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Frase retirada do documentário legendado em português: O Abecedário de Gilles Deleuze. Realizado por
Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. Tradução e Legendas: Raccord.
Duração de 158 minutos. O documentário consiste num conjunto de entrevistas realizadas por Claire Parnet
a Gilles Deleze nos anos de 1988 e 1989. Nelas é apresentada ao filósofo uma palavra para cada letra do
abecedário para este livremente discorrer (o P de professor por exemplo). Deleuze refere no inicio da
entrevista que só aceitou fazer as entrevistas com a condição de estas serem apresentadas após a sua morte.
Apesar desta condição o vídeo acabou por ser exibido, com o consentimento de Deleuze, em 1995 no canal
de televisão TV Arte e posteriormente comercializado nas lojas.
1
Capítulo I: Descrição do estágio.
A escola é constituída por cinco blocos de salas (dois deles com dois pisos), nos
quais podemos encontrar, além das salas de aula, os laboratórios de química e de
biologia, uma sala de trabalhos oficinais, um ginásio e um bloco administrativo que
integra os diversos serviços, bem como o órgão de gestão. A escola desfruta ainda de dois
campos exteriores utilizados para a prática desportiva.
Possui setenta e oito docentes a leccionar, dos quais sessenta e três são dos
quadros da escola e quinze são contratados. Quase 3/4 dos docentes tem uma idade igual
ou inferior a cinquenta anos de idade. Apenas dois docentes têm mais de sessenta anos.
Três em cada quatro professores possuem mais de dez anos de experiência nesta
actividade. Apenas treze docentes (16,5%) possuem menos de cinco anos de tempo de
2
serviço. A maioria dos professores da escola (81%) é licenciada, enquanto 19% é
detentora de mestrado.2
2
Ver Anexo A.
3
Entre estas letras, na mesma cor castanha, desenvolve-se a letra "S", surgindo das
raízes e interrompendo o arco anteriormente referido, que evoca a abertura da escola ao
mundo exterior, num movimento dinâmico, aberto à mudança e à inovação.
O arco termina no quadrante inferior esquerdo onde oito folhas, com contornos a
verde e preenchidas na mesma cor em metade de cada uma delas, simbolizam o florescer
dos conhecimentos obtidos pelos nossos alunos e que, no final do ciclo de estudos/final
do arco, regressam à comunidade, para a enriquecer e a ajudar a desenvolver.3
A primeira turma, com que estabelecemos contacto, foi a turma 11º E, do Curso
de Artes visuais. Era a mesma composta por 21 alunos, com idades compreendidas entre
os 16 e os 19 anos, dos quais 6 eram elementos masculinos e 15 femininos.4 Esta turma
foi dividida com o estagiário Silvestre Santos.
Durante o mês em que estivemos a assistir às aulas dadas pela nossa orientadora
(de Setembro a Outubro) analisámos a dinâmica da turma e escolhemos as melhores
estratégias para as aulas que iríamos leccionar. No fundo, não pretendíamos ser vistos
como “corpos estranhos”, no momento em que fossemos dar as primeiras aulas.
Percebemos que os alunos eram participativos, mas não muito assertivos naquilo que
diziam. Além disso, mostravam-se curiosos e distraídos. De uma forma geral os alunos
consideravam que o trabalho efectuado na escola era aborrecido e que a disciplina de
filosofia tinha pouco interesse. As aulas foram divididas por duas salas consoante o dia da
semana: uma bastante ampla e iluminada pela luz do sol; a outra, mais pequena, mas
também bem iluminada. Ambas tinham computador e projector. A relação entre os alunos
3
Ver site: www.esec-casquilhos.rcts.pt
4
Ver Anexo B.
4
parecia ser muito boa. O respeito e a amizade entre eles eram visíveis. Ao nível da
aquisição de conhecimentos a turma veio mal preparada do 10º Ano, devido a um número
largo de aulas que ficaram por dar em virtude dos problemas de saúde da professora de
então. Isso pôde ser aferido logo após a realização do primeiro teste de avaliação: a
classificação mais alta foi 14 valores e mais de metade da turma teve classificação
negativa.5
5
Ver Anexo C.
5
serve para nada” e é uma disciplina “chata”. Em reunião de núcleo de estágio ficou
decidido leccionar as subunidades: Argumentação e Retórica e Argumentação e
Filosofia da Unidade: III- Racionalidade argumentativa e Filosofia do programa do 11º
Ano de Filosofia.
Com base nesta ponderação decidimos que as aulas deveriam ser sempre
norteadas por uma articulação entre os problemas que apresentávamos e os problemas da
vida quotidiana (comparação de narrativas), em função dos conteúdos que tínhamos para
dar em cada aula e em cada unidade programática6; isso resultou num claro aumento do
interesse dos alunos pelas temáticas, seguido de um correspondente aumento do
6
Este assunto será mais desenvolvido no ponto 1.6, p. 10 e na parte reflexiva do relatório.
6
aproveitamento. Algumas vezes, a certas narrativas do senso-comum que certos alunos
relatavam nas aulas, ripostámos com questões que se relacionavam com os conteúdos que
estávamos a leccionar. Por exemplo: “O David falou que acredita na reencarnação.
Suponham que acreditam na reencarnação. O que é que não cumpriram de forma
satisfatória nesta vida e gostariam de acabar na próxima?”.
Não queremos aqui demonstrar que esta é a estratégia ideal para direccionar uma
aula, até porque nem todos os alunos se revelaram disponíveis para seguir este caminho,
mas no cômputo geral é possível afirmar que as melhorias foram visíveis. Nos testes que
realizámos e nas fichas que foram efectuadas, houve alunos que alcançaram a avaliação
de 17/18 valores e as negativas baixaram consideravelmente (2).7
7
Ver Anexo D.
7
os 18 anos.8 Por hábito, eram poucos os que intervinham nas aulas. A turma revelava
grandes dificuldades de aprendizagem na generalidade das disciplinas e era tida pelos
professores como “fraca”. No que respeitava ao comportamento podia-se classificar de
indisciplinada. Normalmente dois a três alunos eram expulsos durante a generalidade das
disciplinas. Existiam claramente grupos e conseguia-se detectar alguma
incompatibilidade entre eles. É de referir que por ser uma turma do 10º Ano, a maior
parte dos alunos era proveniente de outras escolas, formando assim um grupo disperso,
onde, no início do ano, todos se estavam a conhecer e a posicionar. As diferenças eram
muito acentuadas em relação à turma do 11ºE.
8
Ver Anexo E.
8
O objectivo era criar um espaço onde a estratégia que adoptámos para a turma do
11º Ano pudesse funcionar. Os alunos, talvez por serem de humanidades, estavam
habituados a um estilo de aulas mais expositivo, mais teórico. Entendemos que sendo
uma das funções do estágio experimentar várias metodologias, as primeiras planificações
das aulas deveriam conter muitas actividades. O objectivo era ocupá-los com matérias
que tinham utilidade para as aulas e evitar ao máximo que se pudessem dispersar e
encaminhar-se para a indisciplina. Nesse sentido, realizámos fichas de trabalho, exibimos
excertos de filmes, na parte dos valores ecológicos trouxemos para a aula dois
especialistas em ambiente (um dirigente da Quercus e uma professora especializada em
matérias de ambiente), debatemos em grupo o conhecido dilema de Heinz, lemos
poemas, construímos em conjunto a tábua de valores da turma, visionámos os filmes “O
menino selvagem” de François Truffaut, “Uma mente brilhante” de Ron Howard e “1.99.
Um supermercado que vende palavras” de Marcelo Masagão, tudo sempre envolvido com
textos filosóficos (Edgar Morin, Manuel Garcia Morente, Nietzsche, Kant, James
Rachels, Lévi-Strauss, entre outros) numa permanente problematização com os alunos.
Questionámo-los, tendo a consciência que a informação por si só não tem qualquer valor
didáctico, ou seja, que era também essencial transformar a informação em conhecimento.
9
de pensamento que esteve na origem da criação do conceito estudado, não se limitando
apenas a reproduzir e assimilar conteúdos e sistemas.
11
Ver site: www.prof2000.pt/users/folhalcino/formar/.../planifica.htm.
12
O título e a temática da parte reflexiva deste relatório resultam essencialmente desta constatação.
10
viva e dinâmica, onde o enredo complexo de inter-relações humanas, a diversidade de
interesses e características dos alunos, não pretende ser uma reprodução do que está no
papel.
Mas isto não significa de modo algum que se perca o fio condutor existente
numa planificação. Significa é que ele não pode ser rígido, mas sim flexível ao ponto de
permitir ao professor inserir novos elementos, mudar de rumo, se assim o exigirem as
necessidades e/ou interesses do momento. “Uma boa planificação envolve a distribuição
do tempo, a escolha dos métodos de ensino adequados, a criação de interesse nos alunos e
a construção de um ambiente de aprendizagem produtivo”.13
Nas primeiras três aulas leccionadas o nosso maior objectivo era cumprir ao
milímetro o plano de aula e desta forma pouco ou nada nos desviámos do que havia sido
planeado. Depois percebemos que havia alunos com ritmos diferentes, que teríamos de
ser mais flexíveis e que era muito produtivo, por vezes, fazer uma pausa na aula, voltar
atrás e questioná-los de outras formas, “instigá-los”, ouvi-los no sentido de perceber
aquilo que estavam a pensar, bem como atentar às dúvidas que lhes iam surgindo.
Sentimos que desta forma as aulas passavam a ter uma maior fluidez e acabámos por
optar por realizar dois tipos de planificações: uma a médio prazo (para o conjunto de
aulas da subunidade) e outra a curto prazo (para uma aula em particular).
11
- Definição das estratégias mais adequadas a implementar à situação pedagógica e
aos objectivos a atingir;
- Sumário,
- T.P.C.,
- Referências pedagógicas.
12
Tivemos sempre presente uma visão de conjunto e da inter-relação dos
elementos constituintes do programa, de modo a que cada situação de ensino-
aprendizagem constituísse uma peça do todo.15
15
Ver Anexo G.
13
importante do professor é a de despertar a alegria pelo trabalho e pelo conhecimento”.16
Nesse âmbito, foi dada uma especial atenção às palavras e aos actos, à amizade e
coerência, factores que afectam positivamente o ambiente e a aprendizagem. A
sensibilização foi algo em que apostámos fortemente. Nesse sentido, atendemos a um
conjunto de objectivos gerais17:
No domínio cognitivo:
16
Einstein, Como vejo o Mundo, p.38.
17
Programa de Filosofia do 10º e 11º Anos, p.9.
14
intrínsecos dos alunos. O principal objectivo residiu na apresentação de
problemas/narrativas e para isso recorremos a poemas, vídeos, filmes, programas de
televisão que colocassem em questão o conceito ou a narrativa que estávamos a referir e
depois partimos para a discussão, tendo sempre como eixo norteador que aquela narrativa
podia ter co-relações com a vida e universo cultural dos alunos. Considerámos que sem
sensibilização o processo ensino-aprendizagem não podia ter o seu início.
Por fim, deixámos um espaço nas planificações, para algo a que damos vital
importância: a recriação dos conceitos dados nas aulas. Todas seguem uma linha que tem
como fim último este ponto: ligar e religar conceitos e com isso reequacionar os
problemas que haviam sido propostos e até arranjar novas formas de os defrontarmos:
“Todo o conceito é pelo menos duplo ou triplo…”19 Este espaço concedido ao aluno para
ele recriar de uma forma autónoma e livre a sua experiência do pensar é que distingue
claramente as aulas de Filosofia de outras aulas quaisquer.20 Esta foi provavelmente a
18
João Boavida, Educação filosófica, p. 27.
19
Gilles Deleuze, O que é a Filosofia, p.21
20
Este assunto será desenvolvido na parte reflexiva do relatório.
15
parte mais exigente que nos propusemos alcançar. Nem sempre o conseguimos, mas as
planificações são uma projecção daquilo que temos como ideal fazer e tal não significa
que sempre o consigamos.
1.7. Avaliação
“Em quase todas as situações, os líderes são responsáveis por classificar e avaliar
as pessoas que trabalham para eles. Da mesma forma, também os professores são
responsáveis pela avaliação do desempenho dos alunos nas suas salas de aulas…os
processos de avaliação consomem uma parcela consideravelmente grande do tempo dos
professores…por estes motivos, é bastante importante que os professores em início de
carreira construam um repertório de estratégias eficazes para classificar e avaliar o
desempenho dos seus alunos e para compreender os testes estandardizados.”21
Na nossa opinião, não é possível avaliar uma aprendizagem se não dermos uma
atenção especial às competências e às actividades. Quem avalia, só consegue avaliar se o
aluno adquiriu ou não determinada competência, a partir de uma dada actividade ou de
um comportamento observável (intervenção oral, produção escrita, análise e interpretação
de textos argumentativos e composições filosóficas de desenvolvimento metódico). Por
exemplo, as questões colocadas no teste sobre a perspectiva ética de Kant, tinham como
objectivo avaliar as competências que os alunos tinham adquirido sobre a ética deste
filósofo, nomeadamente se identificavam a sua teoria num texto, se explicavam os
momentos principais da mesma e se conheciam as suas habituais refutações; por fim,
tornava-se necessário verificar se eram capazes de discutir as conclusões a que aquele
tinha chegado. Uma vez que o programa oficial defende que não se “pode fixar critérios
rígidos, universais e obrigatórios de avaliação”22, decidimos que em todos os nossos
elementos avaliativos o aluno deveria usar capacidades e conhecimentos adquiridos; a
21
Hannah Arends, Aprender a Ensinar, p. 208.
22
Programa de Filosofia do 10º e 11º Ano, p. 24.
16
avaliação, por sua vez, incidiria na forma como tinha conseguido ligar e aplicar os seus
saberes.
O termo verdade no ensino da filosofia deve muitas vezes ser substituído pelo
termo consenso. Não existem verdades eternas ou definidas por uma instância metafísica,
mas verdades provisórias, com as quais devemos contar para resolver os nossos
problemas particulares e sociais. Existem, assim, verdades que são passíveis de ser
alteradas a qualquer momento e que se alcançam através do consenso.
Não há uma verdade individual; a existir, ela alcança um valor maior quando
elaborada colectivamente, através de um processo de discussão sobre vários pontos de
vista, que podem articular-se, oferecendo uma solução para os problemas que
encontramos na nossa vida particular ou colectiva.
17
uma aula. Conceptualmente o espaço da avaliação sempre nos pareceu um pouco amplo e
dado a equívocos. Queríamos ser o mais honestos e justos possível e encontrámos alguns
obstáculos, no respeitante à melhor forma de avaliar o “aprender a” (competências) e o
“aprender que” (conteúdos). Ao encararmos o ensino da filosofia como algo de activo,
onde o essencial não é os alunos decorarem e reproduzirem conteúdos, mas realizarem
eles mesmos a experiência do pensamento, optámos por avaliar, acima de tudo, a
qualidade de aquisições cognitivas e as competências alcançadas, em função das
actividades ou tarefas a que os fomos submetendo. Ao explicarmos-lhes a nossa forma de
avaliar, em contexto de sala de aula, demos o exemplo das aulas de química, onde têm de
por si mesmos fazer a experiência do laboratório e não apenas decorar os conteúdos
científicos presentes no manual didáctico.
Pensamos que este facto se deveu aos próprios condicionamentos colocados pela
sala em si que, por um lado, restringe os movimentos do professor e, por outro, coloca
quase todos os recursos na zona em que nos movimentávamos.24
Por fim, também sentimos algumas dificuldades em gerir o tempo de aula. Esta
dificuldade está também ligada à planificação de uma aula. Nas aulas acontecem
geralmente muitas coisas ao mesmo tempo, e nem sempre é tarefa fácil gerir
correctamente o tempo disponível. Foi o que constatámos. Tínhamos de preocupar-nos
com a redacção do sumário da aula no quadro, estabilizar os alunos, de modo a que todos
estivessem em condições de se iniciar a aula (o que é uma tarefa mais complicada após o
24
Ver Anexo H.
18
almoço) e leccionar os conteúdos. De uma forma geral conseguimos fazer sempre tudo
dentro dos 90 minutos previstos, mas ficam aqui registados os obstáculos que algumas
vezes se nos depararam.
25
Olivier Reboul, A filosofia da educação, p. 22.
19
orgulho para nós o termos podido a ele nos associarmos, orientando-os durante a
realização do trabalho escrito e preparando-os para a sua apresentação num auditório
alargado. A maior parte dos alunos nunca tinha sequer realizado um texto escrito com as
formalidades que este requeria e muito menos possuía a experiência de o apresentar em
público. Este evento permitiu ainda que nos aproximássemos deles e com isso a relação
entre todos saiu claramente beneficiada. Considero que a forma como o Colóquio está
estruturado é excelente para dinamizar e motivar os alunos para a prática da reflexão
crítica e séria sobre as várias questões que assolam a sociedade actual.26
26
Ver Anexo I
20
Parte Reflexiva
O historiador inglês E. Burnet Taylor, na sua obra A cultura primitiva, refere que
os deuses foram o primeiro pensamento dos primatas desde que se hominizaram. E mais
analítica e profundamente, opina este autor que as divindades surgiram na consciência
humana quando o homem pré-histórico aprendeu e apreendeu que ia morrer; que não
havia maneira de evitar a morte.28
27
Para Deleuze, os agenciamentos são criações, culturas, épocas da história, quadros, músicas, livros,
ligações, encontros. O agenciamento assimila a diversidade de um conceito. É a construção de uma região
que “implica estilos de enunciação. Implica territórios, cada um com o seu território, há territórios. Mesmo
numa sala, escolhemos um território. Entro numa sala que não conheço procuro o território, lugar onde me
sentirei melhor.” Ideia retirada do documentário legendado em português: O Abecedário de Gilles Deleuze.
(letra D) Realizado por Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. Tradução e
Legendas: Raccord. Ver site: http://www.oestrangeiro.net/esquizoanalise/67-o-abecedario-de-gilles-deleuze
28
Edward Taylor, Cultura Primitiva, Vol. 2: La Religión en la Cultura Primitiva. p. 53.
21
dominar as forças terríveis da natureza e a morte, “ enlouquece”.29 Para este pensador
contemporâneo, a nevrose é a marca própria do ser humano e é ela que explica a
“invenção” das religiões. A sucessão dos dias e das noites, as cheias, a seca, os
relâmpagos, o movimento dos astros, a reprodução, a experiência da morte, são tudo
exemplos de acontecimentos que sempre impressionaram o Homem. A consciência que
este tem de que é finito, limitado, insuficiente, que não encontra um sentido para a
Existência, que vê na vida o absurdo de que falava Camus, está subjacente à atitude
religiosa. É esta consciência da sua indigência que o faz buscar ansiosamente um sentido,
o horizonte donde lhe parece ouvir uma voz, um chamamento que lhe oferece a elevação
para além das suas possibilidades.
A questão é que não é possível fazer de uma disciplina um centro tão rigoroso e
definitivo. O recurso à filosofia aparece como aquilo que poderia fazer frente à
multiplicidade contemporânea: novamente acenar para uma explicação totalizante, para o
sentido que as coisas encerram. Quando se pensa a filosofia como uma prática escolar ou
29
Jean Barreau, Nem todos os Deuses são iguais, p. 19.
30
Ismael Quiles, La Persona Humana: fundamentos psicologicos y metafisicos. Aplicaciones sociales,
p.197.
31
Jean Barreau, Nem todos os Deuses são iguais, p. 16.
22
disciplina educativa, entende-se que ela poderia fornecer aquilo que é ideal para a
educação.
Quando tudo isto é objecto de reflexão, percebemos que a filosofia poderia ser
aquele ponto apropriado para fazer convergir todos os ideais e os objectivos formadores
da educação.
O aluno deve aprender conceitos; se possível, deve ser capaz de criar conceitos
originais. Se o ensino der enfoque a este ponto, necessariamente será mais fundado em
critérios, conduzindo-o a reflectir, apoiado no pensamento e textos filosóficos, bem como
23
na história da filosofia. Só assim poderá levar a cabo um juízo crítico, forçosamente
fundamentado.
A filosofia tem uma ligação muito forte com o exercício do pensar. Uma das
formas mais interessantes de a encarar desta forma reside na sua dimensão de
experiência.
32
Eugene Fink, De la phénoménologie, p. 202-204.
24
clareiras na floresta do pensamento dos alunos, arranjar as bases para que eles também
possam percepcionar, com o tal espanto, aquilo que à partida, sem se pasmarem,
diariamente observam. Pode dar uma nova cor, uma nova forma à banalidade observada,
de tal forma que o usual pode deixar de o ser; aquilo que parecia certo começa a ganhar
novos contornos e a exigir uma ponderação mais apurada. É urgente e necessário
raciocinar de outra forma. A frase “quando todos pensam igual é porque ninguém está a
pensar”, comummente atribuída ao jornalista e filósofo alemão Walter Lippman, é disto
um bom exemplo.
O que é a filosofia? Cada filósofo parece que recoloca para si esta pergunta. É
fundamental que o professor se questione sobre ela, para que possa organizar um curso, o
material didáctico, o programa de ensino. A filosofia não pode ser ensinada de forma
ingénua. É preciso responder com clareza a esta dúvida, que é fulcral e que abre um
conjunto de novas e interessantes questões.
O filósofo não é o único a questionar a realidade tal como ela é, nem o homem
vulgar, o teólogo, o artista, o político ou o cientista vivem enganados num mundo ilusório
e de falsos ideais; tão pouco o primeiro segue a via dos que se julgam sabedores e
superiores e que atribuem à filosofia o tal trabalho de “arrancar o véu”, o tal “abre olhos”
a todos os seres inferiores que estão amarrados a formas de pensar muito ingénuas e
prosaicas. Esta atitude filosófica não o põe num pedestal, nem lhe coloca nas mãos o
ceptro do poder. Também não faz dele um opinion maker vanguardista.
Deleuze e Guattari afirmam que «vivemos sob o império da opinião. Assim como
na época de Platão os gregos eram dominados pela doxa, pelas aparências sensíveis, e só
a filosofia poderia mostrar o verdadeiro mundo, também nós, dominados pelos media e
pela literatura best-seller, estamos condenados às opiniões e às certezas fáceis daqueles
25
que “tudo sabem”. A opinião luta contra o caos que é a multiplicidade de hipóteses,
eventualidades; incapaz de viver com a desordem, sentindo-se tragada por ela, a opinião
tenta vencê-la, fugir dela, furtar-se a um “pensamento único”. No entanto, essa fuga “é
apenas aparente; o caos continua aí, sub-repticiamente jogando dados com as nossas
vidas. O que importa não é vencer o caos nem fugir dele, mas conviver com ele e dele
tirar possibilidades criativas.”33
33
Gilles Deleuze, Diálogos, p.19.
26
o existente noutros países, debate-se com algumas complexidades. Com efeito, precisa de
soluções que proporcionem suprir certas carências básicas. Não se apresenta fácil a
perspectiva do professor. São vários os problemas que enfrentamos nas escolas,
nomeadamente estruturais e materiais. Algumas delas não possuem salas de aulas com
condições, não têm bibliotecas disponíveis, não têm recursos audiovisuais ou vivem uma
situação social complicada, com violência à porta e dentro da escola. Tudo isto não nos
parece ser motivo para não se conseguir dar uma boa aula de filosofia. Se defendemos
que esta deve viabilizar a experiência do conceito, não devemos encarar os obstáculos
que se vivem nas escolas e na sociedade actual, como algo que nos faça baixar os braços,
ou seja, desistir de leccionar. É que o professor de filosofia pode sempre proporcionar
determinadas perspectivas que permitam suprir um pouco essas carências; que permitam
avançar em direcção a essa experiência com o conceito.
Nesse sentido uma aula de filosofia deve ser encarada como um acontecimento,
como um exercício do poder de começo.34 Ao longo da história, cada filósofo recomeçou
a filosofia. O exemplo clássico reside na relação de Platão com Sócrates. Platão,
discípulo, pensava com Sócrates e como Sócrates. É só após a morte deste, que Platão se
faz Platão enquanto pensamento. Deste modo, de certa forma reprincipia a filosofia;
aprende com o mestre, mas afasta-se dele, inventando o seu próprio modo de filosofar.
Este sistema, de certa maneira, é retomado por cada um dos filósofos ao longo do tempo.
34
Ideia retirada do conceito deleuziano de acontecimento possível de encontrar em várias das suas obras
como por exemplo: Diferença e Repetição, p. 146. Para o filósofo francês um acontecimento é
improviso, espanto. O futuro e o passado anulam-se perante o acontecimento. Neste sentido, a ausência
deste exercício do poder de começo na educação impede o surgimento de um novo pensamento e
também impossibilita a formulação de um pensamento que não esteja previamente determinado nos
métodos anteriormente formulados.
27
Capítulo III: O contributo de Deleuze para o ensino
Foucault
Para nos auxiliar nesta ideia de que o ensino da filosofia é “um exercício do poder
de começo” e porque hoje, mais do que nunca, precisamos do inusitado, do díspar e do
inconformismo, recorremos, neste trabalho, ao filósofo contemporâneo francês Gilles
Deleuze, que tem em si bem presentes todos estes atributos.
Para Deleuze, a filosofia não é apenas uma reflexão da realidade histórica; ela é
também criativa. Cria conceitos. Na sua obra, O que é a filosofia? refere que a filosofia
consiste na criação de conceitos e que um filósofo “está constantemente a refazê-los e até
mesmo a mudá-los; basta, por vezes, que um pormenor aumente e produza uma nova
condensação, acrescente ou retire componentes. O filósofo apresenta às vezes uma
amnésia que quase o transforma num doente (…).35 Esta é uma inflexão forte à tradição
que desde os gregos é pensada como uma espécie de contemplação. Aristóteles separava
a vida activa (política) da vida contemplativa (filosofia), defendendo que ambas se
contrapunham à vida do sujeito comum. A boa vida seria a união da vida activa à
contemplativa. Para Deleuze, diferentemente, a filosofia é unicamente a vida activa e a
acção do filósofo é uma acção de criação.36 Se hoje podemos “ continuar a ser platónicos,
cartesianos ou kantianos, é porque temos o direito de pensar que os seus conceitos podem
ser reactivados nos nossos problemas e inspirar esses conceitos que é preciso criar”.37
35
Gilles Deleuze, O que é a filosofia, p. 26.
36
Gilles Deleuze, Conversações, p. 186.
37
Gilles Deleuze, O que é a filosofia, p. 31.
28
São três as potências do pensamento, para este filósofo francês: a filosofia, que
cria conceitos, a ciência, que cria funções, e a arte, que cria perceptos e afectos.
29
A relação pedagógica, nesta visão, surge como unidireccional: do professor para o
aluno. Este aparece simplesmente como um receptáculo da verdade. Os conteúdos
(saberes) escolares ganham aqui uma enorme força, pois (supostamente) contêm a
verdade e são ensinados ao aluno, sendo este uma espécie de mero depósito do
conhecimento.
Pensar assim seria contemplar, colocarmo-nos em busca das ideias que existem
independentemente de nós. Inversamente, para Deleuze pensar é criar. Os conceitos não
estão aí para serem encontrados/descobertos pelos filósofos. São inventados e fabricados;
para serem produzidos, é necessário um plano de imanência, um contexto que contenha
tudo aquilo que nos é dado experimentar. Os conceitos nascem neste plano e do choque,
das colisões, das experiências que nele vamos tendo. Cada filósofo tem os seus, a partir
dos quais experimenta problemas, e recolhe uma série de elementos presentes nesse
plano. A composição e o arranjo desses constituintes são o conceito.
O conceito é o acto do pensamento que reúne uma série de elementos que estavam
predispostos. Organizando-os de uma certa forma, isso permite-nos fazer frente ao
problema que nos mobilizava. O conceito não é uma resposta, é uma maneira de
organizar o pensamento para enfrentar o problema e posteriormente construir respostas.
38
Gilles Deleuze, Diálogos, p. 11.
30
inventa-se um problema, uma posição do problema, antes de se encontrar uma
solução”.39A educação só ocorre se os estudantes se conseguirem despir das noções
preconcebidas, das opiniões, da doxa, que lhes limita o pensamento.
Deleuze defende também que há sempre alguém que ensina, mas que o que
alguém aprende é impossível de ser controlado: “Não há métodos para encontrar tesouros
nem métodos para se aprender”.40 Recusa, assim, a aprendizagem ligada à inteligência,
mostrando a importância da percepção do aprender a perceber, a relevância da
aprendizagem da sensibilidade, da atenção aos signos da problematização. Não
conseguimos saber como alguém aprende certo assunto ou tema. São forças sensíveis,
relações de signos que se estabelecem e que movem uma pessoa em direcção ao
aprendizado: “Aprender a nadar, aprender uma língua estrangeira, significa compor os
pontos singulares de seu próprio corpo ou de sua própria língua com os de uma outra
figura, de um outro elemento que nos desmembra, que nos leva a penetrar num mundo de
39
Ibidem.
40
Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, p. 159.
31
problemas até então desconhecidos, inauditos”.41 Quando aprendemos a nadar há alguém
que nos ensina, no entanto só aprendo a nadar quando o meu corpo se encontra com a
água da piscina.
O aprender a nadar é aprender a habitar esse outro elemento (água) e a relação que
o meu corpo estabelece com esse tal elemento. O facto de ter alguém a ensinar é
importante, pois a aprendizagem não é automática, não podemos simplesmente lançar-
nos à água. Somos mediados por alguém (professor), mas a aprendizagem só ocorre
quando o aluno se coloca na relação com aquele signo, com aquela materialidade. O
professor é essencial, mas a aprendizagem só se efectua quando o estudante participa e se
estabelece nesse conjunto de signos. Por vezes, no decurso de uma aula, pode ocorrer que
um aluno esteja ensonado e que, de repente, ao ouvir algo que lhe anima a atenção,
desperte. Para Deleuze, é necessário um grande esforço do professor para dar uma lição;
para desencadear aquele despertar. Ele tem de prepará-la e preparar-se para ela como um
artista para o seu espectáculo42. Cada aula deve ser um evento, um acontecimento. Um
processo de experimentação.
Nos dias de hoje, os docentes parecem impotentes para lidar com todo o conjunto
de dilemas que afectam as nossas escolas. Deste modo, quase parece que do que
precisamos é de uma espécie de super-professor. Com efeito, por mais frágil ou impotente
que um professor se possa sentir na máquina educacional, ele tem sempre a hipótese de
criar um pequeno acontecimento, seja levando algum aluno a estudar certo tópico, seja a
fazê-lo sair do seu estado precário de conhecimento ou interrogação. Basta que o aluno se
agite para que o professor já se sinta salvo como professor. A aula é um espaço de
criação, um espaço do docente que é compartilhado. Não há como abdicar da sua autoria.
E esta autoria passa sempre pela persona única do professor. Ele tem de ser um pouco
actor e os alunos a sua plateia activa.
41
Idem, p. 182.
42
O Abecedário de Gilles Deleuze. Realizado por Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions
Montparnasse, Paris. Tradução e Legendas: Raccord.
Ver site: http://www.oestrangeiro.net/esquizoanalise/67-o-abecedario-de-gilles-deleuze
32
Existem muitos jovens que passam o tempo livre a ler filosofia, a discuti-la, a
escrever e a pensar sobre o assunto. Todavia, como alunos, a disciplina não lhes agrada. É
preciso perceber o que é que os motiva a devotarem tanto tempo aos estudos. O modelo
afectivo de sensibilização parece-nos o melhor, aquele que oferece uma maneira distinta
de pensar sobre o ensino, um modo que pode abranger tanto o benefício presente como o
futuro. A aprendizagem é fruto de uma intensa multiplicidade, de um encontro repentino
e sem a finalidade com o heterogéneo: “nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de
qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não
pela assimilação de conteúdos objectivos”43
Para isto poder acontecer, pensando de uma forma didáctica e em como planear e
realizar uma aula de filosofia como um exercício do poder de começo, precisamos de ter
em atenção cinco pontos que consideramos essenciais: sensibilizar, problematizar,
investigar, argumentar e conceptualizar.
43
Gilles Deleuze, Proust e os signos, p. 21.
33
3.2.1. Sensibilização
Apesar de entendermos que tudo deve começar com o problema, todos os quatro
pontos estão interligados. Primeiramente é fundamental sensibilizar o aluno,
comprometê-lo afectivamente com o tema que se vai trabalhar. Este método parece-nos
diferente da ideia de motivação que muitos defendem, o qual tem na figura do professor o
eixo motivador do aluno (algo que está muito na moda em pedagogia). Na nossa opinião,
é difícil conseguir perceber como se consegue motivar alguém para algo, de forma
determinante. A motivação parece ser algo interno, de cada um, que não pode ser
adquirido de fora para dentro. Um professor não consegue motivar um aluno para
aprender; o que pode é estimular o seu interesse para aprender de forma
intencional/planeada, a partir de uma série de recursos e acções.44
“Após o visionamento do filme Uma mente brilhante fiquei com uma dúvida na
minha cabeça sobre a realidade e a representação do real.
44
Normalmente quando se interroga os alunos sobre qual a disciplina que mais gostam e qual a razão da
sua escolha a resposta invariavelmente que obtemos é que gostam da disciplina tal porque o professor
explica bem ou porque consegue tornar o conteúdo perceptível ou porque empolga os alunos devido a ser
um professor vibrante. Um professor que manifeste uma certa apatia e indiferença nas matérias que expõe
não consegue captar o interesse dos alunos.
34
Nem tudo o que Nash observa e acredita que faz é real. Muitas das pessoas e
acontecimentos que a personagem vê são fruto da sua imaginação, e o não conseguir
distinguir o real da ficção provoca-lhe sofrimento. Nash vive um conflito com a sua
própria mente. Mais tarde, descobre e aceita o facto de que algumas pessoas que lhe são
queridas não passam de alucinações.
Então, John Forbes conhecerá uma realidade distinta e separada dele, ou apenas
representações por ele criadas a partir do real?”
Abordar um assunto a partir de imagens, pode ser uma boa forma de sensibilizar
os alunos para o tema que estamos a introduzir. Hoje em dia, para os jovens, a imagem é
fundamental e muito apelativa. Um filme ou um quadro podem, por isso, ser bons pontos
de partida. Quando referimos a utilização de um filme, é importante ter em atenção que
ele deve estar inserido no universo cultural dos alunos. Por vezes, temos a tendência de
levar para a aula filmes que não fazem parte desse seu universo; isso pode ser
contraproducente. Neste sentido, é preferível utilizar películas que assegurem essa
pertença, para conseguirmos estabelecer a mencionada sensibilização, a qual tem o
problematizar como objectivo. Posteriormente e de forma gradativa, podemos e devemos
começar a utilizar outros filmes, desta feita, que consigam ampliar o universo cultural
atrás aludido. Além dos meios audiovisuais, poderão ser coadjuvantes elementos
linguísticos e artísticos, tais como poemas, contos, romances, melodias.
A música, nos dias de hoje, talvez seja um dos elementos mais interessantes para
se conseguir impressionar, tornar perceptível aos alunos, um assunto que desejamos
introduzir na aula. Também aqui é fundamental conhecer e utilizar melodias do
respectivo agrado. Só assim é possível realizar um movimento de aproximação. Temos de
35
conhecer o tipo de música que eles ouvem (a do seu dia-a-dia) e perceber se a mesma
potencia a colocação de determinados problemas de natureza filosófica, maxime, se
permite aceder ao problema concreto que queremos trabalhar.
3.2.2 Problematização
45
Marleau Ponty, Fenomenologia da percepção, p.16
36
relação a um tema, e vá ao encontro, dentro desse tema, de um problema que motive o
pensamento.
O primeiro passo deverá, desta forma, ser dado através das questões que os alunos
já têm na sua vida; sensibilizá-los para essas questões, deixar que eles falem delas.
Depois é necessário trabalhá-las, problematizando em cima disso. O problema filosófico
pode, inclusive, em alguns cenários, não ser apresentado pelo professor, mas pelos
estudantes, a partir dos seus interesses. Isto não significa que basta elaborar uma lista dos
problemas que preocupam os alunos (adolescentes), como a questão das drogas, a
gravidez na adolescência ou a injustiça no país, e daí partir para uma discussão. A ser
levado este tipo de matérias para a sala de aula, temos sempre de ter em vista a sua
transformação em algo filosófico. É fundamental, pois, garantir a presença do teor
46
Hegel, Propedêutica Filosófica, p. 52.
37
filosófico em todas as etapas, seja na criação de problemas e argumentos, seja no
desenvolvimento da investigação filosófica ou na conceptualização. Por exemplo,
podemos perguntar aos estudantes quais são os seus interesses ou questões, para
decidirmos como podemos trabalhá-los filosoficamente. Nesse contexto, pode surgir, de
uma forma activa, a questão da droga. Essa questão, não a podemos trabalhar, sem mais.
Talvez a biologia o possa fazer, referindo-se ao conjunto de reacções químicas que os
tóxicos provocam no organismo. Em filosofia, uma forma praticável de abordar este
tema, seria explicar aos alunos que se alguém toma uma droga, ela vai alterar a sua
percepção da realidade. Consequentemente surge aqui a questão da realidade e outras que
lhe são conexas: como é que percebemos a realidade? Percebo a realidade como as outras
pessoas? Se estou sob o efeito de uma droga eu entendo a realidade de maneira diferente?
A realidade é a mesma para todos? Como é esta apreendida, através dos cinco sentidos ou
do que se pensa sobre ela? Desta forma, entramos em várias questões filosóficas, e
podemos trabalhar textos de alguns filósofos. A admiração, o espanto foi no entender de
Aristóteles o que estimulou os primeiros pensadores às especulações filosóficas. Para o
filósofo Grego “no início, o espanto recai sobre as dificuldades que se apresentam em
primeiro lugar ao espírito; depois, avançando, pouco a pouco, eles estenderão a sua
exploração a problemas mais importantes […].”47
47
Aristóteles, Metafísica, A982b.
38
Qualquer filósofo da história da filosofia só filosofou porque a dada altura da sua
vida teve de enfrentar problemas. Qualquer perspectiva que possamos ter de um ensino
da filosofia activo e contextualizado, que garanta ao aluno o desenvolvimento da
experiência do pensamento filosófico, tem de forçosamente partir de problemas.
3.2.3. Investigação
48
Gilles Deleuze, O que é a filosofia, p. 34.
39
filosofia e o ideal é o professor possuir a sua própria antologia de textos de vários
filósofos, que foi recolhendo ao longo dos seus anos de pesquisa.49
Após todo este processo, os textos filosóficos acabam por surgir de uma forma
natural, no contexto das aulas, para os alunos. Estes encontrarão sentido na sua utilização,
porque serão encarados como hipóteses de pensamento e de conceitos, os quais foram
produzidos por vários filósofos, para responder a problemas semelhantes aos que estão
igualmente a tentar resolver. Esta nossa proposta de organização didáctica da aula de
filosofia implica que façamos um certo percurso, para que os textos acima mencionados
não surjam aos olhos dos alunos como uma imposição.
3.2.4. Argumentação
49
Ver Anexo J. (Antologia de textos para o 10º ano C)
40
3.2.5. Conceptualização
Se o aluno conseguir dar este passo, se, a partir de um problema que vive,
consultar obras da história da filosofia, e nelas encontrar conceitos que lhe permitam
pensar a questão que está a viver, se for capaz de os interiorizar, nos moldes em que os
encontrou plasmados num texto de Platão ou de Kant, participa numa experiência
filosófica, desenvolve-a.
50
Martin Heidegger, Carta sobre o humanismo, p. 42
51
Gilles Deleuze, Diálogos, p. 19.
41
aquele discurso e como é que aquele conceito foi construído naquele momento. Depois,
devemos passar para outro plano de imanência, outro momento histórico, e utilizar, por
exemplo, um texto do século XVII. Desmontando-o, devemos novamente explicar qual a
questão da liberdade que ali está a ser discutida, quais são os pressupostos das ideias
subjacentes ao mesmo, que exemplo usa o filósofo, o que pretende afirmar, que
argumento apresenta para chegar a um determinado conceito. Deste modo, o aluno vai
aprendendo conceitos sobre a liberdade dentro da história da filosofia. Isso pode tornar-se
essencial para poder fazer os seus ensaios de construção de conceitos. Eles não nascem
pura e simplesmente de uma inspiração, mas de um trabalho árduo, que exige muita
disciplina e que vai sendo, aos poucos, absorvido ao longo das várias lições. Depois da
experiência com os conceitos dos vários filósofos, o aluno pode começar a arriscar a sua
criatividade (de conceitos filosóficos).
Assim, podemos afirmar que esta criação é algo que acontece após termos
descoberto, na história da filosofia, um determinado conceito, que nos ajude a equacionar
o nosso problema e a deslocá-lo para o nosso próprio contexto e referencial. Para
Schopenhauer, a filosofia devia “espelhar limpidamente a essência do mundo e como
imagem reflexa depô-la nos conceitos permanentes e sempre bem-dispostos do
pensamento: esta e não outra é a filosofia”52
Pode ainda ocorrer que nesta fase de investigação não consigamos encontrar
nenhum conceito relacionado com o problema que temos em mãos, mas podemos
encontrar algum ou alguns que parcialmente se relacione (m) com a nossa questão. Nesta
fase, o aluno deve partir desses conceitos que parcialmente se relacionam com o
problema a tratar, e deslocá-los para a sua própria experiência, (re)trabalhá-los numa
perspectiva fecunda.
A filosofia tem uma especificidade própria, que faz com que seja o próprio pensar
que está em jogo, o pensamento enquanto pensamento, e não apenas uma dimensão
histórica ou matemática. Porque pensamos o que pensamos, é importante descortinar qual
o sentido de pensar uma coisa e não outra. O conceito, para a filosofia, é diferente da
52
Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, Livro I, p. 68.
42
designação de conceito para as ciências ou outras áreas do saber. Designamo-lo, de uma
forma geral, como sendo uma espécie de categoria. Na filosofia, ele é uma experiência
fundamental do pensamento, um golpe do pensamento que nos permite equacionar um
determinado problema.
O conceito é um todo, mas um todo com fissuras. É nessas fissuras que penetra a
multiplicidade. É nas fissuras que encontramos pedaços de outros conceitos (a história)
que, unidos, produzem derivações, o devir. Cada conceito provoca um novo
agenciamento porque “quando um filósofo critica outro, é a partir de problemas e num
plano que não era o do outro, e que faz derreterem-se os antigos conceitos como se pode
derreter um canhão para fazer novas armas. Nunca se está no mesmo plano. Criticar é
apenas verificar que um conceito desaparece, perde as suas componentes ou adquire
outras que o transformam, quando está mergulhado num meio novo. Mas os que criticam
sem criar, os que se contentam em defender o desaparecido sem lhe saber dar a força para
voltar à vida, esses são a praga da filosofia.” 53
53
Gilles Deleuze, O que é a Filosofia, p.31-32.
43
Conclusão
A filosofia de Deleuze “trata de ligações; num certo sentido, ela é uma arte de
agregar coisas múltiplas por meio de sínteses disjuntivas, de conjunções lógicas
anteriores e irredutíveis à predicação ou à identificação”.55 Os vários conteúdos
transmitidos estabelecem múltiplas ligações com outras áreas do conhecimento. Não
existe apenas uma resposta, uma verdade que explique os acontecimentos, “é preciso
fabricar intercessores.”56A ciência, a matemática, a religião, as artes, o próprio senso
comum dialogam entre si, estabelecendo intercessões com saberes de outros campos,
nomeadamente com a filosofia.
54
Termo utilizado por Deleuze na obra Mil Planaltos: Capitalismo e Esquizofrenia 2, p. 327, quando se
reporta às perguntas formuladas pelos alunos, as quais se desdobram em problemas tendo em vista uma
pergunta fundamental.
55
John Rijchman, As ligações de Deleuze, p, 11.
56
Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, p. 156.
44
Estes encontros/intercessões/intermezzos/devires são linhas de fuga, modos de
gerar novas experiências e de produzir o novo. Formas de arrancar maneiras de viver que
fujam à regra, que não sejam dominantes na sua forma de existir, que não abusem de
chavões e de dualismos, que delineiem novos territórios, novas linhas de fuga.
45
BIBLIOGRAFIA
DEWEY, J. (1959). Democracia e Educação. (4ª Edição) São Paulo: Companhia Editora
Nacional.
46
QUILES, I. (1942). La Persona Humana: fundamentos psicologicos y metafisicos.
Aplicaciones sociales, Buenos Aires: Espasa-Calpe.
Manuais Escolares:
ALVES, F., ARÊDES, J. e CARVALHO, J. (2009). Pensar Azul – Filosofia 10ºano.
(1ºEdição) Texto Editores.
RODRIGUES, L. (2010). Filosofia 11ºano. (4ºEdição). Plátano Editora.
Textos Electrónicos:
Www.esec-casquilhos.rcts.pt
www.prof2000.pt/users/folhalcino/formar/.../planifica.htm
47