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As TIC chegam à escola.

Como entrar pela porta


da frente?
Vera Lúcia Duarte de Novais

1. As TIC e o avanço da aprendizagem de educadores e alunos: reflexões à


luz da cultura escolar

As várias experiências de uso do computador no ambiente escolar mundial


diferem bastante quanto à duração, à intensidade e à concepção pedagógica que
as sustentam; apesar disso, atualmente, após algumas décadas de implantação
dessas alternativas didáticas, ainda pouco disseminadas, temos a desafiadora
oportunidade de aprender com elas e de reexaminá-las à luz de estudos teóricos
sobre vários campos educativos, tornando tais ações mais profícuas e
enriquecedoras, do ponto de vista da contribuição pedagógica que elas
potencialmente podem nos dar. A análise que aqui faremos, e para a qual lhe
convidamos a participar, como membro importante dessas ações, será focada na
escola e na cultura na qual está inserida.

Vamos começar por refletir sobre alguns pontos importantes a respeito da


introdução das TIC no contexto norte-americano em relação ao processo pelo qual
essa introdução vem ocorrendo na escola pública brasileira. Há uma diferença
substancial: enquanto na escola pública americana o desenvolvimento tecnológico
da sociedade fez com que empresas pressionassem as instituições escolares para
que essa tecnologia se inserisse na escola, no Brasil tal entrada apesar de muito
mais recente, decorreu da ação de educadores ligados a universidades públicas e
algumas particulares, como a PUC-SP, e se deu com o objetivo de fazer do
computador um aliado do processo de desenvolvimento cognitivo dos alunos.
Principalmente em virtude da influência de pesquisadores da linha construcionista,
a inserção do computador foi concebida como ferramenta de aprendizagem, a ser

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empregada na resolução de situações-problema e no trabalho com projetos,
envolvendo uma ou mais disciplinas. No entanto, apesar dessa substancial
diferença de inserção, os resultados do ponto de vista da disseminação desse uso
das TIC nas instituições escolares, ou de sua contribuição para que a escola
avance, são igualmente pífios.

Ora, é preciso refletir sobre como as diversas tecnologias vêm sendo incorporadas
à escola que conhecemos. Quantos de nós, professores, ao prepararmos nossas
aulas pensamos em nos valer de recursos como fotos, jornais, filmes, retro
projetores, se para tal não tivermos sido profundamente sensibilizados e
convencidos? Com isso, o que queremos dizer é que para a maioria daqueles que
atuam nas escolas, ser professor está profundamente associado ao papel de
alguém que se dirige ao quadro-negro e valendo-se de um giz, de gestual próprio
e de sua capacidade de comunicação, procura desenvolver raciocínios, elucidar
conceitos, propor atividades e assim por diante, da forma que supõe seja a mais
adequada, bem planejada para que seus alunos aprendam. Esse modelo,
profundamente arraigado na escola e na sociedade, acaba sendo o viés, em torno
do qual a escola se orienta e se organiza - elabora sua “grade curricular”, atribui
aulas aos professores, organiza horários, sinaliza início e final das aulas, e assim
por diante. É por isso que, geralmente, a sociedade atribui os “louros” e os
fracassos pela aprendizagem dos alunos aos professores. Por isso, algumas
questões pedagógicas acabam sendo vistas como de caráter quase que privativo
do professor responsável por uma turma ou disciplina, apesar de elas serem
quase que uma característica comum: a da seqüência de conteúdos, conceitos,
idéias, atividades, do uso de um livro didático como se fora uma Bíblia, a ser
seguida página a página ou a da organização das carteiras na sala de aula. Elas
decorrem da concepção fordista, herdada da forma de organização do trabalho
industrial.

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Apesar disso, quando perguntamos a qualquer professor, independentemente de
sua concepção pedagógica, qual o objetivo atual da educação escolar e, portanto,
qual o seu papel como agente central desse processo, normalmente obtemos
respostas muito parecidas. Sem titubearem, eles costumam dizer que é o de
desenvolver a capacidade de o aluno raciocinar, criar, trabalhar em grupo, de ser
solidário, de caminhar em busca de sua própria autonomia intelectual e assim por
diante. Por outro lado, nossas salas de aula continuam a funcionar como nos
velhos tempos, a partir da imagem internalizada até “nossos poros”, por
educadores e pela sociedade, como se os objetivos fossem os mesmos do início
do século XX: o de disseminar a disciplina - vista apenas como capacidade de
fixar a atenção naquilo que o professor transmite, de concentrar-se nos conteúdos
e de executar tarefas, de modo geral bastante fechadas.

Quer dizer, há uma contradição quase que inerente ao sistema escolar: é a que
transparece na distância entre o papel que qualquer educador atribui à escola
quando fala dela, na forma de “discurso” e o que ocorre “de fato” na sala de aula.
Por tudo o que dissemos, vivemos um dilema: há um modelo interiorizado por toda
a sociedade e pelos educadores do que é ser professor e há necessidades que
demandam uma mudança no perfil e na ação profissional.

Pensemos então no que acontece com a escola. Freqüentemente ouvimos dizer


que os jovens de hoje demandam que a escola lhes ajude a enfrentar questões
relativas à educação sexual, à prevenção ao uso abusivo de drogas, à escolha
profissional e assim por diante. Normalmente quando pensamos em questões
como essas, ou no próprio uso das TIC, tendemos a sugerir que se incremente a
chamada “grade curricular” com mais alguma matéria, como, por exemplo, aulas
sobre o uso do computador para aprender a manipulá-lo, empregando alguns
aplicativos como o Word, Excel ou o acesso a Internet. Quando agimos assim,
estamos pensando em desenvolver um conteúdo, ou alguns tipos específicos de
habilidades totalmente desligados uns dos outros, como ocorre com o ensino das

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diversas disciplinas que fazem parte do conteúdo escolar e, portanto, exatamente
de acordo com a representação de escola e de professor, anteriormente
abordadas.

Quando um professor de História, por exemplo, lê um texto produzido por um


aluno e percebe que há problemas na comunicação clara das idéias, ou que ele é
repleto de erros, tende a pensar que o problema reside em dificuldades de
formação do aluno na área de comunicação e expressão. Analogamente, quando
um professor de Física ou de Química nota que seu aluno do Ensino Médio tem
dificuldades em elaborar cálculos que envolvam a Matemática da 6ª ou 7ª séries,
tem por hábito, ao menos cogitar de que o seu colega responsável por essa
disciplina não foi capaz de realizar um bom trabalho, que capacitasse seu aluno
quanto ao emprego dos chamados pré-requisitos necessários para a
aprendizagem de uma dessas matérias do Ensino Médio.

Pelos exemplos que demos, estamos querendo chamar a atenção para a


fragmentação das várias disciplinas e dos objetivos de formação de cada
professor. Nós, professores brasileiros, assim como quaisquer professores, não
desenvolvemos a capacidade de analisar nosso trabalho como parte de um
processo escolar mais amplo. Ao que parece então, a questão a ser resolvida é
simples: basta que queiramos olhar mais amplamente para a meta de formação
que,como escola, teremos que conquistar. Tal mudança, no entanto, simples no
papel e nos propósitos teóricos, requer na prática, adesão, compromisso e esforço
por parte de toda a comunidade escolar. Por quê? Entre outras coisas, se
começarmos a enxergar nosso trabalho como parte de um processo mais amplo,
torna-se difícil até mesmo dizer que o problema de aprendizagem de nossos
alunos é “culpa” de um outro colega, ou dos professores da série anterior, pois
implicaria que, constatada uma dificuldade, procurássemos junto com os demais
colegas com os quais atuamos e com aqueles que trabalham em séries anteriores,
enfrentarmos a dificuldade, como grupo.

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Como apontam os estudiosos da cultura escolar, há aspectos que explicam a
interiorização de crenças e modelos de atuação que fazem parte da cultura
escolar, de modo que se torna difícil para quem faz parte dela, analisá-la e
questioná-la com certa isenção.

Uma das formas de atuação predominantes entre os professores é a que


corresponde ao isolamento de cada um em sua sala de aula. Ela pode ser
traduzida na expressão “cada um por si”, em parte compensada pelo espaço
corporativo das salas de professores, nas quais estabelece-se a solidariedade
para compensar a solidão, geralmente com base na escolha de bodes expiatórios
sejam eles alunos, pais, diretores. Em algumas escolas os professores se
agrupam de acordo com identificações particulares: os professores de uma
determinada área, os de um determinado nível, os de uma série. Nesses grupos
os professores se defendem, obtêm uma identidade e somente a seu grupo
devem sua lealdade. Esse tipo de organização “em feudos” dificulta a tomada de
decisões que atinjam a totalidade do corpo docente.

2. Sobre a organização da escola

Há lógicas mais comuns de a escola se organizar; vamos nos limitar, porém, a


mais comum: a lógica burocrática. A rigidez dos papéis de cada membro da
organização, a autoridade e a hierarquia são características marcantes desse tipo
de lógica. Quer dizer, de acordo com essa ótica, cada um que trabalha na escola
conhece o seu papel e limita-se ao script pré-determinado para ele. Desse modo
não há espaço, por exemplo, para que um professor se comprometa com os
objetivos mais amplos da formação de seus alunos. Exemplificando, se os alunos
são poucos respeitosos com o material disponível, com os demais colegas, ou
com um funcionário, do ponto de vista de um professor de uma disciplina
qualquer, isso está fora do seu campo de atuação. A lógica burocrática faz com

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que cada um dos que atuam na escola trabalhe de forma isolada e alienada com
relação a um projeto coletivo de educação. Para todos os profissionais, há uma
aparente vantagem: a de evitar o confronto de opiniões com seus colegas, de ter
que abrir mão de algumas certezas, de ter que refletir sobre a própria prática.
Tudo isso, apesar de muito cômodo, resulta em imobilismo, apatia, alienação e
muita frustração.

3. A inserção das TIC na escola

A rápida reflexão que fizemos no início mostra-nos que a chegada do computador


à instituição escolar, facilmente se “adapta” à cultura vigente, sem contribuir para
avanços importantes nessa estrutura fragmentada. Ela acaba funcionando mais
como maquiagem, ampliação periférica da escola, tal qual uma pequena
ampliação que façamos em nossa casa - um quartinho que construímos nos
“fundos” - sem que, de fato, a reformemos, removendo os problemas estruturais
mais importantes.

É preciso darmos conta do desafio e da oportunidade que a escola tem diante de


si ao fazer com que o computador seja efetivamente utilizado como uma
ferramenta de aprendizagem. Para que isso ocorra, o diretor, os coordenadores e
orientadores, os professores e os alunos devem viver um processo de mudança,
sendo atores desse próprio processo.

A partir do convencimento de cada um sobre a riqueza que o desafio


desencadeado pelo ingresso do computador na escola - pela porta da frente da
instituição - é que a comunidade educacional vai ser capaz de enfrentar essa
inovação. Para isso, é preciso que a escola, tão impregnada pela cultura e pelo
tipo de organização, que tendem a engessá-la, sofra as dores e sinta os prazeres
de fortalecer a rede de relações, enfraquecendo a cultura de isolamento entre os
professores dos diversos níveis, séries, disciplinas, entre os diversos subgrupos

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de professores que trocam experiências e aprendizagens, que compartilham
crenças, entre os responsáveis pela direção e coordenação e assim por diante.
Quer dizer, há necessidade de envolvimento da comunidade em projetos de
caráter mais amplo, desenvolvidos em torno de objetivos comuns, dos quais
participem vários educadores. Somente quando o diretor e aqueles que exercem
papéis de liderança na instituição conseguem entender o papel do computador
como recurso de aprendizagem pessoal de educadores, funcionários e alunos, é
que a escola de fato incorpora as TIC, inserindo-a em seu Projeto Político-
Pedagógico.

Os desafios que temos pela frente são amplos, mas as TIC representam uma
efetiva oportunidade tanto para refletir a respeito da gestão e da estrutura escolar,
quanto para desencadear mudanças conseqüentes na instituição, avançando na
direção dos objetivos que freqüentam apenas os “discursos” da maioria dos
educadores.

Bibliografia:

BÁRRIOS, Amália Garrido. “Contributos para uma análise reflexiva sobre o


funcionamento da escola”. In: Inovação-Autonomia nas Escolas. Lisboa: Ministério
da Educação, vol. 12, n° 3, 1999.

BOLÍVAR, Antonio. “Formação e situações de trabalho”. In: CANÁRIO, Rui.


Instituição escolar em análise. Porto: Porto Editora, 1997.

BAILLAUQUÉ, Simone. “Trabalho das representações na formação dos


professores”. In: PAQUAY, Léopold et al. Formando professores profissionais:
Quais estratégias? Quais competências? 2. ed. rev. Porto Alegre: Artes Médicas
Sul, 2001.

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HARGREAVES, Andy et al. Aprender a Cambiar – La enseñanza más allá de las
materias y los niveles. 1 ed. Barcelona: Ediciones Octaedro, 2001.

NOVAIS, Vera Lúcia Duarte de. A relação da Escola com a Formação do


Professor de Ensino Fundamental e Médio: da grade ao caleidoscópio.
Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São
Paulo, 2000.

THURLER, Monica Gather. Inovar no interior da escola. Porto Alegre: Artmed


Editora, 2001.

VALENTE, José Armando & ALMEIDA, Fernando José de. Visão Analítica da
Informática na Educação no Brasil. Disponível em: <http://www.inf.ufsc.br/sbc-
ie/revista/nr1/valente.htm>. Acessado em janeiro de 2005.

Este texto foi produzido para o curso Gestão Escolar e Tecnologias.

NOVAIS, V. As TIC chegam à escola: como entrar pela porta da frente? PUC-SP,
2004.

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