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Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP)

Política e Organização da Educação Básica no Brasil (EDA0463)


1º sem./2022 – Turma 153 – Profº: João Francisco Migliari Branco

Leticia Madeira Sousa Fernandes


Nº USP: 11227466

Relatório de estágio

Realizei meu estágio obrigatório na EMEF Desembargador Amorim Lima, localizada


na Vila Indiana, Zona Oeste de São Paulo. Inaugurada em 1956, surgiu como a primeira
escola isolada da Vila Indiana, sendo hoje conhecida pelas especificidades de seu Projeto
Político-Pedagógico. Considerando aspectos socioeconômicos e culturais, a região na qual a
escola se encontra é bastante heterogênea. Vizinha à Universidade de São Paulo, ela está
situada entre áreas mais pobres, como a favela São Remo, bem como concentrações
conhecidas por suas manifestações culturais, como o Morro do Querosene. Essa
multiplicidade é refletida no corpo discente da escola, integrado por estudantes de diversas
classes sociais, desde membros de famílias de menor nível de renda até filhos de professores
da USP.
A escola começou a se transformar no que é hoje a partir da chegada da diretora Ana
Elisa Siqueira, em 1996, que assume o cargo até o presente momento. Os altos índices de
evasão escolar fizeram com que ela tomasse atitudes para fazer daquele espaço um lugar mais
agradável, na tentativa de garantir a permanência dos alunos. Ela conta que, quando chegou à
escola, as paredes eram todas da cor cinza. Ao questionar o porquê, ela descobriu que
costumavam misturar todas as cores de restos de tinta para gerar aquele cinza, que tinha como
objetivo “esconder a sujeira” das paredes. Além da cor sombria, que contribuía para alimentar
o desconforto vivido na escola, ela conta que o ambiente era todo cercado por grades e que, na
hora do recreio, as crianças ficavam “penduradas, se balançando nas estruturas de ferro”.
Horrorizada com a cena, ela toma sua primeira atitude e remove as grades da escola, liberando
o acesso ao espaço do parque. A diretora relata, inclusive, que uma aluna foi agradecê-la pelo
feito, dizendo a seguinte frase: “a gente não é bicho para viver preso”.
Não é incomum encontrar situações de desrespeito e violência como essas sendo
naturalizadas dentro das escolas. A maioria das instituições de ensino realmente segue a
mesma lógica existente nas prisões, percebe-se a constante vigilância e a tentativa de
disciplinar os corpos a todo custo e em qualquer circunstância. Também não é incomum ver
certos protocolos de docilização e a criação de barreiras serem cotidianamente valorizados
pela gestão de escolas mais tradicionais, onde as atitudes dos gestores transformam o
autoritarismo desregrado em característica supostamente fundamental para o funcionamento
da instituição, autoritarismo que parece ser mais importante, inclusive, que a própria função
pedagógica da escola.
A diferença da Amorim Lima em relação às escolas tradicionais vai muito além da
ausência de grades. Para tratar do assunto, vale lembrar que o estabelecimento do Projeto
Político-Pedagógico (PPP) a ser praticado por determinada escola pública municipal compete
ao Conselho de Escola (CE). Nesse sentido, Ilma Veiga (2001) afirma que o projeto é político
porque assume o compromisso de formar o estudante para o exercício da cidadania na
sociedade em que vive, e pedagógico porque define as abordagens educativas necessárias para
cumprir o que pretende. No entanto, o PPP de uma escola facilmente se torna um documento
com afirmativas genéricas e esvaziadas de sentido: “uma peça literária ficcional repleta de
palavras de ordem e de uma série de bordões, tais como cidadania, respeito, ética, cooperação,
participação, aprendizado, inclusão, que não encontram eco no cotidiano escolar” (AQUINO,
2004: 29). No início dos anos 2000, o CE da Amorim Lima percebe o abismo entre o texto de
seu Projeto Político-Pedagógico e a prática cotidiana na escola. É nesse contexto que os
membros do Conselho são apresentados à Escola da Ponte, que serviria de exemplo para a
formulação de um novo projeto para a EMEF.
A Escola da Ponte é uma instituição pública mundialmente conhecida, localizada na
cidade do Porto, em Portugal. Nela, não há a tradicional organização das salas em séries, um
dos pontos centrais do que habitualmente concebemos como escola. Rui Canário (2004)
comenta como essa ruptura protagonizada pela Escola da Ponte evidencia as noções
estereotipadas que ainda tomamos como referência para as práticas escolares na
contemporaneidade. Assumimos um modelo organizacional baseado na relação preceptor-
aluno e não na relação professor-classe, ignorando a realidade das escolas. “Com a ruptura da
organização seriada na Escola da Ponte, a equipe docente passou a ser responsável
indistintamente pelo desenvolvimento e acompanhamento do coletivo dos alunos.”
(AQUINO, 2004: 25).
Existem muitas semelhanças entre o projeto educativo da Escola da Ponte e a
realidade da Amorim Lima. Inclusive, os mesmos dispositivos empregados na instituição
portuguesa são usados para facilitar a efetivação do projeto aqui: reuniões semanais entre os
alunos e seus professores tutores, grupos de responsabilidade, plano quinzenal de trabalho,
etc. É preciso estar familiarizado com todo um vocabulário para entender o funcionamento da
EMEF. Um dos princípios centrais da escola é a noção de “estudante pesquisador”, que tem
como objetivo aumentar a implicação dos alunos no processo de aprendizagem, favorecendo o
desenvolvimento de certa autonomia, na tentativa de adequar um currículo objetivo ao ritmo
pessoal de cada estudante. Muito importante ressaltar que, ao privilegiar o trabalho de
pesquisa, a escola deixa de reconhecer a aula expositiva como instrumento preferencial de
transmissão de saber, passando a ser um recurso utilizado apenas pontualmente.
Para entender o funcionamento da Amorim Lima, é necessário compreender o que são
as chamadas “tutorias”. Cada professor é responsável por, aproximadamente, 20 alunos por
período. Com isso, um dia da semana é inteiramente dedicado às tutorias, ou seja, os tutores
passam as cinco horas do turno com seus tutorandos, auxiliando-os em seus roteiros de
pesquisa. Pode-se dizer que a escola, recusando a lógica das aulas expositivas, gira em torno
desses roteiros. Cada aluno recebe uma apostila com uma série de temas, os chamados
“roteiros”, sendo que todos eles são compostos por uma lista de objetivos, perguntas e tarefas
a serem cumpridas. O intuito dessas atividades, segundo a escola, é promover um processo
interdisciplinar de aprendizagem. Outra característica da Amorim Lima é a divisão dos cursos
de Ensino Fundamental Regular em ciclos. Ao todo, são três: o Ciclo de Alfabetização, que
vai do 1º ao 3º ano, o Ciclo Interdisciplinar, do 4º ao 6º ano e, por fim, o Ciclo Autoral, do 7º
ao 9º ano. A cada ano que passa, a quantidade de roteiros que o aluno precisa cumprir
aumenta, bem como a complexidade das tarefas propostas.
A organização das séries em ciclos conversa diretamente com a infraestrutura da
escola. Na tentativa de romper com a organização tradicional das classes seriadas, como na
Escola da Ponte, a ideia dos ciclos acaba exigindo espaços também diferentes do modelo
tradicional. Nas EMEFs, é comum encontrar dois andares, o primeiro destinado às séries
iniciais e o segundo, às finais. Na Amorim, isso também acontece. No entanto, tanto no
primeiro quanto no segundo andar, ocorre algo incomum: as salas não possuem paredes. Ou
seja, para a aplicação do projeto, cerca de três ou quatro salas foram conjugadas, formando o
que a comunidade escolar chama de Salões de pesquisa. Ainda existem salas tradicionais,
menores, nos finais dos corredores. Mesmo assim, a maior parte do espaço de cada andar é
tomada pelos Salões, onde os alunos passam boa parte do tempo. Dessa forma, o Salão do
primeiro andar é dedicado ao Ciclo Interdisciplinar, enquanto o Salão do segundo andar é
ocupado pelos estudantes do Ciclo Autoral.
Em cada Salão, cerca de cinco ou seis professores acompanham os alunos enquanto
estes realizam suas pesquisas em grupo. Segundo Aquino (2004), o objetivo dos chamados
“grupos de estudo” seria promover a experiência de relações coletivas entre estudantes,
substituindo a ideia de agrupamento, geralmente atribuída a uma classe, pela noção de grupo.
Apesar da disposição grupal, os roteiros são respondidos de forma individual. Ou seja,
enquanto um membro do grupo está se dedicando ao roteiro de poesia, outro pode estar
desenvolvendo o roteiro de sistema digestivo, por exemplo. Isso ocorre porque os alunos
podem escolher a ordem em que realizam os roteiros, o que corresponde aos princípios
defendidos pela escola, reforçando a centralidade da participação estudantil no processo
educativo. Com isso, percebo que a autonomia que se pretende desenvolver também visa
outro valor fundamental para a prática do projeto da escola: a responsabilidade.
A EMEF Des. Amorim Lima, além de tudo o que foi descrito até então, conta também
com os “grupos de responsabilidade”. Assim como ocorre nas tutorias, cada professor
coordena um grupo de responsabilidade, nos quais um conjunto de alunos se dedica a algum
aspecto da vida escolar: comunicação, reciclagem, horta, etc. O PPP da escola deixa bem
claro que esses grupos visam promover a autonomia moral dos estudantes. Defende, também,
que os mecanismos capazes de favorecer e estimular o engajamento dos alunos sejam
constantemente aprimorados, para que, com a assunção de mais responsabilidades, ocorra um
melhor funcionamento da escola, bem como uma melhor implantação do próprio projeto. É
possível notar que a escola reconhece e defende o coletivo, com respeito às diretrizes
definidas pelo mesmo coletivo. Outro dispositivo utilizado pela Amorim Lima é a roda de
conversa, também estruturante do projeto, tendo em vista que estabelece um momento de
diálogo importante entre alunos e professores sobre os acontecimentos diários.
Vale destacar a centralidade da Assembleia Estudantil, que ocorre mensalmente na
escola. Nela, os estudantes de todos os ciclos se reúnem para discutir a vida escolar, levantam
sugestões, críticas, reclamações e pontos polêmicos que, por fim, serão levados ao Conselho
de Escola. A Assembleia Estudantil é organizada e mediada pelos próprios estudantes,
reafirmando os ideais de autonomia e responsabilidade defendidos no projeto. A participação
do corpo estudantil é real e concreta no ambiente da Amorim Lima, o que manifesta a
importância de “(...) transformar a escola num sítio em que se ganha gosto pela política, isto é,
onde se vive a democracia, onde se aprende a ser intolerante com as injustiças e a exercer o
direito à palavra, usando-a para pensar o mundo e nele intervir.” (CANÁRIO, 2008: 80). Foi a
partir das assembleias estudantis, inclusive, que ocorreu a criação de uma Carta de Princípios
de Convivência. Os estudantes manifestaram a necessidade de estabelecer parâmetros de
respeito dentro da escola, com isso, todas as tutorias se comprometeram a discutir e sugerir
pontos para compor essa carta. As sugestões à Carta dos Princípios de Convivência foram
compiladas e hoje integram o texto do Projeto Político-Pedagógico da escola.
A participação dos pais dos alunos também é fundamental para assegurar o bom
desenvolvimento do projeto da escola. A diretora Ana Elisa conta que, desde que chegou à
EMEF, a maioria dos pais sempre esteve presente na vida escolar, dando suporte às mudanças
e assumindo papel decisivo na construção das práticas que hoje fazem parte da instituição. Os
roteiros de pesquisa, afinal, são organizados não somente pelos professores, mas são produtos
do diálogo que o corpo docente estabelece com as famílias dos alunos. Foi por meio desses
diálogos, por exemplo, que um roteiro sobre Paulo Freire agora está presente nas apostilas de
todas as séries (seguindo a lógica do aumento da complexidade das atividades propostas,
como explicado anteriormente).
Percebe-se que a auto-organização não é responsabilidade apenas das crianças, como
enfatizado no Projeto Político-Pedagógico, mas uma atitude que deve partir de todos os
envolvidos no processo de educação. Como afirma Lúcia Bruno (2009), alunos, pais e
professores precisam criar seus próprios espaços públicos, tanto para debater os interesses
comuns quanto para discutir as diversidades que existem nessa comunidade. Dessa maneira,
segundo a autora, é que se cria a possibilidade de pensar e praticar alternativas que sejam
divergentes às hierarquias de poder. Ou seja, uma formação para a autonomia acontece por
meio de uma educação comunitária, democrática, que contrarie a lógica vertical e hierárquica
que tradicionalmente se impõe às escolas:

“A possibilidade de desvincular saber de poder, no plano escolar reside na


criação de estruturas horizontais em que professores, alunos e funcionários
formem uma comunidade real. É um resultado que só pode provir de muitas
lutas, de vitórias setoriais, derrotas, também. Mas, sem dúvida, a autogestão
da escola pelos trabalhadores da educação – incluindo os alunos – é a
condição de democratização escolar. Sem escola democrática não há regime
democrático; portanto, a democratização da escola é fundamental e urgente,
pois ela forma o futuro cidadão.” (TRATENBERG, 2009: 16)

A democracia precisa ser vista, portanto, como um procedimento que pertence não
somente a esfera política, mas que é capaz de conduzir a convivência civil. Importante
ressaltar, aqui, as diferenças entre uma escola democrática e um regime democrático. Como
afirma Aquino (2004), quando se trata da organização de instituições políticas, a democracia
baseia-se em princípios diferentes daqueles que constituem instituições sociais democráticas.
Isso porque, em instituições políticas, os procedimentos democráticos são tomados pelos
conceitos de maioria e de representatividade, que estão associados à premissa da igualdade
dos cidadãos. Vence a vontade da maioria simples. Enquanto isso, em instituições sociais
democráticas, segundo o autor, a equidade deve assumir o lugar da igualdade direta, dada a
diferença inevitável dos lugares sociais dos quais partem seus protagonistas. Ou seja, são
lugares assimétricos que não devem ser nivelados, como ocorre no plano político. Propõe-se
que, aplicado ao plano social, o projeto democrático leve em consideração a maioria absoluta,
ao invés da maioria simples que configura a democracia no plano político. Dessa forma,
Aquino (2004) defende que a democratização dos espaços sociais não seja pautada pelo
nivelamento dos diferentes lugares dos quais partem seus protagonistas. É preciso deixar de
suprimir a diversidade que constitui determinada comunidade para promover o
compartilhamento dessa mesma diversidade, com o intuito de gerar o respeito necessário para
construir uma vida coletiva democrática.
Considerando os aspectos levantados até então, é possível analisar a EMEF Des.
Amorim Lima a partir dos cinco âmbitos da democratização escolar definidos por Sacristán
(1999): formal, curricular, organizativo, intra-institucional e interinstitucional. Explorarei,
sobretudo, os dois primeiros âmbitos, sobre os quais tenho algumas críticas devido à
experiência de estágio. Quanto aos outros três, não presenciei nenhuma contradição
substancial e, por isso, apenas reforçarei o que significam através de exemplos do que pude
presenciar.
Sobre o âmbito organizativo, que diz respeito à concepção de uma gestão coletiva,
pautada na equidade e na participação de todos os envolvidos no processo educativo, destaco
a Assembleia Estudantil como exemplo de um dos mecanismos democráticos efetivos na
Amorim Lima. O âmbito intra-institucional corresponde às relações interpessoais entre os
pares escolares que, em uma escola democrática, seriam justas e respeitosas. Tomo como
exemplo a Carta de Princípios de Convivência, concebida pelos próprios estudantes para
fortalecer a prática desses princípios. Quanto ao âmbito interinstitucional, reitero a forte
participação das famílias e da comunidade em geral no processo de democratização da EMEF.
Segundo Sacristán (1999), o âmbito curricular, em uma escola democrática, deve ser
composto de atividades contextualizadas e críticas quanto à realidade. Os Roteiros Temáticos
de Pesquisa, embora amplamente defendidos dentro e fora da comunidade da Amorim Lima
como sendo uma prática inovadora, apresentam uma configuração discutível. Alguns docentes
têm reclamações acerca das apostilas entregues aos alunos, afirmando que “os roteiros são
muito tarefistas”. De fato, muitos temas presentes nos roteiros possuem, com frequência,
tarefas que se apoiam diretamente no livro didático, ao ponto de existirem atividades como
“leia da página x à página y”. A escola, no entanto, não esconde esse fato. Na verdade, o
Projeto Político-Pedagógico é bem claro ao dizer que os roteiros são apoiados nos livros
didáticos e paradidáticos, reconhecendo o Programa Nacional do Livro Didático como uma
importante base prática e conceitual. A EMEF argumenta que as perguntas que o estudante
deve responder nos roteiros exigem que ele pesquise em vários livros ao mesmo tempo,
acessando diversas disciplinas simultaneamente e num contexto predominantemente grupal.
Ao que parece, a reconfiguração do livro didático seria suficiente para compor o
currículo de uma escola democrática. Devo pontuar que a Amorim Lima conta com outras
atividades em seu cotidiano que ultrapassam os roteiros e, além disso, nem todos os roteiros
são “tarefistas”. Entretanto, os estudantes passam a maior parte da semana lidando com essas
atividades de pesquisa. Não creio que a forma particular e não sequencial com que recorrem
ao livro didático, em uma “transversalidade temática”, seja suficiente para contemplar o
projeto democrático da escola. É, afinal, uma maneira diferente de aplicar um mesmo
conteúdo. Mesmo que não integralmente, a escola acaba compactuando com a
homogeneização curricular, caracterizada pelas crescentes tentativas de se instituir um
currículo comum para todo o território nacional. De acordo com alguns alunos, os roteiros são
atualizados anualmente e são suscetíveis a adaptações e mudanças, sendo possível, inclusive,
a criação de novos roteiros. Acredito, então, que seja possível considerar alterações na
concepção das atividades de pesquisa, com o caráter contextual e crítico que se espera do
currículo de uma escola democrática.
Quando um aluno acaba de preencher determinado roteiro, ele deve apresentar ao seu
professor tutor o que a escola chama de portfólio. A Amorim Lima não aplica provas, o que é
coerente com seu projeto. Os portfólios, então, são utilizados como a principal maneira de
avaliar os alunos, que devem registrar tudo que aprenderam com determinado roteiro. Dessa
forma, o progresso do estudante é avaliado pela qualidade de seus portfólios e por sua
participação na escola. A utilização de portfólios tem como intuito fomentar a autoavaliação,
espera-se que o aluno tome consciência de sua aprendizagem, que ele possa reconhecer suas
capacidades e dificuldades. Apesar de não aplicar nenhuma avaliação tradicional interna, a
escola ainda precisa responder às avaliações educacionais externas, como as sondagens
bimestrais da Secretária Municipal de Educação (SME):

“A proliferação das avaliações educacionais em larga escala – especialmente


as censitárias (obrigatórias para cada estudante) – relaciona-se à consolidação
de uma cultura de monitoramento, controle e prestação de contas no serviço
público que vai muito além das políticas educacionais.” (CÁSSIO, 2019: 15).

Percebe-se que a aplicação das avaliações censitárias, especialmente na Amorim Lima,


funciona muito mais como um dever protocolar que precisa ser cumprido do que como um
instrumento capaz de mensurar o desempenho dos alunos. As avaliações educacionais em
larga escala, em geral, não são suficientes para medir a qualidade do ensino de uma
instituição, já que aspectos realmente significativos do cotidiano escolar se perdem. Não é à
toa que o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) da EMEF Des. Amorim
Lima, por exemplo, não se diferencia muito da média obtida por outras EMEFs. Mas é
evidente que as práticas nela realizadas são extremamente divergentes do que ocorre na
maioria das escolas da Rede Municipal de Ensino, o que mostra como os indicadores
utilizados nessas avaliações censitárias são limitados. O que elas provam, afinal, é seu próprio
limite.
Gostaria de retomar os âmbitos da democratização escolar definidos por Sacristán
(1999), destacando o âmbito formal. Ele trata dos direitos de acesso, permanência e
aprendizagem dos estudantes. Em relação à Amorim Lima, eu poderia dizer que, no geral,
esses direitos têm sido garantidos, dado que as taxas de evasão diminuíram drasticamente
desde que as primeiras mudanças foram implantadas na escola. No entanto, outros pontos
merecem ser mencionados aqui. Isso porque alguns alunos da EMEF, sobretudo os que
compõem o público-alvo da Educação Especial, ainda não desfrutam desses direitos. Os
“alunos de inclusão”, como a comunidade escolar habitualmente se refere a esses estudantes,
podem ser facilmente encontrados vagando pela escola, alheios às atividades pedagógicas.
Esse comportamento, todavia, é naturalizado, já que é comum ao corpo discente como um
todo percorrer a escola livremente. A prática, a princípio, não representa nenhum problema. O
que seria classificado como indisciplina em muitas instituições, na Amorim Lima, é um
comportamento bem-vindo e, inclusive, benéfico, pois fica claro que isso contribui para uma
melhor convivência no ambiente escolar.
Entretanto, é diferente encontrar crianças brincando pela escola e encontrar crianças
que são negligenciadas e acabam excluídas da vida escolar. Algumas Auxiliares de Vida
Escolar, ou AVEs, relataram-me reclamações nesse sentido. Elas afirmam que os estudantes
com deficiência são deixados à toa, não há esforço da maior parte dos professores para que os
“alunos de inclusão” sejam, de fato, incluídos. Elas relatam o caso de um estudante em
específico: “antes ele ficava na sala, mas agora, sabe que se começar a gritar, a primeira
atitude do professor vai ser a de colocá-lo para fora da sala”. Uma situação que deveria ser
excepcional, então, vira hábito. O problema maior não é a criança ficar fora da sala, mas
como isso parece eliminar qualquer possibilidade de desenvolver uma atividade pedagógica
com ela. “É possível inferir que, em nome de um ideário tido genericamente como
‘renovador’ ou mesmo ‘libertador’, alguns educadores têm devotado demasiada atenção à
não-interferência no mundo infantil e, paradoxalmente, pouca importância ao desfrute da
companhia das crianças.” (AQUINO, 2004: 24).
Outro caso, ainda mais preocupante, é o de uma aluna cadeirante. Ela deveria estar no
3º ano do Ensino Fundamental, no entanto, como a sala de sua respectiva turma é no primeiro
andar, ela permaneceu na sala do 1º ano, que fica no térreo. A aluna, atualmente, cursa o 1º
ano pela terceira vez; tudo porque não há elevador ou qualquer dispositivo para que ela possa
subir as escadas. Nesse caso, nega-se à estudante um de seus direitos primordiais: o direito ao
acesso. Veiga (2001) afirma que um PPP verdadeiramente emancipador, além da construção
de uma gestão democrática integrada pelas diversas forças sociais que envolvem o processo
educativo, necessita que essas forças assumam o compromisso de promover uma
emancipação voltada à inclusão. É preciso questionar, afinal, quem e em que medida o PPP da
EMEF Des. Amorim Lima emancipa na prática.
Gostaria de comentar, também, o saldo positivo da minha experiência de estágio.
Destaco o fato de que as aulas, na Amorim Lima, são chamadas de oficinas. Os alunos não
participam da aula de artes, por exemplo, mas da oficina de artes. Essa diferença diz muito
sobre como a relação professor-aluno é estabelecida. A definição de aula presume alguém que
irá assisti-la, pressupõe a transmissão de um determinado conhecimento do professor para o
aluno. A ideia de oficina, por sua vez, remete a um local de trabalho, ou seja, está
intimamente relacionada ao fazer manual, valorizando a prática e a experiência como
princípios formadores. Além dos Salões de Pesquisa, a escola conta com diversos recursos
físicos que possibilitam esse tipo de abordagem. Há uma sala de Artes, laboratórios de
Informática e Ciências, biblioteca, quadras e até mesmo uma pista de skate. Além disso, a
escola possui um parque com vários brinquedos, uma tenda para aulas ao ar livre e a chamada
“sala vazada”, que é um meio termo entre espaço interno e externo.
Por fim, trago o relato de uma situação que ocorreu durante o período em que estive
EMEF. No início, percebi que as paredes da escola estavam bastante riscadas, os alunos
faziam desenhos e escreviam frases nelas, a maioria de teor sexual. A gestão, por sua vez,
comentava a situação de modo compreensivo e, ao invés de recriminar os atos, legitimava-os.
Afirmavam que o tempo de pandemia que os alunos haviam passado em casa, isolados, teria
sido difícil e, com o retorno presencial, “os adolescentes precisavam de uma maneira de se
expressar”. Na Assembleia Estudantil, surgiram várias reclamações dos estudantes menores a
respeito dessas marcações nas paredes, que eles consideravam altamente ofensivas. Estava
claro que aquilo era um problema que precisava ser solucionado de alguma forma. Nos
últimos dias de estágio, notei que os locais antes ocupados pelos desenhos e escritos dos
alunos são, agora, ocupados por lousas. Com isso, os alunos não perdem o direito de desenhar
e escrever nas paredes o que bem entenderem. Por outro lado, os alunos que eventualmente se
incomodarem com mensagens inapropriadas recebem o direito de apagá-las. Um exercício de
democracia.

Referências bibliográficas

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experiência da Emef Amorim Lima. EccoS Revista Científica, São Paulo, v. 6, n. 2, dez.
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CÁSSIO, Fernando. “Existe vida fora da BNCC?” In: CÁSSIO, F.; CATELLI, R. (Orgs.).
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TRAGTENBERG, Maurício. “Relações de Poder na Escola”. Em: Oliveira, D.A.: Política e


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