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Simultaneidade e Historicidade.

Sobre os processamentos contemporâneos da mudança

Rui Cunha Martins


Universidade de Coimbra

Como muda, hoje, aquilo que muda? – vai nesta pergunta todo um programa de
inquérito à contemporaneidade. Com efeito, os profundos deslocamentos de sentido nos
mais variados quadrantes do contemporâneo estão a ser processados por alterações
substanciais situadas, em primeira instância, ao nível do próprio modo da mudança. O
que muda, muda de maneira diferente. Consequência: num cenário, como o da
actualidade, que apresenta como imagem de marca a articulação constante de elementos
contraditórios e no qual os elementos da permanência surgem, por via da sua necessária
reconversão e adaptabilidade, como produtores fortes da mudança, resultam inoperantes
as tentativas de pensar a mudança, unicamente, enquanto superação, isto é,
verticalmente, como um processo em que o novo corresponde apenas à substituição do
que existe. A necessidade de considerar também – saliento o também – um pensamento
do novo enquanto lateralidade, expresso em situações de concomitância e
relacionamento horizontal, parece indispensável.

I. SIMULTANEIDADE

Nas últimas décadas, a leitura da realidade em termos paradigmáticos assentou,


grosso modo, na seguinte grelha: um paradigma “cessante”, mais ou menos coincidente
com a modernidade, um paradigma “emergente”, definido ora por oposição ao anterior,
ora a partir da previsível consumação de algumas tendências entretanto palpáveis, e um
período “transicional” entre ambos, onde conviveriam elementos de um e de outro. É
indiscutível que esta leitura apresenta, nas suas formulações originais, uma
complexidade bem maior do que o pode sugerir esta esquematização; mas não é menos
verdade que esta versão condensada corresponderá ao uso rotineiro que depois dela se
fez e a popularizou, muitas vezes ao arrepio do espírito inicial. Interessa-me aqui retê-la
nesta condição de rotina explicativa, independentemente do intuito seminal.
Subscrevo sem dificuldade algumas das caracterizações feitas do paradigma
cessante, sobretudo aquelas que souberam compreender as “múltiplas modernidades”
existentes no âmbito referencial do moderno. Tenho, em contrapartida, muito mais
dificuldade em aderir às versões do que poderia ser o paradigma emergente. E nem é
sequer por uma questão de discordância em relação à substância aventada para esse
horizonte paradigmático. É, desde logo, em razão dessa mesma dimensão de horizonte
que ele comporta e que, do meu ponto de vista, briga com o que me parece ser, hoje,
uma impossibilidade: um paradigma recortado nos moldes tradicionais de uma
estabilização referenciada a um comum horizonte de coerência. Essa ideia de “edifício”,
que, em maior ou menor dose, subjaz às construções do paradigma que há-de vir,
parece-me desconectada do panorama compreensivo actual. Para além disso, há a
questão da “passagem” entre paradigmas. A modalidade temporal subjacente à noção de
“substituição paradigmática” parece-me escassa para dar conta de um panorama mais
complexo.
Com efeito, as décadas que já medeiam entre, por um lado, o momento em que
se tornou irrecusável o reconhecimento de brechas abertas no paradigma moderno, com
os consequentes desenhos antecipatórios de novos perfis de referenciação teórica a que
ele daria lugar, e, por outro, o presente tempo, marcado pela sobreposição desenfreada
de indicadores de vária natureza e de múltiplo sentido, até contrastantes entre si, onde se
acotovelam elementos modernos com outros que o não são, tornam problemática uma
leitura da actualidade como momento de afirmação de um paradigma emergente, se por
tal se entender um horizonte de referenciação instalado nos moldes paradigmáticos mais
clássicos. Pode sempre argumentar-se que essas décadas correspondem ao previsto
“período de transição” entre paradigmas, argumento com que se empurra para o futuro o
momento da consumação daquilo que é suposto chegar. Mas, dado que estaremos, nesse
caso, face a uma transição que, de tanto inchada, mais parece devir permanência, aquilo
que poderá então dizer-se, e isso sim me parece mais aceitável, é que essa condição
transicional – isto é, de acoplamento tendencial entre fenómenos e inspirações
compreensivas de raiz e direcção diversa – é ela mesma o que de verdadeiramente novo
se nos apresenta hoje em sede de reconfiguração paradigmática. A transição é o novo.
Essa coexistência de fenómenos de variadas matrizes, que a rotina explicativa
tem avaliado como expressão de um tempo transicional destinado a atingir uma
clarificação que viria romper a transitoriedade e a instabilidade inerente, deve afinal ser
avaliado já, ele próprio, a justo título e independentemente do seu posterior desenlace,
como o indicador mais visível de uma reconfiguração. A radicalidade que o habilita
enquanto expressão de um novo estará, não na sua capacidade para se instituir enquanto
ícone de algo de substancialmente superador em relação ao que o antecede, mas na sua
capacidade para se instituir enquanto pólo agregador de elementos dispersos, ora
compagináveis, ora irredutíveis, mas cuja forçosa convivência se apresenta como modo
de referenciação dotado de suficiente sentido. Desenvolver-se-á ele no sentido de algo
de mais concreto, definível em termos não transicionais? No momento actual, isso é
impossível de dizer. Mas, para já, afigura-se aceitável dizer que a condição transicional
não é algo que esteja “entre” paradigmas, ela é a projecção da inter-paradigmaticidade
possível num mundo que refaz a própria mudança. Se há algo que justifique dizer-se
paradigmático da nossa presente situação, não é o paradigma x ou y, é tão só a
simultaneidade de paradigmas.
Os encaixes conceptuais a que isto obriga são de vária ordem. Desde logo,
quanto ao tipo de “novo” implicado neste processo. A chegada do “novo” não se dá
apenas em termos de sucessividade, dá-se também em termos de concomitâncias,
deslocamentos e vizinhanças inesperadas. O novo da sucessividade, esse, trabalha com
o conceito de superação. Segundo essa perspectiva, o que chega “supera” o antigo e, a
partir de então, uma vez estabelecida a sua localização num determinado ponto do
tempo histórico, tudo decorre entre a fase do seu gradual arrastamento enquanto novo
que, porém, por definição, cada vez menos ele é, e a fase da sua exaustão, altura em que
ele se prestará a ser, por seu turno, superado por qualquer outro novo. Já o novo da
concomitância trabalha com o conceito de contiguidade. Deste ponto de vista, ele
permite a novidade pela viabilização de cruzamentos não antevistos entre elementos de
vária ordem, ou a partir da coexistência de tempos diversos e matricialmente
dissonantes num mesmo momento, ou, para o dizer de um modo abrangente, pela
vigência contígua de realidades ora co-pertencentes ora independentes, seja em rota de
tangência , seja de sobreposição. Trata-se, tudo somado, de uma modalidade de “novo”
e, por arrasto, de “mudança”, situada sob o signo da simultaneidade. O enfoque não é
aqui posto no processo de substituição, antes na situação de coexistência. Não é aqui
apenas questão do “mais”, é questão do “e”. A palavra-chave é também. Não se trata
tanto de acumular, trata-se de ligar. É, aliás, esta nuclearidade do gesto de conexão que
permite falar da actualidade enquanto complexidade.
Não dispenso, neste estádio do raciocínio, um ponto de ordem. De acordo com a
minha óptica, a referida noção de simultaneidade aplicada à questão da estética da
mudança não quer dizer, não pode mesmo querer dizer, que determinada modalidade
(no caso, a da superação) é substituída por outra modalidade (que seria a da
contiguidade). De modo nenhum. Isso seria insistir numa explicação da mudança com
base exclusiva na própria lógica da superação. Onde estaria, aí, a simultaneidade?
Donde, aquilo que pode dizer-se e que deve mesmo dizer-se a este respeito é o seguinte:
que, na situação actual, marcada, com frequência, pela coincidência dos opostos e não
pela sua ultrapassagem, o modo da mudança ancorado em lógicas de sucessividade
(vigente, de resto, a múltiplos níveis da realidade) existe hoje a par do modo da
mudança ancorado em lógicas de contiguidade (ele também vigente a distintos níveis da
contemporaneidade). Perceba-se bem o raciocínio subjacente. Se tendemos, hoje, a
caracterizar o mundo em termos de complexidade, não é porque o “complexo” veio
substituir-se ao “linear” – é porque o linear persiste, e, ao fazê-lo, co-existe com o
complexo. Isto, e só isto, pode verdadeiramente ser dito complexidade. É a
simultaneidade deles que é complexa. O que haveria de complexo na mera substituição
de uma coisa por outra?
Por outro lado, se é comum associar-se a complexidade à noção de
“multiplicidade”, interessa perceber em todo o seu alcance esta questão do múltiplo. O
múltiplo, propriamente, não é só o plural – é a coabitação do diverso. A diferença é de
tomo, não se trata apenas de um registo de “mais do mesmo”, inscrito na mesma linha
de significado, mas da possibilidade de que esse “mais” sujeite o já existente a
vizinhanças inesperadas ou mesmo indesejadas. Atente-se no debate sobre os valores,
hoje, a vários títulos, um debate mal colocado. Quando se diz – como no discurso
conservador – que a actualidade e, genericamente, as diversas linhas de actuação e de
comportamento vigentes na contemporaneidade omitem os valores, está-se perante uma
falácia intelectual que é também uma contradição nos próprios termos. Porque a
verdade é que esses comportamentos supostamente despidos de valores são, eles
próprios, valores, ou transportam determinados valores. Não forçosamente, claro, os
valores tradicionalmente inscritos nas “tábuas dos valores” consagradas ao nível das
várias áreas doutrinário-ideológicas ou dos várias rotinas entretanto canonizadas como
norma, porque, justamente, é essa mesma ideia de “tábua” que não procede; e, nesse
sentido, aqueles não são, de facto não são, os valores. Mas tão pouco se justifica dizer, à
partida, que estes estão a ser eliminados pelo que quer que seja, pois não é disso que se
trata. O que está a ser posto em causa é a sua exclusividade, a sua capacidade para se
instituírem enquanto referenciais de autoridade, por via de um descentramento que, sem
os eliminar, os força a uma convivência – e é aqui que tudo se passa e que o modo da
mudança se processa e é influente – com os outros valores, também os de sinal oposto
ou não conversável mas doravante, todos eles, estruturalmente cúmplices na sua comum
condição de “valores”. Ausência de valores? – onde, pois, descortiná-la? O que há é
profusão de valores. Uma profusão talvez sem precedente (não se esqueça que também
estas questões têm historicidade) no quadro da qual mesmo os valores mais canónicos
vão reconfigurando os seus tradicionais conteúdos referenciais ao sabor dos desafios
colocados por novas contiguidades.
Gosto de dar como exemplo o valor “família”. Por mais que o pensamento
conservador insista na versão dos ataques a que ela estaria sendo hoje sujeita, o que se
passa é bem mais a sua requisição por parte de modalidades onde tradicionalmente ela
não acudia, fazendo com que no decurso dessa requisição ela agregue novas
funcionalidades: desde que as “uniões de facto” e as “famílias monoparentais”
desafiaram o modelo da “família nuclear” – ele mesmo o resultado de uma contracção
histórica da antiga “família extensa” – o valor “família” não cessou de ser alargado.
Escolhesse eu o exemplo do valor “identidade” e chegaria a percepção idêntica. O
fascínio de algum pensamento alternativo dos primeiros tempos da recente globalização
por uma resposta baseada na crispação em torno das coerências identitárias,
supostamente em acelerado desaparecimento, relevam de um infantil apego, de resto
conservador, a modos de produção de sentido exclusivamente centrados na ideia de
unidade, e relevam, bem assim, da dificuldade em perceber a constituição de modos de
identificação desenhados em novos moldes num mundo de geometrias identitárias em
recomposição. O seu proverbial apego histórico e discursivo ao pólo da coerência em
detrimento do pólo da contradição perdeu, também ele, a sua batalha de autoridade,
porque os critérios identitários, ao pluralizarem-se, admitem a simultaneidade e a
contradição entre si. Mas, também aqui, não será por isso que as identidades soçobram
nas águas do múltiplo. Na realidade, todas estas leituras escatológicas expedidas pelos
chamados “discursos da crise” (no caso a “crise” de valores e a das identidades, mas
será igual para a da segurança, ou, genericamente, para a maior parte das presentes
mobilizações da ideia de crise) são tentativas de corrigir o múltiplo e o simultâneo, mas
são, enquanto tal, problemas mal colocados. Correspondem, sobretudo, a nostalgias da
ordem. Saberão elas que essa ordem a que se reportam nem sequer está verdadeiramente
desaparecida?
Tenha-se em conta que a caracterização da actualidade em termos de
simultaneidade implica, não há como negá-lo, a pressuposição de uma certa
impossibilidade de fim. Pressupõe-na, ao menos, em potência. Na medida em que dada
forma ou dada realidade em aparente esgotamento operativo não é liminarmente
substituída, ou, sendo-o eventualmente, não é todavia eliminada, ela fica condenada ao
jogo da convivialidade inter-fenoménica. Compreende-se: se os objectos, conceitos,
mecanismos e significantes não tendem a ser superados mas a relacionar-se com o que
chega num quadro de simultaneidade, isso remete para a possibilidade de que o seu
período de vigência se prolongue para lá do tempo da sua requisição por parte de
determinada conjuntura histórica específica. Mais do que de imposição, é de aposição
que aqui se trata. Claro que a concretização dessa persistência pode revestir várias
modalidades: ou a persistência pura e simples da forma em causa, sem alterações,
permanecendo auto-referenciada enquanto o “mesmo” embora, agora, em ambiente
diferente do que historicamente fora o seu; ou a sua reinvenção de acordo com novos
contornos funcionais, por exemplo mediante a requisição de um tipo de desempenho
diferente por parte da nova ambiência; ou o seu deslocamento para local diferente do
tradicional. É a propósito de situações deste teor que se pode falar de uma reciclagem
permanente, a qual, em função do que se pode observar, corresponde a uma das
manifestações mais elementares dos sistemas sociais e políticos contemporâneos.
São, naturalmente, imensos, os problemas levantados por uma estética deste
tipo. A possibilidade de permanência de um dado quadro histórico para lá do que se tem
convencionado como seu período histórico de referência significa, por exemplo, que a
instalação de um regime político democrático não corresponde necessariamente a um
movimento de substituição/superação/eliminação dos elementos do anterior regime. E,
de acordo com o raciocínio atrás explanado, as modalidades pelas quais o antigo (seja a
ditadura) pode assegurar a “passagem” – fá-lo, desde logo, como “permanência” – são
diversas. Mais diversas, por certo, do que gostariam muitos de nós, mas tantas quantas
as permitidas por uma lógica de simultaneidade paradigmática e pelo respectivo modo
de mudança. O odioso de uma estética da simultaneidade é confrontar-nos com aquilo
que já sabíamos mas que agora, a partir do reconhecimento de uma dimensão de
vigência naquilo que, porque supostamente eliminado, apenas aflorava enquanto
estranheza ou suspeita, se torna doravante impossível omitir. Os problemas que
verdadeiramente importam começam aqui.

II. HISTORICIDADE

Vejamos a questão da ditadura e da sua presencialidade. Por uma questão de


comodidade explicativa, ensaie-se o problema a partir da parelha ditadura / democracia.
O que são, em absoluto rigor, cada um desses pólos? Amálgamas de referencialidades e
de significantes, eis o que cada um deles é. Chamemos-lhes configurações, ou
dispositivos, ou províncias de significado, ou comunidades ideológicas, ou outra
qualquer designação deste tipo, que o sentido é o mesmo: quer o eixo ditatorial, quer o
eixo democrático, designam, cada um deles, um sistema complexo, intrinsecamente
plural, de referências doutrinárias, mecanismos de acção, funções ideológicas e
experiências históricas concretas, interagindo e agregando-se de forma dinâmica. Cada
um desses conjuntos, à medida em que vai sendo requisitado e em que vai incorporando
novas formas históricas, devém património – património ditatorial e património
democrático – e é nessa condição patrimonial que ele é recebido, encarado e utilizado
por cada momento histórico. Porque é importante esta questão do respectivo carácter
patrimonial? Por dois motivos. Primeiro, porque estes patrimónios têm uma dinâmica de
relacionamento que lhes permite encontrar-se e cruzar-se, tanto repelindo-se quanto
sobrepondo-se. A historicidade desse relacionamento incorpora portanto a possibilidade
da contaminação, a aquisição de elementos de um pelo outro. Segundo, porque só
entendendo a ditadura e a democracia como património se pode compreender que elas
fiquem, em cada época, como valor patrimonial que são, disponíveis para uso. Cada
conjuntura histórica tem ao seu dispor, nesta perspectiva, não apenas o todo dessa
província de significado que ela escolhe, mas parcelas desse todo, que ela pode decidir
conservar em detrimento de outras que pode rejeitar ou – situação mais complexa mas
possível – substituir por uma requisição preferencial no património do outro pólo, em
função da sua disponibilidade. Há, claro, o critério da compatibilidade; mas ele não
anula a existência potencial daquela escolha em sede “alheia”, fenómeno que a
contemporaneidade teria mesmo vindo acelerar. Um cenário preocupante. Adensam-se
as sombras sobre demarcações que de forma rotineira se foram apresentando como
estáveis. Mas de há muito que o senso comum explicativo nesta matéria se revelou
resposta frágil.
O recurso à história é aqui precioso. É com base nos quadros históricos de
referência sobre o relacionamento contemporâneo entre ditadura e democracia que julgo
poder distinguir umas quantas situações mais ou menos prototípicas pelas quais se
concretiza aquela dimensão “negocial” e de “impureza constitutiva” que tenho por
própria dos sistemas políticos.
Tomemos um exemplo concreto, o caso da ditadura salazarista portuguesa no
século XX. Muito se tem discutido (é já um clássico do campo historiográfico, aliás não
unicamente português) sobre o carácter dessa mesma ditadura e sobre a sua correcta
definição no contexto das tipologias existentes sobre regimes desse teor: fascismo?;
totalitarismo?; salazarismo?; entre outras propostas de arrumação. Ora, tanto quanto me
parece, a ditadura portuguesa foi sucessiva ou simultaneamente: ditatorial propriamente
dita, totalitária, fascista, e, dentro desta designação, fascismo de cátedra, fascismo de
referenciação católica, fascismo específico do salazarismo; e foi ainda, sucessiva ou
simultaneamente, corporativa, nacionalista, colonialista, imperialista. Quer dizer, em
função de especificidades históricas concretas e dependendo da realidade ou da
cronologia em causa, a ditadura desenvolveu as propriedades convenientes a partir da
sua lógica e de acordo com as modalidades disponíveis no património ditatorial.
Seguramente que, ao fazê-lo, apropriou-se à sua maneira, com o que imprimiu matéria
de especificidade e de inedetismo a esse mesmo dispositivo ditatorial. Podem, de resto,
isolar-se os elementos apresentados pelo Portugal da ditadura que, quando confrontados
com os apresentados por ditaduras congéneres, autorizam a falar de “singularidade”
lusa: o perfil de ditador do próprio Salazar, o vector católico, a guerra colonial, o “saber
durar”, ou a influência do exército, são alguns desses factores. Em suma: o caso da
ditadura portuguesa não escapa ao paradigma englobante; mas tão pouco se limita a
replicar-lhe o cânone; de certa forma, enriquece-o: ela é uma experiência histórica do
mesmo, mais uma, portanto, a juntar ao quadro do universo ditatorial e doravante
disponível para novas utilizações por parte de distintas conjunturas históricas. A
“negociação” de opções de que acima se falava começa, portanto, ao nível interno, ela é
realizada no interior dos próprios dispositivos.
Coloquemos agora um problema mais delicado. Tem a ver com a possibilidade
de dois dispositivos, em concreto os dois com que estamos a lidar, ditadura e
democracia, exibirem a presença simultânea de determinado elemento em ambos os
quadros de funcionalidade ou em ambos os patrimónios, dele fazendo um uso
forçosamente comum, o qual complica a pretendida delimitação entre cada uma das
polaridades. Um bom exemplo do que se acaba de dizer é dado pelo problema dos
conceitos de tempo ou regimes de historicidade disponíveis, nos inícios do século XX e
durante todo esse século, para serem mobilizados por cada um dos dispositivos - existe
verdadeiramente um regime de historicidade para cada um dos pólos opostos? Este
aspecto é da máxima importância. Estou mesmo convencido que a dificuldade por vezes
sentida em forjar verdadeiras diferenças entre os sistemas políticos concorrenciais ou
em um deles fazer vincar um efectivo estatuto de alternativa tem a ver precisamente
com impossibilidades de diferimento ditadas pela escassez de soluções a este nível da
vivência do tempo.
A concepção de tempo disponível ao longo de praticamente todo o século XX é
a que é fornecida pelo paradigma moderno. Importa, por isso, recordar as suas
principais características, que aqui apresento, em versão condensada, a partir da análise
aprofundada de Fernando Catroga1: 1º) o primado das ideias de continuismo e de
sucessão, expressões da operatividade explicativa reconhecida às relações de causa-
efeito e de antecedente-consequente, sendo que, por via de uma subtil inversão colada a
uma convicção previsibilista, é o segundo elemento que comanda o primeiro (o efeito
determina a causa, ou seja, o fim legitima o percurso), o que também minora o valor do
acaso e da indeterminação; 2º) a adequação ao espírito da modernidade da clássica ideia
de “historia magistra vitae”, permitindo, a partir de um trabalho de revisionismo sobre o
passado, eleger os momentos susceptíveis de anunciar já aquilo que o futuro viria a ser
(ou seja, a “história mestra do futuro”); 3º) a consagração do potencial criador do
homem, capaz de modificar o curso da História na medida em que produz revoluções,
isto é, momentos de ruptura, e, com elas, a capacidade humana de produzir um “homem
novo”, bem como um “tempo novo” (o que a Revolução Francesa explicita e as
revoluções do século XIX e XX comprovam); 4º) a vulgarização explícita ou implícita
da ideia de “fim da história”, não coincidente com o momento revolucionário, mas
possibilitado por este, o qual seria como que “o início do fim da história” (preceito que

1
Fernando Catroga, Os Passos do Homem como Restolho do Tempo. Memória e Fim do Fim da História.
Coimbra, Almedina, 2009, pp. 167-190.
equivalia a um imediato fechamento do “novo” no próprio acto da revolução, já que o
futuro passava a estar determinado); 5º) a inscrição de todos estas referências numa
lógica temporal que estruturava o tempo em campo de experiência e horizonte de
expectativa, porta aberta para a mobilização das noções de salvação, esperança e
regeneração, as quais invadem o discurso político.
É este painel de características e o regime de temporalidade que ele sustenta que
se impõem, sem solução alternativa, ao logo de oitocentos e de novecentos. Estamos,
pois, perante uma concepção do tempo e da história que pode filiar-se, sem dificuldade,
nas esperanças do iluminismo e da fé dogmática cientista, bem como no ímpeto
revolucionário francês, estendendo-se entretanto por ramificações várias que conduzem,
por vias diversas mas de comum matriz ao messianismo marxista ou à “filosofia
veterinária” nazi. A presença do ideal de “homem novo” em toda esta linha de
temporalidade não é casual. Com efeito, “a doutrina do homem novo não se reporta
somente à herança de uma tradição religiosa [sendo certo que “a retórica do homem
novo deve ao catolicismo o seu vocabulário e as suas referências”, podendo observar-se
que “a liturgia da regeneração pela fé fascista deve muito à inspiração religiosa”]. Ela
integra igualmente uma ideia mais laica de homem, proveniente da revolução francesa e
dos movimentos revolucionários do século XIX: uma ideia que faz o seu caminho,
apesar da hostilidade conhecida dos fascismos pelas Luzes, encostada aos
nacionalismos portadores de concepções messiânicas da história que atribuem ao
indivíduo uma posição heróica”2. Será quase desnecessário recordar que, quanto à
forma de “homem novo” ou de outras similares, não foi a alternância política entre
ditadura e democracia, ali onde ela se verificou durante o século XX, que impôs
qualquer tipo de corte significativo ou uma verdadeira inversão de sentido. Na verdade,
o derrube do pólo oposto passava, normalmente, pela prática revolucionária, o que
autorizava, também por essa via, a aspirar a um momento refundacional que fosse de
facto o princípio do que se anunciava como novo e que não podia deixar de fora a
ambição de refundar, também, os indivíduos. Os movimentos portadores de esperança,
tanto quanto os que se impuseram pela violência, não deslocaram o azimute no tocante
aos respectivos modos de temporalidade.
Em pleno século XX, tanto do lado ditatorial quanto do lado democrático ou
demo-liberal é uma, e uma só, a concepção de tempo disponível: um como outro

2
Marie-Anne Matard-Bonucci (dir), L’Homme Nouveau dans l’Europe Fasciste (1922-1945). Entre
Dictature et Totalitarisme. Paris, Fayard, 2004, pp. 13.
expressam, na estética continuista que suporta a sua concepção de História, o
historicismo que estrutura a sua ligação ao tempo e que corresponde, genericamente, à
concepção moderna de tempo. O comum fascínio de patrimónios políticos contrastantes
para com mecanismos de alteração política como a “revolução”, a comum crença no
mote “prever para prover” e no potencial crítico da noção de “progresso”, ou essa
comum capacidade para reinventar em cada momento os “amanhãs que cantam”, em
que homens e mulheres diferentemente “novos”, mas comummente tidos como
“inevitavelmente novos”, testemunham desse uso comum do regime de temporalidade
por parte dos dispositivos ditatorial e democrático. Giorgio Agamben percebeu a exacta
importância deste ponto, imputando, em concreto, ao marxismo, uma incapacidade para
investir numa diferença a este nível: “O primeiro objectivo de uma verdadeira
revolução, por norma, não é o de “mudar o mundo”, pura e simplesmente, mas também
e sobretudo de “mudar o tempo”. O pensamento político moderno, que concentrou a sua
atenção sobre a história, não elaborou a concepção de tempo correspondente. Mesmo o
materialismo histórico omitiu até ao presente a elaboração de um conceito de tempo que
seja compaginável com o seu conceito de história. Esta ausência impôs-lhe o recurso a
uma concepção de tempo que domina, desde há séculos, a cultura ocidental: a
representação vulgar do tempo como o de um continuum pontual e homogéneo. De
modo que coexistem no materialismo uma concepção materialista de história e uma
concepção tradicional do tempo”3.
À luz de tudo o que vem de ser dito, bem se compreende a dificuldade do
modelo moderno de tempo em dar conta de fenómenos de permanência como pode ser,
de acordo com o tópico que nos trouxe até aqui, a presença da ditadura para lá da sua
vigência histórica formal. Com efeito, uma perspectiva linear e sucessiva do
alinhamento dos fenómenos no tempo tende a valorizar preferencialmente a mudança e
a radicalidade da passagem, bem como um “novo” entendido mais como verticalidade e
menos disponível para se pensar enquanto lateralidade, para aplicar a terminologia com
que iniciei este capítulo. Uma inclinação que compromete de imediato a própria ideia de
transição. É sabido que a noção de “transição política” trabalha sobre o conceito de
limite. O limite é o “operador” da noção de transição. Em termos de história
contemporânea e sobretudo do século XX, são duas as operações que por norma ele
assegura por ocasião dos momentos de mudança ou transição política: um gesto de

3
Giorgio Agamben, Infancy and History. The Destruction of Experience. London, Verso, 2000, pp. 113.
inscrição da diferença, isto é, um esforço de delimitação entre a constelação política que
termina e a que chega, que pode traduzir-se, por exemplo, pela descrição do período
anterior como “tempo de crise” e “de decadência”; e, acto contínuo, um movimento de
refundação, isto é, o entendimento da transição como momento fundacional e promessa
de ilimitação, que faz desse tempo novo o início de um futuro. E porque, em lógica
transicional inscrita em temporalidade moderna, se trata de um futuro idealmente pré-
definido, ele fica doravante fechado a eventuais possibilidades outras de concretização.
Reparar-se-á que, nesta perspectiva, a transição, apropriada na origem, fica proibida no
futuro (um futuro determinado à partida e dotado de um horizonte de consumação não
carece de transições ou mudanças políticas). O “novo” surge (“Estado Novo”) mas
fecha-se de imediato.
Qual a competência desta lógica transicional e do regime de temporalidade que a
serve para surpreender elementos, traços ou até indicadores mais ostensivos de um
paradigma político anterior e, adentro desta perspectiva, virtualmente superado?
Escassa. É até possível aduzir que, historicamente, se terá verificado mesmo alguma
tendência para branquear a espessura e a durabilidade do período transicional,
preferencialmente consagrado historicamente como um processo rápido, como de um
fôlego, de substituição de uma coisa pelo seu contrário (uma retenção historiográfica
linear da “passagem” que, curiosamente, no caso da ascensão da ditadura salazarista em
Portugal, foi a escolhida, ainda que por razões diferentes, tanto pelo regime autoritário
quanto pela oposição comunista, na década de 30 do século XX, para descrever a
transição da república para a ditadura). Com inevitáveis diferenças conjunturais, este
tipo de leitura configura uma constante na história contemporânea, inclusive a recente,
sendo visível, em muitos aspectos, nos contextos finisseculares de transição política
para a democracia. Será, por isso, escassa também, a disponibilidade deste tipo de
leitura temporal da transição para reconhecer que possa produzir-se, em ambiente
democrático, a persistência da ditadura, ou, dizendo melhor, de elementos provenientes
do património ditatorial. Esta nuance é importante. Porque a verdade é que o leque de
situações nas quais podemos reconhecer a presencialidade da ditadura é diverso: pode
tratar-se de características nunca extirpadas do período ditatorial e que por conseguinte
se prolongam; mas pode tratar-se de versões reconfiguradas ou actualizadas de matrizes
ditatoriais antes vigentes sob outras formas; ou pode, ainda, no sentido a que aludi no
início desta exposição, tratar-se de requisições de elementos pertencentes ao património
ditatorial por parte do próprio património democrático. Não é uma hipótese simpática;
mas porque, verdadeiramente, já nem sequer é apenas hipótese, reconhecê-la parece a
decisão mais inteligente.
É, inegavelmente, uma realidade que levanta os maiores problemas. De
demarcação, acima de tudo. A complexidade da maior parte das situações deste género
deriva de os regimes políticos em causa serem, em simultâneo, democracias, pelo
menos no sentido em que dão assistência às modalidades formalmente reconhecidas
para tal, recorrendo embora, pontualmente e com um pragmatismo cirúrgico (eu diria
que no âmbito de uma lógica de puro consumo, indicadora de que o capitalismo é cada
vez mais a estética política da democracia), ao património da ditadura para “cobrir”
necessidades que não podem, geneticamente, encontrar resposta legítima no painel de
qualificações, mecanismos e propriedades disponíveis da democracia. É sempre
possível entender estes processos como manifestação prática da condenação à
simultaneidade que, eu mesmo o disse, sinaliza paradigmaticamente a actualidade. Ou
como reformulação e deslocamento dos lugares canónicos de uma democracia sujeita,
também ela, à contaminação que, disse-o de igual modo, rasga transversalmente o mais
coerente dos edifícios modernos. Admitamos que será assim. Em larga medida, essa
inscrição explicativa é correcta. Atenção, porém, ao que deve entender-se por isso: uma
vez “incorporados”, esses elementos não beneficiam de uma automática negação do seu
estatuto original, é mesmo com esse estatuto que eles são mantidos no novo âmbito ao
qual a sua persistência ou a sua requisição os conduziu. A sua participação em um
quadro histórico, no qual, à partida, eles não teriam cabimento, não pode significar a
omissão da diferença que há neles a fim de simular a naturalidade da sua requisição. O
facto de um sistema democrático fazer uso de mecanismos constantes do painel de
funcionalidades da ditadura quer dizer exactamente isso, que ele se dispõe a trabalhar
com formas ditatoriais, não podendo querer dizer em caso algum que, por via da sua
requisição por parte de um sistema democrático, essas formas ditatoriais se
“democratizaram”. “Fascismos” em ambiente democrático? Com certeza que sim.
Fascismos punitivos, fascismos societais, fascismos informativos. O reconhecimento de
que existem elementos de distinta índole e de código genético contrastante a funcionar
em simultâneo no quadro de dado sistema não se resolve por via de uma redução dessa
diferença à lógica epocal.
Porque o perverso da coisa, deste perfil autoritário assumido por estruturas
democráticas, é o de trazer implícito um convencimento da bondade intrínseca daquilo
que, por se situar do lado correcto da demarcação fundacional (essa mesma que havia
sido estabelecida por ocasião do momento transicional), não poderia nunca tomar-se por
equivalente ao mesmo tipo de prática outrora exercido do lado de fora da demarcação,
ou seja, no contexto ditatorial. Faço pois minha a tese de Geraldo Prado em publicação
sobre as interceptações telefónicas: “a tese central deste trabalho é de que não há
diferença alguma, de ordem prática ou axiológica, entre interceptações telefónicas
clandestinas, adotadas pelas forças de segurança que serviram às ditaduras militares do
continente, e interceptações telefónicas autorizadas judicialmente, executadas por
período significativo e além (e fora) de qualquer controle real, independentemente da
intenção daqueles que autorizam e ratificam tais medidas e do seu compromisso formal
com o Estado de direito”4. E não há, com efeito, diferença alguma. Nenhuma
demarcação de sentido separa as duas situações. A fronteira entre ditadura e democracia
não é dada pela sucessividade do tempo histórico, desenha-se nas práticas, isto é, nas
decisões políticas.

4
Geraldo Prado. Limite às Interceptações Telefónicas e a Jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, pp. 12.

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