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JEAN HYPPOLITE GENESE E ESTRUTURA DA FENOMENOLOGIA DO ESPiRITO DE HEGEL Tradugao de Andrei José Vaczi, Denilson Soares Cordeiro, Gilberto Tedéia, Luis Sérgio Repa, Rodnei Anténio do Nascimento, com a coordenacao de Silvio Rosa Filho Prefacio de Bento Prado Jr. Con nuvrage béadjeie tt soutien du Consular Général de France a Sao Paulo Consulade Geral du Frangy em Stio Paula, ff MINISTERIO DACULTURA Aiate Hiv1o evtou cout « épaia do ht discurso editorial 1999 Copyright © Aubier, 1946 (ul original cin {ianees: Gendse et structure de ta Phénoménciogie de UEsprit de Hegel Copyright © da wvadugaa brasileira: Discurso Editorial, 1999 Nenhuma parte desta publieugao pode ser eravada, surmnazenada em sistemas elet3nicos, Fotocopiada, reproduzida por meios mecdnicos on outros quaisquer sem a antorizagio previa da editora Prajeto editorial: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP Direedo editorial: Victor Knoll Coordenacéo: Floriano Jonas Cesar Projet gréfice ¢ editoracéo: Guilherme Rodrigues Neto Capa: Camila Mesquita Hustracao da capa: Jacques-Louis David, “Napoledo em Saint Bernard”, 1800 Revisdo: Alexandre Morales Tiragem: 1.000 exemplares Ficha catalogrifica: Sonia Marisa Lucbetti CRB/8-4664 11998 Typpolite, Jean Génese ¢ estrutura da Fenomenologin do esptrito de Hegel /Jean Hyppolite; tradugdo de Silvio Rosa Filho; prefiicio de Bento Prado Jr. 2, ed. ~ S40 Pau- lo: Discurso Editorial, 2003, 648 ‘Tradugdo de: Genése et structure de fa Phéno- ménologie de PEsprit de Hegel ISBN 85-86590-15-0 1, Filosofia Contemporinen 2, Hisiéria da losofin 3. Hegel I. Titulo, U, Rosa Filho, Silvio {1 Prado Ir, Bento TV. Série, CDD (19.84) 109 4190 193.5 ht discurso editorial Ay, Prof, Laiciane Gualberto, 315 (sala 1.033) (08-900 — So Pauilo ~ SP efone: (11) 3814-5383 Felefax: (11) 3034-2733 il: discurso@org.usp.br Homepage: www.tiscurso.com.br SUMARIO PREFACIO DE BENTO PRADO JR. I GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 1, SENTIDO E METODO DA FENOMENOLOGIA 2, HISTORIA E “FENOMENOLOGIA” 3. ESTRUTURA DA “FENOMENOLOGIA” Il A CONSCIENCIA OU A GENESE FENOMENOLOGICA DO CONCEITO INTRODUGAO 1, A CERTEZA SENSIVEL 2. A. PERCEPCAO 3. 0 ENTENDIMENTO UI DA CONSCIENCIA DE SI NATURAL A CONSCIENCIA DE SI UNIVERSAL INTRODUGAO. PASSAGEM DA CONSCIENCIA A CONSCIENCIA DE SL 1. CONSCIENCIA DE SI E VIDA. A INDEPENDENCIA DA CONSCIENCIA DE SI 2. A LIBERDADE DA CONSCIENCIA DE SI. ESTOICISMO E CETICISMO 3. A CONSCIENCIA INFELIZ i 19 43 67 93 ‘95 115 133 1a 171 193 205 IV A RAZAO SOB O ASPECTO FENOMENOLOGICO 1, A RAZAO E O IDEALISMO 2. A OBSERVAGAO DA NATUREZA 247 3, A OBSERVAGAO DA INDIVIDUALIDADE HUMANA 275 NOTA DOS TRADUTORES 4. A RAZAO ATIVA, 0 INDIVIDUALISMO MODERNO 289 5. A OBRA HUMANA E A DIALETICA DA AGAO. 315 ESTA tradugao é resultado de um trabalho coletivo. Teve ini- Vv tio ha 6 anos, quando, reunidos, alguns estudantes de filosofia da Universidade de Sao Paulo, comecdvamos a leitura da Fenomenolo- la do espirito de Hegel e fomos descobrindo, nos comentarios e es- clarecimentos de Jean Hyppolite, um indispensavel interlocutor. Pa- © ESPIRITO: DA SUBSTANCIA ESPIRITUAL AO SABER DE SI DO ESPIRITO INTRODUCAO 343 Feccu-nos entao que, ao percorrer este caminho, o que valia para nés 1. 0 ESPIRITO IMEDIATO 357 -pudesse valer para muitos. Vem dai, pois, nosso empenho em ofere- 2. A PRIMEIRA FORMA DO SI ESPIRITUAL 389 ‘cer esta versao brasileira de Genése et structure de la Phénoménologie 3. 0 MUNDO DA CULTURA E DA ALIENAGAO 401 de l'esprit. 4. A AUFKLARUNG OU O COMBATE Fomos beneficiados pelo cotejo com a publicacdo espanhola DAS LUZES CONTRA A SUPERSTIGAO 453 (Francisco Fernandez Buey, Peninsula, 1974), para a Génese, e, para 5. A LIBERDADE ABSOLUTA E O TERROR, 8 citagdes da Fenomenologia, pela tradugao brasileira de Paulo OU O SEGUNDO TIPO DE SI ESPIRITUAL 481 leneses (Vozes, 1992). Neste ultimo caso, em busca de nos manter- mos fiéis ao texto de Hyppolite, sempre nos conduzimos de modo a VI adotar menos as solugdes terminoldgicas do que aquelas cujo teor ~ intatico ou estilistico — estivesse o mais préximo de nosso autor; ain- im, tendo em vista o estudioso de Hegel, todas as remissdes & traducdo francesa da Fenomenologia do espirito vém acompanhadas, DO SABER ABSOLUTO DO ESPiRITO AO ESPiRITO ABSOLUTO 1. A VISAO MORAL DO MUNDO. 495 in nota, pela referéncia 4 traducao brasileira, entre parénteses. Ade- 2. O ESPiRITO CERTO DE SI MESMO. mais, a intervencdo dos tradutores em notas de rodapé esteve pauta- © SI OU A LIBERDADE 519 da pela parciménia. 3. A RELIGIAO. MISTICISMO OU HUMANISMO 557 CONCLUSAO “FENOMENOLOGIA E LOGICA”. © SABER ABSOLUTO 599 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS PREFACIO A EDICAO BRASILEIRA BENTO PRADO JR. NUM relatério sobre “o estado dos estudos hegelianos na ", escrito em 1930, 0 fildsofo russo, radicado em Paris, Ale- Koyré, comegava por sublinhar a pobreza dos trabalhos con- clos Ao filésofo em seu pais de adocao. E explicava: “E que, ao firlo do que ocorreu na Alemanha, na Inglaterra e na Itélia, is pdde formar-se uma escola hegeliana na Franga, Hegel jamais i um discipulo como teve Schelling na pessoa de Ravaisson; ¢ roprio neo-hegelianismo, que desempenhou, como se sabe, um. | de primordial importancia na evolucao do pensamento filosé- ‘e e nos paises anglo-saxdes, 6 teve na Franca um tinico tante - de grande envergadura, é verdade -, Octave editando seu relatério, trinta anos depois, o mesmo Koyré a-lhe uma nota, descrevendo a dramatica alteragéo do intelectual francés € a proliferagao de novas tradugées e de agoes da Filosofia de Hegel: nada menos do que 14 traducées, am o principal da obra, e mais de vinte livros de inter- io Andlise, dentre os quais os trabalhos de Jean Hyppolite. fax, voltando a 1930, ao termo de seu relatdrio, destaca em elo livro” de Jean Wahl, sobre o Malheur de la conscience thilosophie de Hegel, que parece acolher a tradigao da dialéti- a de maneira nova (embora na pista da redescoberta, por los escritos de juventude). O mesmo Jean Wahl que ja abrira art sur état des études hégéliennes en France”, em A. Koyré, ive dle la pensée philosophique, Ed. Gallimard, 1971. 12 PREFACIO 13 Jean Hypro.ire espago para o pluralismo inglés e norte-americano e, logo a seguir, daria acolhida ao existencialismo de Kierkegaard . E uma leitura “existencial” de Hegel que privilegia a “infelicidade da consciéncia” | | no veio, digamos, “antropoteoldgico” da dialética, e que conheceria, nos subsequentes trinta anos, uma rica posteridade no pensamento francés. Renovacao a que nao esta alheio o proprio A. Koyré que se cempenhava, em 1931, em “La terminologie hegelienne”, em subli- nhar como as dificuldades da leitura (¢ da tradu¢ao, do acolhimento em outra tradigdo filosdfica) de Hegel derivam antes da riqueza e da coneretude de seu tema, do que da abstrag4o ou da vacuidade de sua linguagem. Como se empenhava, em seus semindrios na Escola Pratica de Altos Estudos, em Paris, em deslindar 0 universo da filo- sofia hegeliana da religido. Quis 0 acaso que, por essa ocasido, Alexandre Koyré viesse a conhecer outro Alexandre (A. Kojéve), russo e fildsofo como ele, entao preocupado com filosofia da Fisica, a quem convidou para subs- titui-lo na diregéo dos seus semindrios hegelianos: convite que assim acabou por dar, a obra de Kojéve, uma diregao completamente nova, numa ilustracao elogtiente do quanto a Razao filosofica deve as suas circunstancias “externas”. De 1933 a 1939 Kojéve consagrou seus se- | mindrios ao comentario da Fenomenologia do Espirito’, tendo audito- res como, entre outros, R. Queneau, G. Bataille, J. Lacan, Merleau- Ponty e Jean Hyppolite. Um comentario que, centrado na dialética do Senhor e do Escravo, reconhecia no texto de Hegel a prefiguragao da dialética marxista, sem prejufzo de ld reconhecer também a analt- tica heideggeriana do Dasein. Kojéve dava assim nova atualidade 4 filosofia hegeliana, centrando-a mais na FE do que na Légica, impreg- nando-a com o espirito do existencialismo e do marxismo. E, com i isso, dava também um sistema de referéncia para boa parte da filo- sofia francesa que viria a exprimir-se durante e apés a Segunda Guer- ta Mundial. E sobre esse pano de fundo que se destaca a obra notavel de Jean Hyppolite, como historiador e como fildsofo. A comecar pela traducao da FE (T. I, 1939 e T. Il, 1941), sobre a qual precipitaram- | se, diz a tradicao, mesmo leitores alemaes, na esperanca de melhor compreender esse texto dificil ( “ser4 que em francés...?”). Mas, so- tudo, como comentador na Génese e estrutura da fenomenologia do Fito de Hegel, le1946, a que o leitor brasileiro tem agora acesso. Pelo simples fato de sublinhar a importancia da FE, o traba- Hyppolite situa-se na imediata continuidade dos seminarios pjéve. Mas seu trabalho situa-se, também, numa perspectiva @, digamos, mais complexa: nele, a atengdo pela atualidade dos hepelinngs (a retomada, por um Kojéve que vivera a Revolu- Wlchevicue, cla dialética da Aufklarung e seu desfecho no Ter- Revolucio francesa’), ndo impede uma abordagem interna da de Heyel: nao se trata de reencontrar na obra de Hegel figuras hweclam o pensamento contemporanco, mas de explicar sua ew estructura, Por que géenese e estrutura? O conectivo presente no titulo da Hyppolite ja indica o problema central que ela quer deslindar. lena particularmente complicado, que tange a situagao da FE texto da obra, tanto do ponto de vista da sincronia como no eronia. O lugar, digamos, e 0 proprio contetido, da descricao periéncia da consciéncia" ou das figuras do Espirito, variam wo da obra, antes como depois do texto escrito entre 1805 e , em ritmo alucinante. B dessa tensdo entre a génese {até mesmo as circunstancias nas di produgao da FE} da obra e seu lugar “Idgico”, num itine- que vai da adesao & filesofia do Absoluto de Schelling (contra bjetivismo" de Kant e de Fichte) a uma nova figura do préprio luto (agora como “Sujeito”), que parte o livro de Hyppolite: da la Fenomenologia como exploracao da esfera do sujeito “natu- | “comum”, como condigéo indispensavel a constituigao da fa da Logica, que dissolve finalmente as antinomias do enten- ou cla metafisica. Tensao que se exprime na diferenca de tom Ha Introdugao e o Prefacio da FE, ou que exprime o problema da lugdo ao Saber": essa nova versao da aporia de Mendo que formulada por Fichte de forma lapidar: “Toda compre- PiFessupoe encontro, todo encontro pressupde compreensdo”. ito dos enriquecedores anacronismos da leitura kojeviana da FE, cf. de Paulo Arantes “Um Hegel ercado, mas vivo", na Revista Ide, n® M1. Alls, a coisa estava no ar no fim da década de 20: em 28, Marcuse Wa A (ese que eserevera sob a orientagao de Heidegger sobre a na da temporalidade, j4 pensando numa reconstrugao da dda Historia, 2 Doravante FE. Juan HyPpo.ite PREFACIO . A FE 6, portanto, um retorno a perspectiva “epistemolégica” (lato é, “fenomenolégica”, na linguagem de Hegel, que assim define a atitude critica de Kant, a perspectiva do sujeito finito), mas que visa, no final das contas, a dar fim @ finitude e acesso ao Saber Absoluto*. Tudo se passa como se a “génese” do pensamento hegeliano (seu itinerario intelectual, empirica e biograficamente compreendido), o vaivém en- tre Schelling e Kant/Fichte, se exprimisse na destinagao da conscién- cla humana ao Absoluto, isto é, na maneira pela qual a SubstAncia ow o Ser chega a coincidir consigo mesmo pela reconciliagéo do sujeito humano finito com sua Histéria. Entre 0 primeiro e 0 ultimo capitulos do livro de Hyppolite, ou entre a Introdugdo ¢ o Prefacio da FE, desenha-se a estrutura desse li- yro extraordinério (nas palavras de Habermas, 0 grande Aconte- cimento da filosofia alema). Nem sera estranho que o deslinde da apresentagao fenomenolégica da dialética seja ele proprio dialético, que 0 contingente se mescle ao necessirio, pois talvez essa passagem. constante entre dimensdes tdo opostas - a “astticia” da Razio - seja a esséncia da propria dialética. De maneira que 0 comentario de Hyppolite & FE assume, ele préprio, um movimento muito semelhan- te Aquele que anima seu objeto, tornando-o analiticamente, mas tam- bém mimeticamente, mais compreensfvel. Mas essa obra de filologia ou de excelente histéria da filosofia ndo deixa de ser ela propria filosoficamente motivada. E claro que, na escolha do objeto de sua tese, Jean Hyppolite também toma sua posi- | cfo propriamente filoséfica, de algum modo herética na tradigdo fran- cesa: de Descartes a Bergson, diz ele em outro lugar, a idéia de liberda- de emerge apenas da reflexdo do sujeito solitario; e propée, assim, implicitamente, a tarefa de recolocar o mesmo problema, contra essa tradigao, na forma da posstvel reconciliagaio do sujeito com sua hist6- ria. A filosofia contemporanea, definida pelas linhas divergentes da fe- nomenologia, do marxismo e do existencialismo, caberia retornar 4 inspiracdo hegeliana, que poderia fazé-las convergit na compreensao do século atual. \ A oscilagio entre 0 finito e 0 infinito, entre a Fenomenologia . ca Légica, nao aparece apenas, para Hyppolite, como um problema eltura de Hegel. Nos escritos que consagra, posteriormente, ao dimo, a psicandlise e a filosofia da existénciay Jean Hyppolite longa, por iniciativa propria, a exploracao da tematica da distan- ue separa a Légica da Existéncia, o ontoldgico do dntico. Numa palavra, com sua retomada da tematica da dialética, Hyppolite apontava para os dois pdlos entre os quais oscilou arte da filosofia européia no rico periodo do imediato pds-guer- lo onto-teoldgico € o pdlo antropoldgico ou humanista. Textos ls como a despretensiosa conferéncia de Sartre sobre o exis- smo como humanismo (1946) e a solene Carta sobre o huma- 9 (também de 1946), que Heidegger enderecou a Jean Beaufret, enta desarmar essa oposicdo, fazendo do humanismo um novo € que, em meados dos anos sessenta, essa atmosfera comecou tse: um jornalista italiano descrevia a vida intelectual itude. Hegel deixava de ser um farol do pensamen- , agora preocupado em denunciar a teleclogia da Razao ou Le verdade da consciéncia como as grandes ilusées a serem dis- la critica. a (por exemplo, a escolha de traduzir Knecht por escra- comentarios da FE foram feitos de uma perspectiva um restara que a obra de Jean Hyppolite permanece como @ ndo podemos perder de vista no presente, para guiar- as no oceano dos textos hegelianos, mas também na re nossa experiéncia contempordnea do mundo. Diga- 0s lembrar essa obra, se quisermos reiterar, no pre- le que ela foi capaz no passado: unir, de um sé golpe, ria da filosofia e critica da vida atual. 4 “Epistemolégica” é uma palavra que, embora necessiria no contexto, ndo € muito precisa, pois o heréi da epopéia narrada na FE nao & apenas o sujeito cognitivo, mas-o sujeito humano em todas as suas formas, estéticas, éticas, politicas e religiosas. PARTE I GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA CAPITULO 1 ENTIDO E METODO DA FENOMENOLOGIA SABEMOS que 0 Prefécio! da Fenomenologia é posterior & re- jo da obra. Foi escrito logo apds, assim que Hegel pdde tomar iéncia de sua “viagem de descoberta”. Esta destinado, sobretu- assegurar a ligacdo entre a Fenomenologia, que aparece como meira parte da ciéncia”, e a Logica, que, situada em um ponto de distinto da Fenomenologia, deve constituir o primeiro momento a enciclopédia. Concebe-se portanto que nesse Prefacio - que a charneira entre a Fenomenologia e a Légica - Hegel tenha se oem tity e sobre sua propria concepcao da novarleldade elo contrario, a Introdugéo & Fenomenologia® foi concebida ao po que a cbra e redigida em primeiro lugar; parece, por? errar o primeiro pensamento do qual brotou toda a obra. amente, no sentido literal, uma introdugao a seus trés Momentos ~ isto é: a consciéncia, a consciéncia de si e a Voltaremos, no terceiro capitulo desta primeira parte, a histéria da Fenomenologia do esptrito. 20 Juan Hyero.ite raviio; quanto a ultima parte da Fenomenologia, que encerra os de- senvolvimentos particularmente importantes sobre o Espirito e a Religiao, ela ultrapassa por seu contetido a Fenomenologia tal como é definida, stricto sensu, nesta Introdugao. Hegel teria feito entrar no quadvo do desenvolvimento fenomenoldgico algo que, de inicio, nao estava destinado a nele ter lugar, Contamos voltar a esse problema quando estudarmos a estrutura da obra. Contentamo-nos, por ora, com essa indicagao indispensavel para se compreender o alcance exa- to da Introdugao, a qual nos propomos a analisar tao de perto quan- to possvel. Seu estudo, muito mais do que aquele do Prefacio, nos permitira, com efeito, determinar o sentido da obra que Hegel quis escrever, assim como a técnica que 6, para ele, a do desenvolvimen- to fenomenoldgico. Com efeito, a Introdugo nao ¢, como o Prefa- cio, um apéndice que sempre contém informagées gerais sobre a meta que o autor se propés e as relacdes que a sua obra mantém com ou- tros tratados filosdficos sobre o mesmo assunto.} Pelo contrario, a Introducao faz parte integrante da obra, é a propria posigdo do pro- blema, e determina os meios postos em pratica para resolvé-lo, Em primeiro lugar Hegel define, nesta Introdugao, como se pde para ele o problema do conhecimento. Vemos como ele volta, de certa ma- neira, ao ponto de vista de Kant e de Fichte. A Fenomenologia nao é uma numenologia nem uma ontologia; contudo, ainda permanece como um conhecimento do Absoluto, pois 0 que mais se haveria de conhecer uma vez que “somente o Absoluto é verdadeiro, ou somente o verdadeiro é Absoluto”?# Todavia, no lugar de apresentar o saber do Absoluto em si e para si, Hegel considera o saber tal como este é na consciéncia; ¢ é precisamente desse saber fenoménico, a criticar- se asi mesmo, que ele se eleva ao saber absoluto. Em segundo Ingar, Hegel define a Fenomenologia como desenvolvimento e cultura da consciéncia natural rumo a ciéncia, isto é, rumo ao saber filosdfico, ao saber do Absoluto; indica simultaneamente a necessidade de uma evolugao da consciéncia e o término dessa evolugdo. Em terceiro lu- gar, Hegel precisa a técnica do desenvolvimento fenomenolégico, mostra em que sentido esse desenvolvimento é a propria obra da 3 Fenomenologia do espirito, Paris, Aubier, 1941; T. I, p. 5. Doravante remete- remos a esta edigao da seguinte maneira: FE, I, p. 5 (21); 0 algarismo roma- no se refere ao tomo, ao passo que o ardbico, entre parénteses, corresponde a pagina da traducio brasileira de Paulo Meneses (Petrépolis, Vozes, 1992). 4. FE, I, p. 67 (65). UENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 21 acléncia engajada na experiéncia, ¢ em que sentido ele esta sus- fivel le ser repensado, em sua necessidade, pela filosofia. 1,1, 0 PROBLEMA DO CONHECIMENTO. IDEIA DE UMA FENOMENOLOGIA Em suas obras filosdficas de lena, Hegel criticara toda prope- tica a filosofia. Nao seria possivel permanecer continuamente, 0 Reinhold, no atrio do templo. A filosofia nao é uma légica, 0 oyganon, que trata do instrumento do saber antes do saber, nem amor da verdade que nao seja a possessio mesma da verdade. A ‘fia & ciéncia, e, como o quer Schelling, ciéncia do Absoluto. vez de permanecer na reflexdo, no saber do saber, é preciso mer- ar direta e imediatamente no objeto a conhecer, denomine-se Natureza, Universo ou Razao absoluta. Tal era a concepgao on- jen que Schelling opunha, desde seus ensaios sobre filosofia da ivismo. Em seu principio, que é aquele de uma filosofia somente a, Kant nao superou Locke. “O pensamento kantiano é fiel a principio da subjetividade e do peitsamento formal, no sentido jie sua esséncia consiste em ser um idealismo critico.”> Ao se pro- aer um “exame critico do entendimento humano”, aquela filo- se condenava a n4o superar seu ponto de partida. O fiviamo final € apenas uma conseqiiéncia da posicao de parti- Ftanto, & preciso superar o ponto de vista critico e, como o fez Hling, partir prontamente da identidade absoluta do subjetivo e hjetivo no saber. E este saber da identidade que é primeiro e Matitui a base de todo verdadeiro saber filoséfico. Em sua Introdugao a Fenomenologia, Hegel retoma suas criti- Ma filosofia que fosse somente uma teoria do conhecimento. Juan HyproLite No entanto, como bem notaram seus comentadores, a Fenomenolo- gla marca de certo modo um retorno ao ponto de vista de Kant e de Fichte.® Em que sentido novo € preciso entendé-lo? A critica feita a Reinhold ainda continua valida, Erréneo imaginar que, antes de sa- ber verdadeiramente, fosse necessario examinar esse instrumento ou esse medium que constitui o saber. Com efeito, é uma espécie de ilu- siio natural comegar pela comparacao do saber com um instrumen- to, ou com um meio pelo qual a verdade chegaria até nds, Ora, essas representagdes conduzem diretamente a um relativismo. Se o saber & um instrumento, ele modifica 0 objeto a conhecer e j4 nao apre- senta tal objeto em sua pureza; se é um meio, n4o nos transmite tam- pouco a verdade sem alterd-la segundo a propria natureza do meio intermediario. Tao-somente, talvez essa propria representag’o natu- ral é que seja falaciosa; em todo caso, constitui uma série de pressu- postos dos quais convém desconfiar. Se o saber é um instrumento, isso supde que o sujeito do saber € seu objeto se encontrem separa- dos; o Absoluto seria, portanto, distinto do conhecimento: nem o Absoluto poderia ser saber de si, nem o saber poderia ser saber do Absoluto.? Contra tais pressupostos, a existéncia mesma da ciéncia filoséfica, que conhece efetivamente, é jé uma afirmagao. Contudo, tal afirmacio nao poderia ser suficiente, uma vez que deixa fora de sia afirmacdo de um outro saber; é precisamente essa dualidade que Schelling reconhecia ao opor, no Bruno, 0 saber fenoménico ¢ 0 sa- ber absoluto; nao mostrava, porém, os vinculos entre um e outro. Posto 0 saber absoluto, neste nao se vé como o saber fenoménico é possivel e, por seu turno, o saber fenoménico permanece igualmente cortado do saber absoluto.® Hegel, pelo contrario, volta a esse saber fenoménico - isto é, ao saber da consciéncia comum - ¢ pretende mostrar como ele conduz necessariamente ao saber absoluto - ou 6 Ch, por exemplo, R. Kroner, Von Kane bis Hegel, Il, p. 362: "A Fenemono- logia é simultaneamente uma intredugao ao sistema e, em certo sentido, 0 ‘todo do sistema’. Como € possivel tal contradicao?” - R. Kroner mostra hem coma a Fenomenologia € 0 Todo do sistema do ponto de vista da cohsciéncia, 7 FE, I, p. 66-7 (65-6), 8 Schelling, Samuliche Werke (referéncia & edigdo de 1856). - O Absolute de Schelling sobrepuja todo saber ¢ coda consciéncia; € 0 Weder-Noch aller Gegensdtze (IV, p. 246). Sobre o saber absoluto, ef. IV, p. 326. O problema dificil 6 0 da possibilidade da separacao, a Heraustreten aus dem Ewigen, a said clo eterno em gue repousa a consciéncia. GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 23 mo ele proprio é um saber absoluto que ainda nao se sabe al. Mas isto implica um retorno ao ponto de vista da conscién- mito de vista que era aquele de Kant e de Fichte. Hegel, que triticara toda propedéutica, insiste agora na necessidade de -se a partir do ponto de vista da consciéncia natural e condu- ‘ogressivamente, ao saber filoséfico. Nao seria possivel come- saber absoluto. No Prefacio, ele voltara uma vez mais a esse “Para a consciéncia natural, confiar-se imediatamente a cién- lina nova tentativa que ela faz andando de cabeca para baixo, que ela faz sem saber o que a impele a isso.”? Impée-se-lhe a Violéncia desnecessaria; e a ciéncia, por seu turno, parece flém da consciéncia de si, Nao ha duvida de que a critica Vise aqui a Schelling. Nao seria possivel comesar brusca- CoM o saber absoluto, rejeitando as posigdes diferentes ¢ de- 8, delas, nada querer saber. Preciso portanto adotar, como Kant e Fichte, 0 ponto de tonsciéncia, estudar o saber proprio a essa consciéncia que distingao entre o sujeito e o objeto. O saber absoluto nao é aco; sera o término do desenvolvimento préprio a consci- fe pcupa aqui o lugar de filosofia critica. Porém, ao voltar ao vista di consciéncia, a uma espécie de teoria do conheci- Heyel nao se limita a acrescentar uma propedéutica ao saber de Schelling; modifica a propria concepgdo desse saber e soluto. Em sua filosofia, o Absoluto ja nao Sera apenas subs- as ainda, sujeito. Nao ha sendo este modo de superar o 0 de Schelling: voltar ao subjetivismo de Kant e de Fichte. to nao mais estara, entdo, para além de todo o saber; sera ino saber da consciéncia. O saber fenomeénico sera o saber jAmMeno que 6 para a consciéncia nao serdo estranhos a es- leata, serao a revelagao. Inversamente, a consciéncia do fe- fe elevara a consciéncia do saber absoluto. Absoluto e re- JO Mais cstarfo separados; a reflexao serd um momento do . Tal parece ser o sentido geral dessa reintegragao, do pon- i do Eu ou da consciéncia, na filosofia do Absoluto de » Hegel quis provar que o idealismo absoluto de Schelling Possivel a partir, ndo da natureza, mas da consciéncia, do dando o subjetivismo de Fichte. a4 JEAN Hyprovite Que o ponto de vista da Fenomenologia corresponda ao ponto de vista de uma filosofia da consciéncia, anterior ao saber da identi- dade, & algo de que o préprio Hegel da testemunho quando, na En- ciclopédia das ciéncias filosdficas, observa que a Fenomenologia repre- senta exatamente a posicéo de Kant e mesmo a de Fichte. “A filosofia kantiana é uma fenomenologia”!°, um saber do saber da conscién- cia, enquanto esse saber é somente para a consciéncia. Mas a Feno- menologia constitu’ um momento essencial da vida do Absoluto, momento segundo o qual o Absoluto é sujeito ou consciéncia de si. A fenomenologia da consciéncia nao esté ao lado do saher absoluto. Ela prépria é uma “primeira parte da ciéncia”, porque proprio a séncia do Absoluto manifestar-se & consciéncia, ser, ele mesmo, consciéncia de si. Se contudo Hegel adota aqui, de certo modo, 0 ponto de vis- ta de Kant e de Fichte, pelo que precede ja se vé que seu estudo do saber fenoménico, de suas condigées subjetivas, sera diferente do es- tudo feito por eles. De uma parte, essa critica de seu proprio saber pela consciéncia é considerada de modo original; de outra, amplia consideravelmente a nogao de experiéncia, de tal modo que, em Hegel, a critica da experiéncia estende-se a experiéncia ética, juridi- ca, religiosa, nado mais se limitando a experiéncia teorética. Em Kant, a eritica do conhecimento era uma critica efetuada pelo filésofo sobre a consciéncia comum e cientifica, no sentido de que tal ciéncia nao era ainda sendo uma ciéncia fenoménica, aquela de Newton, diferente da metafisica. Nao era a consciéncia comum que se criticava a si mesma, mas a reflexdo do fildsofo que se actes- centava a essa consciéncia. O entendimento fenoménico, oposto a natureza, era entéo conduzido pela reflex4o filosdfica ac entendimen- to transcendental que funda toda experiéncia (teorética), como uni- dade originariamente sintética. Esse entendimento tornava-se, por- tanto, entendimento objetivo. O fildsofo descobria sua identidade com a objetividade dos objetos. E assim que a experiéncia se demons- trava possivel. Em Fichte, na parte de sua Wissenschaftslehre da qual ele queria fazer uma “historia pragmatica do espirito humano” - e _ qlie se denomina dedugdo da representacdo -, encontra-se um primei- } modelo do que sera a Fenomenologia do espirito de Hegel. Nessa lugio da representacao, Fichte se propde, com efeito, a conduzir déncia comum do saber sensfvel imediato ao conhecimento © lopidie (S. W., ed. Lasson, V, p. 370). GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 25 s6fleo, O que o filsofo atingira, por sua reflexao e na pri- e da doutrina da ciéncia, deve ser reencontrado pela pré- léncia cm seu desenvolvimento, “Nao é mais”, diz M. “0 filosofo que reflete de fora sobre 0 eu, ¢ 0 eu inteligente realmente sobre si mesmo. Aqui comega a historia prag- 8 expirito humano. Quando o eu inteligente tiver apreendi- AMMO Na acgda em que ele se determina como determinado fu (Isto &, coincida com o ponto de vista do fildsofo sobre fA para si mesmo eu tedrico”.!! Em seu idealismo transcen- guindo as épocas da formagdo da consciéncia de si filoséf- ling adotara a mesma démarche.!* Uma vez pressuposta a 1a de si filosofica, tratava-se de fazer com que fosse reen- pelo cu empirico. Mas precisamente nessas duas obras, a icin de si filosdfica j4 esta pressuposta e, apesar de sua inten- to proxima aquela da Fenomenologia de Hegel, tal histéria ainda bastante artificial. Nao € a experiéncia da consci- iante as quais a consciéncia deve elevar-se, desde aquilo @m si até aquilo que ela € para si. Pelo contrdrio, Hegel le descrever a consciéncia comum, muito mais do que cons- eonsciéncia. O filésofo desaparecer4 diante da experiéncia dle, E verdadeiramente a propria consciéncia ingénua que periéncia, e assim verd transformar-se seu objeto e a si eflexo nao sera algo acrescentado a ela do exterior como em algo posto nela, de um modo mais ou menos attifici- in Fichte ou mesmo em Schelling;'a reflexao sera literal- histéria dessa consciéncia. Em suma, sera interiorizada y), Wo scr recolhida no “meio” do pensamento filoséfico. beusiao de ver como € possivel que o pensamento filoséfi- ervenha ao descrever essa experiéncia da consciéncia. E iste particularmente neste ponto: “Nao precisamos trazer wos padrdes de medida, nem aplicar nossas idéias pesso- jaMentos no transcurso da investigacao; pelo contrério, It, L'evolusion et la structure de ta Doctrine de la Science chez Fichte, tions de la Faculté de Strasbourg, 1930, I, p. 225 Simtliche Werke, IM. 26 Juan Hyppouits Lisse cardter da fenomenologia hegeliana - que descreve no lugar de construire apresenta o desenvolvimento espontineo de uma experiéncia tal como ela se dé a si - causou muito espanto aos comentadores.!4 Se as diferengas nfo fossem ainda mais profundas, teria uma natureza tal, que seria possfvel aproximar a Fenomenologia de Hegel da fenomenologia de Husserl. Hegel quer nos conduzir do saber empirico ao saber filoséfico, da certeza sensfvel ao saber ab- soluto, indo verdadeiramente “ds proprias coisas”, considerando a consciéncia tal como ela se oferece diretamente. Assim. esta Feno- menologia, que se apresenta verdadeiramente como uma histéria da alma, é diferente da dedugdo da representacao de Fichte ou do idea- lismo transcendental de Schelling. . Difere ainda em outro ponto.ndo menos importante. A expe- riéncia que a consciéncia faz aqui ndo € somente a experiéncia teorética, o saber do objeto; mas toda a experiéncia. Trata-se de con- siderar a vida da consciéncia tanto ao conhecer ¢ mundo como ob- jeto de cincia quanto ao conhecer-se a si mesma come vida, ou ain- da quando ela se propde uma meta. Todas as formas de experiéncias éticas, juridicas, religiosas encontrardo seu lugar, visto que se trata de considerar a experiéncia da consciéncia em geral. O problema de Kant - “como a experiéncia é possfvel?” - é aqui considerado da ma- neira mais geral. E se ha pouco tenciondvamos aproximar a Fenome- nologia de Hegel daquela de Husserl, podemos agora descobrir uma reaproximagao com as filosofias existenciais que florescem em nos- sos dias. Em muitos casos, ao descobrir a experiéncia feita pela cons- ciéncia, Hegel descreve uma maneira de existir, uma particular vi- s4o0 de mundo; contrariamente porém 4 filosofia existencial, cle nao se detém nessa mesma existéncia; Hegel vé af um momento que, em sua superacdo, permite atingir um saber absoluto. E precisamente neste tilrimo ponto que Kierkegaard vai se opor a Hegel. Considerando pois a experiéncia que a consciéncia faz em toda sua amplitude, deixando essa consciéncia experimentar-se a si mes- ma bem como promover seu préprio saber de sie do mundo, Hegel pode dizer da Fenomenologia assim compreendida: “Esta apresenta- gdo pode ser considerada como o caminho da consciéncia natural 14 Cf. em particular N, Haremann, Die Philosophie des deutschen Mealismus (I, p. 80-1), co artigo do mesmo autor na Reoue de Méxaphysique et Morale, em niimero especial consagradé a Hegel (1931, 3, p. 285). GENE RALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 27 ‘Aibmete a um impulso, o qual a incita rumo ao verdadeiro finda, como o caminho da alma que percorre a série de suas F enquanto estagdes que lhe s4o prescritas por sua prdpria Aj Percorre-as para se purificar rumo ao espfrito e, através da experiéncia de si mesma, chegar ao conhecimento do que al meama”,!? 1,2, 4 CULTURA DA CONSCIENCIA NATURAL, OLVIMENTO E TERMINO DESSE DESENVOLVIMENTO tanto, a Fenomenologia € 0 itinerdrio da alma que se cleva @ pelo intermédio da consciéncia. Sem divida, a idéia de Le [tInerdrio foi sugerida a Hegel pelas obras filoséficas que Mos acima. Igualmence importante, porém, nos parece ter @neia dos “romances de formagao” da época. Hegel lera le Rousseau em Tiibingen: nesta obra encontrara uma pti- sfOria da consciéncia natural a elevar-se por si mesma até de, por meio das experiéncias que lhe s4o préprias e que Ailarmente formadoras. O Prefacio da Fenomenologia insis- fer pedagégico da obra, na relagdo entre a evolugao do A evolugio da espécie, relagdo que também a obra de onsiderava. Em seu estudo sobre o idealismo alemao, eonsiderava um dos acontecimentos essenciais da épo- inbém no Ileinrich von Ofterdingen de Novalis’, o qual fA réplica da obra de Goethe. tnbas as obras, o herdi se entrega inteiramente a sua con- Meister acredita em sua vocacao teatral, H. von Ofter- eae levar pelo meio prosaice no qual ainda vive; um e i de uma seqiiéncia de experiéncias, chegam a aban- pAViegOes primeiras. O que era para cles uma verdade {lusdo; mas enquanto W. Meister de Goethe deixa, lker, o mundo poético pelo mundo prosaico, H. von le Novalis descobre, progressivamente, que somente o 28 Jean Hyeroure BENERALIDADIS SOBRE A FENOMENOLOGIA 29 Haw Hquele do filésofo que toma a resolugéio de duvi- Aki Fesolugde por meio da qual a consciéncia se purifi- Vee de todos os seus prejuizos — e em particular daque- al, da exist@neia de coisas fora de nés, independentes ALG ~, & Fenomcnologia é uma historia concreta da cons- frida da caverna c sua ascensio A ciéncia. Esse caminho 6 da divida, mas também, nos diz Hegel, aquele da erada (Verzweifling).2° Nele, a consciéncia natural per- ade! O que tomava como saber auténtico e real mostra-se im taber nfo real. Jé insistimos na extensao que Hegel perléncia”. No curso de seu desenvolvimento, a cons- rde somente aquilo que, do ponto ce vista teorético, Verdade; perde ainda sua prépria visio da vida e do fio do mundo. A experiéncia nado conduz somente ao do restrito do termo, mas a concepgao da existéncia. ata apenas da ddvida, mas de um efetivo desespero, HA Necessdria ascese da consciéncia para chegar ao F fllosdfico, ascese que & toda a Fenomenologia, Hegel Tena, ao estudar a natureza do ceticismo antigo. Em Diario crtico de filosofia a propésito de Schulze, Hegel slo antigo ao ceticismo moderno. O ceticismo mo- hoje uma espécie de positivismo, prende-se apenas mundo poctico € a verdade absoluta, A Fenomenologia de Hegel 6, por seu turno, o romance de formagao filoséfica: segue o desenvol- vimento da consciéncia gue, renunciando as suas convicgdes primei- has, alinge através de suas experiéneias o ponto de vista propriamen- te filosdfice, aquele do saber absoluto. Segundo Hegel, contudo, tal histéria da consciéncia nao é um romance, mas uma obra cientifica. O desenvolvimento da cons- ciéncia apresenta uma necessidade em si mesmo. Seu término néo € arbitrério, embora no esteja pressuposto pelo filésofo; resulta da propria natureza da consciéncia. A) O DESENVOLVIMENTO, SUA NECESSIDADE. - Sendo a Fe- nomenologia um estudo das experiéncias da consciéncia, conduz sem cessar a conseqiiéncias negativas. Aquilo que a consciéncia toma como a verdade se revela ilusdrio; portanto, & preciso que abandone sua convic¢do primeira ¢ passe a uma outra: “este caminho €, por- tanto, o caminho da dtivida ou propriamente do desespero”.!? Schelling j& dissera que o idealismo transcendental comegava neces- sariamente pela divida universal, uma dtivida que se estende a toda tealidade objetiva: “Se para a filosofia transcendental o subjetivo 6 0 primeiro, o tinico fundamento de toda a realidade, o tnico princfpio com o auxilio do qual tudo pode ser explicado, a filosofia transcen- dental comega necessariamente pela dtivida universal da realidade glx que subsistam, como inabalaveis, as certezas do do objetivo”.!8 Essa dévida com a qual Descartes inaugurava a filo- sss mesmas Certezas que o ceticismo anti- sofia moderna € considerada por Schelling o meio necessario para Habalar, Antes, como no caso de Platéo, ele era uma evitar, no idealismo transcendental, qualquer mescla do objetivo com tulisica, Toda filosofia tinha entéo, nela propria, um © puro principio subjetivo do conhecimento. Ao contrario, a filoso- Fetielsmo por meio do qual purificava a consciéneia in- fia da natureza procura eliminar o subjetivo; a filosofia transcenden- ele artigo, cise! considerava pela primeira vez esse ca- tal trata de liberd-lo absolutamente. Todavia, Hegel, que parte da Iida ~ que Go mesmo tempo uma ascese da alma - e consciéncia comum, no poderia pér como primeira essa diivida uni- poder cli negatividade na dialética.?! versal que é prépria somente & reflexdo filoséfica. E por isso que opée, ito, para a consciéncia que esta engajada na experi- a uma dtivida sistematica e universal, a evolugao concreta da cons- do 0 cardter negative de seu resultado‘que lhe causa ciéncia que aprende de modo progressivo a duvidar daquilo que ante- iniclalmente uma certa verdade que, para ela, tinha tiormente tomava por verdadeiro. O caminho que segue a conscién- perde essa verdade no cutso de sua viagem. A cons- cia 6 a historia pormenorizada de sua formagao.! O caminho da diivida absohitamente A “certeza sensivel imediata”, ¢ de- € 0 caminho efetivamente real que segue a consciéncia, seu itinera- ereepgio”, d “forga do entendimento”; mas desco- 17 FE, I, p. 69 (66). 18 Schelling, S. Werke, op. cit., III, p. 343. des Skeptizisnus zur Philosophie... (Samtliche Werke, ed. 19 FE, I, p. 70 (67). €f, particularmente sobre Platao, p. 174) 40 JEAN HypPoLiTe bre que aquilo que tomava como a verdade nao o é; perde portanto sua verdade, © duplo sentido da palavra “Aufheben”, constantemen- te utilizada por Hegel, revela-nos no entanto que a apercep¢ao ape- has negativa do resultado constitui somente meia verdade. E esta siynificagdo da negatividade que permite a Hegel afirmar: “o sistema completo das formas da consciéncia nao-real resultard mediante a necessidade do processo e da propria conexao dessas formas”.22 Com efeite, o resultado de uma experiéncia da consciéncia so é absoluta- mente negativo para ela; de fato, a negacao é sempre uma negacao determinada. Ora, se é verdade que toda posi¢ao determinada é uma negagdo (“omnis determinatio est negatio”), ndo é menos verdade que toda negacao determinada seja uma certa posigéo. Quando a cons- ciéncia experimenta seu saber sensivel e descobre que o “aqui € ago- ra” que acreditava suster imediatamente Ihe escapa, essa negagao da imediatez de seu saber € um novo saber. E possivel dizer também. que “a apresentagdo da consciéncia nao verdadeira em sua néo-ver- dade nao € somente um movimento negativo, como ela o é segundo a maneira unilateral de ver da consciéncia natural”.”? Ja se observou freqltentemente, e em particular Lambert em sua Fenomenologia - a qual era uma espécie de dptica transcendente -, que a apresentacao : de uma nao-verdade como nao-verdade é j4 uma superagio do erro.** Conhecer seu etro é conhecer uma outra verdade. © erro percebido supe uma nova verdade. Hegel insistira nessa natureza do erro no Preficio da Fenomenologia, ao mostrar que 0 erro superado é um mo- mento da verdade. Portanto, o duplo sentido da palavra “Aufheben” ee sencial a toda a Fenomenologia. Isto néo quer dizer que a cons- ciéncia engajada na experiéncia no conhega, ela propria, esta posi- tividade da negagéo; como veremos, é somente o fildsofo quem per- cebe a génese de uma nova verdade na negagéo de um erro. Todo . nada, diz Hegel, é 0 nada daquilo de que ele resulta. Pelo contrério, © proprio ceticismo, que é uma das figuras da consciéncia imperfeita y Tp. 70 (67) FE, 1, p. 70 (67). Parece certo que tenha sido H, Lambert o primeiro a utilizar a expressao ‘enomenologia ou dowtrina Wéncia (Phenomenologie oder Lehre von dem Schein), por ele denominada ptica transcendence” (cf..zambém a Fenomenologia nos Prinefpios me- eléncia da natureza, em Kant) CENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 31 6 til se apresentaré ao longo do caminho, isola a negativi- ilo o contetido: “abstrai que esse nada &, de um modo de- 8, 0 nada daquilo de que ele resulta”.?> Portanto, o ceticis contetido; termina com a abstragao do nada ou do vazio e que nao pode ir mais longe. A negatividade nao é, pois, Ad Yue se opde a todo o contetido; é imanente ao contetido Eompreender seu desenvolvimento necessério. Desde seu partida, a consciéncia ingénua visa ao contetido integral do toda a sua riqueza, mas no o atinge; deve experimentar iVidade - esta é a tinica a permitir ao contetido desenvol- alirmages sucessivas, em posigées particulares, ligadas trus pelo movimento da negagao. “Porém, se o resultado ido como em verdade €~ como negagao determinada -, fussccu imediatamente uma nova forma e, na negagio, efe- Ai transigio pela qual, através da série completa das figuras @nicia, teve lugar a realizagao de seu proceso espontaneo.”** ne papel da negagdo, que enquanto negagao determinada uum nove contetdo, nao aparece em uma primeira abor- losto um termo A, pode sua negagdo nado engendrar um ter- erdadviramente novo? Parece que nao. De nosso ponto de ara compreender o texto hegeliano € preciso admitir que o sempre imanente ao desenvolvimento da consciéncia.2?7 A 6 é criadora porque o termo posto havia sido isolado, por- proprio era uma certa negagfo. Desde entao concehe-se que aga permita reencontrar esse Todo em seu pormenor. Sem manéncia do Todo & consciéncia néo se compreenderia como Glo pode, verdadeiramente, engendrar um contetido. TPRMINO DO DESENVOLVIMENTO. - Desta imanéncia do A consciéncia, temos o testemunho no cardter teleolégico de lesenvolvimento. “No saber”, diz Hegel, “a meta é fixada tao ariamente quanto a série da progresséo”.”* Com efeito, a cons- é conceito do saber, por isso nao & saber efetivamente real. lizer que € conceito do saber é dizer que transcende a si me: fy p. 70-71 (67-8). Ip. 71 (67-8). Si que, uo se por de modo determinade, se opde a si mesmo; portanto, fe nega ec se supera. Lp. 71 (68). 2 Jean Hyrroutre Ma, que ¢ em si o que deve tornar-se para si. “A consciéncia é para s| mesma seu proprio conceito; imediatamente portanto, é 0 ato de ul- trapassar o limitado e, quando esse limite Ihe pertence, o ato de ultra: passar-se a si mesma”. Ambos os sentidos da palavra “Aufheben”, 0 negativo € o positivo, retinem-se de fato em um terceiro, o de trans- cender. A consciéncia nao é uma coisa, um ser-ai determinado; esta. empre para além de si mesma, supera a si mesma ou se transcende, ssa exigéncia transcendental que constitui a natureza da conscién- cia como tal. Nao era isso que, de certo modo, ocorria na filosofia kantiana? Se se define a verdade como a concordancia entre o su- jeito e o objeto, pergunta-se como essa concordancia é constatavel. A representacdo nao pode sair de si mesma para justificar sua con- formidade ou nac-conformidade com o objeto. No entanto, se 0 ob- jeto nao for posto além da representacao, a verdade perde sua signi- ficagdo transcendente para a consciéncia, e se essa transcendéncia for mantida de modo absoluto, a representacao é radicalmente sepa- rada de seu objeto. Imanéncia do objeto A consciéncia comum e trans- cendéncia radical tornam igualmente impossivel a propria posigdo do problema da verdade. Para Kant, porém, o que constituia a ob- jetividade do objeto era imanente, por certo, no a consciéncia co- mum, mas a consciéncia transcendental. Assim, 0 objeto era trans- cendente a consciéncia comum ou finita, mas imanente a consciéncia transcendental. O problema estava, portanto, deslocado. Ele nao se colocava mais entre a consciéncia e seu objeto, mas entre a cons- ciéncia comum e aquilo que nela a supera, a consciéncia transcen- dental. Ora, toda consciéncia comum é também consciéncia ndental, toda consciéncia transcendental é também, necessa- riamente, comum; a primeira nao se realiza sendo na segunda. Isto quer dizer que a consciéncia comum gupera-se a si mesma, transcen- de-se e torna-se consciéncia transcendental. Mas o movimento de se transcender, de ir além de si, é caracteristico da consciéncia. Propri- amente, toda consciéncia é mais do que acredita ser, ¢ isso é o que faz com que seu saber se divida. Ele € a certeza (subjetiva) e, enquan- to tal, opde-se a uma verdade (objetiva). Portanto, o saber é inquie- to em si mesmo, visto que deve incessantemente superar-se; tal dnquictude, que Hegel descreve em termos existenciais, € inapazi- gudvel enquanto o término nao for atingido, um término que per- manece necessariamente fixado pelo dado do problema: “a meta esta 33 UPNERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA her t ir além de si mesmo, onde a si mesmo fio necessita 4 Onde O conceito corresponde ao objeta e a abjeto ao Grtanto, a progressao rumo a essa meta néo pode ser de- Fe satisfac com nenhuma estagdo precedente”.2° O saber 1a & sempre saber de um objeto; e se se entende por con- subjetivo do saber, por objeto seu lado objetivo, sua ver- fb saber © 6 movimento de transcender-se que vai do con- to, Ora, essa oposicao, como mostrard o conjunto da © suber de si, a consciéncia que o saber tem de si. Mas ein ¢ mais profunda do que acredita; é ela quem acha 0 leiente, inadequado a si mesma; pode-se também dizer, e que o objeto € que deve ser idéntico ao conceito. 0, eusa desigualdade, presente na propria consciéncia alma do desenvolvimento fenomenolégico ¢ o orienta Mte rumo a sua meta. Portanto, ha uma finalidade O filosofo entrevé ¢ que caracteriza todo o desenvolvi- faracteriza a fenomenologia em relagao & ontologia, A eat dlesigualdade entre a consciéncia e seu conceito, fue nao 6 outra coisa sendo a exigéncia de uma perpé- leneia.'! A exizencia seja o préprio cardter da consciéncia, o que Feonwciéncia nao seja um ser-ai determinado ou um ser e claramente indicado no texto seguinte: “o que esta 8, may ¢ impulsionado além desse ser-af por um outro, cada de sua posigdo é sua morte. Masa consciéncia a, seu proprio conceito [...]”.3? O Dasein, ser-af, nao é @ ele ¢: scu conceito - e empregando a terminologia completamente fora de si; 0 Dasein pertence, por- aa, A tradugao, “ser-ai”, que corresponde A significa- hém difercngas no Loges, assim como um movimento ima- ma dialetica da Légica diferente da dialstica fenomenols- engin do Logos sao diferengas “no contetido mesmo” (Sobre wticularmente delicado, cf, nossa conelusao final: “Feno- , 4 Jean Hyrroutre SOBRE A FENOMENOLOGIA 35 io ctimoldgica, pareceu-nos ter o métito de designar essa posicad ee saber lo objeto é saber de si, ao mesmo tem- do ser natural, a qual nao é sendo um aqui e um agora, e que tem al @ saber do objcto ~ nado é somente, como j4 o fora de si outros “agoras” e outros “aquis”. A negacao do ser-ai, qui gliatin na ordem do conhecimento, mas ainda, deve necessariamente se produzir em razao de sua finitude, é uma Wat toda «i Penomenologia, uma angtistia existen- jo que The € estranha, que nao esta nele para ele mesmo. Mai Heil noo pode ser apaziguada; em vao quer se hao € 1880 que Ocorre com a consciéncia, que é para si mesma seul Seif pensamento, © pensamento perturba entao a Proprio conceito, ou seja, que é para si mesma a negacdo de suas) eit, © scu desassossego estorva essa inércia; em formas limitadas ou, se se quiser, de sua propria morte. Enquanto @ fina cert forma de sentimentalidade que garante morte € na natureza uma negacao exterior, o espirito traz a morte ee moda: essa garantia sofre tamanha violéncia nele préprio e a ela confere um sentido positive, Toda a Fenomenolo. que acha que algo nao € bom, precisamente en- sia seré uma meditacao sobre essa morte de que a consciéncia ¢ por tadora e que, longe de ser exclusivamente negativa, o fim no nada, abstrato, € pelo contrério uma Aujhebung, uma ascensdo. Hegel 0 diz expressamente num texto da Fenomenologia, a propdsito da luta das consciéncias de si que se confrontam na vida natural: “Sua opo+ fF assimilada aquilo que é a morte na vida humana. sicdo € a negacao abstrata, nao a negacdo da consciéncia que supri- € definida na Introducao como a propria experi- me de tal modo que conserva e retém o que é suprimido; por isso cia. mesmo, sobrevive ao fato de vir a ser suprimida”.? E, a propdsito do espitito ético, Hegel dir, do culto aos mortos na Cidade Antiga, que este tem por fim demover a morte a natureza, com vistas a dela fazer o que ela realmente é para o homem, uma operacao da conscién- cia de si. A morte do set-at natural é apenas, portanto, essa negagao abstrata de um termo A, que é unicamente aquilo que ele é; na cons- ciéncia, todavia, a morte é um momento necessario por meio do qual a consciéncia sobrevive e se eleva a uma forma nova. Essa morte é 0 comego de uma nova vida da consciéncia.>! Assim, sendo para si mesma seu proprio conceito, a consciéncia transcende-se incessante- mente a st mesma, ¢ a morte daquilo que ela tomava como sua ver- dade é 0 aparecimento de uma nova verdade: “A consciéncia sofre, portanto, essa violéncia que vem dela mesma, violéncia pela qual cla estraga toda satisfacao limitada”35 Essa anguistia — que possui a consciéncia humana e a impulsiona sempre adiante de si mesma, até que deixe de ser uma consciéncia humana, um entendimento huma- no como 0 caso em Kant, mas que atinge o saber absoluto, o qual, lo"! Observou-se freqiientemente que a Fenome- fa reclugao da experiéncia da vida da consciéncia do que wma descrigdo dessa vida que assume uma * Vemos como a negagao é interpretada na In- Amente o ultimo ponto que nos resta examinar. ilo desenvolvimento? Fichte, na dedugao da repre- fing, ho sistema do idealismo transcendental, j4 havie demarche da consciéncia que a conduz ao saber de si, Schelling, que segue Fichte neste ponto, de- Mecendental nos seguintes termos: “Se, para o fi- Alal, 86 o subjetivo tem uma realidade primeira, s6 fiatamente do subjetivo no saber, © qual constituir lretamente 6 que o objetivo se tornaré objeto para ae opera, O saber transcendental é, portanto, um 33 FE, 1, p. 160 (129), - Cf. também o Prefacio: FE, I, p. 29 (38). 44 Em sew livro sobre 0 Ideatismo aleméo, Royce, a propdsito da sucesso das figuras di Fenomenologia de Hegel, fala de metempsicose. 45 FE, 1, p. 71 (08), ob. cits Glockner, a6 opor o “pantragismo ¢ 0 panlo- seu Hegel; N. Hartmann em sua Teoria de uma dialéti- gel (op, cit,, p. 155); ete = 46 op JEAN Hyppouire BALIDADUS SORE A FENOMENOLOGIA 3? saber do saber enquanto saber puramente subjetivo”.58 E o saber do} saber (a consciéncia de si), pressuposto inicialmente pelo filésofo, que a consciéncia comun, deve reencontrar no término de seu desenvol Vimento. © mesmo gcorre em Fichte e ~ isso 6 caracter‘stico de seu Hoyel, unm novum na filosofia, um caminho da con- ideatismo subjetive ‘0 eu sempre permanece ocupado consigo mes- enc iene ia em suas craiiafonmayoes sobre o funda- mmo. Sea consciéncia comum se perde em seu objeto, deve sentir que WHO de seus objetos em suas transformagdes”.4! Se Sente: val sentir Se a si mesma, intuir-se na intuicao, saber-se em sua ef | consciéncia, perguntemos o que € 0 mundo Sees Assim, chega a ser para si aquilo que éem si, ou seja, ennsciéncia olerece como sua verdade. Em seu ob- aquilo que € para 0 filgsofo, e o saber do saber, enquanto puramen- jos objctivamente a ela mesma, e na histéria de seus te subjetivo, é decerty g término de sua evolucéo. A consciéncia sem- §pria histéria que vamos ler. Inversamente, e isto se Bre rellete sobre s! mesma, encontra-sea si mesma no objeto que acre- iho subjetivo, a consciéneia deve descabrir que ral Feralas erat mas desse modo 0 objeto - a natureza, o mundo @ que, a0 conceber seu objeto, concehe-se a si mes- Gu Gualauer due se a denominagio que se queira dar a esse termo tin fonomenologia, o saber do saber nao se opord a Si. 66 sabe reencont ne © feflexdo € sempre uma reflexdo sobre feito, apds a propria evolugée da conscigneia, seré hecetamend tar © eu em sua aridez.” Todavia, o idealismo her do objeto; e como este objeto, o Absoluto de beaeliane € de uma ordem inteiramente distinta: leva a sério a teo- fo em sua plena riqueza, sera possivel dizer que é 0 aailece sean Felo gual o proprio Schelling nao viu o partido que jube a si mesmo na consciéncia, e que a consciéncia done & vida do oe oconhecimento cientifico exige o aban- espirito. Enquanto saber de si, seré, nao o Absoluto don & vide do ebisto; ou, © que significa a! mesma coisa, que se tod reflexiio, mas o Absoluto que se reflete em si mes- Dacerto o cbjeto-de neo ecrssidade interior: desse objeto: jntido, serd Sujeito e néo apenas SubstAncia.” porta, denexoma. fildsofo é a elsamente neste ponto que a filosofia hegeliana, como , difere da reflexao kantiana e também do idealismo | de Schelling. Citamos um texto de Schelling que de- © transcendental como o ponto de vista do saber do ‘© puramente subjetivo. Com efeito, Schelling comega nuciéncia de si filos6fica ~ aquilo que Hegel denomina Mostra como a consciéncia comum, refletindo sobre s © atingir a ciéncia jA posta. Trata-se de medir o saber a verdade filos6fica; “mas nesse panto, onde a ciéncia surgindo, nem ela nem seja o que for se justifica como a enesi. Ora, sem isso, parece que nenhum exame pode ber do Outro, mas de descobrir sua identidade. de estudar a consciéncia e suas metamorfoses, ente Hartmann: “Esse novo caminho é a pré- qui o saber da consciéncia comum; _ : lo tal como se oferece e nele nao intervir. E por essa via que 0 idealigmo — admitido ainda por Schelling para a se- sunda ciéncia de sua filosofia, a que parte do subjetivo - € superado sem deixar de ser um jdealismo objetivo. Nao se trata de um jogo de palavras. A diferenca ¢ profunda e nela importa insistir, Tanto para Schelling como para Fichte, apesar de sua teoria da identidade entre © subjetivo e 0 objetivg no saber, 0 idealismo transcendental é um “saber do saber enquanto puramente subjetivo”; o retorno a identi- dade sera efetuado em seguida de um modo mais ou menos artifici- al. Nao ocorre 0 mesmo para Hegel. A consciéncia é tomada como ela se da, e ela se da como uma relagao com 0 Outro, o objeto, mun- do ou natureza. E bem verdade que este saber do Outro é um saber de si. Nao € menos verdade, porém, que este saber de si seja um sa- ber do Outro, do mundo, Assim, nos diversos objetos da conscién- a descobrimos aquil que ela propria é: "o mundo € o espelho em WN, Op. cit, IL, p. 80. elo dn FE, I, p. 12 (29): “Segundo meu mado de ver, que ser4 somente na apresentagae do sistema, tudo depende deste pon- ali apreender ¢ exprimir 0 Verdadeiro, nfio como substancia, mas jente, também, como Sujeito [...].” E na pagina 21 (32): “A ne- de representar o Absolute como sujeito [..1”. 72 (69), 38 Schelling, S. Werke, Up, p. 345. 39 A expresso é de Hepei; cf, FE, 1, p. 72 (68). 40 FE, 1, p. 47 (51) 48 Jean Hyprowire BALIDADES SONRE A FENOMENOLOGIA 39 ronaciéncia particular, como aquelas que vamos a do desenvolvimento fenomenokgico, caracteri- estructura, E uma forma, ou melhor, uma figura tal), Val figura é tanto objetiva como subjetiva. ivo é um certo mundo poste como sendo em si, € Com efeito, é preciso tomar a consciéncia tal como se apre- senta, sem ainda interpreté-la. Ora, existem nela dois momentos: ter consciéneia é distinguir de si aquilo de que se tem consciéncia, dis- tinguir © ae mesmo tempo relacionar-se com isso. “A consciéncia dis- tingue algo de si e ao mesmo tempo se relaciona com ele.”#* O ser para a consciéncia é para ela, e ela o poe ao mesmo tempo como sivel ou a Coisa da percepgao, a Forga ou ainda a sendo em si, como estando fora desse relacionamento: “o lado desse 6 Verdadeiro se relaciona um certo saber que € em-si chama-se Verdade”.15 Assim, a consciéncia sabe alguma coisa, adeivo, clesse objeto posto como sendo em si, Tam- tem uma certeza, ¢ aspira a uma Verdade que é independente de sua inlay o saber come conceito, e o Verdadeiro como certeza. Ora, se nds ~ isto 6, 0 fildsofo — consideramos o saber como fantritio, o Verdadeiro como conceito, ¢ o saber so objeto, seu em-si é seu ser-para-nés. A Verdade do saber radi- &, objeto tal como é para um outro; nao deixa'de ca entao no’ saber do saber, na consciéneia filosdfica. A medida do eng que é a alma do desenvolvimento dessa figura. saber da consciéncia comum € 0 saber do saber que, desde 0 ponto de partida, Fichte e Schelling pressupunham. Mas nesse caso tal me- dida pertence & consciéncia filoséfica, nao a consciéncia comum. A medida lhe é imposta do exterior e nao se vé como estaria obrigada a aceité-la: “A esséncia ou a medida radicariam em nés, ¢ aquilo que deveria ser comparado com a medida, aquilo acerca do qual uma decisao deveria ser tomada apds essa comparacio, nao teria necessa- riamente de reconhecer a medida”."6 E por isso que o saber fenomé- nico deve experimentar-se a si mesmo; o fildsofo deve ser apenas 0 espectador de sua experiéncia. Efetivamente, a medida de que se serve a consciéncia nao ra- dica fora dela, num saber filosdfico que ainda Ihe é estranho; a me- dida radica na consciéncia. “A consciéncia fornece, em si mesma, sua propria medida; motivo pelo qual a investigacao se torna uma io ele presente. Em seu objeto, faz a experiéncia de si, comparagao de si consigo mesma”.47 Com efeito, 6 a consciéncia que ) @ experiéncia de seu objeto. Assim, progride por si pée um momento da verdade e um momento do saber e que os dis- {ma a outra figura particular, sem que o filésofo tenha tingue um do outro. Ao designar aquilo que para ela mesma é a Ver- ) fenio a de ser o espectador na recolegao desse proces- dade, fornece a medida de seu proprio saber. Trata-se entao de assis- 4 nao temos de intervir nesse ponto de vista em que tir & sua experiéncia, que é uma comparagao entre aquilo que para eto, a medida e a matéria por ser examinada estao pre- ela € a Verdade, o em-si, ¢ o saber que tem acerca desta tiltima. “No pria consciéncia; mas ainda, estamos dispensados da que a consciéncia designa no interior de si como 0 em-si ou como 0 paraciio entre os dois e do exame no sentido estrito do verdadeiro, vemos a medida que ela mesma estabelece para medir ) quando a consciéncia examina-se a si mesma, so nos 8 ato de ver o que se passa”.°° sponde a seu conceito.”? A teoria do conhecimento é teoria do abjeto do conhecimento. Nao se pode Hencin daquilo que para ela ¢ seu objeto, daguilo que Verdadeiro; porém, se a consciéncia € consciéncia do ao diferentes: “€ consciéncia daquilo que é 0 Verda- fencia de seu saber dessa verdade”. Mas ambos os mo- 8 que se denomina a experiéncia. A consciéncia experi- ¥ Naquilo que toma como 0 verdadeiro; enquanto ain- gama. Seu saber do Verdadeiro muda quando descobre 44 FE, 1, p. 72 (69) 45 FE,L, p. 73 (69), 46 FE, L, p. 73 (69) 47 FE, 1, p. 73 (69) 40 JEAN HyeroLite Ja indicamos que a experiéncia nao se refere somente a0 sa+ ber, mas ainda ao objeto, pois tal saber particular é saber de um ob: jeto. A consciéneia pée'a prova seu saber para torné-lo adequado aquilo que toma como sendo o verdadeiro ~ um certo mundo posto como sendo em si -, porém, na mudanga de seu saber, muda igual- mente o objeto. Ele era o objeto de um certo saber; visto que v saber tornow-se outro, também outro tornow-se 0 objero. Com efeito, quan- do a consciéncia poe a prova o saber que tem de seu objeto, aquilo que tomava como o em-si, posto como se fosse o verdadeiro absolu- to, € descoberto como algo que era em si somente para ela. Tal era precisamente o resultado da experiéncia: a negagito do objeto prece- dente € 0 aparecimento de um novo objeto, que, por seu turno, dé origem a um novo saber. Pois “a medida do exame se modifica quan- do o objeto, cujo padrao deveria ser, nao subsiste no curso do exa- me, € © exame nado é sé um exame do saber, mas também de sua unidade de medida”.>! A teoria do conhecimento é portanto, ao mesmo tempo, uma teoria de seu objeto. “Esse movimento dialético que a consciéncia exerce em si mes- ma, tanto em seu saber como em seu objeto, enquanto dele surge 0 novo objeto verdadeiro para a consciéncia, é justamente o que se de- nomina experiéncia.”** Nesta definicao, Hegel assimila a experiéncia feita pela consciéncia a uma dialética; inversamente, porém, faz com que compreendamos como a dialética, sobretudo na Fenomenologia, € propriamente uma experiéncia. Entretanto, ha uma diferenga en- tre a dialética e a experiéncia feita pela consciéncia. A reflexao sobre essa diferenca nos levaré a compreender por que a fenomenologia pode ser também uma ciéncia e apresentar uma necessidade que s6 tem significacdo para a consciéncia filoséfica, nao para a propria cons- ciéncia que esté engajada na experiéncia. Na experiéncia, no sentido usual do termo, a consciéncia vé desaparecer aquile que até ent4o tomava como o Verdadeiro e o em- si, mas ao mesmo tempo vé aparecer, como se fosse uma Coisa nova, encontrada, um objeto diferente. “Esse novo objeto contém o ani- quilamento do primeiro, € a experiéncia feita sobre ele,”>+ Para a cons- 51 FE, 1, p. 75 (71). 52 FE, I, p. 75 (71). 53 T al 6, alias, 0 sentido usual da palavra “experiencia”. Na experiéncia, a cons- ncia vé aparecer algo de novo que a ela se opée, um objeto. Porém, para a consciéncia filoséfica, tal objeto (Gegenstand) é engendrado; ela o vé nascer clo movimento anterior (Entstandenes}, ao passa que a consciéncia fenoméni- NERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 41 wavece tratar-se de outra coisa; apds ter renegado sua ide, acredita descobrir wma segunda inteiramente dis- que, opondo-se a si, pde como objeto - Gegenstand, wwe resulta do movimento anterior - aquilo que dele WN ¢ nao mais Gegenstand). Assim, a experiéncia apa- cléncia como uma descoberta de noves mundos, porque esquece seu vir-a-ser: tal como o ceticismo, da negativo de sua experiéncia anterior; voltada para i para seu passado, ndo pode compreender como tal tima genese daquilo que, para cla, é um novo objeto. que a necessidade da experiéncia feita pela cons enti sob dupla luz, ou antes, hé duas necessidades: a objeto cfetuada pela priprla consciéncia em sua ex- xperimento de seu saber; a do aparecimento do novo onfigura por meio da experiéncia anterior.* Esta se- ade s6 pertence 20 filésofo que repensa o desenvolvi- olégico: hé um momento do em-si ou do “para nés ‘oftra na consciéncia: “Esta circunstfncia é que acom- fio completa das figuras da consciéneia em sua neces- 4 mesma necessidade - ou o nascimento do novo ob- nta d consciéncia sem que ela saiba como She Lids, é como se isso lhe transcorresse pelas costas. As- nento da consciéncia se produz um momento do ser- para-nds ~ isto &: 0 filésofo -, momento que nao esta Consciéncia, pois ela mesma esté mergulhada na ex- certo, o contetido é para ela; ndo, todavia, a sua gé- JBN Como se a consciéncia esquecesse seu préprio vir- ead momento particular, faz com que cla seja o que jie nasceu sé € como objeto (Gegenstand); para nds, mpo como movimento e vir-a-ser.”*? mmenologia de Hegel é, ao mesmo tempo, descrigdo da cons- Hica ¢ compreensdo dessa consciéncia pelo filésofo. 42 JEAN HyPeoLite Basta tomar alguns capitulos da Fenomenologia para percebef efetivamente que cada momento € 0 resultado de um vir-a-ser que 4 propria consciéncia ignora. Somente o filésofo vé na Fora, objet do entendimento, o resultado do movimento da consciéncia perciph ente, ou ainda na Vida, que é como um objeto novo, o resultado d: dialética do infinito prépria ao entendimento. Assim, as diversas consciéncias particulares que se encontram na Fenomenologia se vin. culam umas 4s outras, nao por um vir-a-ser contingente, o que se entende ordinariamente por experiéncia, mas por uma necessidade imanente que sd é para 0 filésofo. “E por essa necessidade que 0 cae minho para a ciéncia ja é, ele proprio, ciéncia, e portanto, segunda CAPITULO 2 TORIA E “FENOMENOLOGIA” seu conteuido, é ciéncia da experiéncia da consciéncia.”®8 2,1. 0 ESPIRITO E HISTORIA ES de estudar a estrutura da Fenomenologia, pée-se uma € impossivel eludir, A Fenomenologia é uma historia da ©u pretende pelo menos ser uma filosofia dessa histé- sistema do Idealismo transcendental, Schelling pde em iio gerais 0 problema que uma filosofia da historia deve 6 é intitil retomar aqui as indicagées - pois s4o apenas que esse sistema contém, a fim de melhor aperceber as J © as diferencas entre a Fenomenologia e uma similar filo- brla, ling se poe a questdo de uma “possibilidade transcenden- fla"!, questao que deve conduzi-lo a uma filosofia da his- serd para a filosofia pratica aquilo que a natureza é para érica, Na natureza, com efeito, as categorias da inteli- rontram ‘realizadas; na historia, as da vontade encon- ordem do direito cosmopolita, ndo é sendo um ideal ja realizagéo depende nao somente de seu livre-arbitrio, rbitrio dos outros seres racionais. Logo, a histéria tem ‘eapécie ¢ nao o individuo: “com efeito, todas as minhas _ 58 FE, I, p. 77 (72). Na Fenomenologia, portanto, a sucessio das experiéncias da consciéncia 86 é contingente para a consciéncia fenoménica. Nés, que reco- Ihemos tais experiéncias, descobrimos a0 mesmo tempo a necessidade da progressao, que vai de uma 2 outra. O que demonstra a Fenomenologia € a imanéncia de toda a experiéncia & consciéncia. Alids, é preciso reconhecer | que tal necessidade (sintética) nem sempre é facilmente apreensivel, e, para © leitor moderno, a passagem parece as vezes arbitraria. Esta passagem poe, ademais, 0 problema das relacées entre a histéria e a Fenomenologia. mM, em liltima instancia, a um resultado cuja realizagéo ‘utingida por um Unico individuo, mas por toda a espé- , portanto, histéria da Humanidade. Ora, essa histéria 1 eit,, TT, 590. 44 Jean Hyepouite SOBRE A FENOMENOLOGIA 45 GUMERALIDADES da Humanidade sé € possivel sob a condigéo de que, nela, a necessi: dacle se encontre reconciliada com a liberdade, o objetivo com o sub. jetivo, o inconsciente com o consciente. Em outros termos: “a liber: dace deve ser garantida por uma ordem tao manifesta e tao imutavel quanto a da natureza”> A histéria deve ter um sentido. Nela, a li berdade deve ser necessariamente realizada: 0 arbitrio do individuo nao deve desempenhar sendo um papel episddico e fragmentario, Par luto), sem nos mostrar como tal Absoluto é levado a se Ae manifestar precisamente sob a forma de uma histéria. 8, como essa sintese da atividade consciente e da atividade BME a possivel? Ela & posta.cu: presuposta por Schelling: harmonia preestabelecida entre o objetivo (aquilo que é fab lel) eo determinante (aquilo que é livre) sé pode ser con- meio de um termo superior clevado acima de ambas que, que haja verdadeiramente uma histéria da humanidade, que seja para ) Ho é nem inteligéncia nem liberdade, mas que é, simulta- a filosofia pratica aquilo que a natureza é para a filosofia tedrica, & a fonte comum entre aquilo que é inteligivel e aquilo que necessirio que a a¢do consciente das individualidades se rena a uma proprio modo pelo qual Schelling pée © problema o con- agdio inconsciente, Essa identidade do livee-arbitrio e da necessidade fa rudicalmente, © Absoluto da reflexao que aparece na € o que permite a Schelling reencontrar seu Absoluto na histéria e id, a esséncia de sua manifestagao. O texto que vamos ci- ver, nela, ndo somente uma obra dos homens sem garantia de efica- inno, talvez com nitidez ainda maior: “Se agora esse termo cia permanente, mas uma manifestagéo ou revelagio do proprio. Ado é outra coisa sendo o principio da identidade entre o Absoluto. “A necessidade deve ser na liberdade (isso significa: por minha liberdade), e, enquanto creio agir livremente, deve produzir- se inconscientemente (isto é: sem minha participacdo) algo que nao prevejo; em outros termos, a atividade consciente, a essa atividade que determina livremente, ja deduzida, deve ser oposta uma ativida- de inconsciente pela qual, & manifestacdo exterior mais ilimitada da liberdade, venha se associar, sem que o autor da agao se dé conta, sem que o queira de algum modo e talvez mesmo contra sua vonta- de, um resultado que jamais poderia realizar por sua vontade.”* Fa- cilmente se apreende aqui a diferenca entre o ponto de vista de Fichte, que permanece em uma ordem moral do mundo - a qual deve ser mas nao € necessariamente ~ e o ponto de vista de Schelling, que teencontra na histéria uma realizacdo efetiva e necessdria — destino ou providéncia ~ da prépria liberdade. Neste ponto Hegel seguira Schelling. Nas paixses humanas, nas metas individuais que os ho- mens acreditam perseguir, ele nao verd sendo as astticias da razdo ilo que Hegel denomina um Sujeito. “Segundo meu modo que, por esse meio, chega a se realizar efetivamente. A historia é uma — lie sera justificado somente na apresentacao do sistema — teodicéia: a expressao, antes de ser de Hegel, pertence a Schelling. nde deste ponto essencial: apreender e exprimir o Verda- Mas se assim Schelling indica a possibilidade de uma filosofia como substancia, mas também, precisamente, como sujei- da historia, ele proprio nao a realiza. Contenta-se com reencontrar Hegel, portanto, Schelling permaneceu espinosista: decer- na histéria essa identidade entre o subjetivo e 0 objetivo (que € para Hente subjetivo e o absolutamente objetivo, o consciente € lente que se dividem na agao livre para se manifestar, en- eso termo superior ndo pode ser nem sujeito nem obje- fbos simultaneamente, ele nao € sendo a identidade abso- qual nao hé dualidade e que, precisamente porque a fe © n condicao de toda a consciéneia, nao pode jamais che- Agelénein”.® Absoluto de Schelling, condigao da historia, é portanto ele- a da propria historia. Sem duivida Schelling escreve, em iito proxima a de Hegel, que “a histéria, considerada em Ato, ¢ uma revelagao continua e progressiva do Absoluto”; vehega nem a levar a sério essa afirmacao, nem a tirar dela storia € para ele ifestagao do Absoluto, da mesma maneira que o é a natu- @ Absoluto nao conhece em si mesmo a reflexéo que daria op. cit., TI, p. 600. 3 Ibid., p. 593, - Acerca dos antecedentes desse pensamento histérico na filo- sofia alema, a origem leibniziana dessa finalidade na historia, cf, M. 17 (29) Guéroult, L’évolution de la doctrine de ta science, 1930, I, p. 8 e ss 4 Schelling, op. cie., III, p. 594. Acerca da idéia de uma revelagdo progressiva, ef. sobretu- (cuja influgneia sobre o jovem Hegel foi importante) e, particular- Christentun der Vernunje e Die Erzichung des Menschengeschlechts. do JEAN Hypeovite GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 47 to captou a identidade do Absoluto, mas nao péde passar daf a ree flexi que, nele, permanece estranha vida do Absoluto. E por isso que essa identidade de Schelling € severamente julgada por Hegel no Prefacio da Fenomenologia: “considerar um certo ser-ai como é no Absoluto equivale a declarar que dele se fala agora como de alguma\ coisa; mas que no Absoluto, no A=A, nao ha certamente tais coi- sas porque ali tudo é uno”.5 “Esse Absoluto é a noite em que todos os gatos sao pardos.”* E a propésito da histéria que melhor compreendemos as dife- rengas entre a filosofia de Schelling ¢ a de Hegel. A despeito dos textos que citamos acima e que pareciam indicar, j4 em Schelling, uma filosofia da histéria proxima a de Hegel, é preciso nao se deixar enganar por essas aparentes semelhancas. Schelling partiu de uma intuigao do Absoluto que o conduz sobretudo a uma filosofia da natureza. O saber deve identificar-se com a vida. A vida organica, enquanto produgao inconsciente da inteligéncia, é, como a produ- ao artistica na qual o consciente se retine ao inconsciente, uma manifestacdo desse Absoluto. O saber deve remontar de tais dife- rengas que sa somente diferengas quantitativas, diferencas de po- téncia, até aquela fonte primeira. Coincidir com ela, eis 0 que Schelling denomina a intuigao intelectual, Desde entao, essa intui- ¢ao da vida pura esta além ou aquém de toda a reflexio. A reflexdo Ihe € exterior. E claro que em Hegel, em seus trabalhos de juventude e particularmente no System-fragment, podem ser encontradas expres- sdes semelhantes as de Schelling ~ “pensar a vida pura, eis a tarefa”.? Mas nos parece que, apesar de tudo, esses trabalhos de juventude denotam outra orientagao. O que lhe interessava nao era a vida or- ganica, ou a vida da natureza em geral, mas a vida do espirito en- quanto essa vida € historia. Assim, desde as suas primeiras démarches, © pensamento hegeliano é um pensamento da historia humana, en- Schelling é um pensamento da natureza ou da Vida em # visdo que Hegel tem da histéria 6 uma visao trégica. Hicin da razao nao se apresenta como um simples meio de eonsciente ao consciente, mas como um conflito trégico, OH Keio mesmo do Absoluto. “A vida de Deus ¢ 0 conheci- ino poclem portanto, se se quiser, ser expressos como um Amor consigo mesmo; mas essa idéia se rebaixa até o © mesmo até a insipidez quando lhe faltam a seriedade, a éncia c 0 trabalho do negativo.”'© O pantragismo da his- Panlogismo da légica nao séo senao uma tinica ¢ mesma MO ja 0 revela este texto no qual Hegel fala simultaneamen- @ do trabalho do negativo. Fenomenologia, a dualidade que Schelling rejeitava no que constitui o fundo da historia, € um momento essen- jalidacle caracteriza a consciéncia, mas nao € por isso que l@ncia ¢ estranha ao Absoluto. Pelo contraric, seu desen- to historico é a reflexdo desse Absoluto — 0 espirito - em si fites de nos perguntarmos em que sentido essa reflexao da i 6 uma historia - e que espécie de histéria -, importa pre- ir de certos textos da Fenomenologia essa relacao, tao im- tte o espirito e a histéria para Hegel. O espirito para Hegel ;, tose fundamental que € idéntica aquela segundo a qual o sujelto; “mas a natureza organica nao tem histéria”"!, por- A Universalidade nao é sendo um interior sem desenvolvi- Hivo, Decerto que ha individuos vivos, mas a vida nao chega Se neles como universal abstrato, como negagdo de toda AGO particular. Em outros termos, o sentido da vida orga- A parte. A intuigéo da vida como vida universal ou se contingéncia de individuos separados, ou encontra-se ne- Fpoténcia que os aniquila e que é a unica a fazé-los efetiva- . Procurar atingir essa intuigdo da vida criadora de indi- fempre novas, ou destruidora dessas individualidades ica A Mesma coisa, pois esse duplo processo constitui-se 8 FE,I, p. 16 (29. * A versio francesa da expresso hegeliana diz: “donner son Absolu pour la nuit ott, comme on a coutume de dire, toutes les vaches sont naires”. O original ale- + mao: “sein Absolutes fur die Nacht auzsugeben, worin, wie man zu sagen pfleet, alle Kuke schwarz, sind [...]" 9 CE. os Escritos teoldgicos de Hegel, ed. Nohl, p. 302 ¢ p. 345 € ss.; e também nosso artigo sobre os “Trabalhos de juventude de Hegel", in Reoue de Metaphysique et de Morale, julho-outubro, 1935, - Para simplificar, designa- remos os Hegel’s Theologische Jugendschriften, organizados por D. H. Nohl, cD) Mohr, 1907, somente pelo nome do editor: ed. Nohl. 7 (190) do JEAN Hypeovite GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 47 to captou a identidade do Absoluto, mas nao péde passar daf a ree flexi que, nele, permanece estranha vida do Absoluto. E por isso que essa identidade de Schelling € severamente julgada por Hegel no Prefacio da Fenomenologia: “considerar um certo ser-ai como é no Absoluto equivale a declarar que dele se fala agora como de alguma\ coisa; mas que no Absoluto, no A=A, nao ha certamente tais coi- sas porque ali tudo é uno”.5 “Esse Absoluto é a noite em que todos os gatos sao pardos.”* E a propésito da histéria que melhor compreendemos as dife- rengas entre a filosofia de Schelling ¢ a de Hegel. A despeito dos textos que citamos acima e que pareciam indicar, j4 em Schelling, uma filosofia da histéria proxima a de Hegel, é preciso nao se deixar enganar por essas aparentes semelhancas. Schelling partiu de uma intuigao do Absoluto que o conduz sobretudo a uma filosofia da natureza. O saber deve identificar-se com a vida. A vida organica, enquanto produgao inconsciente da inteligéncia, é, como a produ- ao artistica na qual o consciente se retine ao inconsciente, uma manifestacdo desse Absoluto. O saber deve remontar de tais dife- rengas que sa somente diferengas quantitativas, diferencas de po- téncia, até aquela fonte primeira. Coincidir com ela, eis 0 que Schelling denomina a intuigao intelectual, Desde entao, essa intui- ¢ao da vida pura esta além ou aquém de toda a reflexio. A reflexdo Ihe € exterior. E claro que em Hegel, em seus trabalhos de juventude e particularmente no System-fragment, podem ser encontradas expres- sdes semelhantes as de Schelling ~ “pensar a vida pura, eis a tarefa”.? Mas nos parece que, apesar de tudo, esses trabalhos de juventude denotam outra orientagao. O que lhe interessava nao era a vida or- ganica, ou a vida da natureza em geral, mas a vida do espirito en- quanto essa vida € historia. Assim, desde as suas primeiras démarches, © pensamento hegeliano é um pensamento da historia humana, en- Schelling é um pensamento da natureza ou da Vida em # visdo que Hegel tem da histéria 6 uma visao trégica. Hicin da razao nao se apresenta como um simples meio de eonsciente ao consciente, mas como um conflito trégico, OH Keio mesmo do Absoluto. “A vida de Deus ¢ 0 conheci- ino poclem portanto, se se quiser, ser expressos como um Amor consigo mesmo; mas essa idéia se rebaixa até o © mesmo até a insipidez quando lhe faltam a seriedade, a éncia c 0 trabalho do negativo.”'© O pantragismo da his- Panlogismo da légica nao séo senao uma tinica ¢ mesma MO ja 0 revela este texto no qual Hegel fala simultaneamen- @ do trabalho do negativo. Fenomenologia, a dualidade que Schelling rejeitava no que constitui o fundo da historia, € um momento essen- jalidacle caracteriza a consciéncia, mas nao € por isso que l@ncia ¢ estranha ao Absoluto. Pelo contraric, seu desen- to historico é a reflexdo desse Absoluto — 0 espirito - em si fites de nos perguntarmos em que sentido essa reflexao da i 6 uma historia - e que espécie de histéria -, importa pre- ir de certos textos da Fenomenologia essa relacao, tao im- tte o espirito e a histéria para Hegel. O espirito para Hegel ;, tose fundamental que € idéntica aquela segundo a qual o sujelto; “mas a natureza organica nao tem histéria”"!, por- A Universalidade nao é sendo um interior sem desenvolvi- Hivo, Decerto que ha individuos vivos, mas a vida nao chega Se neles como universal abstrato, como negagdo de toda AGO particular. Em outros termos, o sentido da vida orga- A parte. A intuigéo da vida como vida universal ou se contingéncia de individuos separados, ou encontra-se ne- Fpoténcia que os aniquila e que é a unica a fazé-los efetiva- . Procurar atingir essa intuigdo da vida criadora de indi- fempre novas, ou destruidora dessas individualidades ica A Mesma coisa, pois esse duplo processo constitui-se 8 FE,I, p. 16 (29. * A versio francesa da expresso hegeliana diz: “donner son Absolu pour la nuit ott, comme on a coutume de dire, toutes les vaches sont naires”. O original ale- + mao: “sein Absolutes fur die Nacht auzsugeben, worin, wie man zu sagen pfleet, alle Kuke schwarz, sind [...]" 9 CE. os Escritos teoldgicos de Hegel, ed. Nohl, p. 302 ¢ p. 345 € ss.; e também nosso artigo sobre os “Trabalhos de juventude de Hegel", in Reoue de Metaphysique et de Morale, julho-outubro, 1935, - Para simplificar, designa- remos os Hegel’s Theologische Jugendschriften, organizados por D. H. Nohl, cD) Mohr, 1907, somente pelo nome do editor: ed. Nohl. 7 (190) 50 Jean Hyerouite fepete sem se desenvolver verdadeiramente e, desta feita, ela nao € @ género que se exprime em sua historia, “Essa vida nao é um sistema de figuras fundado em si mesmo.”15 Voltamos, portanto, ao ponto de partida de nossa analise do texto: “a vida organica nao tem histéria”. Somente o espirito te uma histo: que permanece ele mesmo em cada uma de suas particularizacées quando as nega ~ 0 que é 0 proprio movimento do conceito ~, con: serva ao mesmo tempo tais particularizagées para eleva-las a uma: forma superior. Somente o espirito tem um passado que ele interio tiza (Erinnerung) e um porvir que projeta diante de si porque deve tornar-se para si o que é em si. Hé uma concep¢do do tempo e da temporalidade implicada na Fenomenologia. Por ora, 0 que nos inte- ressa é a definico de espirito como histéria e a importincia que ela apresenta na Fenomenologia. Contrariamente 4 Vida universal que se precipita imediata- mente a partir de seu Universal - a vida, na singularidade sensivel, sem exprimir-se a si mesma em um desenvolvimento que seja simul- taneamente universal e particular, que seja o “Universal concreto” -, a consciéncia apresenta, nos diz Hegel, a possibilidade de um tal desenvolvimento. “Assim, a consciéncia entre o espirito universal e sua singularidade ou consciéncia sensfvel tem por termo médio 0 sis- tema das figuragdes da consciéncia, entendido como vida do espiri- to a se ordenar até se tornar 0 todo - sistema que é considerado nes- ta obra © que tem como histéria do mundo de seu préprio ser-ai objetivo.” A consciéncia sensivel é propriamente a consciéncia sin- gular, mas abstratamente singular, aquela que esta limitada a um aqui, a um agora, tais como sao apresentadas no inicio da Fenomeno- logia, no capitulo sobre a certeza sensivel!®; contudo, o prdprio espt- rito universal € a consciéncia abstratamente universal. Ambos sdo um para 0 outro, e toda consciéncia verdadeira é simultaneamente particular e universal, capaz de descobrir em sua particulatidade a universalidade que The é essencial. Esse movimento - por meio do qual toda consciéncia particular torna-se ao mesmo tempo conscién- cia universal, constituindo a singularidade auténtica e 0 vir-a-ser dessa singularidade, através de todas as fases de seu desenvolvimen- to =, esse movimento € precisamente a Fenomenologia.!? —— — 15 FE, 1, p. 247 (190). FELA, p. 81 (74) » isto é, um desenvolvimento de si por si, de tal moda UNNERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 51 PNOMENOLOGIA NAO £ A HISTORIA DO MUNDO fa Fenomenologia nao € a histéria do mundo, embora de ilo seja uma histéria e tenha uma relagao com essa histéria lj, Ha um problema particular af, que doravante sera preci- erar, Que cla seja distinta da histéria do mundo ou de uma la historia do mundo, Hegel o diz com suas préprias pala- Prefiicio da Fenomenologia e no texto que acabamos de co- “alstema que é cansiderado nesta obra e que tem como his- mundo seu préprio ser-af objetivo”!® —; ademais, sob uma mais ambigua no final da obra, quando opée a historia em desenvolvimento temporal a essa historia concebida que é jenologic.!” Enfim, em muitas outras passagens Hegel fala de irito do mundo” cujo desenvolvimento € distinto do desen- to fenomenoldgico." De resto, basta referir-se ao contetido nenologia para afastar a hipétese segundo a qual ela seria pro- ‘rte a filosofia da historia do mundo em sua integralidade. A historia desempenha um grande papel na Fenomenologia, 4 Haym tenha podido defini-la como uma psicologia trans- pital falseada pela historia, e uma histéria falseada pela psico- Hanscendental”.2! Contudo, ela nao desempenha por toda parte Mo papel. Naquilo que queremos denominar a primeira parte menologia - € que compreende as grandes divisoes: Conscién- onaciéncia de si e Razao, as tinicas que subsistirao na Prope- e na Enciclopédia -, a historia néo desempenha senao o papel “Feronciliacao final - a redengao e a remisséo dos pecados - é, precisa- ‘Ate, ewe duplo movimento da consciéncia universal que se torna parti- ilar & di consciéncia particular que se torna universal. E nesse movimento Hiv que o espirito conkece, ainda em seu “Outro”, o espirito. Cf. FE, Il, 190 (35) c nosso comentéric dessa passagem na presente obra (Parte VI, i 2). 1, p, 247 (190). Il, p. 313 220). ~ Mais exatamente, parece que Hegel distingue um vir- T temporal concingente em algumas de suas manifestagdes, uma ciéncia saber fenoménico (a Fenomenologia) e, por fim, uma filosofia da Historia, jal pertenceri ao sistema propriamente dito e ser4, verdadeiramente, a ikOrla concebica em si e para si. f em particular FE, I, p. 169 ¢ 198 (136 e 155) ete. Cf. também os textos Preficio da Fenomenologia que comentamos adiante. lym, Hegel und Seine Zeit, p. 243, ed. 1927, 52 JEAN Hyprovite GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 53 de exemplo; segundo Hegel, ela permite ilustrar de modo concreta um desenvolvimento original ¢ necessario da consciéncia. E sobre tudo nos capitulos mais concretos, o da consciéncia de sie o da ra aio, que se encontram essas ilustracées histéricas. A consciéncia de se forma mediante as relacées de luta entre consciéncias de si opos tas,.tais como as do senhor e do escravo, que nao séo propriamente temporais, embora se encontrem na origem de todas as civilizacées humanas e se reproduzam, alias, sob formas diversas em toda a his t6ria da humanidade. Os desenvolvimentos seguintes evocam, maig precisamente, momentos definidos da histéria humana; trata-se do estoicismo, do ceticismo e da consciéncia infeliz. Hegel, tio avaro em precisoes histéricas propriamente ditas, e procedendo sempre po! aluses, nao teme dizer, apds haver descrito em termos abstratos a consciéncia de si que se elevou 4 autonomia: “essa liberdade da cons ciéncia de si, a emergir em sua manifestacao consciente de si mesm: na histéria do espirito, denominou-se, como bem se sabe, estoicis. mo”.”? E acrescenta no final desse pardgrafo: “Como forma univers sal do espirito do mundo, o estoicismo podia surgir somente em u tempo de medo e de escravidao universais, mas também no tempo de uma cultura universal que havia elevado a formacdo e a cultura a altura do pensamento”.”? Coma se vé, o desenvolvimento fenomes noldgico, que reencontra necessariamente um momento da liberda- de abstrata da consciéncia de si, utiliza a fase correspondente da his- tria do mundo para ilustrar e precisar sua descrigdo. Sabemos, pelos trabalhos de juventude de Hegel, que a cons. ciéncia infeliz se confunde em sua origem com 0 judaismo e, depois, estende-se ao cristianismo da Idade Média. Mas 0 texto da Fenome- nologia sobre a consciéncia infeliz nao contém nenhuma mencao ex- plicita ao judaismo; sempre se trata, portanto, de ilustracées histori- cas para servir a um desenvolvimento necessdrio da consciéncia de si, O mesmo ocorre no capitulo sobre a razdo, onde encontramos alusdes ao Renascimento e, além disso, utilizagoes muito precisas das obras contemporaneas de Hegel: Os salteadores de Schiller, 0 Fausto de Goethe ou obras particularmente apreciadas pelos tomanticos, como 0 Dom Quixote de Cervantes.2+ Fsses exemplos, essas ilustragdes concretas de momentos de Avolvimento da consciéncia sao escolhidos arbitrariamente ou poem de modo absoluto? E um problema que o comentador da mnenologia pode tentar resolver tomando consciéncia da exata efa iu que Hegel se propds; mas o certo é que ali nao ha uma filo- completa da historia da humanidade. De resto, Hegel insiste diamente neste ponto: os trés momentos - consciéncia, conscién- si, razdo ~ nao devem ser considerados sucessivos; ndo s4o no pio, sio trés abstragdes praticadas no Todo do espirito e estuda- eparadamente em sua evolugao. Somente as formas singulares 8 momentos — certeza sensivel, percepcdo, entendimento ete. -, presentarem uma totalidade concreta, podem ser consideradas, terior do momento ao qual pertencem, sucessivas; todavia, a aio temporal aponta aqui para um desenvolvimento original do fento considerado. Pode-se representar a passagem da certeza el A percepcdo como uma passagem temporal. Do mesmo modo, sayem da relagdo entre senhor e escravo ao estoicismo, as rela- do estoicismo com o ceticismo, do ceticismo grego ao sentimen- vaidade de toda coisa finita no Velho Testamento e de tudo 80 cristianismo, tais relagées apresentam, é preciso reconhecé- ma certa interpretagao histérica. Naquilo que queremos denominar a segunda parte da Feno- lagi, ¢ que compreende os capitulos sobre o Espirito, a Reli- © Saber Absoluto, 0 problema é muito mais complexo. Tem- vezes a impressdo de se encontrar em presenca de uma wleira filosofia da histéria; tentaremos dar a razéo disso ao es- 8 a estrutura da Fenomenologia. O certo é que,-desde a Pro- ied © a Enciclopédia, Hegel fez desaparecer da Fenomenologia, sensu, esses capitulos sobre o espirito e a religiao. E que nesses pitulos trata-se, nado mais que formalmente, de um evolucdo maciéncia individual. O que € considerado, por exemplo, no ilo sobre o espirito, sao totalidades concretas, espiritos particu- quele da Cidade grega, do Império e do Direito romanos, da oecidental, da Revolugdo Francesa e do mundo germanico. Jo Hegel 0 diz no inicio do capitulo sobre o espirito. Apds 22 FE, I, p. 169 (135). 23 FE, I, p. 170 (136). - Assim, seria possivel dizer que Pascal, ao querer opor duas atitudes necessarias do espirito, se serve do estoicismo e de Montaigne na conversa com M. de Sacy. p 297 (227) ¢ ss. - Cf. também a pagina precedente, em que Hegel se im pouco sobre a escolha desses exemplos contemporaneos para ilus- wiindo cle, momentos necessdrios: 0 prazer e a necessidade, a lei do ete 54 Jean Hyppourre 2 (APNERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 55 haver indicado que unicamente o espirito € a “existéncia”, a razio que se tornou um mundo vivo, o individuo que € um mundo?5, ob: serva que os momentos anteriores, consciéneia de si ¢ razdo, naa eram senao abstragées do espirito: “todas as figuras anteriores di consciéncia sao abstragées desse espfrito, existem pelo fato de que a espfrito se analisa, distingue seus proprios momentos e se detém nog momentos singulares”.”° E acrescenta que essa agdo de isolar tais mo= mentos pressupée © espirito e radica somente nele. Somente o espfe rito, no sentido que Hegel dé a esse termo, é portanto um todo cons creto que, conseqiientemente, tem um desenvolvimento original ¢ uma historia real. E por isso que as figuras do espirito diferem das figuras precedentes: “estas figuras todavia se distinguem das prece- dentes pelo fato de que elas préprias sio os espititos reais, efetivi- dades auténticas e, no lugar de serem somente figuras da conscién- cia, sdo as figuras de um mundo”,2? A partir desse momento, o desenvolvimento do espirito pare- ce coincidir com um desenvolvimento histérico real. Ea historia da formagao de uma consciéneia do espirito entendido como realidade supra-individual desde a Cidade antiga até a Revolugéo Francesa. Mas h4 muitas lacunas nesse desenvolvimento, se referido A hist6- tia efetiva. Nao ha, por exemplo, nada sobre o Renascimento, h4 alusdes discutfveis sobre a Reforma; por outro lado, hé desenvolvi- mentos muito extensos sobre a Aufklérung, sobre a Revolugao Fran- cesa. O que justifica tais escolhas ou exclusdes, e qual o método aqui seguido por Hegel? Se se tratasse de uma filosofia completa da his- toria seria preciso convir tratar-se de um fracasso. Mas, por outro lado, Hegel insiste no carater cientifico da obra, na necessidade de seu desenvolvimento. Portanto, sera preciso buscar em outro lugar, nao na histéria do mundo em geral, aquilo que pode justificar essa necessidade. O capftulo que segue, sobre a religido, nao deixa de por me- nos problemas. Hegel diz nitidamente que, em relagao a religizo, tudo © que precede nao deve ser considerado um desenvolvimento histé- rico. Por seu turno, a religiéo pressupde 0 todo do espitito, e, para fazer uma Fenomenologia da religiao, deve-se considerar todos os mo- Mentos anteriores como reunidos ¢ a constituir a subst&ncia do espi- wluito que se eleva a consciéncia de si mesmo. “De resto, 0 #0 dlesses momentos em referéncia & religido nao é represen- ap tempo.” Pelo contrério, ha um desenvolvimento da reli- feliviny natural, religiéo estética, religido revelada - que bem ter tima significagao histérica como tal. Dossas observagdes muito gerais, podemos extrair ao menos frclisio: a Fenomenologia nao 6 exatamente uma filosofia da ila do mundo. Em sua primeira parte, nao se poderia tratar de tal assimilagao; na segunda, ha somente um relacionamento patriio entre o desenvolvimento fenomenolégico ¢ o desenvol- Ato da historia no sentido proprio do termo. Contudo, 0 espiri- ececle a religido no tempo; mas s6 a precede para nés que, a fim ampreender o sentido da religido, temos necessidade de haver aamento ao desenvolvimento do espirito como existéncia e lo. uo pensamento da reconciliagdo. Enfim, os diversos momen- olhidos nestes dois capitulos nado abarcam a histéria univer- Pinas coincidem somente com fendmenos histéricos que Hegel particularmente importantes para a sua tarefa. A questao nao esta, portanto, resolvida; e é preciso que tente- « leterminar mais de perto a significacao do desenvolvimento fe- fienoldjico em relacdo ao desenvolvimento da histdria 2.3. A FENOMENOLOGIA, HISTORIA DA CONSCIENCIA INDIVIDUAL A Fenomenologia é a elevagio da consciéncia empirica ao sa- ¥ absoluto: ela o é em sua intencao primeira, tal como o revela a tvodugiio A obra. E ainda sob essa forma que Hegel a considera no pficio escrito posteriormente. “A tarefa de conduzir o individuo seu cstado inculto até o saber devia ser entendida em seu sentido etal e consistia em considerar 0 individuo universal, 0 espirito cons- e de si, em seu processo de formacdo”.?? Mas essa elevacdo da ahiciéncia empirica ao saber absoluto nao € possivel se, nela, ndo descobrem as etapas de sua ascensao; estas etapas sdo proprias & onsciéncia, é preciso somente que des¢a até a interioridade da lem- 25 PEM, p. 12 0). 26 FH I, p. 11 (8). Ss. 27 PFE Il, p. 12 (9). 4 ‘nd i. oe 56 GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 57 Jean Hyrroite fH que aquilo que em épocas anteriores absorvia o espiti- liltox é rebaixado agora a conhecimentos, a exercicios € jazox infantis; ¢ na progressdo pedagdgica, reconhecemos ada em projegao a histéria da cultura universal.” Na f que contribui para a preparacao daquilo a que Hegel de- psaber absoluto, essa histéria da cultura universal deve ser consciéncia individual. E preciso que tome consciéncia a de sua substancia, que [he aparece inicialmente como windo cla ainda se encontra apenas no inicio de seu itine- fico c humano. Nos textos que citamos acima, Schelling Hessa imanéncia da histéria ao presente do individuo: “sus- fetivamente que nenhuma consciéncia individual pode- com todas as determinagdes com que se pée, e que ne- mite Ihe pertencem, se nao tivesse sido precedida por toda © que se poderia facilmente mostrar se se tratasse, por e uma obra de arte”.?} E disso Schelling conclui que se zer a historia partindo do presente, procurando somente 10 estado atual do mundo e da individualidade que nele ada, portanto, uma relacgao entre a filosofia da historia e a Fe- , A Fenomenologia é 0 desenvolvimento concreto e expli- ta do individuo, a elevacao de seu eu finito ao eu abso- ja clevagdo nao é possivel sendo ao utilizar os momentos o imanentes a essa consciéncia indivi- branga por uma operacao compardvel a reminiscéncia platénica Com efeito, como filho de seu tempo, o individuo possui em si todi 1a substincia do espitito desse tempo; € preciso somente que se apro pric desse tempo, que o torne novamente presente: “assim como quel ahorda uma ciéncia mais elevada, percorre os conhecimentos prepa ratérios nele implicitos ha muito tempo, para destes novamente al cangar o contetido presente”. O problema que a Fenomenologia se poe nao €, portanto, o pro blema da historia do mundo, mas o da educagao do individuo sin: gular que deve necessariamente se formar no saber, tomando cons ciéncia daquilo a que Hegel denomina sua substancia. E uma tarefi propriamente pedagégica que nao deixa de se relacionar com aquela que Rousseau ja se propunha no Emilio. A respeito desta obra de Rousseau, € possivel escrever justamente: “A idéia primeira é rigorosa- mente cientifica; se o desenvolvimento do individuo repete sumaria- mente a evolugao da espécie, a educagao da crianga deve reproduzir em linhas gerais o movimento geral da humanidade”.3! Mas enquan- to Rousseau disso concluiu somente que a idade da sensagao devia preceder a idade da reflexao, Hegel levou a sétio essa imanéncia da historia da humanidade em geral & consciéncia individual. “Visto. que nao somente a substancia do individuo, mas também o espirito | do mundo teve a paciéncia de percorrer essas formas em toda a ex- tensdo do tempa, e empreender o prodigioso labor da histéria univer- sal, na qual o*¢spirito do mundo foi encarnando, em cada forma e pelo tanto que ela o comportava, o contetido total de si mesmo; e visto que o espitito do mundo nao podia atingir com menos labor sua consciéncia de si mesmo - assim também, segundo a coisa mesma, eonhecidas™, analise-as e desenvolva-as em si mesma; o individuo nao pode conceber sua substancia por uma via mais cur- assim em si mesma fases da historia passada e, em vez ta. E, no entanto, 0 esforco € ao mesmo tempo menor, posto que em Jas sem nelas encontrar seu interesse, devera, ao con- si tudo isso ja se cumpriu, 0 contettdo é a realidade efetiva ja aniqui- Arese, reconstituir sua experiéncia passada para que sua jada na possibilidade, ou a imediatez j4 forcada, a configuracao jé possa Ihe aparecer: “a impaciéncia pretende o impossi- reduzida a sua abreviacao, a simples determinacao do pensamento.”?? jobtengio da meta sem os meios”>5 E preciso suportar a A hitforia do mundo se realizou; é preciso somente que o in- minho, demorar-se em cada momento particular. A dividuo singular a reencontre em si mesmo. “O ser singular deve tam- ndo imanente ao individuo, mas do qual ele nao to- bém percorrer os graus de formagao do espirito universal segundo o Ja, torna-se entao a historia concebida e interiorizada, seu contetido, mas como figuras j4 depostas pelo espfrito, como graus extrair progressivamente o sentido. de uma via ja tracada e aplanada. Assim, vemos no campo dos co- Ses IL, p. 590, 31 Lanson, Littérature francaise, Cap. “Rousseau”; 22° ed., p. 796. 32. FE, 1, p. 27 (36-7). 58 JEAN Hyprouite Ao conceber assim a Fenomenologia, Hegel parece decerto pro por-se a uma dupla tarefa. Por uma parte, quer introduzir a consci: éncia empirica no saber absoluto, na filosofia - que é para ele o siste- ma do idealismo absoluto, o sistema no qual a consciéncia de si e a ciéncia do ser se identificam; por outra parte, quer elevar 0 eit individual ao eu humano. O problema da passagem do eu finito ao eu absoluto, que era aquele de Fichte e de Schelling, se torna, quando considerada a exata significacao dessa segunda tarefa, o problema da passagem do eu individual ao eu humano, do eu abstratamente singular ao eu que abarca em si todo 0 espitito de seu tempo. Ja na Wissenschaftslehre de 1794, Fichte fala do eu finito ou empirico como sendo do eu individual, mas nao pée em toda a sua amplitude o pro- blema da relacdo do eu singular com o eu humano. Tal problema podia ser posto unicamente por Hegel, porque este ampliava cons deravelmente o conceito de experiéncia da consciéncia. Para Hegel, nao se tratava somente da experiéncia teorética ou da experiéncia moral no sentido restrito do termo, mas de tudo o que é vivido pela consciéncia, nao somente o objeto pensado ou a meta final, mas ainda todos os modos de viver, as visdes estéticas e religiosas do mundo que constituem aexperiéncia no sentido amplo do termo. Ao se por assim o problema de toda a experiéncia, de tudo o que é suscetivel de ser vivido pela consciéncia, Hegel fora necessariamente conduzi- do & relagao entre o eu individual e o eu da humanidade. A consci- éncia empirica considerada era a consciéncia singular que deve ir progressivamente retomando consciéncia da experiéncia da espécie e, ao se formar no saber, deve também formar-se em uma sabedoria humana, deve aprender sua relagéo com as outras consciéncias, apre- ender a necessidade de uma mediacao da historia universal para que ela prépria possa ser consciéncia espiritual. A segunda tarefa assim definida, elevacao do eu singular ao eu da humanidade, é, na sua significado mais profunda, o que Hegel denomina cultura (Bildung). Mas essa cultura ndo é somente aquela do individuo, e nao interessa apenas a ele; além disso, é um momen- to essencial do Todo, do Absoluto. Com efeito, se o Absoluto é su- jeito ¢ ndo somente substancia, ele é a sua prépria reflexdo em si mesmo, seu vir-a-ser consciente de si como consciéncia do espirito, de modo que, quando a consciéncia progride de experiéncia em ex- periéncia, ¢ assim estende seu horizonte, o individuo se eleva & hu- manidade, mas ao mesmo tempo a humanidade se torna consciente de si mesma.*® O espirito torna-se a consciéncia de si do espirito: “deste ponto de vista a cultura, considerada sob 0 Angulo do indivi cor GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 59 Fonsiste em adquirir o presente, consumir em si mesmo sua een inorganica e apropriar-se dela; mas considerada sob 0 an- do espirito universal, enquanto este espfrito é a substancia, esta Fa Consiste unicamente em que a substancia se dé sua conscién- fe i ¢ produz em si mesma seu préprio vir-a-ser € sua propria sao",'! A Fenomenologia bem €, portanto, uma parte da ciéncia fica: na esfera do individuo, é uma introdugao a ciéncia; mas fera do fildsofo, ¢ esta ciéncia a tomar consciéncia de si mesma, pmo a reflexao nao é estranha ao saber absoluto, como o Abso- é sujcito, ela propria se introduz na vida absoluta do espirito. Sem dtivida, 0 cumprimento desta tarefa conduziu Hegel a lucao de seu projeto inicial de introduzir a consciéncia nao cien- 4 8 ciéncia; assim, integrou a sua obra todos os desenvolvimen- inais propriamente histéricos sobre o espirito objetivo e sobre a iylio, antes de chegar ao Saber absolut. Visto que o problema é var o individuo a consciéncia do espirito, fazer com que, nele, o irito se torne consciente de si, como poderia o individuo compre- der sua substancia sem reencontrar em si o desenvolvimento do pirito que ainda pertence a seu mundo presente? Contudo, é possivel perguntar como se identificam as duas farelas que acabamos de definir: por um lado, a passagem da consci- fcia empirica a ciéncia; por outro, a elevagao do individuo singular consciéncia do espirito de seu tempo, da humanidade nele presen- ©, Nos seus escritos de juventude, Hegel pensara inicialmente em ima obra propriamente pedagégica e pratica, desejara exercer uma (io direta em sua época e sofrera a influéncia dos reformadores fran- ceses e da Revolucao Francesa; pouco a pouco, foi abandonando essa ambicao. Desde sua chegada a Tena, ao refletir sobre os sistemas de Fichte e Schelling, tentara definir a filosofia como a expressao da cultura de uma época na historia do mundo, e vira seu interesse pypeculativo no esforgo por ela realizado para resolver as oposigoes has quais essa cultura se cristaliza. Muito mais tarde, na Filosofia do Dircito, ele escrevera: “Para dizer ainda uma palavra sobre a preten- 46 Cf., sobre este ponto, a andlise de Kroner, Von Kant bis Hegel, IL, p. 377. V7 FE, I, p. 26 (36). - No Prefécio, escrito apss a redagao completa da Fenome- nologia, Hegel precisa esse alcance geral de sua obra, sua significagao para o individuo e para a substancia que se torna sujeito. A Introdugao, escrita antes da Fenomenologia, nao encata essa relaco entre o conjunto da Feno- menologia € a histévia do espirito do mundo. 60. Jean Hyrrouite sho de ensinar come 9 mundo deve ser, a filosofia sempre chega, em todo caso, tarde demais. Enquanto pensamento do mundo, s6 apa- rece na época em que a realidade concluiu o processo de sua forma- sao © se completou, Q que o conceito nos ensina, a histéria nos mos- (ra com a mesma necessidade; € preciso esperar que a realidade tenha alcancado a maturidade para que o ideal aparega em face do real e, aps ter apreendido 9 mundo em sua substancia, reconstrua-o na forma de um império das idéias”*; e exprimia o mesmo pensamento nesta imagem: “a coruja de Minerva so levanta véo ao cair da tarde, 4 hora do creptisculo”, Sem dtivida, esses textos de 1820 tem um tom mais conservador que 9 da Fenomenologia. Mas j4 em 1807 Hegel sabe que a filosofia, 0 saber absoluto, 6 um resultado que coincide com a teflexao do espirito em certa época. Nao se poderia por conseguinte Pensar que, como ele préprio sugere no Prefacio da Fenomenologia, o caminho que condyz ao idealismo absoluto coincide com um certo momento da histérig do mundo? O Saber absoluto tem pressupos- tos historicos. Para elevar-se a0 Saber absoluto, a consciéncia empt- rica deve tomar congciéncia de seus pressupostos histéricos ~ isto quer dlizer precisamente; elevar seu eu singular ao eu da humanidade des- se tempo no qual, e somente nele, o saber absoluto pode aparecer. A propésito do idealismo kantiano e fichtiano, Hegel dira na Feno- menologia: “No lugar de apresentar este caminho (0 caminho dos pres- supostos histéricos do idealismo), inicia com essa afirmagao (aquela do Eu = Eu); nao ¢, portanto, mais do que uma pura assercao que nao se concebe a si mesma e nao pode se tornar concebivel aos ou- tros”.>? Exprime ainda 9 mesmo pensamento de uma maneira mais geral: “a manifestagao imediata da verdade é a abstracao de seu ser presente, cuja ess8ncia e ser-em-si so 0 conceito absoluto, isto é, 0 movimento de seu ser-que-veio-a-ser”.4° © idealismo kantiano e fichtiano, quando aparece na histéria do mundo como um certo sis- tema filoséfico, nao esta justificado, permanece uma afirmagao gra- tuita. Sua verdadeirg justificagao s6 pode ser a histria da formacao da consciéncia.humana. Uma das originalidades da Fenomenologia hegeliana é a de justificar o idealismo pela histéria, de nela ver o 4B Hegel, Filosofia do direito, trad. fr., ed. Gallimard, 1940, p. 32. By, p, 198 (154) I, Ri 198 (154), ~ Sobre o Idealismo, fendmeno da histétia do espirito, MN, Plas A rtinann, Die Philosophie des deutschen Idealismus, Il, Cap. “Hegel”, 858, ENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 61 jperléncias anteriores. E o resultado nada é sem o seu , a8 duas tarefas que distinguimos nao estao separadas ando a consciéncia empfrica se eleva ao saber abso- fHeAmMo tempo tomar consciéncia de uma certa histéria ransciéncia nao é um puro e simples retorno ao passado, 4 Apreensio retrospectiva, o que justifica esse passado e seu sentido, “Assim a ciéncia (isto 6, o saber absoluto), to de um mundo do espirito, ainda nao se realizou em D inicio do espitivo novo é 0 produto de uma vasta revi- e formas culturais, muiltiplas e variadas, a recompensa de jo complexo ¢ sinuoso, assim como, de um esforgo nao His e penoso. Esse inicio é 0 todo que, fora da sucessdo e Fetornou a si mesmo e se tornou o conceito simples desse a realidade efetiva desse todo simples consiste no proces- jul as formagées precedentes, que agora se tornaram mo- javamente se desenvolvem e se déo uma nova configura- ‘Fil tempo. Inversamente, porém, o saber absoluto nfo é so- |ncebido por Hegel como aquilo que ordinariamente se en- oF um saber, ele corresponde a uma nova época da histéria lo; nfo se compreenderiam certas passagens deste tiltimo oda Fenomenologia® se nao se admitisse que, para Hegel, a mnidade que acaba de sofrer transformacées tao profundas en- lima nova fase de sua historia. A essa histéria corresponde absoluto, e o saber absoluto é sua expressdo. “De resto, ndo | ver que nosso tempo é um tempo de gestagao e transigao a feu passado e esta no trabalho de sua propria transformagao."44 Tp. 7 (23) I, p. 13.22). © capitulo sobre saber absoluto que dé acabamento A Fenomenologia: v1, p. 293 207) ess Bi, 1, p. 12 26). 62 Jean Hypro.ite WRALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA Mcia particular e que, portanto, deve encontrar a ua particularidade, mas néo pode evitar comple- ficularidade. Sabe-se que para Hegel a consciéncia ¢ fieamente, consciéncia universal e consciéncia parti- dialética é a singularidade verdadeira, a individuali- | que se eleva de sua particularidade a universalidade. ls, no que concerne ao porvir, Hegel escreveré em direito, desmentindo assim a tese segundo a qual ele ier o tempo em sua época: “A tarefa da filosofia € con- jie 6, pois aquilo que é, é a razao; no que concerne ao da um ¢ 0 filho de seu tempo; do mesmo modo tam- resume sua época no pensamento. E tao insano ima- a filosofia qualquer superard o mundo contemporaneo ie © individuo possa saltar acima de seu tempo, trans- Mas isto nao significa que a concepgado daquilo que é eoncepgao de um elemento contingente e passageiro; , € preciso saber reconhecer a rosa na cruz do sofri- sijar-se com sua presenga. oltar ao problema do passado na Fenomenologia, impor- 4 individualidade, da qual a cultura € assim considera a individualidade qualquer, mergulhada em uma par- demasiado limitada. “O individuo particular é 0 espirito tima figura concreta no ser-af total com uma tinica de- WHominante, enquanto as outras estao presentes apenas {umados"*’; mas € somente a individualidade universal, le se elevar ao saber absoluto, que deve reencontrar € #m si mesma os momentos implicados em seu vir-a-ser. eonsciéncia que, tendo chegado ao saber filoséfico, mesma e, como consciéncia empirica, aborda o itinerd- Aaldgico. Para indicar aos outros o caminho do saber ab- clso reencontré-lo em si mesmo. “Por isso, era preciso individuo universal, 0 espirito consciente de si, em seu fortrragao.”#® O que para ele é reminiscéncia e interiori- # para os outros a via de sua ascensao. Mas essa mesma 2.4. CONSCIENCIA INDIVIDUAL E CONSCIENCIA UNIVERSAL A Fenomenologia aparece-nos agora com a amplitude da tarefil a qual se.propée e com as dificuldades talvez intransponiveis que tal tarefa apresenta. Trata-se de levar a consciéncia individual a tomat consciéncia do espirito de seu tempo - ou ainda uma vez, como di Hegel, de sua substancia, de sua natureza inorganica - e, ao mesmo tempo e por isso mesmo, a se elevar a um saber absoluto que preten: de superar todo o desenvolvimento temporal, transpor o proprio tem: po. “E por isso que 0 espirito se manifesta necessariamente no temp@) enquanto nao apreender seu puro conceito, isto é, enquanto nao eli minar o tempo”.4° Nao ha af uma espécie de contradigao? Como pod a consciéncia transpor tal incessante apelo a se transcender que lhe € essencial, coincidir absolutamente com a sua verdade enquanto essa verdade se torna a certeza de si mesma - a verdade e a vida ~ e, ao) mesmo tempo, ser a consciéncia de uma certa época da histéria do espirito? Sera preciso pensar que essa época é precisamente o fim di tempos e que Hegel acreditou ingenuamente que com seu sistema a historia terminava? Disso, foi freqlientemente acusado; mas, essa acusa¢do nos parece, em certo sentido, injusta. A dificuldade do tl timo capitulo da Fenomenologia - sobre o saber absoluto - nao € atinente apenas & terminologia e & exposicao hegelianas, mas a pré- pria natureza do problema: transpor toda transcendéncia e contudo conservar a vida do espfrito, isto supde uma relagao dialética entre o temporal e o supratemporal que nao resulta facilmente pensavel. Mas nao queremos aqui abordar precisamente esse’ problema; 0 que nos ocupa neste momento € menos o porvir, que no saber absoluto ain- da aparece & consciéncia, do que, 0 passado por ela utilizado em seu desenvolvimento. Esse passado, ao nao coincidir senao parcialmen- te com a histéria do mundo, nao sendo uma filosofia da histéria pro- priamente dita, mas a reminiscéncia dessa historia em uma conscién- cia individual que se eleva ao saber, perguntamo-nos em que medida ele 6 determinado arbitrariamente ou em que medida apresenta uma necessidade. Talvez esse problema do passado do saber absoluto nao Seja to diferente do problema de seu porvir. Ainda ai, a solugao filo pode ser senao dialética. Sempre se trata de uma consciéncia ss ividual que em ‘i retine os dois extremos da consciéncia univer- fia do direito, ed. cit., p. 31. (35), (35), ~ “O individuo”, escreve Hegel na pagina anterior, “tem o ‘exiir que a ciéncia Ihe conceda pelo menos a escada para o con- & ponto culminante, e que o indique dentro dele mesmo.”

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