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Disciplina: Metodologia do Ensino de Filosofia I

Professor: Dr. Paulo Henrique Fernandes


Aluno: Paulo Fernando Silva Amaral No USP: 9340232
Período: noturno

1- Pesquisa etnográfica sobre a comunidade e a escola

A escola e suas propriedades

1. Aspectos da escola

Realizamos o estágio de observação ao longo de todo o semestre (do início de Abril ao

final de Junho) na Escola Estadual Caetano de Campos, sob orientação da professora de

filosofia contratada, cuja atuação na escola possui mais de dez anos, conforme a mesma nos

informou1. Realizar um estágio dessa amplitude temporal foi importante por nos dar uma

dimensão da evolução do percurso escolar por parte dos alunos e das dificuldades recorrentes

encontradas pelos professores. Buscamos nesse relatório trazer alguns desses aspectos à luz de

algum dos autores estudados ao longo do semestre na disciplina.

A escola E.E. Caetano de Campos foi fundada em 1846, incialmente em um prédio

junto à Catedral da Sé, mudando-se para a Praça da República em 1894 e, em seguida, em

1978, foi dividida em duas unidades, a da Praça Roosevelt, e da Aclimação, na rua Pires da

Mota. Ela não, é de fato, uma má escola. Localizada no coração do bairro da Aclimação, no

antigo prédio da faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de São Paulo, a Escola

Estadual Caetano de Campos conta com aproximadamente 1.700 alunos (censo de 2013), uma

moderna sala de equipamentos para uso interativo (tablets adquiridos recentemente), além de

um projetor em funcionamento em quase todas as salas (pelo menos nas salas em que

1
Iremos omitir os nomes dos professores e funcionários entrevistados. A maior parte das informações aqui
relatadas advém de entrevistas, conversas informais na sala dos professores ou nos próprios corredores.
1
estivemos, todas do ensino médio). Também conta com uma sala de informática com diversos

computadores em bom estado e uma biblioteca com livros em bom estado e amplamente

acessível, pelo que pudemos constatar. Por outro lado, pudemos constatar, em conversa com

os próprios alunos, que o laboratório segue fechado há alguns anos (senão décadas), o teatro

foi transferido para uso exclusivo da Osesp, muito embora se localize na escola mesmo, o

museu, que conta a história da escola, com fotos e outros arquivos, nunca foi aberto no

período em que estivemos por lá, e o galpão, que antes abrigava a feira de ciências e outas

apresentações, há muito não é aberto. Os relatos de professores e alunos apenas confirmam o

que já havia sido denunciado em 20152.

Porém, devemos admitir que esses dados só foram por nós levantados a partir da

experiência do primeiro dia de estágio. Logo na porta de entrada, deparamo-nos com diversos

cartazes com os seguintes dizeres: “agressão a funcionários e professores da rede de ensino é

crime. Detenção de...”. Obviamente, se um cartaz desse tipo é afixado logo na entrada é por

se tratar de um ambiente de grande hostilidade entre pais e professores e entre alunos e

professores. Quase em seguida a isso, uma mãe foi buscar a sua filha mais cedo, que saiu para

ir ao médico. No entanto, ambas saíram sem assinar o termo de aviso da saída mais cedo, ao

que a diretora foi até o portão para chama-las. Nesse momento, instalou-se um princípio

bastante forte de confusão, com palavras fortes de ambos os lados, perpassados por muita

agressividade de parte a parte, o que, para nós, mostrou os fundamentos básicos dos

relacionamentos escolar.

A escola está localizada em um bairro municiado com diversas facilidades e

equipamentos culturais, como por exemplo praças ao redor e o Parque da Aclimação, a menos

de um quilometro, que conta com a Biblioteca Municipal Raul Bopp, o Centro Cultural

Vergueiro (CCSP) a cerca de um quilômetro, cuja biblioteca é ampla e muito bem instalada,
2
“Escola tradicional de SP tem museu e laboratório sem uso e teatro trancado” (IG, 03 de Abril de 2015.
Disponível em: https://ieccmemorias.wordpress.com/2015/04/05/cristiane-capuchinho-descobre-o-horror/ .
Acesso em 21 de junho de 2022).
2
contando também com um ótimo espaço de estudos, além de teatro, cinema, atividades

educacionais etc. Além disso, o bairro está localizado ao lado da Liberdade e Paraíso, que

contam diversas faculdades.

Quanto ao caráter socioeconômico da escola, não se pode falar de extrema pobreza,

pelo menos não segundo os dados do CEM (Centro de Estudos da Metrópole). Ao contrário,

pelo fato de a escola se localizar em um bairro de maior poder aquisitivo, a renda domiciliar

per capta da vizinhança, por exemplo, aparece bem maior do que da metrópole (R$ 2850,38

contra R$ 1036,01). Nível este que se repete nos outros indicadores, como por exemplo a

baixa taxa de pobreza3. Apesar disso, soubemos, através dos relatos dos professores, que a

maioria dos alunos habitam as pensões da região do Glicério e da Liberdade, bairros

adjacentes, o que mostra o lado menos explicito desses indicadores. Um caso bastante

chamativos relativo aos números não mostrados nos censos oficiais foi de uma menina recém-

matriculada no terceiro do período noturno ano que, no último dia de inscrição para o pedido

de isenção do Enem (29 de abril de 2022), demostrou inúmeras impedimentos para não o

fazê-lo, omitindo mesmo o nome dos pais e alegando que não sabia o endereço de sua casa,

questão essa oriunda, como viemos a saber mais tarde, do fato de ela ser órfã e estar em

abrigos para adolescentes. Fato similar a esse se repetiu quando pudemos conversar com um

aluno da mesma sala da menina citada, onde ele nos contava que trabalha de segunda a

sábado, sendo o domingo de folga, mas que não tinha nenhuma conexão com a internet em

casa, tendo que ir a parques ou bibliotecas para poder acessar. Esse foi um do impeditivos

para que ele não conseguisse estudar mais durante o seu último dia de folga.

Cabe notar, também, que a escola não possui um coordenador pedagógico há mais de

dois anos, o que dificultou bastante uma conversa com alguém mais próximo dos problemas

cotidianos da escola, uma vez que não foi possível estabelecer contato com a diretora. Nesse

3
Para um mais detalhamento da situação socioeconômica da escola e do seu entorno, em comparação com a
região metropolitana, consultar o site do CEM em < http://200.144.244.241:3002/geolocation >.
3
sentido, a justificativa que nos foi dada por diversos professores para uma tal situação é

basicamente a seguinte: não compensa financeiramente o esforço e trabalho de se ocupar o

cargo de coordenador pedagógico, pois o mesmo se dedica praticamente em tempo integral

com pouquíssima variação salarial. Como se sabe, as atribuições de um coordenador passam

não apenas pelos problemas estritamente escolares, mas se espraiam também para a o campo

extraescolar de modo geral (família, trabalho, amigos etc.). Essa justificativa nos chocou pelo

seu caráter realista e nos perguntamos como outras escolas resolveriam esse impasse.

Tivemos a impressão que na falta de um coordenador, muitos problemas respingam nos

próprios professores, cujo tempo de trabalho já os respalda para muitas situações

problemáticas. Mas, obviamente, que isso significa uma carga extra de ocupação não

contabilizada pelos salários.

Gostaríamos de salientar, também, que esta foi uma das escolas mais presentes no

movimento de ocupação das escolas, tendo sido, ao lado da outra Caetano de Campos (Praça

Roosevelt), figura de destaque pela forte mobilização dos alunos e longo tempo de

permanência em estado de ocupação4. Buscamos investigar, com base nisso, o papel que o

centro acadêmico desempenha na escola. Era um centro acadêmico recém-eleito, cuja disputa,

pelo que soubemos, deu-se sob o calor de plateias numerosas e intenso debate. Em conversa

com alguns de seus integrantes, soubemos que eles estavam planejando montar grupos de

estudo para o vestibular, cuja ideia vinha sendo fortemente pela professora de filosofia com a

qual fiz estágio, sem que essa, no entanto, quisesse “mostrar” a eles como se deveria criar um

grupo, quais os tipos de leitura mais produtivos etc. Apesar disso, dos alunos membros que

entrevistamos, nada foi dito sobre a mudança curricular em curso pela governo de estado de

São Paulo e, quando perguntei sobre o “problema” das escolas que deveriam se tornar integral

4
“Ocupação em escola tradicional de SP tem guardião, mascote e 'toboágua'”. (G1, 02 dez. 2015. Disponível em:
https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/12/ocupacao-em-escola-tradicional-de-sp-tem-guardiao-mascote-e-
toboagua.html . Acesso em 20 de junho de 2022.)
4
sem que houvesse capacidade física para tanto, disseram-me que “era melhor esperar para ver

o que vai rolar”, antes de mobilizarem alguma coisa.

Nessa linha, em conversa com outros professores remanescentes daquele período de

ocupação das escolas, sobretudo com um experiente professor de matemática, muito se falou

de mudança de mentalidade dos alunos daquela geração 2015 para essa 2022. Segundo eles,

há pouquíssima mobilização hoje em dia e, na maior parte das vezes, são os próprios

professores que buscam despertar protestos em favor de uma causa (como foi o caso da

tentativa de fechamento do período noturno, contra a qual a professora de filosofia escreveu

textos, protestou, organizou abaixo-assinados para os alunos assinares, entre outros). Fica

assim a instigante questão de como, em tão pouco tempo, uma forte capacidade de

mobilização é perdida, ou melhor, não se é transmitida de modo tão natural como se pensa, e

isso em um contexto ainda nocivo para os próprios estudantes do que fora naquela época da

pretensa reforma do governo Alckmin.

A professora

2 - entrevistem 2 funcionários que não façam parte da estrutura pedagógica da escola

Pudemos conversar, em tom bastante informal, com dois funcionários da escola,


tratando inclusive da opinião deles sobre a filosofia em geral e o seu ensino. Ambos
trabalham na portaria da escola, registrando/controlando entrada e saída dos alunos, pais e
funcionários. Um do período da manhã e outro do período noturno.

O funcionário da manhã é um senhor de 60 anos, conhecedor profundo de filosofia e


outras disciplinas. Formado em geografia e ciência política, morou 10 anos na Alemanha,
frequentando cursos de filosofia e tendo contato com pesquisadores de lá. Foi uma grande
surpresa vê-lo conversar apaixonadamente com dois alunos do 9º ano sobre a importância da
filosofia, alguns autores que interessavam,9 também surpreendentemente, aos alunos, como
Max Stirner e Fichte. Em nossa conversa, o funcionário, um militante anarquista, mostrou-se
um claro defensor da filosofia, mas estritamente contra os moldes em que ela se dá nas
escolas, segundo ele, “sempre massificada e, por isso mesmo, sempre de forma coercitiva”,

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sem deixar que “conhecimento livre e aberto do aluno pudesse se expressar”. Essa posição
nos chamou muito a atenção, pois, a nosso ver, essa era, sob certo aspecto, a forma com que a
professora acabava por dar as suas aulas (o que veremos a seguir, acerca do problema da
marginalidade do ensino de filosofia) – não estamos seguros de que essa era a mesma posição
da professora, mas as atuais circunstâncias, de toda uma geração profunda e negativamente
marcada pela experiência pandêmica, moldaram o curso sob esse aspecto defendido pelo
funcionário, o que ele, de sua parte, tampouco soubera.

Descobrimos, também, que ele estava ali para cumprir pena alternativa, pois fora preso
por tráfico de pedras preciosas. Diante da sua posição política, a escola funcionava para ele
como um espaço de constrição e imposição aos alunos, mas ao mesmo tempo lhe dava a
possibilidade de entrar em contato com os alunos, ensinar-lhes “fora da sala de aula”, nos
corredores, despertar-lhes a paixão pela filosofia e pelo debate filosófico, o que vimos ocorrer
em algumas ocasiões. Quando lhe perguntei se eram muitos os alunos com esse grande
interesse e bagagem filosófica, ele me respondeu “todos eles são interessados e todos têm uma
imensa bagagem, basta que não se lhes aprisione”.

Soubemos também que, desde o início de seu trabalho ali (nesse ano) o mesmo
apresentara dois projetos de ensino aos professores, sendo ambos muito elogiados. Os
projetos consistiam em atividades extraturno de ensino de sociologia e filosofia e na leitura,
em grupo, de livros fundamentais da filosofia política, com abertura à discussão com alunos e
outros professores, tudo isso fazendo uso do acervo presente na biblioteca.

Por outro lado, o segundo funcionário, do período noturno, também tinha uma
formação superior em letras e, pelo que entendemos, estava ali trabalhando como
“complemento de renda” (não conseguimos descobrir qual era a sua ocupação principal). Sua
visão acerca da escola e dos alunos era bem diferente, pois para ele “os alunos aqui não
querem nada com nada, e por isso eu não quero dar aulas para eles. Eu dei aula por 2 anos e
abandonei por estresse. Isso não é vida”. Tal visão foi confirmada por uma atitude, a nosso
ver, bastante severa com os alunos, deixando-os esperar pela segunda aula por conta de
atrasos de menos de cinco minutos. Quando contestado, o funcionário apenas dizia, “essa são
as regras da escola”.

No entanto, ele era um grande leitor de Fiódor Dostoiévski, cuja obra, segundo ele, era
a filosofia expressa em literatura. Abordamos, em diversas conversas, as aproximações com
Nietzsche e Schopenhauer, mas não pude perceber qual era, exatamente, a sua opinião sobre o
ensino de filosofia. A nosso ver, esse segundo funcionário se mostrava bastante cético a
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instituição escolar em geral e, sobretudo, com a possibilidade de ensino de alguma coisa. Por
diversas vezes, tivemos a impressão de que a sua ocupação ali era uma simples renda a ser
merecida ao final do mês, como um fardo a cumprir. Paradoxalmente, o outro funcionário é
quem cumpria a pena alternativa e carregava, por assim dizer, o fardo de estar na escola.

3- entrevistem 2 alunos (perguntem sobre o que eles pensam da filosofia e das aulas);

Tivemos a oportunidade de entrevistar um aluno do período noturno, cuja dedicação e

interesse pela filosofia saltava aos olhos. Trabalhando de segunda à sábado, ele pouco tempo

tinha para estudar (inclusive para fazer cursinho), mas sempre se mostrou muito dedicado e

atento nas aulas. Realizava perguntas interessantes ao final e nos revelou que gostaria de

prestar vestibular para Direito ou para Letras, donde, portanto, o seu interesse na filosofia. O

aluno demonstrava igualmente grande bagagem teórica em literatura, sempre dialogando com

os temas da filosofia com obras literária. Conversamos, por exemplo, sobre Camus e algumas

perspectivas do existencialismo. O aluno sempre abordava a professora ao final das aulas para

dialogar ou perguntar alguma coisa.

Contudo, essa foi uma exceção à regra, pois o tom médio das respostas que obtivemos

dos alunos a respeito da filosofia foi sempre negativo. A grande maioria deles se mostrou

muito avesso à leitura e à escrita de modo geral. Uma cena exemplar dessa posição nos foi

dada quando, em uma aula do período noturno, enquanto passávamos o texto da aula em um

retroprojetor ao fundo da sala, um aluno, sentado ao meu lado, repetia as seguintes frases:

“essa professora fala demais, ela só fala, olha lá, não para de falar”. Detalhe que o aluno em

questão não tirou os fones de ouvido nenhuma vez e tampouco saiu do celular. Na verdade,

em todas as aulas por nós presenciadas ele permanecia com fones de ouvido e no aparelho

celular. A frase repetida à exaustão também no final da aula foi muito marcante pois

escancarava o abismo que separava a professora, a escola e os alunos. Após o final da aula
7
perguntamos ao aluno por que ele achava aquilo, mas não soube responder. Disse somente

que “ela fala demais” e que “não tenho paciência para aguentar tanto tempo”.

Uma maior aceitação foi observada nas disciplinas de Projeto de Vida, mas ali não se

trabalhava temas específicos de filosofia, apenas os tocava muito superficialmente. De modo

geral, portanto, as entrevistas e conversas que tivemos com os alunos mostraram uma

baixíssima valoração da filosofia e do seu conteúdo enquanto disciplina.

Mas gostaríamos de ir além disso, pois cremos que relato acima, os comentários do

aluno sobre o “falar demais” da professora devem ser compreendidos à luz da constatação de

um fato bastante paradoxal por nós presenciado:

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