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A CIDADE DOS SONHOS

BARBARA CARTLAND

Coleção Barbara Cartland nº 68

Título Original: “The Frightened Bride”


Copyright: © Cartland Promotions 1975
Copyright para a língua portuguesa: 1983 Abril S.A. Cultural e Industrial — São Paulo
Composto e impresso em oficinas próprias

Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos, de fãs para fãs.
Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente proibida.
Cultura: um bem universal.

Digitalização:

Revisão: Crysty

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— Enfim, estou livre de seu maldito dinheiro! Seraphina olhou para o marido,
aterrorizada, e viu seus sonhos de amor desmoronarem. Não era segredo para
ninguém que Kelvin só havia casado com ela por causa de sua fortuna. Mas depois de
terem passado por tantos perigos juntos, a caminho da Índia, achava que ele
aprendera a gostar um pouquinho dela. Agora, a morte do tio sovina transformava-o
em duque e herdeiro. E a ela, numa esposa indesejada. Por amor a Kelvin, Seraphina
tomou a única decisão possível: desaparecer para sempre da vida dele. Mesmo
correndo o risco de morrer sob o sol escaldante das planícies indianas, cheias de feras
e cobras!
Obs.: a versão em língua inglesa teve 2 capas diferentes.

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CAPÍTULO I

1886

— Não! — disse o duque de Uxbridge, ríspido.


Na pálida luz de inverno que atravessava as janelas de sua casa
londrina, ele parecia muito velho, murcho e mirrado.
— Por favor, escute-me, antes de se decidir — implorou o homem
sentado à sua frente.
O contraste entre os dois era chocante.
O major Kelvin Ward, conhecido como o homem mais elegante do
exército britânico, estava à paisana. Ao observar seu perfil bem talhado, seus
ombros largos, via-se que ficaria ainda mais imponente de uniforme militar.
— Se lhe dá alguma satisfação, estou pronto a escutar o que tem a
dizer — respondeu o duque —, mas minha resposta será a mesma.
— Quero que compreenda a minha posição — disse Kelvin Ward. —
O senhor sabe que a doença prolongada de minha mãe e as várias operações
custaram mais do que cinco mil libras e que tive que recorrer a agiotas para
arranjar o dinheiro.
— Espero que não ache que eu seja o responsável por tal coisa.
— Minha mãe era sua cunhada, casada com seu único irmão —
respondeu Kelvin, calmamente.
— Se meu irmão tivesse um pingo de juízo, não arranjaria uma
mulher e filhos que não podia sustentar.
Kelvin Ward apertou os lábios com força. Era evidente que estava se
controlando para não brigar com o tio.
— Um ano depois, como o senhor sabe, houve um incidente muito
desagradável, envolvendo meu irmão.
— Um falsário vigarista! — disse o duque, sarcástico.
— Geoffrey não era falsário nem vigarista! Fraco, isto sim. Caiu nas
mãos de inescrupulosos que o encorajaram a jogar.
— Os bobos e o dinheiro nunca andam juntos! — O duque deu sua
risada alta e sem nenhuma alegria.
— Admito que Geoffrey estava completamente fora de si, quando
falsificou um cheque com o nome de um oficial amigo. Se este oficial fosse

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um cavalheiro, teria aceitado meu dinheiro e encerrado o caso.
— Em vez disto, chantageou você, pois não?
— O incidente todo me custou dez mil libras — respondeu Kelvin.
— Pedi sua ajuda, na ocasião, e o senhor se recusou.
— Claro que recusei! — respondeu o duque, zangado. — Acha que
vou jogar meu dinheiro fora com parentes sem um pingo de honestidade ou
decência?
— Está me incluindo nessa acusação?
O tio hesitou, percebendo que havia ido longe demais.
— Encontrei o comandante supremo há um mês, mais ou menos.
Parece que ele tem você em alto conceito.
— Fico agradecido! — disse Kelvin, com uma pequena inclinação de
cabeça.
— Aparentemente, não sabia de sua intenção de deixar o regimento.
— Não tinha outra saída. .Como acabei de explicar, devo quinze mil
libras, e, nos dias de hoje, mesmo na Índia, é impossível para um oficial viver
sem seu soldo.
— Você já sabia disto, quando jogou fora dez mil libras, tirando
aquele marginal do seu irmão da prisão, lugar bem merecido para ele.
— Geoffrey foi morto em ação de grande bravura na fronteira
noroeste. Não vejo por que difamar sua memória. Só sei que me alegro por
ninguém ter tomado conhecimento dessa bobagem, a não ser algumas poucas
pessoas, como o senhor. O nome de família ainda é honrado, tanto em casa
quanto no regimento.
— Um discurso bombástico, cheio de palavrório — zombou o
duque. — Mas palavras bonitas não enchem a barriga nem os bolsos, como
você mesmo já deve ter percebido!
— A situação é a seguinte… — continuou Kelvin Ward.
Falava no tom de voz calmo, sem emoção, de um homem resolvido
a não perder a paciência, por mais provocado que fosse. Seus olhos
acinzentados, no rosto queimado de sol, pareciam de aço cortante, ao encarar
o tio, mas não demonstrava de maneira nenhuma estar lutando pelo seu
futuro.
— … deixei o regimento, pois, além de não ter condições financeiras
para continuar, cheguei a uma idade em que é preciso pensar no futuro, no
meu futuro.
— Pensei que ia esperar minha herança.
— Fiz meus cálculos. Imaginando que o senhor viva mais uns

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quinze ou dezoito anos, estarei muito velho para começar uma nova carreira.
— Sorriu, irônico, e acrescentou: — E, do modo pelo qual vão as coisas,
morrerei de fome, enquanto espero sua morte.
— Isso é problema seu!
— No entanto — continuou Kelvin —, é costume, na maioria das
famílias nobres, emprestar alguma coisa ao herdeiro para que ele não se
endivide até o pescoço, contando com um dinheiro futuro.
Havia muita ironia na voz dele, e o duque disse:
— É o seu caso, suponho?
— Dívidas eu tenho, sem dúvida. Mas nunca consegui nem
conseguirei o que realmente preciso. O senhor proclama sua penúria aos
quatro ventos, de modo que os agiotas me consideram um mau risco.
— Pelo menos tentou?
— Claro que sim! A única razão pela qual consegui levantar as cinco
mil libras para tratar de minha mãe foi acharem que um dia seria seu
herdeiro. No caso, precisei de um avalista. Não encontrei outro.
— Sugiro que procure outros meios para levantar a quantia que
deseja.
— É exatamente isso o que estou tentando fazer, senhor. Se me
escutar, só por um instante…
— Você já gastou um tempo enorme para chegar ao ponto — disse o
duque, ríspido.
— Tomarei o menor tempo possível. Tenho alguns amigos em
Bombaim que estão comprando dois navios de carga. Como o senhor sabe, o
transporte de mercadorias entre Índia, Inglaterra e o resto da Europa tem
aumentado de ano para ano.
— Não estou cego e surdo. Ainda sei o que acontece no mundo.
— Então, com certeza, tem seguido o noticiário do The Times e do
Morning Post. Acredito que, atualmente, esse tipo de transporte seja a maneira
mais honesta e rápida de se fazer dinheiro.
— Ah, então é essa sua idéia!
— Com cinco mil libras, poderia me tornar um acionista, muito
pequeno, é claro, dessa companhia que vai se formar. Pretendem reinvestir os
lucros, ano após ano, até comprarem toda uma frota de cargueiros.
— Muito interessante! — disse o duque — desejo toda a sorte no seu
novo negócio.
— Sabe o que estou pedindo, senhor.
— Já lhe dei minha resposta. Não quero jogar meu dinheiro em

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projetos. O pouco que tenho. Uma ninharia, na verdade...
— Mas o senhor acabou de dizer que a idéia era boa!
— … uma ninharia, na verdade — continuou o duque, como se não
o ouvisse. — E é claro que não vou desperdiçá-la com jovens imprudentes
que só sabem montar num cavalo de guerra e sair por aí, matando nativos
indefesos, sem uma arma para se defender!
Kelvin Ward engoliu as palavras que estavam na ponta da língua.
Lutara dois anos na fronteira noroeste, onde as tribos combatiam com armas
russas e tática guerrilheira. A Inglaterra pagara um tributo enorme, um
incontável número de vidas perdidas. Era muito difícil ouvir o tio falar
daquela maneira, mas havia aprendido que perder o controle era geralmente
fatal.
— A única coisa que peço — continuou, com voz completamente
sem expressão — é que me empreste dinheiro em bases estritamente
comerciais. — O duque ficou quieto, e ele continuou: — O senhor receberá
um dividendo anual, exatamente como se tivesse comprado ações da Bolsa de
Valores. Tenho confiança absoluta em que, depois do nosso primeiro ano de
comércio, já lhe poderei pagar uma boa parcela do empréstimo. Ou talvez
toda a quantia.
— Você é um otimista!
— Vai me ajudar?
— Não! Não tenho o dinheiro!
Kelvin Ward ficou mudo por uns instantes. A vontade era de dizer
ao tio exatamente o que pensava dele, mas sabia que o resultado seria apenas
uma cena nada digna. E o que lucraria com isso?
Afinal, nunca chegara a contar realmente com a ajuda do duque, que
já havia recusado seus pedidos anteriores, feitos quase de joelhos, quando a
mãe estava para morrer.
Jamais se esqueceria da amargura, da tristeza apertando o peito, ao
sair de Uxbridge, com a voz metálica do tio ressoando nos ouvidos: “Não
tenho nada a ver com mulheres doentes e sobrinhos pobretões!”
Kelvin estava desesperado, e só levantando o dinheiro com agiotas,
a altíssimos juros, é que proporcionou a lady Ronald Ward um pouco de
conforto na morte.
A lembrança o fez levantar-se, cheio de dignidade.
— Se essa é a última palavra, senhor, não há mais nada que eu possa
fazer para convencê-lo.
— Nada! — concordou o duque. — Poderia ter economizado seu

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tempo e empregá-lo melhor, se fosse martelar essas grandiosas idéias em
outros ouvidos!
Nem tão grandiosas!, pensou Kelvin, ao olhar em torno do
escritório, grande, confortável. Tinha certeza de que, se houvesse uma chance
de procurar entre as prateleiras de livros, encontraria primeiras edições
extremamente valiosas adquiridas por seus antepassados. Reparou nos
retratos de duques de Uxbridge pintados por artistas famosos. Apesar de não
querer que o tio vendesse coisa alguma, era difícil acreditar em sua alegada
pobreza, cercado de tantas preciosidades.
Na verdade, os tapetes estavam meio ralos e as bainhas das cortinas
de damasco, rasgadas; e os uniformes dos lacaios, molambentos, mas isto não
queria dizer nada. O tio era famoso por ser pão-duro e vítima de não poucas
caçoadas e anedotas.
Será que está mentindo, quando se diz quase falido?, perguntou-se
Kelvin. Era uma dúvida que lhe rondava a cabeça há muitos anos, desde que
seu pai morrera e ele se tornara o futuro herdeiro do título.
O tio não lhe daria jamais uma informação sobre a fortuna da
família e nunca lhe ofereceu nem sequer a hospitalidade comum entre
parentes. Nunca lhe haviam dado sequer um copo de vinho em Uxbridge
House.
Assim mesmo, voltara da Índia um pouco otimista. Quem sabe, pelo
menos uma vez na vida, o tio o ajudaria? Para um começo de vida?
Havia sido uma tristeza deixar o regimento. Mesmo agora, quase
não suportava se lembrar dos soldados que treinara e comandara, sem sentir
uma dor no coração que era como uma ferida. Incomodava pensar na vida da
cantina e saber que não mais veria seus camaradas.
Havia abandonado a carreira no Exército, como explicou ao tio, só
porque tinha que encarar a realidade dura e fria: não podia viver de seus
honorários. Afundar-se cada vez mais em dívidas era contra seu caráter, seu
código de comportamento, seus princípios.
Decidira tornar-se um comerciante e estava bem certo de que sua
ética de honra e integridade não era exatamente a de qualidades ideais para
fazer fortuna. Mas o tornava um sócio mais do que desejável, para os tais
amigos de Bombaim.
— Você é exatamente o homem de que precisamos — tinha dito um
deles. — As pessoas confiam em você imediatamente, e isto é muito
importante para os negócios.
Bem, acabara a oportunidade de ingressar nesse mundo. Todo seu

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futuro parecia negro e, naquele exato momento, não tinha a menor idéia de
como resolveria a situação.
Deixou Uxbridge House depois de um educado adeus ao tio, sem
rancor nem inimizade.
— Quantos anos me deu? Quinze? — caçoou o duque, numa
alfinetada final. — Tentarei viver mais vinte e cinco, só para implicar com
você, Kelvin! Seria um erro jogar minhas poucas economias em suas mãos
desajuizadas…
Kelvin Ward sabia que aquilo era provocação do tio para que ele
reagisse agressivamente, coisa de que poderia se arrepender depois. Não lhe
deu a satisfação de uma resposta. Ao contrário, curvou-se, deixou Uxbridge
House, sentindo no rosto o ar gelado de Mayfair, e foi caminhando na direção
de seu clube em St. James.
Concentrado nos pensamentos, não percebia que todas as mulheres
pelas quais passava viravam a cabeça para ver aquela bonita figura de
homem. Havia uma tal força em sua personalidade, que era imediatamente
notado em qualquer lugar.
Ao chegar ao clube, Kelvin entrou na Sala Medieval e jogou-se
numa funda e cômoda cadeira de couro. Quebrava a cabeça pensando no que
faria para continuar sócio de lá, se nem o dinheiro da mensalidade tinha.
Precisava de um drinque… mas nem sequer um drinque podia pagar. Que
decadência!
— O que há Kelvin? Parece abatido, deprimido — falou uma voz
familiar. Era sir Anthony Fanshawe, que sentou na cadeira ao lado.
— Não pareço. Estou abatido, deprimido, melancólico, triste.
— O que aconteceu?
— Estive conversando com meu tio.
— Ah, mas aquele pão-duro deixa qualquer um desesperado. Tenho
certeza de que recusou toda e qualquer ajuda.
— Acertou. Nem um tostão! E foi muito positivo a respeito.
— E você esperava que a reação dele fosse outra? Meu pai, que o
conheceu a vida inteira, comentava que se o duque passasse por uma estrada
e visse alguém se esvaindo em sangue para morrer, não pararia, se isto lhe
custasse algum dinheiro. Pelo contrário, passaria correndo.
— Seu pai tinha razão.
— E o que vai fazer? — perguntou sir Anthony.
— Não tenho a mínima idéia!
— Quer beber alguma coisa?

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— Você pagando…
— Até aí eu chego — disse o amigo, com um sorriso, e fez sinal para
o garçom.
Uma hora depois, estavam ainda sentados na mesma sala e tinham
exaurido todas as possibilidades, discutido todas as saídas, e ainda não
haviam descoberto onde arranjar o dinheiro de que Kelvin Ward precisava
com tanta urgência.
— Acho que fui um idiota! — disse ele, de repente. — Outros
homens voltam da Índia uns nababos, balançando as bolsas tilintantes de
ganhos indignos. Há ótimas maneiras de se fazer dinheiro lá! Como você bem
sabe, Anthony. —
— Não imagino você participando de negociatas.
— Os mendigos não podem ter orgulho — disse Kelvin, amargo.
— Se você, principalmente você, tivesse entrado nesse tipo de coisa,
o regimento inteiro se ressentiria. Sabe disto tão bem como eu.
— Foi por causa deles, mesmo, que não me rebaixei. Mas isto não
me ajuda nada, no momento.
— Vamos encontrar uma saída. Temos que encontrar. Se eu tivesse o
dinheiro, lhe daria, você sabe, não sabe?
Kelvin Ward sorriu.
— Você é um grande amigo, Anthony, mas, desgraçadamente,
também está endividado. Se pelo menos eu conseguisse entrar nesse negócio
de navios de carga, levaria você comigo.
— Deve existir alguém que possa ajudar. — A testa de sir Anthony
estava até franzida, de tanto pensar.
— Já corri e bati em todas as portas. Fiquei fora de Londres muito
tempo e perdi contato com a maioria das pessoas que conhecia bem. E ser
sobrinho do duque não ajuda nem um pouquinho.
Os dois sabiam que o duque tinha mais inimigos do que qualquer
outro homem do país. Ninguém gostava dele. Todos censuravam a
mesquinharia com que tratara o irmão, o pai de Kelvin, que havia sido muito
querido. E o pior foi deixar a cunhada morrer sem a mínima ajuda. Todo
mundo tinha uma queixa ou uma história para contar contra o duque. Nunca
contribuíra para uma instituição de caridade. Tratava os empregados com
tamanha avareza, que chegou até a ser denunciado nos jornais.
Além de miserável, era também vingativo e rancoroso. A verdade
pura é que não tinha um único amigo no mundo.
— O que vai fazer hoje à noite? — perguntou sir Anthony, quando a

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conversa parou por falta de mais idéias de onde arranjar dinheiro.
— Não posso fazer nadai Fui um tonto, gastando o pouco que
trouxe da Índia. Devia ter ficado lá e procurado um emprego decente e bem
pago.
—Não existem muitos homens como você — comentou sir Anthony,
melancólico.
Ambos sabiam que era verdade. Seria impossível imaginar Kelvin
Ward tornando-se um funcionário na Companhia das Índias ou escrevente de
uma firma comercial.
— Que inferno! Vamos tomar um drinque! — disse sir Anthony. Um
garçom aproximou-se deles, mas não respondendo ao chamado.
Estendeu uma salva de prata para Kelvin Ward, com uma carta. Ele
a olhou, surpreso.
— Quando chegou?
—Acabaram de trazer, senhor. Um criado está esperando a resposta.
Sir Anthony olhou o envelope branco com curiosidade e caçoou com
o amigo.
— Alguma bela sedutora deve ter ouvido falar de sua chegada a
Londres.
Kelvin Ward nem respondeu. Estava lendo a carta com a cara mais
intrigada do mundo.
— Diga ao criado para esperar um pouco — ordenou ao garçom.
— Pois não, senhor.
O homem se afastou, e Kelvin disse:
— Você sabe alguma coisa sobre sir Erasmus Malton?
— Foi ele quem lhe escreveu?
— Foi. Mas não estou entendendo nada.
— O que diz a carta?
Kelvin entregou a folha de papel caro ao amigo. Sir Anthony leu:
“Sir Erasmus Malton apresenta seus cumprimentos ao major Kelvin Ward e
solicita uma entrevista sobre o assunto de grande interesse para o major.”
— Mas que diabo significa isto? — perguntou Kelvin.
— Olhe aqui, qualquer coisa que sir Erasmus possa fazer para você
seria vantajosa.
— Parece que já ouvi este nome, mas não consigo localizá-lo…
— Sir Erasmus é um dos homens mais ricos da Inglaterra —
informou o amigo. — Ao mesmo tempo, é um mistério. Ninguém sabe ao
certo como enriqueceu, mas que tem muito dinheiro é inegável. E está em

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todas. O ouro brilhou, pode apostar que sir Erasmus anda por perto.
— É um homem fino? Um cavalheiro?
— Na verdade, não sei, mas acho que sim. Nunca me disseram o
contrário. Não freqüento a roda dele, que é de magnatas e milionários.
— O que pode querer comigo?
— Acho que vai lhe oferecer um emprego…
— Como? Nunca me viu! Pensando bem, já ouvi mesmo falar dele.
Não só aqui na Inglaterra, mas também na Índia. Não consigo me lembrar
quais foram os comentários.
— Com certeza, disseram que é rico como Creso — disse sir
Anthony. — Ouvi meu primo, o secretário do Exterior, falando dele. Por
sinal, impressionou-se muito com a figura de sir Erasmus. Vou descobrir
mais coisas, quando ele voltar de Paris.
— Enquanto isso, preciso responder a este bilhete.
— E o que está esperando? Aceite o convite. Mal não vai fazer.
Chegue perto do dinheiro, que algum pozinho de ouro pode grudar no seu
casaco!
Kelvin Ward olhou o relógio sobre a lareira.
— Respondo que estarei lá dentro de uma hora? Vai parecer que
estou me convidando para o jantar.
— Pelo menos, não terá que pagar uma refeição — respondeu sir
Anthony, lacônico.
— Isso já é um bom motivo para me fazer aceitar o convite. —
Kelvin riu.
Levantou-se e se encaminhou para a escrivaninha. Escreveu umas
poucas linhas, fechou o papel no envelope e pediu ao garçom que o levasse
ao criado que esperava lá fora.
— Os dados estão lançados — disse, ao voltar para perto do amigo.
— Que armadilhas estará me preparando o destino?
— Talvez descubra que sir Erasmus não é nada menos que o seu
padrinho desaparecido. Tornará você seu herdeiro e desaparecerá numa
nuvem de fumaça!
— Não podia bem ser verdade, mas desconfio de que tudo não
passa de um baile beneficente onde terei que arrastar uma debutante
desajeitada pelo salão.
— Deus o livre! — disse sir Anthony, compungido. — Amém! Pouco
mais de uma hora depois, Kelvin Ward estava sendo levado
para dentro de uma biblioteca duas vezes maior e cem vezes mais

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impressionante do que aquela onde conversara com o tio, à tarde.
Tinha ido a Malton House, em Park Lane, sem saber muito bem o
que esperar. O nome da mansão havia sido mudado há dez anos, quando sir
Erasmus a comprara. Antes disso, pertencia a um nobre que, no leito de
morte, se esqueceu do pequeno detalhe de deixar dinheiro bastante para que
os herdeiros pudessem manter o padrão de vida luxuoso que a casa exigia e
ao qual estavam acostumados.
Kelvin Ward percebeu logo que uma grande quantia devia ter sido
gasta na redecoração, na compra de mobília e de quadros para uma casa bem
maltratada pelos antigos moradores. Admirou o belo teto pintado do
vestíbulo, do qual pendiam gigantescos candelabros, as valiosas pinturas nas
paredes que faziam o encanto de qualquer conhecedor de arte. Seus olhos
estavam arregalados de surpresa, muito antes de encontrar o anfitrião.
Kelvin Ward havia sido treinado, no exército, para observar
detalhes, e nada lhe escapou, desde a grossura do tapete da biblioteca ao
veludo genovês das cortinas e os objetos de arte únicos e autênticos que
enfeitavam as mesas.
E o dono de tais preciosidades era bem mais impressionante do que
seu tio. Sir Erasmus Malton tinha uma personalidade diferente e forte, traços
refinados, maneiras educadas.
Kelvin, que esperava por um novo-rico, um magnata grosseiro saído
da sarjeta para a corte, surpreendeu-se agradavelmente com seu firme aperto
de mão e sua voz culta.
— Foi uma gentileza sua aceitar meu convite com tanta presteza,
major Ward. — Sir Erasmus apontou para uma cadeira, em frente à lareira
finamente trabalhada em mármore. — Fez boa viagem, da Índia para a
Inglaterra?
— O navio não estava cheio. Por isso, não precisei ser muito
sociável…
— O que é uma bênção em navios, não é?
Auxiliado por dois criados, o mordomo ofereceu a Kelvin diferentes
tipos de vinho e sanduíches de patê sobre um manto verde de agrião, em
pratos de cristal lavrado.
Quando os empregados saíram, sir Erasmus disse:
— Deve estar imaginando por que o chamei.
— Confesso que minha curiosidade é bastante grande.
— Vai se surpreender muito, quando souber o que tenho a dizer.
Venho seguindo sua carreira há muitos anos, major.

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Kelvin ficou intrigado.
— Mas como? Por quê?
— Ouvi falar sobre o senhor e quis saber mais. Sei tudo sobre sua
gloriosa carreira no exército, sobre suas condecorações e a admiração que os
oficiais superiores têm por sua coragem e dedicação. Obrigado. É sempre
bom escutar elogios, mas não posso imaginar que isto seja do seu interesse.
— Já chego lá. Quero que o senhor perceba que lhe dediquei muitas
horas. Também estou a par de como salvou seu irmão da cadeia e da desonra.
Kelvin endireitou-se na cadeira. Estava realmente confuso e
perturbado, ao saber que um estranho conhecia a história da desonestidade
de Geoffrey. Tinha feito tudo para que o caso não transpirasse e…
— Como soube disso?
— Sempre sei tudo sobre as pessoas que me interessam. Também sei
que seu irmão se reabilitou completamente, apagando qualquer mancha do
passado.
— Obrigado.
— O seu comportamento, num incidente tão desagradável, foi de se
louvar. E foi muita coragem sua deixar o regimento por saber que não
poderia se manter dentro dele.
— Como pode… como pode saber tanto sobre mim?
— E sei mais. Que voltou para a Inglaterra com a esperança de
convencer seu tio a financiar seus projetos comerciais.
— Não posso imaginar como… — Kelvin começou, mas foi
interrompido pelo outro.
— Também acho que acertei, ao presumir que seu tio se recusou a
ajudá-lo.
— Bem, para isso não é preciso ser vidente! — disse Kelvin, com voz
fria.
— Acho que, portanto, não tem planos imediatos para o futuro.
— Quando seu bilhete chegou ao clube, eu estava justamente
conversando com um amigo e tentando achar uma solução para meus
problemas.
— Foi por isso que o chamei. Tenho uma proposta a lhe fazer, major
Ward, uma proposta extremamente interessante.
— Nem é preciso dizer, sir Erasmus, que estou interessado em
qualquer coisa que possa me ajudar.
O velho parou por uns instantes, como escolhendo as palavras. Ao
mesmo tempo, Kelvin sentia que ele estava completamente seguro e com o

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comando total da situação. Não restava dúvida de que era um homem
extremamente inteligente e astuto. Havia um não sei quê, em sua testa larga,
nos olhos expressivos e mesmo no modo de andar, que sugeria liderança.
Poderia comandar um império.
Só de olhá-lo, Kelvin sentiu que ele poderia chegar onde quisesse,
apesar de todas as dificuldades. Havia um halo de força e poder à sua volta
que até amedrontava. Aquele homem chegaria à crueldade, se assim o
quisesse.
— Andei me informando sobre o senhor por uma razão muito
especial — disse sir Erasmus. — Não foi só curiosidade. E fiz as mesmas
pesquisas sobre vários rapazes de sua idade. — Sua voz estava firme, ao
continuar: — Sem querer envaidecê-lo, major, considero-o, no momento
presente, o rapaz mais promissor de nossa sociedade.
— Da sociedade? — Kelvin perguntou, com um sorriso. — Não é
bem o meu forte. Estive fora da Inglaterra nos últimos quatro anos. Mesmo
quando morava aqui, nunca tive muito jeito para a vida social e mundana. Ao
contrário, sempre me considerei um fracasso.
— Estamos falando de coisas diferentes. Estou me referindo a status
social, situação social. O senhor é da nobreza, sua família faz parte da história
e herdará o título de duque.
— Grande coisa! Não tem me ajudado muito.
— Mas, quando seu tio morrer, será, sem dúvida, o duque de
Uxbridge!
Kelvin Ward não respondeu, e sir Erasmus continuou:
— Não só por causa disto, mas porque considero seu caráter, sua
personalidade e seu comportamento exemplares, poderei ajudá-lo
consideravelmente no projeto que tem em mente.
— É muita bondade sua. Como o senhor sabe de tudo, deve saber
que estive com meu tio hoje e lhe pedi um empréstimo em bases comerciais,
que me foi negado. Cinco mil libras. Isso me permitiria entrar como pequeno
acionista numa companhia de dois navios que pretende começar a funcionar
com sede em Bombaim.
— Sei de tudo. Mas não são cinco mil libras que ofereço, e sim,
trezentas mil.
— Kelvin Ward prendeu a respiração.
— O senhor não está brincando?
— Não. Não estou pregando uma peça em ninguém. É negócio
sério. Mas há uma condição, claro.

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— Qual?
— Que você case com minha filha.
Só se escutava o tique-taque do relógio da biblioteca. Silêncio
completo. Então, Kelvin perguntou, perplexo:
— Está falando sério?
— Pareço um brincalhão? Devo explicar ao senhor que, além de ser
um homem persistente e objetivo, planejo as campanhas nas quais me
envolvo até os menores detalhes. — Respirou fundo, acendeu um cachimbo e
continuou: — Quero que saiba que escolheria o futuro marido de minha filha
com o cuidado e a intuição que ponho em qualquer grande negócio. Só posso
dizer que foi o único homem que considerei seriamente para apresentar esta
proposta.
— Fico encantado e envaidecido, mas o senhor não está sendo
precipitado? Talvez, se eu pudesse encontrar a jovem em questão, se
gostássemos um do outro, se combinássemos de alguma maneira… quem
sabe, as coisas aconteceriam naturalmente, segundo o senhor as planejou?
Falava com muito cuidado para não ofender sir Erasmus, mas
chocado com a idéia que lhe tinha sido apresentada tão inesperadamente.
Nunca lhe passara pela cabeça escutar de um homem da projeção de sir
Erasmus uma sugestão tão fantástica e absurda. Além do mais, não tinha a
menor intenção de casar; quanto mais com uma mulher que não havia
escolhido.
Porém, era muito esperto e teve o cuidado de não ofender sir
Erasmus, que parecia, estar sendo sincero e que poderia ajudá-lo muito, se
estivesse disposto.
— Achei que era importante — disse o velho — que voltasse
imediatamente para a Índia com o dinheiro, pois os sócios lhe haviam dado
um prazo. Acabado o tempo, passariam a procurar outras pessoas.
— O senhor tem razão, mas é difícil acreditar no que me sugere.
Casar com alguém que nunca vi e que poderá me odiar à primeira vista!
— Parece que não conhece a atração que exerce sobre as mulheres —
disse sir Erasmus, soltando baforadas de fumaça que se enrascavam acima de
sua cabeça..— O que não posso acreditar, major, é que seja tão obtuso a ponto
de não perceber as vantagens que o casamento com minha única filha
acarretaria.
Kelvin Ward não respondeu, e ele continuou:
— Se acha que ela não tem estirpe para ser uma futura duquesa,
deixe-me contar-lhe alguma coisa sobre nós.

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— Isso não seria necessário.
— Eu consideraria extremamente necessário, se estivesse em seu
lugar. Como já lhe disse, em negócios, cada pequeno detalhe é de grande
importância. Quero, portanto, dar-lhe informações sobre meus ancestrais,
pois nada tenho que me envergonhe. — Olhou para os retratos que cobriam
as paredes. — Os Malton estão em Yorkshire desde o século XVI e são donos
de grandes propriedades. Minha mulher era filha do duque de Kilkenny.
Quando casamos, ela poderia ter tomado seu lugar na sociedade, que, tendo
em vista minha fortuna, nos aceitaria de braços abertos. — Havia um tom
irônico na voz de sir Erasmus. — Mas minha mulher tinha a saúde muito
delicada e não gostava de festas e jantares. Contentava-se em morar no
campo e lá ficava, quando eu vinha tratar de negócios em Londres. Ao
morrer, deixou-me sozinho para cuidar de nossa filha. — Por um instante,
pareceu que a emoção tocava seu rosto severo, mas logo recobrou o
equilíbrio. — Seraphina tem agora dezoito anos. Foi educada do modo que
minha mulher determinou, com tutores e governantas. Viveu uma vida calma
e simples. — A voz ficou mais dura. — Não tenho a menor intenção de vê-la
perseguida por caça-dotes.
— Não, é claro que não — murmurou Kelvin, sentindo que
precisava falar qualquer coisa.
— Há uns cinco anos, resolvi que, quando Seraphina chegasse à
idade de casar, eu escolheria seu marido. As mulheres se encantam, ficam
fascinadas pelos homens menos adequados! Especialmente as mocinhas. Não
quero ver milha filha seduzida e minha fortuna dissipada por algum Romeu
ambicioso!
— Posso compreender perfeitamente, sir Erasmus.
— Pareceu-me sensato escolher o homem para administrar minha
fortuna depois que eu morresse.
— E a sua filha não tem direito ou não quer escolher o marido que
lhe agrade?
— Meninas não devem ser consultadas nesses casos. Têm muito
pouco a dizer.
Kelvin Ward sabia que este era o costume. Se a moça de sociedade
recebia uma boa proposta ou era escolhida por um bom partido, acabava
empurrada inevitavelmente para o casamento, gostasse ou não do
pretendente.
Houve um silêncio, e sir Erasmus perguntou:
— E então?

16
Preciso dar minha resposta agora?
— Talvez eu deva lhe mostrar uma coisa, antes.
Levantou-se e andou a passos largos até uma grande escrivaninha,
no meio da sala. Era plana, de superfície brilhante, e sobre ela havia um
tinteiro de ouro. O major reconheceu nele um belo exemplo de habilidade dos
artesãos do reinado de Charles II. Apreciou a peça com interesse, analisando
a delicadeza das linhas, enquanto sir Erasmus tirava uns papéis da gaveta e
os espalhava sobre a mesa.
Kelvin olhou-os rapidamente e ficou pasmo.
— Onde conseguiu isso?
— Comprei. Os agiotas geralmente têm um preço para essas coisas.
Kelvin engoliu as palavras que lhe vinham à boca. Era incrível!
Não estava em débito com quem pensava, mas com sir Erasmus
Malton! À sua frente, estavam os recibos assinados por ele, e outros papéis
mostravam o juro exorbitante e as datas em que teria que pagar cada conta.
— Logo que concordar com minha sugestão — disse sir Erasmus —,
jogarei estes papéis no fogo.
— E se eu não concordar? O velho parou e pensou.
— Quer que eu diga? Mesmo?
Não havia necessidade. Estava sendo ameaçado, e era uma das
piores sensações que já havia experimentado. Via o adversário como um
homem implacável e tão decidido a levar a cabo seu intento que nada o faria
recuar.
Kelvin estava consciente do que significava para ele ir à falência. E
sir Erasmus tinha o poder de conseguir isto, simplesmente exigindo que
resgatasse a dívida. O nome da família seria desonrado. Teria que se retirar
dos clubes a que pertencia e não encontraria mais os poucos amigos que
tinha. Suas oportunidades de entrar no mundo dos negócios acabariam por
completo.
Até na Índia, os comerciantes olhavam com suspeita os homens
falidos, mesmo que fossem de alta linhagem. E ele próprio detestaria carregar
este estigma.
Pela segunda vez no mesmo dia, Kelvin Ward lutava para controlar
seus sentimentos. Pela segunda vez, disse a si mesmo que nada ganharia
perdendo a cabeça. Mas começava a sentir um ódio selvagem.
Detestava ser manipulado. Detestava mais que tudo no mundo não
ter liberdade de escolha, não ser seu próprio patrão, seu dono. Inacreditável-
mente, estava entre duas possibilidades terríveis: uma, casar com uma

17
mulher que nunca vira e tornar-se genro de um homem que já lhe
desagradava; a outra, encarar a falência e suas conseqüências.
Passou-lhe pela cabeça a idéia de procurar de novo o tio. Mas não
havia mais nenhuma esperança. O duque tinha deixado a cunhada morrer
sem levantar um dedo para salvá-la. Não iria tirar um tostão do bolso para
impedir a bancarrota do sobrinho.
Sentiu-se completamente cercado por um inimigo poderoso e não
conseguiu escapar.
— O senhor me perguntou agora mesmo — continuou sir Erasmus
— se queria sua resposta de imediato. Quero!
Kelvin olhou para a mesa e para as provas de suas dívidas. Sir
Erasmus observava-o, com um leve brilho de cinismo nos olhos duros.
Deu graças aos céus, quando sua voz saiu calma e segura:
— Como o senhor sabe, não tenho alternativa: vou casar com sua
filha!

18
CAPÍTULO II

Kelvin Ward olhou em torno da enorme sala de jantar de Malton


House, com angústia e amargura. Já ao se levantar, sentira uma antecipação
de raiva e mal-estar, ao se lembrar de que era o dia de seu casamento.
Seria difícil esquecer tal coisa, pois havia passado os últimos três
dias num corre-corre de preparativos para a data.
Não podia acreditar, até então, que sir Erasmus lhe tivesse pedido
para casar dentro de três dias, depois daquela primeira conversa. E no dia
seguinte estariam partindo, ele e a mulher, para a Índia! Bem que o sogro lhe
dissera que tomaria conta de todos os detalhes, de todas as minúcias, mas,
realmente, era uma obsessão! Tudo estava planejado, dirigido, ordenado e
arrumado, como se a vida fosse uma imensa conta de somar, de cujas
parcelas ele se encarregaria e cujo total devia dar certo, custasse o que
custasse.
Depois do minuto em que disse “vou casar com sua filha”, uma
enorme máquina se pôs em movimento, monstro de precisão e eficiência. A
primeira providência de sir Erasmus foi apanhar as contas e recibos da
escrivaninha, atravessar a sala e jogar tudo no fogo.
Kelvin não sentiu alegria ao ver as chamas destruindo suas dívidas.
Estava consciente de que simplesmente passava das mãos dos agiotas para
garras muito mais afiadas e malhas mais envolventes. Não haveria de ser
fácil escapar daquelas unhas tenazes.
Foi difícil explicar a Anthony Fanshawe, que esperava por ele no
clube, o desgosto violento que sentia, a náusea que o envolvia, ao se lembrar
de que teria que casar contra a vontade com uma desconhecida. E tudo isso
por dinheiro! O que fazia a coisa parecer infame.
— Kelvin, por que está se queixando? Há algumas horas, era o
homem mais infeliz do mundo e agora este mundo lhe cai aos pés!
— Não consigo imaginar coisa pior do que casar com a filha de um
homem com o qual antipatizo e estou a ponto de odiar, e cujo único interesse
em mim é a expectativa de que um dia serei duque.
— Eu casaria com a própria Medusa, se ela trouxesse um dote de
trezentas mil libras e a possibilidade de mais alguns milhões!
— Foi só o que pedi.

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— Acho que está cheio de preconceitos em relação a seu futuro
sogro, e isto não é nada próprio de você, Kelvin. Toda a vida, eu o conheci
justo e imparcial, e agora desanda a falar mal de quem não conhece!
— Talvez eu tenha passado a vida tentando resolver problemas dos
outros, e seja difícil agüentar que alguém venha pôr fim aos meus problemas
como se eu fosse um rato numa gaiola. Não dá para ser objetivo. Estou
mesmo confuso, atrapalhado. Um rato numa gaiola…
Nos dois dias que se seguiram, repetiria muitas vezes esta
comparação.
Teve que visitar sir Erasmus na manhã seguinte e encontrou vários
advogados com ele. Mostraram-lhe de que se compunha a fortuna de
Seraphina, as ações, os investimentos. E todo este dinheiro lhe seria dado
para administrar a seu bel-prazer, depois que casasse.
Surpreendeu-se ao ver que sir Erasmus não exerceria nenhuma
autoridade sobre o dote, mas que ele, como marido, teria todos os direitos
legais.
— É isto que minha filha possui — disse sir Erasmus. Kelvin leu
atentamente os documentos apresentados.
— Tenciono separar a soma de um milhão de libras — continuou o
futuro sogro — para tomar um fundo para os filhos deste casamento. Cada
um entrará na posse de sua parte aos vinte e cinco anos. Enquanto isso, você
será o único administrador.
— Seria melhor que o senhor mesmo gerisse esses bens — sugeriu
Kelvin.
— Já resolvi este assunto. Se não o considerasse competente para
lidar com grandes somas, não o teria escolhido.
Não havia mais nada a dizer e Kelvin calou-se. Ao mesmo tempo,
sentia-se de pés e mãos atados. Quanto mais era informado sobre a fortuna
do velho, mais atônito ficava. Como podia alguém se envolver em negócios
pelo mundo todo? Parecia um polvo, amontoando lucros com tentáculos que
se esgueiravam pelos lugares mais absurdos.
Onde houvesse um lucro a ser atingido, lá estava sir Erasmus.
Agora, olhando à volta, na sala de jantar onde mais de cem pessoas
saboreavam um fantástico banquete de casamento, Kelvin Ward imaginava
quantos milhões estariam ali representados.
Quando sir Erasmus lhe contou que o casamento deveria se realizar
no terceiro dia após se conhecerem, achou seus motivos sensatos.
— O vapor Tiberius sai de Tilbury para Bombaim daqui a quatro

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dias — disse ele. — Reservei para vocês a suíte nupcial. O navio é o menor e o
mais confortável dos que partem na semana que vem.
Não havia nada a fazer, senão concordar. Imaginou que isto
significava um casamento sem festas. Afinal, mal haveria tempo para a noiva
fazer as malas, quanto mais convidar uma multidão para a cerimônia.
Só se esqueceu de um pequeno detalhe: sir Erasmus. Telegramas
urgentes foram despachados. Lacaios distribuíram os convites escritos pelos
secretários, e as confirmações chegaram aos montes.
Quando o velho lhe mostrou a lista de convidados, Kelvin Ward
ficou perplexo com a importância deles, não apenas no mundo das finanças,
mas no Parlamento e na sociedade. Não havia, é verdade, ninguém da roda
do príncipe de Gales. Mas da lista constavam estadistas, membros famosos
da Câmara dos Lordes e da Câmara dos Comuns, e, enquanto o primeiro-
ministro, marquês de Salisbury, recusava o convite por estar excessivamente
ocupado, sua mulher havia confirmado que iria.
Além desses, Kelvin notou que todos os grandes banqueiros, os
financistas, aqueles em que os governos europeus se apoiavam quando
necessário, estariam presentes. Um ausente importante era o duque de
Uxbridge, mas Kelvin recebeu um cartão dele. Constava de duas palavras:
“Que golpe!”
A maioria dos convidados trouxe as mulheres, mas havia de fato
mais homens sentados às mesas longas, enfeitadas de orquídeas. A comida
estava magnífica. Pratos tão exóticos e tão caros, que só um deles alimentaria
a família de um operário comum, luxuosamente, por um mês.
Os presentes não se cansavam de admirar o suntuoso banquete e as
decorações magníficas. A liberdade de sir Erasmus no casamento da filha não
conheceu limites. Uma graciosa fonte de ouro maciço de metro e meio de
altura e um de diâmetro chamava a atenção na mesa principal. Dela jorravam
quatro tipos de deliciosos vinhos que caíam em grandes conchas de
madrepérolas. Daí, pingavam em recipientes e eram servidos aos convidados
em conchas de ouro puro.
Kelvin tinha lido, perplexo, a lista dos ingredientes usados para o
banquete: faisões, codornas e perdizes vindos das propriedades de sua futura
mulher, no campo. Grandes quantidades de frutas, legumes e verduras,
assim como camarões, ostras, trufas italianas e enormes uvas de estufa para
serem usadas como decoração.
As codornas seriam servidas recheadas com patê de fígado de
ganso, cercadas por ostras, cogumelos, tomates e croquetes. A etiqueta exigia

21
dez ou doze pratos. Para refrescar o paladar e, na teoria, ajudar a digestão,
entremeavam-se os pratos salgados com sorvetes de frutas.
O cardápio colocado à frente de Kelvin e escrito à mão, com letras
douradas, o deixava enjoado. Já haviam passado pela sopa, pelo salmão ao
molho de lagosta, as costeletas de carneiro com ervilhas. Provava de tudo um
pouco, pois, como noivo, era alvo de todos os olhares. Via ainda que já, já
chegariam os frangos à Toulouse, os presuntos ao vinho Madeira e o rosbife.
Respirou fundo e teve saudade da comida rústica do regimento.
Os vinhos, no entanto, não podiam ser melhores. Sentindo que a
bebida aliviaria a depressão que o envolvia como uma neblina, bebeu mais
do que era seu costume.
Mas nada adiantava. Nada podia acabar com a indignação que lhe
subia à cabeça, a raiva que não conseguia esquecer e que fazia tudo difícil.
Não se concentrava no que as pessoas diziam, e seus olhos nem foco tinham.
Estava vendo tudo embaralhado, não por causa da bebida, mas do ódio e da
frustração.
Soube que o banquete chegara ao fim por causa do gosto de doce na
boca. Sobremesas. As letras do menu dançavam à sua frente: “Bombas de
chocolate e café, gelatina em mosaico, salada à italiana”.
Mordeu uns biscoitinhos com tanta força que teve até medo de
quebrar os dentes.
Não havia acreditado que sir Erasmus falava a verdade, depois de
apresentar os investimentos e a fortuna de Seraphina, ao informá-lo de que só
veria a noiva no altar.
— Espero ter o prazer de conhecer a srta. Malton hoje — Kelvin
tinha dito, logo ao chegar, com toda a cortesia.
— Seraphina está no campo — respondeu o pai — e só voltará a
Londres na noite anterior ao casamento.
— Não a encontrarei antes disso?
— Não. Se quiserem trocar idéias, posso ser o intermediário.
— Mas é uma loucura…
Engoliu as palavras de protesto. Era melhor deixar tudo por conta
de sir Erasmus, pensou. Tratava-se de um ditador, e nada do que sugerisse ia
fazê-lo mudar de planos.
Acabou desabafando toda sua raiva com sir Anthony:
— Aquele homem não tem alma! Pode imaginar um pai obrigando a
filha a casar com um desconhecido?
— Acredito que a moça está pronta a acreditar em tudo o que o pai

22
lhe contar sobre o noivo. Você é um homem muito bonito, Kelvin, e agrada
extraordinariamente às mulheres.
Era verdade, e Kelvin nem tentou desmentir.
Poderia ter fingido não saber que as mulheres o adoravam e que
bastava se interessar por uma para ser imediatamente correspondido. Tinha
tido muitos casos de amor, a maioria com mulheres casadas ou viúvas.
Sofisticadas, engraçadas, inteligentes, sabiam fazer o jogo, de um flerte
provocante a uma paixão forte, mas discreta.
— Que diabo vou dizer a uma menina que mal saiu das fraldas?
— Não posso ajudar. Tenho pavor de crianças. Nunca converso com
meninas, se posso escapar — respondeu sir Anthony.
—Nem me lembro da última vez que dancei com uma; muito menos
se jamais conversei com bicho dessa espécie.
— Mas há punhados de meninas casadoiras na Índia — comentou o
amigo. — São chamadas a “Frota das Pescadoras”.
— É mesmo. — Kelvin sorriu. — E eu, que nunca pensei em ser
pescado por uma, pois fugia delas como o diabo foge da cruz! — Sorriu
amarelo. — Acabei sendo fisgado por um pescador muito esperto e
experiente!
— Anime-se! Vamos lá! — disse sir Anthony. — Talvez não seja tão
horrível como pensa. Pelo menos, a menina deve ser inteligente, se parecer
um pouquinho com o pai.
— Exatamente por isso. Morro de medo que se pareça com ele.
Preferia enfrentar um exército de amazonas à srta. Seraphina Malton.
Kelvin tinha certeza de que uma das razões da pressa de sir Erasmus
em dar o nó final era medo de que, na última hora, ele encontrasse um meio
de escapulir.
Na verdade, só pensava num meio de escapar. E sabia que era
impossível. Onde encontrar quinze mil libras para pagar a dívida queimada,
mas que ainda era um compromisso de honra? E, se não tivesse dinheiro para
investir no projeto dos navios mercantes que o esperava em Bombaim, onde
encontraria emprego ou dinheiro para sobreviver?
— Não há nada que eu possa fazer, a não ser me comportar com
dignidade. — Foram suas últimas palavras, enquanto se preparava para o
casamento.
Todas as resoluções do mundo, porém, não impediam que odiasse
cada momento que vivia, o sogro e, pior ainda, a noiva que nem conhecia.
Não foi possível saber qual era a aparência da moça, quando,

23
finalmente, ele a viu caminhando, de braço com o pai, pela nave da capela
Grosvenor. Estava convencionalmente vestida de branco, trazia um buquê de
orquídeas brancas que davam -a impressão de exagero e opulência, e tinha o
rosto coberto por um véu de rendas. O véu estava preso por uma
resplandecente tiara de diamantes que exibia seu valor um tanto
vulgarmente.
Do ponto de vista do noivo, foi realmente o casamento mais barato
do mundo. Achou que compraria pelo menos o anel de noivado, mas recebeu
um recado de sir Erasmus, informando que Seraphina ia usar o anel da mãe.
Estava numa caixa de veludo, pronto para ser entregue à noiva.
Os presentes de casamento, a maioria de grande valor, não paravam
de chegar a Malton House. Kelvin olhava-os superficialmente, porque era
preciso que o fizesse, em nome da boa educação, e os secretários de sir
Erasmus passavam o dia escrevendo os agradecimentos.
O brilho deles era tão frio e impessoal como o próprio casamento.
As baixelas de ouro e prata, os talheres de vermeil, os cristais
transparentes e finos, a prataria reluzente, as caixas de marfim e madre-
pérola não prometiam uma casa acolhedora e amiga.
As jóias com rubis muito vermelhos, as esmeraldas engastadas em
ouro branco, os presentes pessoais dirigidos ao noivo não evocavam também
um casal feliz e bonito.
Kelvin não tinha nada a fazer, senão concordar com os planos de sir
Erasmus. Nem se espantou, quando, ao deixarem a capela, viu que o sogro
iria com eles na carruagem nupcial. O percurso até Malton House não levava
mais que três minutos. Kelvin ficou imaginando o que haveria por detrás da
decisão de sir Erasmus de não deixar que o casal trocasse nem uma pequena
palavra, sem que ele estivesse presente.
Na verdade, o único a falar era o próprio sir.
— Foi uma bela cerimônia. Acho que minha escolha das orações foi
muito adequada, e os hinos, que também escolhi, muito bem cantados pelo
coral.
Kelvin queria perguntar se ele também havia dado ordens a Deus
para que os abençoasse, mas tinha suas dúvidas quanto ao humor do sogro e
preferiu se calar.
Em Malton House, os noivos ficaram em pé no salão, diante de um
enorme vaso de lírios exóticos e perfumados, recebendo os convidados, que o
mordomo anunciava, em voz alta e solene. Kelvin começou a olhar,
interessado, aqueles cujos nomes só conhecia das manchetes de jornais ou da

24
página financeira.
Sir Erasmus resolvera que a cerimônia de casamento seria às quatro
da tarde, seguida de um banquete.
Alguns minutos depois dos discursos e dos brindes, Kelvin
percebeu que a noiva não estava mais a seu lado. Quando foi pedir
explicações, o sogro disse apenas:
— Minha filha está com dor de cabeça e pede desculpas.
—Deve estar exausta com a provação — respondeu, automática-
mente.
Para ele havia sido uma experiência que não repetiria por nada no
mundo. O choque de saber que teria que casar à força, os preparativos
apressados, tudo parecia um sonho, completado por um banquete em que
não via nem ouvia ninguém. Tinha comido sem sentir o gosto e casado quase
sem saber que casava. Ou com quem. Música, cheiro de flores, muitas figuras
vistosas e brilhantes e uma imagem de branco… só ficara isso em sua
lembrança. Além do cansaço.
As mulheres deixaram a sala e os homens acenderam os charutos. A
festa acabou como acabam os jantares, com os homens discutindo os assuntos
que mais lhe interessavam ou se divertindo com anedotas picantes.
Kelvin viu sir Anthony dando uma gargalhada com alguma coisa
que lhe contaram, mas, para ele, só havia tristeza, desapontamento e aquela
raiva que o dominava há dias.
Finalmente, os últimos convidados se despediram e o próprio sir
Erasmus se retirou.
Achara absurdo que o genro e a filha saíssem de sua casa para
passar a noite num hotel desconfortável. Teriam que partir para Tilbury às
dez horas da manhã seguinte, e seria bobagem ficarem num ambiente
desconhecido até a hora da partida.
Quem saiu de casa foi o próprio sir Erasmus, para passar a noite
com um de seus amigos ricos e influentes, cuja mansão enfeitada e suntuosa
também ficava em Park Lane.
Fique aqui ou não, pensou Kelvin, já quase histérico, sua influência e
a atmosfera que ele cria permanecem!
Não podia imaginar nada menos romântico do que uma noite de
núpcias no museu… ou melhor, no mausoléu… no qual o sogro tinha
plantado, indelevelmente, para todo o sempre, sua personalidade
dominadora. Mas o que adiantava argumentar? Perderia sempre. Ficou
quieto, mais uma vez.

25
Só havia um pensamento bem-vindo. Só um. Do dia seguinte em
diante, não estaria mais por perto do velho. Era o êxtase!
Logo haveria um continente e um oceano a separá-los, e Kelvin já
decidira que não voltaria à Inglaterra, senão quando fosse novamente dono
de seu nariz. Continuaria fora, até se tornar independente das ordens de sir
Erasmus. O mais longe que pudesse.
Suspirou de alívio, quando a porta se fechou atrás do velho, e ficou
sozinho, a não ser pela companhia de vários lacaios no grande vestíbulo de
mármore.
Devagar, cansado e triste, começou a subir a escada para a suíte
preparada para o casal. Já tinha visto seu quarto, muito imponente e bem-
arranjado. Dava para um quarto de vestir que se abria para °s aposentos de
Seraphina.
No ar pairava o cheiro dos lírios e dos cravos. O tapete sob seus pés
era grosso e felpudo. Em seu quarto, um criado o esperava. Queria agora ficar
sozinho e, mesmo quando a porta se fechou atrás do criado, sentiu-se ainda
no meio de uma multidão, tenso e aborrecido.
Foi então que a raiva acumulada há três dias e controlada
cuidadosamente subiu-lhe à cabeça. Sentiu-se afogueado, tonto. Nunca havia
passado por uma tortura semelhante. Tinha sido possuído pelo demônio de
sir Erasmus. De corpo e alma. Quem era ele agora? Uma marionete puxada
pelo sogro. Abaixe a cabeça! Levante! Passo à frente, passo atrás! Dance!
Case!
Kelvin Ward era muito orgulhoso e extremamente inteligente. Sabia
que precisava tirar o que houvesse de bom naquela situação. Tinha que
pensar; tinha que se controlar para tomar as rédeas; mas cada gota de seu
sangue se rebelava contra o fato de ter sido forçado a uma posição que o
humilhava e rebaixava sua condição de homem honesto.
Sempre havia sido um líder. Desde a escola, os colegas o
respeitavam e seguiam. Inspirava confiança e obediência. Outro homem
qualquer poderia aceitar tranqüilamente a situação. Mas acontecer com ele,
Kelvin Ward! Sua personalidade forte recusava-se a aceitar aquilo. Era
realmente intolerável. Fazer o quê?
Começou a se despir devagar. Sabia, todo o tempo,. que a noiva o
esperava. Com certeza, já estava ficando furiosa com sua demora. Continuou
a tirar a roupa, mais devagar ainda. Claro que ela devia ser exatamente como
o pai. Tudo planejado, resolvido e sob controle. Ele, o noivo, era apenas uma
peça da engrenagem tão cuidadosamente montada pelos dois. Devia ser

26
autoritária, ditatorial e talvez agressiva.
— Ah, isto não! Não vai mandar em mim, por mais que se esforce.
— E continuou falando sozinho contra a noiva imaginária.
Sabia que viriam brigas, mas seriam batalhas vencidas de antemão
por ele. Não perderia uma. Fechou a cara.
De repente, percebeu, horrorizado, que não tinha idéia de quem era
a noiva. Como seria, meu Deus?
Será que sir Erasmus a escondera até a hora do casamento por ser
deformada, repulsiva? Arrepiou-se só com a idéia. Havia imaginado uma
mulher parecida com o pai, alta, morena, forte, robusta.
Isto, pelo menos, não era verdade. A moça que ficara a seu lado no
altar era muito mais baixa do que esperava.
Com certeza, havia tirado o véu na sacristia, na hora do casamento
civil, mas ele não a olhara. De medo. Medo de saber como era sua mulher,
aquela com quem viveria para sempre.
Quando ficaram lado a lado no vestíbulo, recebendo os convidados,
não houve tempo para nada, a não ser apertar mãos, sorrir superficialmente e
aceitar os parabéns repetidos por cada um da fila imensa.
Talvez o vinho tivesse subido à sua cabeça. Estava se sentindo
burro, completamente burro. Não conseguia imaginar o que lhe aconteceria
de então em diante. Só sabia que teria que se comportar convencionalmente,
fazer o que esperavam que fizesse. Se desobedecesse, no dia seguinte seria
chamado às falas pelo sogro. Era essa sua impressão.
Sir Erasmus não havia até feito as contas de quantos filhos teriam?
Não havia instituído um fundo para eles? Amarrara seu futuro com cordas de
ouro, assim como seu presente.
— O diabo que o carregue! — murmurou Kelvin, entre dentes, e
logo se arrependeu.
— Quase nunca praguejava. Para ele, o palavrão só significava falta
de disciplina e de autocontrole.
Reagiu e, como se estivesse numa parada, pediu a si mesmo atenção
e ordenou que cumprisse seu dever. Estava cansado, havia sido muito bem
pago para dar seu nome e proteção à mulher que de agora em diante seria
sua esposa. Não importavam o aspecto nem o caráter dela. Iria tratá-la com
toda educação, cortesia e consideração. Só que seria o patrão e o chefe… pelo
menos, dentro de casa. Teria que ser obedecido pela mulher e pelos filhos.
Vestiu um robe de seda azul que sir Anthony o obrigara a comprar,
como algumas camisas e outros acessórios, numa loja careira de St. James.

27
Não queria roupas novas, mas o amigo argumentou que, se não comprasse
um enxoval decente, o sogro se encarregaria de fazê-lo. Foi esta possibilidade,
nada remota, que fez Kelvin concordar.-
De fato, o robe de seda azul que quase chegava aos pés era muito
mais apropriado do que o que usava nos verões indianos. Viu-se, por acaso,
no espelho e notou uma ruga entre os olhos. Seus comandados bem sabiam
que aquela expressão era de autoridade… e tinham medo do que viria
depois.
Saiu pisando firme, atravessou a salinha repleta de flores e parou na
porta do quarto de Seraphina. Pensou que poderia estar dormindo e que
talvez a incomodasse, chegando àquela hora da noite.
Ora, vamos, era melhor acabar com a encenação. Quanto mais cedo
desse fim àquela situação embaraçosa, melhor. Bateu de leve na porta e abriu-
a.
O enorme quarto estava iluminado por um único candelabro ao lado
da cama. Só enxergou um leito real, com dossel de veludo vermelho caindo
dos lados da cabeceira entalhada que fazia lembrar o trono do papa. A cama
alta, com cobertor de arminho branco, lençóis de renda veneziana e uma
grande quantidade de travesseiros de plumas, parecia um altar-mor.
Uma figurinha sentada no meio de tudo aquilo, dura como uma
boneca de porcelana, olhava-o, aterrorizada.
Kelvin achou que tinha entrado no quarto errado. Chegou perto da
cama e, para sua imensa surpresa, não viu a mulherona forte que rondava
sua imaginação, mas uma criatura frágil. Quase uma criança, de olhos
enormes num rosto pequeno, emoldurado por cabelos muito claros, de um
loiro pálido de amanhecer do sol.
Ele parou ao lado da cama. Sua noiva tremia, e os dedos finos e
delicados estavam cruzados com tanta força que as juntas saltavam,
esbranquiçadas.
Olharam-se por um momento. Incrédulo, Kelvin perguntou:
— Está com medo de mim, Seraphina?
A voz dela era tão insegura e baixa, que mal dava para escutar:
— Você é tão… grande e… carrancudo!
Pela primeira vez naquele dia, Kelvin Ward sorriu.
— Não dá para mudar o tamanho, mas na cara pode-se dar um
jeito! Seraphina torceu as mãos, convulsivamente, e murmurou:
— Posso falar… com você?
— Mas é claro que pode. Não tivemos uma oportunidade de

28
conversar até agora.
Sentou na beirada da cama e viu que a moça tremia dos pés à
cabeça.
Ela recuou, retraiu-se, fez-se pequena, encostou-se nos travesseiros.
— Estou escutando — disse ele, com delicadeza, e esforçou-se para
dar à voz um tom que a tranqüilizasse. — Pode falar. Sou todo ouvidos.
O rosto de Seraphina estava tão branco como os lençóis, e os olhos,
escuros e amedrontados.
— Quero dizer… contar a você que sou uma covarde!
— Covarde? — repetiu, surpreso.
— Não posso evitar. Já fiz tudo para ser corajosa… o tempo todo…
mas não tem jeito mesmo. Estou morrendo de medo.
— Vamos devagar. Que tal você me contar o que a amedrontou
tanto?
Ela demorou a responder, procurando as palavras. No fim,
sussurrou:
— Vai me achar muito ignorante, mas sei que, quando um homem e
uma mulher casam, fazem uma coisa juntos, mas ninguém me contou o que é
que fazem… — Ficou sem ar, vermelha, e continuou: — Se me contar o que
vai acontecer, antes de fazer qualquer coisa…. tentarei ser corajosa.
Tremia mais ainda, e, depois de um momento de tal surpresa,
Kelvin disse:
— Seraphina, é verdade que ninguém lhe falou sobre o casamento,
sobre a vida a dois?
— Não havia ninguém para conversar. Só a srta. Colville, minha
governanta, e ela nunca comentou esse assunto. Eu não podia perguntar aos
empregados.
— É claro que não. Você queria casar comigo, Seraphina?
— Não. Eu não podia acreditar que isso acontecesse comigo! Foi um
susto, quando papai me avisou.
— Mas disse a ele que não queria casar?
— Ele nem me escutou! Quando dá uma ordem, só espera que seja
obedecida.
Os lábios de Kelvin Ward curvaram-se num sorriso irônico. Sabia
disto, sofrerá na própria carne.
— Seu pai lhe deu os motivos pelos quais casaria comigo? Seraphina
negou com um movimento da cabeça. Os cabelos loiros brilharam à luz das
velas.

29
— Ele só disse que tinha escolhido meu marido e que eu devia casar
na quinta-feira. Só. Nem uma palavra mais.
— Por que não lhe pediu um pouco mais de tempo para que nos
conhecêssemos primeiro?
— Ele nunca me escuta. Pensei em fugir… mas, para onde? Não
tinha lugar para ir.
Kelvin não respondeu. Jamais imaginara que aquilo pudesse
acontecer.
— Por que queria casar comigo? — perguntou Seraphina. Ele
escolheu as palavras com cuidado:
— Como você, também não tive alternativa.
— Papai o obrigou?
— Obrigou.
— Mas como pôde fazer isso? Kelvin contou parte da verdade:
— Um dos motivos é que eu não tinha dinheiro, Seraphina, e você é
uma mulher muito rica.
— Queria o meu dinheiro?
— Não. Queria uma quantia pequena, emprestada, para começar
um negócio na Índia.
— E, para conseguir isso, precisou casar comigo…
— Certo…
— Não havia outro meio de conseguir o dinheiro?
— Não.
Ficaram em silêncio, como se ela precisasse de tempo para entender
a explicação.
— E qual a outra razão? — Como ele não respondesse, ficou
desapontada e nervosa. — Talvez não devesse ter perguntado.
— Por que não? É melhor que não haja segredos entre nós. Seu pai
me tinha nas mãos. Podia me arruinar.
— Então, forçou você…
— É verdade.
— Desculpe. Eu… estou tão triste!
— Por você ou por mim?
— Acho que por nós dois. De vez em quando, pensava em casar,
mas… — Sua vozinha diminuiu e sumiu.
— Queria se apaixonar, não é? — Ela não respondeu, mas ele achou
que tinha acertado. — Sonhou com um príncipe encantado que não fosse tão
carrancudo como eu, não é verdade?

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— Você está com a cara melhorzinha. Não parece mais tão bravo.
Mas, na igreja, parecia um ogro que come gente. Na hora dos cumprimentos,
pior ainda.
— Peço desculpas por ter sido tão mal-educado.
— Não acho que os outros percebessem… É que tenho uma intuição
especial para saber o que as pessoas sentem, mesmo quando tentam disfarçar.
— Bem, só posso dizer que sinto muito por esta situação. Acho que
toda moça espera um amor, alguém de quem goste e que a ame.
— E você? Não queria se apaixonar, antes de casar e… ter uma
família?
— Para falar a verdade, não queria casar com ninguém. Mas, se
tivesse que casar, é claro que gostaria de escolher minha noiva.
— Papai virou um ditador, depois que mamãe morreu. Ela era a
única pessoa capaz de fazê-lo mudar de idéia. Com ela, chegava a ser bom e
compreensivo. — Suspirou. — Se eu tivesse me recusado a casar com você,
ele me bateria.
Kelvin não pôde acreditar.
— Está me dizendo que apanha de seu pai?
— Depois que fiz quinze anos, ele parou de me bater. Mas logo
depois que mamãe morreu, costumava me castigar. Não porque eu tivesse
feito alguma coisa errada… mas porque tinha ódio por eu estar viva, e ela,
morta.
Havia tanta percepção no que ela dizia, que Kelvin achou que
naquela cabecinha de criança havia um cérebro que pensava, e pensava bem.
— E você acredita que ele usaria força física? Isto é impossível,
Seraphina!
E por que não seria verdade? Os soldados eram açoitados no
Exército, meninos fustigados na escola; os patriarcas de família sovavam não
só as crianças como os empregados.
O que espantava Kelvin era que alguém pudesse bater em uma cria-
turinha tão vulnerável, sensível e delicada como Seraphina!
— Papai não aceita desobediência. Além disto, já expliquei: sou
covarde!
— Está sendo dura demais com você.
— Não, não estou. Tantas coisas me amedrontam! É horrível ser tão
medrosa. Meu coração dispara, minhas mãos tremem, eu fujo e me escondo.
— Mas você me encarou.
— Estava morta de medo. Senti que me desprezaria, mas agora não

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está sendo tão mau… como pensei.
— Já é alguma coisa. — Ele riu. — Mas não sou o príncipe
encantado. Para falar a verdade, desconfio de que sou o próprio demônio!
— Eu não disse isso.
— Seraphina, vamos aos fatos. Tenho uma sugestão a fazer.
— Qual é?
Viu o medo voltar aos olhos dela. Quis tranqüilizá-la, apertando sua
mão, mas imaginou que a assustaria mais ainda.
— É o seguinte — disse ele, calmamente. — Nenhum de nós queria
casar, e entendo que você se assustasse. Tenho uma idéia. Vamos deixar que
o mundo pense que somos marido e mulher. Quando estivermos juntos,
como hoje, tentaremos nos conhecer melhor. Talvez fiquemos amigos.
— Então, não vai dormir comigo, aqui, hoje? Kelvin sacudiu a
cabeça.
— Só vamos dormir juntos quando você me pedir. Como já disse,
precisamos nos conhecer. Se gostarmos um do outro, se ficarmos amigos,
poderemos conversar sobre amor.
— E se o amor nunca chegar para nós? — perguntou Seraphina, em
voz baixa.
— Só devemos enfrentar o problema na hora em que ele aparecer.
Por enquanto, não sei nada de você, nem você de mim. Temos muito a
descobrir sobre nós.
— Podemos fazer isto?
— Será nosso segredo. Ninguém mais vai saber. Para o mundo,
seremos um casal normal.
Teve vontade de dizer: “e isto vale para seu pai também”. Sentiu
estar levando vantagem sobre sir Erasmus. Ele devia ter percebido como a
filha era sensível. Como podia lançar uma menina num casamento, sem
prepará-la, sem lhe dar uma idéia de quem era o noivo e do que esperar da
vida de casada?
Será que sabia que a filha era tão ignorante a esse respeito?
Talvez não fizesse nenhuma diferença para ele. Os dois eram apenas
parte de seu plano!
— Então, Seraphina, fizemos um pacto e espero vir a conhecê-la
melhor.
— Combinado! Será nosso segredo.
— Vamos selar com um aperto de mão.
Ela hesitou e obedeceu.

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Os dedos estavam gelados e tremiam. Ele quis beijar aquela ternura
de bichinho, mas teve medo de que ela interpretasse mal o gesto.
— Boa noite, Seraphina. Tente dormir. Amanhã, partiremos para um
mundo novo. Será uma viagem de descobertas. Nem imagina quantos
lugares há para conhecer e apreciar!
Os olhos dela brilharam de alegria, como os de uma criança à qual
prometessem um presente há muito cobiçado.
— Prometo que nada acontecerá. Não precisa se preocupar. Está
segura — completou ele.
— Obrigada. Muito obrigada. Estou feliz. Nem sei como agradecer.

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CAPÍTULO III

O S. S. Tiberius alcançou a ponte oeste do canal da Mancha e virou


para atravessar a baía de Biscaia. Kelvin Ward logo ficou alegre com a idéia
de que, não só estava deixando para trás a Inglaterra, mas o sogro.
Especialmente o sogro.
Na manhã seguinte à noite de núpcias, praticamente contara os
minutos que faltavam para se livrar do velho.
Pegaram o trem para Tilbury, e sir Erasmus, que chegou a Malton
House depois do café da manhã, os acompanhou.
A viagem não foi tão desagradável, porque sir Anthony Fanshawe
também apareceu para as despedidas.
— É meu dever, como padrinho — disse ele. — Vou levá-los até a
escada do navio. Sou um padrinho responsável e tomarei conta dos noivos
até que os perca na linha do horizonte. . .
Sir Erasmus fez cara de poucos amigos, mas não teve outra
alternativa senão aceitar a companhia.
Viajaram com muito conforto, num vagão reservado para o pequeno
grupo: eles e um número excessivo de criados, na opinião de Kelvin.
A empregada de Seraphina os acompanharia à Índia. Sir Erasmus
sugeriu ao genro que levasse um criado de quarto, mas a idéia foi rejeitada
com tanta convicção, que não insistiu mais.
— Vou ter um criado hindu. Aposto que esta moça que estamos
levando vai pôr os pés na Índia e imediatamente começar a chorar de
saudade da Inglaterra — disse Kelvin.
Sir Erasmus foi derrotado neste único ponto, mas em outros ganhou
fácil. Por exemplo, na insistência para que a viagem deles fosse cercada de
grande luxo.
Ao ver pai e filha juntos pela primeira vez, Kelvin percebeu que
Seraphina era esmagada pela prepotência de sir Erasmus e transformada
numa figurinha quieta, submissa, sem vontade própria. Uma sombra
pequena de um carvalho enraizado e forte.
Mas não havia como negar: ela era bonita de verdade. Mais alta do
que ele pensou, ao vê-la naquela cama descomunal. O que a fazia parecer
pequena era sua delicada estrutura óssea, mas tinha um corpo fino, esguio e

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movia-se com desenvoltura ainda infantil. Isto lhe dava um charme todo
especial, fazendo com que as mulheres parecessem grosseiras e até
desajeitadas, comparadas a ela. Os olhos tinham o azul do mar de verão.
A caminho de Tilbury, sir Erasmus dava conselhos minuciosos sobre
como viajar bem:
— Sempre procurem o melhor. Eu, pessoalmente, entrego minhas
viagens a Thomas Cook. Vocês deviam fazer o mesmo.
Kelvin achou graça em pensar no próprio Cook planejando seus
passeios. Thomas Cook era o principal agente de viagens do país e arranjava
transporte para qualquer parte do mundo, por mais absurdo que fosse.
Seus escritórios de mogno escuro, com ventiladores de teto rodando
o dia inteiro e os guichês gradeados de latão, eram os mesmos em todas as
cidades do Império Britânico.
Tinha a concessão de todas as linhas de navios do rio Nilo.
Arranjava burros, barcos e carruagens. Organizava viagens para Constanti-
nopla, Austrália e peregrinações a Meca.
— Lembro-me de Cook providenciando uma visita à Europa para
um príncipe hindu — disse Kelvin. — A comitiva incluía duzentos criados,
vinte cozinheiros, trinta e três tigres, dez elefantes, mil malas e um obus.
Sir Erasmus mudou de assunto.
Seraphina nem abria a boca. Só quando chegaram a Tilbury, Kelvin
vislumbrou nela um certo senso de humor. O chefe da estação, de cartola e
coberto de debruns dourados, guiou-os com muita pompa e cerimônia, da
estação até as docas, onde os entregou aos funcionários do S. S. Tiberius. Com
voz pausada e solene, disse, ao deixá-lo.
— Senhor e madame, peço ao bom Deus os despache em segurança
até seu destino.
— Como se fôssemos pacotes — disse Seraphina, tão baixo que só
Kelvin escutou.
Olhou para ela e viu o brilho malicioso de seus olhos. Afinal, a moça
não era tão submissa como parecia.
— Adeus, minha querida — disse sir Erasmus, ao ouvir o aviso para
desembarque de visitantes. — Escreva-me, mantendo-me informado de seu
bem-estar.
Kelvin não sabia se era uma ameaça sutil a ele, mas o aperto de mão
do sogro foi caloroso.
— Até logo, meu rapaz. Espero grandes coisas de você.
Foi sir Anthony quem restabeleceu um clima normal, comentando:

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— Lá vai ele para o calor do sol, com uma companheira muito
bonita. Você é um sujeito de sorte, Kelvin.
Na verdade, Seraphina estava linda.
Não parecia triste por deixar o pai. Depois que ele e sir Anthony
desembarcaram, acenou do tombadilho superior, enquanto o navio levantava
âncoras.
Como estava frio e garoava, Kelvin convenceu-a a ir para a cabine. A
suíte dos noivos era um luxo, e a sala de visitas estava atulhada
de buquês de flores de estufa, cestas de frutas, caixas de chocolates, tapetes,
almofadas, além das malas. Não dava nem para se mexerem. Havia dois
quartos grandes, o que deixou Kelvin Ward satisfeito, e uma pequena cabine
vizinha, onde a empregada de Seraphina dormiria.
Bem diferentes das acomodações dos navios da Marinha, onde ele
servira, ou da pequena cabine que ocupou no vapor que o trouxe de volta da
Índia.
Na realidade, nunca tinha viajado nos navios mais modernos, que,
apesar do interior luxuoso, eram embarcações feias, de proa quadrada, com
duas chaminés meio inclinadas, além de quatro mastros altos com cordames
complicados.
As linhas estavam orgulhosíssimas de seus novos navios e haviam
começado a anunciá-los com estardalhaço. As máquinas do Tiberius eram tão
silenciosas que às vezes era impossível saber se estavam ou não em
movimento. A terceira classe tinha todos os confortos da primeira.
Kelvin Ward achou um folheto explicativo entre as flores e as frutas,
na mesa do centro da cabine. Os primeiros momentos a sós com Seraphina
seriam um pouco difíceis. Disfarçou, começando a ler os anúncios, em voz
alta:
“Estas palavras vão tentar transmitir aos passageiros do Tiberius
todo o privilégio que desfrutam ao viajar conosco. Há um órgão na galeria de
quadros e em todas as cabines de primeira classe há possibilidade de se
acender ou apagar a luz, conforme a necessidade dos ocupantes.”
Seraphina deu uma risada.
— Deve ser divertido para quem não conhece luz elétrica…
Tirou a pesada capa de viagem debruada de zibelina russa. Usava
um vestido de lã safira, muito bonito, enfeitado com cetim, e seus cabelos
eram tão claros, que Kelvin pensou nas primeiras prímulas da primavera.
Seraphina passou os olhos pela cabine.
— Não acha que seria melhor nos livrarmos de algumas coisas?

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Papai exagerou nos confortos e acabou deixando a sala apinhada. Há coisas
aqui de que, com certeza, não vamos precisar nunca.
— Chamarei um criado de bordo e ele dará um jeito.
— Parece que há flores demais, não é?
Olhou-o de soslaio, como com medo de que discordasse.
— Vamos perguntar se alguém a bordo as quer — respondeu ele. —
Também tenho certeza de que não vamos conseguir comer todas essas frutas!
Achou que Seraphina o olhava com gratidão. Depois de ter dado a
ordem, foi inspecionar o navio. Ao voltar, Seraphina estava sentada à mesa,
arrumando seus livros.
Tinha trazido quase uma biblioteca inteira, e o assunto que mais a
interessava era a Índia.
— Vai estar muito bem informada sobre o país, quando chegarmos,
não é?
— Não quero amolar você com excesso de perguntas.
— Terei o máximo prazer em apresentar o país onde passei tantos
anos de minha vida…
Kelvin descobriu — coisa que não esperava — que ela parecia
completamente feliz, lendo na cabine. A imagem que ele fazia das mulheres
era de criaturas a quem se precisava entreter com assuntos fúteis, com
vestidos, dores de cabeça e receitas de bolo de laranja. Nunca tinha visto uma
mulher tão sossegada!
O Tiberius devia fazer a viagem para Bombaim em vinte dias. E na
primeira noite, já haviam deixado a Inglaterra para trás e se dirigiam
rapidamente para o sul, passando pela baía de Biscaia.
A neblina tornou as primeiras horas muito desagradáveis, mas
começava a se dissipar, e o barulho da sirene de neblina, que tocava de cinco
em cinco minutos, parou. As ondas, no entanto, estavam muito altas. Kelvin
suspeitou de mau tempo pela frente. Havia uma possibilidade de
encontrarem águas turbulentas na baía. Não quis, porém, antecipar perigos e
preocupar ninguém. Só esperou que Seraphina fosse tão boa marinheira
quanto ele.
Almoçaram num salão rodeado de vasos com palmeiras, mesinhas
redondas, cadeiras de vime e criados de bordo barbudos, andando de lá para
cá.
Depois de comerem, Kelvin foi dar um passeio pelo tombadilho.
Cada passageiro da primeira classe tinha sua cadeira lá, marcada com o
nome. É claro que sir Erasmus havia previsto tudo isso e providenciado seis

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cadeiras com o nome deles, caso quisessem conversar com mais gente, ao ar
livre. Voltou para o camarote e encontrou Seraphina lendo. Um criado de
bordo já o havia avisado de que os passageiros estavam reclamando do
excesso de bagagens no corredor, em frente à cabine deles. Contou para a
mulher, que logo concordou:
— Realmente, parece haver excesso de malas.
— A não ser que você precise das roupas, podemos mandar alguma
coisa para os porões.
— Acho que podemos mandar tudo. Não vou usar nada. São roupas
adequadas para a Índia.
Kelvin surpreendeu-se.
— Como conseguiu um enxoval tão grande, em três dias?
— Papai encomendou tudo muito antes. Martha me disse que as
roupas chegaram a Malton House antes que viéssemos do campo.
Ele sentiu uma onda de raiva subindo-lhe à cabeça. Sir Erasmus
tinha tanta certeza de que aceitaria a proposta, que encomendara o enxoval
da filha mesmo antes de discutirem o assunto. Sentiu-se de novo preso numa
armadilha, manipulado e de pés e mãos atados. Não podia fazer nada.
Escutou a vozinha nervosa que perguntava:
— O que foi que falei que o deixou tão zangado?
— Por que está me achando zangado?
— Essa carranca… Com esforço, ele sorriu.
— Desculpe. Fico surpreso ao ver você deixar seu pai escolher até
suas roupas.
— Bem, não é que as escolha. Encomenda-as a madame Marieta, que
sempre vestiu mamãe e que conhece as cores e as fazendas de que gosto.
— Hum… sei.
Parecia bobagem, mas sentiu-se aliviado por saber que cada vestido
que achasse bonito não havia sido do gosto do excelentíssimo sogro.
Como suspeitava, o mar começava a engrossar a cada momento. Foi
para o convés. Sentia-se o violento balanço do navio que lutava contra o mar
encapelado. Estalidos, oscilação, gemer de mastros, estrondo dos ventos.
Cada baque do navio, de encontro às ondas, fazia chisparem faíscas e saltar
espuma branca.
Ao mesmo tempo, o céu clareou e o sol saiu das nuvens. Borbulhas
fosforesciam em torno do navio, e o espetáculo era majestoso.
Kelvin ficou muito tempo olhando, sentindo-se pequeno no meio da
violência primitiva e sem rédeas do oceano.

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Lembrou-se de Seraphina. Será que estava enjoada como a maioria
das mulheres?
Voltou correndo ao camarote, trombando nos corredores com ma-
rujos e criados que carregavam bacias e toalhas de cá para lá. A sala de jantar
estaria vazia. Abriu a porta da cabine e viu Seraphina sentada num canto do
sofá. Não parecia enjoada. Estava morta de medo.
— O que há, Seraphina?
Olhou para ele com as pupilas dilatadas, os olhos parecendo
escuros.
— Vamos afundar? — perguntou, rouca. Ele atravessou a cabine e
sentou a seu lado.
— Não, é claro que não. Não há perigo algum.
— Li sobre naufrágios. Muitos navios naufragaram no ano
passado…
— Não navios deste tamanho. Prometo, Seraphina, que não vamos
afundar nem vai haver nenhum acidente horrível como os que leu nos
jornais.
— Estou tremendo de medo…
— Eu sei. É horrível sentir-se assim. Faça-me um favor.
— Qual?
— Quero que venha ao tombadilho comigo e veja as ondas se
quebrando na proa. É uma coisa magnífica e muito menos alarmante do que
ficar aqui, encolhida no sofá.
Ela hesitou e ele usou o sorriso mais sedutor para convencê-la.
— Acredite em mim. Prometo que não será arrastada pelo mar e
pela tempestade.
— Se você faz questão… eu vou.
Kelvin foi até o quarto, procurou a capa de viagem. Não havia sinal
da empregada, que, com certeza, estava naquele horrível estado de
prostração física e moral que o enjôo dá, jogada em algum canto do navio.
Abriu o guarda-roupa e sentiu o cheiro gostoso das roupas de
Seraphina. Perfume de flores da primavera.
Foram de braços dados ao tombadilho.
As ondas tinham uma magnífica tonalidade azul, um reflexo
metálico do colorido do céu. No convés, ao ar livre, sentia-se o vento e
alguma espuma no rosto. A firmeza da proa dava segurança, e Kelvin notou
que Seraphina começava a relaxar as mãos que seguravam seu braço. Foi se
acalmando, a expressão de medo sendo substituída por alegria de criança.

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— Você tem razão! É tão bonito e majestoso!
— Sabia que ia entender.
Era difícil conversar contra o vento. Ficaram quietos, observando a
fúria solta dos elementos. Depois de uns quinze minutos, voltaram ao
camarote.
— Obrigada — disse ela, enquanto Kelvin a ajudava a tirar a capa.
— Tenho até vergonha por ter sido tão boba.
— É o desconhecido que amedronta. Agora que já sabe por que o
navio está balançando assim, de modo tão desconfortável, já sabe que não
tem nada a temer.
— É claro que não. Mas ninguém me explicou as coisas desse modo,
nunca.
— E seus tutores e governantas? Seu pai me contou que foi educada,
e muito bem, por sinal!
— Fui educada demais!
— O que quer dizer com isso?
— Fui recheada de conhecimentos, como se recheia um peru de
Natal com castanhas. Mas nunca me deixaram pensar.
— E você quer pensar?
— Eu tento. Mas, cada vez que tinha uma idéia original, alguém me
dizia que Darwin, ou o dr. Johnson, ou Sócrates haviam pensado nela antes e
seria melhor citar a opinião deles do que expressar a minha.
— Deve ter sido frustrante, concordo.
— Acho que, depois da morte de mamãe, nunca mais pude
conversar com ninguém sobre minhas idéias e emoções. Por isso é que fiquei
tão… insegura.
Kelvin teve vontade de dizer que sabia muito bem e entendia que,
perto de sir Erasmus, não haveria a menor possibilidade de alguém ter um
pensamento próprio ou uma idéia original. Delicadamente, sugeriu:
— Espero que, de agora em diante, me conte tudo o que quiser.
Estarei sempre interessado. Prometo.
— De verdade, ou está falando isso só por obrigação?
— Pura verdade. E espero também que se interesse pelos meus
assuntos.
— Que bom! Nem acredito… — disse Seraphina, toda alegre. — Os
amigos compartilham as alegrias e os sofrimentos, não é assim?
O sorriso de gratidão que ela lhe deu iluminou o rosto pequeno.
Ela parece uma potrinha, pensou Kelvin. Foge de medo do arreio,

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mas se achega toda mansa, se lhe estendem a mão com um torrão de açúcar
ou lhe acariciam a cabeça. É um animal pequeno e de índole confiante.
O inacreditável era que sir Erasmus fosse o pai de coisa tão sensível
e delicada, tão diferente de sua personalidade marcante e dura. Era óbvio que
ela devia se parecer muito com a mãe.
A tempestade trouxe complicações e desconforto. Como Kelvin
suspeitava, não havia quase ninguém, nem para o almoço nem para o jantar,
nos próximos dois dias.
Ao alcançarem Gibraltar e entrarem no Mediterrâneo, o céu ficou
azul como o manto da Madona e o mar melhorou, sacudindo menos o
enorme navio. Não houve tempo para descer em Gibraltar, pois a parada era
só de algumas horas. Em Malta, também, devido ao atraso, ninguém pôde
deixar o navio.
Malta era um dos postos principais de cabos submarinos de
telégrafos. Os ingleses haviam rodeado seu império com cabos, e, nos últimos
doze anos, o mundo inteiro estava ligado ao país. O código Morse
atravessava oceanos.
Em Malta, trouxeram telegramas a bordo. Kelvin entrou no
camarote com quatro. Um estava endereçado a Seraphina e os outros a ele.
Abriu-os um por um. O primeiro era de sir Anthony, desejando felicidades; o
segundo, dos sócios de Bombaim. Kelvin tinha telegrafado a eles, avisando
que não só arranjará o dinheiro para a sociedade, mas estava preparado para
investir cinco vezes mais do que as cinco mil libras necessárias.
A resposta, apesar de telegráfica e portanto econômica em palavras,
era de regozijo total.
Abriu o último telegrama. Era de sir Erasmus:
“Comprei em seu nome dois navios de cinco mil toneladas e dei
ordem para que se dirigissem a Bombaim. Notifiquei sua companhia para
que os receba.
Erasmus Malton.”
Kelvin soltou uma exclamação de raiva e amassou o telegrama.
Esquecera-se de que Seraphina estava junto, até ouvir a voz dela:
— O que preocupou você?
Ele não confiava em seu autocontrole para responder, e ela
continuou:
— Posso saber? Não sei se tenho o direito…
— Claro que tem — respondeu, com voz dura e áspera. — Tem o
direito de saber, porque é o seu dinheiro que estou gastando. O seu dinheiro

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que me comprou e me impede de fazer qualquer coisa; de resolver, de
pensar, agir, relacionar. Mas acredite: pagarei de volta cada centavo. E,
quando isto acontecer, serei dono de mim mesmo outra vez!
Quando acabou de falar, com a respiração curta, o rosto afogueado,
olhou a bola de papel amassado na mão. Envergonhado por ter perdido o
controle, abriu o telegrama de novo, alisou-o e colocou-o sobre os outros, na
escrivaninha.
Respirou fundo e virou-se.
— Preciso explicar, Seraphina… — Só então percebeu que estava
sozinho na cabine.
Como sua voz devia ter soado irritada, estúpida e furiosa! Que coisa
mais errada, descarregar sobre ela sua raiva contra sir Erasmus! ,Ao mesmo
tempo, não agüentava pensar que seu projeto querido, que queria
desenvolver com os amigos, estava sofrendo a interferência do sogro. Era só o
que faltava!
Mas Seraphina não tinha culpa. Não podia fazê-la sofrer pelas ações
do pai.
Foi até a porta do quarto, bateu e, como a moça não respondesse,
entrou.
Estava sentada na beira da cama. Ao ver que ele se aproximava,
correu para a vigia e ficou olhando para fora, de costas para Kelvin. Notou
que ela tentava esconder as lágrimas que corriam pelo rosto. Fechou a porta e
se aproximou.
— Interrompi você no meio de uma frase, Seraphina — disse, com
doçura. — Por favor, acabe de dizer o que queria.
Ela ficou em silêncio, lutando para controlar a voz. Depois, em tom
trêmulo, engolindo o choro, disse:
— Eu só ia dizer que, como amigos, deveríamos dividir nossos
problemas e preocupações.
— Percebi tarde demais que queria me dizer isso. Desculpe,
Seraphina. Não devia ter falado daquele modo.
— O dinheiro é assim… tão importante? — perguntou ela,
inesperadamente.
— Importa muito, quando a gente não o tem. Mas entre amigos há
coisas mais importantes do que o dinheiro. — Ela não respondeu, e ele
implorou: — Por favor, olhe para mim, converse comigo. Estou tão
arrependido!
Ela limpou os olhos e o encarou. Estava muito pálida e com os cílios

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úmidos.
Kelvin Ward estranhou que continuasse bonita e atraente, depois de
tanta tristeza. Sentou na cama e estendeu a mão.
— Venha cá, sente. Senão, vou pensar que ainda está zangada
comigo.
Respondeu, com um sorrizinho aguado:
— Você estava tão bravo… Foi papai que o aborreceu?
— Foi, foi seu pai.
Contou sobre os dois navios e mostrou o telegrama. Ela leu devagar,
com atenção, e disse:
— Sei que você se ressente da interferência de papai. Ele… de algum
modo… está querendo lhe mostrar seu poder. Mas… não acredite…
completamente…
— Então, o que é?
— Mamãe me disse, uma vez, que todo mundo tem que ter alguém
a quem amar… alguém ou alguma coisa a que se dedique de corpo e alma.
Kelvin não entendeu bem.
— Continue.
— Quando mamãe vivia, meu pai a amava. Lembrando do passado,
vejo que todas as suas vitórias eram uma homenagem a ela. Seu triunfo era
um modo de mostrar como era inteligente e esperto.
— Posso compreender isso.
— Depois, quando mamãe morreu, ele transferiu o amor para o
trabalho. Agora, é apaixonado pelos negócios, por seus projetos. Não que
tragam só dinheiro. Está criando… criando alguma coisa.
— Um império só dele — disse Kelvin, com um sorriso.
— Você já viu um homem fazendo um tapete? Desses feitos à mão?
— Acho que sim. Na Pérsia — respondeu, um pouco surpreso com a
mudança de assunto.
— Então, sabe que ele trabalha pelo avesso. Parece um amontoado
de pontos sem sentido. Mas, quando você olha o lado direito, lá está o
modelo bonito, intrincado, perfeito.
Kelvin olhou para ela, encantado.
— Entendo o que quer dizer sobre seu pai, mas é difícil para alguém
que está de fora, como eu, compreender todos esses aspectos.
— Custei um pouco para entender. Queria que ele gostasse de mim
porque me sentia tão só e abandonada, depois da morte de mamãe. Aí,
percebi que eu não era tão emocionante como uma nova companhia no

43
Canadá ou… comprar navios para você em Bombaim.
— Você é formidável, Seraphina. Estou começando a me assustar
com a sabedoria guardada nessa cabecinha…
— Que sabedoria qual nada! Sou uma tola, isto sim.
— Seria o último adjetivo que eu usaria para você. Quando eu me
zangar, vou tentar lembrar sua explicação sobre as ações de seu pai.
No dia seguinte, a intuição de Seraphina surpreendeu-o outra vez.
Estava contente ao ver que ela fizera amizades com o pessoal do navio.
Kelvin sabia muito bem que formavam um casal que chamava a atenção. O
casamento aparecera em todos os jornais e a curiosidade dos passageiros
pelos dois era enorme.
Todo mundo tentava falar com ela. Apesar da timidez, sua educação
e cortesia faziam com que sempre se comportasse encantadoramente com
quem tentava se aproximar.
Entrando no camarote depois de se exercitar no tombadilho, Kelvin
notou imediatamente que alguma coisa perturbara Seraphina. Tinha
aprendido a reconhecer suas expressões. De fato, jamais vira um rosto tão
expressivo como o dela. Quando tinha medo ou estava muito alegre, era
impossível não perceber a aura que a envolvia.
Sem preliminares, perguntou:
— O que aconteceu?
Ela custou um pouco para responder:
— Você nunca me disse que seria um duque…
— Pensei que seu pai havia contado.
— Ninguém me disse nada.
— Então, como soube?
— Uma das senhoras me ofereceu uma revista, olhei os retratos da
abertura do Parlamento e ela comentou: “Deve ser uma grande emoção, sra.
Ward, pensar que algum dia estará brilhando no meio dessas damas da corte,
quando seu marido se tornar o duque de Uxbridge”.
Kelvin sentou diante dela.
— E por que essa idéia confunde você?
— É que eu não saberia me comportar como uma duquesa. Teria
que aprender a receber, a entreter. Não sei nada disso. E também sou muito
baixa para usar uma tiara!
— Ora, pois usou uma, no casamento!
— Foi papai que me obrigou. Achei horrível. Grande e rica demais.
Muito vulgar.

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Kelvin pensava a mesma coisa, mas disse, com um sorriso:
— Está bem. Quando você virar duquesa, ou não usará tiara, ou
comprarei uma bem pequenininha…
— Está caçoando de mim!
— Não dá nem para caçoar. Isso pode demorar quinze anos ou mais
para acontecer. Além do mais, nem todo duque freqüenta a sociedade. Meu
tio, por exemplo, vive trancado em casa.
— Por quê?
— Porque é o mais sovina dos miseráveis.
— Sovina?
— Chora cada tostão. Nem pensou em me emprestar o dinheiro
para o projeto de Bombaim.
— Recusou?
—Completamente. Como havia recusado me ajudar, quando mamãe
adoeceu e precisou ser operada várias vezes. — Kelvin ficou quieto,
pensativo, e continuou: — É deformado. De corpo e alma. O homem mais
detestado da Inglaterra e o mais mesquinho. Não tenho nada de bom a dizer
sobre ele.
Não podia esconder o tom amargo e o ódio. Depois de um instante,
Seraphina disse, com doçura:
— Não deixe que as pessoas o prejudiquem tanto emocionalmente,
como papai e seu tio. Não vale a pena.
Olhou-a, curioso.
— Mamãe sempre dizia que a ferida física é horrível, mas nada é
pior do que as ofensas indiretas. Aquelas que ferem o coração e deixam
cicatrizes na alma.
— Acha que seu pai e meu tio têm esse efeito sobre mim?
— O ódio é um sentimento que se vira contra nós. Quando odiamos,
ficamos envenenados…
Kelvin encarou-a, perplexo, e ela continuou, nervosa:
— Por favor, não se zangue. Não estou tentando pregar lição de
moral. Só quero dizer o que sinto… o que acho.
— Quero escutar seus pensamentos e compreendê-los. Você é uma
caixa de surpresas, Seraphina.
— Acho que seu tio, como papai, precisa gostar de alguma coisa.
Então, ama o dinheiro. Para um sovina, economizar um tostão é tão excitante
como subir uma montanha… ou conquistar a mulher que ama.
— Vou pensar sobre isso. Obrigado. Vou tentar não odiar, e espero

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que me ajude.
— Se me ajudar a não ter mais medo…
— E espero que tenha perdoado minha grosseria, quando desabafei
em cima de você a raiva contra seu pai.
— Não há nada a perdoar. Foi bobagem minha ficar triste…
— Você tinha toda razão. Estou arrependido e envergonhado. —
Sorriu, charmoso. — E são duas emoções não muito comuns em mim. Uso
pouco os. verbos arrepender e envergonhar.
— Pois saiba que a humildade faz bem à alma — disse ela,
zombeteira.
— Como já disse, você sempre me surpreende, Seraphina.
Mais tarde, naquela mesma noite, Kelvin conversou com ela, como
nunca fizera com mulher alguma. Sempre que jantava sozinho com uma
namorada, havia humor, sofisticação, troca rápida de perguntas e respostas
engraçadas, olhares íntimos que significavam mais do que diziam os lábios.
Uma preparação maliciosa para o que viria depois, um tipo diferente de
intimidade.
As mulheres de sua vida haviam sido bonitas e, algumas vezes,
inteligentes. As inteligentes eram poucas, pois não se tratava de uma
qualidade fácil de ser encontrada. Havia aquelas com as quais podia
conversar sobre a vida do regimento e que lhe davam ouvidos atentos, mas
Seraphina era diferente.
Nunca conversara com uma mulher sobre os temas mais
importantes da vida. Estavam todas muito mais interessadas no coração delas
e no dele. Só.
Os homens, por sua vez, ficavam acanhados, quando o assunto era
profundo, e preferiam fatos materiais: dinheiro, cavalos, clubes, mulheres.
Na Índia, Kelvin tinha encontrado homens para conversar sobre os
aspectos espirituais e místicos da religião, pois, para os hindus, isto era parte
da vida diária. Em suas viagens pelo país, conhecera faquires e iogues.
Homens que se animavam, se elevavam e se inspiravam na própria fé e que
haviam despertado nele uma curiosidade e um interesse pouco comuns nos
ingleses.
Nunca, porém, conversara com uma mulher sobre a espiritualidade
que sentia dentro de si; as coisas que sabia existirem, mas que se escondiam
sob a superfície da matéria; a vontade que tinha de pesquisar sua consciência
do mundo, seu entendimento da verdade; enfim, tudo o que o intrigava e
excitava sua imaginação.

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Quando pensaria que isso seria discutido com sua mulher de
dezoito anos?!
Vestida com uma nuvem de tule verde-pálido que a deixava bonita
e muito menina, Seraphina dizia, em sua voz macia, doce e séria:
— Tenho certeza de que o que importa realmente não é o que as
pessoas fazem, mas o motivo por trás das suas ações.
— Explique-me isso direitinho.
— Sempre achei que enforcar um homem por assassinato é um erro,
até que se descubra a razão fundamental, que ele próprio não sabe, pela qual
cometeu o crime. — Olhou para ele, tentando descobrir se seguia seu
raciocínio. — E assim é para todas as coisas. Por exemplo, quando você fala
que seu tio é miserável, fico pensando se, por causa da deformidade física e
da solidão, não tenta encontrar algo sólido, estável e valioso como
compensação para sua aparência e seus sentimentos.
— Nunca pensei nisso. Realmente…
— Acho que nosso julgamento sobre as pessoas seria totalmente
diferente, se conseguíssemos penetrar além do óbvio. Eu costumava brincar
de descobrir por que as pessoas da casa e da aldeia tinham determinados
comportamentos. — Parou e disse, encabulada: — Entendo pouco da vida e
talvez ria de mim, mas acho que pobres e ricos são seres humanos e, todos,
motivados pelos mesmos impulsos.
— É claro que são. E nossos impulsos, mais fortes do que nossa
vontade. É por isso que precisamos aprender a ter autocontrole.
— Verdade. Também acho.
— A disciplina é uma coisa que todos detestam. No entanto, sem
disciplina, interna ou externa, não temos civilização.
Seraphina refletiu e respondeu:
— No Exército, vocês são muito disciplinados. Funciona?
— É essencial. Um homem que entra numa batalha precisa aprender
a obedecer ordens. Sem isto, não teria chance de sobrevivência. Um bom
regimento depende da disciplina e do espírito de grupo
Seraphina não respondeu, mas ficou olhando através dele, com
atenção.
— O que está passando pela sua cabeça, menina?
— Estava pensando… Eu não disse que todos precisam amar
alguém ou alguma coisa? Para você, é o regimento.
— Como sabe?
— Sua voz muda, quando fala nele. É o seu amor. E ficou tão

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zangado ao casar comigo porque tinha que largar seu verdadeiro amor, que
era mais importante do que qualquer outra coisa.
— Estou até com medo de você, Seraphina. Tem uma intuição de
feiticeira. Se eu quiser lhe esconder alguma coisa, não vou conseguir!
— Espero que não precise disfarçar ou fingir… nunca! — Para
surpresa de Kelvin, ela ficou vermelha e murmurou: — Devem existir muitas
coisas que você não pode me contar, nem quer que eu saiba!
— Se existem, não sei quais são!
Já ia perguntar o que ela estava pensando, quando um garçom se
aproximou, perguntando se desejavam mais alguma coisa. Percebeu que o
salão de jantar estava vazio e eram os últimos sentados à mesa.
— Vamos subir — sugeriu a Seraphina.
Levantou-se, colocou-lhe o xale nos ombros, e ela saiu na frente,
graciosa. O vestido verde flutuava atrás dela, como a esteira prateada
deixada pelo navio.

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CAPÍTULO IV

Seraphina e Kelvin subiram a escada e pararam, sem saber para que


lado ir.
— Quer tomar café no salão ou no nosso camarote? — perguntou
ele.
Antes que ela pudesse responder, uma mulher se aproximou. Uma
figura linda, com a beleza acentuada pelo decote audacioso e um
elegantíssimo e bem cortado vestido preto. A cor escura contrastava com a
brancura de sua pele e com o brilho dos diamantes no pescoço e nas orelhas.
— Kelvin!
Estendeu os braços, num impulso, dando o mais provocante dos
sorrisos.
— Soube que estava a bordo, Auriel. — Quero apresentar minha
mulher. Seraphina, esta é lady Braithwaite.
— Estou simplesmente encantada em conhecê-la. Teria acontecido
antes, se eu não tivesse sido colocada fora de combate durante aquela terrível
tempestade — explicou lady Braithwaite. — Seu marido sabe que péssima
maruja sou…
Piscou para Kelvin, em cumplicidade, mas ele não estava olhando
para ela. Depois de alguns momentos, disse:
— Estávamos a caminho de nosso camarote. Boa noite, Auriel. É
bom vê-la assim tão saudável.
Segurou o braço de Seraphina e conduziu-a pelo corredor, até a
cabine. Ao chegarem, tocou a campainha, pedindo café para os dois e um
conhaque para ele.
— Estou bem cansada. Se não se importa, vou dormir depois de
tomar o café. Há um concerto no salão. Talvez você queira ir.
— Não consigo imaginar coisa que me entedie mais. Concertos a
bordo são, geralmente, muito, muito aborrecidos. Os cantores fazem tanto
barulho, que deixam a gente com vergonha por eles, imagine!
Seraphina sorriu. Apesar da conversa tão interessante do jantar,
estava quieta e sem muito que falar.
O criado trouxe o café. Enquanto Kelvin servia o conhaque e
conversava sobre o tempo, ela se levantou, deu boa-noite e foi para o quarto.

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Sozinha, nem pensou em chamar Martha para ajudá-la a se despir.
Sentou em frente à penteadeira e olhou para o espelho sem se ver. Graças a
Deus, o garçom na sala de jantar impedira que ela explicasse por que tinha
ficado tão vermelha. Era por causa do que havia escutado de manhã.
Pela primeira vez, desde que deixaram a Inglaterra, o sol
mediterrâneo brilhava intensamente, a ponto de se poder abrirem as vigias.
Kelvin tinha ido jogar tênis e Seraphina lia um de seus livros sobre a Índia,
quando, através da escotilha aberta, ouviu vozes lá fora. Os camarotes de
primeira classe abriam-se para o convés dos salva-vidas, onde a maioria dos
passageiros fazia ginástica, andava e tomava sol.
As vozes eram femininas, e ela só prestou atenção porque as
primeiras palavras foram:
— Que idéia! Por que não me disse antes que Kelvin Ward estava a
bordo?
— Como é que eu ia adivinhar que você o conhecia?
— Minha querida, você está atrasada. Eu o conheci e muito bem, no
outono passado, em Bombaim.
— Eu não sabia, Auriel.
— Pois fique sabendo. Infelizmente, meu pai morreu e tive que
voltar para casa. Estas coisas acontecem sempre no momento errado
— Não sei como não mencionei que ele estava a bordo. O navio não
fala de outra coisa, mas ele está em lua-de-mel. Achei que talvez você não se
interessasse, tendo em vista sua conhecida preferência por homens solteiros!
Auriel riu:
— Não me importaria se Kelvin tivesse cinqüenta mulheres. Ele é o
homem mais atraente, mais sedutor… E nunca vi amante tão apaixonado…
— Auriel! Ele está na lua-de-mel, repito!
— Kelvin sempre jurou que não casaria nunca.
— Então mudou de idéia, pois está com a mulher.
— Que tal ela?
— Bonitinha, meio insignificante, mas estupidamente rica!
— Ufa! Competição dura!
— Auriel, comporte-se! Sabe que a posição de seu marido em
Bombaim não permite que você cause escândalo nenhum.
— Mas que escândalo, querida?
— Não estou gostando da expressão dos seus olhos!
— Então, olhe para o outro lado. Que ódio de você! Pensar no tempo
que já perdi nesta viagem!

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— Temos nove dias ainda…
— Graças a Deus! Uma eternidade não seria tempo demais para
ficar com o Kelvin!
— Auriel, que horror! Você me escandaliza!
— Sempre escandalizei você, Emily. Será que já se esqueceu?
— Não, querida, mas a sra. Ward é uma coisinha doce e pura. Pode
achar que é sentimentalismo da minha parte, mas não quero vê-la magoada.
— Não tenho nada a ver com os sentimentos da sra. Ward. Só com
as emoções do marido dela! Vamos mudar de lugar. Está frio aqui e não
quero saber de adoecer de novo. Pelo menos, nos próximos nove dias.
Seraphina ouviu risos outra vez e percebeu que se
afastavam. Ficou muito quieta, pensando na conversa.
Ora, que bobagem a sua, não ter imaginado outras mulheres na vida
do marido! Primeiro, tivera medo dele e não quisera lhe trazer problemas.
Depois, cada dia de casada trazia uma surpresa nova, fora ficando
completamente à vontade, e, por estranho que parecesse, sentia-se próxima
dele. Era um homem de sentimentos profundos, bom. Ainda tinha um pouco
de medo, quando armava aquela carranca, ao se lembrar do pai dela. Ele, na
verdade, só queria ser educado, gentil e compreensivo, coisa que nunca
experimentara antes.
Era difícil, para ela, colocar em palavras, quanto mais dizer a ele que
gostava de estar sozinha com um homem, de ter alguém que ouvisse suas
opiniões, que respondesse, conversasse.
Gostoso levantar-se de manhã, e saber que ele estava lá. Que o dia ia
ser feliz e alegre. Achava tudo tão maravilhoso! Parecia até história de
fadas… e é claro que a bruxa haveria de aparecer. Logo agora, que
desabrochava, que se sentia como uma flor que abre as pétalas para o sol. De
repente, começou a ver Kelvin de outro modo: o homem que atraía as
mulheres e que, se desse crédito à conversa daquelas duas, também era
atraído por elas…
Seraphina nunca tivera permissão para ler romances de amor, mas
alguma coisa tinha se filtrado através dos clássicos. Havia amor na Grécia e
Roma antigas, amor nas histórias de rainhas e reis, amor nas vidas de homens
como Byron, Rubens, Napoleão.
Deveria ter aprendido, se não fosse tão boba, que os homens querem
de uma mulher mais do que amizade. Óbvio que estava oferecendo quase
nada ao marido. Conversinhas e passeios pelo tombadilho. Ah, como era
ignorante! Parecia estar dentro de uma neblina, sem achar a saída.

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Talvez eu o esteja prejudicando, pensou. Os homens precisam de
coisas que não sei dar…
Era tudo tão incoerente e confuso! Não conseguia resolver o quebra-
cabeça de seus pensamentos e sentimentos. Só sabia que estava
completamente perdida, num labirinto do qual não possuía a chave.
Quando encontrou lady Braithwaite, logo percebeu que era a mulher
que tinha ouvido conversar. Sentiu-se massacrada, pequena, insignificante,
perto da beleza, elegância e porte da outra. Era uma formiguinha, mesmo. E
aquele jeito de estender a mão para Kelvin, com a voz acariciante, terna… Se
era esse o tipo de mulher que ele admirava, como conseguia agüentá-la?
Ficou desesperada.
Toda a insegurança que sentira por tanto tempo e o medo que
tivera, quando o pai a avisara de seu próximo casamento, afloraram. Quis
sair correndo e se esconder num lugar onde ninguém a achasse, nunca mais.
Era óbvio, pela conversa que ouvira, que lady Braithwaite estava
apaixonada por Kelvin e que haviam significado alguma coisa um para o
outro. Amavam-se, com certeza.
— Devem ter tido uma amizade muito íntima —murmurou
Seraphina —, antes da morte do pai dela.
Ele não parecera muito feliz, ao vê-la, mas podia estar apenas
disfarçando. Devia saber que lady Braithwaite estava a bordo. Enquanto o
navio se sacudia, na baía de Biscaia, tivera tempo de pôr os pensamentos em
ordem e se preparar para o encontro inevitável. Por isso comportava-se tão
bem. Claro que não queria que Seraphina notasse nada.
Foram esses pensamentos que a fizeram corar no jantar, quando
Kelvin comentara que seria difícil esconder alguma coisa dela.
Assim mesmo, Seraphina se perguntava por que não serem
honestos. Por que não lhe confessava que amava lady Braithwaite?
Mas, se ele dissesse isto, o que faria ela?
Seraphina pôs a mão na testa. Qual seria a atitude certa a tomar?
Com certeza, tal problema já havia assaltado muitas mulheres, e o único
comportamento adequado era fingir que não percebia nada.
Neste caso, não existiriam mais a franqueza que aumentava entre os
dois, os laços de amizade que se estreitavam e permitiam que dissesse a
Kelvin tudo o que lhe vinha à cabeça.
Haveria segredos que não ousariam compartilhar e que seriam
barreiras inexpugnáveis.
— Por quê? Por quê? — perguntou, em voz alta. — Bem agora que

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eu estava começando a conhecê-lo! Por que essa mulher tinha que aparecer?
Sentia que uma coisa muito preciosa que havia crescido entre ela e o
marido escapava-lhe por entre os dedos.
— Talvez ainda queira ser meu amigo — disse a si mesma. E ficou
espantada por esse pensamento não lhe trazer a mínima alegria.
Só sentia tristeza. Uma tristeza tão forte, que podia ser chamada de
desespero.
Depois de tomar o café e o conhaque, Kelvin Ward levantou-se e
deixou o camarote.
Ia fazer todo o possível para não se encontrar com Auriel
Braithwaite. Não seria fácil, mas estava disposto a usar até estratégias de
guerra para evitar o encontro. Desconfiava de que ela agora estaria no salão
ou na sala de jogos, e subiu ao último convés do navio.
A cada dia que passava, o tempo ficava mais quente, e de
madrugada chegariam a Alexandria.
O céu estava estrelado. Kelvin passeou pelo tombadilho, feliz,
sentindo o cheiro do mar, a brisa, sozinho com seus pensamentos, sem
interrupções.
Parou na popa, debruçou-se na amurada e olhou o mar. Ouviu
imediatamente o farfalhar da seda e percebeu que alguém se aproximava.
— Escondendo-se de mim, Kelvin? — perguntou Auriel, com aquela
voz meio rouca que os homens achavam irresistível.
— Pensei que estivesse jogando baralho.
— Por isso que vim para cá — respondeu Auriel, zombeteira. Como
se lembrava daquele perfume sedutor, exótico, exagerado!
Ela era inglesa, mas tinha um longínquo antepassado russo e
gostava de imaginar que herdara dele características místicas e enigmáticas.
Conseguia encher de segredos e exotismo tudo o que dizia, cada palavra.
No começo, fez isto por artifício. Treinou até. Agora era instintivo.
Para os homens que a amaram, e foram muitos, era excitante ter que
interpretar seu comportamento e suas palavras para descobrir exatamente o
que ela queria.
— Não está encantado por me ver de novo'?
— Não!
— Precisa ser tão pouco galante e mal-educado?
— Sou um homem casado, Auriel.
— E isso deve fazer diferença para mim?
— Para mim, faz. Ela riu, mansa.

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— Desde Adão, os homens têm o costume de casar! Mesmo assim,
não resistem às tentações.
— Estou em lua-de-mel. Riu de novo.
— O cavalheiro perfeito, o espírito do regimento e Santo Antônio,
tudo misturado num homem só.
Kelvin endireitou-se e encarou-a, examinando sua figura perfeita.
Era linda e sabia disto. Apesar do friozinho da noite, tinha deixado o arminho
cair nos ombros, revelando a curva perfeita do pescoço, branco e translúcido
à luz das estrelas. Os olhos amendoados cintilavam e os lábios estavam
cheios de promessas.
— Há tanto que precisamos falar… — disse ela, com um suspiro. —
Sinfonias inacabadas me deixam angustiada.
— Não, Auriel!
As palavras de Kelvin foram firmes e até ásperas.
— Esqueceu o que já significamos um para o outro? Esqueceu
aquela noite no jardim em que me carregou para dentro e descobrimos mil
prazeres que não suspeitávamos existirem?
Falava apaixonadamente e cada vez se aproximava mais.
— Já disse que não, Auriel!
— Mas por quê? É casado, e o que isto quer dizer? Precisava de
dinheiro e sua mulher o ajudou. É compreensível… Deixou a Índia há menos
de um mês. Tenho certeza de que não conhecia essa moça antes de chegar à
Inglaterra. Se conhecia, não a amava.
Kelvin ficou quieto. Muito doce, ela murmurou em seu ouvido:
— Vamos terminar a sinfonia, Kelvin.
Passou os braços pelo pescoço dele. Antes que pudesse reagir, os
lábios dela apertaram os dele, o corpo bem junto, morno, palpitando. Sentiu a
boca sôfrega, apaixonada, exigente. Delicadamente, mas com firmeza,
desvencilhou-se dela.
— Eu disse que não, Auriel.
Virou-se, atravessou o tombadilho e desceu a escada, deixando-a
para trás, atônita.
Voltou para a sala junto ao camarote e serviu-se de mais um copo de
conhaque. Ouviu a porta da cabine de Seraphina se abrir. Fechou-se, quando
ele olhou.
Atravessou a sala, bateu e entrou.
Seraphina, ainda completamente vestida, estava de pé no meio do
quarto.

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— O que houve? Não foi dormir?
— Pensei que tinha saído… Não imaginei que voltasse tão cedo…
— Está nervosa. O que aconteceu?
— Nada… nada. Vou para a cama…
— Por que não diz a verdade?
— É que estou sendo tola.
— Não entendo.
— Não tenho nada a dizer. Pensei que você tinha ido passear no
convés.
— Você me ensinou a ser desconfiado, Seraphina. Sei que alguma
coisa a está perturbando. Por favor, conte-me tudo.
— Acho… que não entenderia.
— Experimente. Ela parou, indecisa, no meio da cabine, e depois
sentou na cama.
— Já discutimos tantas coisas juntos! Você prometeu me contar tudo
que pensasse ou sentisse. De repente, começou a esconder alguma coisa. Por
quê?
— É daqueles assuntos que não entendo. Não! Entendo, sim, mas…
— Voltemos à conversa do jantar. Você disse que havia coisas que
eu não gostaria que soubesse. A que tipo de coisas se referia? — Ela não
respondeu. — Tínhamos feito um pacto, Seraphina.
— É, fizemos. Mas acho que este assunto está por fora do
combinado.
— Não. Combinamos que contaríamos tudo.
— Tudo, mesmo?
— Pelo menos de minha parte, não vou esconder nada. Encarou-o
com aqueles olhos enormes, de aluna curiosa.
— Se fizer uma pergunta… indiscreta… não vai ficar zangado?
— Nunca vou me zangar com você.
— Está muito apaixonado por aquela mulher que acabamos de
encontrar?
Kelvin já tinha suas suspeitas, mas levou um susto com a pergunta.
— Quem andou tagarelando com você?
— Ninguém. Escutei uma conversa, por acaso.
— Quando?
— Hoje à tarde.
— Como foi?
— Abri a vigia e escutei duas mulheres conversando. Uma delas era

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lady Braithwaite.
— E ficou sabendo que nos conhecemos, no passado?
— Foi. Ela falou que se amaram. Foi bobagem minha. Nunca tinha
pensado nas outras mulheres da sua vida.
— E o que ia me dizer na hora do jantar?
— Ia dizer que, já que foi obrigado a casar comigo, eu não queria e
não devia atrapalhá-lo, se quisesse namorar… ou estar com as mulheres que
o atraíssem.
— Isto foi antes de conhecer lady Braithwaite. E agora que a
conhece?
— É tão linda, tão elegante e sofisticada, que compreendo o que
deve sentir por ela.
Parecia perdida e desamparada.
— Venha sentar aqui comigo, Seraphina. Quero explicar umas
coisinhas que ainda não sabe.
Olhou-o, nervosa, mas obedeceu.
— Sou bem mais velho do que você. Fui solteiro por muito tempo e
não insultaria sua inteligência, dizendo que jamais tive um caso amoroso.
— É… é claro.
— Há um jogo que os homens fazem com mulheres atraentes que
sabem que estão brincando. E não é caso de sair correndo, largar os maridos
ou causar escândalos. É só divertido. Para os dois.
Seraphina prestava toda a atenção possível.
— Às vezes, esses casos são só flertes ou chegam a intimidades mais
apaixonadas. Mas o homem sempre deixa um lugar muito especial para
aquela que será sua mulher e a mãe de seus filhos.
— Há uma diferença… de intensidade de amor?
— Uma diferença bem importante. Um cavalheiro não tem um caso
com uma jovem pura, sem sofisticação, ou com uma mulher que não sabe o
que está fazendo. — Parou e disse, com firmeza: — De fato, é um jogo do
qual, de acordo com as regras não escritas, ninguém pode sair magoado.
— Mas as pessoas se magoam, assim mesmo?
— Algumas vezes. E é lamentável. Mas, na maioria dos casos, o
casal se separa sem rancor e ambos se tornam amigos. — Kelvin continuou,
quase como um professor: — Quando olham para o passado, lembram-se
somente de um interlúdio agradável e simpático. Ambos sabiam que era só
isso; que não duraria a vida inteira.
— Acho que compreendo. Foi o que teve com lady Braithwaite? Um

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interlúdio?
— Exatamente.
— Quando ela falou sobre o caso de vocês, não me pareceu que os
verbos estivessem no passado.
Kelvin apertou os lábios. Por que, de todos os lugares do mundo,
Auriel Braithwaite escolhera justamente a vigia da cabine de Seraphina para
vir tagarelar?
Respondeu, com segurança:
— Sem querer ser maldoso, acho que você pode perceber que Auriel
Braithwaite é o tipo de mulher que gosta de dar a última palavra. Ela queria
ter decretado o final do jogo.
— Obrigada por me explicar essas coisas. Mas ela me faz sentir
como se eu fosse uma pobre coitada!
— Você é minha mulher. E deixe que diga com a maior sinceridade:
nunca encontrei, na minha vida, alguém que soubesse tanto sobre as coisas
que realmente valem a pena. — Ela levantou os olhos para ele, que
continuou: — Nós dois sabemos que há diferentes tipos de conhecimento,
assim como há diferentes tipos de amor. Acho que, nos últimos dias, nossas
cabeças passearam juntas por estradas estranhas e montanhas inexploradas.
Isto significa alguma coisa para você?
— Significa muito. Tanto, que nem posso explicar!
— Então, pense nisto, e não nas coisas que a embaraçam e
aborrecem. E agora, sugiro que vá para a cama. Eu também vou.
— Não vai passear no tombadilho outra vez?
— Não. Vou dormir. Se deixar a porta aberta, verá quando eu
apagar a luz.
— Se me diz alguma coisa, eu acredito. Não preciso ver para crer —
disse ela, com dignidade.
— Claro. — Sorriu. — Há honestidade entre amigos, e ainda somos
amigos, não é, Seraphina?
— Somos, sim. E, como amigo, você pôs o quebra-cabeça em ordem
e não estou mais perdida no labirinto.
—Eu lhe disse para confiar em mim. Kelvin saiu da cabine, fechando
a porta.
Na noite seguinte deixaram Alexandria. Quando chegaram a Port
Said, um dia depois, Seraphina ficou encantada. Nunca imaginara que
pudesse haver tantos navios esperando passagem no famoso canal de Suez,
aberto em 1869, e que era agora a principal artéria ligando o Oriente ao

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Ocidente.
Apesar de a Austrália ainda usar a rota do Cabo e de outros navios
darem a volta pelo Horn, todas as embarcações que iam para a Inglaterra com
carga perecível usavam o canal.
— A defesa do canal é responsabilidade da guarnição inglesa no
Egito — explicou Kelvin.
— Mas acredito que todos paguem a mesma taxa.
— É verdade. Os navios da Mala Real têm prioridade de tráfego e os
grandes barcos hindus pagam regularmente o equivalente a mil libras para a
travessia.
— Quem fica com o dinheiro?
— Os lucros são divididos entre os acionistas, e há capital francês.
Existem vinte e um diretores franceses para dez ingleses e um holandês. Nem
é preciso dizer que vivem em escaramuças sobre as taxas. Os ingleses querem
que diminuam, os franceses querem que aumentem! — Continuou
explicando que o canal era muito apertado: — Os grandes navios de guerra
só conseguem atravessá-lo desmontando os pesados canhões.
— Por que não o alargam?
— Não é uma solução política. Os ingleses já pensaram em abrir um
canal rival pela península do Sinai, mas desconfio de que, infelizmente, não
vão passar da idéia!
Quando passeavam no convés ou conversavam durante as refeições,
Seraphina percebia que lady Braithwaite os olhava atentamente e com uma
expressão desagradável. Aquela era uma rival que poderia ser perigosa, se
tivesse a oportunidade. Será que Kelvin percebia a inimiga que tinha feito?
Ela o ama, pensava Seraphina, e a idéia a deprimia. Como nunca
tinha sido capaz de controlar a imaginação, ficava acordada à noite,
pensando no que aconteceria, se Kelvin chegasse para ela, um dia, e dissesse
que queria a liberdade.
E se encontrasse a mulher de seus sonhos?
— Então, não seria um flerte nem um jogo passageiro, mas o
perderia completamente.
O pai ficaria uma fera, e até já se podia ver defendendo Kelvin da
fúria dele.
Ora, mas estava se torturando sem necessidade! Kelvin parecia feliz.
Nos últimos dias, não podia ser mais gentil e educado. Precisava tanto dele,
que sempre dava um jeito de estar em sua companhia. Ou seria medo de
perdê-lo para lady Braithwaite que a fazia se agarrar ao marido?

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— Ela não vai conseguir tomá-lo de mim! — disse a si mesma.
Depois pensou, desanimada, em que armas poderia usar numa luta tão
desigual.
Sem querer, observava lady Braithwaite o tempo todo. Admirava o
modo como a outra entrava no salão. Parecia uma prima-dona tomando o
centro do palco, ao sentar em seu lugar, resplandescente de jóias e vestindo
as roupas mais incríveis, desenhadas para causar inveja a qualquer mulher.
Seraphina tinha descoberto que o marido de lady Braithwaite era o
comandante de Bombaim. Não foi difícil conseguir a informação através das
outras mulheres com as quais passava algumas horas do dia. Elas lhe
contaram que sir Reginald Braithwaite era muito mais velho do que a mulher,
considerado muito sem graça e prosaico, e que não se interessava por nada
que não fosse o Exército.
— Lady Braithwaite é conhecida como uma mulher muito alegre! —
disse uma passageira mais velha, com cara de solteirona despeitada.
Seraphina suspirou, entendendo todas as implicações do
comentário.
Entre os passageiros da primeira classe havia alguns hindus, mas
uma família especialmente aguçava o interesse de Seraphina. Estavam num
camarote próximo e apareciam muito pouco.
Quando perguntou quem eram, foi informada de que uma das
senhoras era Sua Alteza, a rajmata de Udaipur, que voltava da Inglaterra para
a Índia.
— O que quer dizer rajmata? — perguntou ao marido.
— É a mãe do marajá.
— Gostaria muito de conhecê-la.
— Não vai ter muitas oportunidades — respondeu Kelvin, e o
assunto ficou por isso mesmo.
Ao se aproximarem do mar Vermelho, começou a esquentar muito.
Seraphina passava mais tempo no convés do que antes. O tombadilho da
primeira classe era logo acima do da segunda. Embaixo dos dois estava a
terceira, onde os passageiros às vezes dormiam, à noite. Não parecia muito
confortável, pois tinham que se ajeitar no meio das pilhas de cordas e
mastros. Apesar disso, se divertiam muito.
Debruçada no parapeito, Seraphina podia escutar uma citara hindu
ou observar crianças de pele morena e olhos amendoados correndo e fazendo
barulho.
— Por que se interessa tanto por eles? — perguntou Kelvin, quando

59
percebeu que ela não tirava os olhos da terceira classe.
— Acho que é porque são hindus. Tenho lido meus livros e cada dia
fico mais interessado pelo país, que me parece maravilhoso. Quero aprender
a gostar também do povo.
— Quero que você goste da Índia. Se lhe agradar, poderemos ficar
por alguns anos. — Viu um relâmpago passar pelos olhos dela e acrescentou,
rápido: — Não responda nada agora. Não quero que se precipite. Só depois
que estivermos algum tempo na Índia. Aí, sim, vou querer sua opinião.
— Já sei que vai ser uma surpresa muito agradável e quero amar o
país como você o ama.
Estava uma tarde muito quente. Depois do jantar, caminharam pelo
tombadilho. Seraphina tinha os ombros nus. Usava crepe rosa muito pálido,
com babados de tule que cascateavam de um laço de cetim, para formar uma
cauda. Parecia um botão de rosa, e Kelvin sabia que aquele modelo era a
última moda de Paris.
A roupa ficava muito bem em Seraphina. O vestido se ajustava à sua
figura esguia e bem-feita. O decote revelava a perfeição do colo, pescoço e
ombros.
Martha penteara seus cabelos, entremeando-os de estrelas de
brilhantes. O efeito era encantador, como um céu enluarado sobre o mar
sereno.
Escutava-se o barulho macio das máquinas e, ao longe, o som dos
violinos no salão de danças.
Abaixo deles, na terceira classe, não havia música. Vários soldados
se haviam juntado aos hindus. Riam, gargalhavam, muito rudes. Tinham
uma bola, que jogavam de lá para cá, atropelando-se, caindo, praguejando.
— Acho que a cerveja está correndo muito farta — comentou Kelvin,
secamente.
— Estarão bêbados?
— Totalmente bêbados, ainda não, mas agressivos e bagunceiros.
Seraphina debruçou-se e espiou o que acontecia. Os soldados estavam
realmente grosseiros e rudes. Um deles jogou a bola para o alto e o outro,
querendo impedir que ela caísse no mar, pulou para pegá-la, tombando sobre
uma criancinha hindu que os observava. A criança caiu no chão com um grito
agudo.
—Aquele soldado machucou a menina — disse Seraphina, enquanto
o soldado era levantado pelos companheiros.
Foram embora, rindo e zombando. A criança ficou caída, imóvel.

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— Está inconsciente — disse Seraphina, aflita.
— Alguém vai procurá-la, com certeza.
— Não parece que alguém se deu conta do que aconteceu.
Realmente, os passageiros do alojamento inferior estavam sentados do outro
lado do navio, onde soprava uma brisa fresca. A criança continuou imóvel,
no mesmo lugar.
— Precisamos avisar que está machucada, pois tenho certeza de que
está — ela insistiu.
— Eu vou.
— Deixe-me ir com você.
— Não há razão para isso. Farei o que for necessário.
— Quero ir. Vou ficar preocupada com a criança, se não for bem
cuidada. Por favor, leve-me com você.
Kelvin sorriu, cedendo.
— Venha, então. Vamos juntos, mas aposto que não aconteceu nada
e está se preocupando à toa. Seraphina deu a mão a ele.
— Vamos, depressa!
Bem-humorado, de mão dada com a mulher, Kelvin levou-a pelo
caminho mais rápido, descendo a escada até a terceira classe.
Demorou um pouquinho, mas afinal chegaram, com Seraphina
segurando todos os seus babados de tule num dos braços.
Não havia sinal de soldados, e os passageiros na outra extremidade
dormiam, nem se haviam apercebido da criança que continuava desmaiada.
Seraphina correu, ajoelhou-se e examinou a menininha hindu, de
cabelos pretos divididos ao meio e amarrados para trás com fitas vermelhas.
Usava brincos de ouro, mas o vestidinho era de chita, já muito usado.
— Deve ter batido a cabeça quando caiu e está inconsciente.
— Precisamos achar seus pais. Seraphina pegou a criança no colo.
— Olhe o bracinho dela! Kelvin, parece que quebrou! Na verdade, o
braço da menina caía num ângulo estranho.
— Não mexa nela — ele avisou. — Vou procurar um criado de
bordo e depois um médico.
Seraphina apertou a criança contra o peito e ficou esperando. Era
uma menina magrinha e devia ter cinco ou seis anos.
Um marujo atravessou o convés e olhou, espantado. Não deu uma
palavra e sumiu. Kelvin custou um pouco a voltar com o camareiro. Seguia-
os uma hindu, usando um sari, com uma marca de casta na testa.
Ajoelhou-se ao lado de Seraphina e, vendo que os olhos da criança

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estavam fechados, começou a chorar alto.
— Ela está bem. Não está morta. Só desmaiada. — A mulher não
entendeu. — Por favor, Kelvin, explique o que aconteceu.
Ele falou algumas palavras em hindi e a mulher parou de chorar.
— Encontrei a cabine deles. Está lotada, mas é melhor carregar a
criança para lá e depois procurar o médico.
— Muito cuidado, Kelvin. Tenho certeza de que o braço está
quebrado.
Ele pegou a criança no colo. Devagar, para não machucar a menina,
foi indo pelo labirinto de corredores, até chegar à cabine.
O camareiro abriu a porta, e Seraphina ficou horrorizada. Havia seis
crianças, uma velha e um homem na cabine de quatro beliches. Não havia
jeito de conseguir ali uma cama só para a menina.
Kelvin Ward pediu ao camareiro para arranjar outra cabine. Pagaria
por ela.
Há uma vazia do outro lado do corredor, senhor. Estava ocupada
até Alexandria.
— Então, abra.
O quartinho era pequeno e não tinha vigia, mas havia lugar para a
criança ficar sozinha. Devagar, Kelvin colocou-a sobre a cama. Ela abriu os
olhos e começou a chorar baixinho.
A mãe aproximou-se.
— Diga a ela para não mexer no braço da criança, até que o médico
chegue — pediu Seraphina.
Tirou um travesseiro do outro beliche e colocou o braço da menina
sobre ele.
— Traremos o médico imediatamente — disse Kelvin. Virou-se para
o camareiro. — Diga ao comissário de bordo que mande a conta da cabine
para mim.
— Pois não, senhor.
Kelvin falou então alguma coisa em hindi para a mãe. A essa altura,
um homem havia se reunido ao grupo, com certeza o pai. Logo chegou
também a velha do outro camarote, que devia ser a avó.
Kelvin e Seraphina subiram rapidamente a escada que levava à
primeira classe.
— Sei onde fica o consultório — disse ele. Foi na frente e bateu à
porta.
Seraphina lembrava-se do médico como um homem jovial, de

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bochechas coradas, que tinha sido apresentado a ela durante a tempestade na
baía de Biscaia. Desconfiava de que era preguiçoso, pois não precisava se
importar muito com a profissão e vivia na sala dos fumantes ou no bar, rindo
alto e sempre meio tocado pelo excesso de álcool.
Kelvin bateu novamente à porta. Ninguém respondeu. Tornou a
bater.
— Com certeza, está no bar. Vou dar uma olhada lá.
Voltaram pelo corredor e viram que um pequeno grupo se
aproximava em direção contrária. Eram três pessoas. Ao chegar mais perto,
Seraphina reconheceu o médico no meio, sustentado por dois camareiros.
Estava com o rosto muito vermelho, os olhos fechados e a cabeça caída no
peito. Falava sozinho; ou melhor, murmurava incoerentemente. Ao se
aproximarem mais, ela percebeu que os pés dele se arrastavam pelo chão.
Estava sendo carregado.
Seraphina e Kelvin encostaram-se na parede do corredor para que o
pequeno cortejo pudesse passar.
— Bem, o doutor está fora de si. Com ele, não arranjaremos nada —
disse Kelvin, secamente.
— Então, o que vamos fazer?
— Teremos que esperar até amanhã de manhã.
— Até amanhã? Mas é impossível! Quando ela voltar a si, vai estar
morrendo de dor! Uma vez quebrei o braço e sei o que é!
— Vou perguntar ao comissário. Mas duvido de que haja alguém
qualificado para substituir o médico. Se o braço for mal engessado, pode ficar
defeituoso por toda a vida.
Seraphina continuava angustiada.
— Alguma coisa tem que ser feita. A criança não pode sofrer. Além
disso, amanhã o braço estará muito inchado.
Já tinham chegado à primeira classe. À direita, ficava o salão de
festas.
Inesperadamente, Seraphina deixou Kelvin e entrou no salão.
As poltronas de veludo vermelho estavam cheias de passageiros e a
orquestra tocava. Para susto do marido, ela subiu na pequena plataforma da
orquestra e levantou a mão.
— Poderiam parar um pouquinho?
A música parou e o som de sua voz silenciou os passageiros
espantados. Todos se viraram para ela.
Seraphina respirou fundo e disse, em voz clara, alta, perfeitamente

63
audível:
— Aconteceu um desagradável acidente com uma criança. Acho que
quebrou o braço. Há alguém aqui qualificado para atendê-la?
Do fundo do salão, um homem de fraque se levantou.
— Sou médico. Aposentado, mas ainda capaz de realizar minhas
antigas tarefas.
— Obrigada, doutor. Por favor, siga-me.

64
CAPÍTULO V

Kelvin Ward voltou para a cabine depois de um jogo estafante de


tênis e encontrou Seraphina esperando por ele, com um rosto de pura alegria.
— Kelvin, Kelvin, adivinhe o que aconteceu!
— Aposto que foi coisa boa.
O rosto da moça estava afogueado e os olhos brilhavam.
— Imagine que um hindu velhinho bateu à porta há pouco e
perguntou se eu honraria Sua Alteza, a rajmata de Udaipur, tomando chá com
ela.
— Era isso a que queria, não era?
— Não sei por que me convidou, mas aceitei. Você não se importa?
— É claro que não. Vai ser muito interessante, e acho ótimo que seu
primeiro convite, feito por hindus, venha de uma das mais antigas dinastias
da Índia.
— Conte-me tudo sobre eles.
— O marajá de Udaipur é o chefe de trinta e seis tribos reais. A casa
de Mewar é a única dinastia que ainda domina o mesmo território de seus
antepassados.
— São rajaputros? — perguntou Seraphina, dando uma olhadela
nos livros que andava estudando.
— Os rajaputros são a tribo mais romântica e interessante da Índia.
Acreditavam descender do Sol, da Lua e do fogo divino.
— Que maravilha!
— Em coragem e bravura, igualavam-se aos cavaleiros medievais e
adoravam a guerra! — Sorriu. — Se não havia guerra, caçavam, mas
preferiam combates. Quando não achavam um inimigo, brigavam entre si.
— Meu livro diz que são muito bonitos.
— Suas princesas foram sempre famosas pela beleza e também pela
audácia e independência — continuou Kelvin. — Ao contrário de todas as
mulheres hindus, escolhiam os maridos e saíam para caçar com eles.
Seguiam-nos até nas batalhas.
— Devem ter sido realmente corajosas!
— Mais fortes ainda quando, orgulhosamente, jogavam-se na pira
funerária dos maridos e se suicidavam. Queimadas vivas! Os ingleses

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proibiram isso.
Seraphina arrepiou-se toda.
— Apesar do comportamento emancipado — explicou Kelvin —, os
príncipes sabiam como controlar suas mulheres. Nos palácios, havia a
“Câmara da Raiva”, onde a princesa era presa, até que seu ataque de raiva
passasse… e pedisse desculpas.
Seraphina riu.
— E o que acontecia, se o príncipe ficava zangado?
— Ele era um marajá; portanto, superior. É claro que podia se
comportar como bem entendesse. Os homens devem fazer o que lhes der na
telha, sem intervenção de ninguém! — zombou o marido.
— Você é arrogante e mandão. E as mulheres? Não têm direito
algum?
— Só as que tentam agradar seus amos e senhores.
— Você é um rajaputro, logo se vê!
— Bem que gostaria de ser. São homens excepcionais.
— Como? Conte-me mais um pouquinho.
— Nunca admitem a derrota. Entre os príncipes hindus do Norte da
Índia, os rajaputros foram os únicos que continuaram a luta contra os
muçulmanos. Se por acaso perdiam uma batalha, não eram aceitos em casa
pelas mães e mulheres.
— O que me deixa mais interessada ainda em conhecer a rajmata.
— Com certeza, ainda guarda vestígios de beleza, por ter sido uma
rajput.
— Não elogie demais. Fico nervosa de visitar alguém tão superior, e
acabo não indo tomar chá com ela.
— Você, nervosa? Tímida? Nunca mais acreditarei nisso, depois do
que fez ontem à noite.
Seraphina corou. Ele vinha brincando com ela desde que havia
chamado o médico para cuidar do braço da criança. Quando levaram o
doutor à terceira classe, Kelvin insistiu para que ela não presenciasse a cena.
— Vai deixar você aflita. O dr. Brownlow me disse que trabalhou
muito em Harley Street. Tenho certeza de que pode deixar tudo nas mãos
dele, sem preocupação.
Obediente, Seraphina voltou para o camarote. Mais tarde, chegou
um recado de que a criança estava bem e que o médico lhe dera alguma coisa
para dormir.
Quando ficou sozinha com o marido, percebeu pela primeira vez

66
que seu comportamento tinha sido imprevisível e impulsivo. Olhou para
Kelvin, querendo dar explicações.
— Não está zangado por eu ter ido procurar ajuda no salão, está? —
Mas é claro que não. Ao mesmo tempo, fico pensando o que teria acontecido
com aquela ratinha, morrendo de medo da tempestade, e que, além disso, me
confessou ser covarde.
— Esqueci de mim. Fiquei tão preocupada com aquela criança
sofrendo, que só pensei em arranjar um jeito de melhorar a situação dela.
Tinha que fazer alguma coisa. Foi simplesmente isto.
— E surtiu efeito. Ainda acho que foi coragem sua, subir na
plataforma da orquestra, mandar todo mundo calar a boca e fazer seu
pedido.
No dia seguinte, tinham ido visitar a menina para ver se podiam
ajudar em mais alguma coisa. Não havia brinquedos a bordo para serem
comprados, mas Seraphina achou um pouco de lã colorida, lenços vermelhos,
cor-de-rosa e azuis e outras coisinhas com as quais a garota poderia se
divertir.
Não errou. A pequena hindu adorou tudo e o pai e a mãe
agradeceram profusamente. O inglês do pai era excelente.
— Parecem muito pobres — disse Seraphina a Kelvin, mais tarde.
— Como conseguem viajar num navio deste tipo, mesmo na terceira
classe?
O homem trabalhava para uma companhia hindu, na Inglaterra. Os
filhos nasceram lá. Economizou dez anos para poder voltar à Índia.
— E o que vai fazer lá?
— Imagino que tentará um emprego novo. Até achá-lo, ficará
amontoado com a família na casa de parentes.
— Não posso acreditar que alguém seja muito bem-vindo com
mulher e sete crianças!
— Os hindus têm um grande respeito pelo parentesco. A família
cuidará dele, desde que pisar sua terra até que consiga se manter sem
problemas.
Os conhecimentos de Kelvin sobre os hábitos do país seriam úteis
também agora.
— É preciso achar um presente para Sua Alteza — lembrou ele.
— Um presente?
— No Oriente, o convidado sempre presenteia o anfitrião ou a
anfitriã.

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— Que ótima idéia! O que posso dar à rajmata?
Depois de muita discussão, decidiram por uma caixinha antiga,
presente de casamento. Seraphina embrulhou-a em papel de seda e a
amarrou com um bonito laço vermelho.
Kelvin desconfiava de que a mulher havia sido convidada para o
chá com a rajmata por causa de seu gesto para com a menina hindu. Não
errou.
Ao entrar no camarote, Seraphina viu que a rajmata não podia
levantar-se da cadeira de rodas. Depois de cumprimentar como hindu,
fazendo o namashar, isto é, unindo as palmas e os dedos das mãos, a velha
falou, num inglês perfeito:
— Peço desculpas, sra. Ward, por não poder levantar-me para
saudá-la, mas tenho uma grave artrite nas pernas que não me permite ficar
em pé.
Devia ter sido linda, quando moça, pensou Seraphina. Tinha feições
fortes e um nariz aquilino que lhe davam uma expressão de orgulho, muito
vista nas pinturas hindus. Seus cabelos, outrora negros e compridos, eram
brancos agora, e usava um sari vermelho, que brilhava e reluzia com cada
movimento. Suas pulseiras e anéis, assim como o colar, eram de rubis e
diamantes. Seraphina pensou que, mesmo que desconhecesse sua origem
real, teria desconfiado.
Sua Alteza era servida por outra mulher, quase tão velha quanto ela,
dama da corte escolhida para acompanhá-la à Inglaterra.
— Fizemos esta longa viagem — explicou a rajmata — porque meu
netinho precisava operar a vista. Soubemos que ninguém seria capaz de fazer
esta operação tão bem como um cirurgião inglês e, de fato, a viagem foi mais
do que justificada.
— Que bom! Fico contente. Posso ver o pequeno príncipe? A
criança, de quase dois anos, foi trazida ao camarote. Seraphina percebeu que
a ayah, ou ama, era quase uma menina e morria de medo da rajmata. O
pequeno príncipe ainda estava com um olho vendado, mas parecia robusto.
Sentado no colo da avó, brincou com suas pulseiras, todo alegre.
— Qual é o nome dele?
— Akbar. Por causa de seu ilustre antepassado.
— É o filho mais velho do marajá?
— Sua alteza é o herdeiro — respondeu a rajmata. — Um dia, será
“O Sol dos Hindus”. — Havia muito orgulho na voz dela.
— Li um pouco de sua história e meu marido me contou como os

68
rajaputros são corajosos.
— Suas batalhas e escaramuças deixaram nosso país em estado
quase selvagem. Só conseguimos paz sob a proteção britânica, em 1817.
Agora, temos tranqüilidade.
— Isso é bom. Fico contente.
— É sua primeira visita à Índia, sra. Ward?
— Sim. Estou ansiosa para chegar. Meu marido ama a Índia e tenho
tentado estudar seus costumes, seu povo.
— Foi por sua atenção para com um súdito de nosso país — disse a
rajmata — que a convidei para me honrar com sua presença no chá.
Seraphina sorriu.
— A senhora está falando sobre a menina de braço quebrado?
— Contaram-me como se interessou por ela. Seu marido chegou a
lhe arranjar uma cabine. Foi muita gentileza.
— Na realidade, devíamos estar nos desculpando. Foi um soldado
inglês que a derrubou.
— Foi o que me contaram.
Seraphina desconfiava de que tinham lhe contado cada pequeno
detalhe do episódio, muitas e muitas vezes. A velha senhora sabia de tudo.
Conversaram sobre a localização de Udaipur e a rajmata disse, na
hora de Seraphina ir embora:
— Espero que seu marido ache tempo para trazê-la até Rajasthan. É
linda, na primavera, e considerada uma das regiões mais pitorescas da Índia.
— Ouvi contar que é um lugar de lenda e romance, e que os
príncipes eram como cavaleiros medievais.
— Contanto que não se decepcione… — sorriu a rajmata.
Enquanto conversavam, foram servidas, por criados, com iguarias
que Seraphina nunca tinha visto. Além de tâmaras, figos e passas, docinhos
em vários formatos, a maioria recheada com coco. Nenhum talher foi usado.
Geralmente, os hindus comiam com as mãos, o que exigia técnica. Havia
regras e muita etiqueta. Os hindus do Norte achavam que os do Sul não eram
finos para comer, pois enfiavam a mão inteira no prato; os do Sul, por sua
vez, não entendiam como se podia apreciar a comida tocando-a só com a
ponta dos dedos.
Seraphina aprendeu que nunca se devia usar a mão esquerda, pois
era considerada suja, nem oferecer a ninguém comida do próprio thali, isto é,
dos vários potinhos colocados à volta do convidado. O alimento do thali,
mesmo que não tivesse sido tocado, tornava-se jutha, isto é, sujo, poluído. No

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fim das refeições, eram trazidas pequenas bacias de água para lavar as mãos
e, finalmente, a cerimônia de fazer o pcan.
Seraphina estava encantada por aprender assim, ao vivo, coisas e
costumes. Ficou fascinada ao tomar parte na fabricação do paan. Uma das
criadas trouxe o paan-daan, uma bandeja de prata e filigrana, dividida em
compartimentos. Num deles, as folhas de bétel e, nos outros, vários
ingredientes: coco ralado, açafrão, tabaco, cravo, anis e outras especiarias.
O enrolar dos condimentos nas folhas de bétel era considerado o
mister mais gracioso para as mãos femininas, e o paan, comido para facilitar a
digestão e perfumar o hálito. Quando se procurava uma noiva, uma das
qualidades principais exigidas era sua arte em enrolar o paan.
Depois de tentar imitar as outras, Seraphina conseguiu embrulhar o
seu e foi muito elogiada. Ao comê-lo, sentiu o sangue subir ao rosto, ficou
com a língua pegando fogo, mas disfarçou bem. Viu que era hora de ir
embora.
— Muito obrigada por me convidar, Alteza. Queria conhecê-la
desde que entrei neste navio.
— Tenho certeza de que ainda nos encontraremos. Por tudo o que
fez, beijamos-lhe os pés. Todos levantaram as mãos em namashar. Seraphina
fez uma reverência e deixou a cabine.
— Sua Alteza é maravilhosa — contou a Kelvin. — Tão bonita como
você disse que seria. Espero ficar parecida com ela, na velhice.
— Ainda falta muito.
Seraphina queria ter ouvido dele que seria mesmo linda, quando
velha, mas lembrou, com um aperto no coração, que ele lhe prometera dizer
somente a verdade.
Como poderia achá-la bonita, tendo lady Braithwaite como
comparação?
Apesar de tudo o que ele lhe dissera para tranqüilizá-la, sentia uma
pequena dúvida alfinetando-a. Quem garantia que Kelvin não estava se
encontrando com Auriel sem que ela se desse conta?
Seria tão fácil dizer que ia jogar tênis, ou passear pelo tombadilho, e,
em vez disso, ir se encontrar com ela, que usaria toda a sua sedução para
envolvê-lo outra vez! Mas Kelvin havia garantido que tudo acabara… No
entanto, bem que Seraphina via o olhar de mormaço que lady Braithwaite
lançava, quando entrava na sala de jantar. Derreteria qualquer um. Tinha
certeza de que ela ainda desejava o “amante apaixonado”. Não precisava
nem dizer. Era evidente.

70
Será que Kelvin a beijara? Como seria sentir os lábios dele? Sempre
imaginara beijos como coisas suaves e delicadas. Agora não tinha certeza.
Talvez se parecessem mais com o recheio do paan hindu… Havia alguma
coisa em Kelvin muito forte e masculina. Provavelmente, os lábios dele eram
duros e exigentes. Mas exigindo o quê? Qual o significado de “amante
apaixonado”? Tinha umas idéias, é claro, mas foi à.biblioteca do navio, ver se
descobria mais alguma coisa sobre o amor.
Não havia nada lá que pudesse ajudar pelo menos um pouquinho.
Os romances eram rançosos. Os homens e as mulheres se comportavam de
uma maneira que não tinha nada a ver com a vida real. E o resto da biblioteca
era de livros sobre viagens ou biografias, de estadistas ou generais mortos há
muito tempo.
De noite, quando passeavam no convés, quase teve o impulso louco
de pedir a Kelvin que a beijasse para ver como era.
Será que ele entenderia que se tratava de pura curiosidade?
Pensou bem e achou que não compreenderia um pedido tão
estranho. Além disso, nenhuma mulher com um senso mínimo de
conveniência pediria um beijo a um homem.
Que seria gostoso ter Kelvin ao lado, não como amigo, mas como
namorado, lá isto seria!
Ficou vermelha por pensar em tanta bobagem.
Mas, se era seu marido, não havia nada de proibido ou
inconveniente!
Não! Estava sendo egoísta e voraz. Querendo mais do que o muito
que já tinha. O pai poderia tê-la casado com um sujeito insuportável e sem
consideração, que risse dela, quando tivesse medo, que não se interessasse
por suas opiniões, que a ignorasse, como sir Erasmus costumava fazer. Na
verdade, tinha tido muita sorte. Devia era agradecer a Deus.
No entanto, apesar de todas as resoluções, sentia uma vaga
insatisfação. Alguma coisa dentro dela pedia mais.
Ao chegar o fim da viagem, o calor piorou. As senhoras levavam
seus leques e, quando andavam pelo convés usavam sombrinhas elegantes.
Os vestidos de Seraphina, de cores vivas, feitos de crepe da Índia,
faziam com que Kelvin a elogiasse. Ela morria de alegria, os olhos brilhando.
— Acha mesmo que sou bonita? Não é só por delicadeza que me diz
essas coisas?
— Combinamos falar só a verdade. Vou dizer de novo, para que
acredite: está muito bonita. Ou melhor ainda: linda.

71
Seus olhos se encontraram e Seraphina sentiu algo estranho e
magnético passando entre eles, como uma faísca. Antes que ela entendesse o
que estava acontecendo, ele se virou de costas.
— Chegaremos ao porto de Bombaim esta tarde. As malas estão
prontas?
— Martha anda fazendo as arrumações há dois dias e resmungando
o tempo todo!
Kelvin deu uma risada.
— Desconfio de que Martha vai querer voltar para casa logo que
chegarmos.
— Ela está ameaçando ir embora.
— Vou arranjar uma criada hindu para você. É um erro ter criados
ingleses, na Índia. Ou são excessivamente dominadores e querem ser tratados
com mais respeito ainda do que os patrões, ou então fazem tudo sozinhos, o
que confunde a hierarquia do sistema de castas.
—Você vai me explicar tudo direitinho, porque não quero meter os
pés pelas mãos em minha nova casa.
— Não há perigo. Serei um professor dedicado.
Sentiu que ele queria protegê-la e ficou feliz.
Mais tarde, o calor amainou, uma brisa começou a refrescar o convés
e Seraphina descortinou, à distância, a silhueta indefinida do horizonte.
— A tempestade na baía atrasou mais o navio do que pensou o
comandante — disse Kelvin. — Acho que vai estar escuro quando descermos,
e eu queria tanto que você tivesse uma imagem alegre e colorida das ruas,
como primeira impressão. É esse tom de balbúrdia e cores que faz a Índia
diferente de todos os países do mundo.
— Não tem importância. Você me mostra amanhã. — Seraphina
nem sabia se ele teria tempo a perder com ela e ficou pensativa.
Kelvin estava louco para chegar a Bombaim, ver seus navios e
escutar as últimas novidades da companhia. Tornara-se o sócio principal, por
investir muito mais dinheiro do que previa.
Olhou-o de soslaio, enquanto estava distraído, tentando descobrir a
cidade que se aproximava. Como era bonito! Havia algo de nobre na testa
larga, no queixo quadrado. Os olhos cinzentos eram mais penetrantes e
expressivos do que os dos outros homens. Ou estaria sendo parcial? Não.
Eram olhos francos; ou talvez, melhor: honestos. Olhos honestos. Seria difícil
imaginá-lo envolvido em qualquer coisa ilegal. Talvez nunca conseguisse ser
um bom negociante. Não achou ruim a idéia, pois isto o colocava à distância

72
de todos aqueles magnatas horrorosos que conhecia através do pai.
— É melhor eu tentar descobrir a que horas vamos atracar — disse
Kelvin.
— Por favor, faça isso. Vou ver se Martha já acabou, mas sem dizer
que há terra à vista; senão, ela entra em pânico.
— Volto já, já.
Seraphina foi para o camarote. Agora, depois de tudo empacotado, o
lugar parecia nu e triste. Tanta coisa havia acontecido naquela viagem!
Era estranho pensar que aquelas paredes sairiam de suas vidas. Por
vinte dias, a cabine fora palco de sua felicidade, de calma e tranqüilidade. O
futuro apagaria aquele pequeno espaço de tempo, que, apesar de tudo, havia
sido muito importante. Nem vamos deixar nossa marca, pensou. Mas, com
uma casa, é diferente!
Nem sempre… Há pessoas que moram anos no mesmo lugar, mas,
como não vivem ali intensamente, a casa continua anônima e sem
personalidade, quando saem. A atmosfera não se enriquece, quando a vida é
pobre. Só sobram os tijolos e o cimento. Uma casa devia ser muito mais do
que isto, disse a si mesma, principalmente se for um lar. Naquele instante,
resolveu que, se ela e Kelvin tivessem um lugar só deles faria o possível para
torná-lo um ninho de felicidade e conforto. Não seria apenas a casa para a
qual ele voltaria para descansar. Seria um lar em todos os sentidos da
palavra.
Mas desconfiava de que, mesmo em Bombaim, o pai arranjaria um
jeito de se imiscuir na vida deles, e Kelvin não ia gostar.
Até tremeu um pouco, ao pensar em sua zanga. Depois do pacto
firmado entre os dois, talvez não pusesse nela a culpa de alguma coisa que
ela não podia remediar. Mas era seu dinheiro que Kelvin estava gastando!
Não só para a nova companhia, como para as despesas do dia-a-dia. Se ele
tivesse pelo menos um pouco! Só dele!
É claro que, cada vez que assinasse um cheque ou pagasse uma
conta, ele se ressentiria. Cada vez que comprasse um presente para ela,
saberia de quem era o dinheiro.
— Detesto dinheiro. Detesto! — disse, em voz alta. Mas acontece
que, se não fosse pelo dinheiro, não estaria casada com Kelvin. — Tenho que
esquecer que sou rica.
Um pensamento insinuou-se, malvado: o que lady Braithwaite dera
a ele não podia ser traduzido em dinheiro; era fácil de aceitar, com prazer,
com carinho, sem rancor.

73
Kelvin voltou ao camarote.
— Desembarcaremos dentro de uma hora, mais ou menos. Pedi um
drinque. Quer um refresco?
— Obrigada — disse ela, arrancando um sorriso lá do fundo.
— Não adianta ficar no convés. É o que todo mundo faz, e no fim
estaremos cansados antes de botar o pé em terra.
— Ficaremos aqui, então.
— Foi tudo arranjado para a nossa chegada e há gente nos
esperando. Telegrafei para um de meus sócios para escolher uma casa para
nós. Os hotéis estão geralmente cheios e não são confortáveis. Acho que
podemos alugar uma casa por uns meses, para ter tempo de procurar algo
que nos agrade.
— Seria ótimo! Prefiro mil vezes uma casa minha a um hotel!
— Tenho quase certeza de que haverá uma esperando por nós. Será
que vai ser uma boa dona-de-casa?
— Espero que sim.
— Não fique com essa carinha aflita. Na Índia há gente para fazer de
tudo. Teremos um rapazinho para supervisionar. Ele encontrará os outros
criados, que, com certeza, serão todos seus parentes. A única coisa que você
precisa fazer é dar ordens e ser bonita!
— Quero que se sinta bem…
— Vai conseguir, estou certo.
O comissário trouxe o drinque e Kelvin pegou uns papéis que
andava estudando, relacionados com a nova companhia.
Seraphina não o interrompeu com conversas inúteis, mas ficou de
novo corujando, achando que o marido era lindo. O pior era que muitas
mulheres deviam achar a mesma coisa!
De repente, ouviram-se passos no corredor, sinos batendo e gritos.
Kelvin levantou a cabeça.
— O que será que aconteceu?
— Parece que há alguma coisa errada — respondeu Seraphina.
Ele abriu a porta. O barulho era ensurdecedor. Sumiu no corredor,
deixando-a sozinha.
O que teria acontecido? Seraphina foi para o quarto, esperando
encontrar Martha lá, mas só estavam as malas, muito bem arrumadas com
cordas.
— Onde está você, Seraphina?
— Aqui no quarto. Kelvin entrou, pegou o xale em cima da cama e o

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colocou nos ombros dela.
— Não precisa se assustar, mas talvez haja necessidade de usarmos
os botes salva-vidas.
— Os botes? Mas o que houve?
— Um incêndio irrompeu a bordo. Pode não ser nada sério. Talvez
possamos até continuar no navio. Mas, aconteça o que acontecer, não há
motivo para pânico. Bombaim já está à vista e há dezenas de navios para nos
salvarem.
— Está… está bem… — respondeu, com o medo à flor da pele.
Kelvin abraçou-a pelos ombros e começou a conduzi-la pelo corredor.
As pessoas se apertavam, trombavam, gritavam e tentavam chegar
primeiro ao convés nos botes.
— E Martha? — gritou Seraphina.
— Está tudo bem. Já a avisei.
Tinha havido um treino de salva-vidas no canal e, depois, no
Mediterrâneo. Tanto melhor! Mas Seraphina percebeu que não fazia idéia de
para onde se dirigir. Se Kelvin não estivesse com ela, certamente entraria em
pânico. Esperava que Martha estivesse a salvo. No momento, a única coisa
que podia fazer era força para se conservar em pé.
Os passageiros da classe inferior e da segunda classe só queriam
saber de salvar a pele e empurravam com toda a força os que encontravam
pela frente. Se Kelvin não a protegesse, ela teria caído e sido pisoteada.
Finalmente, conseguiram chegar ao lugar estipulado pelo capitão,
em caso de perigo. O bote já estava sendo içado para que embarcassem.
Alguns barcos já estavam cheios, só esperando a voz de comando para
descerem.
Na confusão, era difícil entender qualquer coisa.
— O capitão deu ordens para abandonar o navio? — Kelvin
perguntou, aos gritos.
Ninguém sabia dar uma resposta.
Os marujos, nervosos, virando a cabeça de um lado para o outro,
esperavam ordens de um comando mais alto, de algum oficial superior que
não aparecia.
Seraphina sentiu cheiro de fumaça que parecia vir do lado do
camarote deles.
— Onde é o fogo?
— Acho que começou no tombadilho da segunda classe. Mas não
tenho certeza. Ninguém sabe de nada e não posso deixar você, para ir

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descobrir.
— Não, pelo amor de Deus, não! — Agarrou-se ao braço dele com
mais força ainda.
— Calma. Juro a você que não há perigo real.
— É… claro… que não — disse ela, completamente em dúvida. Mas
não sentia tanto medo como seria normal. Afinal, Bombaim estava pertinho.
A sirene de neblina buzinava seus sinais, e não demoraria muito a aparecer
um navio para socorrê-los.
— Não entendo como pode aparecer um fogaréu a essa hora do dia,
sem que ninguém perceba — reclamou um velhote inglês, fungando de raiva
e colocando-se em seu lugar, ao lado deles.
— Acho que todo mundo estava se preparando para o
desembarque… — começou Kelvin.
— Escreverei para o Times sobre isto. — E o velho brandia um
guarda-chuva. — Não é coisa que aconteça num navio inglês!
Fungou, ofendido, e uma senhora se juntou a ele, aos berros:
— Seremos salvos? Tem certeza de que seremos salvos?
— Ora, vamos, Matilda, não adianta ficar nesse estado — sossegava
o marido. — Não vai adiantar nada.
Seraphina só queria que Kelvin reparasse como estava se
comportando bem, sem histerias nem gritinhos.
Esperavam, e a ordem começou a se estabelecer, pois quase todos já
haviam achado seus lugares.
Foi então que Seraphina viu a rajmata de Udaipur sendo levada em
sua cadeira de rodas, pela mulher mais velha e um senhor também idoso,
para o mesmo lugar onde estavam.
— Olhe, Sua Alteza! — disse a Kelvin. — Deve estar preocupada,
pois não pode andar e terá que ser carregada até o bote.
— Não haverá problemas…
A cadeira da rajmata parou ao lado deles e Seraphina largou o braço
do marido para fazer uma pequena cortesia em direção à princesa.
— Está bem, Alteza? Meu marido diz que não há perigo, por
estarmos tão perto de Bombaim.
— Sou um trambolho, um estorvo, numa hora dessas — disse a
velha, em seu tom firme e calmo.
Ela é ainda muito orgulhosa e não quer mostrar que está com medo,
pensou Seraphina. Além de tudo, é uma rajput!
O tremor que sentia diminuiu um pouco, ao ver a mulher

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imperturbável. Perguntou;
— O príncipe está com a ayah?
— Infelizmente, o bote deles não é o nosso — respondeu a rajmata.
Com certeza, deviam estar em algum dos botes já cheios. Seraphina
olhou para baixo e viu um sendo descido, levando só mulheres e crianças e
alguns poucos homens para remar.
Arrepiou-se de medo, pensando que ficaria sozinha no barco salva-
vidas. Kelvin esperaria, com os outros homens, que as mulheres e crianças
saíssem primeiro.
Gostaria de ficar com ele!, suspirou.
Sentiu um tremor súbito. Se ele ficasse para trás, talvez não o visse
nunca mais. Resolveu pedir para ficar a seu lado. Mas sabia, antes de fazer a
pergunta, que a resposta seria negativa.
Continuou espiando a descida e avistou a ayah do príncipe. Era a
única no bote usando sari; por isso, foi fácil identificá-la.
Seraphina voltou-se para dizer à rajmata que o príncipe estava salvo,
quando percebeu que a ama não tinha nada nos braços.
Quem sabe outra pessoa no barco segurava o príncipe? Não. Só se
viam crianças mais velhas, sentadinhas ao lado dos adultos.
Nenhum bebê. Seraphina assustou-se. Sem avisar a Kelvin do que ia
fazer, atravessou o tombadilho, entrou no navio e correu em direção ao
camarote da rajmata, que não era longe do deles.
Agora, nada a impedia. A multidão que empurrava, gritava e corria
já estava toda lá fora.
Havia, no entanto, uma fumaça densa que fazia Seraphina chorar e
que a sufocava. Tossindo, atravessou aquela nuvem e encontrou a porta
aberta da cabine da ama e da criança. Escutou o choro do menino. Estava no
berço, com certeza, no mesmo lugar em que a ayah o deixara, amedrontada
demais para se lembrar dele.
Seraphina agarrou-o nos braços e, imaginando que a fumaça agora
poderia estar pior, cobriu sua cabeça e a do menino com o xale.
Começou a correr de volta, segurando a criança com força contra o
peito.
Já havia fogo no corredor. As chamas lambiam as paredes, quase
impedindo a passagem. Sufocada, só sabia pensar: tenho que encontrar
Kelvin! Só com ele estaremos seguros!
O calor era insuportável. Abaixou bem a cabeça e investiu para a
frente, sem ver, sem querer olhar. Apertou tanto a criança, que ela começou a

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gritar. O fogo queimou suas mãos, mas atravessou-o, sabendo que, mais
além, estava Kelvin.
Braços fortes a enlaçaram e escutou a voz dele:
— Seraphina, pelo amor de Deus! Você está bem?
Era Kelvin, seu marido. Não precisava mais fazer esforço algum.
Fechou os olhos…

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CAPÍTULO VI

Sentada na varanda, Seraphina olhava o jardim florido. Mais além, o


mar se fazia muito azul, sob uma névoa leve que se erguia sobre a baía.
As mãos, ainda enroladas em gaze, descansavam no colo. O médico
tinha dito, de manhã:
— Não volto mais, sra. Ward. A não ser que mande me chamar.
— As cicatrizes vão desaparecer logo?
— Tem muita sorte, senhora. Ou então, é muito esperta e sensata. Se
não pusesse o xale na cabeça e protegesse o rosto, a história seria muito
diferente.
Martha havia dito a mesma coisa, só que com uns reparos:
— Se a senhora não tivesse mudado de roupa e vestido a seda
pesada, como mandei, a musselina de que gosta tanto teria se incendiado
toda.
Seraphina tinha consciência de que o fogo poderia ter deformado
seu rosto com cicatrizes indeléveis. Escapara por pouco.
Não se lembrava de nada, depois de passar pelas chamas e cair nos
braços do marido. Mais tarde, ficou sabendo que não fora preciso nem sair do
Tiberius, pois o fogo acabou sendo controlado.
Muitos botes saíram carregados de gente, mas ela e Kelvin ficaram a
bordo e atracaram em Bombaim uma hora depois.
— Será que o príncipe estaria bem, se eu o tivesse deixado lá? —
perguntou a Kelvin, quando ouviu toda a história.
— Uma boa parte do navio ficou danificada. A segunda classe e
alguns camarotes da primeira, sobre o local onde o fogo começou, sofreram
demais. A cabine do príncipe foi totalmente destruída.
Seraphina engoliu em seco, e ele continuou:
— Sabe quanto admiro sua bravura ao salvar a criança, mas nada do
que eu possa dizer iguala à gratidão de Sua Alteza.
A rjmata encheu a casa com flores e presentes. Quando o médico deu
alta a Seraphina, o grupo real já havia voltado para Udaipur. Só por isso ela
não recebera os agradecimentos pessoalmente.
— De certo modo, fiquei até contente — disse a Kelvin. — Apesar de
querer rever Sua Alteza, é sempre desagradável receber agradecimentos.

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— Bem que merece a gratidão deles. Sem você, o príncipe não
estaria vivo.
— E o que vai acontecer com a ama?
— Será severamente punida por ter negligenciado a criança. —
Apesar de sentir pena da ama, Seraphina achava que realmente havia sido
uma leviandade dela deixar o menino em perigo e fugir. — Acho que sabe
que é a heroína do mês. Ou do ano… sei lá…
— Ah, não!
— Saíram manchetes nos jornais de Bombaim e estou sendo
assediado por um sem-número de jornalistas que querem conversar com
você.
— Por favor, não posso falar. Nem tenho nada a dizer!
— Eles próprios já falaram bastante. Ou melhor, escreveram!
— Nem me lembro direito do que aconteceu… E era verdade.
Parecia tudo um sonho estranho. A coragem que a impelira a salvar o
príncipe misturava-se a uma timidez enorme, diante da idéia de discutir o
acontecimento.
O marido tentou protegê-la, tranqüilizá-la, e prometeu mostrar-lhe
Bombaim logo que estivesse boa.
Os sócios da firma de navegação haviam alugado a casa onde
estavam agora. Era um bangalô térreo, comprido, construído por um ricaço
no topo do morro de Malaba, dominando a baía. Tinha um bonito jardim e a
casa era muito bem mobiliada. Seraphina logo descobrira tesouros de arte
hindu que a deixaram encantada, além de se apaixonar pela educação,
cortesia e atenção dos criados. Sentiu-se completamente em casa.
O que a surpreendia mais era o número de empregados, mas ficou
sabendo que vinte e cinco era um número razoável por ali.
Kelvin contara-lhe sobre Bombaim, cujas sete ilhas constituíam uma
cidade diferente de qualquer outra na Índia. Aprendeu também que lá
existiam muitos budistas chegados no terceiro século antes de Cristo, mas
que foram os portugueses os primeiros a se interessarem pelo porto, no
século XVI.
A bela baía de Bom Bahia fora adquirida por Portugal para ser dada,
como parte do dote de Catarina de Bragança, filha do rei de Portugal, a
Charles da Inglaterra, em 1662, quando casaram.
— Que interessante! Não tinha idéia de que havia sido nossa por
tanto tempo!
— Seis anos depois, Charles a cedeu para a Companhia das Índias

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Ocidentais com um aluguel simbólico. Mas, por muitos anos, as rotas
marítimas de Bombaim foram ameaçadas por piratas.
Seraphina deslumbrava-se com tudo o que ouvia e via. Os livros não
a haviam preparado para a beleza de Bombaim. Desde o verde pujarite das
montanhas Malaba até as ruas regurgitantes de gente e o colorido
extravagante das flores, das roupas, dos enfeites.
Kelvin era capaz de distinguir os diferentes tipos de raças. Um
soldado jat do Punjab; um jawan; um sikh de turbante, com a barbicha muito
bem escovada, puxando um carrinho; um mercador marwarí gorducho, que,
segundo ele, ficaria rico vendendo suas bugigangas nos bazares.
No primeiro passeio, Seraphina teve que se contentar com pouco,
mas Kelvin não pôde resistir e mostrou-lhe alguns dos bazares. Os balcões de
treliças trabalhadas em madeira olhavam as ruas muito estreitas, tão cheias
de gente, que parecia impossível uma carruagem passar por ali.
Empurrando-se, falando alto, conversando, negociando, viam-se ta-
peceiros persas, chineses com longas trancas, vendedores de cavalos árabes,
padres armênios, jovens abissínios e bheestis com suas bolsas de pele cheias
de água.
Além desta heterogênea multidão, muitos aleijados aos quais
faltavam pernas ou braços, cegos, mendigos seminus e grandes e preguiçosas
vacas Brahmini.
Um dos comércios de cores mais vivas e interessantes, e que
começava a interessar muito à futura dona-de-casa, era o das especiarias.
Calicut escrevera uma mensagem ao rei de Portugal numa folha de
palmeira: “Meu país é rico em canela, cravo, gengibre, pimenta e pedras
preciosas. Quero trocar isto por prata, ouro, coral e panos vermelhos”. Desde
então, o mundo todo se interessou pelo caminho das Índias, à procura dos
condimentos, ervas, chás e especiarias bons para a saúde, preservadores de
alimento e excelentes como temperos. Seraphina perdeu a cabeça com os
cheiros e cores. A sua frente, via cestas com pequenas pimentas vermelhas,
potes de curry em pó. Entre os potes vermelhos, uma panela de anil escuro,
quase roxo, em pó, para lavar roupa branca. No chão, sacos de sementes de
coentro, mais pimentas, nozes e tâmaras.
— Será que saberei usar tudo isto, um dia? — Estava extasiada com
o mundo novo que se abria aos seus olhos, ouvidos e paladar.
— Vai aprender, se quiser. Pode até fazer o karil em casa. Uma boa
dona-de-casa jamais viu um karil pronto. Mistura todos os pós, e cada família
tem sua receita. Morreriam de desprezo pela comida hindu que é servida na

81
Inglaterra.
Seraphina sabia que ia dar conta do recado. Na região em que estava
morando, o alimento básico era o peixe. Via todas as tardes o arrastão, as
velas brancas dos pequenos saveiros trazendo o peixe. As empregadas já
começavam a não desconfiar dela, e passava tardes e tardes na cozinha.
O que a interessava muito também eram as roupas das mulheres.
Que saris gloriosos! Vermelhos, cor-de-rosa, roxos, azuis, amarelos, alaran-
jados, e, entre todo esse brilho, as muçulmanas cobertas da cabeça aos pés
como pacotes pretos ou cinza.
Nunca saberia o suficiente… Mas Kelvin, rindo, disse que ainda
haveria muito tempo para travar conhecimento com o povo e seus costumes.
Esperasse só um pouco, até ficar bem curada.
— Mas já estou tão bem! Daqui a pouco, não será capaz de ver as
cicatrizes nas minhas mãos.
— Acontece que, além das queimaduras, houve o susto. Demora
para que o organismo assimile o choque.
Sentada, agora, na varanda, Seraphina sentiu que a paz à sua volta
era uma novidade, nunca experimentada antes. Como uma felicidade se
esgueirando em sua consciência. Não poderia dizer quando tinha entrado lá.
Mas, de repente, era feliz. Amava a Índia. Era muito, muito mais interessante
do que imaginara.
Escutou passos atrás de si e voltou-se. Kelvin aproximava-se dela.
— Como se sente?
— Bem demais, obrigada. Completamente recuperada. O médico
falou isso, e jamais devemos contradizer um médico.
— Acha que está boa o suficiente para irmos a um jantar, hoje?
— Mas é claro! Quem nos convidou?
— O convite é do Palácio do Governo. Gostaria que visse o Palácio e
conhecesse o governador, que é um velho amigo meu.
— Adoraria ir!
— Tem certeza de que não será demais para você?
— Certeza.
— Então, vou aceitar. O criado dele está esperando a resposta.
Deixou-a sozinha e Seraphina tentou ficar animada com a
perspectiva do jantar. Ao mesmo tempo, para ser franca, teria preferido jantar
sozinha com o marido. Era tão divertido sentar ao lado dele, na sala de jantar
relativamente pequena, abanados pelas punkahs e servidos pelos criados
vestidos de branco com turbantes coloridos.

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Gostava de escutar Kelvin, explicando a ela tudo o que estava
fazendo, desde que haviam chegado a Bombaim, e sabendo que ele
responderia com prazer às perguntas mais malucas que fizesse sobre o país e
o povo.
No entanto, era preciso fazer um esforço para conhecer seus amigos
e gostar deles também. Sabia que estava estranhando estar de volta à Índia
por conta própria, fora de seu regimento. A vida, para ele, havia se
transformado. O que sentiria sobre essa transformação? Sobre ela?
Que roupa usaria à noite? Bem, já que iam à casa do governador, era
preciso mostrar-se bonita. Resolveu pedir a Martha algumas jóias. Antes de
deixar a Inglaterra, sir Erasmus lhe havia dado não só todas as jóias de sua
mãe, mas um colar e uma pulseira de diamantes de presente, além da tiara do
casamento.
No fundo do coração, Seraphina sentiu que tudo isso era ostentar
riquezas. Preferia usar duas voltas de pérolas, a jóia predileta de sua mãe.
Mas queria que Kelvin se orgulhasse dela nessa primeira noite em Bombaim,
pois todos a olhariam com curiosidade.
Quando, afinal, acabou de se vestir e Martha penteou seus cabelos
na última moda, foi para a sala de visitas, onde o marido a esperava.
A sala estava coberta de flores, muitas delas plantas raras oferecidas
pela rajmata, e todas as janelas abertas para a varanda, com a vista do jardim
florido e da baía azul. Era lindíssimo. Seraphina parou na porta, olhando os
ombros largos do marido, parado de costas para ela. Daria toda sua fortuna
para conhecer os pensamentos distraídos dele. Kelvin não olhava a baía,
olhava para dentro de si mesmo, em pensamentos interiores, profundos, que
nada tinham a ver com ela.
Subitamente, Seraphina sentiu frio. Frio de medo. O que
adiantariam roupas e jóias, se não conseguisse alcançá-lo?
Afinal, era uma estranha em terra estranha.
Kelvin virou-se, notando a presença dela, e sorriu.
— Está pronta? Eu já ia avisar-lhe que estamos em cima da hora.
— Estou bem?
Os olhos de Seraphina procuraram os dele, ansiosos.
O vestido era lindo. Martha escolhera um branco, achando que era
próprio por ser a primeira vez que saía como recém-casada. Enfeitado com
renda e laços de cetim, babados pregueados formavam uma causa que
parecia uma nuvem. Para esconder as cicatrizes nas mãos, usava mitenes da
mesma renda, que acabavam nos pulsos cercados por brilhantes. O pesado

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colar de brilhantes acentuava a fragilidade do pescoço e lhe dava uma
vulnerabilidade jovem e insegura.
Estava linda. Kelvin Ward pensou que, enquanto as mulheres
invejariam o vestido, os homens desejariam dissipar a ansiedade dos olhos
dela e trazer sorrisos aos seus lábios.
— Parece uma princesa de contos de fadas — disse comovido, e os
olhos dela faiscaram.
— Não acha que os diamantes são exagerados? Martha insistiu para
que eu os usasse.
— É a ocasião adequada para que eles tomem um pouco de ar.
Seraphina sorriu com a espontaneidade de uma criança.
— Eu também vou tomar ar. Adoro ir a uma festa com você!
— Espero que pense sempre assim.
Havia uma confortável carruagem puxada por dois cavalos com
dois homens para guiá-la. Os cinco quilômetros voaram e logo estavam em
Parell, fora de Bombaim.
Chegava-se à casa do governo por uma magnífica avenida de
árvores exóticas, de mais ou menos um quilômetro. O palácio tinha paredes
maciças, parapeitos acastelados e um teto de pé-direito muito alto, todo de
ladrilhos vermelhos.
Arcos e varandas estavam acesos, e os criados, vestidos de
vermelho, ouro e branco, pareceram a Seraphina os personagens de uma
ópera.
— Queria que você conhecesse Parell — disse Kelvin —, porque o
governador resolveu que, no futuro, esta não será sua residência. Passará
mais tempo em Poona.
Seraphina viu-se numa enorme sala de recepção, encimada por
lustres de cristal, o salão de baile mais bonito da Índia.
— Isto é um palácio — murmurou. Reuniram-se numa sala de
paredes muito brancas, sendo recebidos por ajudantes-de-ordens e
apresentados a outros convidados.
Seraphina sentou ao lado de um velho juiz, que logo começou a lhe
contar suas primeiras impressões da Índia, há mais de quarenta anos.
— Era tudo um pouco diferente, mas acontece que… Foi
interrompido, quando anunciaram novos convidados.
O coração de Seraphina deu um salto, ao ver a entrada dramática,
repetida tantas vezes no Tiberius, de lady Braithwaite, vestida de vermelho-
rubi para combinar com as jóias que enfeitavam seus cabelos pretos e o colo

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acetinado.
Todas as outras mulheres tornaram-se insignificantes.
— Esta é lady Braithwaite — explicou o juiz, desnecessariamente. —
O marido é o nosso comandante-em-chefe.
Ela murmurou qualquer coisa que o encorajou a continuar:
— Andei ouvindo por aí que ofereceram a sir Reginald o governo de
Nova Gales do Sul. Vai achar bem diferente da nossa Índia.
— E ele aceitou? — perguntou ela, quase sem ar.
— Acho que sim. É uma grande honra e, com certeza, o caminho
para um título de nobreza!
— Mas que bom! Que maravilha! Nem acredito! — O entusiasmo de
Seraphina pela boa sorte alheia foi tamanho que o juiz a olhou, surpreso.
Do outro lado da sala, lady Braithwaite já encontrara Kelvin e
conseguira afastá-lo um pouquinho dos outros convidados.
— Já soube que vamos para a Austrália? — A voz era baixa, rouca e
insinuante.
— Parabéns! É uma honra.
— Vamos partir em dez dias. Preciso ver você.
Olhou-a nos olhos e percebeu o mesmo convite de antes. Uma
mulher que sabia o que queria e estava resolvida a consegui-lo.
— Você estará muito ocupada, fazendo malas e recebendo visitas. A
resposta era uma formalidade, um disfarce. O importante foi o tom de voz
incisivo e decidido que disse mais do que muitas palavras. Os olhos escuros
de lady Braithwaite sombrearam-se e, por um momento, a beleza de seu rosto
desapareceu, dando lugar a algo feio e cheio de veneno.
Antes que ela pudesse responder, Kelvin virou-se para outro
convidado e comentou:
— Precisamos todos parabenizar nosso sir Reginald. O primeiro-
ministro, marquês de Salisbury, fez uma sábia escolha.
— Sem dúvida! — respondeu o outro, cortesmente. — E a nossa
perda é ganho para a Austrália.
No jantar, Seraphina ficou do lado esquerdo do governador, e lady
Braithwaite, à direita.
Como representantes da rainha, ele. e a mulher eram os últimos a
entrar na sala, e todos ficavam em pé, em silêncio respeitoso, enquanto cada
convidado era apresentado.
— Não só quero lhe desejar as boas-vindas a Bombaim — disse ele a
Seraphina —, como quero mostrar meu respeito por sua coragem ao salvar o

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príncipe Akbar. Vai descobrir que toda a Índia está com o coração aberto para
a senhora.
Seraphina corou e não conseguiu responder.
O jantar foi servido numa varanda toda coberta de musselina
branca, com uma orquestra tocando no jardim.
O chef francês era famoso, e as dezenas de criados, com seus
turbantes vermelhos e as armas inglesas bordadas nas túnicas brancas,
formavam um espetáculo à parte.
No jantar, Seraphina descobriu a simpatia e a bondade do
governador, e conversou com ele, sem problemas.
— Acho muito certo que seu marido comece uma carreira nova. Vai
achar interessante. Atualmente, a navegação é a artéria principal do império e
navios com a bandeira da Marinha Mercante cercam o mundo todo.
Seraphina descobriu mais ainda: que ele era um grande
colecionador de selos, e sobre isto ela podia conversar com conhecimento. A
coleção de sir Erasmus era uma das mais valiosas da Inglaterra.
— O correio é uma coisa fascinante! — disse o governador. — A
senhora acredita que a Companhia de Correios recebe quase trinta mil libras
por ano, só para carregar a correspondência hindu?
— Parece uma quantia enorme!
— E a rapidez com que chegam nossas cartas é ainda mais
admirável. Só vinte dias, daqui a Londres! Quarenta dias de Londres a
Sydney! Quando eu era menino, isto seria impossível!
O homem sentado ao lado de Seraphina entrou na conversa:
— Ouvi dizer, não sei se Sua Excelência sabe, que há um projeto
alemão de uma estrada de ferro Berlim-Bagdá, que encurtaria muito o tempo
de viagem para a Índia.
— Por mim, esta rapidez já é suficiente. Todo dia chegam milhares
de cartas da Inglaterra.
— O senhor precisava ver os correios da Rodésia, onde estive no ano
passado. A correspondência é levada por corredores usando bermudas e um
fez. Equilibram na cabeça a sacola pesadíssima: uns vinte quilos! E correm,
por dia, cinqüenta quilômetros!
Todos riram, e Seraphina pensou em não esquecer aquilo, pois
Kelvin também se divertiria muito.
Ficou bem contente, ao ver que não estava sentado ao lado de lady
Braithwaite, mas da mulher do governador. Do outro lado, uma senhora mais
velha, com certeza, a esposa do juiz que conversara com ela antes do jantar.

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Depois da sobremesa, a mulher do governador conduziu-os para
fora da varanda, onde se realizara o jantar, e vários criados estavam a postos
para mostrar os banheiros, onde poderiam se preparar para voltar à sala de
visitas.
Seraphina tratou de evitar lady Braithwaite, mas, depois que todas
sentaram e não havia ainda sinal de homem nenhum, a mulher se aproximou
dela.
— Estou querendo lhe falar já há algum tempo, sra. Ward. Quero
saber tantas coisas sobre seu casamento com Kelvin! — Seraphina não
respondeu, e ela continuou: — Espero que ele lhe tenha contado como fomos
bons amigos. Só não compreendo por que nunca me falou no seu nome…
— Já nos conhecíamos há muito tempo — respondeu Seraphina,
pois tinha que falar alguma coisa.
— E, com certeza, tinha algo muito especial para lhe oferecer. Mas o
que me interessa mesmo é saber o que Kelvin vai fazer da vida, sem
regimento — Sorriu, mas não havia nada agradável naquele sorriso. — Tenho
a impressão de que vai ficar desorientado, sem as tarefas militares que tanto o
interessavam. Quais são seus planos para diverti-lo sra. Ward?
— Ele se tornou sócio de uma companhia de navegação.
— Não me esqueci disso! Mas acha que Kelvin vai se satisfazer com
tão pouco? Sempre levou uma vida tão intensa e independente! — Houve
uma pausa, antes que lady Braithwaite continuasse: — É claro que, com seu
dinheiro por trás, aparecerão muitas oportunidades. Se pelo menos aquele
horrível tio morresse! Com o título e a herança Kelvin poderia até se tornar
governador. Estão sempre procurando pessoas responsáveis para este posto.
Até o lugar de vice-rei é difícil de preencher!
Seraphina surpreendeu-se, pois sempre achara que o posto de vice-
rei da Índia devia ser o ápice da ambição de muitos homens.
— Deixe-me contar-lhe um segredinho — disse lady Braithwaite. —
É uma posição muito dispendiosa: o vice-rei tem que tirar dinheiro do
próprio bolso para se manter — Deu uma risadinha. — É claro que, agora,
isto não é mais problema para Kelvin, pois tem a senhora.
Seraphina não reagiu. Sabia que lady Braithwaite estava sendo
maldosa e vingativa. Só não queria que dissesse tais coisas na frente de
Kelvin. Podia imaginar qual seria sua reação e o ódio que sentiria. Logo
depois os homens se juntaram às mulheres. Kelvin atravessou a sala
imediatamente, para ficar perto dela.
Lady Braithwaite o observava, seus olhos escuros examinando

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atentamente o rosto dele.
— Estava justamente falando de você, Kelvin, sobre quantas e
quantas oportunidades se abrirão para você, agora que tem a fortuna de sua
mulher como retaguarda.
Seraphina apertou tanto os dedos, que até estalaram. Não agüentava
olhar para o rosto do marido.
— Ao mesmo tempo — continuou Auriel —, deve ser estranho ter
uma mulher tão rica. Como é que se arranja com presentes, por exemplo?
Compra um presente de aniversário com o dinheiro dela ou dá alguma coisa
que dinheiro nenhum pode comprar? — Esperou, e, com veneno em cada
palavra, continuou: — Como seus beijos muito, muito excepcionais?
Kelvin pegou a mão de Seraphina e ajudou-a a se levantar, dizendo,
em sua voz mais controlada:
— Acho que não deve se cansar hoje, querida. É a primeira vez que
sai, e tenho certeza de que Sua Excelência vai nos desculpar por sairmos
antes.
Conduziu-a através da sala. Era uma quebra de etiqueta deixar a
festa antes dos convidados principais, que eram sir Reginald e lady
Braithwaite. O governador, porém, compreendeu e desculpou.
Em minutos, estavam fora. Seraphina ficou até sem ar, com a
rapidez dos últimos acontecimentos. Como lady Braithwaite podia ser tão
má? Olhou disfarçadamente para o marido, já dentro da carruagem que os
levava para casa. Sabia que Kelvin estava zangado. Sentia as vibrações que
partiam dele, elétricas.
Não havia nada que pudesse fazer. Lady Braithwaite tinha se
vingado de maneira sutil e eficaz, ferindo Kelvin com cada palavra que
pronunciara.
Dinheiro! O seu dinheiro! Aqueles milhares de libras de ouro
criavam uma barreira entre os dois; eram uma humilhação para ele. Nunca
pensara que dinheiro fosse um empecilho tão grande. Nem marido teria, se
não fosse a fortuna do pai. Era um caso muito difícil de resolver! Melhor
deixar as coisas correrem.
Percebia vagamente que lady Braithwaite havia atacado Kelvin
porque ela própria estava ferida. Mas não sentia nenhum triunfo ou
satisfação com este pensamento. A vingança da outra tinha sido certeira,
atingindo o ponto mais vulnerável dos dois.
Eu a odeio! Odeio com todas as minhas forças!, pensou Seraphina. E
não havia mesmo nenhum modo de colocar panos quentes.

88
Qualquer coisa que dissesse faria desabar sobre sua própria cabeça a fúria do
marido.
Chegando em casa, Seraphina entrou primeiro, louca de vontade de
ser mais velha e experimentada e saber o que fazer. Outra mulher, sofisticada
e experiente como lady Braithwaite, tomaria conta da situação e teria as armas
certas para lutar. Ela só conseguia se sentir desajeitada, completamente
incapaz de lidar com qualquer coisa que não fosse sua tristeza e horror pelo
que havia acontecido.
Na sala, numa bandeja sobre a mesa, estavam várias cartas,
chegadas bem tarde, naquele dia. Ele as pegou, mas não parecia interessado.
— Acho que vou… dormir — disse ela, esperando que Kelvin a
convidasse a ficar mais um pouco.
— Deve estar cansada. — Foram suas primeiras palavras, depois de
deixarem Parell. — Boa noite.
— Boa noite — respondeu, perdida e infeliz. O quarto dela e o de
Kelvin tinham uma porta de comunicação, muito bem fechada, e assim
continuaria por muito tempo, pensou ela. Sabia como ele estava magoado e
zangado, mas queria que viesse conversar sobre seus sentimentos. Talvez até
pudessem rir, e tudo ficaria insignificante, perderia a importância.
Era uma idéia impossível.
Seu quarto já estava todo fechado. Abriu as cortinas das janelas e as
próprias janelas, que eram como portas. Não contente, abriu também as
janelas pequenas e de madeira treliçada que davam diretamente para o
jardim. Precisava de muito ar puro. A noite ainda estava fresca e não haveria
necessidade de dormir sob o véu de filo, evitando os mosquitos.
Sentiu a aragem fresca e úmida no pescoço e nos braços. As estrelas
brilhavam no céu imenso. Escutou os grilos lá fora.
— É tão bonito! Devíamos ser felizes. É quase uma obrigação! No
momento, lady Braithwaite havia destruído toda e qualquer paz e felicidade.
A intimidade com Kelvin, que crescera desde que chegaram a Bombaim,
estava ameaçada, senão perdida.
— Tenho ódio dela! Ódio! — repetia Seraphina. Era a única coisa
que sabia dizer.
Pedira a Martha que não a esperasse. A empregada estava ficando
velha e, apesar de os dias não serem tão quentes assim, ela se queixava o
tempo todo. Kelvin tinha razão: seria melhor que voltasse para a Inglaterra.
Tirou o vestido, com muita dificuldade, pois era cheio de botões e
laçarotes, pendurou-o no armário e tirou o resto da roupa. Martha tinha

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deixado uma camisola sobre a cadeira. Vestiu-a.
Era de cambraia bem fina, com renda. Seraphina sabia que, de todos
os pais do mundo, só o dela teria certeza de que o pano certo para uma
camisola na Índia era aquele. Nenhuma seda era adequada para o calor
indiano.
O olho que papai tem para detalhes é incrível!, pensou. E isto seria
outra coisa a incomodar Kelvin, se ele percebesse. Era, porém, uma
possibilidade muito remota, pois ele jamais saberia o que ela usava para
dormir.
Será que valia a pena escovar os cabelos? Não. Tirou os grampos e
deixou que caíssem sobre os ombros.
Apagou as velas da cômoda. Não havia ligado a luz ao entrar no
quarto, porque queria ver as estrelas e porque sabia que a eletricidade
chamava também toda espécie de insetos. Já havia alguns em volta da única
luz acesa ao lado da cama.
Imaginou se não seria melhor fechar as cortinas, para não ser
acordada pela luz da aurora, que chegava às quatro horas. E teria que esperar
muito para tomar o café da manhã com Kelvin.
O que será que ele estava sentindo? E pensando?
Teve uma vontade louca de abrir a porta e entrar no quarto dele…
Escutou. Só um barulhinho. Ele estava no quarto. Com certeza,
morrendo de ódio do dinheiro dela e, talvez, dela também.
O que teriam que agüentar, o resto da vida… Mesmo que as pessoas
não fossem tão mal-educadas ou maldosas como lady Braithwaite, sempre
haveria insinuações; ou, pior ainda, Kelvin acharia que todos perceberiam o
quanto dependia da mulher.
Seraphina fechou os olhos. Sentia-se inútil, incapaz de lidar com o
presente e com o futuro. Mais que tudo no mundo, queria que o marido fosse
feliz e entendia que não ia haver felicidade nenhuma, pois estariam sempre
sob a sombra de sua imensa fortuna. E se lhe desse todo o seu dinheiro?
Também não era possível. Impraticável, porque ele não aceitaria.
Além disso, pouca coisa iria mudar. Ele já tinha poderes sobre tudo o que era
dela. Podia assinar cheques, vender e comprar. O pai já lhe passara as rédeas.
Deve haver uma solução, pensou, desesperada. Mas… qual? Não
atinava com nenhuma.
Melhor ir deitar. Abriu os olhos, deu um passo à frente e parou,
transfigurada. Entrando pela janela, rastejando pela soleira, havia uma cobra.
Em pânico, a única coisa que conseguiu fazer foi subir na cadeira e ficar

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imóvel, na ponta dos pés.
A cobra parou um instante, ao som de sua voz, e levantou a cabe-
medo que lhe apertava a garganta e gritou:
— Kelvin! Kelvin!
A cobra parou um instante, ao som de sua voz, e levantou a cabeça.
Kelvin, com certeza, não tinha escutado. Tentou gritar de novo, mas a voz
estava estrangulada. Nesse momento, ele abriu a porta.
— Chamou, Seraphina?
Ela não respondeu. Tentou falar, mas não saía uma palavra.
— O que é?
Entrou no quarto e espantou-se ao vê-la em cima da cadeira. Seguiu
em direção de seus olhos e viu a cobra no chão.
Imediatamente, levou a mão à cintura, do lado onde estaria o
revólver se estivesse de uniforme. Só então lembrou-se de que estava em traje
civil. Ordenou, ríspido:
— Fique onde está! Não se mova! — E voltou para o quarto.
Seraphina não conseguiria se mexer, mesmo que quisesse. Parecia ter virado
uma estátua de pedra.
Prendeu a respiração e esperou. Era uma corrida para ver quem
chegava primeiro: Kelvin ou a cobra.
Ele voltou correndo, com o revólver na mão, e a cobra, com uma
velocidade incrível, esgueirou-se para a varanda e desapareceu no jardim.
— Ah, Seraphina, Seraphina! Nunca deve deixar a janela de fora
aberta…
Viu que ela continuava em pé na cadeira, aterrorizada. Foi lá,
pegou-a no colo e colocou-a no chão.
— Tudo bem. A cobra já foi. Não era das perigosas, comparada com
as outras. Uma coluber.
Ela gemeu e se agarrou a ele, escondendo o rosto em seu ombro.
Kelvin sentiu que tremia toda e se lembrou da noite de núpcias.
Apertou-a contra o corpo e continuou a falar, com voz calma, suave,
tranqüilizante:
— Foi culpa minha. Devia ter avisado para não abrir as janelas lá
fora, por causa das aves, lagartos e morcegos. Na Índia, estas criaturinhas
selvagens são curiosas demais! Uma vez, encontrei uma família inteira de
macacos, acampada na minha cama!
Seraphina estava prestando atenção e tremia menos. Mas ele podia
sentir seu corpo macio, muito tenso sob a cambraia, e o rosto no peito. O

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perfume de primavera que sentira em suas roupas, no armário do navio, era
o mesmo dos cabelos.
— Que pena ter acontecido isto hoje! Você estava tão bonita e
disposta a se divertir, quando saiu para Parell!
— A cobra era igualzinha a ela… — murmurou Seraphina, em voz
tão baixa, que ele mal escutou.
Compreendeu a alusão.
— Nenhuma das duas é tão venenosa ou perigosa como você pensa
— respondeu, calmamente. Sentiu que suas palavras a surpreenderam e que
o tremor parou. — Vou levá-la para a cama. Aposto que está com medo de
pisar no chão. Chega de emoções. Foi uma noite e tanto.
Carregou-a nos braços. Era muito leve. Foi fácil levá-la até a cama.
Parecia aquela mesma menina da noite do casamento, pequena e frágil contra
os travesseiros brancos, os cabelos loiros em desarranjo.
— Meu Deus, como é que eu poderia imaginar que uma criatura tão
pequena como você fosse se meter em tantas complicações?
Ela deu um sorrisinho desbotado.
— Desculpe. Estou sendo um verdadeiro… transtorno.
— Sabe que não é verdade. Mas, se aprontar mais alguns, sustos
como esse, vou ter um ataque do coração.
— Morro de medo… de cobras.
— Eu também! Só os iogues mais sagrados é que tratam as cobras
como irmãs e amigas. E elas não os tocam.
— Existem homens tão santos?
— Alguns…
— Gostaria de conhecer pelo menos um!
— Vai conhecer. Eu vou contar uma coisa de que gostará.
— O que é?
Percebeu que ela ainda estava nervosa e que tentava se conter num
esforço tremendo de autocontrole.
— Encontrei, no meio das cartas, um convite do marajá de Udaipur.
Você gostaria de ir lá?
— Podemos?
Acabara-se o medo. Só havia emoção nos lindos olhos azuis. Sem
perceber, Seraphina estendeu a mão para ele.
— Se me prometer não enjoar na viagem, não cair do alto de um
elefante, nem ser comida por um crocodilo, levo você.
— Que delícia! Prometo. Quando iremos?

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— Depois de amanhã, se for conveniente para você. Pode se
aprontar.
— Já estou pronta. Neste minuto.
Ele riu.
— Precisa dar mais um tempinho para arranjarmos a viagem.
— Então, depois de amanhã?
— Combinado. Apertou os dedos dele.
— Você vai poder me mostrar um pouco da Índia… pelo menos um
pouco.
— E é uma das mais belas regiões. Mas agora vá dormir.
Olhou para a mão coberta de cicatrizes, Seraphina tentou escondê-
la.
— Tão feia… — sussurrou.
— São suas medalhas de bravura! Virou-lhe a mão e beijou a palma.

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CAPÍTULO VII

— Que lugar mais lindo! Acho que não existe nada igual no mundo
inteiro, Kelvin! — exclamou Seraphina.
— Concordo.
De uma janela do Palácio do Lago, chamado Jugnewás, olhavam
para o palácio do marajá de Udaipur, do outro lado, em terra firme: uma alta
construção de granito e mármore branco, flanqueada por torres octogonais e
coroada de cúpulas.
Ficava à margem do lago, mas ligeiramente elevado, espelhando-se
nas águas, enquanto outros palácios se erguiam pelos morros verdejantes,
contra o céu azul.
Era tão bonito, tão de tirar o fôlego, que Seraphina sentiu que
entrava em um conto de fadas que até então só existira na sua imaginação.
Mas, afinal, tudo pareceu encantado, desde o momento em que
haviam deixado a capital, em direção ao norte. Primeiro, a emoção de entrar
no trem da estação de Victória, em Bombaim. Seraphina havia viajado muito
em sua vida, mas nunca imaginara nada parecido, tão fantástico como uma
estação indiana.
Kelvin caçoou, dizendo que aquilo era um monumento à
criatividade inglesa. Olhou-o, surpresa, e ele continuou:
— Nas cidades indianas, os edifícios maiores, mais trabalhados e
enfeitados, são as estações de estrada de ferro. Os arquitetos que as
desenharam realmente deram largas à imaginação, fizeram o que queriam:
uma orgia de cúpulas, relógios, janelas, vitrais!
Além do cenário extravagante, havia a confusão dos. viajantes. Eram
saris, dhotis, farrapos, turbantes, uniformes vermelhos, roupas sacerdotais
amarelas, túnicas. Um arco-íris vestindo o povo.
Mensageiros corriam para a caixa do correio do trem e cabras, aos
berros, eram conduzidas para o vagão de animais. Famílias inteiras dormiam
sobre pilhas de malas e as crianças gritavam, cada vez que um trem apitava
na chegada ou saída.
Quando finalmente a Estrada de Ferro Península da Índia levou-os
para o norte, em Khandwa, as estações em que pararam eram para Seraphina
uma fonte de prazer e interesse.

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Aparentemente, não só os viajantes chegavam dias antes de sua data
de partida para acampar na plataforma, mas também suas cabras, galinhas,
cachorros e pombos pareciam morar na estação. Muitas vezes, até um touro
sagrado se deslocava pesadamente por entre a massa compacta.
Os comerciantes hindus não perdiam a oportunidade de ganhar um
dinheirinho. Vendiam curry e comidas apimentadas, sorvetes de frutas, cocos,
água.
— Este é o chai-wallah — disse Kelvin, mostrando um vendedor de
chá, andando pela, plataforma com seu grito de “Garan Chai”, que
significava “chá quente”.
Em todas as estações, os passageiros desciam para se banhar,
comprar comida ou simplesmente esticar as pernas.
Na hora de voltar para o trem, havia tanta gritaria, berros, apitos,
que todos entravam em pânico, com pavor de serem deixados para trás.
Seraphina viu com prazer que Kelvin reservara dois compartimen-
tos. Um para eles, outro para os criados. Incrível, a quantidade de criados
necessária para uma viagem.
Despedira-se de Martha em Bombaim e, apesar de a velha
empregada ter chorado uma ou duas lágrimas, sabia que estava feliz por
voltar ao conforto e à segurança da Inglaterra.
— Não tive tempo de encontrar uma empregada hindu — Kelvin
avisou —, mas estou presenteando você com um criado pessoal. Amar
contou-me que foi treinado com perfeição para atender mulheres por um
mem-sahib inglês.
— Mas… um homem?
— É muito comum aqui. Amar disse que cuida das roupas
femininas, além de ser um dhirzi.
— O que é isso?
— Um alfaiate. Pode remendar tudo e, além disto, costurar, fazer
vestidos para você.
— Parece excelente! Que coisa incrível!
Quando encontrou Amar, ela logo se apaixonou por ele. Era um
homenzinho de meia-idade que se movia devagar e apreciava os vestidos
bonitos, sabendo como tratar deles com todo carinho. Era dizer uma coisa a
ele, uma vez, e nunca mais esquecia. Para Seraphina, significava um conforto
e auxílio que nunca tivera antes, com qualquer outro ajudante, homem ou
mulher.
Em Khandwa, fizeram baldeação para a linha Rajputana-Malwa e

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continuaram via Indore e Nimach, até Chitorgarh..
— Acho que somos hóspedes de Sua Alteza — disse Kelvin, com um
sorriso, ao se aproximarem da estação. — E vai descobrir que é uma hóspede
muito importante, tratada como realeza.
Nada mais verdadeiro!
Seraphina encontrou, na estação, não só uma carruagem puxada por
quatro cavalos, mas membros resplandescentes do exército particular do
marajá, carregando lanças com pendões coloridos.
Partiram em grande estilo, e ela percebeu que não haviam
exagerado ao descrever Rajputan como romântica. Montanhas, platôs de
pedra; rochas pedregosas emergindo de planícies férteis. Fortes maciços e
palácios pitorescos, aves selvagens e cercas de cactos amarelos floridos
encantavam os olhos. Emocionante, ver tantos camelos plácidos ao lado de
búfalos de olhos mansos e, ocasionalmente, um elefante.
As mulheres pareciam aves-do-paraíso. Em vez de sáris, usavam
saias vermelhas de pregas, na altura dos joelhos, um corpete contrastante em
azul-pavão e um Orhni, ou xale, às vezes cor de laranja. E todas, mesmo as
que faziam serviços pesados, se enfeitavam com pulseiras de penas,
braceletes, amuletos e colares. Cada movimento era uma orquestração!
Tanta coisa para espantar, para querer saber e perguntar! Será que
Kelvin a estava achando uma criança boba, por causa daquele entusiasmo
todo?
Passaram a primeira noite num pequeno palácio que pertencia a m
marajá menos importante, parente do anfitrião. Tudo estava preparado para
seu conforto, mas não foi possível conversar com Kelvin sós. Na verdade,
depois da viagem, Seraphina achou até bom ir cedo para a cama.
O dia seguinte seguiu o ritmo do primeiro. Estavam chegando a
daipur, e o marajá queria recebê-los com honras especiais.
— Ponha um de seus vestidos mais bonitos — disse Kelvin, antes de
irem deitar. — Amanhã é um dia muito importante.
— Para você?
— Nunca! Você é que é a convidada de honra, a quem eles devem
todos os agradecimentos.
— Espero que não discursem ou falem demais. — Sorria e enfeite o
ambiente com sua beleza. Falarei o que for preciso.
Havia qualquer coisa de protetor e reconfortante no jeito macio de
relê falar. Não conseguia dormir, pensando em Kelvin.
Que delícia, deixar Bombaim e lady Braithwaite para trás! Não podia

96
se esquecer da maneira como ele lhe beijara a mão. Tinha sido um simples
gesto, que faria com qualquer uma, mas o toque de seus lábios tinha mexido
com alguma coisa dentro dela. Colmo se uma pequena chama se acendesse e
brilhasse.
Os lábios de Kelvin haviam tocado sua pele por um segundo.
Quando se afastaram, Seraphina sentiu que não queria deixar de perceber
aquele contato. Queria estar perto, tocá-lo.
Não, bobagem! Ele só tinha sido carinhoso porque estava assustada
com lady Braithwaite e a cobra. Fora isto, ela não significava nada para ele.
Era simplesmente a mulher com quem havia casado obrigado. Este
pensamento feria mais agora do que na época do casamento, talvez porque
tinha medo do prejuízo que lady Braithwaite podia causar à amizade que
começava a nascer entre ela e Kelvin. E o medo a deixava mais apreensiva e
vulnerável do que nunca.
Cada quilômetro de viagem para Udaipur era um alívio. Não havia
razão para se preocupar, pensando se Kelvin e Auriel estavam se
encontrando; não tinha que agüentar o veneno e a maldade das outras
mulheres, referindo-se a seu dinheiro.
Quando voltarmos, lady Braithwaite já terá ido embora para a
Austrália, pensou Seraphina, com satisfação.
Ao chegarem às cercanias de Udaipur, soldados a cavalo esperavam
por eles para conduzi-los até o castelo, que se projetava contra o céu sem
nuvens.
A milícia guardava a entrada principal. Acompanhados pelos
membros mais importantes do governo, foram levados até o grande vestíbulo
da Assembléia.
No caminho, passaram por um grande número de salões cheios de
convidados. Mulheres de sáris, homens com o peito repleto de
condecorações, todos em pé para a passagem deles.
Seraphina queria dar a mão ao marido, mas sabia que parecia pouco
digno e inseguro. Com um sorriso tímido, caminhou ao lado dele.
De repente, ouviu um arauto anunciar ao “Senhor do Mundo” que
seus hóspedes haviam chegado.
No grande hall conhecido como Surya Mahi — O Vestíbulo do Sol —
via-se um enorme medalhão cujo tema era o Sol em todo seu esplendor: o
brasão do marajá. Embaixo dele, o gadi, ou trono, sob um dossel de veludo
apoiado em colunas de prata.
O trono era apenas uma imensa almofada, como Seraphina sabia

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que era costume, coberta por uma manta de veludo bordada com ouro e
pedras preciosas.
O marajá levantou-se com a chegada deles. Era um homem
belíssimo. Ficou satisfeita por não ter se decepcionado. Sua Alteza, o marajá
Dhiraj Fateh Singh Bahadur, tinha quase quarenta anos, e sua barba, já
estriada de branco, era repartida no meio e virada para trás e para cima, o
que lhe dava um aspecto diferente e interessante.
Cumprimentou Seraphina e Kelvin com um pequeno discurso, no
qual agradecia a ela por salvar a vida de seu filho, e deu as boas-vindas em
nome de seu povo.
Kelvin respondeu à saudação e sentaram, cercados pelos nobres e
dignitários do palácio.
Kelvin tinha avisado a Seraphina que devia, aceitar os presentes
com simplicidade. Foi o que fez. Ganhou um colar de pérolas raras com um
medalhão de rubis e diamantes, de uma delicadeza incrível. E também
brincos e pulseiras combinando, além de xales e brocados nas cores mais
raras, muitos deles bordados com jóias.
Kelvin foi informado de que, para ele, havia dois cavalos com
arreios dourados e prateados.
— Estes, você verá amanhã — prometeu o marajá. Ao acabar a parte
mais formal da recepção, mudaram-se para um salão menor, onde a rajmata
os esperava e, ao lado dela, o pequeno príncipe.
— Como estou contente em revê-la, Alteza…
— E nós estamos orgulhosos por aceitarem nosso convite. Kelvin
havia providenciado presentes para Seraphina retribuir: um grande jarro de
cristal para a rajmata, uma caixa de prata para o marajá, um vidro lavrado de
perfume para sua mulher e, para o príncipe Akbar, alguns brinquedos
ingleses.
Seraphina sabia que ele escolhera tudo para não incomodá-la e ficou
surpresa, ao ver que tinha comprado brinquedos perfeitamente adequados
para um menino de dois anos.
Conversaram com a rajmata por algum tempo e o marajá juntou-se a
eles. Tudo muito informal, até sugerirem que o casal fosse descansar antes do
banquete daquela noite, em sua homenagem.
Foi então que souberam que o marajá colocara à disposição deles o
Palácio do Lago.
— Contei a Sua Alteza que são recém-casados, e não havia nada de
mais apropriado para uma lua-de-mel do que o Palácio do Lago — disse a

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rajmata.
Seraphina não percebeu logo o que ela queria dizer, mas, quando
viu o palácio no meio do lago, brilhando ao sol e refletindo-se na água,
entendeu tudo. Era realmente um lugar mágico, de uma beleza quase etérea,
que se elevava, soberbo, na perfeição de suas linhas. Uma obra de arte pura e
inalterada. Fora construído em mármore branco, com colunas, tanques, fontes
e paredes incrustadas de mosaicos. Os apartamentos eram decorados com
pinturas históricas em guache.
Canteiros de flores e recantos de laranjeiras e limoeiros em flor no
centro dos pátios, sombreados de tamarineiros e das sempre verdes kheenee,
enquanto a palmyra balançava galhos emplumados sobre o escuro cipreste.
— Este palácio foi construído para que os chefes pudessem
descansar depois da guerra e escutar somente canções de amor — explicou o
primeiro-ministro, que os escoltava.
O palácio inteiro cobria uns quatro acres, e o interessante era que
dentro dele Seraphina sentia uma intimidade que inspirava sussurros e
beijos.
Tudo era prazer e espanto, desde a beleza das flores roxas e
vermelhas, ao dourado e amarelo das laranjeiras e dos limoeiros. Quando foi
para o grande quarto onde dormiria sozinha, desejou canções de amor
cantadas para ela e Kelvin a Seu lado.
Havia pouco tempo para sonhar. Tinha que descansar e trocar de
roupa para o banquete. Escolheu um vestido de tule rosa-claro no qual
diamantes brilhavam como brilham gotas de orvalho antes que o sol as
disperse.
Mas, mesmo com seu colar de brilhantes e o diadema, lindamente
arranjado na cabeça por Amar, sabia ser impossível competir com a beleza
das mulheres hindus e seus sáris e jóias maravilhosas.
As princesas rajput não cobriam o rosto em público, como as outras
hindus. Como sinal de respeito ao marajá e porque a hindu deve ser sempre
bonita e não pode mostrar seu envelhecimento, cobriam meio rosto com os
saris. Riam e conversavam tão inteligentemente e tão bem informadas como
os homens.
Logo que o banquete terminou, voltaram ao palácio num barco com
dez remadores.
— Foi um dia cansativo — disse Kelvin, depois que os criados os
saudaram em reverência e partiram. Só se ouvia o barulho dos remos que se
afastavam.

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— Estou um pouco cansada, mesmo.
— Então, vá para a cama e não se apresse, de manhã. Vou sair muito
cedo para uma caça ao leão.
— Caça ao leão?!
— O marajá gostaria que eu pegasse um que está aterrorizando o
pessoal da aldeia. Garanto que guardou o bicho para a minha chegada e
espero não desapontá-lo, errando a pontaria.
— Tenho certeza de que é um bom atirador.
Ele não negou, e ela perguntou, um pouquinho preocupada:
— A que horas você volta?
— Não vai ficar sozinha, não tenha medo. A rajmala tem planos para
entretê-la e sei que vai gostar da companhia dela.
— Mas é claro, claro…
— E amanhã à noite haverá uma dança hindu muito interessante.
É uma coisa excepcional, aqui em Udaipur. Acho que programaram
para você.
— Gostaria de ver.
— Então, durma bem, Seraphina.
Esperou que ele beijasse sua mão, como havia feito em Bombaim,
mas só sorriu para ela. Uma criada levou-a através das escadas de mármore e
sacadas até seu quarto.
O cheiro delicioso do jasmin e a fragrância dos lótus subiam do lago.
Quando Seraphina entrou no quarto e olhou pela janela, a lua brilhava na
água, transformando o lago em prata pura.
As cúpulas e torres ficavam negras, contra o céu estrelado, e, em sua
imaginação, podia ouvir canções de amor atravessando a água.
— Um palácio próprio para uma lua-de-mel — murmurou.
Sentindo-se muito sozinha, subiu para a cama alta e ficou lá, toda encolhida,
como uma menina medrosa.
Com a manhã, veio o sol, e, na beleza daquele palácio, só se podia
ser feliz.
Trouxeram-,lhe mais presentes, tantos, que se sentiu embaraçada
pelas pequenas coisas com que ela e Kelvin lhes retribuíram. Havia xales,
brocados, musselinas, jóias vindas dos nobres e oficiais, que, como o marajá,
estavam gratos a ela por salvar a vida do príncipe. Felizmente, Seraphina
tinha trazido alguns presentes de casamento na bagagem. Dentre eles,
escolheu um bonito espelho de mão incrustado com turquesas, pedra
considerada portadora de felicidade pelos hindus. Amar embrulhou-o em

100
papel branco, deu um laço com fita vermelha e Seraphina levou-o para o
palácio do marajá.
Dos aposentos da raimaia, ela podia ver o Palácio do Lago como uma
pérola translúcida, espelhada na água prateada.
Ao se dirigir para o quarto da princesa, Seraphina percebeu que
existiam outros quartos, saindo dos corredores estreitos, de onde vinha uma
algazarra feminina alegre, o gemido de uma citara e vozes cantando. Muitas
mulheres que viviam no palácio do marajá, mas não tinha certeza de quem
eram.
Não havia sido possível conversar com a marani no banquete da
véspera, mas agora ela a estava esperando nos apartamentos da rajmata.
Além de jovem, era lindíssima.
Kelvin lhe havia dito qual era a idade do marajá e parecia
impossível que tivesse uma mulher tão jovem, até que soube que casara com
ela somente há três anos.
Muito esguia e bela, a marani era extremamente tímida. Conversou
um pouquinho e formalmente com Seraphina e deixou os aposentos da sogra,
levando o príncipe.
— Sua Alteza é muito bonita.
— Não fica à vontade com mulheres inglesas porque não tem muito
contato com elas — explicou a rajmata. — Pediu que eu expressasse, com
todas as palavras que ela não sabe dizer, sua gratidão imortal por ter salvo a
vida do filho.
— Não quero mais agradecimentos, Alteza. Todos têm sido
excessivamente generosos e fico até envergonhada de escutar tantos elogios e
receber presentes tão ricos.
— Como é possível pagar a dívida de uma vida?
— Posso compreender como o marajá se sente sobre o príncipe
Akbar. É um menino encantador.
— Sua Alteza tem muito orgulho dele, realmente.
— Não teve filhos do primeiro casamento? A rajmata sacudiu a
cabeça.
— Foi uma grande tristeza. Meu filho casou aos catorze anos e teve
muitas meninas, mas nenhum homem.
— Agora, porém, tem um herdeiro. A marani é uma princesa rajputl
— Sim. O pai é marajá de uma província próxima.
— Encontraram-se e se apaixonaram? — suspirou Seraphina,
romântica.

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A rajmata sorriu.
— Uma noiva hindu não vê o marido antes do casamento. O
contrato é feito porque são adequados um ao outro, e os signos, auspiciosos.
Seraphina ficou em silêncio. Havia tanta diferença de idade entre os
dois! E ela sabia muito bem como se sentira a marani, ao deixar a casa do pai
para casar. Sentiu que a rajmata a olhava com simpatia e carinho de mulher
mais velha, que compreendia as coisas.
— Pode parecer estranho, sra. Ward, mas nossa gente não se
apaixona antes do casamento, como o seu povo. Isso acontece depois. As
mulheres sabem que um dia amarão os maridos.
— Mas como podem saber? E não se assustam, não têm medo?
Falava de si mesma. Não tinha a menor idéia de como seu rosto
expressava seus sentimentos, ao se lembrar da noite de núpcias e de como
achara Kelvin grande e dominador, ao se aproximar de sua cama.
— Uma mulher hindu adora a vida, assim como o fogo divino de
seu noivo é a personificação de Krishna, o deus do amor.
Seraphina encarou-a, curiosa, e ela continuou:
— O amor gera a vida. Em conseqüência, quando duas pessoas se
unem pelo fogo divino, elas também se tornam deuses.
Silêncio. Seraphina ajoelhou-se ao lado da cadeira da rajmata.
— Explique-me, por favor. Diga-me, Alteza, de modo que possa
entender, o que significa o amor entre um homem e uma mulher, de modo
que… a noiva… não tenha medo do amor… e o ame!
A lua já estava alta no céu e sua luz prateada fazia com que o
Palácio do Lago parecesse flutuar, prestes a subir até o céu estrelado.
Nos ouvidos de Seraphina pairava a música que havia escutado no
palácio e parecia-lhe que, pela primeira vez, entendera o significado da
dança, de seu ritual, de suas metáforas. O corpo representando a vida.
Em honra da ocasião, foram escolhidas danças e músicas de
Kalidasa, o poeta mestre e autor de teatro que vivera no século IV. Contavam
a história de como certa vez a primavera não visitara a Índia. Os deuses
estavam assediados pelas preces angustiadas dos homens, que queriam
tempo de chuva e, principalmente, toda a fertilidade da primavera ausente.
Os deuses encarregaram Krishna, o deus do amor, de tentar conciliar as
coisas, e ele viajou pelo Himalaia, levando sua mulher, Rati, o desejo. Por
onde passavam, Krishna fazia com que os animais se amassem.
Duas linhas do poema traduzido em inglês ficaram na cabeça de
Seraphina:

102
“As criaturas da floresta mostraram a primavera brotando no
coração de cada noivo, para com sua noiva”.
Encontrou-se repetindo isto baixinho, enquanto o barco passava
junto das flores de lótus e atravessava as águas paradas, até chegarem ao
porto do Palácio do Lago.
Sabia agora, desde que conversara com a rajmata, que tudo aquilo
que sentia por Kelvin, o estranho fogo que ele acendera dentro dela, ao lhe
beijar a mão, era amor!
Como podia ter acreditado que aquilo fosse amizade?
Com certeza, amava-o com ciúme intenso, desde que tinha ouvido
lady Braithwaite dizer que era um amante apaixonado!
Eu o amo! Eu o amo, repetia Seraphina de si para si. Mas não havia
reconhecido o sentimento até então.
Não esperava que o amor fosse uma dor no coração, um aperto na
garganta, uma vontade de estar junto. Não, necessariamente, uma vontade de
conversar ou de tocar, mas o simples contentamento por ele estar ali.
Fora o amor que a deixara com impressão de que lady Braithwaite e
a cobra a ameaçavam, tentando destruir alguma coisa milagrosa e bela.
Perguntava-se como tinha podido ser tão estúpida, a ponto de impedir que
Kelvin a possuísse.
— Quero que ele me ame!
Mas desconfiou de que a canção estava errada. Não havia paixão
brotando no coração do noivo. Ele próprio havia confessado que não queria
casar com ela.
Como havia de desejar uma menina inocente, cansativa,
amedrontada, imposta a ele, quando preferia mulheres sofisticadas?
Mas, pelo que a rajmata lhe havia dito, Seraphina aprendera que um
homem e uma mulher que não se conheciam antes do casamento podiam vir
a se amar.
Na dança daquela noite, tinha observado o marajá e a esposa. Os
olhos do rei abrandavam-se, quando pousavam na face tímida de sua mulher.
Brilhando num sari bordado de diamantes, ela era uma beleza rara, muito
jovem. Tinha apenas dezessete anos. Um ano mais moça do que Seraphina, e
já estava casada há três e tinha dado um filho ao marido.
Ele a amava, mas, quando se tornara sua mulher, não tinha idéia de
como era ela.
Um arrepio percorreu seu corpo de novo, ao pensar que ela e Kelvin
poderiam se amar como o casal real.

103
Ao deixar o palácio, depois da conversa com rajmata, não tinha mais
medo.
Agora entendia o que significava o amor entre uma mulher e um
homem e não tremia, ao pensar no assunto.
Por que ninguém lhe havia contado? As meninas hindus aprendiam
essas coisas assim que começavam a falar. Era a ignorância que criava o
medo, não o conhecimento da verdade!
Muita gente já havia descoberto isso antes dela, mas era uma
revelação!
Não tenho mais medo! Queria gritar para as estrelas e sentia o
coração cantando de felicidade. Precisava fazer com que Kelvin entendesse.
Foram juntos até a bonito salão que se debruçava sobre o lago.
Os criados trouxeram refrescos e saíram.
Kelvin sentou numa cadeira funda e Seraphina o olhou, encantada.
Como era bonito, charmoso, irresistível!
Talvez a masculinidade dele a inibisse, no começo, mas agora o
efeito sobre ela era bem diferente.
Era tão másculo, que ela podia entender por que as mulheres se
apaixonavam e não suportavam a idéia de perdê-lo.
— Mas eu sou sua esposa! — murmurou, orgulhosa.
As palavras da música continuaram martelando em seus ouvidos:
“com a paixão brotando…”
Kelvin sentiria alguma paixão por ela? Como poderia seduzi-lo?
Se acreditasse na rajmata, um homem se encantava naturalmente por
uma mulher bonita e, inevitavelmente, sem dúvida, pela própria mulher.
Mas a rajmata estava falando de homens hindus. Aconteceria o
mesmo com Kelvin?
Toda vez que se enraivecia, podia sentir as vibrações saindo dele,
intensas… Se sentisse outro tipo de emoção, ela também perceberia?
Sua alegria diminuiu um pouco. Uma coisa era saber que gostava do
marido e que queria seduzi-lo; muito diferente, traduzir isto em palavras e
ações.
E se a detestasse tanto quanto na noite do casamento?
Seraphina levantou-se e foi até a janela aberta. A beleza e o encanto
do lago pareciam uma miragem, como um sonho na sua frente.
Precisava fazer com que ele compreendesse que não tinha mais
medo!
Sentiu como se Krishna, o deus do amor, com seus bonitos olhos

104
líquidos, estivesse perto dela, ensinando-lhe a lição.
— Kelvin… — começou, numa voz que tremeu sem querer.
Ele olhou para sua figura esguia que se delineava contra o escuro, o
vestido de tule brilhando ao luar.
— Sim?
— Tenho uma coisa para… lhe dizer. — Seraphina tomou fôlego. As
palavras estavam diante dela, mas não conseguia dizê-las.
— O que é?
Antes que pudesse responder, um criado apareceu na porta. —
Desculpe, sahib, mas chegou um mensageiro com dois telegramas.
— Telegramas? A esta hora da noite?
— Não temos linha telegráfica — explicou o criado —, e o
mensageiro sabia que os telegramas eram urgentes.
Entregou-os a Kelvin numa bandeja de prata redonda.
Ele abriu o primeiro, que era endereçado ao “Major Kelvin Ward”.
Leu-o inteiro. Quando o empregado saiu, Seraphina disse, com voz
embargada:
— O que é? O que aconteceu?
Sabia, sem que lhe dissessem, que o marido estava tenso. Havia algo
na maneira como segurava o pedaço de papel que a amedrontava.
Como resposta, ele leu alto:
— “Sinto informá-lo de que Sua Graça o Duque de Uxbridge morreu
esta manhã de um ataque cardíaco inesperado. O funeral será na sexta-feira.
Meredith, Mayhew e Leach.”
— Seu tio morreu!
Kelvin não respondeu. Em vez disso, pegou o outro telegrama:
estava endereçado a Sua Graça, o Duque de Uxbridge.
Abriu-o e viu que havia sido mandado dois dias depois do outro.
Atrasara ou ficara retido em Chitorgarh, até que um mensageiro pudesse ir a
Udaipur.
Leu a mensagem e depois, sem emoção nenhuma na voz, repetiu:
— “Cumprimos o dever de informar a Vossa Excelência que as
posses do falecido duque foram avaliadas em três milhões de libras. Estamos
administrando tanto a casa quanto as propriedades, até recebermos
instruções de Vossa Graça.
Meredith, Mayhew e Leach.”
Ao acabar de ler o telegrama, ele se levantou.
— Até que enfim, estou livre do seu maldito dinheiro! Seraphina

105
ficou imóvel. Antes que pudesse falar, ou mesmo se mexer, um criado entrou
na sala com papel, mata-borrão, tinteiro e uma pena.
— Imaginei que sahib quisesse responder — disse, respeitosamente.
— O mensageiro está esperando.
Colocou tudo na mesa, na frente de Kelvin, que olhou para aquelas
coisas por momentos e sentou.
— Diga ao homem para esperar. — E pegou a pena.
Começou um telegrama para o encarregado de negócios do tio.
Enquanto escrevia, uma figura apareceu na porta.
— Desculpe a intrusão — disse o primeiro-ministro —, mas Sua
Alteza soube da notícia e mandou-me como mensageiro de suas profundas
condolências pela morte de seu estimado tio. Manda também felicidades para
a posição destacada que o senhor tem agora.
Kelvin não se surpreendeu de que o marajá soubesse do conteúdo
dos telegramas. Tudo se sabia na Índia, e o mensageiro não teria viajado
tanto, sem conhecer a mensagem que levava. Não teria também sido capaz de
guardar o segredo, depois de chegar a Udaipur.
— Obrigado.
— Espero que isto não queira dizer que vai nos deixar.
— Não vejo razão para isto. Teríamos que viajar um mês para a
Inglaterra. Se viajarmos agora ou daqui a duas semanas, não fará diferença.
— Pegou o telegrama que escrevera e o deu para o criado. — Peça ao
mensageiro que mande isto a Chitorgarh logo que possível. Tenho outros
para enviar pela manhã.
— Não haverá problema quanto a isto — disse o primeiro-ministro,
quando o criado deixou a sala.
— Minha mulher e eu temos sido tão bem recebidos aqui, por Sua
Alteza e por Vossa Excelência, que seria um absurdo partirmos
apressadamente para a Inglaterra.
— Isso nos deixa felizes.
— Há procuradores que podem cuidar de tudo na minha ausência.
Kelvin não conseguia disfarçar certa satisfação na voz. Parecia
impossível, depois de tudo o que o tio lhe dissera; depois de suas
mesquinharias, suas queixas de miséria, as economias desnecessárias
prejudicando seus parentes. E tinha morrido um homem rico.
Kelvin já se imaginava reformando as propriedades, aumentando os
ordenados dos criados e a pensão aos aposentados, assumindo sua posição
no destino político do país. Mas, no íntimo, não tinha desejo de voltar à

106
Inglaterra.
Quando o primeiro-ministro foi embora, Kelvin entrou de novo no
salão e pegou os telegramas.
Duas mensagens que haviam mudado seu futuro! Pensou logo em
Seraphina e teve necessidade de falar com ela. Que raiva! Discutir sua vida
com um estranho, quando poderia estar conversando com a mulher!
Ela havia saído com a chegada do primeiro-ministro, e achou que
não tinha vontade nenhuma de entrar no complicado cerimonial de troca de
amabilidades, comum numa situação dessas.
Kelvin subiu a escada de mármore. Não havia luz sob a porta de
Seraphina. Pensou em bater e desistiu. Suavemente, abriu a porta.
Havia pouca luz atravessando a janela e viu a cabeça de Seraphina
entre os travesseiros.
Ela não disse nada e ele imaginou que dormia. Escutou. Sussurrou o
nome dela.
Nenhuma resposta. Saiu do quarto, fechando a porta atrás de si.
Seraphina ficou imóvel, depois da saída dele, e então enterrou o rosto no
travesseiro. Sabia que não havia mais esperanças.
Kelvin tinha falado a verdade. Nem tentara disfarçar nada para não
magoá-la.
— Não havia “paixão brotando em seu coração”. Ela não servia
mais. Para nada.
Não chorou. Sentiu uma agonia além das lágrimas, além de tudo.
Uma tristeza negra, sem saída nem esperança. Assim devia ser o inferno.
— Se eu pudesse… morrer — sussurrou. — Se eu pelo menos…
estivesse morta!

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CAPÍTULO VIII

Kelvin desceu para o café da manhã.


O brilho do sol feria os olhos, refletindo-se no mármore branco, e a
primavera roxa e o jasmim amarelo tornavam-se jóias contra o mosaico.
Levantara-se muito cedo para ficar pensando em todas as coisas que
queria fazer. Pelo menos uma ambição se transformaria em realidade.
Na noite em que havia jantado com o governador em Bombaim, este
lhe confidenciou que estava voltando para a Inglaterra para se operar.
— É uma confidencia — disse o governador. — Sempre tive você em
alta estima, e minha aposentadoria forçada terá alguma repercussão em sua
vida.
— Em minha vida? — perguntou Kelvin, surpreso.
— Na semana que vem, estarei com o rei e vou sugerir que indique
você para governador de Bombaim.
Kelvin custou a responder. Depois disse, calmo:
— Duvido que o primeiro-ministro aceite tal indicação.
— É o que veremos. Sei que há um movimento na Inglaterra para
transformar o posto de governador, que agora é uma aposentadoria
confortável para velhos generais. Querem nomear jovens que tenham
conhecimento do país.
— Isto realmente seria um progresso.
— Não conheço ninguém que preencha o posto tão bem como você.
Antigamente, não seria possível indicá-lo, mas as coisas mudaram.
O governador estava se referindo, com tato, à mudança de sua
situação financeira, devido ao seu casamento.
— Naturalmente, com a morte de seu tio — continuou ele —, a
situação ficaria mais fácil ainda. — Sorriu. — É trabalho duro! Se for
desempenhado como deve ser!
— Estou ciente disso, senhor! E sabe que seria uma das maiores
satisfações de minha vida.
— Há poucos jovens na Índia. Jovens que conheçam o país. É
desnecessário dizer que esta conversa não deve ser repetida a ninguém. Mas
não me surpreenderei se, dentro de um mês, mais ou menos, você tiver
notícias pelo primeiro-ministro.

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— Tenho esperanças de que esteja certo, senhor.
Mas Kelvin não esperava realmente por isso, devido à sua posição
social. Agora, tornando-se duque, as coisas mudavam de figura. Havia
poucos duques que quisessem servir cinco anos na Índia, e sabia que as
chances de ser governador de Bombaim aumentavam muito. Era quase uma
certeza.
Ao se levantar, havia tomado uma decisão. Pediria a sir Anthony
Fanshawe para cuidar das propriedades de Uxbridge. Poderia pagar bem por
seus serviços, sem que ficasse humilhado em receber dinheiro do amigo.
Ainda mais: com Anthony encarregado de tudo, não havia razão para que
voltasse à Inglaterra, antes de estar preparado.
Não queria levar Seraphina de volta tão depressa. Para ser franco
consigo mesmo, não tinha vontade nenhuma de encontrar sir Erasmus outra
vez.
Achava que Seraphina estava muito mais feliz sem a sombra
poderosa e dominadora da personalidade do pai. E, do seu ponto de vista,
quanto maior a distância entre ele e o sogro, melhor.
Ficaria na Índia. Pelo menos, durante os próximos meses. Depois
disto…
Havia um sorriso em seus lábios, ao pensar no futuro.
Não deixaria Seraphina no calor de Bombaim. Poderiam ir para o
Norte e ficar ou em Simla ou Kashmir.
O sopé do Himalaia estaria frio e, dentro de um mês, tão brilhante,
colorido e perfumado como a própria Seraphina.
Parecia a Kelvin, ao olhar o lago e a beleza do palácio, de um
dourado pálido ao nascer do sol, que um novo panorama se apresentava para
ele. Afinal, todas as coisas que realmente desejara na vida estavam se
transformando em realidade!
Agora, colheria os frutos do esforço que tinha feito para aprender
tantas línguas da Índia, de modo a poder conversar com o povo.
— Está perdendo seu tempo — diziam os companheiros, quando ele
preferia ir acampar a jogar pólo.
Riam-se dele, quando ficava até tarde da noite estudando sânscrito.
em vez de se embebedar.
Kelvin estava contente. Afinal, o conhecimento que acumulara
durante anos seria usado.
Havia tanta coisa que poderia fazer! Uma cooperação maior com as
autoridades do governo hindu, clubes onde os hindus e os europeus seriam

109
bem-vindos, onde houvesse maior integração social.
Seraphina seria uma ajuda enorme: tinha facilidade para fazer
amizades.
O trabalho era grande. É claro que apareceria muita oposição a
idéias tão revolucionárias… Mas, enfim, teria a oportunidade.
— Os deuses são bons — murmurou.
Virando-se da janela, andou até a mesa do café. Viu que só havia
lugar para um. Sentou e perguntou ao criado:
— A mem-sahib vai ficar no quarto?
— A mem-sahib foi embora, sahib.
— Embora?
Tentou lembrar se Seraphina havia dito alguma coisa sobre um
compromisso de manhã. Achou que o homem não o entendera.
— Perguntei — disse ele, devagar — se mem-sahib vai tomar o café
da manhã no quarto.
— Não, sahib. A mem-sahib saiu muito cedo, logo de madrugada.
Kelvin levantou-se.
Por um momento, não entendeu o que o homem queria dizer.
Depois, sem perguntar mais nada, atravessou o pátio iluminado de sol e
subiu a escada de mármore para o segundo andar.
Chegou ao quarto de Seraphina, bateu e abriu a porta ao mesmo
tempo.
O quarto estava vazio, e os lençóis, arrumados. Mas, pela porta
aberta de um guarda-roupa, viu algumas roupas penduradas.
O grande medo que sentia diminuiu. Com certeza, tinha ido visitar a
rajmata. Mas por que não lhe dera uma palavrinha?
Viu, então, a carta sobre a mesa.
Sabia, antes de atravessar o quarto, que estaria endereçada a ele.
Pegou-a e ficou sem coragem de abrir. Muito devagar, puxou o papel de carta
do envelope e leu:
“Agora que tem tudo o que quer, volto para papai. Por favor, não
tente me impedir. Entendo o que sente e só posso lhe ser grata por ter sido
tão bom e paciente.
Seraphina.”
Kelvin sentiu como se as palavras dançassem diante de seus olhos.
Levantou a cabeça para olhar o quarto onde nunca havia entrado desde que
chegaram ao Palácio do Lago. Branco e fresco, bonito e apropriado para
Seraphina. No ar, o seu cheiro, aquele perfume suave que sempre a

110
acompanhava.
Endireitou o corpo, saiu e mandou chamar seu criado Jahan.
— Por que não me informou, quando a mem-sahib saiu tão cedo, de
manhã?
— Ela insistiu para que não o acordássemos, sahib.
— Quem foi com ela?
— Somente Amar.
— Ele disse para onde iam?
— Não, sahib.
— Estou saindo agora e você vem comigo! Vamos a cavalo. Traga
coisas para a noite.
— Sim, sahib. Voltaremos?
— Voltaremos! — disse Kelvin, e sua voz era firme.
Meia hora depois, deixaram o palácio. Kelvin montava um dos
cavalos que lhe tinham sido presenteados pelo marajá. Era um animal
magnífico, com sangue árabe.
Jahan amarrou um cobertor atrás da sua sela e partiram a galope,
em velocidade que Kelvin queria manter durante a longa jornada que tinham
pela frente.
Seria necessário correr para impedir Seraphina de chegar a
Bombaim antes dele e deixar a Índia no primeiro navio. Caso contrário,
passariam semanas, antes de poder encontrá-la. Era, então, essencial que a
encontrasse antes que chegasse a Chitorgarh.
Soube com facilidade para onde ela ia e que viajava numa tonga,
uma pequena carruagem hindu com rodas grandes e puxada por um cavalo.
Em alta velocidade e saindo antes das quatro e meia da manhã, já
estaria muitos quilômetros à sua frente.
Kelvin era um cavaleiro muito experiente para forçar sua montaria,
por melhor que ela fosse. Felizmente, depois de deixarem Udaipur, a estrada
para Chitorgarh era numa planície de chão macio.
Kelvin remoía vezes sem conta tudo o que lhe acontecera desde o
casamento. Culpava-se pelo que estava acontecendo agora. Devia saber que
Seraphina interpretaria errado o que havia dito ao ler os telegramas e que
devia tê-la seguido, no momento em que subira para o quarto.
Fui um idiota!, dizia a si mesmo.
Sua única desculpa era que, apesar de sua vasta experiência com
mulheres sofisticadas, jamais havia encontrado alguém como Seraphina. As
mulheres se encantavam com ele e, quase antes que as desejasse, já estavam

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caindo em seus braços, para lhe dar aquilo que pedisse.
Desde o começo, Seraphina lhe lembrara um veadinho que tentara
domar quando pequeno. No começo, corria de medo, sempre que ele chegava
perto; depois, um velho guarda-caça de sangue meio cigano lhe explicou que
o animalzinho devia crescer acostumado com ele e aceitá-lo.
Lembrava-se de ficar sentado horas sob uma árvore, no parque de
casa, sem se mexer, só olhando o veado chegar mais e mais perto, temeroso.
Um movimento mais brusco, a respiração mais forte o amedrontavam, e
fugia. Tinha que começar tudo de novo.
Demorou meses, mas finalmente o veado veio comer em sua mão e
entendia quando o chamava. Como era bonito e sensível, com seus olhos
grandes e pernas esguias! Sua graça e elegância também o faziam lembrar
Seraphina.
Nunca havia conhecido uma mulher tão graciosa, nem que o tivesse
olhado com tanto medo; ou tão sintonizada com seus estados de espírito.
Sentia que ela o olhava, apreensiva, quando estava zangado. Olhava-o,
esperando apoio e apreciação, não só por sua aparência, mas por seu
comportamento.
Era uma criança, às vezes; outras, tão mulher e tão profunda que
espantava.
Lembrava-se das conversas no navio: religião, psicologia, filosofia!
Nunca acreditara que uma mulher pudesse achar estes assuntos
importantes; quanto mais querer conversar sobre eles.
E sua compreensão intuitiva da humanidade? Ficara atônito. Estava
sempre procurando um significado mais profundo, o motivo atrás da ação, o
mundo atrás do mundo. Ela era uma extraordinária mistura: meio criança,
meio mulher, e tão, tão inacreditavelmente inocente!
E isto não era o sonho de todo homem, o desejo de todos eles?
Pensou na marani e comparou-a com sua mulher. De muitos modos,
assemelhavam-se. Na feminilidade, compaixão e doçura.
A maleabilidade de Seraphina, a capacidade de adaptação a
diferenciavam da menina inglesa normal, segura de si, positiva em suas
opiniões, certa de que era o presente que Deus oferecera ao mundo!
E pensar que Seraphina estava infeliz, sofrendo por causa de sua
estupidez!
Sem sentir, Kelvin apressou o cavalo.
Pararam ao meio-dia para dar água aos animais e descansá-los um
pouco.

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Jahan teria comprado comida numa vila pela qual passaram, mas
Kelvin não quis nada além de um refresco. Não tinha tomado o café da
manhã, mas não estava com fome.
Cavalgaram mesmo no calor mais alto do dia, só parando ao
escurecer.
A ansiedade de Kelvin preocupava o criado. Faziam perguntas nas
cidades pelas quais passavam e, em todas elas, ficavam sabendo que uma
tonga com uma mem-sahib estava na frente deles.
Nas cercanias de uma pequena cidade, viram um dak-bungalow.
Pela Índia inteira, existiam essas hospedarias para viajantes
europeus que precisassem passar a noite.
Às vezes, eram grandes e impressionantes, mas essa era pequenina.
De uma olhada, Kelvin viu que tinha dois quartos e uma sala de jantar
comum.
Atrás, com certeza, uma cabana para o khansamah, o zelador, e o
estábulo.
Ficava num jardim coberto de flores.
— Teremos que passar a noite aqui — disse ao criado. Onde estaria
Seraphina? Impossível saber.
É claro que Amar teria o bom senso de fazê-la parar num dak-
bungalow.
Kelvin havia parado nos palácios em que ficaram na viagem para
Udaipur. Quem sabe Seraphina voltasse para lá? Não, isto não era muito
provável. Teria que dar muitas explicações para o fato de estar viajando
sozinha. Os anfitriões, também, em sua amabilidade, não a deixariam
continuar viagem tão cedo.
Não deve estar muito longe, disse a si mesmo, indo para os estábulos.
Como? Uma tonga?
Ao desmontar, deu com Amar olhando para ele.
— Amar! Onde está a mem-sahib?
— Foi para a cama, sahib, mas estou contente por que tenha vindo.
Kelvin suspirou fundo. Agora, pelo menos, não havia mais tanta
pressa. Tinha encontrado Seraphina!
— Mem-sahib está bem?
— Um pouco cansada. Viajamos muito.
— Se viajaram! Eu bem sei.
— Trocamos os cavalos. Tivemos que pagar muitas rúpias, mas a
mem-sahib disse que não tinha importância.

113
— É, não tinha! — repetiu Kelvin, e foi andando para o bangalô. O
khansamah conduziu-o cerimoniosamente ao pequeno quarto. Compunha-se
de uma charpoy (cama hindu), uma mesa e uma cadeira. Os viajantes, na
Índia, carregavam consigo tudo que precisavam.
— Há uma mem-sahib no outro quarto — explicou o khansamah.
— Eu sei.
Jahan entrou com o cobertor que amarrara no cavalo. Desdobrou-o.
Dentro, havia uma camisa limpa, roupas de baixo, uma caixa de navalhas e o
que mais fosse necessário para um banho.
Pela primeira vez desde que deixara o palácio, Kelvin descobriu que
estava com fome. E coberto por uma poeira fina.
— Vou tomar banho.
Havia um banheiro pegado ao quarto e baldes de água ao lado de
uma fonte.
Estava refrescado e faminto, ao entrar no quarto, enrolado numa
toalha, para descobrir que Jahan havia trazido o longo robe azul que sir
Anthony o fizera comprar em St. James.
Colocou-o, e Jahan serviu o jantar com uma garrafa de cerveja
indiana que, por sorte, estava gelada.
Kelvin comeu sem ter noção do gosto ou do que comia.
Quando o criado o deixou e ficou sozinho, começou a pensar no que
faria.
Se soubesse da presença dele, Seraphina sairia correndo, e ele não
permitiria isso.
Atravessou a sala de jantar que ficava entre os dois quartos. Viu
uma luz debaixo da porta dela.
Era bom que estivesse acordada. Bateu à porta e entrou.
Havia uma vela. na mesa, e a cama estava coberta por um mos-
quiteiro.
De joelhos, ao lado da cama, Seraphina rezava. Não escutara a porta
se abrir, e ele ficou olhando a figurinha ajoelhada. Como se sentisse o calor
dos olhos dele, ela virou o rosto. Chorava.
Ficou quieta, parada, os olhos arregalados.
— Por quem estava rezando?
— Por… você — respondeu, sem pensar.
— E as lágrimas são para mim também?
Ela se levantou, sem saber bem o que fazer, como criança culpada de
travessura esperando castigo. Seu corpo aparecia através do tecido fino da

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camisola. Apesar de esguio, não era o corpo de uma criança.
— Vá para a cama, Seraphina. Quero falar com você.
Ela obedeceu.
Kelvin apagou a vela e abriu a janela. A noite tinha chegado,
carregada de estrelas. A lua aparecera inteira e encheu o pequeno quarto nu
de raios de prata tão brilhantes, que, ao erguer o filó, pôde ver o rosto de
Seraphina como se fosse dia.
Havia só um travesseiro e um lençol para cobri-la. Parecia frágil e
delicada sob o cortinado. Não havia medo em sua expressão, mas os olhos
estavam úmidos de lágrimas, preocupados, apreensivos.
— Achei que nunca alcançaria você — disse ele.
— Eu disse para não me seguir…
— Tive que segui-la.
— Por quê?
— Por uma simples razão. O que deixou escrito para mim, na carta,
era mentira.
— Mentira?
— Disse que eu já tinha tudo o que queria na vida.
— Mas tem! Seu tio está morto, e você, rico.
— Ainda quero mais. Algo bem mais importante do que todo o
resto.
— E o que é?
— Você!
Ela estremeceu, mas ficou quieta.
— Quero-lhe dizer uma coisa, Seraphina, que nunca disse antes.
— O quê…?
— Quando cheguei ao quarto, na noite do casamento, achei que ia
encontrar uma mulher enorme, grandona, parecida com seu pai, me
esperando. — Ele sorriu. — Sabe o que descobri? Um bichinho pequeno e
amedrontado.
Alguma coisa na voz dele fez com que ela baixasse os olhos.
— Tentei ser bondoso e compreensivo — continuou. — Convenci-
me, a custo, de que precisava ser protegida e ajudada. Apaixonei-me na hora.
— Isso… não é verdade. — Nem podia falar direito.
— É verdade, sim. E quando me segurou, pedindo proteção na
tempestade, tive certeza. Quando conversamos no navio, percebi que, não só
tinha que protegê-la, mas ficar mais inteligente para poder conversar com
você.

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Seraphina fez um pequeno movimento de protesto.
— A cada dia, durante a viagem, eu a amava mais. Não era você que
estava com medo, Seraphina. Era eu. Desesperado, apavorado, ao pensar que
podia quebrar a confiança que começava a depositar em mim.
Olhou para ele, com uma luz súbita nos olhos.
— Quando a vi no seu vestido rosa, inclinada sobre a criança hindu,
tão carinhosa, achei que era tudo o que um homem poderia desejar.
Percebeu que o corpo de Seraphina tremia, e não era medo.
— Quando salvou o principezinho e vi você irrompendo pelas
chamas, percebi que era a única coisa para mim, na vida. Devia ter lhe dito
tudo, antes, mas tinha medo de sua reação. Havia também uma barreira entre
nós.
— Meu… dinheiro…
— É, o seu dinheiro. Eu o odiava porque, com a sua sensibilidade,
podia achar que estava sendo amoroso por puro interesse. — Suspirou. —
Como poderia fazer amor com você, se passasse por essa cabecinha que era o
troco pelo nosso casamento? Foi por isso que ontem à noite, ao receber os
telegramas, minha primeira reação foi de alívio. A barreira absurda que nos
separava caíra!
Os olhos de Seraphina estavam cheios de carinho e amor. Disse,
terna:
— Amo você, meu querido! Amo-o mais do que qualquer mulher o
amaria e nada pode me impedir, agora, de declarar minha paixão.
— Vou ser muito delicado com você, Seraphina. Só vou tocá-la
quando me pedir. Mas, por favor, fique comigo. Quero-a, desesperadamente!
— Eu… vou ficar.
— Minha jóia, meu amorzinho amedrontado, vamos ser felizes,
prometo. Mas tenha pena de mim, Seraphina.
— Pena?
— Querida, não imagina como é difícil, para mim, ficar longe de
você, não beijá-la, não fazê-la minha. — Kelvin continuou com voz rouca: —
Cada noite, no navio, pensava que estávamos tão perto… Não podia dormir.
Desejava você com todas as forças do meu coração. E na noite em que a
carreguei para a cama, foi a maior tortura de minha vida. Um dia, quando
deixar, beijarei você dos pés à cabeça.
Seraphina levou a mão ao peito, como para acalmar o tumulto.
— Adoro minha mulher, mas também a desejo com cada fibra de
meu corpo. Não sabia que uma mulher pudesse ser tão desejável. Mas não

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devo amedrontá-la. — Com um tom de voz diferente, disse: — Conte-me o
que ia dizer, quando aquele criado nos interrompeu. Acho que era
importante.
Ela se aproximou, mas não falou nada.
— Diga, Seraphina.
Numa voz baixinha, respondeu:
— Venha para bem perto… está bem? Para que eu possa lhe dizer.
Kelvin achou que não havia entendido! Então, tirou o roupão e
entrou debaixo dos lençóis.
— Conte-me tudo, minha querida.
Sentia o corpo dela tremendo contra o dele.
— Eu ia dizer que não tinha mais medo de você. Que queria ser sua
mulher… de verdade!
Kelvin apertou-a tanto, que ela mal podia respirar. Procurou seus
lábios. Foi um beijo delicado e macio, como uma borboleta sobre as flores,
mas Seraphina sentiu a faísca de desejo que brotava entre os dois.
Instintivamente, apertou-o também, com força.
Ele levantou a cabeça e disse, numa voz trêmula:
— Meu bem, não queria fazer amor com você, pela primeira vez,
num lugar tão pouco romântico.
— Para mim, é um palácio encantado.
— Verdade? E talvez eu seja o príncipe.
— E muito mais. É o mundo, o céu, o deus do amor, Krishna!
— Amo você! Como pode me dizer estas coisas?
Beijou-a de novo, mas seus lábios, agora, apesar de ternos, pediam,
possessivos, exigentes.
Ela se deu inteira ao fogo que surgia, divino. Não era mais ela, e sim,
uma parte dele.
— Eu o amo… amo…
Não podia falar.
— Adoro você, minha mulherzinha.
Só restaram a magia da lua e os sussurros suaves do amor.

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QUEM É BARBARA CARTLAND?

As histórias de amor de Barbara Cartland já venderam mais de cem


milhões de livros em todo o mundo. Numa época em que a literatura dá
muita importância aos aspectos mais superficiais do sexo, o público se deixou
conquistar por suas heroínas puras e seus heróis cheios de nobres ideais. E
ficou fascinado pela maneira como constrói suas tramas, em cenários que vão
do esplendor do palácio da rainha Vitória às misteriosas vastidões das
florestas tropicais ou das montanhas do Himalaia. A precisão das
reconstituições de época é outro dos atrativos desta autora,que, além de já ter
escrito mais de trezentos livros, é também historiadora e teatróloga. Mas
Barbara Cartland se interessa tanto pelos valores do passado quanto pelos
problemas do seu tempo. Por isto, recebeu o título de Dama da Ordem de São
João de Jerusalém, por sua luta em defesa de melhores condições de trabalho
para as enfermeiras da Inglaterra, e é presidente da Associação Nacional
Britânica para a Saúde.

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Não perca a próxima edição!

A REBELDE
Barbara Cartland

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— Não aceite ser hóspede de minha mãe. É uma cilada! — O aviso da


linda Calixta deixou o conde Osric perplexo e curioso. E seu orgulho ficou
seriamente abalado, quando a jovem explicou que a mãe estava tramando
casar os dois. Aquela garota atrevida achava que era algum tolo? E que
petulância, mostrar tanto desagrado por um dos homens mais cobiçados da
Inglaterra! Entre ofendido e divertido, resolveu aceitar o convite. Claro que
não cairia na cilada de lady Chevington. Mas aconteceu pior do que isso:
apaixonou-se perdidamente por Calixta, a única mulher que não queria seu
amor. Uma jovem rebelde, capaz das maiores loucuras para fugir dele!

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