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Alfabetização científica

 Alfabetização
 Alfabetização científica:
uma possibilidade para a inclusão social *

 Attico Chassot
Chassot
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós -Graduação em Educação

 Há um continuado desafio: fazermos a migração do ternacional dos serviços da educação como uma mer-
esoterismo ao exoterismo. cadoria qualquer. Parece não existir outro bem be m
comerciável que segure um consumidor cativo por
A procura
procura de um cenário:
cenário: a escola
cola quatro ou mais anos, como o estudante que compra
ensino de uma escola. Também,
Também, não preciso destacar
Antes de apresentar o central deste texto – a al- as fantásticas modificações no mundo de hoje e o
 fabetização científica  –, parece oportuno, ainda que quanto elas atingem – e uso esse verbo na sua pleni-
de uma maneira panorâmica, olhar a escola – na tude de significados – a educação, ou, mais especifi-
acepção de instituição que faz ensino formal, em qual- camente, as salas de aula. Não temos dúvidas do quan-
quer nível de escolarização – nesses tempos de glo- to a globalização confere novas realidades à educação.
educaçã o.
balização. Não vou tecer, aqui e agora, comentários Talvez, para uma facilitação, pudéssemos dirigir nos-
sobre os apossamentos da Organização Mundial do so olhar para duas direções. Primeira, o quanto são
Comércio na fatia educação para dirigir sua voraci- diferentes as múltiplas entradas do mundo exterior
dade por lucros,1 favorecendo a comercialização in- na sala de aula; e a outra direção, o quanto essa sala
de aula se exterioriza, atualmente, de uma maneira
diferenciada.
* Sou muito grato aos árbitros anônimos da  Revista Brasi- Sobre a primeira das situações não precisamos
leira de Educação pelos circunstanciados pareceres e pelas valio- fazer muitas ilustrações. Comparem, por exemplo, o
sas sugestões. Procurei incorporar a maior parte delas a este texto.
Evidentemente houve limitações de minha parte e o não atendi-
mento de algumas das propostas deve ser atribuído a elas. III Cumbre Iberoamericana de Rectores de Universidades Públi-
1
Ver a Carta de Porto Alegre, “Llamamiento contra la trans- cas, 25 a 27 de abril de 2002. Publicado na Revista Brasileira de
formación de la educación en mercancía”, produzida durante a Educação nº 21, set./dez. 2002, seção Documentos, p. 157-158.

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quanto eram enclausuradas as escolas de nossos avós tos científicos. Não se escondia o quanto a transmis-
às invasões externas, em relação às nossas salas de são (massiva) de conteúdos era o que importava. Um
aula hoje, expostas às interferências do mundo exter- dos índices de eficiência de um professor – ou de um
no. A escola, então, era referência na comunidade pelo transmissor de conteúdos – era a quantidade de pági-
conhecimento que detinha. Quanto à segunda, consi- nas repassadas aos estudantes – os receptores. Era pre-
deremos apenas a parcela de informações que nossos ciso que os alunos se tornassem familiarizados (aqui,
alunos e alunas trazem hoje à escola. Aqui temos que familiarizar poderia até significar simplesmente sa-
reconhecer que eles, não raro, superam as professo- ber de cor) com as teorias, com os conceitos e com os
ras e os professores nas possibilidades de acesso às processos científicos. Um estudante competente era
fontes de informações. Há situações nas quais temos aquele que sabia, isto é, que era depositário de co-
docentes desplugados ou sem televisão, que ensinam nhecimentos. Talvez mais de um dos leitores deste
a alunos que surfam na internet ou estão conectados a texto poderá recordar quantos conhecimentos inú-
redes de TV a cabo, perdendo a escola (e o professor) teis amealhou – especialmente quando foram feitas
o papel de centro de referência do saber. A proletari- as primeiras iniciações na área das ciências – que há
zação dos profissionais da educação os faz excluídos muito, afortunadamente, os deletou. Quantas classifi-
dos meios que transformam o planeta, onde a quanti- cações botânicas, quantas famílias zoológicas cujos
dade e a velocidade de informações o fazem parecer nomes ainda perambulam em nossas memórias como
cada vez menor. Esse é o lado trágico em não poucas cadáveres insepultos, quantas configurações eletrô-
das contemplações da escola hoje (Chassot, 1998b). nicas de elementos químicos, quantas fórmulas de fí-
Assim, parece que se pode afirmar que a globali- sica sabidas por um tempo – até o dia de uma prova –
zação determinou, em tempos que nos são muito pró- e depois desejadamente esquecidas.
ximos, uma inversão no fluxo do conhecimento. Se Antes de mostrar salutares modificações nessa
antes o sentido era da escola para a comunidade, hoje tendência, permito-me chamar a atenção para o sujei-
é o mundo exterior que invade a escola. Assim, a es- to da ação verbal antes descrita. Eram os professores
cola pode não ter mudado; entretanto, pode-se afir- (sujeitos) que faziam com que os estudantes (aqui vis-
mar que ela foi mudada. E talvez não diríamos isso tos como passivos à ação do sujeito) adquirissem es-
há dez anos. ses conhecimentos.
Não há, evidentemente, a necessidade (nem a Quando se faz essas considerações, não há como
possibilidade) de fazermos uma reconversão. Toda- não evocar, mais uma vez, as concepções de uma edu-
via, é permitido reivindicar para a escola um papel cação bancária, que Paulo Freire denunciava, com
mais atuante na disseminação do conhecimento. So- veemência, já em tempos anteriores aos referidos.
nhadoramente, podemos pensar a escola sendo pólo Também a ele podemos creditar muitas das alterações
de disseminação de informações privilegiadas. nas tendências referidas.
Hoje não se pode mais conceber propostas para
A ciência como um saber escolar um ensino de ciências sem incluir nos currículos com-
ponentes que estejam orientados na busca de aspec-
Agora, posto esse preâmbulo, para não incorrer tos sociais e pessoais dos estudantes. Há ainda os que
em generalizações indevidas restrinjamos as obser- resistem a isso, especialmente quando se ascende aos
vações ao ensino de ciências. No século passado, nos diferentes níveis de ensino. Todavia, há uma adesão
anos de 1980, e talvez sem exagero se poderia dizer cada vez maior às novas perspectivas.
até o começo dos anos de 1990, víamos um ensino Muito provavelmente, um dos temas mais polê-
centrado quase exclusivamente na necessidade de fa- micos quando se discute formação de professores de
zer com que os estudantes adquirissem conhecimen- ciências é o quanto se precisa procurar uma ciência

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da escola (= o saber escolar; essa ciência da escola do grande público, em particular os que são apresen-
não é necessariamente uma produção exclusiva para tados com imprecisão pelos meios de comunicação à
a escola e/ou na escola, mas, como ensina Lopes opinião pública (Puigcerver & Sans, 2002). Essas são
(1999), envolve um processo de reelaboração de sa- propostas que vêem a alfabetização científica como
beres de outros contextos sociais visando o atendi- uma possibilidade para fazer correções em ensinamen-
mento das finalidades sociais da escolarização), que tos distorcidos. Acredito que se possa pensar mais
é significativamente diferente daquela ciência da uni- amplamente nas possibilidades de fazer com que alu-
versidade (= saber acadêmico). É usual defender – nos e alunas, ao entenderem a ciência, possam com-
até pela imensa dificuldade que existe de se fazer preender melhor as manifestações do universo. Aqui
transposição (aqui transposição não é a palavra mais se defende essa postura mais ampla, mesmo que se re-
adequada, mas anuncia o que seria desejado) de con- conheça válida a outra tendência, de fazer correções
teúdos do ensino superior para os ensinos médio e em ensinamentos que são apresentados distorcidos.
fundamental – que o conhecimento científico é uni- Quando retomo e amplio os comentários acerca
versal. Aqui universal parece ser, também, a estrutu- da alfabetização científica que estão em outro livro
ra verticalizada dos níveis de ensino. (Chassot, 2000), trago, mais uma vez, uma descrição
de ciência que, mesmo que possa parecer reducionis-
As necessidades de alfabetização científica ta, serve para os propósitos das discussões que se quer
fazer aqui. A ciência pode ser considerada como uma
A alfabetização científica  pode ser considerada linguagem construída pelos homens e pelas mulheres
como uma das dimensões para potencializar alterna-  para explicar o nosso mundo natural. Compreender-
tivas que privilegiam uma educação mais comprome- mos essa linguagem (da ciência) como entendemos
tida. É recomendável enfatizar que essa deve ser uma algo escrito numa língua que conhecemos (por exem-
preocupação muito significativa no ensino fundamen- plo, quando se entende um texto escrito em portu-
tal, mesmo que se advogue a necessidade de atenções guês) é podermos compreender a linguagem na qual
quase idênticas também para o ensino médio. Sonha- está (sendo) escrita a natureza. Também é verdade
doramente, ampliaria a proposta para incluir também, que nossas dificuldades diante de um texto em uma
mesmo que isso possa causar arrepio em alguns, o en- língua que não dominamos podem ser comparadas
sino superior. Gostaria de ver essa inclusão privilegia- com as incompreensões para explicar muitos dos fe-
da nas discussões que este texto possa desencadear. nômenos que ocorrem na natureza. Por exemplo, é
Mesmo que adiante eu discuta o que é  alfabeti- provável que alguns dos leitores deste texto não sai-
 zação científica , permito-me antecipar que defendo, bam distinguir se uma página de um livro ou de uma
como depois amplio, que a ciência seja uma lingua- revista está escrito em sueco ou em norueguês, assim
gem; assim, ser alfabetizado cientificamente é saber como deve haver nórdicos que talvez não reconhe-
ler a linguagem em que está escrita a natureza. É um çam a diferença entre um texto em português e um
analfabeto científico aquele incapaz de uma leitura em espanhol. Essa é a analogia que busco quando falo
do universo. na ciência como uma linguagem.
Atualmente, a alfabetização científica está colo- Entender a ciência nos facilita, também, contri-
cada como uma linha emergente na didática das ciên- buir para controlar e prever as transformações que
cias, que comporta um conhecimento dos fazeres co- ocorrem na natureza. Assim, teremos condições de
tidianos da ciência, da linguagem científica e da fazer com que essas transformações sejam propostas,
decodificação das crenças aderidas a ela (Aguilar, para que conduzam a uma melhor qualidade de vida.
1999). Há aqueles que advogam que se deva procurar Isto é, a intenção é colaborar para que essas transfor-
especialmente conhecimentos que estão no dia-a-dia mações que envolvem o nosso cotidiano sejam

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conduzidas para que tenhamos melhores condições gens, códigos e suas tecnologias (língua portuguesa,
de vida. Isso é muito significativo. Aqueles que se língua estrangeira moderna, educação física, artes e
dedicam à educação ambiental têm significativos es- informática), ciências da natureza, matemática e suas
tudos nessa área. tecnologias (biologia, física, química e matemática)
Dentre as muitas ciências, a química, por exem- e ciências humanas e suas tecnologias (história, geo-
plo, é aquela que estuda como as substâncias se trans- grafia, filosofia, antropologia & política e sociologia).
formam e são transformadas em outras substâncias. Essa divisão – numa proposta oficial – tem como base
Assim, ao definirmos os objetos de cada uma das ciên- reunir em uma mesma área aqueles conhecimentos
cias que conhecemos, como a física, a biologia, a geo- que compartilham objetos de estudo e, portanto, que
logia etc., nos damos conta das muitas interações e, mais facilmente se comunicam (MEC & SMTEC,
particularmente, das intersecções entre esses objetos. 1999), criando condições para uma prática escolar de
Temos nesse conjunto as ciências naturais. Aqui ain- interdisciplinaridade, dentro de uma perspectiva
da poderíamos incluir especializações de alguns cam- interdisciplinar e contextualizada em oposição à frag-
pos muito específicos como a astrofísica, a geoquí- mentação e descontextualização do ensino disciplinar.
mica, a bioquímica. Se olharmos, por exemplo, as É fácil entender o quanto as determinações ofi-
chamadas ciências humanas – a sociologia, a econo- ciais buscam definir, por exemplo, o ensino de quími-
mia, a educação – e considerarmos as relações delas ca como parte da área das ciências da natureza, mate-
com as chamadas ciências naturais e a elas adicionar- mática e suas tecnologias. Sou quase levado a inferir
mos outros ramos das ciências, teremos a ciência, cada que há muitos envolvidos com esse ensino que não se
vez mais marcada por múltiplas interconexões. dão conta de onde e como estão localizadas a física ou
Também se entende o quanto uma discussão, a química nas propostas curriculares. É verdade que o
aparentemente simples, sobre se devemos dizer a ciên- período de influência dessas últimas modificações é
cia ou as ciências, pode ser mais complexa do que relativamente recente. Mas já há estudos, por exem-
imaginamos e se presta a muitas discussões episte- plo, provenientes da comunidade envolvida com a edu-
mológicas, que não serão objeto deste texto. Granger cação química, que trazem questionamentos a esse qua-
(1994) tem um livro intitulado A ciência e as ciên- dro recente da educação brasileira.
cias. Acerca dessa discussão vale ler, entre outros, Assim, Rozana Abreu, na sua dissertação de
Chalmers (1994), Chrétien (1994) e Fourez (1995). mestrado, analisando particularmente os Parâmetros
Aliás, é preciso dizer o quanto a divisão em ciên- Curriculares Nacionais para o Ensino Médio na área
cias naturais e ciências humanas parece inadequada, das ciências da natureza, matemática e suas tecnolo-
pois a química, a física, a biologia e mesmo a mate- gias, mostra que a nova organização curricular pro-
mática são também ciências humanas, porque são posta pelos documentos oficiais dos Parâmetros  não
constructos estabelecidos pelos humanos. Lateralmen- favorece mudanças efetivas na promoção de um cur-
te ainda, vale referir também o quanto a divisão em rículo mais integrado, na medida em que seus pressu-
ciências hard  e ciências soft   é uma classificação no postos estão associados às relações sociais da socie-
mínimo enviesada e, muito provavelmente, de auto- dade contemporânea, principalmente ao mercado de
ria de um assim chamado cientista hard . trabalho e ao mundo produtivo (Abreu, 2002).
Ainda na busca de interconexões, em termos de Todavia, as diferentes concepções de Ciência nos
disciplinas escolares vale considerar a atual proposta convidam a adensar considerações acerca de uma pro-
curricular, chamada pela divulgação oficial de “novo posta de vermos a ciência como uma linguagem. No
ensino médio”. O currículo disciplinar é substituído segmento seguinte se ampliam discussões sobre alfa-
pelo currículo em áreas. A organização do conheci- betização científica. Em outro texto (Chassot, 2003,
mento escolar foi estabelecida em três áreas: lingua- no prelo) discuto como essa alfabetização científica

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 Alfabetização científica

ganha uma outra dimensão: o quanto com ela se pode do natural, há uma restrição epistemológica e fica-
fazer inclusão social. mos limitados ao entendimento deste nosso mundo
visível3 onde estamos inseridos, logo, do qual somos
Ciência como linguagem parte. Com isso não estamos excluindo ou desqualifi-
cando as ciências humanas, que facilitam nosso en-
Inicio aceitando críticas ao quanto a descrição tendimento social (e aqui incluo o político) ou emo-
da ciência como uma linguagem, que antes apresen- cional; elas podem estar incluídas no mundo dito
tei, possa ser considerada simplista. A seguir trago natural. Estão excluídas, sim, as manifestações ditas
algumas preocupações. Também por isso reapresento sobrenaturais.
criticamente outros textos que escrevi. Não ignoro que A elaboração dessa explicação do mundo natu-
há (in)consistências teóricas nas minhas buscas. Vejo- ral – diria que isso é fazer ciência, como elaboração
me privilegiado em poder socializá-las aqui. Lateral- de um conjunto de conhecimentos metodicamente ad-
mente, devo dizer que entendo que é para isso, tam- quirido – é descrever a natureza numa linguagem
bém, que publicamos nossos textos em revistas. dita científica. Propiciar o entendimento ou a leitura
Assim, considerar a ciência como “uma lingua- dessa linguagem é fazer alfabetização científica.
gem para facilitar nossa leitura do mundo natural” Há, todavia, uma outra dimensão em termos de
(Chassot, 1993, p. 37) e sabê-la como descrição do exigências: propiciar aos homens e mulheres uma al-
mundo natural ajuda a entendermos a nós mesmos e fabetização científica na perspectiva da inclusão so-
o ambiente que nos cerca. cial. Há uma continuada necessidade de fazermos com
Merece um comentário essa adjetivação de mun- que a ciência possa ser não apenas medianamente en-
do que foi feita. A ciência não tem preocupações com tendida por todos, mas, e principalmente, facilitadora
a descrição, e muito menos com a explicação do mun- do estar fazendo parte do mundo.
do sobrenatural ou do mundo espiritual. O mundo Sei o quanto estou laborando em (quase) utopias.
natural é aqui usado na acepção de nosso mundo or- Mas é por crer que essas mesmas utopias possam se
gânico e inorgânico, que forma o que chamamos de transmutar na realidade de fazermos educação. Diria
natureza . Japiassu e Marcondes a definem como mais, é quase apenas por isso. Mas agora deixemos
um pouco os sonhos. Há de se tentar convertê-los em
um mundo visível ou físico (formado pelos reinos mineral, realidades.
vegetal e animal) submetido às leis naturais, em oposição Trago, assim, a proposta teórica para adensar uma
às idéias, sentimentos, emoções etc. governadas pelas leis discussão. Essas são as minhas expectativas para a
morais e pelas leis políticas. (1990, p. 177) 2 frutificação do binômio escrita – leitura. Sei também
que posso estar sendo acusado de dicotômico, ao ape-
Esses autores enfatizam que a natureza, num sen-
tido teológico, deva ser considerada o mundo criado
 por Deus, em oposição à cultura no sentido daquilo  Restringi a descrição ao  mundo visível em oposição ao mun-
3

que é criado pelas mulheres e pelos homens, assim, do sobrenatural e também àquilo que se poderia chamar de mundo
produto de uma obra humana. intelectual (estudado pelas ciências humanas). A limitação de mun-
Quando nos referimos ao entendimento do mun- do visível não é suficientemente adequada, pois os estudos das ciên-
cias naturais incluem descrições no nível do mundo molecular, atô-
mico, subatômico e mesmo das radiações que são invisíveis; logo,
2
 A transcrição dessa definição não implica a aceitação da não estariam incluídos no assim chamado mundo visível. Talvez
idéia de existência de três reinos na natureza, que há muito já está uma melhor caracterização seria referir ao mundo material, em opo-
em desuso. sição ao mundo sobrenatural e ao mundo intelectual.

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lar para essa relação binomial. Aceito que não há uma bilidade de pensarmos a ciência como uma lingua-
separação nítida entre aquele que é o autor e aquele gem para entendermos o mundo natural. Por isso,
que é o leitor. Um e outro, nesse processo, interconver- quando discuto alfabetização científica , insisto na ne-
tem papéis. O leitor também passa a ser autor, refazen- cessidade de considerá-la como “o conjunto de co-
do com sua leitura um novo texto. Mesmo que refaça nhecimentos que facilitariam aos homens e mulheres
caminhadas, buscando outros embasamentos, tenho em fazer uma leitura do mundo onde vivem” (Chassot,
outros livros dois capítulos 4,5 acerca do tema, que 2000, p. 19). Assim, concordo com Woolgar (1991),
(des)constroem essa discussão. que, ao tentar abrir aquela caixa preta em que os cien-
Para fazer uma oposição ao presenteísmo (vincu- tistas – com sua linguagem hermética e esotérica -
lação exclusiva ao presente, sem enraizamento com o converteram a ciência, mostra que ela não descobre o
passado e sem perspectivas para o futuro) e ao mundo, mas o quanto é o mundo que a descobre. O
cientificismo (crença exagerada no poder da ciência e/  mundo é (existe) independente da ciência. Esta o tor-
ou atribuição à mesma de fazeres apenas benéficos),6 na inteligível, e a tecnologia, como aplicação da ciên-
ainda tão marcadamente presentes nos dias atuais, es- cia, modifica esse mundo. Por exemplo, a produção
pecialmente em nossas salas de aula, inclusive nas uni- de energia elétrica a partir de uma queda d’água ou
versidades, insisto na necessidade de considerar que do aproveitamento de ventos é o resultado de uma
essa linguagem é um constructo humano, portanto, aplicação de conhecimento acerca da natureza do
mutável e falível (Chassot, 1995, p. 198). Sempre pa- mundo natural. Isso transforma o mundo natural mas
rece oportuno ter presente as afirmações de Granger: não altera a sua essencialidade, por exemplo, em ter-
mos do princípio da conservação da energia.
A ciência é uma das mais extraordinárias criações do Amplio mais a importância ou as exigências de
homem, que lhe confere, ao mesmo tempo, poderes e satis- uma alfabetização científica.  Assim como se exige
fação intelectual, até pela estética que suas explicações lhe que os alfabetizados em língua materna sejam cida-
proporcionam. No entanto, ela não é lugar de certezas ab- dãs e cidadãos críticos, em oposição, por exemplo,
solutas e [...] nossos conhecimentos científicos são neces- àqueles que Bertolt Brecht 8 classifica como analfa-
sariamente parciais e relativos. (1994, p. 113) 7 betos políticos, seria desejável que os alfabetizados
cientificamente não apenas tivessem facilitada a lei-
É para essa concepção de ciência – um dos mais tura do mundo em que vivem, mas entendessem as
extraordinários feitos humanos, mas não-lugar de cer- necessidades de transformá-lo – e, preferencialmen-
tezas – que trago interrogações para ampliar a possi- te, transformá-lo em algo melhor. Tenho sido recor-
rente na defesa da exigência de com a ciência melho-
rarmos a vida no planeta, e não torná-la mais perigosa,
4
 Chassot (1993, p. 71-89): o Capítulo 5 – Do esoterismo ao como ocorre, às vezes, com maus usos de algumas
exoterismo, apresenta uma análise do hermetismo da linguagem tecnologias.
corrente no ensino (de química), usando alguns pressupostos de Parece que merece ser questionado, liminarmen-
um respeitado teórico da educação: Bernstein. te, se essa alfabetização científica  é algo próprio, ou
5
 Chassot (2000, p. 111-131): Capítulo 5 – Linguagem (quí- melhor, é de interesse apenas daqueles que estão dire-
mica) e poder na sala de aula , instrumentos para uma construção tamente ligados à ciência. Usualmente, conhecer a ciên-
mais crítica no fazer Educação. cia é assunto quase vedado àqueles que não pertencem
6
 Acerca de presenteísmo e cientificismo, ver Chassot (1998a, a essa esotérica comunidade científica. Já discuti em
1998b, 2000).
7
 A transcrição da primeira frase está ligeiramente modifi-
cada, sem alteração do sentido, pois parece haver um erro grama- 8
 Site da International Brecht Society: http://polyglot.Iss.wisc.edu/ 
tical (provavelmente de tradução) na edição brasileira. german/brecht/ 

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 Alfabetização científica

diversos textos o quanto há necessidade de nós, pro- Literária no Collège de France 12  pronunciada por
fessoras e professores de disciplinas escolares, espe- Roland Barthes no dia 7 de janeiro de 1977. Sem en-
cialmente aquelas da área de ciências, fazermos a mi- veredar na área da semiótica, busco em Barthes
gração do e soterismo  para o e xoterismo 9 (Chassot, (1996)13 uma ratificação, quando ele afirma, categó-
1993, p. 71; 1995, p. 161). Assim, a primeira explica- rico: “O objeto em que se inscreve o poder, desde
ção para a exclusão que decretamos a muitos é fazer- toda a história humana, é: a linguagem – ou, para ser
mos do nosso instrumental de leitura da natureza algo mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua”
hermético ou esotérico. Thuillier (1990, p. 87), ao
exemplificar o quanto se consegue ser hermético na
linguagem da ciência, apresenta esotéricas (e desne- (1996) que, na aula antes referida, diz que “a semiologia, que se
cessárias) definições do número um quase incompreen- pode definir canonicamente como a ciência dos signos, saiu da
síveis para os mais expertos algebristas. lingüística. [...] É esta desconstrução da lingüística que chamo,
Não desconheço, aqui, as razões históricas, mui- quanto a mim, de semiologia” (p. 30) .
tas vezes até de segurança, que fizeram a ciência usar 12
 O Collège de France – CdF – é um estabelecimento de
uma linguagem asséptica e hermética. Nunca ensino criado em 1540 pelo rei Francisco I, fora da universida-
desconsidero, como professor de química, minha de. Chamado sucessivamente de Colégio do Rei, Colégio das
ancestralidade nos alquimistas medievos. Discuto isso Três Línguas, Colégio Real, Colégio Nacional (durante a Revo-
mais extensamente em diferentes capítulos de  Edu- lução), Colégio Imperial (com Napoleão) e finalmente  Colégio
cação conSciência (Chassot, no prelo), quando falo de França (com a Restauração). Aberto a todos, gratuitamente,
de desafios curriculares para fazer possível um outro os cursos são ministrados pelos mais eminentes professores e
mundo e também quando discuto a alfabetização cien- conta com cerca de 50 cadeiras relativas a todas as disciplinas.
tífica fazendo inclusão social. Relato, por exemplo, o Os títulos das cadeiras são fontes de referência de domínios muito
trabalho com sementes que não são sementes 10 em amplos do conhecimento: matemática, física, química, biologia,
um curso de pedagogia. história, arqueologia, lingüística, orientalismo, filosofia, ciên-
Retomo a  problematizção da concepção da ciên- cias sociais. Duas cadeiras são reservadas a sábios estrangeiros
cia como uma linguagem. Proponho fazermos juntos al- que são convidados pelo Collège a oferecer cursos, em geral por
guns adensamentos teóricos nessa dimensão. Tomo como um período de um a dois meses. As cadeiras não são permanen-
referência a aula inaugural da cadeira de Semiologia11 tes. Assim, o CdF tem uma liberdade considerável nas suas ati-
vidades de ensino e de pesquisa, podendo adaptar-se aos pro-
gressos realizados nos diferentes domínios do conhecimento. Os
9
 As referências às expressões exoterismo e esoterismo usa- cursos são abertos a todos, sem inscrições prévias. Cada ano,
das aqui não têm correspondência com aquelas usadas pelo cerca de cinco mil ouvintes seguem os diferentes cursos. Dife-
epistemólogo Luwidg Fleck. rentemente, os laboratórios e centros de pesquisa são reservados
10
 Um dos trabalhos que tenho realizado na disciplina de aos pesquisadores. Hoje o CdF é considerado referência interna-
Metodologia de Ensino de Ciências está relacionado com semen- cional na construção do conhecimento.
tes caipiras versus  biopirataria. Material disponível no site:  A edição de A aula (Barthes, 1996) vem acompanhada de
13

www.humanas.unisinos.br/pastanet excelente posfácio (p. 49-89) de Leyla Perrone-Moisés, ex-aluna


11
 Ciência geral dos signos, segundo Ferdinand de Saussure, de Barthes, que foi quem traduziu o texto para a edição brasileira
que estuda todos os fenômenos culturais como se fossem sistemas que uso neste texto. A tradutora, ao analisar o conteúdo e as impli-
de signos, isto é, sistemas de significação. Em oposição à lingüís- cações da obra, faz observações acuradas sobre ela. O “Caderno
tica, que se restringe ao estudo dos signos lingüísticos, ou seja, da Mais” da Folha de São Paulo de 17 de novembro de 2002 traz
linguagem, a semiologia tem por objeto qualquer sistema de sig- como matéria de capa um dossiê sobre Barthes que inclui um alen-
nos (imagens, gestos, vestuários, ritos etc.); semiótica. É Barthes tado texto de Leyla Perrone-Moisés.

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 Attico Chassot 

(p. 12). Uma leitura (da história)14 da ciência quase obras que foram decisivas para novas concepções de
que poderia ser feita com essas mesmas palavras. En- ciência, como seu discutidíssimo livro Contra o mé-
contramos, nas sucessivas disputas de poder na histó- todo. Ele destaca que “a distinção entre Ciência e mito
ria da construção do conhecimento científico, isso que não é tão evidente” (Le Monde, 1989, p. 26). Então,
Barthes diz sobre a língua. mais uma vez, me parece claro por que Feyerabend,
 A aula prossegue afirmando: um dos críticos mais perspicazes, faz análises da ciên-
cia tão desestabilizadoras. Não é sem razão que ele é
A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. chamado em rodas mais fechadas de “terrorista epis-
Não vemos o poder que reside na língua, porque esquece- temológico”, tendo sido chamado por alguns físicos,
mos que toda língua é uma classificação, e que toda classi- mais recentemente, de “o pior inimigo da ciência”,
ficação é opressiva: ordo quer dizer, ao mesmo tempo, re- encabeçando uma lista em que são nomeados Karl
partição e cominação. (p. 12) 15 Popper, Imre Lakatos e Thomas Kuhn (Regner, 1996).
Prefiro estar ao lado de Feyerabend, e não de seus
Barthes falava, então, da língua francesa, e mos- críticos conservadores.
trava, por exemplo, as dificuldades impostas pelas exi- Quando se busca entender o porquê da contesta-
gências de ter que escolher sempre entre o masculino ção que cientistas, especialmente os (auto)denomina-
e o feminino, enquanto o neutro é proibido. Eu o vejo dos hard , fazem, por exemplo, àqueles que buscam
falando da ciência, ou melhor da linguagem científi- uma leitura da ciência em dimensões menos positi-
ca, que com seus códigos se faz língua, quando ele vistas, podemos entender o que Barthes diz da lin-
diz: guagem e ver também a ciência, ou seus autores
canônicos ou mais ortodoxos, exercendo dominação:
Assim, por sua própria estrutura, a língua implica em obrigando a dizer ou a fazer.
uma relação fatal de alienação. Falar, e com maior razão Há duas dimensões que demandam estudos e in-
discorrer, não é comunicar, como se repete com demasiada vestigações: a primeira, o quanto o conhecimento cien-
freqüência, é sujeitar. Toda a língua é uma reição generali- tífico é uma instância privilegiada de relações de po-
zada. (p. 13) der e esse conhecimento, como patrimônio mais amplo
da humanidade, deve ser socializado; a segunda, o
Mesmo quando  A aula  assume um tom aparen- quanto há cada vez mais exigências de que migremos
temente mais radical, é possível fazer associações com do esoterismo ao exoterismo, para que se ampliem as
a ciência quando Barthes diz: “a língua, como desem- possibilidades de acesso à ciência. Uma e outra des-
penho de toda a linguagem, não é nem reacionária, sas dimensões mereceram textos que já referi aqui.
nem progressista; ela é simplesmente fascista; pois o Outra vez trago Barthes falando da língua, con-
fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (p. siderando – para os propósitos deste texto – como se
14). Trago, como ratificação à minha adesão sua aula fosse acerca dos códigos da ciência:
barthesiana, Paul Feyerabend (1924-1994), autor de
[...] a língua entra a serviço de um poder. Nela, infalivel-
mente, duas rubricas se delineiam: a autoridade da asserção,
 Tenho na história da ciência uma referência muito espe-
14
o gregarismo da repetição. Por um lado, a língua é imedia-
cial para facilitação das discussões acerca da alfabetização cien- tamente assertiva: a negação, a dúvida, a possibilidade, a
tífica. suspensão de julgamento requerem operadores particulares
15
Cominação, ato de cominar: Ameaçar com pena ou casti- que são eles próprios retomados num jogo de máscaras
go no caso de infração ou falta de cumprimento de contrato ou de linguageiras. [...] Por outro lado, os signos de que a língua
preceito, ordem, mandato etc. (a nota é minha). é feita, os signos só existem na medida em que são reco-

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 Alfabetização científica

nhecidos, isto é, na medida em que se repetem; o signo é turas éticas e políticas, mergulhadas na procura de
seguidor, gregário; em cada signo dorme este monstro: nun- saberes populares e nas dimensões das etnociências –,
ca posso falar senão recolhendo aquilo que se arrasta na proposta que traz vantagens para uma alfabetização
língua. [...] Na língua, portanto a servidão e o poder se con- científica mais significativa, como também confere
fundem inelutavelmente (1996, p. 15). dimensões privilegiadas para a formação de profes-
soras e professores.
Pode-se ver, na releitura que faço de A aula, usan- Mesmo que também reconheçamos no desem-
do-a para a ciência, que há uma tentativa de rebeldia penho da ciência posturas que nem sempre são pro-
barthesiana contra os códigos da ciência, assim como gressistas, ou que até são nitidamente reacionárias, e
ele desentranhou a semiologia da lingüística (p. 30). muitas vezes, simplesmente fascistas no seu não im-
Todavia, não adiro ao quase consenso de que nossos  pedir de dizer, mas obrigar a dizer , usando as refe-
textos devam parecer herméticos e escritos apenas para rências de Barthes à língua e à linguagem, é preciso
uma auto-satisfação acadêmica. Há situações em que reconhecer que esse constructo que denominamos
parece ser possível dizer de alguns de nossos textos ciência é decisivo, ainda que não definitivo. Logo, a
acadêmicos aquilo que se diz de algumas obras de arte: ele não devemos nos submeter. Precisamos saber usá-
um outro artista não a identifica como arte; um outro lo. Isso me parece ser um indicador para uma alfabe-
cientista, da mesma área, não entende o texto. Nunca é tização científica.
demais recordar o aprendizado que as ciências huma- Assim, poderíamos pensar que alfabetização
nas tiveram com o caso Sokal.16 Há, com a ciência que científica signifique possibilidades de que a grande
se faz, um compromisso ético de ajudar aos homens e maioria da população disponha de conhecimentos
às mulheres na solução de importantes problemas (Del científicos e tecnológicos necessários para se desen-
Percio, 2000). Ao referir a necessidade de ajuda, pare- volver na vida diária, ajudar a resolver os problemas
ce evidente que não esteja propondo aqui uma postura e as necessidades de saúde e sobrevivência básica,
messiânica da Academia. A ciência, todavia, tem com- tomar consciência das complexas relações entre ciên-
promissos com a sociedade, pois é a sociedade a co- cia e sociedade (Furió et al., 2001). Parece válido con-
financiadora das pesquisa que se fazem na ciência. siderar a ciência como uma parte da cultura de nosso
Defendo o quanto há necessidade de nós, profes- tempo (Serres, 1991).
soras e professores de disciplinas científicas, fazermos Isso não significa uma adesão exclusiva à ciência
a migração do esoterismo para o exoterismo. Há aqui imposta pela Europa, a partir do século XV. Há, assim,
uma outra direção que pode iluminar nossas pesqui- uma continuada necessidade de revermos marcos que
sas: como fazer do saber acadêmico um saber escolar. usualmente definem o início da chamada ciência mo-
Tenho me envolvido também em como fazer do saber derna. Por exemplo, eu fui simplista e reducionista em
popular um saber escolar. Essa é uma discussão que  A Ciência através dos tempos (Chassot, 1994), quando
ainda não está suficientemente presente na Academia. refiro a revolução galilaica e a copernicana e encimo
Há nessa dimensão a busca de se investigar um um capítulo com um título no mínimo tendencioso: Sé-
ensino mais impregnado com posturas mais holísti- culo 16: nasce a ciência moderna, numa leitura que
cas – isto é, com um ensino de ciências que contem- desconhece o que se fez no mundo não-europeu. Rea-
ple aspectos históricos, dimensões ambientais, pos- bilito-me, um pouco, em outros textos (Chassot, 1999,
e particularmente Chassot, 2001).
Vale recordar que há 100 anos o químico francês
16
 Escrevi A farsa ou embuste Sokal (Chassot, 2000, p. 403- Marcelin Berthelot (1827-1907), um dos primeiros
420) como um exemplo do quanto as vaidades e querelas também grandes especialistas em síntese orgânica, com inves-
se fazem presentes na academia. tigações que alçaram a termoquímica a uma especia-

Revista Brasileira de Educação 97


 Attico Chassot 

lização muito importante, exageradamente profetiza- de eclesiástica e contra o dogmatismo presente na uni-
va, como senador da República e presidente da Aca- versidade. Como conseqüência, foi considerado um
demia de Ciências: pária na academia.
Nas aulas, em qualquer etapa da escolarização,
A Ciência possui doravante a única força moral que poucas vezes falamos em modelos prováveis, mesmo
pode fundamentar a dignidade da personalidade humana e que a maioria de nossas discussões nas ciências se
constituir as sociedades futuras. A Ciência domina tudo: só desenvolvam através de modelos. Nunca é demais
ela presta serviços definitivos. [...] Na verdade, tudo tem insistir que os modelos que usamos não são a realida-
origem no conhecimento da verdade e dos métodos cientí- de. São aproximações facilitadoras para entendermos
ficos pelos quais ele é adquirido e propagado: a política, a a realidade e que nos permitem algumas (limitadas)
arte, a vida moral dos homens, assim como sua indústria e generalizações. Talvez a marca da incerteza, hoje tão
sua vida prática. (apud Chrétien, 1994, p. 26) mais presente na ciência, devesse estar mais forte-
mente presente em nossas aulas. Retifiquemos as cer-
Vivia-se o auge de descobertas significativas, e tezas de Berthelot: a ciência não tem a verdade, mas
que, então, pareciam definitivas. Mesmo que possa pa- tem algumas verdades transitórias.
recer não crível, é preciso acentuar que não devemos Aliás, na educação brasileira, principalmente aque-
pensar a ciência como pronta, acabada, completamen- la do início do século XX, ao lado da influência do
te despojada, como uma nova e dogmática religião, com dogmatismo que herdamos pelas origens da escola e
o “deus saber” imperando no novo milênio. A marca da universidade, temos que acrescentar o positivismo
da ciência de nossos dias é a incerteza. É importante comtiano. O livro Cours de philosophie positive 17 foi
recordar Ilya Prigogine (1917- ), Prêmio Nobel de Quí- certamente a obra mais lida pela elite intelectual brasi-
mica de 1977, em uma afirmação categórica: “Só te-
nho uma certeza: as de minhas muitas incertezas” (Le
Monde, 1989, p. 59). Assim, é preciso que vejamos  Comte, na sua primeira lição do Curso de filosofia positi-
17

nessas incertezas a marca da pós-modernidade; uma va (Comte, 1973, p. 9-11), ensina que cada uma de nossas concep-
realidade, e não um estigma. Antigamente a ciência ções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa suces-
nos falava de leis eternas. Hoje, nos fala da história do sivamente por três estados históricos diferentes: o estado teológi-
universo ou da matéria e nos propõe sempre novos de- co, onde o espírito investiga a natureza íntima dos seres; o estado
safios que precisam ser investigados. Este é o universo metafísico, uma modificação geral do primeiro, onde os agentes
das probabilidades, e não das certezas. sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, concebidas
Ao referir as nossas não-certezas, vale destacar o como capazes de engendrar elas próprias todos os fenômenos ob-
quanto o dogmatismo é uma marca muito presente em servados, cuja explicação consiste em determinar para cada um
nossas salas de aula. Pode-se creditá-lo às origens da uma entidade correspondente; e enfim, o estado positivo, onde o
universidade e da escola. É preciso recordar que a uni- espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções
versidade (no mundo ocidental) e também as es- absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a
colas têm suas origens na Igreja e a ela permanece- conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se uni-
ram simbioticamente ligadas durante séculos. Assim camente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocí-
a escola – como sempre ocorreu com a Igreja – parecia nio e das observações, suas leis efetivas, a saber, suas relações
ser o locus da verdade. Vale lembrar um exemplo his- invariáveis de sucessão e similitude. A explicação dos fatos, re-
tórico de contestação: Paracelso (1493-1541) sabia o duzida então a seus termos reais, se resume de agora em diante à
segredo das minas, da medicina popular, da alquimia e ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e
da ciência dos clássicos, mas rejeitava o que era esta- alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada
belecido como verdade. Rebelou-se contra a autorida- vez mais a diminuir.

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 Alfabetização científica

leira, e nesta se incluem os militares que fizeram a Vale observamos que não podemos ver na ciên-
República. O positivismo comtiano, mesmo com ca- cia apenas a fada benfazeja que nos proporciona con-
racterísticas de um sistema filosófico fechado e inspi- forto no vestir e na habitação, nos enseja remédios
rado em resultados científicos, teve no Brasil uma sig- mais baratos e mais eficazes, ou alimentos mais sa-
nificativa influência nas escolas militares e foi legado borosos e mais nutritivos, ou ainda facilita nossas co-
durante a República para as escolas de engenharia, e municações. Ela pode ser – ou é – também uma bruxa
delas para os níveis anteriores à universidade. A ideo- malvada que programa grãos ou animais que são fon-
logia positivista comtiana funcionou como um inibidor tes alimentares da humanidade para se tornarem esté-
para a expansão do conhecimento, pois, entre outras reis a uma segunda reprodução. Essas duas figuras (a
afirmações, Comte dizia que “a ciência estava pronta, fada e a bruxa) muito provavelmente aparecerão quan-
acabada, pois seus fundamentos estavam consolidados”. do ensinamos ciências (Chassot, 2000).
E ainda: “Ciência, logo previsão, logo ação.” O positi- Acredito que tenha ampliado a possibilidade de
vismo garante a justificação do poder técnico e, mais respostas a questões como: O que é, por que e como
que isso, do poder dos tecnocratas. fazer a alfabetização científica? Sei que cada uma das
A força das idéias comtianas sobre a ciência pode muitas respostas a essas interrogações poderão ser ain-
ser vista nas suas idéias sobre a evolução. Tendo fale- da muito ampliadas. Agora fica, ainda, uma pergunta
cido dois anos antes da publicação, em 1857, da Ori- mais crucial: Para que(m) é útil a alfabetização cien-
gem das espécies , de Darwin, Comte não aceitava a tífica que fazemos?
teoria da evolução por julgá-la contrária aos fatos que
conhecia e, por isso assim escreveu, no Curso de filo- ATTICO CHASSOT, licenciado em química e doutor em edu-
sofia positiva (1973, p. 301): “Mas a fixidez essen- cação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é
cial das espécies garante-nos que essa série [a grande professor do Programa de Pós-Graduação em Educação na Univer-
série biológica] será sempre composta de termos niti- sidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), no Rio Grande do
damente distintos, separados por intervalos intrans- Sul. Trabalha na linha de pesquisa Currículo, cultura e sociedade,
poníveis”. Acredito que essa frase serve como um bom pesquisando a temática: Currículo, história da ciência e alfabetiza-
exemplo do chamado positivismo comtiano. ção científica. Entre suas publicações destacam-se:  A ciência atra-
Superar essas marcas de um jeito muito conti- vés dos tempos (Moderna, 2002) e  Alfabetização científica: ques-
nuado de pensar é uma tarefa nem sempre fácil. A tões e desafios para a educação (Editora Unijuí, 2001).  E-mail:
superação do dogmatismo parece ser uma das neces- achassot@portoweb.com.br
sidades do ensino das ciências.
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À guisa de epílogo
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Como fazer uma alfabetização científica? Parece área de ciências da natureza, matemática e suas tecnologias
que se fará uma alfabetização científica quando o ensi- nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.
no da ciência, em qualquer nível – e, ousadamente, in- Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Edu-
cluo o ensino superior, e ainda, não sem parecer auda- cação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
cioso, a pós-graduação –, contribuir para a compreensão
AGUILAR, T., (1999).  Al fa be ti za ci ón ci en tí fi ca pa ra la
de conhecimentos, procedimentos e valores que per-
ciudadanía. Madrid: Narcea.
mitam aos estudantes tomar decisões e perceber tanto
as muitas utilidades da ciência e suas aplicações na BARTHES, Roland, (1996). A aula. 7ª ed. São Paulo: Cultrix.

melhora da qualidade de vida, quanto as limitações e CHALMERS, Alan, (1994). A fabricação da ciência. São Paulo:
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