, sem todavia desejar encontrá-lo. Mas não falaram nele à mãe,
porque ela tremia de medo só de pensar nele; nem ao pai, porque ele logo
troçaria, dizendo que já o vira dezenas de vezes sem lhe ligar importância.
O baile continuou pela noite dentro; mas Landry, que estava muito
triste, pois desta vez estava realmente zangado com Madelon, não quis
aproveitar a liberdade que Fadette lhe devolvera e decidiu ajudar o irmão
a recolher os animais do pasto. Como isto o conduzia até meio caminho de
Priche, despediu-se do irmão, no fim do juncal. Sylvinet, preocupado, não
quis que ele passasse pelo vau das Roulettes, com medo que o duende ou
o grilo lhe pregassem outra má partida. Obrigou-o a prometer que
tomaria o caminho mais com prido para evitar o vau.
Landry fez como o irmão pediu, apesar de nada recear porque havia
barulho no ar devido à festa. Mesmo fraco, conseguia ouvir a música e a
vozearia dos dançarinos do Santo Andoche, e sabia muito bem que os
espíritos só fazem travessuras quando toda a gente dorme.
Quando chegou ao sopé da encosta, mesmo em frente à pedreira,
ouviu uma voz gemer e chorar. Julgou primeiro tratar-se do barulho da
água a correr, mas, conforme se aproximava, pareceu-lhe mesmo gemidos
humanos; como não lhe faltava coragem, quando se tratava de enfrentar
seres humanos, principalmente em apuros, desceu ousadamente até ao
fundo da pedreira.
Contudo, a pessoa que se lamentava daquela forma calou-se ao
ouvi-lo aproximar-se. Daí que ele perguntasse firmemente:
- Quem é que aí está a chorar?
Não obteve resposta.
- Está alguém doente? - insistiu.
E, como continuou sem resposta, pensou em regressar, mas não sem
dar uma vista de olhos por entre as pedras e os grandes cardos que
entulhavam o local. Pouco depois avistou, à claridade da Lua, alguém
deitado ao comprido no chão, com o rosto oculto. Não se mexia, parecia
um corpo inerte, morto.
Landry jamais tocara um cadáver. A ideia de que talvez fosse um,
causou-lhe arrepios; mas dominou-se, porque, para si, estava primeiro
auxiliar o próximo. Avançou resolutamente para apalpar a mão do vulto
desconhecido, o qual, surpreendido, deu um salto e ficou de pé.
Então Landry reconheceu a pequena Fadette.

A confissão do grilo
Compreensivamente, Landry ficou aborrecido por encontrar mais
uma vez a pequena Fadette no seu caminho, e também por ela não lhe
responder. Mas superando a contrariedade, compadeceu-se dela:
- Então, grilo, porque choravas assim? Alguém te bateu ou te atacou
mais alguma vez?
- Não, Landry! Ninguém me provocou mais desde que me
defendeste tão corajosamente; e, aliás, eu não tenho medo nem receio
ninguém. Escondi-me para chorar, é tudo! Não há nada mais ridículo que
andar a mostrar o nosso desgosto aos outros.
- Mas porque é que estás tão desconsolada? É por causa das
maldades que te fizeram hoje? Tu também tiveste alguma culpa; mas o
melhor é não pensares mais nisso.
- Porque é que dizes que eu tive culpa? É um insulto por acaso eu
querer dançar contigo? Serei a única rapariga que não tem o direito de se
divertir?
- Nada disso, Fadette! Não te censuro por teres querido dançar
comigo. Fiz o que querias e portei-me bem contigo. A tua culpa é mais
antiga, não vem de hoje. .
- Não, Landry, sinceramente não conheço essa culpa. Nunca pensei
em mim, e se tenho algo a censurar-me foi ter-te causado problemas
contra minha vontade.
- Não falemos de mim, Fadette, não me estou a queixar de nada.
Falemos antes de ti; e se julgas que não tens qualquer defeito, queres que,
como amigo, te diga o teu mal?
- Sim, Landry, quero, e considerarei isso como o melhor castigo ou a
melhor recompensa que possas dar-me por todo o mal que te causei.
- Pois bem, Fanchon Fadet, já que estás a falar tão acertadamente e
que, pela primeira vez, te vejo calma e razoável, vou dizer-te porque não
te respeitam como uma rapariga de dezasseis anos deve ser respeitada. É
que tu não tens nada de rapariga e, pelo contrário, tudo de rapaz, no
aspecto e nas maneiras; porque não te preocupas com a tua pessoa. Para
começar, não tens um ar muito cuidado, nem muito limpo e tornas-te feia
com essa roupa e com a linguagem que usas. Achas normal, com dezasseis
anos, ainda não te pareceres com uma rapariguita? Trepas às árvores
como um esquilo, e quando saltas para cima de um cavalo sem rédeas,
sem sela, galopas como se tivesses o diabo no corpo. É bom ser forte e ágil
e também é bom não ter medo de nada, mas tudo isso é essencialmente
vantajoso quando se é homem. Mas, numa mulher, o que é de mais não
presta e parece que queres fazer-te notar. E não há dúvida de que reparam
em ti, arreliam-te e gritam, atrás de ti. Tens um espírito vivo e respondes
impertinências que provocam o riso naqueles a quem não são dirigidas.
Também é bom ter mais espírito do que os outros, mas, de tanto o provar,
arranjam-se inimigos. És curiosa e, quando descobres os segredos dos
outros, atiras- lhos à cara maldosamente, logo que tens oportunidade. Isto
torna-te temida, e as pessoas detestam aqueles a quem temem.
Finalmente, bruxa ou não, acredito que tenhas conhecimentos, mas espero
que não te tenhas entregue aos maus espíritos; tentas parecê-lo, para
assustar os que te irritam, e isso também te cria fama. São estes os teus
defeitos, Fanchon, e é por causa deles que as pessoas não te poupam.
Pensa bem nisto e verás que, se quiseres parecer-te um pouco mais com as
outras, ganharás em apreço de toda a gente.
- Obrigada, Landry - respondeu Fadette, com ar sério, depois de ter
escutado o gémeo. Disseste-me mais ou menos o que toda a gente me
censura, mas de forma honesta e delicada, sem me magoar. Mas, agora, se
não te importas, senta-te um bocadinho a meu lado para te responder.
- Isto aqui não é mesmo nada agradável - protestou Landry, que não
tinha grande desejo de se atardar com ela.
- Não achas o sítio agradável - continuou ela -, porque vocês, os
privilegiados, são uns esquisitos. Precisam de um bom relvado para se
sentarem, e podem escolher nos vossos campos e jardins os melhores
lugares e as melhores sombras. Mas os que nada possuem, não exigem
tanto e contentam-se com a primeira pedra para repousar a cabeça. Os
espinhos não lhes ferem os pés, e onde quer que se encontrem, observam
tudo o que há de bonito e agradável. Não há sítios feios ou desagradáveis,
Landry, para aqueles que reconhecem todas as coisas boas que Deus fez.
Eu, que não sou bruxa, sei para que servem todas essas ervas que esmagas
com os pés; e reconhecendo o seu uso, olho para elas e não menosprezo o
seu odor nem o seu aspecto. Digo-te isto, Landry, para te provar que se
menospreza frequentemente o que não nos parece belo nem bom e que,
por essa razão, por vezes, nos privamos do que é útil e salutar.
- Gostaria de entender onde queres chegar - adiantou Landry,
sentando-se ao pé dela.
Silenciaram-se por momentos. A pequena Fadette mergulhara em
profundos pensamentos. E Landry, embora sentindo a mente um bocado
confusa, não podia impedir-se de sentir prazer em ouvir aquela rapariga,
pois a voz era-lhe agradável e as palavras pareciam sensatas.
- Ouve, Landry - continuou ela -, eu devia ser mais lamentada do
que censurada; e se tenho culpas para comigo, nunca tive nenhumas de
grande importância para com os outros. Se este mundo fosse
verdadeiramente justo, prestaria mais atenção ao meu bom coração do
que ao meu mau aspecto e à minha roupa! Pensa na minha sorte desde
que nasci. Não culparei minha pobre mãe, que toda a gente censura e
insulta, apesar de ela não estar presente para se defender e sem que eu o
possa fazer, eu, que nem sei bem o que ela fez de mal nem o que a levou a
fazê-lo. Vê bem: as pessoas são tão funestas, que mal a minha mãe me
abandonou e eu ainda a chorava amargamente, logo começaram a lançar-
me à cara o seu pecado, para me marcarem para sempre. Talvez no meu
lugar, uma rapariga razoável, como tu dizes, se tivesse refugiado no
silêncio, capitulando na defesa da mãe e permitindo toda a casta de
injúrias para se proteger a si própria. Mas eu não sou desse calibre. Seria
de mais para as minhas forças. A minha mãe é minha mãe, e, seja ela o que
quiserem, mesmo que a não volte a ver mais, amá-la-ei sempre. Assim,
quando me chamam filha de galdéria ou feirante, fico logo com raiva, não
por causa de mim, pois isso não me pode ofender, visto que nada fiz de
mal, mas por causa dessa pobre mulher que tenho a obrigação de
defender. E como não sei como proceder, vingo-a, dizendo aos outros as
verdades que merecem e mostrando-lhes que não valem mais do que
aquela a quem atiram pedras. É por isso, só por isso, que me acusam de
bisbilhoteira e insolente, porque lhes descubro os segredos para os
espalhar. Se gostar de descobrir coisas ocultas é curiosidade, então sim,
sou curiosa. Mas, se tivessem sido humanitários comigo, eu não me
lembraria de satisfazer a minha curiosidade à custa dos outros e ter-me-ia
contentado em aprender os segredos que me ensina a minha avó para
curar o corpo humano. As flores, as ervas, as plantas, todos os segredos da
natureza chegariam para me ocupar e entreter, eu, que tanto gosto de
vaguear por toda a parte. Estaria sempre sozinha, sem me aborrecer. O
meu prazer é ir para os locais onde ninguém vai e sonhar sobre uma
infinidade de coisas ao abrigo das maldades e dos ciúmes. Quando me
quis aproximar mais das pessoas, por causa da vontade que tinha de ser
prestável através dos pequenos conhecimentos que tinha adquirido, em
vez de me agradecerem honestamente o que fiz pelas crianças da minha
idade, a quem curava as feridas e as doenças e a quem ensinava alguns
tratamentos sem nunca pedir o que quer que fosse em troca, chamaram-
me bruxa, e aquelas que mansamente me vinham pedir auxílio, mais
tarde, na primeira ocasião, insultaram-me. Toda essa maldade me
enfurecia e podia tê-los prejudicado, pois se conheço coisas para fazer
bem, também conheço outras para fazer mal; mas nunca as usei. Não sou
rancorosa, e se me vingo em palavras, é porque fico aliviada dizendo tudo
o que me vem à cabeça. Depois já não penso mais nisso e perdoo, como
Deus manda. Quanto a não me preocupar com a minha pessoa, nem com
as minhas maneiras, isso só prova que não sou tão idiota ao ponto de me
julgar bonita. Sei pelo contrário que sou tão feia que ninguém é capaz de
olhar para mim. Já mo disseram bastas vezes. E vendo como as pessoas
são más e altivas para aqueles que Deus não favoreceu, fiz questão de lhes
desagradar, consolando-me com a ideia de que o meu aspecto nada tinha
de repelente para Deus. Não sou dos que, quando vêem algum bicho,
exclamam Oh que bicho horroroso! Que feio! É preciso matá-lo! Eu não
esmago a pobre criatura, antes pelo contrário, ajudo-a. Por causa disso,
dizem que gosto dos bichos maus e que sou bruxa, porque não gosto de
fazer sofrer nenhum animal. Se tivesse que se matar tudo o que é feio, eu
não teria mais direito de viver do que os bichos.
Landry ficou emocionado como a pequena Fadette falava humilde e
tranquilamente da sua falta de beleza. Daí que, recordando a sua cara, na
ocasião dissimulada pela obscuridade da pedreira, lhe dissesse, sem
pensar em lisonjeá-la:
- Ouve, Fadette, tu não és feia como julgas. Há algumas bem mais
feias do que tu e ninguém as critica.
- Posso ser um pouco mais ou um pouco menos, mas não podes
dizer, Landry, que sou uma rapariga bonita. Não precisas consolar-me,
porque isso não me entristece.
- Quem sabe como serias se te vestisses e penteasses como as outras?
Se não tivesses a pele tão escura, serias porventura mais atraente. Mas há
uma coisa com a qual toda a gente concorda: não há olhos como os teus, e,
se não tivesses um olhar tão trocista, seria agradável ser- se observado por
eles.
Landry falava sem se dar muito bem conta do que dizia. Estava a
recordar-se dos defeitos e das qualidades da pequena Fadette; e, pela
primeira vez, prestava a isso uma atenção e um interesse de que não se
julgaria capaz momentos antes.
- Os meus olhos vêem o que é bom e o que não é. Assim, consolo-me
de irritar a quem não me agrada. Não compreendo porque é que as
raparigas bonitas cortejadas são vaidosas com toda a gente, como se todos
fossem ao seu gosto. Por mim, se fosse bela, só gostaria de o parecer para
aquele que me agradasse.
Landry pensou em Madelon, mas Fadette impediu- o de se atardar
nesse pensamento, continuando a falar:
- Toda a minha culpa para com os outros, Landry, é de não procurar
a piedade ou a indulgência com a minha fealdade. É mostrar-me sem
qualquer disfarce, e isso escandaliza-os e fá- los esquecer que lhes fiz
sempre bem, nunca mal. Por outro lado, mesmo que me aperaltasse, onde
arranjaria eu o dinheiro para me vestir bem? Alguma vez mendiguei,
embora sem um centavo de meu? A minha avó dá-me alguma coisa mais
que comida e dormida? E, se não sei tirar partido dos trapos que minha
mãe me deixou, será culpa minha, se ninguém me ensinou e se desde os
dez anos vivo abandonada, sem amor nem piedade de ninguém? Bem
conheço a censura que me fazem! Dizem que tenho dezasseis anos e que
podia muito bem empregar-me, tendo assim possibilidade de me
sustentar, masque a preguiça e a vagabundice me retêm junto de minha
avó, que todavia não gosta nada de mim e que tem meios para pagar a
uma criada.
- E então, Fadette, não é mesmo assim?perguntou Landry. - Pois é
verdade, acusam-te de não gostares de trabalhar, e é a tua própria avó que
diz a quem quer ouvi-la que lhe ficaria muito mais em conta se metesse
uma criada no teu lugar.
- A minha avó não diz isso do coração. Gosta é de ralhar e de se
lamentar. Tanto que, quando falo em deixá- la, retém-me, porque sabe que
lhe sou mais útil do que quer confessar. Já não tem os olhos nem as pernas
de quando tinha quinze anos para procurar as ervas com que prepara as
poções e os pós, e algumas só se encontram bem longe daqui e em locais
difíceis. Além de que, como já disse, eu própria descubro nas ervas
virtudes que ela desconhece, e fica espantada quando preparo poções das
quais vê em seguida o bom efeito. Sobre os nossos animais, estão tão
catitas e saudáveis que as pessoas se surpreendem ao saberem que o
rebanho pertence a gente como nós. A minha avó bem sabe a quem deve
ovelhas com tão boa lã e cabras com tão bom leite! Eu sei que ela não tem
vontade nenhuma que a deixe, e eu gosto dela, embora me maltrate e me
prive de muitas coisas. Mas ainda tenho outra razão para não a deixar. - e
fez uma extensa pausa.
- Então, Fadette?! - despertou-a Landry.
- A minha mãe deixou-me a braços, quando eu tinha apenas dez
anos, com uma pobre criança muito feia, tão feia como eu e ainda mais
desgraçada, pois é coxa de nascença, enfezada, doente, vivendo sempre no
desgosto e na maldade, em contínuo sofrimento! Toda a gente a arrelia e
repele, é o meu pobre saltão! A minha avó está constantemente a ralhar-
lhe e bater-Lhe-ia também se eu o não defendesse, fingindo bater-lhe no
seu lugar.
Tenho sempre o cuidado de o não magoar, e ele bem o sabe. Tanto
que quando faz uma asneira, vem logo esconder-se nas minhas saias e
pede-me:
Bate-me antes que a avó me apanhe. E eu bato-lhe a brincar,
enquanto ele grita a fingir. E depois também trato dele; nem sempre o
posso impedir de andar esfarrapado, coitado; mas, quando tenho alguns
trapos, arranjo-os para ele vestir; trato-o quando está doente, enquanto a
minha avó o deixaria morrer, porque ela não tem jeito para cuidar de
crianças. Enfim, tento manter, com vida, aquele enfezadinho, que sem
mim seria bem mais infeliz e não tardaria a morrer. Nem sei se estou a
ajudá-lo fazendo-o viver, deformado como é; mas é mais forte do que eu,
Landry, e quando penso em arranjar alguma coisa para ter dinheiro meu e
sair da miséria em que vivo, o meu coração enche-se de piedade, como se
fosse sua mãe e o abandonasse, deixando-o morrer por minha culpa. Eis
todos os meus defeitos e as minhas culpas! Agora, Deus me julgue; eu
perdoo àqueles que não me conhecem!

Uma amizade sincera


Landry escutou a pequena Fadette com o maior dos interesses, e
quando, por último, ela falou do irmãozinho, o saltão, sentiu de repente
um enorme carinho por ela, desejando tomar o seu partido contra toda a
gente.
- Desta vez, Fadette - disse -, quem não te der razão será o primeiro a
não ter razão alguma, pois com tudo o que disseste, ninguém pode
duvidar do teu bom coração e do teu bom raciocínio. É pena que não te
dês a conhecer tal como és. Ninguém falaria mal de ti e muitos te fariam
justiça.
- Já te disse, Landry. Não preciso de agradar a quem não me agrada.
- Mas então, se mo dizes a mim, é porque me tens alguma estima? -
admirou-se Landry. - A verdade é que eu julgava que me detestavas por
causa de nunca ter sido bom para ti.
- Admito que te tenha odiado um pouco respondeu a pequena -,
mas, se isso aconteceu, não voltará a suceder e vou dizer-te porquê:
Julgava-te orgulhoso, e és; mas sabes dominar o teu orgulho para cumprir
a tua obrigação, e isso tem muito mérito; julgava-te ingrato, mas és tão
fiel à tua palavra que tudo fazes para a cumprir; enfim, julgava-te poltrão
e isso levou-me a desprezar-te, mas vejo que não te falta coragem, quando
se trata de defrontar um perigo real; e dançaste hoje comigo, apesar disso
te humilhar; até foste buscar-me ao pé da igreja, quando já te tinha
perdoado e não pensava mais em te atormentar; defendeste-me contra
aqueles malvados rapazes e provocaste alguns que, sem ti, me teriam
maltratado; finalmente, ao ouvires-me chorar, vieste ajudar-me e consolar-
me. Não penses, Landry, que alguma vez esquecerei estas coisas. Terás
toda a vida a prova de que te fico reconhecida, e poderás sempre exigir de
mim o que quiseres, em qualquer momento.
Assim, para começar, sei que hoje te causei um grande desgosto. Se
soubesse que estavas apaixonado por Madelon, não teria provocado uma
zanga entre vocês, como fiz ao forçar-te a dançar comigo.
Concordo que me deu gozo ver que, para dançares com uma feiosa
como eu, puseste de lado uma bela rapariga, mas julgava que não passava
apenas de uma pequena ferroada no teu amor-próprio.
Quando, pouco a pouco, compreendi que sofrias realmente, que,
embora sem querer, olhavas continuamente para o lado de Madelon e que
o seu desprezo te dava vontade de chorar, também chorei.
É verdade, Chorei no momento em que quiseste lutar com os
amigos dela, e tu julgaste que eram lágrimas de arrependimento. Eis a
razão por que estava a chorar tão amargamente quando me surpreendeste
e chorarei até ter reparado o mal que te causei.
- E supondo, minha pobre Fanchon - perguntou Landry,
emocionado com as lágrimas que de novo lhe saltavam -, que tenhas
provocado uma zanga com a rapariga por quem estava apaixonado, que
poderias então fazer para me reconciliares com ela?
- Confia em mim, Landry. Não sou tão parva que não me saiba
explicar como deve ser. Madelon ficará a saber que fui a culpada de tudo.
Confessar-me-ei, e se ela não te devolver a sua amizade amanhã, é porque
nunca te amou e...
- E que não a devo lamentar, não é, Fanchon? E como, realmente, ela
nunca me amou, vais ter um trabalho inútil. Olha, não faças isso. Consola-
te antes do pequeno desgosto que me causaste. A mim já me passou.
- Tais dores não passam tão depressa - retorquiu Fadette. - Pelo
menos é o que dizem. É o despeito que fala por ti, Landry. Amanhã
andarás tão triste que não descansarás enquanto não fizeres as pazes com
essa bela rapariga.
- É possível - disse Landry -, mas neste momento não o entrevejo.
Parece-me que és tu que me queres fazer acreditar que tenho uma grande
amizade por ela. Pois se a tive, era tão pequena que já quase não me
lembro dela.
- Então é assim que os rapazes amam?indagou Fadette.
- Ora essa! As raparigas também não são melhores, já que se
escandalizam tão facilmente e se satisfazem tão depressa com o primeiro
que aparece. Mas estamos a falar de coisas que ainda não compreendemos
bem, pelo menos tu, que estás sempre a troçar dos namorados. Tenho a
impressão que te estás a divertir à minha custa, querendo reconciliar-me
com Madelon. Insisto que não o faças, pois ela poderia julgar que fui eu
que te pedi para o fazeres. E depois, talvez fique zangada, porque a
verdade é que nunca lhe disse uma palavra de amor, e embora me agrade
estar ao pé dela e fazê-la dançar, ela nunca me encorajou. Por isso,
deixemos passar o tempo, e se ela quiser, que volte por si própria, mas
também, se não voltar, acredita que não morro.
- Acredito-te ao dizeres que nunca manifestaste a Madelon a tua
amizade. Mas também seria preciso muita ingenuidade para ela não o
perceber nos teus olhos, sobretudo hoje. Uma vez que eu fui a causa da
vossa zanga, é justo que seja também a causa do vosso entendimento e é
uma boa ocasião para dar a entender a Madelon que a amas. Confia na
pequena Fadette, Landry, no malvado grilo que não tem o interior tão feio
como o exterior. E perdoa-me por te ter atormentado. Ficarás a saber que,
se é bom ter o amor de uma bela, é útil ter a amizade de uma feia, visto
que as feias são desinteressadas e nada lhes provoca despeito nem rancor.
- Isso de belezas, não é importante, Fanchon - disse Landry
pegando-Lhe na mão. - Importante é ter uma certeza: a tua amizade é uma
coisa muito boa; tens um coração generoso, pois fiz-te uma grande
afronta, a que não fizeste referência, e quando dizes que me conduzi bem
contigo, acho que me comportei grosseiramente.
- Como foi isso, Landry? Não estou a ver...
- É que nem um único beijo te dei no baile, Fadette, e no entanto era
meu dever e meu direito. Pois é costume. Tratei-te como se fosses uma
miúda de dez anos, e contudo tens quase a minha idade. Isso foi uma
ofensa, e se não fosses tão boa rapariga, ter-te-ias apercebido.
- Nem sequer me lembrei disso - respondeu Fadette, que se
levantou, pois sentia que mentia e não queria dá- lo a entender. - Escuta -
exclamou, tentando parecer alegre - como os grilos cantam e chamam pelo
meu nome; e também a coruja, ali, a gritar-me as horas que as estrelas
marcam no quadrante do céu!
- Também a ouço e tenho de voltar a Priche; mas antes de partir,
Fadette, não me queres perdoar?
- Mas eu não te desejo mal por isso, Landry, e não tenho nada a
perdoar-te.
- Sim - disse Landry, agitado desde que ela lhe falara em amor e
amizade, numa voz tão suave.
- Sim, deves-me um perdão, deixando-me dar-te o beijo que não te
dei quando devia.
A pequena Fadette estremeceu. Depois, retomando o bom humor:
- Tu queres que eu te perdoe o erro com um castigo. Considero-te
desobrigado. Já foi muito teres dançado com a feia. e seria demasiado
doloroso querer beijá-la!
- Não digas isso - exclamou Landry, pegando-lhe na mão. - Acho
que dar-te um beijo não é castigo nenhum. a não ser que isso te desagrade,
partindo de mim.
Assim que disse isto, sentiu tal desejo de beijar Fadette, que tremeu
com receio de ela não consentir.
- Escuta, Landry - disse-lhe ela, na sua voz suave e meiga -, se eu
fosse bela, dir-te-ia que não é sítio nem hora de andarmos aos beijos. Se
fosse vaidosa, pensaria, pelo contrário, que são horas e o sítio ideais,
porque a noite esconde a minha fealdade e não há ninguém para te
envergonhar da tua fantasia. Mas, como não sou vaidosa, nem bela, antes
pelo contrário, vamos apenas apertar as mãos em sinal de boa amizade e
ficarei contente por ser tua amiga.
- Está bem - respondeu Landry -, aperto-te a mão com todo o gosto.
Mas a mais honesta amizade, que é a que tenho por ti, não impede de
trocarmos um beijo. Se me negas isso, vou pensar que ainda tens qualquer
coisa contra mim.
E Landry tentou dar-lhe um beijo de surpresa; mas ela ofereceu
resistência e, como ele insistisse, desatou a chorar, dizendo:
- Larga-me, Landry, estás a ser mau.
Landry parou, espantadíssimo e penalizado com a sua reacção.
- Estou a ver - disse - que não falas verdade quando dizes que a
minha amizade é a única que te interessa. Tens uma maior que te impede
de me dares um beijo.
- Não, Landry - respondeu ela a soluçar -, mas tenho medo que, se
me beijares de noite, sem me ver, me odeies quando me vires de dia.
- Então eu nunca te vi? - perguntou Landry impaciente. - Não te
estou a ver neste momento? Olha, aproxima-te mais da claridade da Lua.
Agora estou a ver- te bem e não sei se és feia, mas gosto da tua cara
porque gosto de ti, pronto!
E em seguida beijou-a, primeiro a tremer, mas depois repetiu-o com
tanto gosto que ela assustou-se e disse- lhe, empurrando-o:
- Basta, Landry! Basta! Parece que me abraças com braveza ou que
pensas em Madelon. Acalma-te, falarei com ela amanhã, e amanhã
poderás beijá-la com mais alegria do que aquela que eu te posso dar.
Dizendo isto, deixou rapidamente a pedreira e partiu no seu passo
ligeiro.
Landry ficou como louco, com vontade de correr atrás dela. Hesitou
três vezes antes de se resolver a seguir para os lados da ribeira. Depois,
desatou também a correr e só parou em Priche.
Ao alvorecer do dia seguinte, quando levou os animais para a
pastagem, pensou na conversa que tivera na pedreira com Fadette. Ainda
sentia a cabeça um pouco tonta devido aos acontecimentos da véspera. E
estava perturbado e quase assustado pelo que sentira pela rapariga, que
Lhe aparecia diante dos olhos feia e mal vestida, como sempre a
conhecera. Considerou por momentos ter sonhado o prazer que tivera de
a beijar, e o contentamento que sentira ao apertá-la contra ele como se, de
repente, ela lhe tivesse parecido mais bela e mais amável do que qualquer
outra rapariga do mundo.
Deve ser feiticeira, como dizem, pensava, por certo que me
enfeitiçou ontem à noite, porque nunca em toda a vida senti pelos meus
pais, nem pela bela Madelon, nem mesmo pelo meu querido Sylvinet, um
impulso de amizade semelhante ao que, durante dois ou três minutos,
essa diabinha me inspirou. Se Sylvinet conseguisse ler o que me ia na
mente; de certeza que morria de ciúmes. A afeição que eu tinha por
Madelon em nada prejudicava o meu irmão, mas se tivesse de ficar o dia
inteiro transtornado e irrequieto como fiquei junto daquela Fadette, dava
em doido num instante.
E Landry sentia-se envergonhado, fatigado e impaciente. Sentado
junto dos animais, receava que a feiticeira lhe tivesse roubado a coragem,
a razão e a saúde.
O pior foi quando os trabalhadores de Priche começaram a troçar
por ele ter dançado com o grilo, e a fizeram tão feia, tão mal educada, tão
mal ataviada, com as suas zombarias, que ele não sabia onde se meter, tal
a vergonha que sentia, não só por aquilo que eles viram, mas também do
que guardava só para si.
Contudo, fez por não ligar, porque as pessoas de Priche eram suas
amigas e as suas brincadeiras eram sem maldade. Teve até a coragem de
lhes dizer que Fadette não era o que julgavam, que valia o mesmo que as
outras e que era capaz de ser bon dosa. Foi o bonito, ainda troçaram mais
dele:
- A mãe, não digo que não - ouviu-se -, mas ela é uma criança que
não sabe nada e, se tiveres algum bicho doente, não te sugiro que sigas os
seus tratamentos, pois é uma fala-barato que não tem nenhum segredo
para curar. Mas, ao que parece, tem o de seduzir rapazes, já que tu não a
largaste no dia de Santo Andoche. Será bom que tomes cuidado, meu
pobre Landry, senão, em breve, chamar- te-ão o grilo ou o duende da
Fadette.
Mais tarde, quando Landry se ocupava das sementeiras, Fadette
passou, ao longe, na estrada. Ia a bom passo, dirigindo-se para uma mata
onde Madelon estava a apanhar ervas para as ovelhas. Landry parou a
olhá-la, tão ligeira que nem parecia pisar o chão. Lembrou-se, e curioso de
saber o que ela ia contar a Madelon, em vez de se apressar a ir almoçar,
pois estava na hora, avançou antes silenciosamente ao longo da mata, para
escutar a conversa das duas raparigas. Não as conseguia distinguir,
Madelon resmungava em voz surda, sem se perceber o que dizia; já a voz
de Fadette era perceptível, suave e bem nítida e ele não perdeu nenhuma
das suas palavras. Falava dele a Madelon e informava-a de que prometera
a Landry, do compromisso feito dez meses antes: estar às suas ordens para
qualquer coisa que ela exigisse. Falava de uma forma tão humilde e gentil
que era um prazer ouvi-la. E depois, sem falar no duende nem do pavor
de Landry, contou como ele quase se afogara, na véspera do Santo
Andoche. Enfim, demonstrou que todo o mal viera dela, da fantasia e da
vaidade que tivera em dançar com um rapaz, ela, que sempre dançara só
com os da sua laia.
Então, Madelon, encolerizada, elevou a voz.
- E que tenho eu a ver com isso? Podes continuar a dançar com os
gémeos, pois não julgues, grilo, que com isso me causas qualquer
desgosto, ou inveja.
- Não sejas tão cruel para com o pobre Landry, Madelon, pois o seu
coração pertence-te e se não quiseres reconciliar-te, ele terá um desgosto
que nem podes imaginar.
E continuou a falar, utilizando palavras tão bonitas e num tom tão
carinhoso, louvando de tal modo Landry, que ele corava de prazer ao
ouvir-se elogiado assim.
Madelon também ficou admirada com a fluência da pequena
Fadette. Mas desprezava-a demasiado para lho testemunhar.
- Tens um belo palavreado, não haja dúvida! - disse. - Parece que
aprendeste bem a lição com a tua avó para enganar as pessoas. Mas eu
não gosto de falar com bruxas, dá azar, por isso faz o favor de me
deixares, feiosa. Arranjaste um galã, fica com ele, minha querida, pois é o
primeiro e o último a quem a tua cara agradará. Quanto a mim, querida,
bem vês, não me ficaria bem tomar os teus restos. O teu Landry não passa
de um asno e deve ser um tipo sem interesse para que tu, julgando teres-
mo tirado, me venhas já pedir que o receba. Mas que rica prenda para
mim, se nem à pequena Fadette interessa!
- Se é isso que te ofende - refutou Fadette num tom que emocionou
profundamente Landry -, e se és orgulhosa ao ponto de só seres justa
depois de me humilhares, alegra-te e pisa o orgulho e a coragem deste
pobre grilo. Julgas que desprezo Landry e que, se assim não fosse, não
suplicaria que lhe perdoasses. Pois fica sabendo que o amo há já muito
tempo, que é o único rapaz em quem alguma vez pensei. Mas também sou
suficientemente sensata e orgulhosa para pensar poder vir a ser amada
por ele. Sei o que ele é e o que eu sou. Ele é belo, rico e afamado. Eu sou
feia pobre e desesperada. Sei portanto que ele não é para mim. E deves ter
visto como ele me desdenhava na festa.
Alegra-te pois, visto que aquele a quem Fadette nem sequer ousa
fitar, vê-te com os olhos cheios de amor. Castiga-me recuperando aquele
que eu nunca ousaria disputar. Se não for por amizade por ele, pelo
menos que seja para castigar o meu atrevimento; e promete-me que,
quando ele vier pedir-te desculpas, o receberás bem e o consolarás da
melhor maneira.
Em vez de se apiedar com tanta submissão e dedicação, Madelon
mostrou- se cruel e despediu a pequena Fadette, continuando a dizer que
Landry era exactamente aquilo que lhe convinha e que, quanto a ela, o
achava demasiado infantil e já não Lhe interessava. Mas o enorme
sacrifício de Fadette deu os seus frutos, apesar do mau acolhimento da
bela Madelon. O coração das mulheres é assim feito: um rapaz começa a
parecer-lhes um homem assim que o vêem admirado e acarinhado por
outras mulheres. Madelon, que nunca pensara muito a sério em Landry,
começou a considerá-lo doutra maneira assim que Fadette partiu.
Relembrou tudo o que esta lhe dissera sobre o amor de Landry e, ao
pensar que Fadette estava apaixonada por ele ao ponto de lho ousar
confessar vangloriou-se de poder tirar vingança daquela pobre rapariga.
À noite foi até Priche, pouco distante de sua casa, e fingindo
procurar um dos seus animais, que fugira para o mato, aproximou-se de
Landry, encorajando-o com o olhar a falar com ela.
Landry apercebeu-se perfeitamente disso, pois, desde que tivera
aquela conversa com Fadette, tinha as ideias mais claras. Fadette é mesmo
feiticeira, pensou, recuperou-me as atenções de Madelon e fez mais por
mim, num quarto de hora, do que eu faria num ano. Tem um espírito
surpreendente e um coração de uma bondade rara.
Enquanto pensava nisto, observava Madelon, mas tão calmamente
que ela se afastou sem se ter decidido a falar. Não por sentir vergonha
diante dela - a vergonha desaparecera sem ele saber como - mas porque
lhe desapareceu também o prazer que costumava sentir ao vê- la e o
desejo de ser amado por ela.
Assim, logo que acabou de jantar, em vez de ir dormir, saiu para a
rua, deslizando ao longo dos muros, na direcção do vau das Roulettes.
Passou o vau sem qualquer receio, sem se enganar, e foi até à casa da tia
Fadet, olhando para todos os lados. Ficou por ali à espreita, durante
tempo infinito, mas não viu luz nem ouviu qualquer ruído. Estavam todos
deitados. Esperava que o grilo, como saía muitas vezes à noite depois da
avó e do irmão adormecerem, andasse por aí a vaguear. Atravessou o
Juncal, foi até à pedreira, assobiando e cantando para ser ouvido. Mas
nada mais encontrou a não ser uma coruja, piando numa árvore. Viu-se
assim forçado a regressar a casa e gorada a oportunidade de agradecer à
boa amiga o que por ele fez.
8
Uma nova Fadette
A semana passou-se sem que Landry conseguisse encontrar Fadette,
o que o preocupou. Vai julgar-me outra vez ingrato, pensava, e, no
entanto, se não a vejo, não é por falta de a procurar. Devo tê-la ofendido
ao beijá-la quase à força na pedreira, apesar de ser sem má intenção da
minha parte.
E durante toda a semana andou pensativo, agitado, confuso,
tentando ver as coisas com clareza. Obrigava-se a trabalhar, pois nem os
potentes animais, nem a charrua reluzente, nem a boa terra para lavrar,
encharcada pela chuva de Outono, eram agora suficientes para lhe
preencher os dias.
Foi visitar o irmão na quinta-feira à noite e encontrou-o tão
preocupado quanto ele. Sylvinet era de carácter diferente, mas semelhante
em muitos pontos. Dir-se-ia que adivinhava que algo perturbava a paz de
espírito do irmão, e todavia estava longe de desconfiar do que se tratava.
Perguntou-lhe se já tinha feito as pazes com Madelon e, pela primeira vez,
ao responder afirmativamente, Landry disse uma mentira. O facto era que
Landry não trocara uma palavra sequer com Madelon e pensava ter muito
tempo para isso. Não tinha pressa.
Finalmente, chegou o domingo e Landry foi dos primeiros a
aparecer na missa. Entrou antes do sino tocar, pois sabia que a pequena
Fadette tinha o costume de ir mais cedo, porque fazia sempre longas
orações. Viu uma pequena, ajoelhada na capela, que, de costas voltadas,
escondia a cara entre as mãos para rezar em recolhimento. Se era
exactamente a postura da pequena Fadette, não eram nem as suas roupas,
nem o seu aspecto, e Landry saiu para ver se a encontrava debaixo do
pórtico. Também ali não a encontrou.

Ouviu a missa começar sem a descobrir, e só no final é que, ao olhar


para aquela rapariga que rezava com tanta devoção, na capela, a viu
levantar a cabeça e reconheceu, mas vestida de forma bem diferente da
habitual. Eram na mesma trajes muito humildes, mas tinham
embranquecido e estavam ajustados à sua medida e tudo isso feito
durante a semana. O vestido estava mais comprido e caía mais certinho
sobre as meias, muito branquinhas, assim como a touca, à qual dera o
feitio que agora se usava, graciosamente atada sobre os seus cabelos
negros bem penteados; o lenço que trazia ao pescoço era novo, de um
lindo tom amarelo, que fazia realçar a sua pele morena. Também alongara
o corpete e agora, em vez de parecer uma vara vestida, tinha a cintura fina
e flexível, como uma vespa. Além disso, com que mistura de flores ou
plantas teria lavado a cara e as mãos? O rosto pálido e as mãos delicadas
pareciam tão limpos e suaves como uma manhã de Primavera.
Ao vê-la assim transfigurada, Landry deixou cair o missal, cujo
barulho fez a pequena Fadette voltar-se, fitando-o, cruzando-se os olhares.
Ela corou ligeiramente, o que a fez parecer mais bonita, tanto mais que os
olhos negros, lindos de verdade, deixaram escapar um brilho tão claro que
irradiava simpatia. E Landry pensou uma vez mais: É feiticeira. De feia
que era, quis e ficou bela, e eis o milagre. Agradavelmente surpreso e até
com desejo de se aproximar e de lhe falar, ficou, porém com o coração aos
pulos de impaciência.
Mas ela não tornou a mirá-lo, e em vez de se pôr a brincar e a correr
com as outras crianças após a missa, foi-se embora tão discretamente que
as pessoas mal tiveram tempo de ver aquela brusca mudança. Landry não
se atreveu a segui-la, tanto mais que Sylvinet não o largava, mas, ao fim
de uma hora, conseguiu escapar-se e foi dar com a pequena Fadette a
conduzir tranquilamente os animais num pequeno carreiro.
Ao chegar junto dela já a viu entretida com um passatempo bem
conhecido de Landry. Procurava trevos de quatro folhas, muito raros e
que as raparigas dizem dar sorte a todos aqueles que lhe deitarem a mão.
- Encontraste algum, Fanchon? - perguntou Landry.
- Já os encontrei muitas vezes – respondeu -, mas nunca me deram
sorte, ao contrário do que se julga, e de nada me serve ter três no meu
livro.
Landry sentou-se a seu lado, como se fosse conversar. Mas de
repente sentiu-se dominado por uma timidez como nunca tivera junto de
Madelon, não conseguindo sequer articular palavra, das muitas que tinha
para dizer.
Fadette também se sentiu intimidada, pois, embora o gémeo não
dissesse nada, fitava-a todavia com olhar estranho. Até que lhe perguntou
porque parecia espantado ao oihar para si.
- Surpreende-te o meu novo aspecto? - disse.
- Decidi seguir o teu conselho e pensei que, para ter um ar razoável,
era preciso começar por me vestir razoavelmente. Mas receio mostrar-me,
pois temo que agora me censurem por causa disso e digam que me quis
tornar menos feia sem o conseguir.
- Digam o que quiserem - disse Landry. A metamorfose resultou e a
verdade é que estás bonita. Só um cego o não veria.
- Não brinques, Landry - pediu a pequena.
- Dizem que a beleza dá a volta à cabeça das raparigas e que a
fealdade faz o desgosto das feias. Não gostaria de tornar-me tola julgando
agradar. Mas não era disto que me vinhas falar, e espero que me digas se
Madelon te perdoou.
- Não venho para te falar de Madelon. Não sei se me perdoou ou
não, e estou pouco interessado nisso. Só sei que falaste com ela, e estou-te
muito agradecido por isso.
- Como é que sabes que falei com ela? Então ela disse-to? Nesse caso,
fizeram as pazes.
- Não fizemos pazes nenhumas! Mas também não gostamos
suficientemente um do outro para andarmos em guerra. Sei que falaste
com ela porque ela o contou a alguém que mo contou.
Fadette corou profundamente, o que a tornou ainda mais bonita,
pois nunca até esse dia tivera na face essa bonita cor de receio e prazer que
compõe as mais feias. Mas, ao mesmo tempo, inquietou-se ao pensar que
Madelon poderia ter divulgado as suas palavras e expô-la à zombaria de
todos por causa do amor que ela confessar a sentir por Landry.
- Que disse então Madelon de mim?atreveu-se a perguntar.
- Disse que eu era um asno, que não agradava a nenhuma rapariga,
nem mesmo à Fadette, a qual me desprezava e fugia e se escondera de
mim durante toda a semana para não me ver, enquanto eu a procurava e
corria tudo que era sítio na esperança de a encontrar. Sou portanto eu o
alvo de troça de toda a gente, Fanchon, porque toda a gente sabe que eu te
amo e que tu não me amas.
- Que palavras essas! - respondeu Fadette, muito admirada, pois não
descortinou que, naquele momento, Landry estivesse a ser mais fino do
que ela. - Não sabia que Madelon era tão mentirosa e tão pérfida. Mas
deves perdoar-lhe isso, Landry, pois é o despeito que a faz falar assim, e o
despeito significa amor.
- Talvez seja assim - replicou Landry. - É por isso que não te sentes
despeitada comigo, Fanchon. Perdoas-me, porque de mim desprezas tudo.
- Não sejas ingrato, Landry. Não mereço isso. Nunca fui
suficientemente louca para dizer mentiras como essas. Falei de outro
modo com Madelon. O que lhe disse era só para ela, mas não te podia
prejudicar, pelo contrário, deveria provar-lhe a estima que tenho por ti.
- Bom, Fanchon - disse Landry -, não vamos agora discutir sobre o
que disseste e o que não disseste. Quero-te pedir conselho, a ti, que és
sensata. Domingo passado, na pedreira, comecei a tomar por ti, sem saber
bem como, uma amizade tão forte que em toda a semana não comi nem
dormi de jeito. Não te vou esconder nada, porque a uma rapariga tão
ladina como tu não escapa nada. Confesso que tive vergonha desta súbita
amizade na segunda-feira de manhã, e desejava ir para muito longe para
não tornar a cair na mesma loucura. Mas, à noite, já estava na mesma, de
tal forma que passei o vau já escuro, sem me preocupar com qualquer
duende. Desde segunda-feira que pareço um imbecil, com todos a
troçarem de mim por causa da minha inclinação por ti; e todos os dias esta
inclinação é cada vez mais forte. E finalmente hoje, vejo-te tão mudada e
com um aspecto tão agradável. Toda a gente vai ficar admirada! E se
continuas assim, em menos de quinze dias, não só me perdoarão estar
apaixonado por ti, como surgirão outros caidinhos por ti. Mas se te
lembrares de domingo passado, dia de Santo Andoche, também te
lembrarás que te pedi, na pedreira, permissão para te beijar e que o fiz
como se não fosses feia e odiosa. Diz-me se isto não conta e se isso te
chateia em vez de te convencer.
Fadette escondera a cara entre as mãos e não deu resposta. Landry,
pelo que tinha ouvido da sua conversa com Madelon, estava convencido
que era amado por ela. Mas, ao ver a sua atitude envergonhada e triste,
começou a temer que ela tivesse contado histórias a Madelon para, com
boa intenção, conseguir a reconciliação. Isso tornou-o ainda mais
apaixonado e mais triste. Retirou-lhe as mãos do rosto e viu-a tão pálida
que parecia ir desfalecer.
E como a acusava por não responder ao que sentia por ele, Fádette
deixou-se cair no chão, suspirando, desmaiada.
Landry ficou muito assustado e bateu-lhe nas mãos para a fazer
voltar a si. As mãos estavam frias e rígidas. Aqueceu-as, esfregando-as
durante muito tempo nas suas e, quando ela pôde de novo falar, disse:
- Estás a divertir-te à minha custa, Landry. Mas há coisas com que
não se deve brincar. Deixa-me tranquila e nunca mais me fales, a não ser
que precises de me pedir algo, nesse caso estarei sempre ao teu dispor.
- Fadette, Fadette - exclamou Landry -, o que dizes não é justo. Foste
tu que troçaste de mim. Detestas-me, e no entanto fizeste-me crer noutra
coisa.
- Eu! - ripostou ela, aflita. - Que te fiz eu crer? Dei-te uma franca
amizade, como a que o teu gémeo tem por ti, e talvez até melhor, pois eu
não tenho ciúmes e, em vez de te estorvar nas tuas outras amizades, até te
ajudei.
- É verdade - concordou Landry. - Foste boa como um anjo e eu
comportei-me mal, censurando-te. Perdoa-me, Fanchon, e deixa-me amar-
te como puder. Prometo-te nunca mais te beijar, se isso te desagrada.
E Landry convenceu-se de que a pequena Fadette só tinha por ele
uma pacífica amizade. Isso deixou-o tão receoso e tão acanhado junto dela
como se não tivesse escutado a sua conversa com Madelon.
Quanto a Fadette, era suficientemente esperta para reconhecer,
finalmente, que Landry gostava mesmo dela, e fora por causa dessa
emoção tão intensa que desmaiara. Mas temendo perder demasiado
depressa uma felicidade tão depressa ganha, não queria revelar
imediatamente os seus sentimentos a fim de dar tempo a Landry de
desejar vivamente o seu amor.
Ficou junto dela até ao anoitecer, e embora já não ousasse dirigir-lhe
elogios, estava tão encantado e tinha tanto prazer em olhá-la e ouvi-la
falar que não conseguia decidir-se a deixá-la. Brincou com o saltão, que
nunca andava muito longe da irmã. Mostrou-se bom para com ele e logo
se percebeu que a pobre criança, tão maltratada por toda a gente, não era
nem parva, nem má com quem a tratava bem. Ao cabo de uma hora
estava tão cativado e tão reconhecido que beijava as mãos do gémeo e lhe
chamava meu Landry como chamava à irmã minha Fanchon. Landry
enternecia-se pelo pequeno, achando toda a gente e ele próprio
grandemente culpados em relação às duas pobres crianças da tia Fadet, as
quais só careciam, para serem as melhores de todas, de um pouco de amor
como qualquer criança.
Nos dias seguintes, Landry conseguiu ver a pequena Fadette, ora à
noite, ora de dia, e então podia conversar um pouco com ela, procurando-
a nos campos. E embora ela não pudesse parar muito tempo, sob pena de
faltar às suas obrigações, ele ficava contente por lhe dizer algumas
palavras e devorá-la com os olhos. E ela continuava a ter modos gentis no
falar, a ser cuidadosa no vestir e no tratamento com toda a gente, o que fez
que as pessoas se acautelassem e em breve mudassem o seu
comportamento para com ela. Aos seus olhos já não fazia nada de
condenável, e por isso deixaram de a injuriar. Em contrapartida, ela, como
deixou de ouvir insultos, nunca mais teve a tentação de provocar ou
arreliar alguém.
Mas, como a opinião das pessoas não muda assim tão rapidamente,
ainda iria decorrer algum tempo antes que passassem do desprezo à
consideração. De início não fizeram grande caso do aprumo da pequena
Fadette.
Quatro ou cinco bons velhinhos, daqueles que gostam de observar o
crescimento da juventude com indulgência, cavaqueavam por vezes entre
si observando todos aqueles jovens fervilhando em seu redor, uns jogando
ao chinquilho, outros dançando. E deles se ouviu:
- Este dará um bom soldado, se continuar assim, pois tem boa
estatura; aquele será esperto e sabido como o pai; aqueloutro terá o juízo e
a tranquilidade da mãe; a jovem Lucette promete ser uma boa
trabalhadora; olha para o grande Louis, que bonitão; e quanto à pequena
Marion, deixem-na crescer e será como as outras.
E quando chegou a vez dos comentários à pequena Fadette, ouviu-
se:
- Anda fugida - dizia um -, nem quer dançar, nem brincar. Ninguém
lhe põe mais a vista em cima. Parece que ficou muito zangada por os
rapazes lhe terem tirado a touca no baile; por isso modificou aquela
enorme coisa e, agora, não parece mais feia do que outra qualquer.
- Repararam como anda com a pele mais branca? - observou por sua
vez uma velhota.
A cara parecia um ovo de codorniz, de tanta sarda, mas da última
vez que a vi de perto fiquei admirada por a encontrar tão branca e tão
pálida, que lhe perguntei se não estava doente. Vendo-a como está agora,
parece que tudo se vai compor, e, quem sabe? Há feias que se tornam
belas quando atingem a adolescência.
- Também ficam mais atinadas - continuou um outro velhote. - Uma
rapariga, ao senti-lo, aprende a tornar-se elegante e agradável. Já era
tempo do grilo se aperceber que não era nenhum rapaz. Meu Deus, toda a
gente pensava que se iria portar mal, o que seria uma vergonha para a
aldeia. Mas há-de ter juízo e emendar-se como as outras. Há-de sentir que
tem de se fazer perdoar por ter tido uma mãe tão ingrata, e verão que
nunca mais se falará dela.
- Deus queira - disse outro -, pois é feio uma rapariga parecer um
bicho selvagem. Mas tenho esperanças nessa Fadette, pois encontrei-a
anteontem, e em vez de se pôr, como era seu hábito, atrás de mim a imitar
o meu coxear, deu-me os bons-dias e perguntou pela minha saúde com
muita delicadeza.
- Essa pequena de que estão a falar é mais louca do que má -
interrompeu outro. - Não tem mau coração; a prova é que muitas vezes
ficou com os meus netos no campo, por simples gentileza, quando a
minha filha estava doente. Tratou tão bem deles, que não a queriam
deixar.
- É verdade o que dizem - interrogou uma velhinha -, que um dos
gémeos do tio Barbeau ficou maluco por ela na festa?
- Ora, ora! - responderam-lhe. - Não se pode levar isso a sério! Foi
uma brincadeira de crianças e os filhos Barbeau não são mais parvos do
que os pais, estão a ouvir?
Assim se falava acerca da pequena Fadette e outras vezes nem isso
se dizia, pois já quase não a viam.
Mas quem a topava amiudadas vezes e lhe prestava muita atenção
era Landry Barbeau. Ficava irritado quando não conseguia falar-lhe à
vontade, mas, assim que se encontrava a sós com ela, sossegava e ficava
feliz, porque ela consolava-o com a linguagem da razão.
A pequena Fadette, que mantivera durante tanto tempo a aparência
de criança, possuía uma razão e uma vontade muito acima da idade. E
para isso era preciso ter uma admirável força de espírito, pois o seu
coração era muito mais carente que o de Landry. Amava-o loucamente e
todavia comportava-se com muito juízo. Embora pensasse nele a toda a
hora e morresse de impaciência por o ver e abraçar, assim que o via
assumia um ar tranquilo, ocultando as batidas loucas do seu coração,
fingindo não conhecer o fogo do amor.
Landry estava de tal modo enfeitiçado, que andava sempre receoso
de lhe desagradar e com dúvidas de ser amado.
Para o distrair da sua paixão, ela ensinava-lhe as coisas que sabia e
em que o seu espírito e talento natural haviam ultrapassado o
ensinamento da avó. Não queria fazer segredo de nada a Landry e, como
ele continuava um pouco receoso da feitiçaria, ela empenhou-se em lhe
fazer compreender que o diabo nada tinha que ver com os segredos do
seu saber.
- Ora, Landry, a intervenção do espírito do mal não serve para nada.
Só há um espírito, e esse é o de Deus. O diabo é invenção dos padres, dos
bruxos e também das velhas do campo. Quando era pequena, acreditava,
e tinha medo dos segredos da minha avó. Mas ela ria-se de mim e dizia-
me que aquele que duvida de tudo, é aquele que faz crer tudo aos outros.
E ninguém acredita menos no diabo do que os feiticeiros, que os invocam
por tudo e por nada. Nunca o viram, nem nunca receberam qualquer
ajuda deles.
- Mas - dizia Landry -, isso de dizeres que o diabo não existe, não é
muito cristão, querida Fanchon.
- Eu sei lá disso! - respondeu. - Mas se existe, tenho a certeza de que
não tem poder nenhum para vir à Terra enganar-nos e roubar-nos a alma.
Não o poderia, uma vez que a Terra é de Deus, e só Deus pode governar
as coisas e os homens que nela habitam.
E Landry, acalmados os seus receios, admirava Fadette pela defesa
dos seus ideais católicos, mos trando uma devoção bem mais profunda
que as outras. Amava a Deus do fundo do coração, e ao falar desse amor a
Landry, este surpreendia-se por ter sido ensinado a seguir práticas que
nunca tentara analisar, respeitando-as apenas pela ideia do dever, sem
que no entanto o coração tenha sentido algo de semelhante ao que Fadette
sentia pelo Criador.
Também com ela foi conhecendo as propriedades das ervas e o
receituário para a cura das pessoas e animais. Aliás, não tardou que
fizesse uma experiência numa vaca do tio Caillaud, que apareceu com
uma inflamação por ter comido demasiada erva. O veterinário desistiu de
a salvar, não lhe dando mais de uma hora de vida. E Landry às escondidas
fez-lhe ingerir uma beberagem que Fadette lhe ensinara a compor. De
manhã, quando o lavrador se dispunha a ir buscar a vaca para a enterrar,
encontrou-a de pé, e, surpreendentemente, agarrada à comida e de olhar
mais vivo e quase sem inflamação.
Outra vez, um potro foi mordido por uma cobra, e Landry, seguindo
os métodos de Fadette, salvou-lhe a vida. Quase logo a seguir também
experimentou o remédio contra a raiva num cão de Priche, livrando-o da
morte e de morder em alguém. Como Landry escondia o seu
relacionamento com a pequena Fadette e não se vangloriou do seu saber,
as pessoas atribuíam as curas dos animais simplesmente ao extremado
cuidado que ele punha no que fazia.
Mas o tio Caillaud, que também percebia do assunto, como bom
caseiro que era, andava intrigado e comentava:
- O tio Barbeau não tem jeito, nem sorte com os animais, pois perdeu
muito gado o ano passado e, infelizmente, não foi a primeira vez. Já
Landry tem boa mão para isso. Afinal, é uma coisa que já nasce com a
pessoa. Mesmo que se vá para as escolas, isso de pouco serve se não se
tem jeito de nascença. Ele, está visto, recebeu esse dom da Natureza, e ser-
lhe-á bem mais útil que o dinheiro para gerir uma quinta.
O tio Caillaud enganava-se ao atribuir aquele dom da Natureza a
Landry, sem embargo das qualidades que possuía em ser cuidadoso e
competente a aplicar as receitas que aprendera. Mas o dom da Natureza é
real, uma vez que a pequena Fadette o possuía e que, com tão poucas
lições que a avó lhe dera procurava, descobria e adivinhava, as virtudes
que Deus deu a certas ervas e a maneira de as empregar. Não era feiticeira
por causa disso, e tinha razão para protestar. Tinha espírito observador,
fazendo comparações, reparos, experiências, e isso sim, era dom da
Natureza. O tio Caillaud levava a coisa um pouco mais longe. Pensava
que um lavrador tinha a mão mais ou menos boa e que, unicamente pela
sua presença, fazia bem ou mal aos animais. No entanto, não deixava de
ser inegável que os bons cuidados, a limpeza, o trabalho feito com
consciência, tudo isso, tem a virtude de levar a bom êxito o que a
negligência ou a estupidez fazem piorar.
A amizade que Landry concebeu por Fadette aumentou com o
reconhecimento que lhe devia pelo ensino e seu talento. Por isso ficou
gratíssimo por ela ter partilhado os seus conhecimentos, de grande
utilidade para ele.
Landry ficou tão apaixonado que esqueceu a vergonha de mostrar o
seu amor por uma rapariguita considerada feia, má e mal-educada. Se
ainda tomava algumas precauções, era por causa do irmão gémeo,
ciumento que já anteriormente aceitara de mau grado a paixoneta que ele
tivera por Madelon, incomparável à que agora sentia por Fanchon.
Se Landry estava demasiado animado com o seu amor para agir
com prudência, a pequena Fadette, que tinha um espírito aberto ao
mistério, queria evitar expor Landry às impertinências das pessoas. Ela
amava-o demasiado para lhe causar quaisquer tormentos com a família e
exigiu dele um segredo tão grande, que decorreu cerca de um ano a ser
descoberto. Landry habituara Sylvinet a não vigiar todas as suas
andanças, e a região pouco povoada mais cortada por ravinas e rodeada
de árvores, tornava-se adequada aos encontros secretos.
Sylvinet, vendo que Landry já não ligava a Madelon, embora de
início tivesse aceitado essa partilha da sua amizade como um mal
necessário, regozijou-se ao pensar que Landry não tinha pressa de lhe
retirar a sua amizade para a dar a uma mulher e, sem ciúmes, deixou-o
mais livre nas suas ocupações e passeios. Landry passava a vida a arranjar
motivos para ir e vir e, sobretudo nos domingos à noite, saía de casa dos
pais cedo e só regressava a Priche por volta da meia- noite. Dessa maneira,
Landry tinha sempre o domingo só para si, até segunda- feira de manhã,
porque o tio Caillaud e o filho mais velho, que eram excelentes pessoas,
costumavam ficar com o encargo e a vigilância da quinta nos dias de
descanso, a fim de que, diziam, todo o pessoal da casa, que trabalhava
mais do que eles durante a semana, naquele dia pudesse folgar e divertir-
se em liberdade, segundo a vontade de Deus.
No Inverno, em que as noites são frias e dificilmente se pode andar
no campo, havia para Landry e para Fadette um bom refúgio na torre de
Jacot, um antigo pombal, abandonado pelos pombos há longos anos, bem
coberto e bem fechado e pertencente à quinta do tio Caillaud. Serviam-se
dele para guardar o excesso de géneros. Landry tinha a chave e situava-se
nos confins de Priche, de modo que era de supor que ninguém se
lembrasse de ali importunar os jovens namorados.
Passavam naquele refúgio momentos inesquecíveis, falando do
futuro e do dia em que, finalmente, poderiam amar-se livremente. Ali, as
horas decorriam demasiado rápidas e a separação era-lhes sempre difícil.
Mas, como não há segredo que sempre dure, num belo domingo, ao
passar ao longo do muro, Sylvinet ouviu a voz do gémeo a falar do outro
lado do muro. Landry falava baixinho, mas Sylvinet conhecia-lhe bem a
voz, mesmo naquele tom.
- Porque não queres vir dançar? - perguntava a alguém que Sylvinet
desconhecia. - Há tanto tempo que não te vêem por lá, que ninguém
achará mal que eu dance contigo. Eu sou suposto quase não te conhecer.
Ninguém dirá que é por amor, mas sim por delicadeza, e porque estou
curioso de saber se, após tanto tempo, ainda sabes dançar.
- Não, Landry, não! - respondeu uma voz que Sylvinet não
reconheceu, pois Fadette andava afastada de toda a gente, particularmente
dele. Não, é melhor não dar nas vistas, e se dançasses comigo uma vez,
quererias recomeçar todos os domingos, e não seria preciso mais para
começarem a falar. Acredita no que sempre te disse, Landry: no dia em
que souberem do nosso amor, surgirão problemas. Deixa-me ir embora, e
depois de passares uma parte do dia com a tua família, virás então ter
comigo ao sítio do costume.
- Mas olha que é triste nunca poder dançar - exclamou Landry. - Tu
gostavas tanto da dança e danças tão bem! Que prazer não seria pegar- te
na mão e fazer-te girar nos meus braços e ver-te, tão leve e tão gentil,
dançando comigo!
- É justamente o que não deve acontecer!replicou ela. - Tens
saudades de dançar, meu
Landry, e não sei porque renunciaste. Vai dançar um bocadinho, eu
ficarei feliz por saber que te estás a divertir e assim esperarei por ti mais
resignadamente.
- Oh! Tu tens mas é paciência de mais - disse Landry numa voz que
não a mostrava. - Preferia que me cortassem as pernas a dançar com
raparigas de quem não gosto e que não beijaria por todo o ouro do
mundo.
- Está bem, mas se eu fosse dançar - replicou Fadette -, também tinha
de dançar com outros rapazes e deixar-me beijar por eles.
- Vai-te embora, vai depressa! - exclamou Landry. - Isso não! Não
quero que ninguém te beije.
Sylvinet não ouviu mais nada além de passos que se afastavam e,
para não ser surpreendido pelo irmão, escondeu-se até ele passar.
Tal descoberta foi como que uma facada no coração de Sylvinet. Não
tentou descobrir quem era a rapariga que Landry amava tão apaixonada
mente. Bastava- lhe saber que havia uma pessoa pela qual Landry o
abandonava e para quem iam todos os seus pensamentos, ao ponto de os
esconder do irmão gémeo. Deve desconfiar de mim, pensou, e essa
rapariga de quem gosta tanto deve levá-lo a evitar-me e a detestar-me.
Não é de admirar que ande sempre tão aborrecido em casa e tão inquieto
quando quero dar um passeio com ele. Eu não insistia, julgando que
gostava de estar só, mas agora evitarei a todo o custo incomodá-lo. Nem
lhe direi nada; ficaria zangado se soubesse que descobri o que não me quis
confiar. Sofrerei sozinho, enquanto ele se congratulará por se ter
desembaraçado de mim.
Sylvinet cumpriu o que prometera e foi até mais longe, pois não só
nunca mais tentou reter o irmão a seu lado, mas também, para não o
atrapalhar, passou a ser o primeiro a sair de casa e ir passear sozinho à
volta da casa, não querendo ir para o campo: Porque, pensava, se por
acaso aí o encontro, ele vai imaginar que ando a espiá-lo e dar-me- ia a
entender que o incomodo.
E, assim o seu antigo desgosto, do qual estava praticamente curado,
voltou tão pesado e tão afincado, que não tardou a reflectir-se-lhe na cara.
A mãe preocupou-se, mas, como ele tinha vergonha, aos dezoito anos, de
ter as mesmas fraquezas de espírito que aos quinze, nunca quis confessar
o que o atormentava.
Foi isso que o salvou de adoecer, pois aquele que tem a coragem de
guardar a sua dor é mais forte contra ela do que aquele que se queixa. O
pobre gémeo começou a andar triste e pálido, e embora fosse sempre
crescendo um bocadinho, manteve-se magro e com um ar frágil. Não era
resistente no trabalho, apesar de não fugir a ele, pois sabia que o trabalho
era um bom remédio contra a tristeza e não queria prejudicar o pai com a
sua indiferença. Deitava então mãos à obra e trabalhava com raiva contra
si próprio. Assim, com frequência, realizava mais do que podia suportar, e
no dia seguinte estava tão cansado que não conseguia fazer nada.
- Nunca será um trabalhador robusto - dizia o tio Barbeau -, mas faz
o que pode e quando pode. É por isso que não o quero empregar longe;
com o medo que tem das repreensões e a pouca força que Deus lhe deu,
depressa se arruinaria, e eu ficaria para sempre com esse peso na
consciência.
A tia Barbeau, obviamente, concordava com essas razões e fazia os
possíveis por animar Sylvinet. Consultou vários médicos sobre a sua
saúde. Uns disseram- lhe que o deviam tratar com muitos cuidados
porque estava fraco. Outros, que deviam obrigá-lo a trabalhar,
alimentando-o bem, porque, como estava fraco, precisava de se fortificar.
A tia Barbeau não sabia que prescrições seguir, tais os conselhos
recebidos.
Felizmente, na dúvida, não seguiu nenhum e Sylvinet prosseguiu a
vida que Deus lhe havia traçado, carregando o seu mal sem grandes
percalços até ao momento em que os amores de Landry vieram à baila e
Sylvinet viu a sua dor aumentada.

9
Desvendado o segredo
Foi Madelon quem descobriu o segredo, e embora o tenha feito sem
maldade, tirou disso mau partido. Resignara-se facilmente de Landry, e
não tendo perdido muito tempo a amá-lo, não lhe custou a esquecê-lo. E
mais, ficara-lhe no coração um pequeno rancor, que ainda aguardava uma
oportunidade para se dar a conhecer.
E aconteceu. Madelon, considerada pelo seu ar assisado, era no
fundo bem vaidosa e menos razoável e fiel nas suas amizades que o
desafortunado grilo, de quem tão mal falavam. Afinal, Madelon já tivera
dois namorados, sem contar Landry, e namoriscava agora um terceiro,
que era o filho mais novo do tio Caillaud. Sendo vigiada por este último e
temendo algum escândalo, sem saber onde se esconder para conversar à
vontade, deixou-se persuadir pelo filho Caillaud a ir para o pombal, onde
justamente Landry tinha os encontros com Fadette.
Com essa intenção, o jovem Caillaud rebuscou tudo à procura da
chave do pombal, mas não a encontrou. Quem a trazia no bolso era
Landry. De modo que desistiu de a pedir a alguém, pois não tinha
motivos que justificassem a sua posse. Assim, o pequeno Caillaud,
julgando-a perdida ou que o pai a trazia com ele, não esteve com meias
medidas: foi-se à porta do pombal e arrombou- a. Mas, no dia em que o
fez, Landry e Fadette encontravam-se lá, e os quatro namorados ficaram
extremamente embaraçados ao confrontarem-se ali. Claro, nessas
circunstâncias, resolveram calar-se e nada divulgar.
Só que Madelon teve um acesso de ciúmes e de raiva ao ver que
Landry, então já um dos mais belos rapazes da terra, se mantinha fiel
áquela feiosa da Fadette, e decidiu vingar-se. Para isso, sem nada contar
ao filho Caillaud, pediu ajuda a duas amigas, indo elas, de si também
despeitadas pelo desprezo e indiferença que Landry parecia votar-lhes,
por não as convidar para dançar, pôr- se à coca dos dois jovens, para se
assegurarem das suas relações. Depois de os verem uma ou duas vezes
juntos, fizeram estardalhaço disso por toda a parte, dizendo que Landry
andava perdido de amores pelo feioso grilo.
Foi, por conseguinte, dessa forma que todas as raparigas se
intrometeram no assunto, pois, quando um rapaz de bom aspecto e com
posses se vira para uma pessoa daquelas, é como que uma injúria a todas
elas, e havendo possibilidades de criticar ninguém o evita.
Assim, quinze dias depois do encontro na torre de Jacot, sem que
fosse questão de Madelon, que tivera o cuidado de não se envolver no
assunto e que até fingiu tomar conhecimento do escândalo que fora a
primeira a revelar, toda a gente estava a par dos amores de Landry, o
gémeo, com Fanchon, o grilo.
Portanto, a notícia chegou aos ouvidos da tia Barbeau, que muito se
afligiu e não quis falar nisso ao marido. Mas este soube-o por outras
bocas, e Sylvinet, que tão discretamente guardara o segredo do irmão,
teve o desgosto de ver que todos o conheciam.
Assim, uma noite em que Landry se preparava para sair cedo de
casa, como era hábito, o pai disse-lhe, na presença da mãe e dos irmãos:
- Não tenhas tanta pressa, Landry! Pretendo falar contigo e só estou
à espera que o teu padrinho chegue, pois é diante dos membros da familia
que mais se interessam por ti que quero pedir-te uma explicação.
E quando o padrinho, tio Landriche, chegou, o pai Barbeau começou
o responso:
- O que tenho para te dizer causar-te-á alguma vergonha, meu
Landry; também não é sem vergonha, que eu próprio me vejo obrigado a
falar-te diante da família. Mas espero que essa vergonha te seja salutar e te
cure de uma fantasia que poderá trazer-te desgraças. Diz-se por aí que
andas com uns encontros há quase um ano. Logo no primeiro dia me
falaram disso, pois acharam inconcebível ver-te dançar toda a festa com a
rapariga mais feia, mais desmazelada e de pior fama da nossa terra. Não
liguei importância ao caso, pensando que não passava de uma
brincadeira, apesar de não aprovar, porque, se não se deve frequentar as
pessoas duvidosas, também não se deve aumentar a sua humilhação e a
infelicidade de serem odiadas. Não te falei do caso, pensando, ao ver-te
triste no dia seguinte, que te censuravas pelo que tinhas feito. Mas eis que,
há cerca de uma semana, ouço dizer uma coisa completamente diferente e,
embora vindo de pessoas de confiança, não quero acreditar nisso, a menos
que tu próprio mo confirmes. Se procedi mal, suspeitando de ti, apenas se
deve ao interesse que te dedico e ao dever que tenho de vigiar a tua
conduta, pois, se não passa de uma calúnia, proporcionar- me-ás um
grande prazer dando-me a tua palavra de honra e declarando-me que te
difamaram injustamente.
- Pai - respondeu Landry -, nesse caso diga-me de que me acusa e eu
responder-lhe-ei conforme a verdade e o respeito que lhe devo.
- Acusam-te, Landry, e creio que to dei a entender, de manteres
relações desonestas com a neta da tia Fadet, que é uma mulher duvidosa,
sem contar que a mãe dessa pobrezinha abandonou o marido, os filhos...
Acusam-te de passeares por todo o lado com a pequena Fadette, o que me
faz recear teres-te envolvido num namoro, do qual virás a arrepender-te
durante toda a vida. Entendes agora?
- Entendi muitíssimo bem, meu pai - respondeu Landry -, mas
permita- me que lhe pergunte antes de responder: é por causa da família
ou apenas por causa dela que vê a Fanchon Fadet como má companhia
para mim?
- É sem dúvida por causa de ambas - retorquiu o tio Barbeau com
mais severidade do que empregara no começo, pois esperara que Landry
ficasse embaraçado e via-o tranquilo e com ar resoluto. - Em primeiro
lugar, um mau parentesco é uma nódoa e nunca uma família honrada
como a nossa quereria aliar-se à família Fadet. Depois, a pequena Fadette
não inspira estima nem confiança a ninguém. Vimo-la crescer e sabemos o
que vale. Ouvi dizer, e reconheço-o, que de há um ano para cá se
comporta melhor, já não anda na brincadeira com os miúdos, nem
responde mal a ninguém... Como vês, não desejo afastar-me da justiça!
Mas isso não basta para acreditar que uma criança que foi tão mal-
educada possa tornar-se numa mulher honrada, e conhecendo a avó como
a conheci, tenho todos os motivos para recear que haja por aí uma
armadilha qualquer para te arrancar promessas e causar-te vergonha e
embaraço.
Landry, que prometera a si próprio ser prudente e explicar-se com
calma, perdeu a paciência. Ficou vermelho como um pimento e,
erguendo- se, protestou.
- Pai, quem lhe disse isso, mentiu, e fê-lo com quantos dentes tem
na boca. Insultaram de tal modo Fanchon Fadet que, se aqui estivessem,
teriam de se haver comigo, até um de nós ficar no chão. Essa gente é
cobarde. Que me venham dizer na cara o que andaram a insinuar pelas
costas, e veremos o que acontece.
- Não te zangues assim, Landry - disse Sylvinet, abatido pelo
desgosto. - O pai não te acusa de teres agido mal com essa rapariga; mas
receia que ela ande a preparar alguma para te apanhar.
A voz do gémeo serenou um pouco Landry; mas este não pôde
deixar passar as palavras dele:
- Irmão - disse -, não percebes nada disto. Sempre andaste de pé
atrás com a pequena Fadette e não a conheces. Ainda não me preocupei
com o que dizem de mim, mas não consentirei que digam mal dela, e
quero que o meu pai e a minha mãe sai bam, pela minha boca, que não há
cá na terra outra rapariga tão honesta, tão ajuizada, tão boa, tão
desinteressada, como ela. A infelicidade de pertencer a uma família como
a que tem, mais mérito lhe dá em ser como é, e eu nunca julgaria possível
que almas cristãs pudessem censurar a infelicidade do nascimento.
O tio Barbeau levantou-se, para mostrar que não consentiria que as
coisas fossem mais longe entre eles.
- Vejo, pelo despeito, que estás mais afeiçoado a essa Fadette do que
eu pensava. Uma vez que não te envergonhas nem te arrependes, não
falaremos mais nisso. Vou pensar no que devo fazer, para evitar o
trambolhão. Agora, segue para o teu patrão.
- Não nos deixes assim - disse Sylvinet, retendo o irmão, que se ia
embora. - Pai, Landry sente tanta pena por lhe ter desagradado, que não
consegue dizer nada. Conceda-lhe o seu perdão e beije-o, pois está prestes
a chorar e o seu descontentamento seria um castigo demasiado grande.
Sylvinet chorava, todos os outros choravam também. Só o tio
Barbeau e Landry tinham os olhos secos, mas em desespero. O pai não
exigiu nenhuma promessa, pois sabia que nesses casos as promessas são
duvidosas, mas deu a entender a Landry que ainda não acabara e que
voltaria ao assunto. Landry foi-se embora encolerizado e desolado.
Sylvinet pensou em segui-lo mas não ousou, porque desconfiou que ele ia
dar conta do seu desgosto a Fadette; foi deitar-se, e, de infeliz, mais não
fez durante toda a noite senão suspirar e sonhar com a desgraça da
família.

10
A separação
Landry foi bater à porta da pequena Fadette. A tia Fadet tornara-se
tão surda que, uma vez adormecida, nada a acordava, e desde há algum
tempo que Landry, após a bronca, só podia conversar com Fanchon à
noite e no quarto onde ela dormia com a velhota e o pequeno Jeanet; e
mesmo ali se arriscava, pois a velhota não o suportava e seria mais natural
desancá-lo à vassourada do que despedi-lo com cumprimentos.
Landry contou a sua mágoa a Fadette, achando-a compreensiva,
submissa e corajosa. Ela ainda tentou persuadi-lo de que faria melhor, no
seu próprio interesse, em reatar as pazes e não mais pensar nela. Mas,
quando viu que ele se afligia e revoltava ainda mais, aconselhou-o à
obediência, dando-lhe esperanças no futuro.
- Escuta, Landry - disse-lhe -, já tinha previsto tudo isto e pensei
muitas vezes no que faríamos, neste caso. O teu pai não deixa de ter razão
e não lhe quero mal, pois é por gostar muito de ti que receia ver-te ligado
a uma pessoa tão pouco merecedora como eu sou. Perdoo-lhe o orgulho e
a injustiça, pois não pretendo negar que a minha primeira juventude foi
louca, e tu próprio ma censuraste no dia em que me começaste a amar. De
há um ano para cá emendei-me, mas não é tempo suficiente para que ele
adquira confiança. É necessário esperar e, pouco a pouco, as acusações
que tinham contra mim desaparecerão e as mentiras de agora de nada
valerão. O teu pai e a tua mãe verão que eu sou ajuizada e que não te
quero desencaminhar. Acreditarão na sinceridade dos meus sentimentos e
poder-nos-emos ver e falar sem nos esconder de ninguém. Entretanto, tens
de obedecer a teu pai, que, estou certa, te vai proibir de me veres.
- Nunca terei essa coragem! - exclamou Landry. - Preferia morrer!
- Pois bem, se não a tens, tê-la-ei eu - replicou a pequena Fadette. -
Partirei, deixarei a terra por algum tempo. Há dois meses que andam a
oferecer-me um bom lugar na cidade. A minha avó está tão surda e tão
idosa que já quase não pode vender os remédios. Tem uma familiar muito
boa que se oferece para vir viver e cuidar dela, assim como do pobre
saltão.
A voz da pequena Fadette falhou um momento à ideia de deixar a
criança, que era, com Landry, quem ela mais amava no mundo; mas
tomou coragem e continuou melancólica:
- Agora, já é suficientemente forte para passar sem mim. Vai fazer a
primeira comunhão e o divertimento de ir à catequese e brincar com as
outras crianças distraí-lo-á do desgosto da minha ausência. Os outros
rapazes deixaram de o atormentar tanto. Portanto, é preciso, Landry; é
preciso que me esqueçam um pouco, pois neste momento há uma grande
raiva. Após um ou dois anos longe e quando regressar com boas maneiras
e boa reputação, nunca mais nos atormentarão e seremos melhores amigos
do que nunca.
Landry discordou daquelas razões. Ficou desesperado e regressou a
Priche em estado francamente lastimoso.
Dois dias depois, quando se dirigia para a vindima, o jovem
Caillaud dirigiu-se-lhe:
- Vejo, Landry, que estás zangado comigo à algum tempo e não me
falas. Julgas porventura que fui eu quem divulgou os teus encontros com
a pequena Fadette. Estou chateado por creres nisso, numa vileza dessas.
Juro-te por Deus que nunca contei nada e é-me bastante penoso que te
tenham causado esses aborrecimentos, pois sempre te considerei e jamais
injuriei Fadette. Para ser franco, até estimo essa rapariga, pois ela podia ter
comentado o nosso encontro no pombal e nunca ninguém soube de nada.
E, em desespero de causa, até o podia ter feito, mais que não fosse para se
vingar de Madelon, que se sabe perfeitamente ser a autora de todo o
falatório. É verdade, Landry, não nos devemos fiar nas aparências e nas
reputações. Fadette, que passava por má, foi boa; Madelon, que passava
por boa, foi desleal e intriguista, não só para contigo, mas também para
comigo, tendo eu já muitas queixas a fazer da sua fidelidade.
Landry aceitou com prazer as explicações do jovem e recebeu de
bom grado as suas palavras de conforto.
- Causaram-te muitos desgostos, meu pobre Landry mas a conduta
da pequena Fadette deve consolar-te. Faz bem em se ir embora, para
acabar com as inquietações da tua família, e acabo de lho dizer, aliás, ao
despedir-me dela no caminho.
- Que estás a dizer, benjamim? - exclamou Landry. - Ela vai-se
embora? Partiu?
- Não sabias? - perguntou este. - Pensava que tinha sido combinado
entre vocês e que não a acompanhavas para não seres censurado. Mas ela
vai-se embora, de certeza; passou pela nossa casa há menos de um quarto
de hora e levava um embrulho debaixo do braço.
Landry abandonou a parelha de bois que levava para a vindima e
desatou a correr, só parando quando alcançou a pequena Fadette, no
caminho. Aí, completamente esgotado pelo desgosto e pelo cansaço da
corrida, caiu de joelhos sem conseguir falar, dando-lhe a entender por
gestos que não passaria dali.
Quando já quase restabelecido, Fadette disse-lhe:
- Queria evitar-te este desgosto, meu querido Landry, e tu esforças-
te por me tirar a coragem. Sê homem e ajuda-me a ter ânimo; é-me
necessário mais do que julgas, e quando penso no meu pobre saltão, que, a
esta hora, deve andar à minha procura, sinto-me enfraquecer. Ah! suplico-
te, Landry, ajuda-me a trilhar o meu caminho; se não vou hoje, nunca mais
irei, e estaremos perdidos, meu querido.
- Fanchon, Fanchon, não precisas de grande coragem! - respondeu
Landry. - Só tens saudades de uma criança, que em breve se consolará,
porque não passa de uma criança. Não te preocupas com o meu
desespero. Não sabes o que é o amor. Não sentes nenhum por mim e vais
esquecer-me depressa, o que fará com que talvez nunca mais regresses.
- Regressarei, Landry! Deus é testemunha de que voltarei dentro de
um ano ou dois o mais tardar, e que não te esquecerei, tão pouco terei
outro amigo ou namorado!
- Outro amigo, é possível, Fanchon, porque nunca encontrarás um
tão dedicado como eu, mas outro namorado, já não sei, quem sabe?
- Sei eu!
- Tu própria não sabes nada, Fanchon, nunca amaste, e quando
sentires o amor nunca mais te lembrarás do teu pobre Landry. Ah! se me
amasses como eu te amo, não me deixarias assim!
- Achas, Landry? - perguntou Fadette, fitando-o com um olhar triste
e sério. - Eu acho que o amor me obrigaria mais do que a amizade.
- Pois bem, se for o amor que te obriga, não terei tanto desgosto. Oh!
sim, Fanchon, acho que quase seria feliz na minha infelicidade! Teria
confiança na tua palavra e esperança no futuro Teria á coragem que tu
tens, a sério. Mas não é amor, disseste-mo muitas vezes e vi-o na tua
grande tranquilidade junto de mim!
- Então achas que não é amor? - perguntou a pequena Fadette. - Tens
a certeza absoluta?
E, continuando a fitá-lo, os seus olhos encheram-se de lágrimas, que
rolaram pelas faces, enquanto sorria de um modo estranho.
- Oh, meu Deus - exclamou Landry, tomando-a nos braços. - Se eu
pudesse estar enganado!
- Eu acho que estás - respondeu a pequena Fadette. - Desde os treze
anos, o pobre grilo reparou em Landry e de aí em diante nunca mais
olhou para outro. Acho que, quando ela o seguia pelos campos dizendo-
lhe tolices e impertinências para o forçar a reparar nela, não sabia ainda o
que a impelia para ele. Acho que, quando um dia partiu à procura de
Sylvinet, sabendo que Landry sofria e o encontrou à beira-rio, mergulhado
nos seus pensamentos e com um cordeirinho nos joelhos, armou- se em
feiticeira para forçá-lo ao reconhecimento. Acho que, quando o injuriou no
vau das Roulettes, fê-lo por despeito e desgosto por ele nunca mais lhe ter
falado. Acho que, se quis dançar com ele, foi porque estava louca por si e
esperava agradar-lhe com o seu fato para a dança. Acho que, quando
estava a chorar na pedreira o fazia por arrependimento e pena de lhe ter
desagradado. Finalmente acho que, quando ele a queria beijar e ela o
recusou, quando ele lhe falava de amor e ela lhe respondia com palavras
de amizade, era com medo de perder esse amor, aceitando-o demasiado
depressa. Se ela, angustiada, parte com o coração despedaçado, é na
esperança de regressar mais digna dele e aos olhos de toda a gente poder
ser sua mulher, sem macular nem humilhar a sua família.
Landry julgou ficar louco. Ria, gritava, e chorava; beijava as mãos, o
vestido de Fanchon e ter-lhe-ia beijado os pés se ela tivesse consentido.
Mas ela ergueu- o e deu- lhe um verdadeiro beijo de amor, o primeiro que
recebia dela. Depois, pegando no embrulho, vermelha e confusa, fugiu
proibindo-o de a seguir e jurando voltar.
De retorno às vindimas, Landry ficou surpreendido por não se sentir
tão infeliz como pensava, tal a doçura de se saber amado e a confiança que
sentia por amar intensamente. Estava tão contente que não pôde impedir-
se de falar nisso ao Benjamin Caillaud, que louvou a pequena Fadette por
ter sabido defender-se tão bem de qualquer fraqueza ou imprudência,
desde a altura em que passou amar Landry e era amada por ele.
- Estou contente por saber que essa rapariga tem tantas qualidades -
disse- lhe -, pois, pelo que me diz respeito, nunca a julguei mal. E com
aqueles olhos, sempre me pareceu mais bela do que feia e, desde há certo
tempo, toda a gente poderia ver, se ela tivesse aparecido, que se tornara
dia a dia mais atraente. Mas só a ti amava, Landry, e contentava-se em não
ser desagradável para os outros. Só lhe interessava a tua aprovação, e
digo-te que uma rapariga com tal carácter faria as delícias de muitos
rapazes. Aliás, como a conheço desde criança, sempre achei que tinha um
grande coração, e se pedissemos às pessoas que dissessem em boa
verdade o que cada uma pensa e o que sabe, todas seriam obrigadas a
testemunhar em seu favor. Só que o mundo é feito assim, e quando duas
ou três pessoas andam atrás de uma outra, todos se intrometem, atirando-
lhe pedras e criando-lhe má fama sem saberem bem porquê, talvez pelo
prazer mórbido de rebaixar quem não se pode defender.
Landry sentiu um grande alívio ao ouvir o jovem falar daquele
modo e, desde esse dia, tornaram-se amigos.
Alguns dias depois Landry fez-lhe uma proposta:
- Não penses mais nessa Madelon, que não vale nada e causou
desgostos a ãmbos, meu caro benjamim. Temos a mesma idade e nada te
apressa a casar. Ora, eu tenho uma irmã, Nanette, que é linda como uma
flor, bem-educada, meiga, graciosa e vai fazer dezasseis anos. Vai visitar-
nos mais frequentemente. Meu pai gosta de ti e, quando conheceres bem a
nossa Nanette, verás que não te sairá mais da ideia tornares-te meu
cunhado.
- Bom, não digo que não - respondeu o outro. - Se ela não estiver já
prometida a outro, irei a tua casa todos os domingos.
Na noite da partida de Fanchon, Landry foi ver o pai para lhe dar a
conhecer a honesta conduta daquela rapariga que ele julgara tão mal.
Sentiu grande tristeza ao passar diante da casa da tia Fadet; mas encheu-se
de coragem, pensando que, sem a partida de Fanchon, não teria talvez
sabido até que ponto era amado por ela. Viu a tia Fanchette, a parenta, que
tinha vindo para cuidar da velha e do miúdo no seu lugar. Estava sentada
à porta, com o saltão nos joelhos. O pobre Jeanet chorava e não queria ir
para a cama, porque a sua Fanchon ainda não voltara para casa, dizia, e
era ela que o costumava deitar. A tia Fanchette reconfortava-o o melhor
que podia e Landry ouviu com prazer que ela lhe falava com muita
doçura e amizade. Mas, assim que o saltão viu passar Landry, escapou-se
das mãos de Fanchette e correu a atirar-se às pernas do gémeo, abraçando-
o e interrogando- o sobre a sua Fanchon. Landry tomou-o nos braços e, a
chorar, consolou-o como pôde. Quis dar-lhe um cacho de uvas, que levava
num cestinho, da parte da tia Caillaud, para a mãe, mas Jeanet, que era
habitualmente guloso, não quis nada senão que Landry lhe prometesse ir
buscar a sua Fanchon e foi preciso que Landry lho prometesse a suspirar,
para ele se tornar máis dócil com a tia.
O tio Barbeau não contava com a grande resolução da pequena
Fadette. Ficou contente, mas como era um homem justo e de bom coração,
quase lamentou o que ela fizera.
- Estou zangado, Landry - disse -, por não teres tido a coragem de
renunciares a vê-la. Se tivesses agido como era tua obrigação, não terias
sido a causa da sua partida. Deus queira que essa criança não sofra na sua
nova condição e que a sua ausência não prejudique a avó e o irmão; pois
se muita gente diz mal dela, também há alguns que a defendem e que me
garantiram que era boa e prestável com a família. E eu, pessoalmente,
nada tenho contra ela, só que não desejo é que cases com ela.
- Meu pai - respondeu Landry -, cada um de nós vê o assunto de
maneira diferente e, de momento, só lhe peço é que me perdoe o desgosto
que lhe causei. Falaremos dela mais tarde, como me prometeu.
O tio Barbeau aceitou essa condição, de não insistir mais. Era
demasiado prudente para precipitar as coisas e, para já, estava contente
com o que havia obtido.
A partir de então a pequena Fadette nunca mais foi assunto de
conversa. Até evitaram pronunciar o seu nome, pois Landry tornava-se
vermelho, e depois pálido, quando alguém deixava escapar o seu nome
diante dele, e logo a seguir ficava contente por verificar que não a
esquecera mais do que no primeiro dia.

11
Sylvinet adoece
Primeiro, Sylvinet sentiu um prazer egoísta ao tomar conhecimento
da partida de Fadette, convencendo-se que doravante o gémeo só o
amaria a ele e não o deixaria por ninguém.
Mas não foi assim. Sylvinet era de facto aquele que Landry mais
amava no mundo depois da pequena Fadette; mas não podia sentir muito
prazer na sua companhia, porque Sylvinet não abandonava a sua aversão
por Fanchon. Assim que Landry tentava falar-lhe nela, Sylvinet exaltava-
se, e repreendia-o por se obstinar numa ideia tão repugnante para os pais
e tão penosa para ele próprio. Landry, desde então, nunca mais lhe tocou
no assunto; mas, como não podia viver sem falar nisso, dividia o seu
tempo entre o benjamim Caillaud e o pequeno Jeanet, a quem levava a
passear e instruía, consolando-o o melhor que podia. Quando o
encontravam com aquela criança, as pessoas talvez desejassem troçar dele,
se ousassem. Mas Landry não se deixava escarnecer no que quer que
fosse, e estava mais orgulhoso do que envergonhado em mostrar a sua
amizade pelo irmão de Fanchon, sendo assim que demonstrava aos que
pretendiam que o tio Barbeau, na sua sensatez, vencera a resistência do
seu amor.
Sylvinet, notando que o irmão não lhe fazia tanta companhia como
desejava, achava-se reduzido a dirigir os ciúmes contra o pequeno Jeanet e
contra o benjamim Caillaud; apercebendo-se, por outro lado, que a irmã
Nanette, que, até então, sempre o consolara e alegrara com cuidados e
atenções carinhosas, começava a demorar-se muito na companhia do
benjamim Caillaud, e que as duas famílias aprovavam, o pobre Sylvinet,
cujo capricho era possuir só para si a amizade dos que amava, caiu num
aborrecimento mortal, num torpor singular, e o seu carácter azedou-se
tanto que já não sabiam que fazer para o consolar. Já não ria nem se
interessava por nada, como não conseguia trabalhar, tal o
enfraquecimento. Chegaram a recear pela sua vida, pois a febre já quase
não o deixava, e quando era maior, dizia coisas sem razão e cruéis para o
coração dos pais. Sustentava que não lhe ligavam, a ele, que sempre
haviam acarinhado e mimado mais do que qualquer outro da família.
Desejava a morte, dizendo que não servia para nada e que o poupavam
por compaixão, sendo um fardo para os pais e que o maior auxílio que
Deus lhe poderia dar era levá-lo dali.
Às vezes, o tio Barbeau, ao ouvir tais disparates, repreendia-o com
severidade, todavia sem resultado. Outras vezes, o tio Barbeau suplicava-
lhe, pesaroso, que lutasse pela vida. Era ainda pior: Sylvinet chorava,
arrependia-se, pedia perdão ao pai, à mãe, ao gémeo, a toda a família; e a
febre voltava mais forte assim que dava livre curso ao excesso de ternura
do seu coração doente.
Consultaram novos médicos, que não aconselharam grande coisa.
Via-se, pela atitude, que achavam que o problema era de foro psicológico
e por serem gémeos, atacando o mais fraco. Consultaram também a
curandeira de Clavières, mulher de nomeada na região, após a morte de
Sagette e a tia Fadet começar a ficar senil.
- Só uma coisa pode salvar o vosso filho - declarou a curandeira -, é
que ele goste das mulheres.
- De facto, ele não as suporta - respondeu a tia Barbeau. - Nunca vi
rapaz tão orgulhoso e tão ajuizado, e no entanto, desde que o amor se
meteu na cabeça do irmão, diz mal de todas as raparigas. Culpa-as a todas
por causa de uma delas, e infelizmente não é a melhor, Lhe ter roubado,
como afirma, o afecto do gémeo.
- É verdade - continuou a curandeira -, quando o vosso filho amar
uma mulher, amá-la-á ainda mais do que ama o irmão. É o que eu
vaticino. Ele ama em excesso, e por causa de o concentrar no irmão,
esqueceu os que o circundam, faltando à lei de Deus, que quer que o
homem ame uma mulher mais do que aos pais e irmãos. Descansem,
porque é provável que a Natureza actue brevemente; e não hesitem em
dar-lhe em casamento a mulher que ele amar, seja pobre, feia ou má, pois
tudo indica que não amará duas na vida. O seu coração é
excepcionalmente afectivo, do que resulta a necessidade de um milagre da
Natureza para que se separe um pouco do gémeo.
A opinião da curandeira pareceu sensata ao tio Barbeau. De modo
que os pais inventaram todos os pretextos para levar Sylvinet às casas
amigas onde havia raparigas casadoiras. Mas, embora Sylvinet fosse um
bonito rapaz e bem-educado, o seu ar indiferente e triste não alegrava o
coração de qualquer delas. Por ser muito tímido, imaginava, à força de as
temer, que as detestava.
O tio Caillaud, bom amigo e um dos melhores conselheiros da
família, propôs então:
- Sempre vos disse que a ausência era o melhor remédio. Vejam
Landry! Estava a ficar doido por causa da pequena Fadette, e no entanto,
depois desta partir, ele não perdeu a razão nem a saúde, e anda até menos
triste do que andava. Agora é um moço razoável e submisso. Aconteceria
por certo o mesmo a Sylvinet se, durante cinco ou seis meses, não visse o
irmão. Posso dar uma ideia de o separar sem ser bruscamente. A minha
quinta de Priche vai bem, o que não acontece com a minha outra
propriedade para os lados de Arthon. O caseiro está doente e não há meio
de se restabelecer. Não o quero mandar embora, porque é bom homem.
Mas se pudesse enviar-lhe um bom trabalhador para o ajudar, ele
certamente recuperaria, pois a sua doença não passa de cansaço e excesso
de trabalho. Se concordarem, mandarei Landry ajudá-lo até ao final da
época. Não diremos a Sylvinet que E por muito tempo. Dir-lhe-emos, pelo
contrário, que é por oito dias. E depois, passados esses dias,
acrescentaremos mais oito, e por aí fora até se habituar. Sigam o meu
conselho, e deixem de encorajar as fantasias de uma criança demasiado
mimada e que nunca foi contrariada.
O tio Barbeau anuiu ao conselho, mas a tia Barbeau ficou assustada.
Receava que fosse para Sylvinet um golpe fatal. Foi preciso fazer um
acordo com ela! Quis primeiro que tentassem conservar Landry quinze
dias em casa, para saber se o irmão, vendo-o a toda a hora, não se curaria.
Se pelo contrário piorasse, então sim, concordaria com a ideia do tio
Caillaud.
Fez-se assim. Landry veio de bom grado passar os quinze dias a
casa. Mandaram-no chamar sob pretexto de que o pai carecia da sua ajuda
para malhar o resto do trigo, em vista de Sylvinet não poder trabalhar.
Landry pôs em tudo o melhor empenho e bondade para fazer o irmão
feliz. Via-o a toda a hora, ajudava-o nos mais ínfimos préstimos e cuidava
dele como se fosse uma criancinha. No primeiro dia Sylvinet ficou muito
contente; no segundo, afirmou que Landry se aborrecia junto dele, e este
não conseguia tirar-lhe essa ideia da cabeça; no terceiro dia, Sylvinet
encolerizou-se porque o saltão veio ver Landry e este não teve coragem de
o mandar embora; finalmente, ao cabo de uma semana chegaram a uma
triste conclusão: Sylvinet tornava-se cada vez mais injusto, exigente e
ciumento da sua sombra, pelo que decidiram pôr em execução o plano do
tio Caillaud, e, embora Landry não tivesse vontade de ir para Arthon,
meio que lhe era estranho, aceitou tudo o que lhe aconselharam a fazer no
interesse do irmão.
No primeiro dia, Sylvinet ia quase morrendo; no segundo, ficou
mais tranquilo; e no terceiro, a febre abandonou-o. Ao fim da primeira
semana, reconheceram que a ausência do irmão lhe era mais benéfica do
que a sua presença. Encontrava, nos seus raciocínios doentios, um motivo
para estar quase satisfeito com a ausência de Landry. Pelo menos,
pensava, no sítio para onde foi não conhece ninguém e não fará logo
novas amizades; aborrecer-se-á um pouco, pensará em mim e terá
saudades, de modo que, quando voltar, ainda gostará mais de mim.
Havia já três meses que Landry se ausentara, e cerca de um ano que
a pequena Fadette deixara a terra, quando esta teve de voltar
repentinamente, porque a avó paralisara. Tratou dela com grande zelo,
mas, como a idade é um flagelo irreversível, ao fim de quinze dias, a tia
Fadet sucumbiu, entregando a alma sem dar por isso. Três dias após o
enterro e já depois de ter arrumado a casa e deitado o irmão, retirando-se
para dormir, a pequena Fadette ouviu lá fora o canto dum grilo dos
campos. Fanchon pensava no namorado quando bateram à porta,
ouvindo-se uma voz perguntar:
- Fanchon Fadet, estás aí?
Ela precipitou-se a abrir a porta e a sua alegria foi grande quando o
seu amigo Landry a apertou de encontro ao coração.
Landry tomara conhecimento da doença da avó e do regresso de
Fanchon. Não pudera resistir ao desejo de a rever e viera de noite para
regressar ao amanhecer.
Passaram toda a noite a conversar ao canto da lareira, calmamente,
imensamente felizes por estarem juntos e reconhecerem que o amor não
esfriou.
À medida que o dia se aproximava, Landry começava, no entanto, a
não ter coragem de partir e pediu a Fanchon que o escondesse no celeiro,
para que pudesse continuar a vê-la no dia seguinte. Como sempre, ela
chamou-o à razão, dizendo-lhe nomeadamente que já não iam estar
separados por muito tempo, visto estar resolvida a ficar de vez.
- Tenho para isso razões das quais te informarei mais tarde e em
nada prejudicarão a esperança que tenho no nosso futuro. Vai acabar o
trabalho que o teu patrão te confiou, pois que a tua ausência é necessária à
cura do teu irmão.
- Só essa razão me pode decidir a deixar-te - respondeu Landry -,
pois o meu irmão causou-me muitos sofrimentos e receio que me cause
ainda mais. Tu que és tão inteligente, Fanchon, devias encontrar uma
maneira de o curar.
- É o seu espírito que lhe torna o corpo doente. Tem tanta aversão
por mim, que é impossível essa oportunidade de falar com ele e o
consolar.
- E, contudo, tens tanto espírito, falas tão bem, tens um dom tão
particular para convenceres do que queres, que, se falasses com ele, ainda
que por pouco tempo, ele seria sensível ao efeito. Tenta, peço-te! Não te
deixes desencorajar com o seu orgulho e o seu mau humor! Obriga-o a
escutar-te! Faz isso por mim, minha Fanchon, e pelo triunfo do nosso
futuro também, pois a oposição do meu pai não será o mais pequeno dos
obstáculos!
Fanchon prometeu e eles separaram-se, repetindo vezes sem conta,
um ao outro, que se amavam e sempre se amariam.

12
Fadette em casa dos Barbeau
Ninguém soube, na aldeia, que Landry tinha ido visitar Fadette.
Senão, alguém poderia dizê-lo a Sylvinet e este não perdoaria ao irmão
que tivesse vindo ver a rapariga e não ele.
Dois dias depois, Fadette vestiu-se a rigor, pois agora já não andava
sem dinheiro. Atravessou o burgo, e como crescera muito, os que a viram
passar não a reconheceram de imediato. Embelezara consideravelmente
na cidade; mais bem alimentada, ganhara cores e corpo, como convinha à
sua idade, e já não podia ser tomada por um rapaz disfarçado, de tal
modo o seu aspecto era belo e agradável de ver. O amor e a felicidade
haviam-se estampado no seu rosto, e na sua pessoa havia um não sei quê
que se nota mas não se explica. Enfim, não era a rapariga mais bonita do
país, como Landry imaginava, mas a mais graciosa, a mais bem feita, a
mais fresca e talvez a mais sedutora que havia por ali.
Levava no braço um grande cesto e entrou na quinta onde pediu
para falar com o tio Barbeau. Foi Sylvinet quem a viu primeiro e desviou-
se, tal era o desprezo que sentia por ela. Mas ela perguntou- lhe pelo pai
com tanta delicadeza que ele foi obrigado a responder e a conduzi-la à
granja, onde o tio Barbeau estava ocupado a rachar lenha. Como Fadette
lhe pediu para falarem num sítio onde pudessem estar à vontade, ele
fechou a porta da granja e disse que podia dizer-lhe ali mesmo tudo o que
quisesse.
A pequena Fadette não se deixou intimidar pelo ar frio do tio
Barbeau. Sentou-se num fardo de palha, e ele noutro.
- Tio Barbeau, embora a minha família tenha tido queixas contra
vocês e vocês queixas contra mim, não é menos verdade que eu o
reconheço como o homem mais justo e mais honesto da terra. Afinal tudo
isso não passava de pequenos conflitos, e mesmo a minha avó, embora
censurando-vos o orgulho, vos fazia a mesma justiça. Além disso, como
sabe, tenho uma grande amizade pelo seu filho Landry. Ele falou-me
muitas vezes em si e sei por ele, ainda melhor do que por qualquer outra
pessoa, o que é e o que vale. É por isso que lhe venho pedir um favor e
dar-lhe a minha confiança.
- Fala, Fadette - respondeu Barbeau. Nunca recusei auxílio a
ninguém, e se for algo que a minha consciência não me proíbe, podes
contar comigo.
- Eis do que se trata - disse a pequena, erguendo o cesto e colocando-
o entre as pernas do tio Barbeau. - A minha defunta avó ganhou, durante
toda a vida, a dar consultas e a vender remédios, mais dinheiro do que se
pensava; como não gastava quase nada, ninguém podia saber o que ela
tinha num velho buraco da despensa, que me mostrou várias vezes,
dizendo: Quando eu já não existir, é aqui que encontrarás o que eu te tiver
deixado. São os teus bens, assim como os do teu irmão. Se eu vos privo
um pouco agora, é para ficarem com mais um dia. Mas não deixes os
homens da lei tocar nisto, comer-to-iam em impostos. Guarda-o bem
guardado, esconde-o toda a vida, para te servires dele na velhice e nunca
te faltar. Quando a minha pobre avó foi sepultada, obedeci à sua ordem, e
retirei os tijolos da parede no sítio que ela me mostrara. Encontrei lá o que
vos trago neste cesto, tio Barbeau, e peço que o empregue como entender
depois de satisfazer a lei, que eu não conheço, e me preservar dos grandes
impostos, que me assustam.
- Fico-te reconhecido pela confiança, Fadette - disse o tio Barbeau
sem abrir o cesto, embora estivesse cheio de curiosidade -, mas não tenho
o direito de receber o teu dinheiro, nem de zelar pelos teus negócios. Não
sou teu tutor. Sem dúvida, a tua avó deixou algum testamento.
- Não fez testamento nenhum, e a tutora que a lei me dá é a minha
mãe. Ora, bem sabe que não tenho notícias dela há anos, nem sei se está
morta ou viva. Depois dela, não tenho outro parente além da minha tia
Fanchette, que é uma boa e honesta mulher, mas perfeitamente incapaz de
gerir os meus bens e mesmo de os conservar. Não conseguiria evitar falár
neles e mostrá-los a toda a gente, e daí recear que ela os empregasse mal,
pois, coitada, nem sequer os sabe contar.
- Trata-se então de uma coisa importante?perguntou o tio Barbeau.
Realmente, apesar de contrafeito, os olhos não largavam a tampa do
cesto; e pegou nele pela asa para o erguer. Mas achou-o tão pesado que
ficou admirado e disse:
- Isto é quase uma carga para um cavalo.
Fadette, que tinha um espírito levado do diabo, divertiu-se
interiormente com a vontade que ele tinha de espreitar o cesto. Até fez
menção de o abrir, mas o tio Barbeau julgava ser falta de dignidade
permitir que ela o fizesse.
- Isso não me diz respeito. Se não quero tomar conta dele, também
não quero saber o valor.
- Mas é preciso, tio Barbeau - disse Fadette -, que me preste pelo
menos esta ajuda. Não pense que sou mais inteligente que a minha tia, e
só posso confiar em si para me dizer se sou rica ou pobre e saber ao certo a
quantia da doação.
- Está bem - concordou o tio Barbeau, sem se poder conter mais. -
Não quero deixar de prestar-te este serviço.
Então Fadette levantou lentamente a tampa do cesto e tirou dois
grandes sacos, cada um deles contendo dois mil francos em moedas.
- Ora, ora! Bem bom! - exclamou o tio Barbeau. - É um pequeno dote
que te fará desejada por muitos.
- Não é tudo - respondeu a pequena Fadette. - No fundo do cesto,
há ainda uma coisita que não conheço.
E tirou uma bolsa, que despejou no chapéu do tio Barbeau. Havia
dentro dela cem moedas de ouro, que fizeram arregalar os olhos do bom
homem. Quando ele as contou e as meteu novamente na bolsa, ela tirou
uma segunda com o mesmo conteúdo, uma terceira, e depois uma quarta,
finalmente, tanto em ouro como em prata; havia, no cesto, perto de
quarenta mil francos!
Era cerca de um terço a mais do que todos os bens que o tio Barbeau
possuía, e, como a gente do campo tem dificuldade em aforrar, nunca ele
vira tanto dinheiro junto.
Por mais honesto e desinteressado que seja um camponês, não se
pode dizer que a vista do dinheiro não lhe desperte interesse. Assim, o tio
Barbeau, durante um momento, suou frio. Após ter contado tudo, disse:
- Para teres quarenta vezes mil francos, só te faltam meia dúzia de
moedas, o que faz de ti o melhor partido da região, Fadette! O teu irmão, o
saltão, bem pode ser enfezado e coxo toda a sua vida! E poderá visitar as
suas riquezas de carroça! Quanto a ti, ficaste rica e poderás gritá-lo aos
quatro ventos se desejas arranjar depressa um marido.
- Não tenho pressa - respondeu a pequena Fadette -, e peço-Lhe,
pelo contrário, que guarde segredo desta riqueza, tio Barbeau. Tenho o
capricho, feia como sou, de não querer ser desposada pelo meu dinheiro,
mas pelo meu coração e pelo meu comportamento, e como nesta terra não
sou muito bem vista, quero deixar passar algum tempo para que se
apercebam de que se enganam a meu respeito.
- A tua fealdade, Fadette? - perguntou o tio Barbeau, erguendo os
olhos, que ainda não haviam largado o cesto. - Posso dizer-te que te
transformaste tão bem na cidade, que agora és uma rapariga bem atraente.
Quanto ao comportamento, sei que já não mereces essa reserva. Por mim,
aprovo a ideia de ocultares por agora a tua riqueza. Não faltariam rapazes
a quem ela deslumbraria, ao ponto de te pedirem em casamento, e talvez
sem terem por ti o respeito que uma mulher deve esperar do marido.
Agora, quanto ao dinheiro que queres depositar nas minhas mãos, seria
contra a lei e poderia estar a expor-te mais tarde a suspeitas e
incriminações, pois as más-línguas não faltam. E supondo que tens o
direito de decidir do que te pertence, já não o tens de dispor do que
pertence ao teu irmão menor. Tudo o que eu posso fazer é ir consultar
alguém, sem te nomear. Dir-te-ei então a maneira de colocar em segurança
a tua herança e dela tirares bom proveito, sem passar por mãos desleais.
Levas de volta tudo isso para casa e guarda-o outra vez até eu te ter dado
uma resposta.
Era tudo o que a pequena Fadette queria. O tio Barbeau saberia
como havia de proceder. Se se sentia um pouco orgulhosa diante dele, por
ser rica, era porque ele já não a podia acusar de querer lograr Landry.
O tio Barbeau, vendo-a tão prudente e compreendendo como era
esperta, apressou-se a indagar da reputação que ela adquirira na cidade,
onde passara um ano. Embora aquele dote o tentasse e o fizesse esquecer a
sua péssima família, o mesmo não acontecia quando se tratava da honra
da rapariga que desejava ter por nora. Foi portanto ele próprio à cidade
tirar as devidas informações. Foi- lhe dito que ela se comportara tão bem
que não havia a menor censura a fazer-lhe. Estivera ao serviço de uma
velha religiosa nobre, que gostara muito dela pelo seu comportamento,
bons modos e inteligência. Tinha muitas saudades dela e dizia que era
uma perfeita rapariga, corajosa, limpa, cuidadosa e de um carácter tão
amável que nunca mais encontraria outra igual. Como essa velha senhora
era bastante rica, dedicava-se a obras de caridade, no que Fadette a
secundava maravilhosamente no tratamento dos doentes e na preparação
dos remédios. Por isso, a velha senhora ainda hoje a lamentava.
O tio Barbeau ficou muito satisfeito e voltou para Cosse, decidido a
esclarecer a coisa até ao fim. Reuniu a família, encarregou todos os
familiares de procederem a um inquérito discreto sobre a conduta que a
pequena Fadette tivera desde que atingira a idade de mulher, a fim de que
fosse apurado se todo o mal que haviam dito dela só tivesse por causa
infantilidades. Ao passo que, se alguém pudesse afirmar tê-la visto
cometer uma má acção, ele pudesse manter a proibição que fizera a
Landry de a namorar. A investigação foi feita com a prudência desejada e
sem que a questão da herança fosse divulgada, pois ele não dissera uma
palavra sobre isso, nem mesmo à mulher.
Entretanto, Fadette vivia muito retirada e recatada na sua casinha,
onde nada quis mudar, a não ser mantê-la sempre limpa. Vestiu
decentemente o pequeno saltão e alterou a alimentação de todos, e que
surtiu de imediato bom efeito na criança: recuperou francamente e a sua
saúde em breve ficou estável. A felicidade depressa melhora o carácter!
Não sendo mais atormentado e castigado pela avó, só recebendo agora
afagos e bom trato, tornou-se um rapaz gentil, amável e já não
desagradava a ninguém, mesmo sendo coxo.
Por outro lado, operara-se tão radical mudança na pessoa e hábitos
de Fanchon Fadet, que a maledicência acabou, e mais de um rapaz, ao vê-
la passar, ligeira e graciosa, desejava que ela aliviasse luto, para a poder
cortejar e convidá-la a dançar.
Só Sylvinet não mudava de ideias. Desconfiava que alguma coisa se
tramava a propósito dela na familia, pois o pai, agora, falava muitas vezes
dela, e quando ouvia algum elogio a seu respeito, congratulava-se com
isso, no interesse de Landry, alegando não suportar que tivessem
difamado o filho por andar com uma jovem tão inocente.
Também se falava do próximo regresso de Landry, e o tio Barbeau
desejava que o tio Caillaud concordasse. Enfim, Sylvinet apercebia-se que
já não seriam tão contrários ao namoro de Landry, daí que o seu desgosto
voltasse. A opinião, era desde há pouco tempo favorável a Fadette.
Sylvinet continuava a ver nela a rival do seu amor por Landry.
De vez em quando o tio Barbeau deixava escapar a palavra
casamento e dizia que os gémeos não tardariam a estar em idade de
pensar nisso. O casamento de Landry sempre fora uma ideia desoladora
para Sylvinet, o desfecho final da sua separação. Voltaram-lhe as febres e
a mãe consultou uma vez mais os médicos.
Um dia, encontrou a tia Fanchette, a qual, ao ouvi-la lamentar-se, lhe
perguntou porque é que ia a consultas tão longe, gastando tanto dinheiro,
quando tinha ao alcance da mão a curandeira mais hábil de toda a região,
que não exercia por dinheiro, como fizera a avó, mas somente por
bondade e piedade para com o próximo. E nomeou a pequena Fadette.
A tia Barbeau falou nisso ao marido, que não se opôs. Ele disse-lhe
que na cidade, Fadette tivera grande fama e que de todos os lados a iam
consultar. A tia Barbeau pediu então a Fadette que fosse ver Sylvinet,
acamado, e lhe prestasse assistência.
Fanchon procurara mais de uma vez ocasião de lhe falar, como
havia prometido a Landry, mas ele sempre recusara. De sorte que não se
fez rogada e correu a ajudar o gémeo. Sylvinet, febril, dormia. A jovem
pediu à família que os deixassem a sós. Como era costume as curandeiras
agirem em segredo, ninguém a contrariou.
Fadette pousou uma mão sobre a do gémeo, que pendia na beira da
cama; fê-lo tão suavemente que ele nem se apercebeu. A mão de Sylvinet
queimava como fogo. Agitou- se um pouco, mas não a repeliu. Então
Fadette pôs a outra mão sobre a sua testa, também com suavidade, e ele
agitou-se de novo. De verdade, pouco a pouco, foi acalmando, a fronte e a
mão foram refrescando, e o seu sono tornou-se calmo como o de uma
criança. Então, retirou-se do quarto e antes de partir disse à tia Barbeau:
- Vá ver o seu filho e dê- lhe de comer, que já não tem febre. E,
sobretudo, não lhe fale em mim, se quer que o cure. Voltarei de novo à
noite.
A tia Barbeau ficou deveras admirada ao ver Sylvinet sem febre,
apressando-se a dar-lhe de comer, que ele engoliu com apetite. E como
havia vários dias que a febre não o deixava e não conseguira comer nada,
todos se admiraram com o saber extraordinário de Fadette, que, sem o
acordar, teve dons de o pôr no caminho da cura.
À noite, Fadette voltou. Como de manhã, ficou sozinha com ele, não
fazendo outra magia senão segurar- lhe as mãos e a cabeça muito ao de
leve e respirar com frescura junto da sua cara em fogo. E como de manhã,
tirou-lhe o delírio e a febre. Quando se retirou, voltou a recomendar que
não falassem a Sylvinet da sua vinda. Foram dar com ele mergulhado
num sono calmo, já não tendo o rosto vermelho nem parecendo doente.
O certo é que, ao fim de três dias, Fadette livrou Sylvinet da febre, e
ele nunca teria sabido como isso sucedera se, ao acordar um pouco
precipitadamente, não a tivesse visto inclinada sobre ele, exactamente
quando retirava suavemente as mãos.
Primeiro julgou que era uma aparição e fechou os olhos para não a
ver, mas depois, quando perguntou à mãe se Fadette estivera no seu
quarto ou se fora um sonho, a tia Barbeau, a quem o marido revelara
finalmente alguma coisa dos seus projectos, desejando ver Sylvinet
finalmente renunciar à sua aversão por ela, respondeu que, com efeito,
viera três dias seguidos, de manhã e à noite, e que lhe tirara
milagrosamente a febre, tratando dele em segredo.
Sylvinet pareceu não acreditar em nada. Disse que a febre se fora
por ela própria e que as palavras e segredos de Fadette não passavam de
manias e loucuras. Começou a andar mais calmo e de boa saúde durante
alguns dias e o tio Barbeau julgou bom aproveitar a ocasião para lhe falar
na possibilidade do casamento do irmão, sem contudo nomear a pessoa
que tinha em vista.
- Não é preciso esconder-me o nome da noiva que lhe destina -
interrompeu Sylvinet. - Sei muito bem que é essa Fadette, que vos
enfeitiçou a todos.
Com efeito, a investigação secreta do tio Barbeau fora tão favorável
à pequena Fadette, que ele já não estava imbuído da menor hesitação e
desejava imenso poder mandar vir Landry. Só receava agora os ciúmes do
gémeo e esforçava-se por curá-lo dessa mania, dizendo-lhe que o irmão
nunca seria feliz sem a pequena Fadette. Ao que Sylvinet respondia:
- Que assim seja! O meu irmão não pode ser infeliz.
Só que a febre voltou a atacar Sylvinet, apesar dele parecer ter aceite
os factos.
No espírito do tio Barbeau instalara-se a dúvida que a pequena
Fadette guardasse rancor a Sylvinet das injustiças passadas e que, tendo-
se consolado da ausência de Landry, pensasse agora noutro qualquer. Daí
que, quando ela veio a casa tratar de Sylvinet, tentasse falar-lhe de
Landry; mas ela fingiu não ouvir e ele ficou embaraçado.
Para desfazer a confusão que Lhe ia na alma, uma manhã resolveu-
se e foi falar com a pequena Fadette.
- Fanchon Fadet, venho fazer- te uma pergunta à qual te peço que
me respondas com toda a sinceridade. Antes da morte da tua avó, fazias
ideia da grande fortuna que ela te ia deixar?
- Sim, tio Barbeau - respondeu a pequena Fadette. - Tinha-a visto
várias vezes contar o ouro e a prata e ela dizia-me sempre, quando as
outras raparigas troçavam de mim: Não te preocupes com isso, pequena,
serás mais rica do que todas elas e um dia chegará em que poderás andar
vestida de seda dos pés à cabeça, se for esse o teu desejo.
- Falaste nisso a Landry? Não seria por causa do teu dinheiro que
meu filho dizia estar apaixonado por ti?
- Quanto a isso, tio Barbeau - respondeu a pequena Fadette -, sempre
quis ser amada pelos meus belos olhos, que são a única coisa que nunca
ninguém me negou e, portanto não ia ser tão tola ao ponto de contar a
Landry. No entanto, tenho a certeza que poderia tê-lo dito sem perigo,
pois Landry ama-me tão honestamente e tão sinceramente que nunca se
preocupou em saber se eu era rica ou miserável.
- E depois que a tua avó morreu, Fanchon, dás-me a tua palavra de
honra que Landry não foi informado por ti ou por outra pessoa do que se
passou?
- Dou, sim! - disse Fadette. - Tão verdade como eu amar Deus O
senhor é a única pessoa do mundo que tem conhecimento disto.
- E quanto ao amor de Landry, pensas que ele continua a amar-te?
- Oh! Sim! Sem dúvida! - respondeu. - Até lhe confesso que ele veio
ver-me três dias depois do funeral e jurou-me que ou casava comigo ou
morria de desgosto.
- E que lhe respondeste, Fadette?
- Respondi-lhe que ainda tínhamos tempo de pensar em casar e que
não me decidiria facilmente por um rapaz que me fizesse a corte contra a
vontade dos pais.
E como a pequena Fadette dizia aquilo num tom bastante orgulhoso
e desprendido, o tio Barbeau ficou alertado.
- Não tenho o direito de te interrogar, Fadette - disse. - Não sei se
tens intenção de fazer o meu filho feliz ou infeliz para toda a vida, mas sei
que ele te ama muito, e se eu estivesse no teu lugar, com a ideia que tens
de ser amada por ti própria, diria: Landry Barbeau amou-me quando eu
andava vestida de farrapos, quando toda a gente me repelia e quando os
próprios pais procediam mal chamando a isso um grande pecado. Ele
achou-me bela quando toda a gente me repelia; amou-me a despeito dos
sofrimentos que esse amor lhe causava; enfim, amou-me tão bem que não
posso desconfiar dele e que não quero outro para marido.
- Há muito tempo que disse isso a mim própria, tio Barbeau -
respondeu a pequena Fadette.
- Mas, teria grande repugnância em entrar para o seio de uma
família que teria vergonha de mim e só me aceitasse por fraqueza ou
compaixão.
- Se é isso que te impede, decide-te, Fanchon - continuou o tio
Barbeau -, pois a família de Landry estima-te e aceita-te. Não julgues que
mudou de ideias por seres agora rica. Não era a pobreza que nos
repugnava, mas os comentários que faziam de ti. Se tivessem fundamento,
nunca, mesmo que o meu Landry morresse, eu consentiria em te chamar
minha nora; mas quis saber o fundo de verdade dessas maledicências e fui
de propósito à cidade, onde me asseguraram que eras uma pessoa
ajuizada e honesta, tal como Landry afirmava com tanto ardor. Assim,
Fanchon, venho pedir-te que cases com o meu filho e, se concordares, ele
estará aqui dentro de oito dias.
Esta proposta, prevista por ela, deixou Fadette muito contente. Mas,
não quis demonstrá-lo, porque queria ser respeitada para sempre pela
futura família e respondeu cautelosamente. Então o tio Barbeau retorquiu-
lhe:
- Vejo, minha filha, que te ficou no coração alguma coisa contra mim
e contra os meus. Não exijas que um homem de idade te peça desculpa;
contenta-te com uma boa palavra, e quando te digo que serás amada e
estimada em nossa casa, confia no tio Barbeau, que nunca enganou
ninguém. Então queres dar o beijo da paz ao tutor que escolheste, ou ao
pai que te quer adoptar?
A pequena não se conteve por mais tempo; atirou os dois braços ao
pescoço do tio Barbeau, cujo velho coração exultou de alegria.

13
Sylvinet transforma-se num homem
Os acordos fizeram-se rapidamente. O casamento efectuar-se-ia
assim que o luto de Fanchon terminasse. Só faltava mandar chamar
Landry. Mas quando a tia Barbeau foi ver Fanchon nessa mesma noite,
para a abraçar e lhe dar a sua benção, informou-a de que ao saber da
notícia do casamento do irmão, Sylvinet tornara a cair doente e pedira que
esperassem mais dias para ele se restabelecer.
- Cometeu um erro, tia Barbeau - disse a pequena Fadette -, ao
confirmar a Sylvinet que não sonhara ao ver-me a seu lado naquela noite.
Agora o pensamento dele contrariará o meu e já não terei o mesmo poder
para o curar durante o sono. Até é possível que me repudie e que a minha
presença piore o seu mal.
- Não penso assim - respondeu a tia Barbeau -, pois há pouco,
sentindo-se mal, deitou-se e disse: Então onde está essa Fadette? Julgava
eu que me tivesse aliviado. Será que volta? Respondi que vinha buscar-te,
e pareceu contente e até impaciente.
- Já vou - respondeu Fadette. - Só que desta vez tenho de agir de
outra maneira, pois o tratamento resultava quando não me sabia lá.
- E não levas contigo drogas ou remédios?admirou-se a tia Barbeau.
- Não - respondeu Fadette. - O seu corpo não está muito doente. É
com o seu espírito que tenho de lutar. Vamos aguardar pacientemente o
regresso de Landry sem o prevenir, e antes de tudo tentaremos devolver a
saúde ao irmão. Landry recomendou-mo com tanto empenho que sei que
me aprovará por ter propositadamente retardado o seu regresso.
Quando Sylvinet viu a pequena Fadette junto do seu leito, pareceu
descontente e não quis dizer como estava. Ela quis tomar-lhe o pulso, mas
ele retirou a mão e voltou a cara para o lado da parede. Então Fadette fez
sinal para que os deixassem a sós. Quando toda a gente saiu, apagou a luz
e deixou apenas entrar no quarto a claridade da Lua. Depois voltou para
junto de Sylvinet e num tom de comando, ao qual ele obedeceu como uma
criança, disse-lhe:
- Sylvinet, põe as tuas mãos nas minhas e responde- me
francamente, pois eu não me incomodei por dinheiro, e se me dei ao
trabalho de vir curar- te, não é para ser mal recebida e mal agradecida.
Presta atenção ao que te vou perguntar e ao que me vais responder, pois
não te será possível enganar-me.
- Pergunta o que julgares oportuno, Fadette - respondeu o gémeo,
aparvalhado por ouvir falar tão severamente aquela trocista da pequena
Fadette, à qual, em tempos, tantas vezes respondera com pedradas.
- Sylvinet Barbeau - prosseguiu -, é verdade que queres morrer?
Sylvinet hesitou um pouco antes de responder e, como a jovem lhe
pressionava a mão com bastante força, para lhe fazer sentir a sua grande
vontade, disse um tanto confuso:
- Seria o que me poderia acontecer de melhor, morrer, quando vejo
que sou um fardo e um embaraço para a minha família, por causa da
minha má saúde e por causa...
- Conta tudo, Sylvinet, não deves ocultar nada. - devido ao meu
espírito inquieto, que não posso mudar - concluiu o gémeo, acabrunhado.
- E igualmente por causa do teu mau coração - acrescentou Fadette
num tom tão duro que ele sentiu cólera e medo.
- Porque é que me acusas de ter mau coração? - perguntou. - Dizes-
me injúrias, quando vês que não tenho forças para me defender.
- Digo-te verdades, Sylvinet - continuou Fadette -, e vou dizer-te
muitas mais. Não tenho pena nenhuma da tua doença, porque percebo o
suficiente para ver que não é muito séria e que, se outro perigo há para ti,
é o de ficares louco, no que te esforças ao máximo, sem saber para onde te
leva a maldade e a fraqueza de espírito.
- Censura a minha fraqueza - disse Sylvinet -, mas quanto à minha
maldade, é uma censura imerecida.
- Não tentes defender-te - replicou Fadette.
- Conheço-te um pouco melhor do que tu próprio, Sylvinet, e digo-te
que a fraqueza gera a falsidade. Por isso, és egoísta e ingrato!
- Se pensas tão mal de mim, Fanchon Fadet, é sem dúvida porque
Landry andou a dizer-te mal de mim e te mostrou a pouca amizade que
me dedicava, pois, se me conheces, ou julgas conhecer, só pode ser através
dele.
- Era aí que eu queria chegar, Sylvinet! Já sabia que não dirias três
palavras seguidas sem te queixar do teu gémeo e sem o acusar, pois a
amizade que tens por ele, por ser demasiado abstrusa, tende a
transformar-se em despeito e em rancor. Nisso, reconheço-te meio louco e
malsão. Pois bem! Eu digo-te que Landry te ama mil vezes mais do que tu
a ele; a prova é que nunca te censurou seja no que for, por mais que o
faças sofrer, por mais que o tortures, enquanto tu o censuras de tudo,
quando ele não faz outra coisa senão ceder e servir-te. Como queres tu que
eu não veja a diferença entre os dois? Assim, quanto melhor Landry me
falava de ti, pior eu pensava, porque considero que um irmão tão bom só
pode ser menosprezado por uma alma injusta.
- Que ódio me tens, Fadette! Está visto, não me enganei! Bem sabia
que me havias de roubar o amor de meu irmão, dizendo-lhe mal de mim.
- Também não me surpreendes com essa, caro Sylvinet, e rejubilo
por me acusares finalmente. Pois bem! Quero dizer-te que és um
mentiroso sem coração, porque desprezas e insultas uma pessoa que
sempre te ajudou e defendeu, sabendo no entanto que lhe eras adverso.
Uma pessoa que se privou cem vezes do maior e único prazer que tinha
no mundo, o prazer de estar com Landry, para que ele estivesse junto de
ti, dando-te assim a felicidade que retirava a ela própria. E não te devia
nada. Sempre foste meu inimigo confesso, e, tanto quanto me lembro,
nunca encontrei criatura tão dura e altiva como tu eras comigo. Podia ter-
me vingado disso, e ocasiões não me faltaram. E se não o fiz, se paguei
sem saberes o mal com o bem, foi por simples piedade, porque uma alma
cristã deve perdoar ao próximo, em atenção a Deus. Mas, está claro, não
devo falar-te em Deus, não compreendes, és ateu e perverso.
- Consinto que me digas muitas coisas, Fadette, mas é demasiado.
Acusas-me de não amar Deus?
- Não me disseste ainda há pouco que desejavas a morte? Achas que
isso é ideia de católico?
- Não disse isso, Fadette, disse que...
Sylvinet parou, assustado, ao pensar no que dissera.
Mas ela não o deixou tranquilo e continuou a admoestá-lo:
- É possível que as tuas palavras não correspondam ao pensamento,
pois parece-me que não desejas tanto a morte como te agrada fazer crer, a
fim de controlares a família, de atormentares a tua pobre mãe, que anda
desolada, e o teu gémeo, que é suficientemente ingénuo para acreditar que
queres acabar com a tua vida. Eu não sou parva, Sylvinet. Acho que tens
medo da morte como qualquer outro e que brincas com o medo que fazes
àqueles que te amam. Agrada-te ver que as resoluções mais sensatas e
necessárias cedem sempre perante a ameaça que fazes de morte. É, com
efeito, extremamente cómodo e agradável bastar dizer uma palavra para
todos se dobrarem à tua volta. Desse modo, és senhor de todos. Mas como
isso é contra a Natureza, e logra-lo através de meios que Deus reprova, és
pois castigado, tornando-te ainda mais infeliz do que serias se obedecesses
em vez de mandar. E estás tu aborrecido com uma vida repleta de
facilidades! Vou dizer-te o que te faltou para seres um bom e sensato
rapaz: teres tido uns pais mais rudes, muita miséria, e falta de pão todos
os dias com pancada muitas vezes. Se tivesses sido educado na mesma
escola que eu e o meu irmão, em vez de seres ingrato, estarias agradecido
pela menor coisa. Olha, Sylvinet, não te desculpes com o facto de seres
gémeo. Sei que se falou bastante dessa amizade de gémeos e de uma lei
dita natural, que os faria morrer se a contrariassem, e tu acreditaste
obedecer ao teu destino levando essa amizade ao extremo. Fica sabendo
que Deus não é assim injusto, que nos marque com uma má sorte no
ventre das nossas mães. Isso não passa de superstição. Nunca, a menos
que sejas louco, acreditarei que não possas combater os teus ciúmes, se
quiseres. E de verdade tu não o queres, porque te mimaram demasiado.
Segues a fantasia e renegas o teu dever.
Sylvinet não respondeu. Deixou Fadette repreendê-lo durante muito
tempo sem lhe dar réplica. Sentia que ela, no fundo, tinha razão e só não
era indulgente num ponto, que era o de estar convencida que ele nunca
tentara combater o mal, isto é, que nunca se dera conta do seu egoísmo.
Isso penalizava-o e humilhava-o. Ele desejaria poder dar-lhe uma ideia
mais agradável da sua consciência. Quanto a ela, sabia que exagerava e
fazia-o com o intento de o culpabilizar antes de o cativar pela doçura e
consolo. Esforçava-se por lhe falar duramente e parecer encolerizada,
quando, na realidade, sentia tanta piedade e amizade por ele que a farsa a
deixava quase doente.
A verdade é que Sylvinet não estava tão doente como parecia e se
comprazia em fazer crer. A pequena Fadette, ao tomar-lhe o pulso,
verificara em primeiro lugar que a febre não era muito forte, e se ele
estava um pouco delirante, era porque o espírito estava mais doente e
mais enfraquecido do que o corpo. Decidiu portanto dominá-lo pelo
espírito, fazendo-o ter receio dela.
De manhã cedo voltou para junto dele. Contou-lhe que não dormira
nada, mas estava tranquilo, embora um pouco abatido. Assim que a viu,
estendeu-lhe a mão.
- Porque é que me ofereces a tua mão, Sylvinet? - perguntou. - É
para ver a febre? Vejo pela tua cara que já não a tens.
Sylvinet, envergonhado por ter de retirar a mão que ela não quisera
apertar, disse:
- É para te desejar os bons dias, Fadette, e para te agradecer todo o
trabalho que tens por mim.
- Nesse caso, aceito os teus cumprimentos - disse ela, pegando-lhe
na mão e conservando-a na sua -, pois nunca rejeito uma cortesia e não te
julgo tão falso que mostres interesse por mim sem o sentir.
Sylvinet sentiu um grande bem-estar, e disse-lhe num tom muito
suave:
- No entanto, ontem à noite trataste-me com aspereza, Fanchon, e
não sei como é que não te tenho raiva. Até acho muita bondade tua vires
visitar-me, depois de todas as censuras que me fizeste.
Fadette sentou-se junto da cama e falou-lhe de um modo
completamente diferente do da véspera. Empregou tanta bondade, tanta
doçura e ternura, que Sylvinet sentiu um alívio e um prazer indescritíveis.
Chorou amargamente, confessou todos os erros e pediu-lhe o seu perdão e
a sua amizade com tanto amor e honestidade que ela reconheceu que ele
tinha o coração melhor que a cabeça. Deixou-o desabafar, e quando quis
retirar a mão, ele reteve-a, pois parecia-Lhe que aquela mão o curava da
doença e do desgosto ao mesmo tempo.
Ela deixou-o desabafar e depois ordenou:
- Agora vou-me embora e tu vais levantar-te, Sylvinet. Já não tens
febre e não deves aceitar mimos, enquanto a tua mãe se fatiga a servir-te e
perde tempo a fazer-te companhia. Em seguida vais comer o que a tua
mãe te prepara. É carne! Eu sei que não gostas muito e que preferes
legumes, mas agora tens de esforçar-te, e mesmo que não te agrade, não o
dês a entender. Tua mãe sentirá enorme prazer e alívio nisso. Adeus.
Espero que não me mandem chamar tão cedo por tua causa, pois sei que
não ficarás doente, se quiseres!
- Então não voltas esta noite? - perguntou Sylvinet. - Eu que julgava
que sim!
- Não sou médica, Sylvinet, e, bem vês, tenho mais que fazer do que
tratar de ti, que não estás doente.
- Tens razão, Fadette, mas o desejo de te ver, e sem que isso seja
egoísmo, é grande! Sinto enorme alívio em falar contigo!
- Não és inválido e sabes onde moro. Não desconheces que vou ser
tua cunhada e amiga. Portanto, podes muito bem ir conversar comigo,
sem que nisso haja algo de repreensível.
- Irei, visto que aceitas! - disse Sylvinet. Até breve, Fadette! Vou
levantar-me, embora esteja com uma grande dor de cabeça, por não ter
dormido.
- Vou tirar-te essa dor de cabeça - disse ela -, mas será a última vez e
ordeno-te que durmas melhor na próxima noite.
Pôs-lhe a mão na testa e, passados cinco minutos, ele sentiu-se tão
refrescado e tão consolado, que deixou de sentir qualquer dor.
- Ainda bem que te falei na dor de cabeça, Fadette, pois, de verdade,
és boa curandeira e sabes lidar com a doença. Se eu te disser que as outras
só me fizeram mal com as drogas! Ao menos, tu, é só tocares-me! Se
pudesse estar sempre contigo, nunca andaria doente! Mas diz-me, Fadette,
já não estás zangada comigo? Acreditas em mim, quando digo que
seguirei os teus conselhos?
- Acredito! - respondeu ela. - E, a não ser que mudes de ideias, amar-
te-ei como se fosses meu irmão. Bom, e agora vamos, Sylvinet; levanta- te,
come, conversa, passeia e dorme. São ordens, ouviste? Amanhã
trabalharás.
- E irei ver-te - acrescentou Sylvinet.
- Está bem - anuiu ela, despedindo-se e lançando-lhe um olhar de
amizade e perdão, que lhe deu subitamente força e vontade de saltar da
cama para fora.
A tia Barbeau estava verdadeiramente maravilhada com a
habilidade da pequena Fadette e, à noite, disse ao marido:
- Sylvinet está melhor do que nunca. Comeu tudo o que lhe servi,
sem fazer as caretas do costume, e ainda mais extraordinário, fala de
Fadette como se fosse um ente superior. Está desejoso do regresso e do
casamento do irmão. Que milagre! Até já duvido se estou a dormir ou
acordada!
- Milagre ou não - respondeu o tio Barbeau -, essa rapariga tem
grandes dons e deve dar sorte tê-la na família.
Sylvinet partiu daí a três dias, indo buscar o irmão a Arthon. Pedira
ao pai e a Fadette, como uma grande recompensa, que o deixassem ser o
primeiro a anunciar-lhe o seu casamento.
- Que boas notícias me chegam ao mesmo tempo! - exclamou Landry
caindo louco de alegria nos seus braços. - És tu que me vens buscar e
pareces tão contente como eu!
Regressaram juntos sem pararem no caminho, e em Cosse não
houve família mais feliz do que aquela, quando se sentaram à mesa para
jantar com a pequena Fadette e o pequeno Jeanet entre eles.
A vida decorreu-lhes agradavelmente durante meio ano.
A jovem Nanette ficou noiva do jovem Caillaud, que era o melhor
amigo de Landry. Ficou resolvido que as duas bodas se fariam na mesma
altura.
Sylvinet tomara por Fadette uma amizade tão grande, que não fazia
nada sem a consultar; e ela tinha sobre ele tanto poder, que ele parecia
olhar para ela como para uma irmã. Já não estava doente e os ciúmes
haviam desaparecido. Se por vezes ainda parecia triste e sonhador,
Fadette reprendia-o e imediatamente ficava sorridente e comunicativo.
Os dois casamentos realizaram-se no mesmo dia. Como os meios
não faltavam, as bodas foram fartas e requintadas, de tal sorte, que o tio
Barbeau normalmente de sangue-frio, não conseguiu, nos três dias, deixar
de se impressionar e até perturbar. Nada estragou a alegria de Landry e
de toda a família e até da terra, pois as duas famílias, que eram ricas, e a
pequena Fadette, que o era tanto como os Barbeau e os Caillaud juntos,
convidaram toda a gente. Fanchon tinha o coração demasiado bom para
não pagar o mal com o bem a todos os que a haviam julgado mal. E
quando Landry comprou uma bela propriedade, que governava o melhor
possível com o seu saber e o da mulher, ela mandou construir uma linda
casa, a fim de recolher todas as crianças infelizes da terra, durante quatro
horas todos os dias, as quais ela própria, com o irmão Jeanet, se
encarregou de instruir e de ensinar a verdadeira religião e até de socorrer
os mais necessitados. Recordava-se de ter sido uma criança infeliz e
desamparada e as belas crianças que deu à luz foram ensinadas desde
cedo a serem amáveis e sensíveis aos que não eram ricos nem acarinhados.
Mas que aconteceu a Sylvinet no meio daquela felicidade familiar?
Uma coisa que ninguém conseguiu compreender e deu muito que pensar
ao tio Barbeau.
Cerca de um mês após o casamento do irmão e da irmã, quando o
pai o aconselhava também a procurar e a arranjar mulher, respondeu que
não sentia inclinação nenhuma pelo casamento, mas que queria, desde há
algum tempo, ser soldado e alistar-se.
Toda a gente ficou admiradíssima com tal resolução, para a qual
Sylvinet não dava outra justificação senão a de um capricho e o gosto por
coisas militares, que, com surpresa, nunca ninguém lhe conhecera.
Cada um dos membros da família tentou dissuadi-lo da ideia, e
foram até forçados a fazer apelo a Fanchon, a melhor conselheira da
família.
Ela conversou duas longas horas com Sylvinet, e quando se
separaram, viu-se que os dois haviam chorado. Contudo, pareciam
tranquilos e tão resolutos, que não houve mais objecções quando Sylvinet
persistiu na sua resolução e Fanchon a aprovou, dizendo que só iria fazer-
lhe bem.
Landry ficou desesperado, mas a mulher disse-lhe:
- É a vontade de Deus e o dever de todos, deixar partir Sylvinet.
Acredita que sei o que digo e não me perguntes mais nada.
Landry acompanhou o irmão até onde pôde, e quando lhe entregou
a trouxa, que quisera levar até ali ao ombro, pareceu-lhe que entregava o
seu próprio coração. Voltou para junto da mulher, que teve de tratar dele,
pois durante um mês o desgosto tornou-o verdadeiramente doente.
Quanto a Sylvinet, caminhou até à fronteira, pois era o tempo das
grandes guerras do imperador Napoleão. E embora nunca tivesse tido o
menor gosto pelo estado militar, impôs-se tão bem que rapidamente foi
notado como bom soldado, bravo na batalha como homem que procura o
ensejo de morrer, mas no entanto brando e obediente à disciplina, ao
mesmo tempo que duro com o próprio corpo. De tal modo que, em dez
anos de coragem e de conduta exemplar, tornou-se capitão, recebendo a
medalha da Legião de Honra.
- Ai se ele pudesse finalmente voltar - exclamou a tia Barbeau para o
marido na noite do dia em que haviam recebido uma carta cheia de amor
para eles, para Landry, para Fanchon e finalmente para todos os novos e
velhos da família. - Está quase general e já era tempo de descansar um
pouco.
- O posto que tem já é bem bonito, sem precisar de o aumentar -
disse orgulhosamente o tio Barbeau -, e não dá menos honra a uma família
de camponeses.
- Fadette bem previra que a coisa aconteceria - continuou a tia
Barbeau. - É bem verdade que o anunciou.
- Em todo o caso - disse o pai -, nunca conseguirei perceber como é
que a opinião dele mudou tão repentinamente e como se deu semelhante
mudança no seu espírito, ele que era tão tranquilo e amigo das suas
comodidades.
- Marido - respondeu a mãe -, a nossa nora sabe mais do que quer
dizer, mas não se engana uma mãe como eu e creio que sei tanto como
Fadette.
- Nesse caso já é tempo de mo dizeres!exclamou o tio Barbeau.
- Pois bem - replicou a tia Barbeau -, a nossa Fanchon é demasiado
feiticeira, ao ponto de ter enfeitiçado Sylvinet mais do que desejaria.
Quando viu que o feitiço operava com demasiada força, quis refreá- lo,
mas não conseguiu. O nosso Sylvinet, vendo que pensava demasiado na
mulher do irmão, partiu com grande honra e virtude, no que Fanchon o
apoiou e aprovou.
- Se é assim - disse o tio Barbeau, coçando a orelha -, receio bem que
nunca venha a casar, pois a curandeira disse um dia que quando ele se
enamorasse de uma mulher deixaria de ter tanta amizade pelo irmão, e
que só amaria uma na vida, porque tinha o coração demasiado sensível e
apaixonado.

FIM

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